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A construção alegórica da forja no “Diálogo sobre a conversão do Gentio” de
Manuel da Nóbrega (1556-1557)
ANA ELISA SILVA ARÊDES*
A expansão da fé católica na América portuguesa do século XVI significava
consolidar a presença da Coroa e conduzir o Gentio ao grêmio da Igreja e ao corpo místico do
império português.1 Os poderes secular e eclesiástico eram indissociáveis e, segundo as regras
do Padroado régio2, o rei era maior autoridade da Igreja em território luso, tendo o “direito de
invadir, conquistar, subjugar e submeter todas aquelas pessoas à perpétua servidão, que se
situarem fora dos limites do orbe cristão”3.
Em 1564, os decretos do Concílio de Trento foram declarados leis do reino de
Portugal e a Companhia de Jesus - fundada em 1534 por iniciativa de Inácio de Loyola -
passou a ser responsável pelo ensino em universidades e colégios do reino, assim como da
evangelização e do ensino nos colégios do Estado do Brasil (e, a partir de 1616, do Estado do
Maranhão e Grão Pará).
Como é largamente sabido, chegaram ao Brasil em 1549, enviados por Dom João III,
cinco missionários jesuítas sob o comando do padre Manuel da Nóbrega, junto com a armada
do Governador-Geral do Brasil Tomé de Souza. Nóbrega foi o Superior da Companhia de
Jesus no Brasil e, portanto, encarregado de organizar a missão jesuítica.
Segundo João Adolfo Hansen, “desde o Concílio a oratória sacra teve a função
teológico-política de fazer os súditos passarem das palavras ouvidas da boca do pregador para
a ação de subordinar voluntariamente seus interesses particulares ao “bem comum””,4 ou seja,
subordinar aos interesses da Coroa. Pela via da conversão, tornar-se cristão era tornar-se
também súdito do rei.
Nas Constituições da Companhia de Jesus, documento datado de 1555 que regulava a
Ordem, pode-se observar a centralidade da proposta, através da atuação da Ordem na via da
*Mestranda do Programa de Pesquisa em História Social – UFRJ. 1 Cf. HANSEN, J. A. “Introdução”. IN: Cartas do Brasil: 1608-1697. HANSEN, J. A. (Org.). São
Paulo: Hedra, 2003, p. 33. 2 Padroado régio foi firmado com o rei de Portugal em 1457. 3 BOOFF, Leonardo. América Latina: da conquista à nova evangelização. SP: Ática, 1992, p. 52. 4HANSEN, J. A. Vieira e o intelecto angélico. Revista Espaço Acadêmico, nº 85, junho de 2008, p. 3.
Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/085/85esp_hansen.pdf. Data de acesso:
10/01/2015.
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salvação das almas, de formar um exército da cristandade católica. Essa proposta estava em
total consonância com a tentativa de reativação em relação à divisão da cristandade, em meio
à Contrarreforma. Segundo Loyola, os jesuítas deveriam lutar “sob a bandeira da Cruz” e
servir ao Papa, e assim agiriam “em toda província onde forem enviados, entre turcos ou
quaisquer outros infiéis, na Índia distante, assim como em região de hereges, cismáticos ou
indivíduos de qualquer tipo.”5
A atuação em prol da “salvação e perfeição dos próximos”6 estava, portanto,
conectada a uma atitude militante a que os ordenados deveriam aderir. Percebemos, portanto,
que a atuação missionária envolvia, além da conquista das almas, uma forma de devoção, de
servir a Deus e à cristandade católica e, de maneira consequente, de servir à própria ordem.
Logo após a consolidação da ordem, os jesuítas se espalharam pelo mundo com
missão “pedagógico-catequética”, que segundo as Constituições, equivalia a prestar serviço a
Deus e ao próximo, por meio da inteira doação pessoal do missionário: Macau, América
Portuguesa e Espanhola, Angola, Japão e Alemanha foram alguns dos seus destinos. Era
fundamental, portanto, manter a comunicação entre os ordenados, a fim de que fossem
mantida a unidade das missões e a organização da Companhia. Nesse sentido, os jesuítas
demarcaram a importância e a necessidade da contínua comunicação através do envio de
cartas.
A ampla circulação de cartas entre os jesuítas e, consequentemente, a circulação de
informação acerca da atividade missionária, construíam laços de devoção entre os religiosos.
Ao escrever e ler as cartas os inacianos construíam uma “(...) rede espiritual dos irmãos
dispersos pelo mundo, de cuja solidariedade de ação e unidade de propósito depende a
sobrevivência do corpo interno da Companhia”.7
As práticas da leitura e escrita entre os jesuítas estavam ligadas não somente à
formação dos ordenados, mas também à união dos irmãos como grupo coeso, consistente e
participativo nas ações missionárias ao redor do mundo. Nesse sentido, destaca-se o Diálogo
sobre a conversão do Gentio, escrito na Baía entre 1556 e 1557 pelo padre Manuel da
Nóbrega, em meio aos debates teológico-jurídicos sobre a conquista das almas. Nele, o jesuíta
5LOYOLA, I. Companhia de Jesus. IN: Aquino, R. S.L & Alvarenga, F.J.M. &
FRANCO,D.A&LOPES, O.G.PL, História Das Sociedades: Das Sociedades Modernas às Sociedades
Atuais. Rio de Janeiro: 1990, p.87. 6CONSTITUCIONES DE LA COMPAÑÍA DE JESÚS, Ex. G. 1:3, p. 3. Disponível:
http://goo.gl/w5MPOQ. Acesso: 05/10/2014. 7 PÉCORA, A. Máquina de Gêneros. São Paulo: Edusp. 2001, p. 28.
3
avança argumentos sobre as possibilidades da conversão do Gentio da terra, numa tentativa de
apontar - para os irmãos inacianos - o melhor caminho para a prática da conversão.
O objetivo deste estudo é entender como Manuel da Nóbrega, no Diálogo sobre a
conversão do gentio, constrói no âmbito do discurso a alegoria da forja e como ela está
relacionada noção de ação – no sentido de prática – missionária. Para tanto, mapearemos as
referências que Nóbrega realiza dos textos de Tomás de Aquino para construir o efeito
estético alegórico.
Forma dialógica e o Diálogo sobre a conversão do Gentio (1556-1557)
Escrito após a morte do Bispo Sardinha pelos caetés, Diálogo indica a perda do
entusiasmo jesuíta com a conversão das almas dos Gentios das Américas. Aponta como
caminho para a conversão pela via do medo,8 que, através de “punições por práticas
condenadas pela religião”,9 aplicadas a alguns índios, o medo sujeitaria os outros. A punição
para Nóbrega, portanto, está calcada nas concepções tomistas,10 uma vez que o jesuíta
prescreve que a correção de alguns índios pecadores como forma de amedrontar e sujeitar os
outros.
O Diálogo sobre a conversão dos gentios, como seu título aponta, é composto por uma
conversa entre dois interlocutores jesuítas, Matheus Nugueira, um ferreiro, e Gonçalo
Alvarez, um pregador, que, na hierarquia da Companhia, ocupam as posições mais baixas,11 o
que aponta a proximidade hierárquica entre os personagens. Eles estariam mobilizados no
trabalho para a conversão das almas Tupinambá, a qual é a principal matéria abordada na
discussão.
8 NÓBREGA, M. Diálogo sobre a conversão do gentio. IN: LEITE S.J., Serafim. São Paulo: União
Gráfica de Lisboa, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, p. 60: Presente na fala
de “Gonçalo Alvarez: – Deixemos, isto! Sou tão descuidado que logo me esquece que esperais, como
vos louvão, como o fio quente quando o batem! Eu me guardarei de vos dar mais martelada porque me
não queime. Por amor de Deus que me digais algumas das rezõis que os Padres dão pera estes Gentios
virem a ser christãos? Que alguns tem asertado que trabalhamos debalde, ao menos até que este Gentio
não venha a ser mui sogeito, e que com medo venha a tomar a fee.” 9 PÉCORA, A. Op. cit. p. 52. 10 Segundo Tomás de Aquino, a lei é um recurso para evitar o mal por medo da punição: “Eis como a
lei, mesmo punindo, conduz os homens a serem bons” AQUINO, T. Escritos políticos de Santo Tomás
de Aquino. Petrópolis: Vozes, 199, p. 59. 11 DAHER, A. O Brasil francês. As singularidades da França Equinocial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 200, p. 230.
4
Entretanto, a forma dialógica é diáletica, segundo João Adolfo Hansen:
“O termo diálogo o indica: dia + logos = através da razão/linguagem. Nele, dois ou
mais personagens participam de uma controvérsia figurada em que debatem uma
questão. O exercício de dialética pressupõe a parcialidade das opiniões dos
debatedores, que são inventados como tipos dotados de um caráter permanente e de
caracteres secundários, que aparecem momentaneamente, durante a conversação.” 12
Marcado pela coloquialidade presente na fala, o diálogo é composto, segundo Platão,
pela arte de perguntar e responder a fim de provar, aceitar ou refutar as teses formuladas.
Formado, portanto, da contraposição, discussão e da aceitação ou negação, seja total ou
parcial, de idéias, o diálogo é construído por teses apresentadas pelos interlocutores.13 Nesse
sentido, Alejandro Escudero Pérez diz que “um diálogo é motivado por perguntas que se
desenvolvem sobre respostas e assim por diante”.14
De forma geral, no interior do jogo dialético,15 Matheus Nugueira supera os
argumentos de Gonçalo Alvarez. No entanto, esses personagens representam, segundo
Hansen, as duas formas de agir da catequese jesuítica, a do “letrado” e do “não-letrado”,
sendo que, “cada um deles sintetiza procedimentos adotados pela missão brasileira: o trabalho
com palavras, pregando e ensinando a Palavra de Deus, e o trabalho com obras, dando
exemplos e persuadindo com boas ações”.16
Logo no início da conversa, Gonçalo Alvarez chega a postular que “pregar a estes, he
pregar no deserto ha pedras”17. Matheus Nugueira responde que observa alguns padres
desanimados, pois achavam que poderiam converter o Brasil em “huma hora” e percebem que
não podem fazê-lo nem “em hum anno por sua [dos Gentios] rudeza e bestialidade”. Assim,
Nugueira chega ao ponto de concordância entre ele e Alvarez: a principal barreira da
12 HANSEN, J. A. Manuel da Nóbrega. Recife: Editora Massangana, 2010, p. 125. 13 HANSEN, J. A. Manuel da Nóbrega. Recife: Editora Massangana, 2010, p. 125. 14 PÉREZ, A. E. La comprensión dialógica y la retórica de la argumentación. Revista Atículos y
fuentes filosóficas: Enero de 2012. Disponível em:
http://www.lacavernadeplaton.com/articulosbis/dialoretor1112.htm. Data de acesso:
10/02/2015.Tradução de: “Un genuino diálogo viene motivado y orientado por una pregunta (pregunta
referida a una respuesta previa, la cual remite a una pregunta anterior, y así una y otra vez).” 15 REBOUL, Olivier. Introdução a retórica. São. Paulo: Martins Fontes, 2004. 16 HANSEN, J. A. Loc. Cit. 17 NÓBREGA, M. Op. cit. p. 53.
5
conversão dos índios se dá por esses serem inconstantes e, mesmo convertidos, retornam aos
seus costumes bestiais e aos vícios.
Nugueira, contudo, defende que os padres não devem se cansar e devem dedicar-se ao
trabalho constante e determinado. A partir daí os interlocutores discutem sobre o trabalho
missionário que, para eles, é serviço prestado a Deus. Gonçalo, no entanto, lembra que os
ofícios tomados pelos padres são diferentes, mas Nugueira refuta afirmando que não é
diferente a finalidade. Perguntando qual seria essa, Nugueira diz ser “A charidade ou amor de
Deus e do proximo”.18
Em seguida, Gonçalo questiona se os índios são próximos, Nugueira afirma que sim e
justifica que “nunca me acho senão com eles”,19 introduzindo um significado de “próximo”
como quem está a uma curta distância. Em meio a discussão sobre se são homens ou não os
índios, se menciona, novamente, o desânimo dos padres e Nugueira afirma que muitos padres
continuam a converter almas porque “a obedientia [aos seus superiores] lho manda”.20
Nugueira, então, concorda com a argumentação levantada por Gonçalo, a saber, a conversão
imposta pela sujeição e pelo medo, e ainda aponta que “Este parece o melhor e o mais certo
caminho”.21
Adiante, Gonçalo pede que Nugueira conte as “rezõis que tendes ouvido dos Padres
pera nos animarmos a trabalhar com elles [os índios]”.22 Nugueira responde:
“Estou eu imaginando todas as almas dos homens serem humas e todas de hum
metal, feitas à imagem e semelhança de Deus, e todas capazes da glória e criadas
pera ela; e tanto vale diante de Deus por naturaleza a alma do Papa, como a alma do
vosso escravo Papaná.”23
Então Gonçalo pergunta: “Estes tem alma como nós?”.24 A resposta afirmativa de
Nugueira é justificada pela presença das três potências da alma nos índios: memória,
entendimento e vontade. Contudo, adiante, Nugueira ressalta que apesar de possuírem alma e
18 NÓBREGA, M. Op. cit. p.57 19 Idem 20 NÓBREGA, M. Op. cit. p. 58 21 NÓBREGA, M. Op. cit. p. 60 22 NÓBREGA, M. Op. cit. p. 62 23 Idem 24 Idem
6
serem “bestas por natureza corrupta”25, como portugueses e castelhanos, esses tem melhor
entendimento que os índios.
Nesse ponto, Gonçalo diz haver um entendimento desigual na comparação entre os
índios, os romanos e os gregos, pois aqueles andam nus com flechas e aqueles sabiam ler,
escrever e eram mais polidos. Nugueira dele discorda, dizendo que a diferença entre eles não
está no entendimento, mas está na criação, sendo que os gregos e romanos tinham mais
polícia e, portanto, melhor criação, já os índios, por serem descendentes de Cam, não tinham
boa criação e, portanto, “(...) em maldição, e por isso, fiquarão nus e tem outras miserias”.26
Devido a essa condição, é verificado por Nóbrega que há entre os Tupinambá a ausência do
princípio da não contradição. Dessa maneira, a inconstância do indígena é apresentada como a
principal obstáculo para receber a fé,27 uma vez que não a mantém, pois com a mesma
facilidade que dizem pá, dizem aani e niem tia para Cristo.28 Nesse sentido, Nogueira anuncia
que os Tupinambás não possuem crença e, como em nada creem, não guardam a fé.
Verificamos então que, a inconstância deriva da ausência da obediência entre os
Gentios. Sendo os Tupinambá não organizados por um governo autônomo, não sujeitavam a
um soberano e, portanto, não poderiam ser subalternos a palavra de Deus. A ausência de
governo era o sintoma da ausência de polícia, o que acarretava a má criação, motivo da
boçalidade dos indígenas.
Partindo disso, Nugueira diz que o “ofício de converter almas é o mais grande de
quantos há na terra e por isso requere o mais alto estado de perfeição que nenhum outro”29 e
Gonçalo questiona se não basta saber dizer a verdade e ser língua. Dizendo que o padre deve
ser muito mais, Nugueira afirma que deve ser como os apóstolos, “confiando muito em Deus
e desconfiando muito de si”30
25 NÓBREGA, M. Op. cit. p.63. 26 NÓBREGA, M. Op. cit. p. 65. 27 DAHER, A. Op.cit., p. 235. 28 NÓBREGA, M. Op. cit. p. 67: “[Gonçalo Alvarez] (…) Sabeis qual hé a mor dificuldade que lhes
acho? Serem tam faciles de diserem a tudo si ou pâ, ou como vós quizerdes, tudo aprovão logo, e com
a mesma facilidade com que dizem pâ, dizem aani. E se algumas vezes chamados dizem neim tia, hé
polos não emportunardes, e mostra-oo bem a obra, que se não hé com o bordão não se ergem; pera
beber nunqua dormem! Esta sua facilidae de tudo lhe parecer bem, acompanhada com a esperientia de
nenhum fructo de tanto pâ, tem quebrado os corações a muitos. Dizia hum de nossos Irmãos que estes
erão o filho que disse no Evangelho a seu pai, que o mandava, que hia e nunqua foy.” 29 NÓBREGA, M. Op. cit. p.67. 30 Idem.
7
Gonçalo retoma Santo Agostinho e diz: “que Deus, que me fez sem mim, não me
salvará sem mim”. Nugueira retruca dizendo que pela intervenção de Deus, o Gentio se
converterá. A fé com as boas obras31 não são, pois, suficientes para a salvação, é necessário
também a graça divina. Nóbrega isso defende em consonância às determinações no Concílio
de Trento, uma vez que:
“Quando o Apóstolo diz que o homem se salva pela fé e pela graça, suas palavras
devem ser entendidas com aquele sentido que a Igreja Católica adotou e consentiu
perpetuamente, de que quando se diz que somos salvos pela fé enquanto esta é o
princípio de salvação do homem, fundamento e raiz de toda salvação, e sem a qual é
impossível sermos agradáveis a Deus, ou participar do bom destino de Seus filhos,
também se diz que somos salvos pela graça pois nenhuma das coisas que precedem à
salvação, seja a fé ou sejam as obras merece a graça da salvação porque se é graça,
não provém das obras, ou como diz o Apóstolo, a graça não seria graça.”32
Continua Nugueira que afirma que o índio não guarda a lei natural, assim como o
filósofo, embora a entenda, e conclui questionando qual é o maior obstáculo para desfazer a
conversão do índio ou a do outro? Gonçalo requere a resposta, mas Nugueira afirma que está
bem clara e dessa forma o Diálogo é concluído.
Segundo Hansen, a resposta que fica subentendida está pautada na lei natural, que faz
com que cada homem participe da universalidade do gênero humano, uma vez que ela baseia
a diferença entre bem e mal e, portanto, fundamenta as leis humanas.33 Dessa forma, Nóbrega
insere os índios no corpo místico do Império Português, uma vez que eles guardem a lei
natural, que será ensinada pela ação missionária, e possam adequar o uso de sua razão à moral
das lei humanas.
Alegoria da forja: ofício da salvação das almas
31 O Sagrado Ecumênico e Geral Concílio Tridentino. Lisboa: Officina Patriarc. De Francisco Luiz
Ameno, s/n, Tomo I, Cap. X: “Do incremento da salvação obtida”: “Bem sabeis que o homem se
salva por suas obras, e não só pela fé”. 32 O Sagrado Ecumênico e Geral Concílio Tridentino. Op. Cit. Cap. VII: “Que é a salvação do
pecador e quais suas consequências” 33 HANSEN, J. A. Op. cit. p. 133.
8
Portanto, podemos perceber que, através da forma dialógica, Nóbrega constrói tópicas
missionárias e alegorias que compõem a elaboração, explicação, defesa e acusação das ideias
apresentadas pelos interlocutores. A alegoria da forja é inserida por Nóbrega através das
figuras dos interlocutores - Mateus Nugueira, o ferreiro e Gonçalo Alvarez, o pregador - e é
trabalhada ao decorrer do texto associada à capacidade de transformação do fogo. Dessa
forma, localizamos que essa alegoria é construída por duas frentes: o ofício do ferreiro e o
movimento entre o fogo e o metal.
Sobre o ofício de Nugueira, a alegoria estabelece uma relação com a tarefa do
missionário, que, de forma análoga, deveria ser marcado pelo trabalho contínuo e constante,
modelando a matéria de acordo com o que é desejado. Portanto, a atuação missionária,
compreendida como forma de servir a Deus e à cristandade católica, é concebida como “ato
enérgico de cumprimento de uma ordem divina”.34 Dessa forma, Alvarez argumenta que, se
Nugueira trabalha pelo amor de Deus, suas obras atuarão na remissão de seus pecados e o
Espírito Santo lhe concederá graças:
“Gonçalo Alvarez: Disso, Irmão, estais seguro que vós não perdeis nada; se Chisto
promente por hum pucaro de agua fria, dado por seu amor o reino dos ceos, como hé
possivel que percais vós tantas marteladas, tanto suor, tanta vigilia, e a paga de tanta
ferramenta como fazeis? As vossas fouces, machados, muito boons são para
roçardes a mata de vossos peccados, na qual o Espiritu Sancto prantará muitas
graças e dões seus, se por seu amor trabalhaes.” 35
Dessa maneira, emerge em Nóbrega as questões sobre a necessidade do trabalho
missionário pela via das obras, pois somente aqueles que “experimentam”, ou seja, vivem as
situações próprias do trabalho com os Gentios, conseguem desenvolver conhecimentos
verdadeiros sobre os índios e sobre a atividade missionária.
Nesse sentido, Nóbrega defende que a conversão dos Gentios da América Portuguesa
é, em termos da metáfora por ele usada, transformação impulsionada pelo fogo e movida pela
forja, isto é, impulsionada pela intervenção divina do Espírito Santo - por meio do fogo divino
que atinge os corações – e movido pelo trabalho missionário (forma de servir a Deus), uma
vez que os Gentios são “ferro frio”:
34 PÉCORA, A. Op. cit., p. 104. 35 NÓBREGA, M. Op. cit. p.55.
9
“[Matheus Nugueira] Da parte do Gentio digo que huns e outros tudo são ferro frio,
e que quando Deus quizer meter na forja logo se converterão; e sse estes na fragoa
de Deus fiquarão pera sse meterem no fogo por derradeiro, ho verdadeiro ferreiro,
senhor do ferro, lá sabe ho porque, mas de aparelho de sua parte tão mao o tem
como ho tinhão todas as outras geraçõis”36
O uso da alegoria do fogo que o relaciona a um agente de mudança é localizado em
Tomás de Aquino, em Suma Teológica, que a utiliza como recurso explicativo sobre a
mudança de potência ao ato37: “O fogo, dotado de calor, faz com que a madeira, em potência
dotada de calor, passe a quente em ação. Desse modo, a move e muda.”38 Dessa forma, para
Nóbrega percebemos que o fogo detém a capacidade de mudar, contudo em relação ao ferro
somente a forja pode realizar a mudança:
“[Matheus Nugueira] Façamos logo do ferro todo hum, frio e sem vertude, sem se
poder volver a nada, porem, metido na forja, o fogo o torna que mais parece fogo
que ferro; assi todas as almas sem graça e charidade de Deus sam ferro frio sem
proveito, mas quanto mais se aquente no fogo, tanto mais fazeis delle o que
quereis.”39
A alegoria da forja, como mencionado, também é mobilizada no texto no eixo que
podemos identificar como o ofício do ferreiro. Nessa direção, a alegoria é usada de forma
conectada à intereção entre os interlocutores e, por esse meio, à valorização das obras no
interior da atividade missionária. Segundo Andrea Daher40, Mateus Nugueira, ao superar “seu
interlocutor em “sabedoria” demonstra a superioridade das obras, que estão representadas na
figura do ferreiro:
36 NÓBREGA, M. Op. cit. p. 69. 37 Tomás de Aquino retoma a discussão realizada por Aristóteles, sendo que este postula que o Devir é
a passagem da potência em ato, tudo que está em movimento. Cf. ARISTÓTELES. Física II. Prefácio,
tradução, introdução e comentários: Lucas Angioni. Campinas, SP: Editora da Unicamp. 2009: "o
movimento é a atualidade do ente em potência enquanto tal". 38 AQUINO, T. Suma de Teología. Madri: Biblioteca Autores Cristinos, 2001, p. 111: “O fogo, ação
quente faz com que a madeira, passe o poder quente realmente quente. Desse modo, se move e
muda.”. 39 NÓBREGA, M. Op. cit. p.63. 40 DAHER, Andrea. O Brasil francês. As singularidades da França Equinocial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 230.
10
“(…) tomarei por interlocutores ao meu irmão Gonçalo Alvarez, a quem Deus deu
graça e talento pera ser trombeta de sua palara na Capitania do Spiritu Sancto, e
com meu Irmão Matheus Nugueira, ferreiro de Jesu Chisto, o qual, posto que com
palavra nam prega, fá-lo com obras e com marteladas.”41
Dessa forma, Nóbrega estabelece a centralidade da ação no trabalho missionário-
catequético e, ao mesmo tempo, fortalece uma oposição entre prática e teoria, sendo as obras
capazes de ensinar, enquanto a pregação perde força quando é construída sem o apoio
argumentativo da prática, da experiência. Além disso, por meio da realização de boas obras, o
homem missionário pode redimir seus pecados, não basta, para Nóbrega, pregar a palavra de
Deus para receber as graças do Espírito Santo.
Nesse sentido, Nóbrega se aproxima das delimitações aristotélicas acerca da teoria e
da prática. Como demonstrado, segundo Aristóteles a contemplação da vida nem sempre é o
suficiente para conhecer o propósito das atividades humanas. Portanto, o missionário deveria
trabalhar orientado pelos conhecimentos teológicos realizando obras, pois esse seria caminho
para que obtivesse os conhecimentos originados da prática missionária. Através desses
conhecimentos, o religioso poderia chegar às definições e a natureza de seu objeto, que, no
caso de Nóbrega, são os Tupinambá, o método de conversão adequado e as dificuldades
encontradas na conversão.
Conclusão
“O lugar retórico priviligeado da demonstração escolhido por Nóbrega,
confirmado nas duas personagens, é predominantemente o da experiência, e não o da
teoria.” 42
Os argumentos apresentados no Diálogo sobre a conversão dos Gentios são
construídos através da manipulação de categorias retóricas, escolásticas e contrarreformistas,
subordinadas à experiência missionária. A alegoria da forja, como demonstrado, é uma
construção metafórica presente na escolástica tomista e manipulada por Nóbrega com o
objetivo de realizar alusões sobre o trabalho missionário.
41 NÓBREGA, M. Op. cit. p. 53. 42 PÉCORA, A. Op. cit. p. 100.
11
A experiência missionária, portanto, é significada como um meio pelo qual é possível
acumular conhecimentos a partir das situações vivenciadas junto ao Gentio e, por estar
engajado na atividade missionária, chega ao entendimento sobre a conversão e sobre o Gentio
e formula categorias nas quais os Gentios podem ser enquadrados de modo a serem
conduzidos ao corpo místico do império português43. Portanto, baseado nos argumentos
aristotélicos, Nóbrega defende que o conhecimento teórico não é o suficiente para conhecer
sobre a atividade missionária e os Gentios, é necessário também recorrer à sabedoria prática e,
portanto, a ação missionária, que poderá ser ponto de partida para a construção do
conhecimento prático.
Os conhecimentos oriundos da prática missionária construíam a base argumentativa do
Diálogo de Nóbrega, principalmente, ao elaborar categorias nas quais os Gentios do Brasil
podiam ser enquadrados. Por conseguinte, os missionários tendo conhecimento dessas
categorias, o trabalho pedagógico-catequético poderia ser mais eficiente em “ajudar a
salvação e perfeição dos próximos”, em termos das Constituições.
Como demonstrado nesse trabalho, Aristóteles defende que a atividade racional
denominada de sabedoria prática pode ser mobilizada para se conhecer à natureza do objeto.
Através de ações missionárias, o religioso poderia construir a experiência missionária, isto é,
o conhecimento sobre a prática catequética. É, nesse sentido, que Nóbrega valoriza as ações,
as obras através da construção das falas dos interlocutores do Diálogo e da composição dos
dois personagens. Ora, segundo o Filósofo: a vida consiste em agir, não em produzir.
Contudo, ao contrário do que Todorov defende em La conquista de América: el
problema del otro,44 “nos textos jesuítas do século XVI, o “índio” não é definido
antropologicamente como um outro cultural, mas como o mesmo da natureza humana
teologicamente entendida, só que natureza humana muito disforme.”45
Como numa “máquina”,46 os gêneros discursivos operavam através de determinados
procedimentos reguladores das práticas letradas. No caso do regime retórico, os modelos de
43 Cf.: HANSEN, J. A. “Introdução”. IN: VIEIRA, Antônio. Cartas do Brasil 1608-1697. São Paulo:
Hedra, 2003. 44 TODOROV, T. La conquista de América: el problema del otro. México: Século XXI, 2007. 45 HANSEN, J. A. A Escrita da Conversão. IN: COSTIGAN, Lúcia Helena Costigan (Org.). Diálogos
da Conversão. Missionários, Índios, Negros e Judeus no Contexto Ibero-Americano do Período
Barroco.Campinas: EDUNICAMP, 2005, p. 21. 46 Referência ao título do livro de Alcir Pécora, “Máquina de Gêneros”, que fornece a imagem que
parece perfeita para compreendermos como os textos estavam presentes no mundo.
12
manipulação das autoridades, as técnicas retóricas e a modelização dos gêneros compõem
esse funcionamento. A produção escrita do jesuíta Manuel da Nóbrega encontra-se,
inexoravelmente, no interior dessa “máquina”.
Fontes
AQUINO, T. Suma de Teología. Madri: Biblioteca Autores Cristinos, 2001.
__________. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1995.
ARISTÓTELES. Física II. Prefácio, tradução, introdução e comentários: Lucas Angioni.
Campinas, SP: Editora da Unicamp. 2009:
CONSTITUCIONES DE LA COMPAÑÍA DE JESÚS. Disponível: http://goo.gl/w5MPOQ.
Acesso: 05/10/2014.
LOYOLA, I. Companhia de Jesus. IN: Aquino, R. S.L & Alvarenga, F.J.M.&
FRANCO,D.A&LOPES, O.G.PL, História Das Sociedades: Das Sociedades Modernas às
Sociedades Atuais. Rio de Janeiro: 1990.
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Industrial Graphica, 1988.
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