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A CONSTRUÇÃO DA CIÊNCIA E O ENSINO DA CIÊNCIA Na pista da penicilina - O papel do acaso em ciência Sílvia Almeida M. Jesus Ramalho Adelaide Simões Ana Maria Morais Isabel Pestana Neves Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Versão pessoal revista do texto final do artigo publicado em: Revista de Educação, VIII (1), 159-166 (1999) Homepage da Revista de Educação http://revista.educ.fc.ul.pt/2003/home-v2.html

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A CONSTRUÇÃO DA CIÊNCIA E O ENSINO DA CIÊNCIA

Na pista da penicilina - O papel do acaso em ciência Sílvia Almeida M. Jesus Ramalho Adelaide Simões Ana Maria Morais Isabel Pestana Neves Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Versão pessoal revista do texto final do artigo publicado em: Revista de Educação, VIII (1), 159-166 (1999) Homepage da Revista de Educação http://revista.educ.fc.ul.pt/2003/home-v2.html

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INTRODUÇÃO A presente estratégia, que foca essencialmente conteúdos metacientíficos1, explora a

noção de que a construção da ciência é um processo dinâmico e não linear, cuja metodologia não segue sempre as mesmas etapas e que se confronta constantemente com situações imprevistas e com limitações de diversos tipos. O acaso pode ser importante na construção da ciência, mas só se repercute em descobertas importantes se as mentes dos cientistas estiverem atentas para o aproveitamento do inesperado e se as condições sociológicas se mostrarem propícias.

Para realizarem a actividade proposta os alunos já devem ter conceptualizado a construção

da ciência como um processo em que interagem factores de diversa ordem, que constituem as dimensões filosófica, psicológica e sociológica (interna e externa). Estes conhecimentos irão agora ser aplicados a uma nova situação, permitindo simultaneamente a actividade que os alunos ampliem o conceito de ciência. Os alunos poderão desenvolver competências cognitivas de nível elevado, como capacidades de análise e síntese, pensamento crítico e reflexivo. Poderão ainda desenvolver competências socio-afectivas complexas como o reconhecimento dos limites e potencialidades da ciência e a participação em discussões. Dado o processo de ensino-aprendizagem subjacente à actividade, ela pode ser entendida como uma actividade centrada no aquisidor. Contudo, o facto de focar conteúdos bem definidos, seguir uma ordem pré-determinada e deixar bem explícito o texto a adquirir, faz com que a actividade contenha aspectos característicos de um modelo de ensino-aprendizagem centrado no transmissor.

A actividade baseia-se no texto Antibiotics, sulfa-drugs and manganins de Roberts (1989)

e, tal como está concebida, destina-se a alunos do 8º ano, podendo ser integrada na unidade de ensino correspondente ao sistema reprodutor. Com algumas pequenas alterações pode contudo ser também usada em turmas do 7º ano, na unidade sobre relações bióticas. A actividade, tal como outras anteriormente publicadas, foi construída no âmbito da disciplina de Didáctica das Ciências por três alunas-professoras com a orientação e colaboração de duas professoras.

O texto da actividade contém a informação e questões-chave necessárias à discussão e ainda indicações sobre a forma como essa discussão poderá ser orientada. A estratégia está estruturada de forma a que a discussão de cada questão envolva a turma no seu conjunto. Contudo, sempre que o professor considerar adequado, poderá anteceder o debate por uma discussão a nível de pequenos grupos. Sugere-se que cada questão com o texto para os alunos que a antecede seja apresentada num acetato separado. Todos os acetatos devem ter no canto superior a imagem da placa de petri infectada pelo bolor que inicia este trabalho.

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ESTRATÉGIA DE DISCUSSÃO

Nas últimas aulas estudámos o sistema reprodutor e referimos as doenças sexualmente transmissíveis. Quando estas doenças são causadas por bactérias o seu tratamento baseia-se na utilização de antibióticos. Nesta aula vamos viajar na pista de um destes antibióticos (a penicilina), procurando descobrir um pouco mais sobre a forma como é construída a ciência. Durante esta viagem teremos ainda oportunidade de aplicar conhecimentos anteriores sobre as diferentes dimensões da construção da ciência (filosófica, psicológica e sociológica). De forma a organizarmos as ideias que forem surgindo registem, no quadro que é fornecido, após a discussão de cada questão, os aspectos que permitem salientar cada uma daquelas dimensões.

Com esta introdução pretende-se contextualizar os alunos dos pontos de vista científico e metacientífico e

ainda quanto à forma como se vai processar o trabalho.

Para proceder ao registo dos apectos relacionados com as diferentes dimensões da ciência, o professor

recorre a um acetato (Anexo I), fornecendo simultaneamente aos alunos cópias desse acetato.

Vamos então imaginar que entramos numa máquina do tempo e recuamos até à altura da 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Encontramo-nos num hospital em França e vários médicos tratam os doentes. Ouvimos um médico comentar para outro:

O fenol é o antisséptico mais utilizado, mas eu reparei que ele faz mais mal do que bem. Mata

mais rapidamente os leucócitos do que as bactérias que provocam a infecção... Como seria bom

se existisse um antisséptico eficiente, que matasse as bactérias que provocam infecções graves e

que não fosse nocivo para os leucócitos!

O comentário deste médico é fruto de uma observação, que levantou um problema. Qual é esse problema?

Inicia-se assim (nesta actividade) o estudo da dimensão filosófica da ciência. Espera-se que os alunos

formulem um problema equivalente ao seguinte: Que substância matará as bactérias que provocam

infecções graves, não sendo nociva para os leucócitos?

Os médicos que conhecemos em França são bacteriologistas do Hospital de St. Mary, em Londres, e o mais novo chama-se Fleming. Vamos entrar novamente na máquina do tempo. Pela

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janela vamos observando Fleming e decidimos parar quando nos chama a atenção o ar intrigado com que ele observa uma placa de Petri. Estamos agora em 1922.

A placa que Fleming observa contém uma cultura de secreções nasais do próprio Fleming (que está constipado) e encontra-se repleta de bactérias amarelas. O espanto de Fleming é provocado pela existência nessa placa de uma pequena área incolor. Esta observação leva-o a questionar-se sobre a causa do aparecimento dessa área. Fleming lembra-se então que no dia anterior, enquanto examinava esta placa, tinha deixado cair inadvertidamente uma lágrima sobre ela. Apercebe-se de que a área incolor resulta da rápida lise (destruição) das bactérias e deduz que esta é provavelmente provocada por uma substância existente nas lágrimas.

Com base nesta informação, formula uma hipótese que permita responder ao problema inicialmente colocado.

Continua-se o estudo da dimensão filosófica. Pretende-se que os alunos formulem uma hipótese equivalente

a: A substância existente na lágrima destrói as bactérias que causam infecções graves, mas não é nociva

para os leucócitos. O professor poderá referir que nem sempre é formulada uma única hipótese.

A maioria dos bacteriologistas teria deitado fora a placa contaminada, mas Fleming não o fez. Em vez disso fez algumas investigações complementares, encontrando nas lágrimas uma substância antibiótica a que chamou lisozima.

Que características da personalidade de Fleming lhe permitiram descobrir a lisozima?

Esperam-se respostas que apontem como características da personalidade de Fleming a curiosidade,

perspicácia e sagacidade (ou outras equivalentes). O professor deve orientar a discussão no sentido de os

alunos se aperceberem da relevância destas características na descoberta científica (dimensão psicológica).

O professor deve referir que as características assinaladas nem sempre são partilhadas por todos os cientistas

e que não são exclusivas dos cientistas.

A descoberta da lisozima vai revelar-se de pequena importância prática, porque os germes que a lisozima mata são relativamente inofensivos.

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Este dado confirma ou refuta a hipótese que formulaste?

Espera-se que os alunos indiquem que este dado refuta em parte a hipótese formulada, pois indica que a

lisozima não mata as bactérias que causam infecções graves. O professor deve levar os alunos a

compreenderem que a refutação de hipóteses é um processo indispensável na construção da ciência

(dimensão filosófica).

Voltando à máquina do tempo, vamos viajar até 1928. Fleming está a realizar trabalho laboratorial de rotina, relacionado com a pesquisa da gripe. Está a examinar culturas de Staphylococcus (uma bactéria) em placas de Petri e repara que numa delas existe uma estranha área clara. Esta placa tem um aspecto semelhante ao do logotipo desta actividade. Ao examiná-la mais atentamente Fleming repara (tal como possivelmente também já reparaste...) que esta área rodeia uma mancha de bolor que tinha caído na caixa, provavelmente enquanto esta estava destapada.

Relacionando a observação de 1928 com os acontecimentos de 1922, formula uma nova hipótese para o problema inicial.

Continua a ser explorada a dimensão filosófica. O professor poderá facilitar o reconhecimento do contexto

científico pelos alunos, relembrando os conceitos relativos à antibiose apreendidos no 7º ano. Deve orientar

(se necessário) os alunos no sentido de estes formularem uma hipótese equivalente a: O bolor produz uma

substância que mata as bactérias que provocam infecções graves, podendo não ser nociva para os

leucócitos. Pela janela da máquina do tempo vemos Fleming isolar o bolor, identificá-lo como pertencendo ao género Penicillium e designar a substância antibiótica por ele produzida como penicilina.

Embora na altura não a procurasse, Fleming pensa que a penicilina poderá ser a substância antibacteriana que ele desejava encontrar. Continua as investigações, verificando que a penicilina causa a lise de bactérias que provocam infecções graves, quando estas são cultivadas em placas de Petri. Demonstra ainda que a penicilina não é tóxica para os animais e que é inofensiva para as células do corpo humano. Finalmente testa a penicilina em pacientes hospitalizados com infecções. Alguns dos pacientes melhoram, mas noutros a penicilina não parece provocar alterações na evolução da doença.

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Estes resultados apoiam ou refutam a hipótese?

A discussão deve ser orientada no sentido de os alunos concluirem que estes dados, embora mostrando que a

penicilina não é inofensiva para as células do corpo humano, não permitem rejeitar nem confirmar a

hipótese. Os resultados dos testes em pacientes hospitalizados não são conclusivos, isto é, como só alguns

dos pacientes melhoraram, não é possível afirmar que a administração da penicilina seja eficiente para todas

as infecções. Trata-se de uma situação de insucesso experimental e seria necessário alterar o protocolo

(dimensão filosófica).

Os testes efectuados não são conclusivos e a análise dos seus resultados levanta um sub-problema: Porque razão alguns doentes melhoraram e outros não? Uma das explicações possíveis é que a dose de medicamento utilizada foi insuficiente para tratar alguns dos doentes. Para testar esta hipótese seria necessário aumentar a dose inoculada (por exemplo utilizando penicilina concentrada), o que corresponde a alterar o procedimento experimental. Fleming tenta concentrar a penicilina, mas os métodos relativamente simples que ele tem à sua disposição revelam-se ineficazes, já que destroem a penicilina.

Também Raistrick, colaborando com Fleming, tenta isolar e concentrar a penicilina, pois entretanto o sucesso da sulfanilamida (um outro antibiótico) chama a atenção para a quimioterapia.

Que factores terão levado Raistrick a participar nas investigações?

É possível que os alunos, aplicando conhecimentos adquiridos anteriormente, refiram que o interesse do

cientista pode estar relacionado com a curiosidade ou com a ambição de sucesso (dimensão psicológica).

Pretende-se ainda que os alunos indiquem que este investigador se interessou pela penicilina devido ao

sucesso de um outro antibiótico. O professor deve orientar (se necessário) a discussão de forma a que os

alunos compreendam que uma descoberta científica pode impulsionar outras (dimensão filosófica).

Estas tentativas não têm sucesso e nada mais será feito neste campo durante anos.

O que terá levado à interrupção das investigações?

Espera-se que os alunos mencionem como factor determinante para a interrupção das investigações as

dificuldades técnicas, salientando-se assim um dos aspectos da relação entre a ciência e a tecnologia: as

limitações técnicas podem impedir avanços no conhecimento científico (dimensão sociológica externa). É

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ainda de esperar que seja abordada a dimensão psicológica, pois como qualquer ser humano o cientista tem

desejos e frustações. O professor deve salientar que embora os cientistas sejam frequentemente persistentes,

a persistência pode ter limites quando as hipóteses de sucesso são demasiado remotas.

Vamos viajar até ao final dos anos 30, altura em que Florey e o seu colaborador Chain (bioquímicos da Universidade de Oxford) procuram substâncias antibacterianas naturais. Estes dois cientistas iniciam a sua pesquisa pela lisozima (a substância antibacteriana descoberta por Fleming), mas depressa o seu trabalho se centra na penicilina, como o agente antibacteriano mais promissor.

Pela janela da máquina do tempo vemos que Florey e Chain conseguem concentrar e purificar a penicilina, utilizando sofisticadas técnicas químicas que estão disponíveis em Oxford, mas que Fleming não conhecia.

Que razões terão levado Florey e Chain a investir na penicilina?

Espera-se que os alunos refiram que as investigações de Fleming indicavam que a penicilina poderia ser um

agente antibacteriano eficiente e que Florey e Chain esperavam conseguir superar as dificuldades técnicas

que bloquearam o trabalho de Fleming. As razões subjacentes ao investimento poderão ser de natureza

psicológica (como, por exemplo, curiosidade e ambição de sucesso), filosófica e sociológica. Na construção

do conhecimento científico o investimento na hipótese mais provável corresponde a um procedimento

metodológico que se baseia num raciocínio lógico, mas que também resulta das influências exercidas pela

comunidade científica. Os cientistas têm de gerir eficazmente os recursos disponíveis, pois a atribuição de

verbas para a investigação e a própria progressão na carreira académica está frequentemente condicionada

pela apresentação de resultados significativos dentro de um dado período de tempo.

O professor deve assim levar os alunos a aperceberem-se de que o trabalho de um cientista depende de

condicionalismos vários e ainda que este se apoia em trabalhos anteriores.

Utilizando a penicilina concentrada e purificada, Florey e Chain conseguem demonstrar as suas propriedades curativas, primeiro em infecções experimentais em ratos e depois em doentes humanos com estafilococos e com outras infecções graves.

Estes novos dados apoiam ou refutam a hipótese que formulaste?

Espera-se que os alunos refiram que estes dados apoiam a hipótese (dimensão filosófica).

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Embora eficiente, a penicilina era rara. Apesar de recuperada da urina dos doentes e reutilizada, a quantidade produzida era diminuta.

Estes factos apontam para o aparecimento de um novo problema. Qual é esse problema?

Esperam-se respostas equivalentes a: Como aumentar a produção de penicilina? O professor deve salientar

que em ciência é frequente que a resolução de um problema acarrete o surgimento de outros (dimensão

filosófica), o que contribui para o progresso científico.

Neste ponto da nossa viagem apercebemo-nos de que eclodiu a 2ª Guerra Mundial (1939-1945). A guerra torna ainda mais premente a necessidade de produzir a penicilina em larga escala, devido ao elevado número de feridos militares cujo tratamento implica a utilização de uma substância antibacteriana. Cientistas dos dois lados do Atlântico colaboram na resolução deste problema e Florey desloca-se aos EUA para trocar informações sobre métodos de extracção e purificação.

Acompanhamos Florey nas suas viagens. Em Peoria obtém duas contribuições inesperadas: Por um lado consegue melhorar o meio de cultura utilizado para produzir a penicilina, adicionando-lhe um extracto que é obtido como um sub-produto da industrialização do milho e para o qual se procurava uma aplicação industrial. Por outro lado é aqui que é recolhida a estirpe que será seleccionada para a produção da penicilina. Centenas de estirpes provenientes de todo o mundo são testadas, mas a seleccionada é recolhida num mercado de frutas por uma mulher local (alcunhada de Moldy * Mary devido ao seu interesse por fungos). Estas duas descobertas combinadas aumentam significativamente a produtividade da penicilina. Esta droga miraculosa ajuda milhares de feridos durante a guerra e a sua investigação incentiva a descoberta de outros antibióticos. Viajando até 1945 vemos Fleming, Florey e Chain partilharem o Prémio Nobel e, mais tarde, ser-lhes atribuído o título de cavaleiros, pelo seu trabalho de que resultou o alívio de muito sofrimento e a salvação de um número incontável de vidas.

* Moldy - bolorenha

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Discute as interacções desta investigação com: a) A comunidade científica b) A sociedade em geral

Relativamente a a) espera-se que os alunos mencionem que para o sucesso desta investigação contribuíram

cientistas de países diferentes e de diversos campos da ciência, sendo levados a reconhecer a importância da

colaboração entre cientistas. A atribuição do Prémio Nobel revela o reconhecimento pela comunidade

científica do mérito desta investigação. Espera-se ainda que os alunos se apercebam de que na investigação

científica um trabalho se baseia em anteriores e impulsiona novos trabalhos. Foca-se assim a dimensão

sociológica interna.

Relativamente a b) o professor deve orientar a discussão no sentido de os alunos compreenderem que a

sociedade impulsiona o desenvolvimento científico (neste caso a eclosão da 2ª Guerra Mundial e a

contribuição pessoal da Moldy Mary) e que reconhece e valoriza (através da atribuição de um título com

prestígio social) o mérito científico. Por outro lado, a ciência também influencia a sociedade. Neste caso o

uso da penicilina teve consequências sociais. São assim salientados aspectos da sociologia externa.

Neste ponto da actividade, o professor com base no quadro já preenchido (o Anexo II mostra uma

possibilidade) promove uma discussão de forma a sistematizar os conteúdos apreendidos e a ampliar o

conceito de ciência nas suas diferentes dimensões. A discussão deve ser orientada de modo a que fique claro

para os alunos que a construção da ciência é um processo dinâmico e não linear.

Quando se fala em “descobertas científicas acidentais”, a descoberta da penicilina e do seu processo de produção em larga escala são exemplos frequentemente citados.

Comenta o papel do acaso nesta investigação

Espera-se que durante esta discussão os alunos se apercebam de que nalgumas das etapas o acaso teve um

papel importante nesta investigação.

O professor deverá orientar a discussão de forma a que os alunos se apercebam ainda da importância do

cientista estar desperto para aproveitar o acaso. Poderão ser exploradas as frases:

- “Era um verdadeiro milagre, e eu estava lá para presenciá-lo com os meus próprios olhos” (Paul Auster)

- “No campo da observação a sorte apenas favorece a mente preparada.” (Pasteur)

- “As sementes das grandes descobertas flutuam constantemente à nossa volta, mas apenas enraizam nas

mentes bem preparadas para as receber.” (Joseph Henry)

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Devem ainda ser identificados alguns dos factores que levaram os cientistas a detectar e interessar-se pelo

facto imprevisto. Estes factores são de natureza psicológica (a perspicácia e a curiosidade, entre outros),

sociológica interna (a influência do trabalho de outros cientistas) e sociológica externa (a necessidade de

produzir em larga escala uma substância antibacteriana eficiente).

Durante a discussão final pretende-se que os alunos compreendam que a construção da ciência é um

processo dinâmico e não linear em que acontecimentos casuais se podem tornar relevantes, se existirem

factores psicológicos e/ou sociológicos que predisponham o cientista para detectar algo inesperado como um

dado passível de contribuir para a resolução de um problema.

Notas

1 A actividade que se apresenta faz parte de um conjunto de estratégias de discussão que têm vindo a ser

publicadas (Silva et al, 1994; Fontes e Morais, 1997; Nunes et al, 1997), sobre a construção da ciência e o ensino da ciência.

Bibliografia Auster, P. (1994). O caderno vermelho, trad. de The Red Notebook. Lisboa: Ed. Asa. Domingos (presentemente Morais), A. M., Neves, I. P. e Galhardo, L. (1981). Uma forma de estruturar o ensino e

a aprendizagem (3ª ed.). Lisboa: Livros Horizonte. Domingos (presentemente Morais), A. M. et al (1989). Teoria(s) e prática(s) no ensino das ciências. Lisboa:

Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (monografia). Domingos (presentemente Morais), A. M., Neves, I. P. e Galhardo, L. (1983). Ciências do ambiente – Livro do

professor. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Fontes, A. e Morais, A. M. (1997). A construção da ciência e o ensino da ciência - Ciência e contextos sociais.

Revista de Educação, 6 (2), 117-121. Henry, J. In R. Lenox. (1985). Educating for the serendipitous discovery. Journal of Chemical Education, 62 (4),

282-285. Mendes, J., Veloso, M. e Pinheiro, A. (1996). A ciência, o cientista, um problema cor-de-laranja (Trabalho

desenvolvido no âmbito da cadeira de Didáctica das Ciências). Lisboa: Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Nunes, F., Peniche, P., Morais, A. M. e Neves, I. P. (1997). A construção da ciência e o ensino da ciência -

Problemas da aplicação da ciência e da tecnologia na sociedade. Revista de Educação (em publicação). Pasteur, L. In R. Lenox. (1985). Educating for the serendipitous discovery. Journal of Chemical Education, 62 (4),

282-285. Perutz, M. (1989). Discoverers of Penicillin In M. Perutz. Is science necessary? – Essays on science and scientists.

Londres: Barrie & Jenkins, Lda. Risso, A. C., Leal, J. e Malheiro, P. (1996). O médico detective – Alguns aspectos das dimensões epistemológica,

psicológica e sociológica da ciência (Trabalho desenvolvido no âmbito da cadeira de Didáctica das Ciências). Lisboa: Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

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Roberts, R. M. (1989). Antibiotics: Penicilin, sulfa drugs and magainins. In R. Roberts. Serendipity – accidental

discoveries in science (cap. 24). Nova Iorque: John Wiley. Silva, J. F. (Coord.) (1975). Manual do professor de biologia, trad. de BSCS - Biology Teachers’ Handbook.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Silva, C., Silva, P., Passos, P., Morais, A. M. e Neves, I. P. (1994). A construção da ciência e o ensino da ciência -

A fraude em ciência. Revista de Educação, 4 (1-2), 171-175. Ziman, S. (1984). An introduction to science studies. Cambridge: Cambridge University Press.

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Resumo Com base no artigo de R. Roberts Antibiotics, sulfadrugs and manganins sobre a

descoberta e produção em larga escala da penicilina foi elaborada uma actividade de discussão que se destina a alunos do 8º ano. Com esta actividade, pretende-se que os alunos desenvolvam a noção de que a construção da ciência é um processo dinâmico e não linear no qual o acaso pode ter um papel importante, quando se reunem condições psicológicas e sociológicas que proporcionam o seu aproveitamento. A actividade contribui assim para ampliar a compreensão da construção da ciência e para o desenvolvimento, pelos alunos, de competências cognitivas e socio-afectivas de nível complexo.

Abstract Based on the article of R. Roberts Antibiotics, sulfadrugs and manganins about the

discovery and production in large scale of penicilin was constructed a discussion activity for students of the 8th year of schooling. With this activity it is intended to develop the idea that the construction of science is a dynamic non-linear process in which serendipity can play an important role when there are psychological and sociological conditions which permit to take advantage of it. The activity contributes therefore to broaden the understanding of the construction of science and to the development by students of complex cognitive and socio-affective competences.

Résumé On a organisé une activité de discussion avec des élèves de 8éme année de scolarité,

fondée sur l'article de R. Roberts Antibiotics, sulfadrugs and manganins sur la découverte et production de la pénicilline en grande échelle. L'objectif de cette activité est de développer chez les élèves l'idée de la construction de la science en tant qu'un processus dynamique et pas linéaire, dans lequel le hasard peut jouer un rôle important, quand on vérifie des conditions psychologiques et sociologiques qui permettent et créent des conditions favorables à son usage. L'activité aide, donc, à mieux comprendre la construction de la science et au développement de compétences cognitives et socio-affectives complexes par les élèves.