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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE ‘HUMANIDADE’ EM DOCUMENTOS INTERNACIONAIS: COMO MULHERES NEGRAS SÃO (IN)VISIBILIZADAS NESSES DISCURSOS Simone Braz Batista 1 Elisângela de Jesus Santos 2 Resumo: Entre as décadas de 1940 e 1960 três documentos internacionais foram criados para pensar sobre os Direitos Humanos: Carta das Nações Unidas (1945), Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e Convenção Americana Direitos Humanos São José (1969). Os pontos traçados por ambos os documentos dizem respeito a cooperação internacional entre os países membros, no esforço contra qualquer tipo de discriminação e desigualdade sustentadas por raça, cor, sexo, religião e outras naturezas. Em suas redações afirmam condições necessárias ao desenvolvimento social, cultural, econômico e outras formas que concretizem a dignidade humana sem distinções. A partir da perspectiva discursiva sobre humanidade trabalhada nos documentos esta proposta de artigo questiona como esses direitos contemplam ou não as mulheres negras, a partir das categorias de gênero e raça, considerando as diferentes opressões que as atingem. Para tal análise iremos nos apropriar do conceito de interseccionalidade trabalhado por Kimberlé Creshaw (2002) teórica que discute como diferentes estruturas de poder atuam sob a vida de grupos marginalizados socialmente. E da concepção de sistema mundo moderno/colonial analisado por Aníbal Quijano (2000) como colonialidade do poder a partir da dominação, exploração e conflito da população mundial classificados socialmente a partir da categoria de raça. Palavras Chaves: Direitos Humanos. Interseccionalidades. Colonialidade do Poder. Introdução Diante dos catastróficos eventos que atingem sociedades contemporâneas em âmbitos nacionais e mundial, tais como: aumento dos casos de feminicídio de mulheres negras, genocídio da juventude negra masculina, diminuição dos direitos trabalhistas e previdenciários, (i)mobilidade territorial de diferentes grupos humanos entre os territórios/ países do globo e situação indigna de imigrantes no mundo todo constituem exemplos importantes da forma como distintas categorias discursivas forjam classificações étnico-raciais utilizadas ideologicamente para justificar e/ou para atuar como combustível (re)produtor de situações desumanizadoras na materialidade das relações de poder cotidianas. De que formas estados, organizações não governamentais e movimentos sociais podem refletir e agir perante as constantes violações de direitos aos grupos humanos, considerando as especificações (identitárias, étnico-raciais, de gênero e/ou sexualidade, classe social) que carregam 1 Mestranda e bolsista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do CEFET/RJ, Rio de Janeiro, Brasil. 2 Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais e do Bacharelado em Línguas Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais (LEANI) ambos do CEFET/RJ, Rio de Janeiro, Brasil.

A CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE ‘HUMANIDADE’ EM … · poder cotidianas. De que formas estados, ... redações, ... implica questionar tais narrativas pensando as imposições materiais

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

A CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE ‘HUMANIDADE’ EM DOCUMENTOS

INTERNACIONAIS: COMO MULHERES NEGRAS SÃO (IN)VISIBILIZADAS NESSES

DISCURSOS

Simone Braz Batista1

Elisângela de Jesus Santos2

Resumo: Entre as décadas de 1940 e 1960 três documentos internacionais foram criados para pensar

sobre os Direitos Humanos: Carta das Nações Unidas (1945), Declaração Universal dos Direitos

Humanos (1948) e Convenção Americana Direitos Humanos São José (1969). Os pontos traçados por

ambos os documentos dizem respeito a cooperação internacional entre os países membros, no esforço

contra qualquer tipo de discriminação e desigualdade sustentadas por raça, cor, sexo, religião e outras

naturezas. Em suas redações afirmam condições necessárias ao desenvolvimento social, cultural,

econômico e outras formas que concretizem a dignidade humana sem distinções. A partir da

perspectiva discursiva sobre humanidade trabalhada nos documentos esta proposta de artigo

questiona como esses direitos contemplam ou não as mulheres negras, a partir das categorias de

gênero e raça, considerando as diferentes opressões que as atingem. Para tal análise iremos nos

apropriar do conceito de interseccionalidade trabalhado por Kimberlé Creshaw (2002) teórica que

discute como diferentes estruturas de poder atuam sob a vida de grupos marginalizados socialmente.

E da concepção de sistema mundo moderno/colonial analisado por Aníbal Quijano (2000) como

colonialidade do poder a partir da dominação, exploração e conflito da população mundial

classificados socialmente a partir da categoria de raça.

Palavras Chaves: Direitos Humanos. Interseccionalidades. Colonialidade do Poder.

Introdução

Diante dos catastróficos eventos que atingem sociedades contemporâneas em âmbitos

nacionais e mundial, tais como: aumento dos casos de feminicídio de mulheres negras, genocídio da

juventude negra masculina, diminuição dos direitos trabalhistas e previdenciários, (i)mobilidade

territorial de diferentes grupos humanos entre os territórios/ países do globo e situação indigna de

imigrantes no mundo todo constituem exemplos importantes da forma como distintas categorias

discursivas forjam classificações étnico-raciais utilizadas ideologicamente para justificar e/ou para

atuar como combustível (re)produtor de situações desumanizadoras na materialidade das relações de

poder cotidianas.

De que formas estados, organizações não governamentais e movimentos sociais podem

refletir e agir perante as constantes violações de direitos aos grupos humanos, considerando as

especificações (identitárias, étnico-raciais, de gênero e/ou sexualidade, classe social) que carregam

1 Mestranda e bolsista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do CEFET/RJ, Rio de

Janeiro, Brasil. 2 Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais e do Bacharelado em Línguas

Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais (LEANI) ambos do CEFET/RJ, Rio de Janeiro, Brasil.

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consigo e que os fazem, por isso mesmo, alvo de opressões que se tornam, ao invés de únicas,

múltiplas?

Pensando nessas opressões à ‘Humanidade’ em seu sentido pretensamente universal, muitos

documentos foram criados como reguladores e orientadores para que os direitos humanos fossem

garantidos. Parte deles surge como demanda internacional, em especial como resposta às duas grandes

guerras mundiais.

Entre as décadas de 1940 e 1960, três documentos internacionais foram criados para “pensar”

Direitos Humanos: Carta das Nações Unidas (1945), Declaração Universal dos Direitos Humanos

(1948) e Convenção Americana de Direitos Humanos São José (1969). Os pontos traçados por eles

dizem respeito a cooperação internacional entre os países membros, no esforço contra qualquer tipo

de discriminação e desigualdade sustentadas por raça, cor, sexo, religião, entre outras. Em suas

redações, os textos afirmam condições necessárias ao desenvolvimento social, cultural, econômico e

outras formas que concretizem a dignidade humana sem distinções desqualificatórias entre os grupos.

Entretanto, as premissas civilizatórias que permeiam a noção de ‘humanidade’ prescritas pelos

saberes etnocêntricos, de branquidade e do gênero masculino implícitos nestes documentos

perpassam, necessariamente, uma perspectiva da colonialidade. No contexto latinoamericano,

implica questionar tais narrativas pensando as imposições materiais e teóricas que a própria

colonialidade insere em nossas relações sociohistóricas.

O local e o global na perspectiva dos direitos humanos

Pensar em Direitos Humanos nos faz imaginar em como diferentes grupos possam se

relacionar socialmente, deixando de lado os preconceitos, o racismo e outros tipos específicos de

discriminações que se sustentam em meio e através de categorias raciais, de gênero, de classe,

classificações territoriais, religiosas e tantas outras.

Nessa relação percebe-se a presença de grupos hegemônicos que muitas vezes impõem

diretrizes sociais às ações sob cor/pos e territórios dos grupos vistos como subalternos. Estas relações

de imposição implicam também a presença de práticas de resistência, que autores como Boaventura

de Sousa Santos (2001) e Joaquín Herrera Flores (2002) discutem sobre os direitos humanos e seus

deslocamentos a partir das concepções e contraposições espaciais entre o local e global.

A fluidez na constituição de uma ideia de humanidade e a consideração de quem a compõe

tem se acirrado com a configuração social contemporânea, que podemos chamar de uma sociedade

globalizada. Essa “globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que

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começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um

novo padrão de poder mundial” (Quijano, 2005, p. 227).

Sobre essa sociedade globalizada Santos traz uma reflexão afirmando que a “globalização é o

processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo globo e,

ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival”

(Santos, p.10, 2001). A globalização, neste sentido, está situada e definida no deslocamento entre o

macro (universal) e o micro (local).

A partir dessa colocação, como podemos pensar a ‘humanidade’/humanidades e seus direitos

atribuídos num plano global sem cair na armadilha universal, acionando com isso a globalização

hegemônica via um “localismo globalizado e um globalismo localizado”3, ou enxergar as nuances

dos direitos humanos e “reconceitualizá-los como multiculturais” acionando a “globalização de baixo

para cima” (Santos, 2001, p.15).

Segundo o autor, uma das possíveis saídas é pensar os direitos humanos por uma perspectiva

multicultural, considerando as fissuras, necessidades locais, universalizando o que fosse inerente a

qualquer indivíduo, como o direito ao nascimento, a partilha dos patrimônios da humanidade,

materiais e naturais. O multiculturalismo se mostraria como “precondição de uma relação equilibrada

e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem dois

atributos de uma política contra hegemônica de direitos humanos no nosso tempo” (Santos, 2001,

p.16).

Seguindo essa perspectiva ampliada de direitos humanos com seus devidos cuidados ao macro

e micro, Flores (2002) traz em sua reflexão duas visões sobre o assunto: abstrata e localista. A

primeira se propõe “vazia de conteúdo, referenciada nas circunstâncias reais das pessoas e centrada

na concepção ocidental de direito e do valor da identidade”. Já a segunda abarca “o “próprio”, o

nosso, com respeito ao dos outros centrado na ideia particular de cultura e de valor da diferença”

(Flores, 2002, p.09).

A visão abstrata preza por uma totalidade, porém, apenas partes desta são detentoras de

direito. Há uma multiplicidade de identidades que se conectam e se distanciam, mas compõem o todo.

A questão a se avaliar é como socialmente certos grupos e identidades são protegidos e identificados

3 Para Boaventura de Sousa Santos o localismo globalizado e o globalismo localizado são globalizações de-cima-para

baixo. Ver mais em Santos, Boaventura de Sousa. CONTEXTO INTERNACIONAL, vol.23, n. 1, janeiro/junho 2001,

pp.7-34, Rio de Janeiro-RJ

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como sujeitos de direito em contraposição a outras parcelas desprotegidas, não vistas em plenitude, e

sim como fragmentos de vida.

Indo na contramão dessa concepção parcial de direitos, a visão localista tem o cuidado no

detalhe, nas dinâmicas e práticas sociais oriundas de cada território. Mesmo com interferências

externas, isto é, globais, o local está ali pulsante e com tensões, dialogando com a esfera macro.

Partilha-se nesses ambientes o diferente, que pode ou não ser denominado como o outro.

Ambas as visões podem ser usadas para beneficiar parcelas da sociedade e promover a

manutenção dos antigos e atuais impérios em seus privilégios econômicos, políticos, socioculturais.

Pensar os direitos enquanto universais deve ser necessário quando a diversidade é colocada na arena.

E a que se potencializar o local quando este não se transforma na norma, em detrimento do que se

costuma chamar de ‘outro’.

Pensando nesses deslocamentos que Flores (2003) propõe uma racionalidade de resistência,

que seria para ele uma visão complexa dos direitos:

[...] não nega que é possível chegar a uma síntese universal das diferentes opções

relativas aos direitos. E tampouco descarta a virtualidade das lutas pelo

reconhecimento das diferenças étnicas ou de gênero. O que negamos é considerar o

universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há

de se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes) de

um processo conflitivo, discursivo de diálogo ou de confrontação no qual cheguem

a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas (FLORES, 2003, p.21).

O autor defende o universalismo, mas não como algo romantizado e sim, conflituoso. Que

não seja sobreposto mas que atue como uma encruzilhada, com várias entradas e saídas. Por isso, sua

proposta para os direitos humanos envolve práticas interculturais que são para ele:

[...] em primeiro lugar, um sistema de superposições entrelaçadas, não meramente

superpostas. Esse entrecruzamento nos conduz até uma prática dos direitos,

inserindo-os em seus contextos, vinculando-os aos espaços e às possibilidades de

luta pela hegemonia e em estrita conexão com outras formas culturais, de vida, de

ação, etc. Em segundo lugar, induz-nos a uma prática social nômade, que não busque

“pontos finais” ao acúmulo extenso e plural de interpretações e narrações, e que nos

discipline na atitude de mobilidade intelectual absolutamente necessária, em uma

época de institucionalização, regimentação e cooptação globais (FLORES, 2003, p.

23).

Seja pelo filtro multicultural em Santos (2001) ou intercultural de Flores (2003) o que se torna

evidente é a complexidade da concepção e aplicação dos direitos humanos. Percebe-se então que a

construção de direitos para a ‘humanidade’ não deve ser liderada por parte dos países do globo em

detrimento dos demais. Além disso, também notamos como a lógica do capital se fortalece ao se

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apropriar da jurisprudência e administrar a legalidade aplicando-a aos interesses individuais posto em

cima dos coletivos, considerados de maneira mais ampla, justa e de equidade possível.

A quem são destinados direitos garantidos por documentos internacionais?

A Carta das Nações Unidas (1945) tem em sua origem a motivação na paz e ordem mundial

após as duas grandes guerras que alteraram algumas das cartografias do globo. Em seu texto reforça

a preocupação dos países envolvidos no trabalho pela “tolerância” e respeito mútuo entre as nações,

além deliberar a criação da Organização das Nações Unidas.

Três anos após seu surgimento, a ONU apresenta aos seus membros e ao mundo a Declaração

Universal dos Direitos Humanos (1948) que tem como proposta a difusão universal de direitos

orientados a partir do respeito, educação, liberdade e progresso social entre países e povos. Algo a

ser seguido como um trajeto comum entre Estados membros e aos territórios administrados por estes,

isto é, suas colônias.

Passadas exatamente duas décadas teremos, em nível continental, um documento que orienta

a constituição e aplicação de direitos nos países americanos. Trata-se da Convenção Americana

Direitos Humanos São José (1969) que somente em 1992 teve a adesão do Brasil. Assim como os

documentos citados anteriormente, o Pacto de San José da Costa Rica tem como base a ideia do

respeito e dignidade da pessoa humana:

Reafirmando seu propósito de consolidar neste Continente, dentro do quadro das

instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social,

fundado no respeito dos direitos essenciais do homem; Reconhecendo que os direitos

essenciais do homem não derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado,

mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por

que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante

ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos (BRASIL.

Decreto n.º 678, 1992, s/p).

A partir das redações dos documentos separamos alguns trechos em que os termos “homens”,

“mulheres”, “raça”, “cor”, “gênero”, “sexo”, “humano”/“humanidade”, “pessoa(s)” são citados por

eles.

No início da Carta das Nações, temos os seguintes trechos:

[...] a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no

espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; a

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reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da

pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como

das nações, grandes e pequenas; a estabelecer as condições necessárias à manutenção

da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do

direito internacional; a promover o progresso social e melhores condições de vida

dentro de um conceito mais amplo de liberdade [...] Realizar a cooperação

internacional, resolvendo os problemas internacionais de carácter económico, social,

cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do

homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo,

língua ou religião (ONU,1945, s/p, grifos nossos).

Já na Declaração Universal dos Direitos Humanos temos a seguinte mensagem:

Artigo 1. Todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com

espírito de fraternidade. Artigo 2. 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os

direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer

espécie, seja de raça, cor, sexo [...] Artigo 6. Todo ser humano tem o direito de ser,

em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.” (ONU, 1948, p.02,

grifos nossos).

E por último, a Convenção Americana Direitos Humanos São José que diz:

Artigo 1. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano. Artigo 5. Toda

pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral;

Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou

degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito

devido à dignidade inerente ao ser humano. (BRASIL. Decreto n.º 678, 1992, s/p,

grifos nossos).

Em todos os textos é determinante a abrangência e generalidade da definição de “ser humano”.

Sabemos, pelas estatísticas brasileiras por exemplo, como a ideia de ‘humano’ e de ‘humanidade’ se

desloca a todo tempo. Percebemos isso ao nos depararmos com pesquisas atreladas à violência

doméstica, níveis de desemprego, déficit de moradia e tantos outros dados materiais que distribuem

de maneira discrepante as opressões sofridas por grande parcela da população que, diga-se de

passagem, é empobrecida, negra e feminina.

Em entrevista concedida à Bianca Santana, publicada recentemente na Revista Cult edição

223, Sueli Carneiro observa que o conflito racial permanece vivo na sociedade brasileira e marca sua

estrutura de classe. Tal conflito “permanece aqui hoje, estruturando a sociedade brasileira,

organizando a própria estrutura de classes sociais. Porque no topo da pirâmide temos uma hegemonia

absolutamente branca e nas bases uma maioria absolutamente negra” (Carneiro, 2017, p.15).

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Essa visão generalista da ‘humanidade’ presente em grupos tão diversos em nossa sociedade

refletiu em todo o pensamento social brasileiro, (re)produzido nos e através dos parâmetros da

colonialidade. Ainda segundo a percepção de Sueli, foi a própria condição diversa dos movimentos

negros brasileiros que conseguiu tencionar a inserção do debate racial até mesmo nos meios

hegemônicos, bem como nos alternativos. “E todos ainda sem muita clareza, de como lidar com a

preeminência de que a racialidade tem na constituição dos problemas de toda natureza, sobretudo nas

violações de direitos humanos” (Carneiro, 2017, p, 15).

Logo, de forma muito imprecisa, os discursos internacionais trazem como conceito de

‘humano’, ‘humanidade’ e ‘humanitário’, concepções menos complexas e mais superficiais, sem

especificações, colocando no mesmo pacote violações que não são equiparadas, nem relacionadas a

determinados grupos sociais.

Essas violações que atingem a dignidade humana, retiram sua liberdade e são contrárias à

fraternidade; não são filtradas por categorias de raça, classe e gênero, por exemplo. Não adianta

apontar que não se admite nenhum tipo de distinção entre homens e mulheres, brancos e negros, ou

entre ricos e pobres. As violações e discriminações não acontecem de forma bipolarizada, mas sim

articulada a várias categorias.

Além de ampliar a concepção de direitos humanos, não os restringindo a uma perspectiva

ocidental hegemônica, à luz das reflexões de Santos (2001) e Flores (2002) é preciso articular de

forma multi e intercultural, não se pode simplesmente atuar no campo genérico, precisam partir para

uma teia de ramificações e identificar perda de direitos e ganho de deveres a determinados sujeitos

sociohistóricos.

Por isso, o trabalho sobre interseccionalidade desenvolvido por Kimberlé Crenshaw, escritora

e professora norte americana, vem ganhando mais espaço na agenda política contemporânea4.

Crenshaw aponta como as estruturas de raça e gênero atuam de forma integrada e percebe como as

discriminações, quando combinadas, atuam e se transformam em infrações específicas voltadas a

determinados segmentos sociais, mulheres negras por exemplo. Tal abordagem acaba por questionar

as convenções genéricas sobre direitos humanos, convocando-as para novas e específicas reflexões a

fim de provocar mudanças que considerem as violações de direitos nas suas particularidades e

entrecruzamentos.

4 Djamila Ribeiro, em artigo publicado na Revista Cult de outubro de 2016, observa que o conceito de interseccionalidade

foi cunhado em 1989 por Crenshaw, mas que Angela Davis já cerca o assunto em 1981 ao constatar que as opressões se

dão de forma entrecruzada, conforme sinaliza o título de “Mulheres: raça e classe”.

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Em parte dos seus textos traz relatos de situações em que mulheres negras sofreram algum

tipo de abuso e que muitos organismos voltados à defesa dos direitos humanos não consideraram

como algo que violasse os direitos humanos. Para ela:

A questão é reconhecer que as experiências das mulheres negras não podem ser

enquadradas separadamente nas categorias da discriminação racial ou da

discriminação de gênero. Ambas as categorias precisam ser ampliadas para que

possamos abordar as questões de interseccionalidade que as mulheres negras

enfrentam (CRENSHAW, 2004, p.08).

Nos casos em que não houve distinções entre homens e mulheres, esses documentos incluíam

as mulheres como detentoras de direitos humanos. Porém, quando opressões específicas atingem as

mulheres, muitas organizações não souberam como atuar. Atitudes políticas como essas resultam

ataques à dignidade humana de mulheres negras. Logo, trabalhar a interseccionalidade nas diretrizes

propostas por Crenshaw é avaliar os contextos em que as infrações são cometidas e perceber quais

outros fatores estão operando, seja em termos de gênero, raça ou tal como aponta Sueli Carneiro:

classe social.

Considerando os documentos analisados percebemos atenção ao gênero quando propõem que

não haja distinção entre homens e mulheres. No entanto, tal diferenciação não se faz presente quando

a categoria de raça vem a tona, colocada como uma não-distinção geral. Na perspectiva generalista

não se faz menção às diferenças entre homens e mulheres e a raça, quando abordada, pode remeter a

não-diferença entre brancos e negros. Na prática, sabemos que existem tensões e distanciamentos

estruturantes entre as categorias sociohistóricas: homens brancos versus mulheres negras, mulheres

brancas versus mulheres negras e homens negros versus mulheres negras.

No que toca a proteção às mulheres negras, segmento populacional alvo principal de muitas

violações, é necessário entender que:

[...] Quando somos protegidas contra a discriminação racial, somos protegidas contra

todas as formas de discriminação racial, não apenas contra as que ocorrem para os

homens. E quando somos protegidas da discriminação de gênero, somos protegidas

de todas as formas de discriminação de gênero e não apenas das formas que afetam

as mulheres da elite que estão protegidas das formas que ocorrem com as mulheres

pobres e negras (CRENSHAW, 2004, p.15).

O racismo atua de forma múltipla e os documentos aqui citados não reconheceram essa

dinâmica ao pensar direitos humanos e as formas de proteção não-universais que variados segmentos

sociais precisam ter para que não fiquem destituídos de direitos. Não adianta considerar somente a

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desigualdade salarial entre homens e mulheres se não for considerado que socialmente e no conjunto

“mulheres”, as mulheres brancas e negras ocupam posições e rendas também desiguais. As

convenções internacionais aqui analisadas só consideraram o desequilíbrio na renda entre homens e

mulheres, generalizando-os.

Por isso seja pela discriminação de gênero ou de raça, ambas devem garantir as proteções

necessárias ao considerar que o machismo, sexismo, racismo e outras infrações atingem as mulheres,

porém mulheres negras e brancas os sofrem de forma diferentes. Logo “tanto os aspectos de gênero

da discriminação racial quanto os aspectos raciais da discriminação de gênero não são totalmente

apreendidos pelos discursos dos direitos humanos” (Crenshaw, 2002, p.171).

No texto intitulado “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da

discriminação racial relativos ao gênero” Crenshaw (2002) faz críticas a dois documentos em especial

sobre direitos humanos, a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Para ela esses documentos recorrem ao “princípio da igualdade de gênero” quando referem-se aos

direitos humanos e concebem como experiências de referência vivências dos homens para alcançarem

uma visão universal. Logo tais documentos não podem ser negligentes ao considerar perda de direitos

as mulheres quando estas sofrem demandas específicas, enquanto mulheres e mulheres não negras,

algo que os homens não irão sofrer por serem simplesmente homens ou homens brancos.

A partir dessa consideração é que Crenshaw nos provoca problematizando como a

superinclusão e subinclusão atuam ao considerar a interseccionalidade nos direitos humanos. E seus

perigos aos organismos de direitos humanos quando estes não percebem que dentro do grupo de

mulheres, superinclusão, algumas violações são impulsionadas por categorias de raça, subinclusão.

Considerações Finais

Refletimos aqui sobre a concepção de Direitos Humanos sob a ótica de documentos oriundos

de um pensamento etnocêntrico-racial específico e datado historicamente. Pautados pelas diferentes

formas de colonialidade (Quijano, 2005) e pensados a partir de uma lógica econômica e

pretensamente universal difundiram formas padrões para agir diante da perda de direitos sociais

identificando, de modo genérico, o que fere ou não a dignidade humana.

A racialização das relações sociais pautadas na colonialidade, conforme verifica Aníbal

Quijano configurou relações de dominação onde identidades se tornam constitutivas das “hierarquias,

lugares e papéis sociais correspondentes” [...] “ao padrão de dominação que se impunha” (Quijano,

2005, p. 228). Sob a perspectiva dos colonizadores, a classificação racial tornou-se modo de “outorgar

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legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista” (idem, p. 229). Isto é, racialização

correspondia a re-produção do racismo.

Na perspectiva contemporânea pautada e protagonizada por grupos que se auto-identificam

afirmativamente sob viés étnico-racial, a racialização ganha novos contornos e ressignificações. A

atuação dos movimentos negros formularam propostas para corrigir as desigualdades produzidas pelo

racismo através de políticas de ações afirmativas (Carneiro, 2017, p.16) que se contrapõem às

categorizações binárias, com homens e mulheres tratados sob perspectivas excludentes, desiguais e

não articuladas entre raça e gênero implicando violação de direitos e consequente irresponsabilização,

ao tratar direitos humanos sob o prisma da diversidade não como direito, mas como forma de

“beneficiar” determinados grupos étnico-raciais sem considerar a especificidade das violências

sofridas.

Raça e gênero ganharam, ao longo desses anos, movimentos, organizações e setores de

governo que tratam de forma particularizada as discriminações oriundas dessas categorias. No

entanto, tais práticas nem sempre são filtradas por um pensamento interseccional e acabam por ser

distribuídas de modo restrito, localizadas em seus respectivos setores.

Por muito tempo, a condução das políticas de direitos humanos foi pautada por parte dos

países do globo, protagonizada por hegemonias político-econômicas, geográficas e socioculturais que

se tornaram referência para discussão.

Diante de muita pressão da sociedade civil notamos que algumas narrativas, antes silenciadas

e agora mais ativas, estão se organizando e denunciando violações direcionadas a grupos sociais

específicos, como é o caso de mulheres e mulheres negras. Podemos perceber reflexos dessas

mobilizações quando observamos a operacionalização das políticas de Estado nos âmbitos federal,

estaduais e municipais, criando secretarias/diretorias com pastas voltadas exclusivamente para

mulheres e suas demandas.

A limitação desse avanço está no fato de não se identificar o particular na “superinclusão”

(Crenshaw, 2002). Muitas particularidades de algumas mulheres que são englobadas pelo viés de

gênero, podem ser renegadas no âmbito da raça o que resulta em ações que não as contemplam

plenamente. Logo, as instâncias voltadas às mulheres, de modo geral, não necessariamente resultam

em equidade intragrupo, mas continuam a reproduzir desigualdades de tratamento por manter

invisibilizadas as diferenças identitárias.

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

E é por conta dessas invisibilidades que a pretensão universal dos direitos humanos torna-se

limitada resultando no apagamento dos direitos que não são vistos, pois estão escondidos em

discursos genéricos e rasos, sem passar por reflexões complexas, densas e estruturais.

Referências Bibliográficas

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THE CONSTRUCTION OF THE IDEA OF HUMANITY IN INTERNACIONAL

DOCUMENTS: HOW BLACK WOMEN ARE HINDERED IN THESE DISCOURSES

Abstract: Between the 1940s and 1960s, three international documents were created to think about

Human Rights: the United Nations Charter (1945), the Universal Declaration of Human Rights

(1948), and the American Convention on Human Rights (1969). The points designated by both

documents concern international cooperation among member countries in the effort against any kind

of discrimination and inequality supported by race, color, sex, religion and other natures. In their

essays they affirm the necessary conditions for the social, cultural, economic development and other

forms that concretize the human dignity without distinction. From the discursive perspective on

humanity, worked on in the documents, this article questions the way in which these rights documents

contemplate black women. It is fundamental to start from the categories of gender and race,

considering the differences and specificities of the oppressions that affect such women. For this

analysis we will take the concept of worked by the theoretician, Kimberlé Creshaw (2002), that

discusses how different structures of power act in the life of socially marginalized groups. Before, we

will work with Boaventura de Sousa Santos (2001) and Joaquín Herrera Flores (2003) to problematize

conflicts around the rights in the global and local plans. We intend to carry out such theoretical

movements in articulation with Anibal Quijano's (2005) conception of the modern/colonial world

system, thinking the coloniality of power to perceive how the race category, when triggered, imprints

relations based on different forms of domination, Black groups under a world perspective. Thus, we

note the fundamental contradiction that permeates the substance of the aforementioned documents

since, in the perspective of coloniality, the construction of discourses and narratives about the other

necessarily pass through the 'race' as a construction that underlies ethnocentrism.

Key Words: Human Rights. Coloniality of Power. Intersectionalities.