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A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DA MULHER RELIGIOSA

CONSAGRADA COMO ESPOSA DE CRISTO NA ANTIGUIDADE

CRISTÃ E IDADE MÉDIA

DIAS, Ivone Aparecida1

OLIVEIRA, Terezinha2

O objetivo desta comunicação é apresentar de forma breve algumas reflexões a

respeito da construção da imagem da mulher religiosa, a virgem consagrada, como esposa

de Cristo na Antiguidade Cristã e Idade Média. Para tanto, utilizaremos textos escritos por

autores do final da Antiguidade bem como de autores do período medieval, até o século

XIII. Entre estes, destacamos os seguintes: Sobre el modo de conducirse las vírgenes, de

Cipriano3 de Cartago (200/10-258), Sobre la virginidad, de Atanásio de Alexandria (295-

373), Sobre la virginidad, de Gregório de Nissa (330-395), A virgindade consagrada, de

Agostinho de Hipona(354-430), Regla o libro sobre la formación de las vírgenes y

desprecio del mundo, de Leandro de Sevilha (534-600/601) e as Cartas de Clara de Assis

(1193-1253) a Inês de Praga4.

De acordo com Vizmanos (1949), Tertuliano (160-220), entre os séculos II e III foi

o primeiro que refletiu com uma certa precisão sobre o estado de vida virginal em sua

época, assim como foi o primeiro a escrever tratados com o objetivo de exaltar a

continência. Pedroso (2009, cap. 5, p. 2)5, é outro autor que afirma que “quem começou a

chamar as virgens cristãs de esposas de Cristo foi Tertuliano, que também falou dos

esponsais entre Deus e a alma”.

1 Doutoranda em Educação / PPE-UEM. 2 Professora do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. 3 Nas referências, os autores serão indicados como San Cipriano, San Atanasio, San Gregorio de Nisa Santo Agostinho, San Leandro e Santa Clara. 4 Muitos outros autores têm escritos significativos sobre a questão em pauta. Entretanto, para o propósito deste trabalho, consideramos que com a utilização dos escritos dos autores selecionados nosso objetivo seria alcançado. 5 O texto deste autor faz parte de um Curso de Verão do Centro de Espiritualidade de Piracicaba e encontra-se disponível no site indicado nas referências. A página foi indicada conforme nosso texto impresso.

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Segundo Vizmanos (1949, p. 88), por volta do ano 208 Tertuliano publicou seu

tratado De exhortación a la castidad e, em seguida, Sobre la monogamia; nessas obras,

defende a virgindade consagrada, a castidade como opção de vida mais elevada em relação

ao matrimônio. Publicou, ainda, outros dois tratados “ [...] de gran belleza, encaminados a

fomentar la modestia cristiana, guarda fiel de la castidad, y en los que esparce acá y allá

consejos estimables para sus contemporáneos [...]”: o Sobre el ornato de las mujeres e o

Del velo de las vírgenes. No primeiro, Tertuliano

[...] com verdadero encarnizamiento va echando em cara a las cristianas recién convertidas los afeites, pinturas, tocados y galas excesivas, com que, pretendiendo conquistar una fingida belleza, deforman grotescamente la hermosura de la castidad conyugal o la pureza de la virginidad. [...] El objeto de su tratado Del velo de las vírgenes no puede ser más baladí. Se reduce a la obligación que, según él, pesa sobre todas las jovenes aún vírgenes de cubrir su rosto com el velo (VIZMANOS, 1949, p. 88).

Ainda conforme Vizmanos (1949, p. 88, grifos na obra), nos escritos de Tertuliano

expressões como “[...] dedicarse a Cristo, consagrarse a Cristo, desposarse com Cristo

[...]” fluíam naturalmente. Isso indica que, naquele contexto, tornava-se cada vez mais

comum a identificação das mulheres virgens consagradas como esposas de Cristo, o

Esposo a quem se uniam por meio de votos de uma entrega total, sem reservas.

De fato, o autor supracitado afirma que foi a partir do século II que as mulheres

consagradas, virgens e continentes, começaram a ser consideradas pelos fiéis da Igreja

como

[...] verdaderas desposadas: eran las esposas de Cristo. Y esta idea llegó a ser tan familiar a las comunidades cristianas antes de finalizar la segunda centuria, que Tertualiano, em cuya dialéctica fulgura siempre la fuerza del sol de los arenales, no temió fundar sobre ella su argumentación al urgir a las jóvenes cartaginesas el uso del velo en los templos (VIZMANOS, 1949, p. 151).

Pode haver objeções no sentido de considerar que São Paulo, em suas Epístolas,

antes de Tertuliano, já escrevera sobre o assunto. Entretanto, antes dos escritos de

Tertuliano não havia a identificação da mulher virgem, da religiosa cristã consagrada como

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esposa de Cristo. Embora São Paulo trate da virgem como esposa de Cristo ele se refere à

Igreja (VIZMANOS, 1949), seja às comunidades às quais escreve ou à Igreja de Cristo

pensada em sua totalidade. Nesse mesmo sentido, Pedroso (2009, cap. 5, p. 2), diz que a

expressão matrimônio espiritual apareceu pela primeira vez na literatura cristã entre os

adversários de Santo Irineu, e falava sobre o Cristo esposo da Igreja. Este mesmo autor diz,

ainda, que “Hipólito6, autor do primeiro comentário cristão ao Cântico dos Cânticos, usou

a simbologia esponsal entre Deus e a Igreja [...]”, considerando duas fontes básicas: a

tradição hebraica, que celebra os esponsais entre Javé e Israel, e a leitura dos textos

paulinos, que tratam dos esponsais entre Cristo e sua Igreja.

Depois de Tertuliano – seguindo a tendência manifesta em seu contexto, mas

sistematizada por ele – muitos outros autores trataram do tema dos esponsais entre a

mulher virgem consagrada e Cristo. Desse modo, em Cipriano, encontramos de maneira

muito evidente a concepção de que as mulheres que se consagravam à vida religiosa se

tornavam esposas de Cristo. Em sua obra Sobre el modo de conducirse las vírgenes, ou De

habitu virginun, o bispo de Cartago se coloca como responsável pela educação das esposas

de Cristo, a quem ele chama, também, de flores da Igreja (SAN CIPRIANO, 1949). E

desenvolveu sua tarefa de educador com tal intensidade que, conforme destaca Vizmanos

(1949, p. 92), seus conselhos “[...] atravesaron el Mediterráneo hasta España y las Galias”.

Ainda segundo este autor, esta obra de Cipriano é “[...] el tractado más antiguo escrito

expresamente para las vírgenes em orden a su formación” (VIZMANOS, 1949, p. 649).

Dirigindo-se às mulheres consagradas, dizia: “[...] vuestro dueño y cabeza es Cristo,

que hace las veces de esposo, de cuya suerte y comunidad de vida participaréis”. (SAN

CIPRIANO, 1949, p. 664). A elas dirige muitos conselhos voltados aos cuidados para com

o corpo e a alma.

Além de Cipriano, outro autor que assumiu a tarefa de participar do processo

educacional das virgens consagradas e ensinar-lhes seus deveres de esposas de Cristo foi

Atanásio de Alexandria. Assim, no tratado Sobre la virginidad, é possível observar tanto a

sua preocupação com a formação das virgens como suas contribuições para o

desenvolvimento dessa imagem da mulher consagrada. No capítulo II, por exemplo,

podemos ler:

6 (189-235/6).

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[...] la que todos sus pensamientos dirige a hacer la obra de Dios, ésa tiene por esposo al mismo Cristo. [...] la que se casa con el divino Esposo, se ocupa en poner por obra la voluntad de Cristo7 (SAN ATANASIO, 1949, p. 1091).

No capítulo XXIII, fazendo uma alusão à Parábola das dez virgens, presente no

Evangelho de Mateus (25, 1-13), chama a atenção para a necessidade da esposa-virgem

estar sempre preparada par receber o esposo por não saber a que horas ele virá. Mesmo

diante das dificuldades, salienta que o seu comportamento devia ser irrepreensível,

lembrando-a da opção feita e do prêmio que a esperava. Assim, no capítulo XXIV, destaca:

“Pesada cosa es la vida penitente, difícil la continencia; pero nada más dulce que el celeste

Esposo” (SAN ATANASIO, 1949, p. 1108)8.

Na obra Apologia al emperador Constancio, Atanásio afirmou que tratar as virgens

consagradas como esposas de Cristo não era um título esporádico dado por “[...] ciertos

autores privados, sino nomenclatura de carácter oficial: ‘A las mujeres consagradas con la

virtud de la virginidad acostumbra la Iglesia católica a llamar esposas de Cristo’” (apud

VIZMANOS, 1949, p. 153, grifos na obra).

Contemporâneo de Atanásio, Gregório de Nissa também inscreveu seu nome no

livro da história da religiosidade feminina ao dar suas contribuições à construção da

imagem da religiosa consagrada como esposa de Cristo. Para ele, aquelas que se

entregavam a Cristo deviam observar a prudência e a sensatez e absterem-se, em absoluto,

de toda paixão capaz de manchar a alma e o corpo. Para ele, a esposa devia “[...]

conservar-se a si misma pura para el Esposo, que la ha adoptado sin la menor mancha ni

arruga ni cosa semejante” (SAN GREGORIO NISENO, 1949, p. 1153). Defende, ainda,

que

[...] el alma que vive para Dios no tiene que deleitarse en nada que engañosamente se le presente como hermoso, ya que, si mancha su

7 É possível observar aqui a grande influência do pensamento paulino sobre Atanásio. 8 Cipriano já chamara a atenção para o que ele chamou de dificuldade na subida ao céu ou às alturas: “No es fácil la subida a las alturas. Qué sudores, qué molestias no padecemos cuando ascendemos a las cimas y cumbres de los montes? Y qué no debemos pasar tratando de subir al cielo?” (SAN CIPRIANO, 1949, p. 664) Mas, por seu turno, também afirma que, apesar de tal subida ser trabalhosa, a virgem devia persistir, considerando que, ao final da caminhada, receberia um prêmio valioso.

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corazón com algún deseo vicioso, pierde los derechos al matrimonio espiritual. [...] en alma enredada en el vício es incapaz y refractaria para recibir la comunicación del bien” [...]”(SAN GREGORIO NISENO, 1949, p. 1153).

Desse modo, além da concepção de relação esponsal entre a virgem consagrada e

Cristo, Gregório Nisseno – como Tertuliano e Orígenes (185-253) – amplia sua concepção

de matrimônio espiritual para a relação amorosa da alma com Deus. Para ele, a alma é a

esposa de Cristo ou do Esposo imortal (SAN GREGÓRIO DE NISA, 1949).

Em outra obra, Comentário al Cantar de los Cantares, Gregório de Nissa, expõe

que é mediante o estado virginal que a alma obtém a dignidade de esposa de Cristo.

(VIZMANOS, 1949). Para Pedroso (2009, cap. 5), nesta obra, assim como na De vita

Moysis, Gregório apresenta a chave de sua doutrina esponsal, com os conceitos de

progressão ou itinerário e união. Conforme este autor, nas obras referidas, Gregório

expressa toda sua admiração por Orígenes. Para Vizmanos (1949), também o subtítulo da

obra de Gregório, Sobre la virginidad: Epístola exhortatoria a la vida de la virtud,

evidencia que o conteúdo desta obra não se restringe ao ensino da integridade corporal; é,

além disso, orientações para um exercício completo de prática ascética capaz de conduzir à

perfeita união com Deus.

Gregório de Nissa entendia que para a concretização de uma vivência íntima e

amorosa com Deus o homem necessitava trilhar um caminho – no sentido figurado;

caminhando rumo ao seu arquétipo primordial – Deus Criador –, é que a alma – amor

criado –, qual uma esposa amorosa, poderia chegar ao cume da vida espiritual, ao encontro

com o Amor infinito. Contudo, como esse caminho não podia ter fim na vida terrena,

Gregório usou um termo adequado para expressar a relação entre o amor criado e o Amor

infinito: a insaciabilidade (2009, cap. 5).

Essa concepção de insaciabilidade da alma em sua busca pelo Esposo-Amado já

estava presente no autor muito admirado por Gregório, Orígenes, quando este afirmara na

primeira homilia sobre o Cântico:

Freqüentemente – Deus é testemunha – eu senti o Esposo chegar a mim e ficar comigo; de repente Ele se afastou e não consegui mais encontrar o que buscava; apareceu outra vez e eu o segurei, mas ele escapou de novo, e eu continuo a buscá-lo. Ele faz isso freqüentemente, até que eu o possua

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de verdade, e suba apoiada em meu Amado (Ct 8, 5) (apud PEDROSO, 2009, cap. 5, p. 1).

Como diz Cavalcanti (2005), para Gregório de Nissa, a alma, quando purificada

dos desejos terrenos pode abrigar o inabrigável e, desse modo, efetivar o casamento

espiritual com a Presença divina abrigada em seu interior.

Essa concepção mística de busca, encontro, fuga e reencontro da alma com Deus

está presente, também, na obra Sobre la virginidade, quando observamos Gregório indicar

incansavelmente como as virgens poderiam e deveriam viver para alcançarem o Esposo

amante de suas almas.

Outros dois autores que desempenharam importante papel histórico no processo de

construção da imagem da mulher religiosa como esposa de Cristo foram Agostinho de

Hipona e Leandro de Sevilha.

Na obra A virgindade consagrada, em especial nos capítulos LIV e LV, Agostinho

exorta às virgens consagradas a se voltarem completamente para o Esposo por quem elas

deixaram de contrair núpcias com filhos de homens: Cristo. Esse Esposo, para Agostinho,

é o mais belo entre os filhos dos homens, como diz o Salmo 44,3. É assim que ele O

apresenta às virgens consagradas, ensinando-as a olhá-lo e contemplá-lo:

Já que deixastes de contrair núpcias com filhos dos homens de quem poderíeis ter concebido filhos de homens, amai de todo coração “o mais belo dos filhos dos homens” (Sl 44,3). Bem o podeis, porque o vosso coração está livre dos vínculos conjugais. Contemplai a beleza daquele que vos ama. [...]. Se, pois, tivésseis de amar muito a um esposo eleito, com quanto mais amor deveis amar aquele por cujo amor não quisestes ter marido. [...] Que ele ocupe em vossa alma todo o lugar que não quisestes consagrar a outro esposo (SANTO AGOSTINHO, 1990, p. 94-96).

Leandro, bispo de Sevilha, “[...] arquitecto del catolicismo visigodo [...]”

(VIZMANOS, 1949, p. 105), por sua vez, na Regla o libro sobre la formación de las

vírgenes y desprecio del mundo, dirigida à sua irmã Florentina, ressalta o seguinte em

relação às virgens consagradas, consideradas, também por ele, na esteira de seus

predecessores, como esposas de Cristo:

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Reflexiona, hermana mía, cuánto hás adelantado. Mira en qué región tan sublime te hallas. Ahí encontrarás juntas en uno solo, en Cristo, todas las gracias y todos los beneficios. El es tu Esposo, tu amigo, tu hermano, tu herencia, el precio de tu rescate, tu Señor e tu Dios. En El tienes un Esposo a quien amar: El más gentil em hermosura entre los hijos de los hombres9.

Por esse Esposo, a virgem consagrada, vivendo no mosteiro, devia aprender a levar

uma vida austera, abandonar os vícios e viver sob a condução das virtudes, deviam gerá-las

e dá-las à luz, evidenciando sua fecundidade:

[...] no pienses que eres estéril, no; que tendrás tantos hijos cuantas sean tus virtudes. Uma sola vez que concibieres por la unción Del Espírito Santo, equivaldrá a muchos alumbramientos. Del primer parto de la virgen nace la virtu del pudor, del segundo la paciência, del tercero la sobriedad, del cuarto la templanza, la quinto la caridad, del sexto la humildad, del séptimo la castidad, cumpliéndo-se así aquello que leemos de que la que era estéril dió a luz siete hijos10.

Para gerar tais virtudes e poder alcançar a dignidade de esposa perfeita, Leandro

ensina que todas as espécies de prazeres materiais e corporais deviam ser abandonadas: as

vestes luxuosas, os enfeites e adereços, as maquiagens. Para ele, para que a alma fosse

fortalecida, o corpo devia obedecer a um regime de alimentação muito rigorosa. Se, ao

contrário disso, a religiosa se conduzisse pelos prazeres alimentares, em vez de fomentar as

virtudes, estaria alimentando o inimigo a quem devia combater.

Porque es muy duro estarse criando a un enemigo contra quien es preciso luchar, y alimentar a la própria carne para luego experimentar su rebeldía. [...] La carne en la comida fomenta los vicios; pero no solo el comer carne, sino el exceso em cualquier alimento debe reputarse como um vicio. El estómago dilatado por la abundancia de comida embota los sentidos espirituales (SAN LEANDRO, 1949, p. 953).

9 Leandro parece reproduzir aqui os ensinamentos e até mesmo citar as palavras de Agostinho da obra A virgindade consagrada, capítulo LIV. Neste capítulo, assim como no seguinte, Agostinho salienta a relação esponsal entre a virgem consagrada e Cristo, assim como enfatiza, a partir do mesmo salmo citado por Leandro (Sl, 44,3) a beleza de tal Esposo. Vemos, assim, que a influência de Agostinho, assim como dos primeiros padres da Igreja, tanto do Oriente quanto do Ocidente, no século VI, já alcançava vastas regiões no mundo medieval. 10 I Rs, 2,5.

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As orientações leandrinas expressam as orientações da tradição monástica vivida

pelos monges nos primeiros séculos da Igreja primitiva, como Santo Antão (ou Santo

Antônio), Pacômio e outros, bem como pelos primeiro padres, os representantes do período

conhecido como Patrística. Tais monges, assim como os autores assinalados acima,

Cipriano, Gregório de Nissa, e alguns outros, cujas ideias não apresentamos aqui – como

Jerônimo, Gregório Nazianzo, João Crisóstomo – defendiam que após a queda com o

pecado original os homens foram mergulhados em um estado de imperfeição, suas almas

tornaram-se fracas, mas, ao mesmo tempo, pela graça divina, sempre mantiveram o desejo

do retorno ao Criador. Para que esse desejo fosse satisfeito era necessário um esforço

constante. Para isso, era necessário evitar a submissão do corpo aos prazeres mundanos e

que afastavam a criatura do Criador. É por isso que esses autores, cada um à sua maneira,

criticavam o luxo dos vestidos, os adornos, as riquezas individuais, as pinturas nos olhos e

cabelos, os alimentos saborosos, entre outros.

Essas concepções, moldadas inicialmente pela leitura e reflexão que os primeiros

padres fizeram das experiências e ensinamentos das personagens bíblicas narrados no

Antigo e no Novo Testamento, atravessam os séculos e deixaram suas marcas em homens

e mulheres em todo o período medieval. Desse modo, é que, por exemplo, vamos encontrar

em diversos religiosos, das mais variadas Ordens religiosas (cistercienses, com Bernardo

de Claraval, dominicanos, com Domingos de Gusmão, franciscanos, com Francisco e Clara

de Assis), uma retomada dos ensinamentos místico-ascéticos sistematizados pelos padres

considerados os Pais da Igreja.

Nos séculos XII e XIII floresceu na Europa a literatura mística. Foram muitos os autores, quase sempre monges ou monjas. Essa época foi marcada por uma linguagem amorosa especial, usada tanto no amor profano quanto no religioso. O amor cantado pelos trovadores foi o mesmo dos autores espirituais. Místicos e poetas contemplaram juntos o mistério que sempre está por trás do amor: o Infinito. [...] A literatura monástica da época dos trovadores aplicou à relação de amor com Deus a linguagem realista do amor recíproco entre pessoas humanas, de modo especial no âmbito esponsal-conjugal (PEDROSO, cap. 4, p. 1).

Contudo, é necessário considerar que essa linguagem amorosa, cujo modelo fora

tomado das relações humanas, em especial, a relação conjugal, floresceu nos séculos XII e

XIII a partir das produções e da atividade educativa de monges, monjas, religiosos e

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religiosas seculares, bispos e papas dos séculos precedentes. Desse modo foi que, no século

XIII, Clara de Assis, escrevendo suas cartas a Inês de Praga (são conhecidas quatro cartas

de Clara a Inês), pode lhe falar do amor místico-esponsal. Entretanto, não podemos atribuir

seus ensinamentos a Inês apenas como resultado externo de uma aprendizagem obtida com

as leituras e as pregações que ouvia. Nesse sentido, é fundamental considerar as

observações de Pedroso (1994, p. 111):

Clara jamais diria o que escreveu a Inês se não tivesse uma experiência pessoal, e surpreendente, do Cristo Esposo, uma das bases de sua espiritualidade. [...] É nas Cartas a Inês de Praga que Clara apresenta toda sua riqueza sobre o Cristo Esposo. [...].

Nas cartas escritas por Clara podemos observar, também, uma grande filiação ao

discurso agostiniano sobre a relação da virgem consagrada, a esposa, com o Esposo.

Assim, no capítulo LIV de A virgindade consagrada de Agostinho (1990, p. 94-5),

podemos ler:

Contemplai a beleza daquele que vos ama. Considerai que ele é igual ao Pai e submisso à sua mãe. Contemplai-o reinando nos céus e vindo à terra para servir. [...] Olhai o quanto é glorioso [...]. Olhai com os olhos da alma as chagas do crucificado, as cicatrizes gloriosas [...]. Considerai o grande valor de todas essas coisas.

E Clara (2CtIn, 2008, p. 1707), na segunda Carta, diz: “[...] olhe, considere,

contemple o seu esposo, o mais belo entre os filhos dos homens (Sl 44,3), feito para sua

salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, [...]”.

Outra ideia expressa por Clara, e que pode ser igualmente observada com muita

clareza na obra agostiniana é a de que a religiosa, além de esposa de Cristo era, também,

mãe e filha. Desse modo, na carta número três lemos o que segue: “ [...] irmã e esposa [...]

do sumo Rei dos céus” (3CtIn, 2008, p. 1707). E na carta número quatro lemos o seguinte:

“Ó mãe e filha, esposa [...] do Rei de todos os séculos [...]” (4CtIn, 2008, p. 1710). Essa

concepção da religiosa que por fazer a vontade de Deus se torna sua mãe, esposa e irmã de

Cristo – conforme destaca o Evangelho de Mateus 12, 46-50 – Agostinho a apresenta em

diversos trechos da obra A virgindade consagrada, em especial nos capítulos 2 a 6.

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Um terceiro ponto de aproximação entre Agostinho e Clara é o que trata da

necessidade da virgem consagrada contrapor-se à soberba e ao orgulho e aprender a ser

humilde. Para Clara, o orgulho, contrário à humildade, perde a natureza humana, por isso

seria fundamental desenvolver esta virtude.

Os escritos de Clara, em especial as Cartas, indicam que ela conhecia muito dos

ensinamentos dos padres da Antiguidade e início do período medieval e, com o

conhecimento obtido, contribuiu com o processo educacional dos homens de seu tempo;

participou, principalmente, do processo de formação das religiosas de São Damião e

daquelas com quem manteve correspondências, como é o caso de Inês de Praga.

A partir dessas breves considerações objetivamos contribuir com o processo de

compreensão sobre como homens e mulheres da Igreja, no final da Antiguidade e durante a

Idade Média, ao educarem seus pares, participaram da construção da imagem da virgem

consagrada como esposa de Cristo. Esse processo educacional foi de fundamental

importância naquele período por contribuir com o desenvolvimento e disseminação de

novas relações dos homens entre si, como podemos observar nas defesas dos autores

quanto à prática das virtudes, tais como: a moderação no comer, no vestir, na humildade e

nos cuidados com aqueles com os quais as religiosas conviviam. Desse modo, a esposa de

Cristo não adquiria tal caráter apenas pela consagração; era fundamental desenvolver

novas atitudes e novos comportamentos por meio da educação.

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http://www.franciscanos.org.br/v3/carisma/especiais/2009/livropedroso/38.php Acesso em: 15/10/2010.

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