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A construção da “Pequena África”: da busca pelo Valongo à candidatura a patrimônio
da humanidade pela UNESCO
RENATA JARDIM QUADROS*
Conhecida informalmente como Lei do Sambaqui1, a Lei nº 3.924/61 é ainda hoje
o grande marco legal da arqueologia brasileira, pois rege o patrimônio arqueológico, sendo
este definido no artigo 2º como: vestígios “que representem testemunhos de cultura dos
paleoameríndios do Brasil”.
Visto que quando grupos de coletores e caçadores viviam neste continente não
existia o Brasil, o emprego da terminologia “paleoamerindios do Brasil” faz pensar em um
provável alinhamento com a proposta fundadora do Patrimônio Histórico e Artístico, voltada
para uma construção indentitária de caráter nacional. No entanto, não era do Serviço de
Patrimônio (SPHAN) que emergia o movimento preservacionista dos sambaquis.
Em sua tese de doutorado, Lucieni de Menezes Simão2 discorre sobre o contexto
de produção da lei de 61. Destaca a importância da dupla atuação Do arqueólogo Luiz de
Castro Faria enquanto pesquisador do Museu Nacional e gestor público na criação da lei. A
leitura da correspondência trocada entre o professor e Rodrigo Melo Franco de Andrade,
diretor do SPHAN, permite inferir que a relação que começou na década de 40 era pautada em
uma admiração recíproca.
Principalmente após a criação do curso de pós-graduação do Museu Nacional no
final da década de 1960, diversos convênios entre a agência de preservação e o museu foram
celebrados a fim de se mapear e cadastrar o patrimônio arqueológico brasileiro.
A lei do sambaqui inaugurou oficialmente um novo campo de atuação acadêmica.
A arqueologia brasileira, a partir de então, busca definir-se adotando seus códigos próprios,
práticas e métodos, deixando de ser uma área da Antropologia.
Inegavelmente a lei de 1961 foi o marco fundador da arqueologia brasileira, no
entanto, foram nos primeiros dez anos do século XXI que o campo vivenciou uma notável
* Mestranda da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), aluna do curso de especialização
em arqueologia e cultura material da UPF e bolsista da CAPES. 1 Lei nº3924/61 disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L3924.htm> Acesso em
01 Jul 2017. 2 SIMÃO, Lucieni de Menezes. A Semântica do intangível. Considerações sobre o Registro do ofício de
paneleira de Espirito Santo. 2008. 306f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro. P.53-67.
2
expansão. O numero crescente de pesquisas deve-se indubitavelmente à recente participação
do IPHAN no processo de licenciamento ambiental.
Seguindo uma tendência advinda de países europeus e dos Estados Unidos, a
instituição promulgou em 2002 a portaria 230 3 , que considerava “a necessidade de
compatibilizar as fases de obtenção de licenças ambientais em urgência com os estudos
preventivos de arqueologia” 4. A exigência do mapeamento de potencial e diagnóstico de
impacto ao patrimônio arqueológico, e não cultural como um todo5, serviu de justificativa
para a exigência de pesquisas em obras de engenharia quando próximas a bens protegidos a
nível federal, mas também estadual e municipal.
No caso da cidade do Rio de Janeiro a Lei Orgânica do Município do Rio de
Janeiro, de 05 de Abril de 1990, dispõe como sendo competência do Município a proteção dos
sítios arqueológicos. Seguindo esta diretriz, em 07 de maio de 2003, foram promulgados na
Cidade do Rio de Janeiro os Decretos nº. 22872 e nº. 22873. O primeiro cria a obrigatoriedade
da pesquisa arqueológica nas obras de intervenção urbanísticas e/ou topográficas e o segundo
cria a carta arqueológica do Município do Rio de Janeiro, para garantir a preservação dos
sítios cadastrados e a proteção das áreas de potencial arqueológico, ou seja, com provável
ocorrência de vestígios materiais não documentados.
Somado a tais diretrizes entre 2000 e 2015 o país, como um todo, e o Rio de
Janeiro em particular, vivenciou grandes obras de engenharia, devido em parte à expansão
econômica, às politicas públicas e aos grandes eventos, tais como os jogos pan-americanos,
copa do mundo de futebol e as olimpíadas.
Com a participação da arqueologia no licenciamento ambiental os arqueólogos
passaram a atuar enquanto agentes na seleção de objetos patrimonializáveis, frequentemente
alargando o conceito de patrimônio arqueológico para além da definição legal nos termos da
lei nº 3.924/61. Discussões que aconteciam dentro dos muros das universidades, no âmbito da
pós-graduação, sobre arqueologia histórica, arqueologia industrial e arqueologia pública
3 Portaria revogada e substituída em 2015 pela Instrução Normativa nº01/15. 4 Portaria nº230/02 disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Portaria_n_230_de_17_de_dezembro_de_2002.pdf> Acesso em
02 Jul 2017 5 A IN nº01/15 que estabelece os parâmetros para participação do IPHAN no licenciamento ambiental leva em
consideração o patrimônio arqueológico, mas também os bens tombados, registrados e valorados em âmbito
federal.
3
acabaram por influenciar o olhar, principalmente daqueles primeiros arqueólogos em atuação
nesse campo recém-aberto do mercado de trabalho.
A arqueologia de contrato, como tem sido chamada, se dá por meio de uma
relação profissional do arqueólogo para com o investidor, em projetos de engenharia e
desenvolvimento. Mas o que justifica a participação do arqueólogo no processo de
licenciamento ambiental?
Nos termos da lei, de acordo com a já revogada portaria nº230/02, o resultado de
um projeto de arqueologia tem como fim a produção “de conhecimento sobre a área de
estudo. Assim a perda física dos sítios arqueológicos poderá ser efetivamente compensada
pela incorporação dos conhecimentos produzidos à memória nacional.”6 Assim, nos relatórios
de pesquisa entregues ao IPHAN, arqueólogos frequentemente se colocam na posição de
experts cuja missão é revelar a verdade sobre o passado esquecido, eles defendem, portanto,
seu lugar enquanto “profissionais da memória”7 . Esse discurso, preocupado com a defesa do
lugar do arqueólogo no campo do patrimônio, parte do complicado pressuposto de que há
uma única verdade sobre o passado. Mencionar o papel do cientista na construção de uma
interpretação a partir dos vestígios evidenciados parece fragilizar uma argumentação que se
pretende sólida e irrefutável.
A arqueologia de contrato tem lidado com fortes ataques, quer por parte dos
empreendedores que veem a atuação desses profissionais como uma perda de tempo e
dinheiro, quer da academia, que propaga muitas vezes um discurso baseado na ideia de uma
“pureza” no exercício da atividade cientifica. Observa-se, em muitas das publicações
acadêmicas que se dedicam a criticar as pesquisas de arqueologia de contrato, uma deficiência
auto reflexiva. É importante, no entanto, pensar o campo acadêmico também como um espaço
de dominação e conflito, partindo-se do conceito de campo de Bourdieu8.
A academia frequentemente questiona a cientificidade destes resgates vistos por
muitos como uma mera “coleta de cacos” despropositada, que ocorre apenas pela força da lei,
e não partindo de um problema verdadeiramente cientifico. O termo “arqueologia de contrato”
6 Portaria IPHAN nº230/02 7 WACHTEL, Nathan (1986), “Introduction”, in History and Anthropology, Ecole des Hautes Etudes en
Sciences Sociales , Paris, Routledge, Vol.2, 1986 2:207-224. DOI: 10.1080/02757206.1986.9960766: p. 217 8 Cf. BOURDIEU. Pierre. Homo academicus. Trad. Ione Ribeiro Valle; Nilton Valle, Rev. Téc. Maria Tereza
de Queiroz Piacentini. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011.
4
está tão associado às criticas que já adquiriu uma conotação pejorativa e vem sendo
substituído por Arqueologia preventiva ou de resgate.
Muitas das criticas, é bem verdade, são pertinentes, na medida em que o
empresário é o cliente do arqueólogo e essa relação muitas vezes acaba por comprometer a
cientificidade das pesquisas. Para o investidor o “bom arqueólogo” é aquele que consegue
mais rapidamente a liberação das áreas para que se dê continuidade às obras. Não cabe ao
arqueólogo definir espacialmente a área a ser pesquisada nem o tempo de duração das
pesquisas visto que este está diretamente relacionado a um cronograma de obras.
Projetos de grande magnitude como o Porto Maravilha, na cidade do Rio,
contaram com a participação de equipes de arqueólogos atuando simultaneamente em diversas
frentes, porém comunicando-se muito raramente com os seus pares, visto que atuavam em
concorrência no mercado de trabalho.
O primeiro curso de graduação em Arqueologia no Rio de Janeiro na década de
1970 9 , em uma instituição privada, foi encerrado no final dos anos 90 por falta de
rentabilidade, e chegou a formar 206 bacharéis. De acordo com a Sociedade de Arqueologia
Brasileira10 (SAB) hoje existem 11 cursos de graduação reconhecidos no Brasil.11 Criados
para atender a essa nova demanda, os cursos de graduação são muitas vezes acusados, por
aqueles que defendem o ensino de arqueologia apenas no nível de pós graduação, de
privilegiar a formação técnica em detrimento de uma formação crítica.
Tal cenário econômico, político e legal propiciou o surgimento e expansão de um
mercado de trabalho na área do patrimônio, levando inclusive à criação de várias empresas de
arqueologia, algo impensável quando do surgimento do primeiro curso de graduação na
década de 70.
Todas as críticas à arqueologia preventiva são pertinentes, porem são suficientes
para invalidar completamente a possibilidade de se fazer uma pesquisa cientifica nesses
moldes? Estaria a pesquisa cientifica restrita aos muros das universidades? No cenário
9 BEZERRA, M. Bicho de Nove Cabeças: os cursos de graduação e a formação de arqueólogos no Brasil.
Revista de Arqueologia, São Paulo, n. 21, v. 2, p. 139-154, 2008: p.140 10 A SAB trabalha atualmente em prol do reconhecimento da profissão de Arqueólogo a fim de garantir que
apenas portadores de diploma de graduação possam exercer a profissão a partir da data da publicação da PL
1119/2015, da deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB/AM), que hoje está em análise na Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) na Câmara dos Deputados. 11 Informação obtida no site da SAB <http://www.sabnet.com.br/> Acesso em 06 Ago 2017
5
político caótico que vivemos hoje, a participação do IPHAN no licenciamento ou mesmo a
própria existência da instituição12 estão em constante ameaça.
A arqueologia da década de 60 tinha como objetivo a pesquisa e o cadastramento
de sítios ligados à ocupação e atividade dos paleameríndios. Com todos os bons e maus
profissionais, erros e acertos, a participação de arqueólogos no licenciamento ambiental
permitiu a realização de pesquisas em áreas urbanas nunca antes pesquisadas; o
desenvolvimento do campo da arqueologia histórica no Brasil; a identificação e salvamento
de centenas de sítios sejam eles históricos, pré-históricos ou de contato e a produção de um
acervo fantástico hoje distribuído em centenas de instituições de salvaguarda.
O campo da arqueologia histórica beneficiou-se especialmente deste “boom”. Na
cidade do Rio de Janeiro, o volume de material arqueológico coletado é tamanho que hoje se
vive uma crise no que se refere ao armazenamento, gestão e principalmente na criação de um
aparato que permita ao pesquisador consultar13 estes milhões de fragmentos depositados e
empilhados em depósitos em diversas instituições de salvaguarda, em sua maioria, ainda
lamentavelmente fechadas à pesquisa.
A legislação que define o que é patrimônio arqueológico no Brasil não trata da questão
dos vestígios de ocupação humana ocorrido após a chegada dos colonizadores. Essa lacuna,
principalmente após a publicação da IN01/201514 do IPHAN, tem permitido que muitos
empreendimentos recebam do órgão a dispensa da necessidade de acompanhamento
arqueológico. Necessita-se urgentemente ampliar esta noção de patrimônio arqueológico para
além do definido pela “lei do sambaqui”, visto que o artigo nº126 da Constituição Federal de
1988 já traz um conceito muito mais amplo e atualizado de Patrimônio Cultural.
Na cidade do Rio de Janeiro, durante o período de 2007 a 2016, e de acordo com
BPA/SGPA/IPHA15, foram emitidas 170 portarias16 de pesquisa e diagnóstico de potencial
arqueológico. Será preciso analisar o impacto dessas pesquisas, para além das pilhas de
12 Sobre a flexibilização no licenciamento ambiental ver Projeto de Lei do Senado (PLS) n° 654/15 | Emenda à
Constituição (PEC) 65/2012. Sobre a revogação da IN01/2015: PDC 540/2016. 13 Encontra-se fechado, por cancelamento do contrato entre a prefeitura e o IAB, o Laboratório de Arqueologia
Publica, que deve ser mantido pela prefeitura do Rio de Janeiro e que detém a salvaguarda de grande parte do
material arqueológico da região portuária do Rio. 14IN01/2015
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/instrucao_normativa_001_de_25_de_marco_de_2015.pdf>
Acesso em 06 Jul 2017. 15 Banco da Portarias de Arqueologia (BPA)/ Gerenciamento de Patrimônio Arqueológico (SGPA) 16 Disponível em http://portal.iphan.gov.br/sgpa/?consulta=bpa. Acesso em 01Jul2017.
6
relatórios produzidos e entregues ao IPHAN e das caixas e mais caixas de material
arqueológico armazenado muitas vezes em depósitos improvisados.
O Caso do complexo do Valongo e o Projeto Porto Maravilha
O termo “Pequena Africa” 17 , de autoria atribuída ao sambista Heitor dos
Prazeres18, no início do século XX, hoje é utilizado para denominar uma área correspondente
aos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, grosso modo a zona portuária da cidade do Rio
de Janeiro. A utilização recorrente da nomenclatura é forte indicio de que essa região funciona
hoje como lugar de memória, não só da dor, mas também da celebração da herança africana.
O fotografo João Maurício Bragança Lopes19 em sua dissertação de mestrado
discute a ressignificação e subjetividade na identidade cultural do Valongo na região portuária
do Rio de Janeiro. Sobre o início de seu trabalho afirma:
Quando entrei em contato com o nome ―Valongo, em 2007, de certa forma, ele era
pouco conhecido pelos cariocas de outros bairros. É inegável a possibilidade de
que, além do morador ou pesquisador da região, dos curiosos, admiradores e
apaixonados pela história da cidade do Rio de Janeiro, poucos soubessem do que se
tratava. (LOPES, 2016:12)
João relata que a memória sobre o passado da região ainda existia entre os
moradores da zona portuária, embora um pouco difusa, principalmente após tantos anos de
silenciamento das expressões culturais da diáspora africana.
Falava com todos, dos moradores de rua a ambulantes, trabalhadores e residentes
da região. Mostrava algumas fotos, contava sobre a história do lugar. Perguntava
se sabiam algo sobre aqueles tempos. Poucos sabiam. Alguns me falavam de outras
coisas. Outros chamavam a casa da guarda do jardim suspenso de ―a casa da
princesa, comentando que a casa era da princesa Isabel e que seus escravos
ficavam na parte de baixo. Ou ainda, sobre uma casa que tinham encontrado ossos
humanos enterrados. Explicavam que na Rua do Valongo tinha uma grande vala na
época do mercado, por isso o nome Valongo. Outros falavam que O Cortiço escrito
por Aloísio Azevedo, tinha sido lá na região. E assim através das narrativas
17 CARDOSO, Elizabeth e outros. História dos bairros: Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Rio de Janeiro, João
Fortes/Editora Índex, 1987, p.138. 18 Heitor dos Prazeres (1898-1966), músico popular negro. Frequentou as primeiras rodas de samba na casa da
Tia Ciata, na zona portuária do Rio de Janeiro. 19 Cf. LOPES, João Maurício Bragança. Caminhos do Valongo: Ressignificação e subjetividade na identidade
cultural do Valongo na região portuária do Rio de Janeiro. 2016. 129f. Dissertação (Mestrado em Cultura e
Territorialidades) - Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades (PPCULT) da Universidade
Federal Fluminense, Rio de Janeiro.
7
escutadas possibilitava uma terceira aproximação: construíam um imaginário do
lugar ou ao menos pistas para investigação. (LOPES, 2016:18)
A casa em “que tinham encontrado ossos humanos enterrados” a qual se referiam
alguns moradores é onde hoje funciona o Instituto dos Pretos Novos (IPN). Descoberto em
1996 o sítio arqueológico Cemitério dos Pretos Novos20 foi evidenciado quando Mercedes e
Petrúcio, moradores da casa, resolveram fazer uma reforma. O casal fez contato com a
Prefeitura e com o IPHAN, que enviou arqueólogos para analisar o local. A pesquisa inicial
foi realizada pela arqueóloga da prefeitura Eliana Teixeira de Carvalho e pelo Instituto de
Arqueologia Brasileira (IAB). Calcula-se que tenham sido enterradas cerca de 20 a 30 mil21
pessoas neste cemitério, que fazia parte do complexo escravista do Valongo.
O Instituto foi fundado em 2006 e tem como presidente D. Mercedes Guimarães,
proprietária da casa responsável pelo achado fortuito. Foi organizado no local um espaço
museal memorial e são realizados diversos eventos e palestras. O Instituto 22 apoia
pesquisadores, alguns deles filiados, que se dedicam à pesquisa na região.
Outras entidades sociais ligadas à memória da diáspora africana já existiam na
zona portuária antes do projeto de revitalização e das pesquisas arqueológicas na região.
Agremiação civil de matriz cultural africana Afoxé Filhos de Gandhi, por exemplo, foi
fundada em 1951 por trabalhadores do cais do porto e desde então se dedica ao carnaval, mas
também a outras manifestações culturais da região.
A pedra do sal23 tombada pelo INEPAC em 1984 recebeu população negra que
desde o século XIX migra para o Rio de Janeiro, vindos do interior ou de outros estados para
trabalhar no cais do porto. Em 2004 o Samba da Pedra do Sal – projeto cultura – associou-se a
um movimento de resistência às desapropriações. Resultou desta parceria a Associação de
Resistência Quilombola da Pedra do Sal - ARQPEDRA. São 17 famílias ameaçadas e “Seus
membros defendem a manutenção e o revigoramento de uma memória afro-brasileira na
área, marcada pelo samba, pelo candomblé e pelo trabalho negro no porto, e pretendem
20 CNSA: RJ01196 <http://portal.iphan.gov.br/sgpa/cnsa_detalhes.php?26756>Acesso em 08Jun2017. 21 Entre os anos de 1779 e 1830, uma taxa bem mais alta do que a dos dados oficiais. (LOPES, 2016:29) 22 Atualmente o IPN sofre com a falta de verba e luta contra o encerramento de suas atividades contando com o
apoio de pesquisadores como o historiador Claudio Honorato e o arqueólogo Reinaldo Tavares, este último
responsável pela mais recente pesquisa realizada no sítio. 23 INEPAC E-18/300.048/84
8
visibilizar um patrimônio cultural imaterial herdado de seus antepassados escravos e
africanos.” (ABREU, 2011:13)
Em 2010 foi anunciado o projeto de revitalização urbana Porto Maravilha,
motivado pelos eventos esportivos que teriam o Rio de Janeiro como sede. A intervenção foi
de tamanha magnitude que alterou profundamente a paisagem urbana, atraindo o interesse do
mercado imobiliário para a antes abandonada zona portuária. A transformação dos espaços
para abrigar torres de escritórios, receber turistas e novos agentes sociais, inevitavelmente
deslocou pessoas em consequência da especulação imobiliária e causou transtornos para quem
lá vivia.
O novo uso daquele espaço trouxe o risco de um novo silenciamento das
expressões culturais da diáspora africana e consequente esquecimento desta memória, que
ainda resistia entre alguns dos que lá viviam por gerações. Devido aos decretos municipais e à
participação do IPHAN nos licenciamentos, vários projetos de engenharia públicos e
particulares na zona portuária contaram com o acompanhamento arqueológico justificado pelo
intuito de mitigar o impacto junto ao patrimônio arqueológico cultural.
A arqueologia na zona portuária para além do Valongo
Em consequência das pesquisas arqueológicas, hoje quando se menciona o nome
Valongo moradores e turistas lembram-se da janela arqueológica evidenciada na Avenida
Barão de Tefé. É fundamental, no entanto, que esse espaço seja entendido e pensado enquanto
um complexo, visto que não se limita apenas ao cais. Após a transferência do mercado de
escravos por ordem do Marques do Lavradio24 em 1774 para aquela região da cidade –
formada por várias praias – todo o aparato necessário ao comércio escravista, não apenas o
cais e o mercado, foram construídos junto àquela parte da costa.
Os cais, trapiches, o mercado, o lazareto dos escravos e o cemitério, todos esses
espaços eram vitais para a importação e comércio de cativos africanos. O projeto do porto ao
rasgar o asfalto evidenciou muitas estruturas e resgatou uma enorme quantidade de material
arqueológico permitindo, como nunca antes, um melhor entendimento do funcionamento,
inclusive espacial, da máquina escravista.
24 Vice Reinado. Instruções do Marques de Lavradio ao seu sucessor como Vice Rei /AN, Caixa 746,
9
O terreno que abrigará o novo prédio do BACEN, por exemplo, está situado no
sopé do morro da Saúde, onde antes existiam os armazéns do lazareto25 dos escravos. Local
importante no “sistema de recepção do tráfico”, era onde os escravos ficavam em quarentena
assim que chegavam, muitos morriam por lá e os corpos eram levados ao cemitério dos pretos
novos situado a poucos metros de distância. A pesquisa arqueológica no local não evidenciou
nenhum remanescente dos galpões, mas resgatou uma surpreendente quantidade de material
arqueológico e evidenciou na encosta do morro um nicho em pedra semelhante a um oratório
que ainda precisa ser mais bem investigado.
Quando da reforma Pereira Passos, mais de cem anos antes do Porto Maravilha, o
BACEN construiu seu então novo prédio, muito provavelmente sobre o primeiro cemitério
escravo da cidade do Rio de Janeiro, que de acordo com a historiografia ficava defronte à
Igreja de Santa Rita26. Ainda hoje não se sabe ao certo a localização do campo santo, visto
que assim como no caso do cemitério da Gamboa novas ocupações se sobrepuseram naquele
espaço.
25 O lazareto foi criado por força do alvará de 28 de Julho de 1810. Alvará de 22 de janeiro de 1810. Ver Coleção
de Leis do Brazil de 1810, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1890. 26 Pesquisas estão sendo feitas no intuito de localizar o cemitério escravo da Igreja de Santa Rita. Cf. NARA
JR., J. C.. Arqueologia da Persuasão: O Simbolismo Rococó da Matriz de Santa Rita. 1. ed. Curitiba:
Appris, 2016. v. 1. 283p .
10
O “achado” do Cais do Valongo
Quando evidenciados os vestígios arqueológicos do Cais do Valongo e do Cais da
Imperatriz em 2012, a descoberta foi amplamente divulgada na impressa enquanto um
“achado”. Ao leitor, principalmente aqueles que se atem às manchetes, poderia parecer que a
identificação do sítio de deu quase por acidente. Para aqueles que estudavam ou se
interessavam pela história da cidade o “descobrimento”, embora excepcional, não era
surpreendente.
No diagnóstico de impacto27 ao patrimônio arqueológico realizado em 2010 na
Praça Jornal do Comércio, o levantamento histórico já indicava a possibilidade de se
encontrar o cais mandado erigir pelo Intendente Geral de Polícia Paulo Fernandes Viana28.
Segundo a arqueóloga Tania Andrade Lima, do Museu Nacional (UFRJ), pesquisadora
responsável pela escavação, desde o início a pesquisa estava voltada para que o Cais do
Valongo fosse evidenciado:
“Um projeto foi especialmente concebido para encontra-los [Cais do Valongo e
Cais da Imperatriz], com foco mais direcionado para o Cais do Valongo, pela sua
indiscutível importância para a comunidade descendente e para a história da
escravidão no Brasil, mas, sobretudo por ele ter se varrido da memória social do
povo brasileiro. ” (LIMA, 2016: 301)
O caso do projeto do Valongo é interessante para se pensar no papel do
arqueólogo, inclusive quando atuando na arqueologia de contrato, enquanto agente ativo na
escolha e invenção de objetos patrimonializáveis, na interpretação e produção de uma
narrativa histórica.
Antes mesmo do “achado”, assim como em pesquisas acadêmicas, foi levantada
uma hipótese: da existência de um cais do Valongo abaixo do asfalto da Praça Jornal do
Comércio. Interessante pensar por que o foco da pesquisa estava especialmente direcionado
para o Valongo.
O Cais da Imperatriz, sobreposto ao do Valongo, foi projetado por Grandjean de
Montigny e mandado erigir para o desembarque da Imperatriz Teresa Cristina em 1843, já
27 RODRIGUES, Nídia. Diagnóstico em arqueologia: Avaliação para elaboração de projeto de arqueologia
obra de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro porto maravilha, fase1. Relatório Técnico. Rio de
Janeiro: Jul/2010, 103p. 28 ANRJ BIOD16O389 fl.9
11
casada por procuração com o Imperador D. Pedro II. À cultura material evidenciada em um
sítio arqueológico é atribuído um sentido e um valor. No caso do sítio em questão, narrativas
histórias distintas podem ser produzidas a partir de diferentes perspectivas sob o mesmo local.
Na janela arqueológica da Avenida Barão de Tefé há duas estruturas, uma sobreposta a outra.
Muito provavelmente se evidenciadas em outro momento histórico, a valorização e a
interpretação do bem seriam totalmente distintas ou mesmo inexistentes.
Em relação ao papel do arqueólogo, Tania Andrade Lima destaca a missão de
“fazer lembrar”:
Nas situações em que o passado é deliberadamente esquecido e
enterrado para que dele não se fale mais, a arqueologia histórica é
um poderoso instrumento para recuperar e fazer lembrar o que em
algum momento se pretendeu esquecer, funcionado como um antídoto
para a amnésia social. O Valongo foi trazido de volta, exatamente
duzentos anos depois, em 2011.” (idem)
Fazer lembrar, recuperar, resgatar, evidenciar, trazer à luz, são alguns dos verbos
recorrentemente utilizados nos relatórios de pesquisa entregues ao IPHAN. A função e a
atuação do arqueólogo são muitas vezes pouco problematizadas, mesmo no âmbito da
produção acadêmica. Seria o sítio arqueológico um resgate ou uma construção do tempo
presente?
Criado em 1994, o projeto da UNESCO A Rota do Escravo: resistência, liberdade
e herança desde então tem realizado ações pelo mundo que visem à conscientização das
futuras gerações com relação á memória e história da escravidão, diáspora africana, herança e
pluralidade cultural sendo, portanto, a promoção de lugares de memória entendida enquanto
prioridade. Diante da excepcionalidade do sítio do Valongo em 2013 o IPHAN, em parceria
com a prefeitura da cidade, formou uma equipe interdisciplinar sob a coordenação do
Antropólogo Milton Guran, para elaboração do dossiê de candidatura do sítio a Patrimônio
Mundial pela UNESCO.
Como parte da equipe técnica envolvida no projeto, tive a oportunidade de
participar das discussões para definição de uma área de interesse para além da janela
arqueológica propriamente dita. Foi delimitada uma zona de amortecimento no entorno do
bem que buscava abranger todos os elementos do complexo construído para o tráfico negreiro
12
– mercado, cemitério e lazareto – além de logradouros que marcam a tradicional ocupação da
região por africanos e seus descendentes.
A participação no projeto do Dossiê do Cais do Valongo me fez pensar no agente
responsável pela patrimonialização - não me refiro aqui apenas ao arqueólogo - e no seu
habitus. Partindo-se do pressuposto de que o patrimônio, tal como expõe Marcia Chuva29, é
um locus de lutas de representação, as leituras e as narrativas referentes ao sítio produzidas
hoje, bem como a criação desses lugares de memória, são profundamente influenciadas por
uma ideia de nação formada por identidades plurais.
O projeto Porto Maravilha se define enquanto uma proposta de “revitalização”.
Considerando-se a morfologia da palavra, trata-se de “dar nova vida” a uma área antes
considerada morta. No entanto, como se pode perceber, a zona portuária do Rio de Janeiro,
embora abandonada pelo poder público, não estava morta. A arqueologia e a construção dos
lugares de memória da herança africana são uma importante manifestação de resistência
daquela população que se identifica e se entende enquanto formadora da “Pequena África”.
O sítio do Cais do Valongo e sua zona de amortecimento entraram para a lista de
Patrimônio da Humanidade da UNESCO, uma vitória para a memória da diáspora africana.
Hoje projetos30 se dedicam à preservação dessa memória e institutos e museus foram e estão
sendo criados. O engajamento e a participação ativa da comunidade local na preservação
dessas práticas culturais são a chave para a verdadeira preservação desse enorme patrimônio
material e imaterial que vai muito além da janela arqueológica do cais do Valongo.
29 CHUVA, Márcia R.R. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio
cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2009. P.375 30 Associação de Resistência Quilombola da Pedra do Sal - ARQPEDRA; Instituto dos Pretos Novos (IPN) Roda
dos Saberes do Cais do Valongo; Passados Presentes: Circuito Pequena África; Circuito Histórico e
Arqueológico da Celebração da Herança Africana; Centro Cultural Pequena África; entre outros.
13
Referências
ABREU, Marta. 2011. Remanescentes das comunidades dos Quilombos: memória do
cativeiro, patrimônio cultural e direito à reparação. In: Simpósio Nacional de História –
ANPUH, XXVI, São Paulo, 2011. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH.
1-17.
BEZERRA, M. Bicho de Nove Cabeças: os cursos de graduação e a formação de arqueólogos
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