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109 Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Linguagens em diálogo n o 42, p. 109-131, 2011 A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO TEXTO ESCRITO: UM ESTUDO DAS ESTRATÉGIAS TEXTUAL- DISCURSIVAS NA CRÔNICA DE LYA LUFT Rívia Silveira Fonseca RESUMO: Este artigo tem por objetivo refletir, a partir do su- porte teórico da Linguística Textual, de perspectiva sociocognitivista interacional, sobre a construção dos sentidos no texto escrito, do gênero crônica, produzi- do por Lya Luft. São analisadas as estratégias textual- discursivas, utilizadas pela autora na produção do tex- to, e os efeitos destas na produção e na construção dos sentidos. Observa-se que tais estratégias funcionam não apenas no sentido de explicitar o mais possível o sentido construído pela autora, mas, sobretudo, fun- cionam como mecanismos importantes no processo de construção dos objetos de discurso e no seu comparti- lhamento com o leitor. PALAVRAS-CHAVE: estratégias textual-discursivas, construção de sentidos, referenciação, sociognitivismo, Linguística Textual. 1. Considerações iniciais A VERDADE DIVIDIDA 1 1 ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. São Paulo: José Olympio, 1985. Dis- ponível em http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond02.htm, 31/8/2008.

A Construção de Sentidos No Texto Escrito - Um Estudo as Estratégias Textual-discursivas Na Crônica de Lya Luft

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Discute-se os processos semântico-discursivos de construção de sentidono texto escrito a partir da crônica de Lya Luft.

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109Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Linguagens em diálogo no 42, p. 109-131, 2011

A CoNSTruÇÃo DE SENTiDoS No TEXTo ESCriTo: um ESTuDo DAS ESTrATÉGiAS TEXTuAL-DiSCurSiVAS NA CrÔNiCA DE LYA LuFT

Rívia Silveira Fonseca

RESUMO:

Este artigo tem por objetivo refletir, a partir do su-porte teórico da Linguística Textual, de perspectiva sociocognitivista interacional, sobre a construção dos sentidos no texto escrito, do gênero crônica, produzi-do por Lya Luft. São analisadas as estratégias textual-discursivas, utilizadas pela autora na produção do tex-to, e os efeitos destas na produção e na construção dos sentidos. Observa-se que tais estratégias funcionam não apenas no sentido de explicitar o mais possível o sentido construído pela autora, mas, sobretudo, fun-cionam como mecanismos importantes no processo de construção dos objetos de discurso e no seu comparti-lhamento com o leitor.

PALAVRAS-CHAVE: estratégias textual-discursivas, construção de sentidos, referenciação, sociognitivismo, Linguística Textual.

1. Considerações iniciais

A VERDADE DIVIDIDA1

1 ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. São Paulo: José Olympio, 1985. Dis-ponível em http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond02.htm, 31/8/2008.

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A porta da verdade estava abertamas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,porque a meia pessoa que entrava

só conseguia o perfil de meia verdade.E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia os seus fogos.Era dividida em duas metades

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.Nenhuma das duas era perfeitamente bela.

E era preciso optar. Cada um optouconforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

(Carlos Drummond de Andrade)

A velha questão da existência de uma verdade absoluta, seja ela interna ou externa ao homem, talvez não tenha solução possível, pois essa verdade, se existir, não é alcançável. Entre a verdade e o homem, interpõem-se a

percepção, as ideologias, as práticas sociais e a linguagem. No texto de Drum-mond, acima, a verdade já se apresenta cindida, à mercê do julgamento ou da interpretação daqueles que insistem em alcançá-la para saber: qual é a verdade mais verdadeira? Por fim, cada qual escolheu a verdade que melhor lhe servia.

O poeta aponta para um fato: até mesmo a verdade é construída. E essa construção passa pela linguagem, conforme o capricho, a ilusão, e a miopia de cada sujeito. Ainda que a porta da verdade se escancare, não é possível ao homem vislumbrá-la sem o véu da linguagem, que por ser opaca, recria os

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objetos do mundo, que são por ela recobertos, delineando, assim, uma outra instância, a dos objetos do discurso.

No processo de interação do indivíduo com mundo que o cerca, com o real e com o outro que também participa desse mesmo mundo, as relações que se esta-belecem entre a linguagem e as coisas não são diretas. As palavras não são simples etiquetas, não possuem um sentido específico que espelha, reproduz ou repete um objeto do mundo exterior, tal como se pressupunha nas teorias referencialistas da verdade e da linguagem, como a Lógica clássica e a Semântica formal.

A relação entre signos, significados e referentes é tensa, movediça e con-flituosa, já que se apoia nos eventos cognitivos, situados social e historicamen-te. E se a língua não é espelho do mundo, ou espelho da verdade, retomo, aqui, as metáforas outras da língua como lâmpada, como moeda, como carpin-taria, como conjunto de trilhas construídas por Marcuschi:

[...] concebo a língua muito mais pela metáfora da “lâmpada” que do “espelho”, pois ela não é uma representação especular do mundo e sim uma apresentação; a língua não é um retrato e sim um trato do mundo, isto é, uma forma de agir sobre ele. Mais do que capital, a língua é uma moeda, servindo para trocas; mais que um almoxarifado de mercadorias disponíveis (num es-toque de itens lexicais), a língua é uma carpintaria (uma espécie de heurística). A língua não é uma dupla de trilhos a ligar dois pólos – o mundo e a mente -, mas um conjunto de trilhas que decidimos seguir mesmo que dê em aporias. 2

Nesse sentido, a linguagem verbal não é apenas instrumento do pensa-mento ou meio para se alcançar uma verdade que tem existência fora do indi-víduo; também não é razão, um fenômeno natural; ela é entendida como ação social, como espaço de construção e reconstrução, formulação e reformulação de uma outra realidade, sobre a qual se fala e se escreve e que, no entanto, não é necessariamente, a que se tem a impressão de ver ou de ouvir. Existe um mundo que acontece no discurso.

2 MARCUSCHI, Luiz Antônio. “Atos de referenciação na interação face a face”. CADER-NOS de estudos linguísticos, 41: 40, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.

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um estudo das estratégias textual-discursivas na crônica de Lya Luft

A interação entre indivíduos se dá por meio de textos escritos ou falados. É nos textos que os interactantes manifestam as intrincadas relações entre o social e o cognitivo, construindo objetos que não são os objetos do mundo, mas sim os objetos do discurso, formulando e reformulando os sentidos, que se constroem e são negociados no momento da interação.

A proposta deste artigo é, então, estudar e refletir sobre o processo de construção de sentidos no texto escrito, a partir da análise do uso das estratégias textual-discursivas no texto. O corpus de análise será a crônica “Relacionamen-to perfeito”, publicada no livro “Pensar é transgredir”, da escritora Lya Luft.3 A escolha desse objeto de análise se deu pelo fato de o texto se situar mais próximo da fala conversacional, considerando-se que fala e escrita não são mo-dalidades estanques, dicotômicas, mas se dão dentro do continuum tipológico das práticas sociais.4

De acordo com Koch5, a pesquisa acerca das estratégias textual-discursivas foi impulsionada pelos trabalhos sobre língua falada, sobretudo no âmbito da Análise da Conversação. No entanto, é possível verificarmos o uso dessas estraté-gias também em textos escritos, como no caso do texto a ser analisado que, por se tratar de uma crônica, tenta reproduzir uma conversa entre amigos. Isso faz com que nele, um texto escrito, sejam encontrados elementos lexicais e sintáticos relacionados, geralmente, à interação face a face, própria da conversação natural.

2. A linguistica textual e o sociocognitivismo interacional

O suporte teórico-metodológico que sustenta a análise desenvolvida nes-te trabalho é a abordagem sociocognitivista interacional (ou interacionista) da Linguística Textual. Essa disciplina tem estabelecido um diálogo, que vem se intensificando desde o início da década de 80, com as ciências cognitivas. Tal aproximação trouxe contribuições importantes para a agenda da Linguística Textual, cujas pesquisas por longo tempo se ativeram às análises transfrásticas e ao nível estrutural dos textos.

3 LUFT, Lya. Pensar é transgredir 3. ed., Rio de Janeiro: Record, 2004.4 JUBRAN, Clélia Cândida A. S.; KOCH, Ingedore V. (orgs.) Gramática do português culto

falado no Brasil. Campinas, SP: UNICAMP, 2006. p. 43.5 KOCH, Ingedore. Introdução à linguística textual. Trajetória e grandes temas. São Paulo: Mar-

tins Fontes, 2004. p. 103-105.

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O texto objeto primeiro da Linguística textual passou, então, a ser en-tendido, num primeiro momento, ainda no interior de uma visão cognitiva clássica, como uma realização humana acompanhada, como outras atividades, por processos cognitivos, isto é, operações mentais realizadas durante a troca comunicativa.

Assim, visto que o texto é originado por múltiplas operações cognitivas correlacionadas, passa a ser também objetivo da Linguística Textual o estudo do processamento textual, com o propósito de evidenciar as motivações e as estratégias utilizadas pelos sujeitos na produção e na compreensão dos textos.

Num segundo momento desse encontro da Linguística Textual e das ciên-cias cognitivas – e esse é o que mais nos interessa – abordagens interacionistas entram no jogo propondo que para o entendimento do processamento cogni-tivo é preciso considerar aspectos sociais, culturais e interacionais. A cognição passa a ser compreendida como um fenômeno situado e, consequentemente, não decorrente apenas da mente dos indivíduos. Isso porque, diferentemente da abordagem cognitiva clássica, mente e corpo não são mais vistos como entidades estanques.

Aplicando-se tais constatações às questões linguísticas tem-se que “na base da atividade linguística está a interação e o compartilhar de conhecimen-tos e de atenção: os eventos linguísticos não são a reunião de vários atos indivi-duais e independentes”6. A língua é, assim, uma ação conjunta, uma atividade interativa, como inúmeras outras que o ser humano realiza.

As noções de texto e contexto são redimensionadas. Este último passa a ser definido como a própria interação entre os sujeitos; o contexto é estrutu-rado, mas também estruturante, dele depende o modo como os sujeitos vão construir os objetos do discurso, pois o contexto é a fonte dos diversos conhe-cimentos sedimentados sociocognitivamente. O texto, por sua vez, passa a ser considerado como o próprio lugar da interação, logo deixa de ser uma entida-de acabada, de sentido completo em si mesmo, para ser visto como processo de construção e reconstrução de sentidos e dos próprios sujeitos.

O termo latino, textum, que originou a palavra em língua portuguesa, texto, está relacionado morfologicamente a outras como textilis, -e; textio,

6 KOCH, Ingedore. “A construção sociocgnitiva da referência.” In: MIRANDA, Neusa Salim; NAME, Maria Cristina (orgs.). Linguistica e cognição. Juiz de Fora, MG: UFJF, 2005. p. 99.

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-onis; textorius, -a, -um; textrix, -icis; textura, -ae, todas derivadas do verbo texere, cujos significados, dependendo do seu complemento, podem ser “te-cer, fazer tecido”, “fazer a teia (a aranha)”, “entrançar, entrelaçar”, “construir sobrepondo ou entrelaçando”, figuradamente, “arranjar, dispor, ordenar”, “entabular a conversação”, “compor, escrever, uma obra”, “referir, relatar, narrar, contar”7.

Assim, como o tecido é um arranjo de fios soltos que o tecelão vai jun-tando para formar um todo, de acordo com a ideia do desenho, da cor ou da textura que ele deseja criar, o texto também é resultado do projeto de dizer do sujeito que formula e reformula os enunciados, construindo os sentidos, por meio dos quais recria a realidade. Ao artesão, entretanto, é dado o poder de criar algo, enquanto o autor necessita do seu interlocutor para dar vida aos sentidos. Ele não sabe o que virá, apenas projeta suas expectativas.

Este sujeito, tecelão do discurso, não deve ser visto como um ser oni-potente, que acredita ser detentor do domínio das ações por ele praticadas e, consequentemente, detentor dos enunciados por ele proferidos. O sujeito, ou ainda, os sujeitos de que falamos são aqueles que “(re)produzem o social na medida em que participam ativamente da definição da situação na qual se acham engajados, e que são atores na atualização das imagens e das represen-tações sem as quais a comunicação não poderia existir.”8.

Este sujeito, situado histórica, social e ideologicamente, articula-se com o outro, utilizando a língua como instrumento desta interação, ele arquiteta dizeres e constrói sentidos, criando sua própria identidade e recriando o mun-do durante o jogo da linguagem com o outro.

Das interações entre os sujeitos forma-se o tecido, texto, que, como foi dito, não é apenas resultado, mas o próprio lugar da interação, lugar em que os sentidos ganham forma. Todavia, essa construção dos sentidos não se dá somente na superfície linguística, mas vai além dela mobilizando um grande e complexo aglomerado de saberes e sua reconstrução no âmbito da situação de comunicação.

7 SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. 11. ed. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2000. p. 1196.

8 KOCH, Ingedore. Desvendando os segredos do texto. 2. ed., São Paulo: Cortez, 2003. p. 15.

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3. Estratégias textual-discursivas e referenciação

Para falar das estratégias textual-discursivas, é preciso falar antes do pro-cesso de referenciação, uma vez que o uso de tais estratégias, sobretudo as me-tadiscursivas servem para configurar e reconfigurar os objetos de discurso do ponto de vista do(s) produtor(es) do texto e é a esse processo que concerne a referenciação.

A referenciação é um dos principais objetos de estudo da Linguística Textual sociocognitivista. A expressão vem substituir a terminologia referência com a finalidade de marcar uma nova visão da relação linguagem-mundo. A referenciação é entendida como um processo que evidencia no discurso a mudança e a instabilidade geradas pelas práticas simbólicas na interação dos sujeitos sociocognitivos com a linguagem e com o mundo.

A referenciação constitui, uma atividade discursiva. O sujeito, por ocasião da interação verbal, opera sobre o material linguis-tico que tem à sua disposição, operando escolhas significativas para representar estados de coisas, com vistas à concretização de sua proposta de sentido (Koch, 1999, 2002). Isto é, os proces-sos de referenciação são escolhas do sujeito em função de um querer-dizer. Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralinguística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação. Ou seja: a realidade é construída, manti-da e alterada não somente pela forma como nomeamos o mudo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamete, in-teragimos com ele: interpretamos e construímos nossos mundos por meio da interação com o entorno físico, social e cultural.9

Uma vez que os processos de construção de sentidos no texto são conside-rados processos estratégicos, a referenciação vai se concretizar por meio da uti-lização de estratégias que, ao serem repetidas, estabilizam os modelos textuais ao mesmo tempo em que esses modelos são retomados, expandidos, refeitos.

9 KOCH, Ingedore. Introdução à linguística textual: trajetórias e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 61.

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As estratégias de construção de sentido “dizem respeito às escolhas ope-radas pelos produtores do texto sobre o material linguístico que têm à dispo-sição, objetivando orientar o interlocutor na construção do sentido”.10 Vimos, anteriormente, que, de acordo com a noção de sujeito inserida numa visão sociocognitiva, o sujeito interage com o mundo e com o outro e constrói o sentido dos textos no próprio espaço da enunciação.

Desse modo, o sujeito lança mão de estratégias que servem não apenas para garantir a configuração da interlocução, mas também para “facilitar a compreensão, introduzir esclarecimentos/ exemplificações, aumentar a força retórica do texto, dar relevo a certas partes dos enunciados, como também mo-dalizar aquilo que é dito ou, por vezes, refletir sobre a própria enunciação”.11 Tais estratégias podem ser formulativas, agindo no nível da superfície linguísti-ca, isto é, no nível textual, e metadiscursivas, quando afetam o nível discursivo. As estratégias formulativas relacionam-se mais especificamente à construção do texto, ao passo que as metadiscursivas estão diretamente envolvidas no processo de referenciação.

As estratégias formulativas são responsáveis pela organização do texto e objetivam facilitar a compreensão dos enunciados ou provocar adesão dos ouvintes/ leitores ao que é dito, buscando garantir o sucesso da interação.12 As estratégias formulativas ocorrem por meio de: a) inserções; b) repetições e parafraseamentos retóricos; c) deslocamento de constituintes (tematização erematização).

De acordo com Koch13, as estratégias metadiscursivas, por seu turno, “são aquelas que tomam por objeto o próprio ato de dizer”. Isto é, ao colocar em ação tais estratégias, o locutor avalia, corrige, ajusta, comenta a forma do dizer; ou, então reflete sobre sua enunciação, expressando a sua posição, o grau de adesão, de conhecimento, atenuações, juízos de valor etc., tanto em relação àquilo que ele está a dizer, como em relação a outros dizeres. Essas estratégias são usadas pelos sujeitos toda vez que ocorre de sua parte algum tipo de refle-xão sobre o próprio dizer, ou sobre a linguagem. As estratégias metadiscursivas podem ser: a) metaformulativas; b) metapragmáticas; c) metaenunciativas.

10 Id., ibid., p. 103.11 Id., ibid., loc. cit.12 Id., ibid., p.104.13 Id., ibid., p. 120.

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Nas páginas seguintes, examinaremos o funcionamento de cada um dos tipos de estratégias, tanto das formulativas quanto das metadiscursivas, no texto escrito.

4. Carcterísticas do corpus de análise

O texto da crônica foi escolhido como objeto de análise para este traba-lho, justamente pelo fato de ser um texto que se propõe a falar de aspectos do mundo, do real, mas que ao fazê-lo, recria esse mundo, esse real. A linguagem da crônica é interessante, pois procura reproduzir uma conversa, uma intera-ção face a face, que na verdade não ocorre. Segundo Sá, a sua

sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxi-ma da conversa entre dois amigos do propriamente do texto escrito. Dessa forma, há uma proximidade maior entre as nor-mas da língua escrita e da oralidade, sem que o narrador caia no equívoco de compor frases frouxas, sem a magicidade da elaboração(...) A aparência de simplicidade, portanto não quer dizer desconhecimento das artimanhas artísticas.14

Jorge de Sá, especialista no gênero crônica, afirma que o cronista não pode se dar ao luxo de inventar fatos, lugares, datas, personagens, tal qual o ficcionista, mas deve partir de algum fato corriqueiro, um acontecimento qualquer do dia a dia e “a partir desse real que não foi inventado” por ele “injetar sangue novo no relato” ultrapassar “os limites do real como é visto por todos nós” e alcançar “uma dimensão mais profunda: a essência mesma daquilo que o sujeito busca ao recriar um objeto”15.

Durante muito tempo, o lugar privilegiado de publicação da crônica foi o jornal, de quem ela herdou o ritmo ágil e descontraído. Atualmente, livros e livros de crônicas tem sido publicados com ampla aceitação por parte do grande público. A aparente simplicidade é um atrativo para leitores diversos e é decorrente do efeito produzido pela maneira como o cronista se refere ao seu

14 SÁ, Jorge de. A crônica. 4. ed., São Paulo: Ática, 1992. p. 10.15 Id., ibid., p. 56.

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leitor, “falando” a ele com intimidade, cumplicidade, amizade. Nesse sentido, o texto da crônica demonstra bem o processo de construção de objetos, não do mundo, mas sim dos objetos discursivos, pois nessa “conversa”, muitas vezes, o autor da crônica aproveita para mostrar ao leitor seu ponto de vista, para argumentar a favor de uma visão ou de uma opinião própria.

O texto de Lya Luft, analisado neste trabalho, foi publicado num livro de crônicas da autora, algumas delas já haviam sido veiculadas em jornais e/ou revis-tas, outras foram produzidas especialmente para compor o livro – esse é um novo aspecto do gênero. A escritora, que além das crônicas escreveu muitos romances, só se tornou best-seller com a publicação das crônicas que muitos leitores leem como se fosse uma espécie de auto-ajuda, pois a autora explora nos textos temas que permeiam o imaginário da sociedade moderna – velhice, morte, saúde, ho-nestidade, moral, amor, relacionamento, amizade, infância, felicidade, etc. – de forma crítica e renovadora. Além disso, o texto de Lya é bastante autobiográfico, o que proporciona um efeito de proximidade ainda maior com o leitor.

Em seus textos, Lya procura refazer o real do discurso. Construindo no-vos sentidos, a autora busca levar o leitor a aceitar esses novos referentes por meio das estratégias de formulação e de metaformulação, dando ao texto um teor altamente argumentativo, sem que o leitor o perceba.

5. Análise das estratégias textual-discursivas na crônica de lya luft

Lya Luft, já no título de seu texto, “Relacionamento perfeito”,16 ativa um objeto de discurso, cujo sentido é construído, desconstruído e reconstruído ao longo do texto, ou seja, ela categoriza o que seja o relacionamento perfeito nos primeiros parágrafos, mostrando que não é sinônimo de casamento, para, ao final do texto, recategorizá-lo como um relacionamento bom, abandonando, assim, o adjetivo perfeito, cujo sentido já, anteriormente, havia sido também reconstruído. Assim, no último parágrafo do texto, a autora chega à formula-ção final de seu objeto: relacionamento bom.

O uso das estratégias, no texto de Lya, serve para, em primeiro lugar, construir e explicitar o sentido o mais possível, garantindo, assim, a comu-nicação entre os interlocutores, elas operam para manter a coerência interna

16 O texto completo da crônica aparece como anexo no final do trabalho.

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do texto e, em segundo lugar, produzem um efeito de “conversa”, como se a interação fosse face a face, Lya parece falar com seu leitor: ela dialoga com ele, discute conceitos, ideias a respeito do assunto relacionamento.

As estratégias textual-discursivas são próprias dos textos orais, mais es-pecificamente da conversação natural, contudo seu uso no texto escrito da crônica lhe confere leveza e dinamismo, gerando ou ativando um efeito de proximidade entre autor e leitor.

5. 1. Estratégias formulativas

Denominam-se estratégias formulativas os processos de reformulação do dizer. Tais estratégias referem-se sempre a algo que está dito, que se afirma como matriz e que é reiterado, ou anulado, ou re-elaborado, ou ainda escla-recido, explicitado. Neste trabalho estudamos as inserções, repetições e desloca-mento de constituintes.

a) inserçõesSegundo Koch17, as inserções “caracterizam-se, de modo geral, pela ma-

crofunção cognitivo-interativa de facilitar a compreensão dos parceiros, pelo acréscimo de elementos necessários para esse fim”. Nesse sentido, o locutor do texto introduz algum tipo de “material linguístico” no seu dizer com o objeti-vo de: explicar, justificar, reforçar, exemplificar, comentar o próprio dizer a fim de que os sentidos sejam esclarecidos para o seu interlocutor.

O uso das inserções na crônica “Relacionamento perfeito” têm a função de delimitar, precisar e explicitar melhor o sentidos, facilitando sua compre-ensão para os leitores. A explicitação dos sentidos num texto argumentativo como o de Lya é essencial para conduzir o leitor/ interlocutor pelos caminhos do sentido. A inserção, tal como aparece no texto, serve para sanar dúvidas como se pode observar no exemplo (1), em que aparecem comentários que esclarecem e ao mesmo tempo limitam o campo interpretativo.

No exemplo (1), a autora preocupa-se em explicar para o leitor em que consiste o trabalho de Sísifo, já que essa informação é importante para entender que é uma tarefa árdua pensar sobre as sensações, as relações, os sentimentos, etc. Se por acaso, o leitor não tiver conhecimento sobre mitologia grega, pode-

17 KOCH, op. cit., p. 107.

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rá não entender a metáfora, daí a necessidade de formular linguisticamente em que consistia o trabalho de Sísifo. Mas note-se que esta descrição é realizada a partir do ponto de vista do sujeito-autor, configurando-se como um objeto do discurso e não objeto do mundo.

Exemplo (1):

Trabalho interminável, espécie de suplício de Sísifo: o pobre todo dia em-purrando montanha acima uma grande pedra que voltava a rolar pela encosta, a fim de que o torturado recomeçasse mais uma vez.

No exemplo (2), a frase em destaque esclarece o sentido da expressão “fazer de novo a escolha”, explicitando para o leitor que tipo de escolha é essa de que se trata no texto. Nota-se, nesta passagem, mais um exemplo de ativação de um objeto discursivo, que vai se ancorar nos espaço cognitivo do leitor.

Exemplo (2):

Cada dia, ao acordar, fazer de novo a escolha: eu quero mesmo é você comigo.

A autora também lança mão da formulação de perguntas retóricas, um recurso de grande força argumentativa, que leva o leitor a refletir, ele se sente impulsionado a responder as questões. As perguntas retóricas são consideradas inserções, uma vez que fogem da estrutura do texto, e servem para chamar e prender a atenção do leitor, levá-lo a refletir, a questionar-se sobre os seus pró-prios valores. Observem-se os trechos em destaque no exemplo (3):

Exemplo (3):

(...) Aqui, nesta nossa terra nada utópica, perfeição me pareceria um pouco entediante: como nada a reclamar, tudo assim direitinho? Olho pela janela e bocejo: muito sem graça, a tal perfeição. O céu com anjos to-cando harpa pelo tempo sem tempo me deixava pasmada já na infância. Nada mais? Nem uma brincadeira proibida, um escorregão nas nuvens, uma risada na hora do sagrado silêncio... nem um transgressãozinha na or-dem celestial?

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As questões apresentadas no texto servem para desestruturar ou desarrumar as ideias já estabelecidas de que a perfeição está no porvir, e que ela está ligada à total tranquilidade, à ideia de céu, pensamentos cujos sentidos se amparam numa perspectiva cristã. A autora questiona esses conceitos sem, contudo, ser agressiva ou ofender o leitor, preservando, desse modo, a face do outro.

Nos exemplos a seguir observa-se um outro tipo de inserção: a paren-tetização, que tem por característica a inserção de informações paralelas ao assunto em relevo, promovendo um desvio no tópico discursivo.18

Exemplo (4):

Como todos os contratos (não falo dos de papel mas de corpo, coração e mente),..

Exemplo (5):

Que um relacionamento não seja prisão; que não seja enfermaria nem muleta; mas que seja vida, crescimento (turbulências eventuais incluídas).

No texto falado, a parentetização é percebida na mudança ou desvio de assunto e depois ao seu retorno. No texto escrito, a parentetização pode vir marcada pelos parênteses, como nos trechos em destaque, mas também podem ser usados outros sinais gráficos como os travessões e os colchetes. Contudo, as marcações não são necessariamente um sinal de que ocorre parentetização, é preciso que ocorra o desvio no tópico discursivo principal.

Os trechos em destaque em (4) e (5) não chegam a provocar uma mu-dança de assunto, mas promovem um desvio no sentido de ampliar o escopo da significação dos termos “contrato” e “crescimento”.

b) RepetiçõesA repetição “contribui para a organização discursiva e a monitora-

ção da coerência textual; favorece a coesão e a geração de sequências mais compreensíveis; dá continuidade à organização tópica e auxilia nas atividades

18 JUBRAN, Clélia Cândida Abreu Spinardi. “Parentetização”. In: _____; KOCH, Ingedore. Gramática do português culto falado no Brasil. Campinas, SP: Unicamp, 2006. p. 305.

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Fonseca, Rívia SilveiraA construção de sentidos no texto escrito:

um estudo das estratégias textual-discursivas na crônica de Lya Luft

interativas”.19 A repetição pode ser de diferentes naturezas, nos diversos níveis da língua: fonológica, mórfica, lexical ou sintática.

A repetição como estratégia na construção dos sentidos do texto é um recurso amplamente utilizado na produção da língua escrita e, nesses casos, apresenta, muitas vezes, um aspecto pedagógico, uma vez que serve também para fixar o conteúdo do dizer. Além disso, apresentam grande força argumentativa, pois as repetições, quando em quantidade, acabam por tocar o leitor.

A autora faz uso especialmente da repetição das estruturas sintáticas das orações apositivas, que vêm após os dois pontos. No texto em análise, ob-servamos algumas estruturas que se repetem, como é o caso da organização dos quinto, sexto e sétimo parágrafos, nos quais a autora repete a estrutura das orações apositivas, localizadas depois dos dois pontos, em destaque no exemplo (6).

Exemplo (6):

(...) Eu ia escrever “casamento”, mas preferi a outra palavra, porque ela não tem nada a ver com cartório e burocracia, opressão ou coerção social e familiar: tem a ver com querer se ligar a alguém, e querer continuar ligado. Cada dia, ao acordar, fazer de novo a escolha: eu quero mesmo é você comi-go. (...) Aqui, nesta nossa terra nada utópica, perfeição me pareceria um pouco entediante: como nada a reclamar, tudo assim direitinho?

Outro trecho em que ela faz uso da repetição de estruturas está entre os parágrafos finais, a partir do décimo primeiro parágrafo, passando pelo décimo segundo, depois prosseguindo pelos décimo quinto, décimo sexto, décimo sétimo e décimo oitavo. A repetição da oração “Que seja”, em des-taque, reforça a ideia de que é com estas características que se faz um bom relacionamento.

Exemplo (7):

19 KOCH, op. cit., p. 111.

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Que seja vital: isso me parece uma boa parceria. Que seja dinâmica, seja lá o que isso significa em cada caso. Pelo menos, não acomodada; mas muito acon-chegante. Que seja sensual e amiga, essa ligação: se não gosto do outro como ser hu-mano, com seus defeitos, sua generosidade e egoísmo, força e fragilidade, se não o quereria como amigo... como então, mesmo com tempero do desejo, posso me relacionar com ele para uma vida a dois?(...)Que um relacionamento não seja prisão; que não seja enfermaria nem mu-leta; mas que seja vida, crescimento (turbulências eventuais incluídas).Que seja libertação e ajuda mútua; não fiscalização e condenação, a sentença pronunciada numa frase gélida ou num olhar acusador, ar de reprovação ou lamúria explícita. Que seja cumplicidade, porque a vida já é difícil sem afetos. O som dos passos no corredor pode ser um conforto inacreditável, o corpo ao lado na cama uma âncora para a alma aflita. O entendimento recíproco é um oásis no isolamento desta vida pressionada por tempo, dinheiro, regras, mil solicitações de família, trabalho, grupo social, realidade do mundo.Que seja presença e companhia, o relacionamento bom: pois a solidão é um campo demasiado vasto para ser atravessado a sós.

Essa estrutura pode ser classificada sintaticamente como uma oração ob-jetiva direta, pressupondo-se, em função do contexto, uma oração principal tal como: “Desejo”, “Espero” ou ainda como uma oração substantiva subjeti-va, servindo de sujeito à oração principal, também pressuposta “É importante”, “É bom”.

Esse é um tipo de construção muito mais comum no texto falado, na conversa. Quando esse tipo de estrutura é usado na escrita, e, sobretudo, na crônica, remete ao efeito “conversa”. Na crônica, esse efeito é de extrema im-portância, pois imprime agilidade e naturalidade ao texto. A repetição, neste caso, também coopera para reforçar a argumentação e o caráter persuasivo do texto. As repetições, nesse caso, formam uma espécie de mantra, uma prece, um pedido, mas ao mesmo tempo expressam o desejo de um relacionamento bastante diferente dos sentidos mais tradicionais, aos quais, é provável, seu público, em grande parte feminino, esteja habituado.

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c) Deslocamento de constituintesEm um enunciado, os constituintes podem sofrer deslocamentos em que

o tema ou rema apresentam-se marcados, isto é, fora de seus lugares tradicio-nais. Examinamos, neste trabalho, duas estratégias de deslocamento de consti-tuintes: a tematização, que consiste em “destacar um elemento do enunciado, colocando-o em posição inicial; e a rematização, que é anteposição do rema ao tema, revertendo, assim, a ordem direta dos constituintes”.20

No segundo parágrafo do texto em análise, há um caso de tematização, ou seja, o deslocamento de um constituinte, tema, para o início ou para o fim do enunciado. No exemplo (8), houve deslocamento para o início da frase, que serve para marcar bem o posicionamento da autora, a presença do narrador-autor em primeira pessoa.

Exemplo (8):

A mim, sempre buscando explicações e significados porque tão pouco entendo, me ocorre falar ou escrever exatamente sobre aquilo que menos sei.

Mais adiante, no décimo segundo parágrafo e no décimo oitavo, o pa-rágrafo final, observa-se um outro tipo de deslocamento, a rematização, que consiste em deslocar o rema, antepondo-o ao tema. Essa formulação é bastante expressiva, e, no caso, destaca os predicativos de um bom relacionamento.

Exemplo (9):

Que seja sensual e amiga, essa ligação:

Exemplo (10):

Que seja presença e companhia, o relacionamento bom:

Nos exemplos (9) e (10) acima, o que se põe no início dos enunciados são as características que, segundo a autora, o relacionamento deve ter. Ocupam

20 Id., ibid., pp. 116; 118.

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lugar de destaque no período, uma vez que os termos que estariam nesse lugar são pospostos. Em consequência disso, a atenção do leitor é captada para as características que a autora parece querer ressaltar.

5.2. Estratégias metadiscursivas

As estratégias metadiscursivas são aquelas que se voltam para o próprio dizer, servem para reformular não apenas o dito, mas a própria enunciação. Por meio de tais estratégias podem-se observar as escolhas do sujeito na hora da formulação, sua reflexão sobre a língua e, ainda, as múltiplas possibilida-des de sentido que muitas vezes se encontram pressupostas ou subentendidas. Neste trabalho analisamos as estratégias metaformulativas, metapragmáticas e as metaenunciativas.

a) Estratégias metaformulativasA metaformulação ocorre quando “o locutor opera sobre os enunciados

que produz, procedendo a reformulações, refletindo sobre a adequação dos termos empregados, sobre a função de um segmento em relação aos preceden-tes ou subsequentes”.21 As estratégias metaformulativas têm como escopo o texto, reformulam o próprio texto, o dito.

Dentre as estratégias formulativas mais producentes nos textos orais es-tão as correções e as paráfrases e/ou repetições saneadoras, as primeiras, têm por função sanar imediatamente após ou durante a produção do texto dificul-dades detectadas, trechos considerados incompreensíveis, pelo autor ou pelos ouvintes; por sua vez, as paráfrases e repetições saneadoras possuem a mesma função, mas têm origem em causas externas ou internas à produção do texto que obrigam os interlocutores a reformularem suas emissões.

Os exemplos do texto, considerados metaformulativos, são trechos em que a autora reflete sobre o que ela havia dito sobre o que deveria ser uma boa relação. No exemplo (11), no trecho em destaque, observa-se a escolha de um termo por outro, em vez de casamento, ela prefere usar a outra palavra (relacionamento). Ao refletir sobre o seu dizer dessa forma, a autora redefine os termos, mostrando que um termo não tem relação com o outro e que não devem ser utilizados como sinônimos.

21 Id., ibid., p. 122.

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Exemplo (11):

Eu ia escrever “casamento”, mas preferi a outra palavra, porque ela não tem nada a ver com cartório e burocracia, opressão ou coerção social e familiar: tem a ver com querer se ligar a alguém, e querer continuar ligado.

No exemplo (12), a seguir, a questão não é a escolha de uma palavra melhor, mas sim uma reflexão sobre a adequação do termo e sobre a aplicação de seu significado usual no contexto do texto.

Exemplo (12):

Mas “perfeito” é uma palavra tola: perfeição, só no céu de todas as utopias.

A autora não crê que “perfeito” seja uma boa palavra e, ao longo do texto, ela vai mostrando outras possibilidades para chegar a formular a expressão “relacionamento bom”. Não se trata, aqui, de correções no sentido estrito do termo, mas em ambos os exemplos o que se observa é que a autora sente ne-cessidade, em função de seu projeto de dizer, de solucionar a dificuldade que uso de termos como casamento ou perfeito podem trazer para a construção dos sentidos, uma vez que já possuem sentidos fixados e amparados por uma memória discursiva.

b) Estratégias metapragmáticasAs estratégias metapragmáticas, também denominadas modalizadoras,

têm por finalidade “preservar a face do locutor, por meio da introdução no texto de atenuações, ressalvas, bem como marcar o grau de comprometimen-to, de engajamento do locutor com o seu dizer, o grau de certeza com relação ao dito”.22 Observe-se o recorte abaixo:

Exemplo (13):

O tema é quase infinito: pois cada caso é um caso, assim como cada casal é um casal, e cada fase da vida do indivíduo ou dos dois é diferente.

22 Id., ibid., p. 125.

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O exemplo (13) pode ser considerado metapragmático porque, nesse trecho, depois de discorrer sobre o que, segundo a autora, deve ser uma boa relação, ela afirma que nem todo caso é igual, ela admite que há diferenças, que não há uma fórmula mágica para a situação. O trecho, então, funciona de maneira metapragmática, uma vez que indica uma certa atenuação nas afirmações que ela faz ao longo do texto.

Exemplo (14):

Então, relacionamento perfeito, nem pensar. Mas uma ligação de cumplicidade e ternura, de sensualidade e mistério, ah, essa eu acho que pode existir.

No exemplo (14), acima, a afirmação “ah, essa eu acho que pode existir” é metapragmática porque atenua a contundente afirmação anterior, modali-zando um pouco o texto, preservando assim a face do outro. Tanto em (13) quanto em (14), os enunciados servem para tentar manter um efeito de certa neutralidade.

c) Estratégias metaenunciativasNeste tipo de estratégia, o locutor reflete sobre a sua própria enunciação,

deixando evidente as “não-coincidências do próprio dizer”.23 O sujeito se tor-na comentador do seu próprio discurso.

No trecho em destaque, a autora utiliza o adjetivo dinâmica e, em segui-da, atenua um pouco o seu sentido, oferecendo ao leitor a oportunidade de atribuir o sentido que melhor lhe aprouver.

Exemplo (15):

Que seja vital: isso me parece uma boa parceria. Que seja dinâmica, seja lá o que isso significa em cada caso. Pelo menos, não acomodada; mas muito aconchegante

23 Id., ibid., p. 127.

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Em (15), evidencia-se a heterogeneidade constitutiva do dizer, a expres-são em destaque mostra que existem outros sentidos possíveis para o termo “dinâmica”. Como dito anteriormente, a estratégia metaenunciativa diz res-peito às não-coincidências do próprio dizer e pode vir marcada linguistica-mente por expressões como “por assim dizer”, “como se diz”, “digamos”, etc. No exemplo (15), a expressão em destaque funciona no sentido de apontar para o fato de que o sentido sempre pode ser outro na atividade linguageira.

6. Conclusão

A análise das estratégias de formulação e de metadiscursividade evidencia a complexidade do processo de elaboração dos textos e da consequente cons-trução de sentidos na interação. Por meio do uso das estratégias o locutor/ autor procura controlar e guiar a construção dos sentidos para, não somente se fazer entender, mas, sobretudo para negociar com seu interlocutor os sentidos.

O estudo das estratégias textual-discursivas, no texto de Lya Luft, corro-bora o fato de que um texto não é simplesmente uma sequência de palavras, mas sim uma cadeia organizada textual e discursivamente. Além disso, a análise mostra a direção que a autora do texto, como sujeito social, que interage com o outro no texto/ discurso e pelo texto/ discurso, pretende dar ao sentido do ob-jeto “relacionamento”, reformulando as noções de perfeição, casamento e rela-cionamento, sem excluir os sentidos já sedimentados pela prática da linguagem.

No que diz respeito à compreensão do texto pelo leitor, observamos que, no caso do texto examinado, é necessário ativar uma grande quantidade de conhecimento de mundo, não só no que concerne à questão do relacionamen-to amoroso entre duas pessoas, mas também com relação aos mitos gregos e judaico-cristãos. Além disso, ainda que a autora explicite o mais possível os termos utilizados por ela, o leitor precisa estar preparado para o léxico e para as construções sintáticas do texto que não são simples nem diretas. Nesse sentido, a análise mostra também a complexa rede de correlações e integração de espa-ços mentais que forma durante os processos de interação entre os indivíduos.

Os efeitos de sentido produzidos na interação entre leitor, texto e, con-sequentemente, autor, nessa crônica são múltiplos e variados. Como leitor, é possível deixar-se levar pela “fala” de Lya, é possível até mesmo responder às suas perguntas retóricas, travando um diálogo com o outro e consigo mesmo.

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Isso é o que se chamou, ao longo da análise, de efeito “conversa”. Nesse sen-tido as estratégias são fundamentais para que os sentidos sejam construídos e gerem efeitos sobre o leitor.

De acordo com Bassi, “as categorizações dos objetos de discurso (...) são re-sultado de situações práticas e histórias que compreendem discussões, controvér-sias desacordos”24, no texto de Lya, analisado neste trabalho, observou-se como as estratégias textual-discursivas podem auxiliar o sujeito na construção dos sentidos, no processo de categorização. Em “Relacionamento perfeito”, o uso das estraté-gias, especialmente das estratégias formulativas, como a inserção e a repetição de estruturas, amplamente utilizadas pela autora, mostram seu esforço para construir o objeto “relacionamento”. Desviando-se dos sentidos mais tradicionais para o termo e resvalando nas múltiplas possibilidades de sentido, a autora, engajada em seu projeto de dizer, conduz o leitor pelos meandros da argumentação.

ABSTRACT: This article aims to reflect, with the the-oretical support of Textlinguistics, sociocognitivist inte-ractional perspective, on the construction of meaning in written texts, specifically the chronic type, here a text written by Lya Luft. It analyzes the textual-discursive strategies used by the author and their impact on the production and construction of the senses. It is observed that such strategies work not only to explain the way the meaning is constructed by the author, but mainly serve as important mechanisms in the construction of objects of discourse and in their sharing with the reader.

KEYWORDS: textual-discursive strategies, construction of meanings, referencing, sociocognitivism, Textlinguistics.

Recebido em: 23/03/2011 Aceito em: 20/07/2011

24 BASSI, Elisângela. O percurso sócio-cognitivo da construção da referência em situações inte-rativas envolvendo afásicos e não afásicos. Campinas: [s.n.], 2006. Dissertação de mestrado. Disponível em: http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000389603, 09/12/2008.

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ANEXo 1

Relacionamento perfeito

O assunto pode ser dramático ou engraçado, tão humano e tão difícil de entender.

A mim, sempre buscando explicações e significados porque tão pouco entendo, me ocorre falar ou escrever exatamente sobre aquilo que menos sei. Trabalho interminável, espécie de suplício de Sísifo: o pobre todo dia empur-rando montanha acima uma grande pedra que voltava a rolar pela encosta, a fim de que o torturado recomeçasse mais uma vez.

Querer alcançar o significado das coisas, da vida, das gentes, de seus relacionamentos e desencontros, é um pouco assim.

Seguidamente me indagam – ou tento imaginar – o que seria um rela-cionamento perfeito. Eu ia escrever “casamento”, mas preferi a outra palavra, porque ela não tem nada a ver com cartório e burocracia, opressão ou coerção social e familiar: tem a ver com querer se ligar a alguém, e querer continuar ligado.

Cada dia, ao acordar, fazer de novo a escolha: eu quero mesmo é você comigo.

Mas “perfeito” é uma palavra tola: perfeição, só no céu de todas as uto-pias. Aqui, nesta nossa terra nada utópica, perfeição me pareceria um pouco entediante: como nada a reclamar, tudo assim direitinho?

Olho pela janela e bocejo: muito sem graça, a tal perfeição. O céu com anjos tocando harpa pelo tempo sem tempo me deixava pasmada já na infân-cia. Nada mais? Nem uma brincadeira proibida, um escorregão nas nuvens, uma risada na hora do sagrado silêncio... nem um transgressãozinha na ordem celestial?

Minha alma indisciplinada não encontraria alimento nem estímulo, e ia-se desfazer em fiapo de nuvem embaixo de algum armário onde se guardassem os relâmpagos e os trovões, e todas as duras sentenças.

Então, relacionamento perfeito, nem pensar.Mas uma ligação de cumplicidade e ternura, de sensualidade e mistério,

ah, essa eu acho que pode existir. Como todos os contratos (não falo dos de papel mas de corpo, coração e mente), esse precisa ser renovado de vez em

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quando: a gente tira o contrato da gaveta da alma, e discute. Briga talvez, chora, reclama, mas ainda ama, ainda deseja. Ainda quer o abraço, o passo no corredor, o corpo na cama, o olhar atento por cima da xícara de café... quer até a desorganização e a ruptura, para depois de novo o que é bom se reconstruir.

Que seja vital: isso me parece uma boa parceria. Que seja dinâmica, seja lá o que isso significa em cada caso. Pelo menos, não acomodada; mas muito aconchegante.

Que seja sensual e amiga, essa ligação: se não gosto do outro como ser humano, com seus defeitos, sua generosidade e egoísmo, força e fragilidade, se não o quereria como amigo... como então, mesmo com tempero do desejo, posso me relacionar com ele para uma vida a dois?

O tema é quase infinito: pois cada caso é um caso, assim como cada casal é um casal, e cada fase da vida do indivíduo ou dos dois é diferente.

O bom é quando essa constante transformação se faz para maior cumpli-cidade, e não mais distanciamento.

Que um relacionamento não seja prisão; que não seja enfermaria nem muleta; mas que seja vida, crescimento (turbulências eventuais incluídas).

Que seja libertação e ajuda mútua; não fiscalização e condenação, a sen-tença pronunciada numa frase gélida ou num olhar acusador, ar de reprovação ou lamúria explícita.

Que seja cumplicidade, porque a vida já é difícil sem afetos. O som dos passos no corredor pode ser um conforto inacreditável, o corpo ao lado na cama uma âncora para a alma aflita. O entendimento recíproco é um oásis no isolamento desta vida pressionada por tempo, dinheiro, regras, mil solicita-ções de família, trabalho, grupo social, realidade do mundo.

Que seja presença e companhia, o relacionamento bom: pois a solidão é um campo demasiado vasto para ser atravessado a sós.

LUFT, Luft. Pensar é transgredir. 3ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2004.

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