A CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO NATURAL

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PS GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

    A CONSTRUO DO PATRIMNIO NATURAL

    Simone Scifoni

    So Paulo 2006

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PS GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

    A CONSTRUO DO PATRIMNIO NATURAL

    Simone Scifoni

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana, do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Geografia.

    Orientador: Prof. Dr. Wagner Costa Ribeiro

    So Paulo 2006

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    A Reinaldo, pelo seu amor incondicional e infinito...

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo aqui a todas as pessoas que de alguma forma colaboraram para que este trabalho se concretizasse, em particular, quero deixar registrado um agradecimento especial a algumas delas, que tiveram uma importncia mais que fundamental. Em primeiro lugar, ao meu orientador Wagner Costa Ribeiro, pela confiana depositada desde o incio do trabalho, o que me garantiu tranqilidade para faz-lo. Agradeo tambm seu apoio, estmulo e amizade, que foram muito importantes nesse percurso. Igualmente fundamental foi a presena e o estmulo, em todos os momentos desta tese, da minha grande e querida amiga Isabel Alvarez, a Bel, companheira de colquios, congressos, reunies, caronas; agradeo pela leitura e por compartilhar comigo tanto reflexes como as angstias do trabalho. Agradeo tambm ao Ricardo Alvarez, amigo sempre presente, pelo auxlio nos diversos momentos do trabalho. Um agradecimento particularmente especial querida Ana Fani, pessoa de grande importncia no percurso no s desta tese, mas de toda minha formao acadmica e profissional. Sou grata pela amizade e pela cobrana indispensvel, de uma atitude crtica diante da interpretao da realidade. Agradeo aos amigos do Condephaat, que muito me ajudaram na fase de levantamento de dados: Jos Eduardo, sempre to atencioso; Silvana e Rosana, verdadeiras heronas que, apesar de todas as dificuldades no rgo, sustentam a histria escrita dos processos do patrimnio; Bete e Norma, que se desdobraram em esforos para atender as minhas solicitaes de pesquisa. Aos amigos da antiga equipe de reas naturais do Condephaat, Roberto Varjabedian e Luis Paulo, com os quais tive a oportunidade de aprender muito. E a Cntia Nigro, que fraternalmente compartilhou comigo a sua bibliografia internacional. Ao Professor Titarelli, com o qual tive a oportunidade de conviver no Condephaat e que tenho grande admirao pelas suas lies de tica e profissionalismo. A Priscila Siqueira, que gentilmente me emprestou seu livro, alm de disponibilizar seu arquivo de reportagens. Ao Fernando Oderdan Reis, pelo emprstimo do apartamento em Ubatuba, que viabilizou a realizao dos trabalhos de campo. Ao Roberto Bascchera, que carinhosamente se desdobrou em tempo para a reviso do texto. A Regina Kubota, pela ateno e dedicao com os mapas. E um agradecimento mais que especial a Reinaldo, pelo apoio total e irrestrito e pelo constante estmulo. E tambm a Ceclia e Augusto, que foram pacientes com as minhas ausncias nas frias, feriados e fins de semana e que suportaram as minhas ansiedades com o trabalho. Agradeo, ainda, a Capes, pela bolsa de estudos concedida.

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    O conhecimento se alimenta de ironia e de contestao. (Henri Lefebvre, 1991)

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    RESUMO

    Este trabalho discute o significado da proteo do patrimnio natural no processo de produo do espao geogrfico do litoral norte paulista. Parte inicialmente da apresentao da trajetria de construo da idia de patrimnio natural e das polticas pblicas para a sua proteo, em diferentes esferas (nos planos internacional, federal e regional). Procura demonstrar, de um lado, que essa proteo que se deu via tombamento da Serra do Mar foi instituda para fazer frente urbanizao acelerada do litoral nos anos 1980 e, de outro lado, que ela foi incorporada produo espacial, passando a representar uma nova condio para o processo. A proteo da natureza tornou-se uma condio necessria reproduo do papel que o litoral norte desempenha na diviso espacial do trabalho da metrpole paulista: o de zona de veraneio de determinados segmentos sociais. A proteo da natureza aparece, ao mesmo tempo, como produto do urbano e como condio para sua reproduo.

    Palavras-chave: patrimnio natural, Serra do Mar, proteo da natureza, litoral norte paulista, urbanizao do litoral.

    ABSTRACT

    This job is about the meaning of the natural patrimony protection, in the process of the geographical space production of the So Paulo's north coast. It begins at the presentation of the construction course of the natural property idea and public policies its protection in different levels (international, federal and regional). It aims at showing, from one side, that this protection - reached by land register at Serra do Mar - was stablished to face rapid coast urbanization in the 1980's and, in the other side, that it was incorporated to spacial production, representing now a new condition to the process. Nature protection became a vital condition to the preservation of the role played by the north coast in the spacial division of work in the So Paulo metropolis: the one of summer resort for some social segments. The protection of the nature can be seen, either, as a product of the urban and a condition to its preservation.

    Key words: natural heritage, Serra do Mar land register, nature protection, So Paulo north coast, coast urbanization.

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    LISTA DE ILUSTRAES:

    Grficos:

    GRFICO 1: Bens reconhecidos pela Unesco, distribuio por ano, at 2005. GRFICO 2: Patrimnios mundiais distribudos pelas regies do mundo, at 2005. GRFICO 3: Bens reconhecidos pela Unesco, distribuio por regies do mundo e por dcadas, at 2005. GRFICO 4: Stios de valor paisagstico-ecolgico tombados pelo Iphan, at 2005. GRFICO 5: reas naturais tombadas por ano. GRFICO 6: Preo por metro quadrado de casas no litoral norte. GRFICO 7: Evoluo do n. de domiclios de uso ocasional.

    Fotos:

    Foto 1: Serra da Capivara, S.Raimundo Nonato/PI. Foto 2: Penhasco Dois Irmos, Rio de Janeiro/RJ.. Foto 3: Rocha Moutonne, Salto/Itu. Foto 4: Pedreira de Varvito, Itu/SP. Foto 5: Serra do Japi, Jundia/SP. Foto 6: Vale do Quilombo, Cubato/SP. Foto 7: Haras So Bernardo, Santo Andr/SP. Foto 8: Bairro dos Jardins, capital/SP. Foto 9: Morro Juquery, Mairipor/SP. Foto 10: Vista area do Morro do Botelho, Guaruj. Foto 11: Loteamento plancie do Rio Guaxinduba, Caraguatatuba. Foto 12: Fotografia area da Praia de So Loureno, em Bertioga. Foto 13: Fotografia area da Praia de So Loureno, em 1994. Foto 14: Caraguatatuba. Foto 15: Bairro do Ipiranguinha, Ubatuba. Foto 16: Serto do Perequ-Mirim, Ubatuba. Foto 17: Cocanha, Caraguatatuba. Foto 18: Praia da Caandoca, Ubatuba. Foto 19: Fotografia area de Guaratuba, Bertioga. Foto 20: Canto oeste da Praia de Ubatumirim, Ubatuba. Foto 21: Morada da Praia, Bertioga. Foto 22: Morada da Praia, Bertioga. Foto 23: Morada da Praia, Bertioga. Foto 24: Praia Vermelha do Norte, Ubatuba. Foto 25: BR 101, Caraguatatuba. Foto 26: Paba, So Sebastio. Foto 27: Rua do loteamento Chcaras Bom Retiro, Ubatuba. Foto 28: Ubatuba, Ponta da Seringa. Foto 29: Ubatuba, serto do Perequ-Mirim. Foto 30: Ubatuba, esporo na praia do Lzaro.

    p. 59

    p. 62

    p. 70

    p. 99 p.140 p.199 p.205

    p. 94 p. 94 p.114 p.114 p.114 p.114 p.114 p.114 p.114 p.124 p.204 p.208 p.208 p.227 p.227 p.227 p.229 p.235 p.235 p.235 p.242 p.242 p.242 p.242 p.242 p.242 p.249 p.260 p.260 p.266

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    Ilustraes:

    Ilustrao 1: Aquarela da Capitania de Santo Amaro de Joo Teixeira Alberns, de 1631. Ilustrao 2: Praia do Guaruj, 1915. Ilustrao 3: Palace Hotel em Santos, 1910. Ilustrao 4: Loteamento projetado para Praia de Ubatumirim, Ubatuba.

    Mapas:

    MAPA 1 Stios do Patrimnio Mundial reconhecidos pela Unesco at 2005: distribuio geogrfica. MAPA 2 Amrica do Sul: patrimnio natural reconhecido pela Unesco, at 2005. MAPA 3 reas naturais tombadas pelo Condephaat, at 2005. MAPA 4 Implantao da acessibilidade no litoral norte paulista. MAPA 5 Municpio de Bertioga: rea tombada da Serra do Mar e localizao dos processos analisados. MAPA 6 Municpio de Caraguatatuba: rea tombada da Serra do Mar e localizao dos processos analisados. MAPA 7 Municpio de Ilhabela: rea tombada da Serra do Mar e localizao dos processos analisados. MAPA 8 Municpio de So Sebastio: rea tombada da Serra do Mar e localizao dos processos analisados. MAPA 9 Municpio de Ubatuba: rea tombada da Serra do Mar e localizao dos processos analisados.

    p.179 p.196 p.196 p.249

    p. 57

    p. 79 p.108 p.213

    p.220

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    p.224

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    LISTA DE TABELAS:

    TABELA 1: Patrimnios naturais reconhecidos pela Unesco, por dcada, at 2005. TABELA 2: Pases com maior nmero de patrimnios mundiais reconhecidos, at 2005. TABELA 3: Ranking dos pases mais visitados no mundo, em 2004. TABELA 4: Pases com maior nmero de patrimnios naturais reconhecidos at 2005. TABELA 5: Bens reconhecidos pela Unesco de 2000 at 2005. TABELA 6: Patrimnio natural tombado no Paran, at 2005. TABELA 7: Patrimnio natural tombado em Minas Gerais, at 2005. TABELA 8: Patrimnio natural tombado no Rio de Janeiro, at 2005. TABELA 9: Patrimnio natural tombado pelo Iphan, at 2005. TABELA 10: reas naturais tombadas pelo Condephaat, de 1969-2005. TABELA 11: Motivao para pedidos de tombamento de reas naturais que envolveram ameaas aos bens. TABELA 12: Os primeiros tombamentos de reas naturais, dcada de 1970. TABELA 13: reas Naturais tombadas at 2005, ano do pedido e ano da homologao. TABELA 14: Nmero de tombamentos de reas naturais por ano. TABELA 15: Caractersticas do Estado nos perodos fordista e de produo flexvel, segundo Swyngedow. TABELA 16: Evoluo do nmero de bens tombados e homologados no Condephaat at 2005 (julho). TABELA 17: Unidades de Conservao includas no tombamento da Serra do Mar. TABELA 18: Oferta de imveis no litoral norte, por bairros. TABELA 19: Residncias secundrias e domiclios em situao similar nos municpios da rea de pesquisa, de 1970 at 2000. TABELA 20: Populao dos municpios da rea de pesquisa, perodo 1950-2002. TABELA 21: Evoluo da taxa de crescimento do nmero de domiclios particulares de uso ocasional, de 1970 at 2000. TABELA 22: Cronologia da atuao do Estado em melhoria da acessibilidade no litoral norte, a partir da dcada de 1960. TABELA 23: Nmero de processos de minerao relativos aos municpios da rea de pesquisa e respectivos pareceres (pedidos de 1985 at 2003). TABELA 24: Processos referentes minerao, jazidas j abertas com explorao aprovada e no aprovada. TABELA 25: Alguns projetos que tiveram problemas quanto legislao de tombamento. TABELA 26: Ocupao do solo na rea de pesquisa, nos anos 1980. TABELA 27: Diretrizes municipais contidas em Plano Diretor ou Lei de uso do solo para a rea tombada da Serra do Mar.

    p. 59

    p. 64 p. 65

    p. 70 p. 77 p. 88 p. 88 p. 89 p. 95 p.113

    p.119 p.131

    p.137 p.151

    p.169

    p.172

    p.178 p.198

    p.202

    p.203

    p.206

    p.212

    p.219

    p.228

    p.232 p.250

    p.257

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    LISTA DE ABREVIATURAS:

    APP rea de Preservao Permanente. CONAMA Conselho Nacional de Meio Ambiente. CONDEPHAAT - Conselho de Defesa do patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e Turstico do Estado. CONSEMA Conselho Estadual do Meio Ambiente DEPRN Departamento Estadual de Proteo de Recursos Naturais. DERSA Desenvolvimento Rodovirio S.A. IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica. IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis. SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservao. SPHAN Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. UICN Unio Internacional Para a Conservao da Natureza e dos Recursos Naturais. UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura.

    CRDITOS DAS FOTOS:

    Foto 1: TIRAPELLI, P. Patrimnios da Humanidade no Brasil. So Paulo: Metalivros, 2001. Foto 2: Simone Scifoni, 1993. Fotos 3, 4, 5, 6: Simone Scifoni, 1998. Foto 7: Prefeitura Municipal de Santo Andr, Foto 8: SECRETARIA DA CULTURA, Folheto Cultura, Natureza e Ambiente Urbano. A ao do Condephaat, 1987. Foto 9: Simone Scifoni, 1994. Foto 10: Marlia Paiva, 1984 (?), processo Condephhat 22.694/83. Foto 11: Simone Scifoni, 2002. Foto 12: Secretaria de Agricultura, 1962. Foto 13: Base Aerofotogrametria, 1994. Foto 14, 15, 16, 17, 18: Simone Scifoni, 2003. Foto 19: Pref. do Municpio de So Sebastio, 1992. Foto 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30: Simone Scifoni, 2003.

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    ndice:

    Introduo

    p. 11

    Captulo 1- A trajetria da idia de patrimnio natural p. 26 1.1 Patrimnio natural como monumento p. 29 1.2 O patrimnio natural e as prticas sociais

    p. 43

    Captulo 2 - A experincia internacional: a Unesco e o patrimnio natural

    p. 53 2.1 O sucesso do patrimnio na sociedade contempornea p. 58 2.2 Por uma geografia poltica dos patrimnios mundiais

    p. 69

    Captulo 3 - As polticas de proteo do patrimnio natural no Brasil p. 82 3.1 Patrimnio natural em mbito federal

    p. 90

    Captulo 4 - A proteo do patrimnio natural paulista p.103 4.1 Quadro geral do patrimnio tombado p.106 4.2 O patrimnio como conquista social e como luta pelo espao geogrfico

    p.115 4.3 A trajetria das polticas de patrimnio natural p.127 4.3.1 Os primeiros momentos: a incorporao da natureza ao patrimnio cultural paulista (1969-1980)

    p.130 4.3.2 Os momentos progressistas (1981-1991) p.134 4.3.3 Os momentos conservadores (1992-2006) p.146 4.4 A poltica de desregulamentao e excluso do patrimnio natural

    p.154

    Captulo 5 - Patrimnio natural e espao geogrfico: a Serra do Mar e a produo do urbano no litoral norte paulista

    p.174 5.1 As razes do tombamento da Serra do Mar p.177 5.2 Litoral norte: lazer e produo do urbano p.191 5.3 O impacto do tombamento no litoral norte

    p.217

    Captulo 6 - Litoral norte paulista: a incorporao da proteo da natureza produo do espao geogrfico

    p.238 6.1 As condies para a produo do espao geogrfico no litoral norte paulista

    p.240 6.2 A proteo da natureza incorporada aos parcelamentos de solo p.247 6.3 A proteo da natureza incorporada s polticas territoriais locais: a natureza como libi

    p.253 6.4 A proteo da natureza como condio para a reproduo da zona de veraneio da elite

    p.263

    Consideraes finais p.269 Referncias bibliogrficas p.274 Anexos p.289

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    Introduo

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    Introduo

    A institucionalizao da proteo da natureza no litoral paulista uma realidade incontestvel: um nmero sem igual de tipos de reas protegidas distribui-se pela faixa costeira, do estado do Paran ao Rio de Janeiro. Entre as reas protegidas encontram-se parques nacionais e estaduais, reas de proteo ambiental, reas de relevante interesse ecolgico, reservas estaduais e biolgicas, todas englobadas num s conjunto, protegido atravs do tombamento da Serra do Mar. O tombamento significa o reconhecimento desta extensa rea como um patrimnio cultural paulista, o que no deve parecer estranho sabendo-se que, por definio constitucional, esse termo inclui tanto edificaes e obras como locais de interesse paisagstico-ecolgico, o chamado patrimnio natural. O objetivo maior desse trabalho justamente discutir a relao entre a proteo do patrimnio natural e a produo do espao geogrfico. O tema patrimnio adquiriu na contemporaneidade destaque a ponto de se afirmar, hoje, a existncia de um processo em curso de patrimonializao. Jeudy (2005) o autor que prope esse novo termo, chamando a ateno para o fervor contemporneo pelo culto ao passado que leva a um excesso de patrimnio. Ele o v em diversas manifestaes nas cidades europias, como na prioridade para a conservao das fachadas antigas das edificaes, que levou a uma verdadeira uniformizao dos centros histricos, que ele chama de obsesso por restaurar. Ou o modismo do patrimnio industrial, que resultou na multiplicao dos museus criados em antigas reas industriais abandonadas, os quais constroem uma memria operria da qual se retirou os aspectos conflituosos para vend-la como objeto de consumo. O fato de a preservao ter se tornado na Europa um princpio primeiro e fundador das intervenes urbanas levou ao esgotamento da fase de identificao e proteo do patrimnio, colocando-se agora, como a grande questo das polticas patrimoniais, a sua manuteno, diz o autor.

    A crtica do autor patrimonializao no sentido de mostrar como esses excessos podem contribuir para o fenmeno inverso, ou seja, na medida em que se generaliza um dever mecnico de transmisso do passado, o patrimnio deixa de

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    ser fruto de uma necessidade social, h a perda de seu significado real. Se isso acontece principalmente porque o patrimnio transformou-se em objeto de consumo, incorporado s necessidades de mercado, sobretudo do ponto de vista do comrcio turstico internacional, fato que criou, para o autor, um dilema no qual:

    [...] se o patrimnio no dispe de um estatuto parte, se ele se torna uma mercadoria como as outras (os bens culturais), perder seu poder simblico. necessrio que, de alguma maneira, o patrimnio seja excludo do circuito dos valores mercadolgicos, para salvar seu prprio valor simblico. (JEUDY, 2005, p.20)

    Mas, no contexto da realidade brasileira, preciso ver com ressalvas a patrimonializao, inclusive porque o prprio autor afirma que ela no um fenmeno universal. Em que pesem algumas experincias pontuais ocorridas na Bahia ou em So Paulo, que claramente se encaixariam numa perspectiva de patrimonializao1, no conjunto do territrio nacional a precria situao de conservao de uma boa parte do patrimnio, reconhecido ou no, alm da crnica dificuldade de atuao dos rgos pblicos de preservao revelam que se est muito distante de um quadro que se poderia qualificar de excesso de patrimnio.

    preciso reconhecer que a valorizao do patrimnio no Brasil um processo extremamente desigual, pois atinge, em geral, aqueles bens considerados monumentais ou aqueles para os quais o mercado turstico v possibilidades de explorao. S no estado de So Paulo, para cada edifcio monumental preservado na rea central da capital, com recursos do Programa Monumenta2, tem-se uma grande quantidade e diversidade de construes menores, de arquitetura mais modesta, espalhadas pelas cidades do interior e que esto se degradando espera de investimentos pblicos em conservao e restaurao. Pensar que os prdios restaurados na regio da Luz, na capital paulista, simbolizam o quadro da situao

    1 Tratam-se aqui das intervenes que se caracterizam mais como estratgias de city marketing, de

    produo de uma imagem positiva dos lugares para atrao de novos investimentos e que se utilizam da cultura como seu instrumento. Tais como os casos da recuperao do Pelourinho, na Bahia, e dos prdios monumentais da regio da Luz, em So Paulo. 2 Programa criado em 1997 num convnio entre o Ministrio da Cultura e o Banco Interamericano de

    Desenvolvimento (BID), envolvendo ainda a Unesco e o Iphan. Por meio do Programa so direcionados recursos financeiros para a revitalizao de conjuntos urbanos no pas, o que envolve intervenes de conservao e restauro. So Paulo uma das capitais que recebem recursos deste Programa.

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    do patrimnio tombado no Estado nos parece um equvoco. Assim sendo, a patrimonializao dever ser relativizada quando se trata da realidade brasileira.

    H outra dimenso a considerar com relao emergncia do tema patrimnio como uma questo da contemporaneidade. No obstante o papel de destaque atingido pelo patrimnio cultural, em relao ao patrimnio natural como seu principal desdobramento, a situao oposta. Internacionalmente ele no apresenta o mesmo destaque que o patrimnio cultural, o que se evidencia nos ttulos de Patrimnio Mundial conferidos pela Unesco, menos de um quarto do conjunto correspondem categoria de patrimnio natural.

    No plano da pesquisa cientfica ou na esfera institucional h um vazio em relao ao patrimnio natural. No primeiro caso, raro encontrar pesquisas que tratem do tema, sobretudo das questes que envolvem sua gesto pblica. J no que diz respeito prtica institucional no Brasil, o patrimnio natural nos rgos pblicos aparece hoje como uma questo secundria e at mesmo marginal: com o passar dos anos, ele foi colocado parte, como um setor de menor importncia. Alm disso, por integrar a esfera institucional da cultura e no do meio ambiente, ficou de fora de um processo de unificao das diversas categorias de reas protegidas em um nico sistema de unidades de conservao. O patrimnio natural considerado uma rea especialmente protegida, porm no tem o status de uma unidade de conservao. , portanto, um instrumento de proteo ambiental sui generis, gestado no mbito das polticas culturais e fora da esfera do controle ambiental.

    Longe dessa posio marginal a ele relegada, o patrimnio natural aparece como um tema de relevncia para a Geografia. Em primeiro lugar porque essa noo coloca uma nova perspectiva para o entendimento da natureza, possibilitando compreend-la como parte da vida humana, uma natureza tornada social. Supera-se assim a dicotomia que contrape, de um lado, uma viso extremamente utilitarista, na qual a natureza apenas um recurso para as necessidades humanas, e, de outro, uma viso ecocntrica, que afirma ter a natureza um valor independentemente do homem (DIEGUES, 1996). Como se a definio de valores, que uma construo humana, pudesse se passar fora de uma perspectiva humana.

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    Esse entendimento da natureza como parte do legado cultural a ser deixado s futuras geraes foi produto da evoluo do prprio conceito de patrimnio cultural. Ao superar a viso tradicional de patrimnio como monumento ou obra excepcional, aproximou-se dos diversos grupos sociais, reconhecendo importncia naquilo que a expresso tpica de suas culturas, entendidas como o produto de uma relao que estabelecida com a natureza. Assim sendo, superou-se tambm uma viso de patrimnio centrada no edificado para valorizar outros objetos, entre eles os derivados da natureza, processo que se deu como fruto de uma conquista social na medida em que a sociedade, sob a forma de grupos organizados, colocou na agenda poltica esta nova demanda.

    Isso somente ocorreu porque foi possvel ampliar o espectro dos valores reconhecidos nesses objetos. Em diversas ocasies, Meneses (1992,1996) alertou para o fato de que os valores no so nem permanentes e invariveis e nem inerentes aos objetos, mas, ao contrrio, resultam de uma construo que se faz em determinados contextos sociais e histricos. Valores so atribudos a partir de qualidades que so reconhecidas nos objetos, mas que variam conforme os diferentes grupos os concebem. Segundo o autor, o [...] valor cultural no est nas coisas, mas produzido no jogo concreto das relaes sociais. Portanto, o [...] que chamamos de bens culturais no tem em si sua prpria identidade, mas a identidade que os grupos sociais lhe impem. (MENESES,1996, p.93) Para o autor, os valores podem ser definidos a partir de quatro categorias, a saber: os valores cognitivos, que implicam em ver os bens como suporte de conhecimento histrico; os valores formais, que advm das propriedades fsicas dos objetos, como uma determinada tcnica arquitetnica ou, no caso dos patrimnios naturais, os seus atributos naturais que conferem qualidade esttica ou ambiental; e, por fim, os valores afetivos e os pragmticos, que resultam da relao afetiva que os grupos tm com os objetos e seu valor de uso, que fazem com que esses bens, independentemente de sua importncia formal ou cognitiva, tenham um sentido e um significado social para determinados grupos.

    Durante muito tempo na histria da proteo legal do patrimnio os valores formais foram os nicos privilegiados no reconhecimento de bens, enquanto os dois

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    ltimos, que representam o valor social do patrimnio, so, at hoje, os mais difceis de serem aceitos no mbito do Estado, at porque isso implicaria numa postura mais democrtica de reconhecimento da diversidade dos grupos sociais e de suas manifestaes, o que ultrapassaria o plano dos discursos e da retrica para se transformar em aes efetivas. O reconhecimento de valores tem, assim, uma dimenso poltica. No se trata, pois, de uma atividade meramente especulativa, cognitiva, mas concreta, prtica poltica. por isso que o ncleo de qualquer preocupao relativa ao patrimnio cultural (identificao, proteo, valorizao) poltico por natureza. (MENESES, 1992, p.189) De um lado o patrimnio natural representa a memria da natureza - como diz Rodrigues, M. (2000) -, os testemunhos dos processos naturais e das relaes estabelecidas entre seus elementos. De outro, torna-se, tambm, parte da memria humana, pois adquire significado e sentido para os diversos grupos sociais, torna-se uma referncia histrica e inserido na memria social.

    O patrimnio natural no representa apenas os testemunhos de uma vegetao nativa, intocada, ou ecossistemas pouco transformados pelo homem. Na medida em que faz parte da memria social, ele incorpora, sobretudo, paisagens que so objeto de uma ao cultural pela qual a vida humana se produz e se reproduz. Assim sendo, o patrimnio natural tem um duplo carter. Como diz Palu (1996), o patrimnio natural aparece como um paradoxo, pois alm da natureza existir em si mesma, como realidade exterior ao homem, ela tambm culturalmente integrada ao mundo que as sociedades humanas so capazes de conceber, de perceber e de organizar.

    Trata-se de uma concepo de natureza que no nega a contradio central existente no fato de que mesmo sendo objeto de transformaes efetuadas pelo trabalho humano, no se retira a sua dimenso de natureza. A natureza de que se trata hoje , antes de tudo, histrica e social, uma vez que as transformaes que o homem lhe impe se inscrevem no curso de um processo histrico de constituio da sua humanidade. Mas ela guarda uma dimenso natural, pois os mecanismos que regulam sua dinmica so dados por condies prprias e leis naturais. Marx e Engels (1975), j afirmavam essa unidade entre homem-natureza no sculo XIX, ao

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    criticarem a filosofia alem que tratava de forma dissociada as contradies na natureza e as contradies na histria. Para os autores, no h como negar que sempre estamos diante de uma natureza que histrica, mas, mesmo assim, [...] evidente que o primado da natureza exterior no deixa por isso de subsistir [...]. (MARX; ENGELS, 1975, p.35)

    Para Santos, M. (2002), natureza e sociedade requerem hoje uma explicao conjunta, o que implica em novo modo de olhar a realidade, superando aquela abordagem dicotmica que os coloca como plos opostos. Nestes termos, para o autor, o espao geogrfico um hbrido, pois no se separa a sua forma daquela ao que a produziu (portanto o sistema de objetos inseparvel de um sistema de aes), assim como no possvel mais tratar a natureza e a sociedade como objetos e relaes que existem separadamente.

    J que a realizao concreta da histria no separa o natural e o artificial, o natural e o poltico, devemos propor um outro modo de ver a realidade, oposto a esse trabalho secular de purificao, fundado em dois plos distintos. No mundo de hoje, freqentemente impossvel ao homem comum distinguir claramente as obras da natureza e as obras dos homens e indicar onde termina o puramente tcnico e onde comea o puramente social. (SANTOS, M., 2002, p. 101)

    Uma segunda dimenso do patrimnio natural como tema geogrfico apresenta-se a partir do momento que consideramos que o tombamento, ao incidir em extensas reas, submete-as a um regime jurdico que atrela o uso do solo s regras da preservao, interferindo, portanto na atuao dos agentes pblicos e privados na produo do espao geogrfico. Ao impor, algumas vezes, normas mais rgidas do que a legislao urbanstica comum, ele seleciona usos e restringe determinadas formas de ocupao do solo, possibilitando a criao de uma nova dinmica espacial. Por outro lado, o tombamento tambm valoriza determinadas reas, ao reconhec-las como patrimnio do estado, fomentando novas perspectivas de explorao econmica. Nesse sentido importante que os gegrafos se apropriem desse tema, contribuindo para a sua compreenso sob o olhar da espacialidade.

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    Interessa aqui problematizar o tema na perspectiva da anlise geogrfica, refletindo como as polticas de proteo do patrimnio interferem na dinmica espacial. Para tanto se adota como universo emprico da pesquisa o tombamento da Serra do Mar, realizado por meio do governo do estado de So Paulo. A escolha justifica-se em funo da complexidade e do pioneirismo deste tombamento, que incidiu em uma rea de aproximadamente 1,3 milho de hectares que engloba 44 municpios paulistas, uma ao sem precedentes em todo o territrio nacional. Tem-se, assim, um extenso territrio tombado desde 1985 e submetido a determinadas normas, o que pode ser considerado um fator de restrio dinmica espacial dos municpios englobados. Mas, em funo das dificuldades oriundas de uma rea de pesquisa to ampla, optou-se por circunscrever a anlise da relao entre o patrimnio natural e a produo do espao para a chamada regio do litoral norte paulista, uma vez que se trata do setor litorneo mais valorizado da costa paulista, onde historicamente se desenvolveu um veraneio diferenciado por concentrar os grupos sociais de mais alta renda.3

    necessrio acrescentar, tambm, que a reflexo proposta nesse trabalho no produto nico da pesquisa cientfica realizada, mas de um conjunto de idias e posies que foi construdo ao longo de 15 anos de atuao na rea de patrimnio e que resulta tanto de uma experincia profissional como de uma militncia voluntria, ambas fundamentais como constituintes de uma base prtica, um trabalho cotidiano que fomentou muitas das questes ora apresentadas.4

    3A rea de pesquisa corresponde aos municpios que fazem parte da chamada Regio de Governo de Caraguatatuba, que inclui So Sebastio, Caraguatatuba, Ilhabela e Ubatuba. Incluiu-se, tambm nessa rea de pesquisa o municpio de Bertioga em funo de este apresentar uma condio de similaridade de padro de ocupao e paisagem, a ponto de afirmar-se que Bertioga a porta de entrada do litoral norte. 4 A experincia profissional deu-se no perodo de 1988 a 1995, junto equipe de reas naturais do

    Condephaat, Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e Turstico do estado de So Paulo, rgo a quem cabe a tutela do patrimnio cultural do estado. J a militncia voluntria na defesa do patrimnio cultural vem se dando desde 1999 junto ao Conselho Municipal de Patrimnio Histrico-Cultural de So Bernardo do Campo, na qualidade de conselheira representante da sociedade civil.

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    A definio do problema e os referenciais terico-metodolgicos

    O tombamento da Serra do Mar foi institudo na dcada de 1980 para fazer frente a um contexto de urbanizao acelerada da faixa litornea, provocada pela expanso do turismo assentado principalmente na constituio da segunda residncia, o chamado veraneio. Como legislao protetora do conjunto da paisagem do litoral, o tombamento imps novas diretrizes para a ocupao do solo, mas como isso mudou a dinmica espacial deste setor? Ele restringiu atividades ou fomentou novos usos do solo? Compatibilizou-se ou no com as polticas territoriais locais? Assim sendo, preciso que se pergunte: qual o significado deste mecanismo de proteo da natureza no processo de produo do espao geogrfico do litoral norte paulista? Esta a questo central deste trabalho. Para abord-la foi necessrio discutir, inicialmente, como se construiu a idia de um patrimnio natural e, nessa perspectiva, trs importantes questes se colocaram.

    Em primeiro lugar, a necessidade de interpret-lo a partir de dupla significao, de acordo com o que estabelece Gonalves (2002): ele expresso de grandiosidade e beleza, narrado, portanto, sob o discurso da monumentalidade; e aparece, ao mesmo tempo, ligado s prticas sociais, como representativo da experincia coletiva de diferentes grupos, uma natureza apropriada socialmente. Nesse ltimo caso, o patrimnio natural revela-se como fruto de conquista social, uma natureza reivindicada por meio de lutas sociais que expressam o sentido do questionamento da forma como o espao geogrfico produzido. As lutas pelo patrimnio so, tambm, lutas pelo espao ou, como no entendimento de Seabra (2004), por espaos residuais, aqueles que guardam as permanncias e continuidades da histria vivida. Em terceiro lugar, sendo produto de prticas institucionais o patrimnio natural deve ser compreendido como uma construo poltica, conforme j apontado por Meneses (1992, 1996). No plano local essa construo explica-se, de um lado, atravs do papel desempenhado pelo Estado diante de diferentes condies histricas e, de outro, por um jogo de foras definido na relao entre os diversos atores polticos envolvidos. No plano internacional,

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    essa construo deve ser interpretada a partir de um quadro de relaes que se configuram numa Ordem Ambiental Internacional, de acordo com o que discute Ribeiro (2001).

    Discutidos os significados do patrimnio natural, parte-se da tese de que a proteo da natureza, via instituto do tombamento, ao ser incorporada produo espacial passou a representar a uma nova condio para esse processo, uma condio necessria reproduo do papel que o litoral norte desempenha na diviso espacial do trabalho da metrpole paulista: o de constituir-se em zona de veraneio de determinados segmentos sociais. Desta maneira a proteo da natureza aparece, ao mesmo tempo, como produto do urbano e como condio para a sua reproduo.

    A perspectiva terico-metodolgica adotada encaminhou-se para uma anlise que utiliza o urbano como categoria central para a compreenso do objeto de pesquisa em sua totalidade. A totalidade diz respeito reproduo do espao da metrpole paulista na qual o lazer aparece, cada vez mais, como uma importante instncia da reproduo social. Como espao de lazer e veraneio articulado metrpole paulista, o litoral norte no se explica por si mesmo, mas como parte do processo de reproduo social, o qual:

    [...] constitui-se para alm da fbrica e da produo strito sensu, produzindo relaes sociais, um espao, um modo de vida, uma cultura, valores, alm de um modo de gastar o tempo do no-trabalho (tambm incorporado ao processo de reproduo), desejos, etc. (CARLOS, 1996, p. 112)

    a necessidade social do lazer no seio da vida cotidiana da metrpole que leva produo de um espao de veraneio no litoral, que reproduz a lgica e as contradies inerentes sua totalidade. Assim, o elemento central na discusso diz respeito ao papel do litoral norte na diviso espacial do trabalho da metrpole paulista.

    Nessa perspectiva possvel compreender que a proteo da natureza no litoral norte foi instituda num contexto de extenso do tecido urbano da metrpole paulista, que conferiu a esse espao um papel especfico de zona de veraneio. A

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    expanso do tecido urbano no traz o significado de contigidade fsica da rea edificada, mas o sentido de uma rede de relaes que subordina esse espao litorneo lgica da metrpole. O tecido urbano, diz Lefebvre (1971), o suporte de um modo de viver que envolve um sistema de objetos e um sistema de valores. Em outra obra o autor nos diz que o urbano no se restringe produo industrial, ao mundo do trabalho, embora guarde relaes ntimas com esse processo. , portanto, o territrio onde se desenvolvem a modernidade e a cotidianidade no mundo moderno. (LEFEBVRE, 1986, p.2).

    Segundo o autor, a extenso do tecido urbano se d como um processo de imploso-exploso da cidade, por meio do qual ao mesmo tempo em que a centralidade se afirma, tambm se fragmenta o espao, ampliando e multiplicando a periferia e absorvendo os territrios por vezes distantes, mas intimamente articulados sob o comando da mesma lgica da cotidianidade e modernidade da metrpole. Lefebvre (2004) chega a afirmar que cidades pequenas e mdias tornam-se dependncias, semicolnias da metrpole.

    O entendimento da produo do espao geogrfico no litoral norte como parte de uma totalidade que a reproduo da metrpole paulista permitiu ver esse processo assentado numa hierarquizao scio-espacial que teve por base as belezas naturais: as praias de paisagem mais expressiva destinadas aos mais ricos, as praias de paisagem mais comum deixadas para um turismo mais popular e os sertes, distantes da praia, aos mais pobres, migrantes ou uma populao tradicional. Assim como a hierarquizao scio-espacial divide a metrpole em bairros ricos e pobres, bairros que no se justapem simplesmente, mas se hierarquizam, a mesma caracterstica se reproduz no espao do lazer, pois tem como fundamento a desigualdade e a hierarquia social. No litoral norte, a praia, que por definio legal deveria ser o espao pblico por excelncia, vai se tornando parte do conjunto do espao hierarquizado: na praia dos mais ricos o acesso pblico que consta constitucionalmente no assim to garantido aos mais pobres. O espao hierarquizado tem a funo, segundo diz Lefebvre (1978), de garantir a reproduo das relaes sociais de dominao.

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    nesse contexto da expanso do tecido urbano, o qual consolida a funo de veraneio no litoral norte, que surge a preocupao com a paisagem: a degradao da morfologia da costa, dos rios e da vegetao pe em risco o seu principal potencial de explorao econmica; nesse sentido, a proteo da natureza aparece como produto do urbano. Mas ela tambm se constitui como poltica de Estado que busca garantir a continuidade dos usos desse espao geogrfico, ou seja, de um turismo-veraneio de padro de excelncia. Assim sendo, a proteo da natureza torna-se, tambm, uma nova condio para a reproduo do processo.

    Mas por que nova condio? No processo de produo espacial a natureza aparece como algo que dado

    e que o homem modifica em funo de suas necessidades. Ao faz-lo, est produzindo sua prpria existncia, sua histria e sua humanidade. A historicidade desse processo relaciona-se com o estgio das foras produtivas e das relaes sociais de produo. Assim, as condies para a produo do espao so histrica e socialmente determinadas no curso do processo civilizatrio em que novas necessidades sociais so criadas. Se, num primeiro momento, a natureza aparece como uma matria dada, a ser dominada e transformada, no curso da histria da produo do espao geogrfico essa condio se modifica, pois a natureza recriada como uma nova necessidade social: a necessidade de sua proteo aparece como uma nova condio.

    Nessa perspectiva, reproduo a noo chave para a compreenso da relao entre a proteo da natureza e a produo do espao geogrfico no litoral norte. Segundo Carlos (1994, 2001), a produo do espao tambm um processo de reproduo, pois implica na idia de ampliao e de desenvolvimento de relaes, portanto tambm na idia de continuidade. Corresponde, segundo a autora, a um conjunto contraditrio de significados, pois no diz respeito somente ao mundo do trabalho, produo material, realizao da acumulao de capital, mas tambm ao desenvolvimento da vida humana, portanto, envolve outras esferas, como o habitar e o lazer.

    Reproduo a noo que permite entender o processo que est em curso no litoral norte, pois no se trata mais da simples produo de um espao com a

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    funo de veraneio, mas da continuidade desse papel, que exige como garantia a recriao de novas condies. A reproduo envolve o reconhecimento por parte do Estado de que o lazer-veraneio de excelncia que interessa e, para manter esse padro, a natureza um elemento central. No se trata do reconhecimento das fragilidades ou vulnerabilidades da natureza, mas, antes de tudo, da sua importncia econmica como recurso e potencial para a valorizao do capital.

    Os passos da pesquisa

    De que patrimnio natural se est tratando? No h como compreender a relao estabelecida entre proteo da natureza e produo do espao sem antes investigar qual o significado deste patrimnio e de que forma ele foi institudo.

    Nesse sentido, o ponto de partida na pesquisa foi mostrar como se originou e evoluiu essa noo que surgiu de um desdobramento do chamado patrimnio cultural. A discusso sobre a trajetria do patrimnio natural, apresentada no captulo 1, procura mostrar que ele no nico. H nesse termo uma dupla e contraditria interpretao: ele se apresenta como testemunho de uma caracterstica monumental e espetacular, que leva sua intocabilidade e, ao mesmo tempo, como expresso de um valor afetivo, resultado de uma demanda social pela memria coletiva, o que coloca a luta pelo patrimnio, antes de tudo, no plano da apropriao social do espao geogrfico e no plano do direito cidade. Sendo um desdobramento do patrimnio cultural, o tombamento do patrimnio natural aparece como produto de polticas pblicas que se do no mbito da cultura. Mas a sua anlise implica tambm numa contextualizao destas polticas em suas diversas esferas institucionais. Assim, ao longo do captulo 2, possvel ver que, internacionalmente, essas polticas expressam um sentido bem diferenciado da experincia regional brasileira, particularmente a paulista.

    Para entender melhor essa questo busca-se abordar as aes internacionais para a proteo deste patrimnio desencadeadas pela Unesco, por meio da Conveno do Patrimnio Mundial, Cultural e Natural. Ao contrrio das anlises freqentemente feitas sobre essa experincia internacional, o enfoque busca

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    construir uma geografia poltica dos patrimnios mundiais baseada na premissa de que eles se tornaram, na contemporaneidade, importantes recursos para o mercado turstico internacional, evidenciando assim os interesses poltico-econmicos por trs do reconhecimento do ttulo. Em seguida, j no captulo 3, ao contextualizar as polticas de patrimnio abordando a experincia federal, percebe-se que, apesar de plenamente includa essa preocupao na legislao nacional, durante muito tempo predominou a recusa do patrimnio natural em mbito federal, fato que reflete uma viso dualista e corporativa da questo.

    Ao adentrar na discusso das polticas paulistas, ao longo do captulo 4, para compreender o sentido do tombamento da Serra do Mar, possvel perceb-lo como resultado de um jogo de foras interno, definido a partir dos diversos atores institucionais envolvidos e, tambm, como produto das condies polticas nas quais o Estado se apresenta. Constata-se uma inflexo nessas polticas a partir de meados dos anos 1990, fato que levou a uma paulatina excluso do patrimnio natural do conjunto da tutela institucional. Alm disso, torna-se claro e evidente a partir da polticas de desregulamentao do patrimnio que buscam antes de tudo flexibilizar a legislao para garantir a fluidez necessria aos interesses do capital.

    Em seguida, para abordar a relao entre a proteo do patrimnio natural e a produo do espao geogrfico, o caminho analtico direcionou-se para o exame do impacto do tombamento da Serra do Mar na dinmica espacial do litoral norte paulista, assunto tratado no captulo 5. Inicialmente busca-se mostrar as razes que levaram a esse tombamento, como um processo que envolveu tanto motivaes de carter cientfico como tambm poltico, num contexto em que se produziu um espao urbano no litoral sob o comando da metrpole e submetido a sua lgica.

    Mas foi necessrio compreender melhor como se deu a instaurao do urbano no litoral, fundamentada numa funo balneria, voltada aos segmentos sociais de maior renda, uma urbanizao assentada no mundo do lazer, produzida a partir da hierarquizao scio-espacial. Tudo sob o patrocnio do Estado, que reproduziu, assim, a mesma lgica e as contradies da totalidade na qual est inserida. No mesmo captulo se examina de que forma o tombamento pode interferir

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    na dinmica espacial litornea, a partir de um conjunto de dados coletados relativos s intervenes que foram aprovadas ou no na rea tombada, tendo como parmetros as atividades de parcelamento de solo e de minerao, ambas seriamente limitadas pelas regras do tombamento. Por fim, ao discutir de que forma a proteo da natureza aparece incorporada produo do espao, quer pelo mercado imobilirio no sentido de conceber novas formas de produo da segunda residncia, quer pelo poder pblico local, que assimilou as regras do tombamento em suas polticas territoriais locais, busca-se refletir sobre o contedo e significado desse processo. Entende-se que a natureza aparece recriada como necessidade no litoral, no mais como matria dada, a transformar e dominar, mas como nova condio para que se d a reproduo da zona de veraneio do litoral norte.

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    Captulo 1 A trajetria da idia de patrimnio natural

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    A trajetria da idia de patrimnio natural

    Em sendo o patrimnio natural uma rea legalmente protegida, a discusso sobre a gnese e a trajetria desse termo deve ser feita sob o prisma de sua tutela institucional. Esse foi o caminho da anlise.

    O surgimento da noo de patrimnio natural um fato relativamente contemporneo, pois foi somente na dcada de 1970, sob os auspcios da Unesco, que este se consagrou internacionalmente. No entanto, a sua origem anterior, o patrimnio natural decorre da preocupao com o monumento, que princpio aparece como o histrico e o artstico, para depois se configurar, tambm, como o monumento natural.

    Nesse sentido, o patrimnio natural apareceu historicamente como produto de um universo de preocupaes com a cultura e , portanto, dentro do universo das polticas culturais que se deve buscar os elementos para compreender sua evoluo e seus significados. Desde cedo bom destacar que se trata do plural significados -, j que as prticas institucionais de proteo ao patrimnio apontam caminhos bem diferentes.

    possvel perceber duas direes no sentido da construo da idia de patrimnio natural: no plano mundial firmou-se como expresso de grandiosidade e beleza que, por sua vez, advm de um sentido de monumentalidade como preocupao esttica. Pressupe, tambm, intocabilidade, ou seja, os grandes testemunhos da natureza que foram poupados da interveno humana.

    Mas h um outro significado que aparece no Brasil a partir de algumas experincias regionais: o patrimnio natural passou a ser entendido como conquista da sociedade, como uma noo ligada s prticas sociais e memria coletiva. Portanto, um patrimnio natural que antes de tudo faz parte da vida humana e no aquele que a ela se ope.

    Prope-se interpretar o patrimnio natural partindo dessa dupla significao, conforme estabelece Gonalves (2002). Segundo o autor, os patrimnios culturais no so simplesmente colees de objetos e estruturas materiais que existem por si mesmos. Antes de tudo, eles so constitudos discursivamente, expressando

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    determinadas vises de mundo. No h um nico discurso, nem consenso. So diferentes concepes de patrimnio que podem ser compreendidas sob dois princpios: o da monumentalidade e o do cotidiano.

    Em relao ao primeiro entendimento, diz Gonalves (2002, p.119):

    Quando narrado sob o registro da monumentalidade, o patrimnio cultural definido pela tradio, deslocando-se para segundo plano a experincia individual e coletiva dos bens culturais. H uma viso homognea da nao.

    O discurso da monumentalidade fundamenta-se numa historiografia oficial e na viso de um passado histrico nacional que privilegia, assim, fundadores e heris. um passado sagrado e absoluto, argumenta o autor. A tradio dos feitos e dos protagonistas oficiais da histria exprime-se no construdo: a monumentalidade revela-se na grandiosidade e no valor esttico das edificaes. Do ponto de vista do patrimnio natural, a monumentalidade reflete uma natureza espetacular, grandiosa, quase sempre ausente de condio humana, intocvel e disponvel apenas para a fruio visual.

    J o discurso do cotidiano prioriza outros valores, como a experincia pessoal e coletiva dos diversos grupos sociais, constituindo o patrimnio como a representao da diversidade cultural presente em uma sociedade nacional. O passado, portanto, torna-se relativo. Ele vai depender de pontos de vista particulares, diz Gonalves (2002, p.114). Nesta perspectiva o patrimnio simboliza diferentes prticas sociais e memrias de diversos grupos nem sempre reconhecidos pela historiografia oficial. Do ponto de vista do patrimnio natural esse discurso evidencia outras naturezas, apropriadas socialmente e vividas intensamente: a natureza como parte da memria coletiva, das histrias de vida, a natureza como componente das prticas scio-espaciais.

    No Brasil, o discurso da monumentalidade historicamente o primeiro a se configurar e no obstante o movimento de mudanas e reorientao de significados que vem ocorrendo h trs ou quatro dcadas, ainda hegemnico no plano das polticas pblicas. Ele absolutamente presente quando se analisam as experincias internacionais ocidentais e, por conseqncia, marcante no Brasil no mbito federal at este momento, apesar de alguns esforos empreendidos no

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    sentido da renovao. Em contrapartida, o discurso do cotidiano, embora muito presente no debate conceitual, no tem a mesma projeo do ponto de vista das prticas institucionais.

    Como esses dois diferentes discursos explicam a trajetria do patrimnio natural? o que se ver a seguir.

    1.1 O patrimnio natural como monumento

    O carter de monumentalidade desde o incio permeou a concepo do que atualmente se entende como patrimnio cultural e, por conseqncia, tambm do patrimnio natural. Mas, lembra Choay (2001), o monumento em seu sentido original contrasta com a concepo que temos hoje. Originariamente ele era associado a uma lembrana coletiva, era feito para marcar algo do qual se desejava recordar, acontecimentos, ritos, crenas, que deveriam ser transmitidos para as novas geraes. O monumento tinha, assim, inicialmente, uma funo memorial.

    Esse sentido foi alterado, diz a autora, de forma que no curso do sculo XV passou a ser manifesto principalmente por um carter esttico. Beleza, poder e grandiosidade passaram a ser a partir da a expresso maior do monumento.

    A princpio, os monumentos, destinados a avivar nos homens a memria de Deus ou de sua condio de criaturas, exigiam daqueles que os construram o trabalho mais perfeito e mais bem realizado, eventualmente a profuso das luzes e o ornamento da riqueza. No se pensava em beleza. Dando beleza sua identidade e seu estatuto, fazendo dela o fim supremo da arte, o Quatrocentto a associava a toda celebrao religiosa e a todo memorial. (CHOAY, 2001:20)

    O monumento ganhou alguns de seus derivados, o histrico, por exemplo, e no curso de um processo em que foi institucionalizada a sua proteo por parte do Estado, transformou-se no conceito de patrimnio histrico. A autora mostra que foi no contexto da Revoluo Francesa que isso se deu, na medida em que a nacionalizao dos bens da coroa, da Igreja e da aristocracia criou o problema da necessidade de conservao estatal desse conjunto, que foi resolvida associando-se a esses bens um valor de nacionalidade - o de patrimnio coletivo, interesse e

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    expresso de uma histria coletiva. Nasceu assim, no mundo, a primeira legislao de proteo do que hoje se entende por patrimnio cultural.

    A partir dos finais do sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX, o monumento ganhou um outro derivado, uma nova adjetivao para alm do histrico. Surgiu assim o monumento natural, inserido dentro do universo das questes culturais. nessa perspectiva que ele aparece nas primeiras legislaes federais que tratavam do assunto. Pases como Sua, Japo, Frana e Brasil so exemplos a serem destacados e, em que pese o fato de que em outros pases da Europa e nos EUA j existia nesse momento uma legislao de proteo da natureza, esses pases introduziram pioneiramente uma nova abordagem ao situar a natureza, de maneira indissocivel, preocupao com o monumento histrico.

    assim que se v na Constituio Federal da Sua, de 1874, em seu artigo 24o, que apesar de no explicitar o termo monumento natural, associa num mesmo artigo a proteo do que histrico com o que aparece como natural, ambos sujeitos tutela do Estado.

    No cumprimento das suas obrigaes, a Confederao deve defender o aspecto caracterstico da paisagem e das localidades, os lugares evocadores do passado, assim como as curiosidades naturais e os monumentos, e conserv-los intactos sempre que se verificar nisso um interesse geral preponderante. (PIRES, 1994, p.69, grifo nosso).

    J o Japo o pioneiro na incluso do termo monumento natural em uma legislao federal. o que mostrou Bourdier (1993), ao analisar a legislao que surgiu no sculo XIX - de conservao do patrimnio nesse pas. Segundo o autor, no incio uma maior nfase foi dada apenas aos bens de interesse religioso, como tempos e santurios do budismo e do xintosmo, deixando-se de lado outras categorias de bens. Mas, a partir de 1919, com a aprovao de uma lei5 foi instituda a proteo aos monumentos naturais, tendo sido designados como tal alguns parques, jardins e alinhamentos de rvores da cidade de Tkio.

    5 Lei sobre a Preservao de Stios Histricos e Pitorescos e dos Monumentos Naturais.

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    interessante notar a especificidade do que os japoneses entendem por monumento natural. Os exemplos reconhecidos como de valor pela lei, indicam uma nfase mais na memria coletiva, no valor simblico e espiritual que estes lugares tm. Portanto, uma funo memorial, mais do que a expresso de grandiosidade. assim para o caso dos jardins japoneses. Diferentemente do jardim em estilo francs - este sim grandioso e ostentador -, h neles uma larga tradio envolvida em sua preparao, que dispensa grandes dimenses de rea, valorizando-se mais a simplicidade e o carter rstico. Os materiais utilizados buscam uma identificao com a natureza: arranjos de rochas, caminhos de pedregulhos, pontes de madeira e pedra, lagos, alm das espcies vegetais. (MORSE, s/data).

    Na Frana, apesar desse pas constituir-se no bero da criao de uma legislao patrimonial, a noo de monumento natural e sua conseqente proteo institucional surgiram algumas dcadas depois, em 1930, por meio da lei de 02/05/30, que estendeu a proteo estatal aos chamados monumentos naturais e stios de valor artstico, histrico, cientfico, lendrio ou pitoresco. (MACHADO, 1986).

    Concomitantemente aparece tambm no Brasil, expressa na Constituio Federal, a preocupao com a proteo dos bens culturais e naturais. Kersten (2000) aponta que os primeiros esforos para institucionalizar a questo no Brasil vieram com a Constituio de 1934, na qual, pela primeira vez, apareceu definido o dever do Estado para com a proteo desses bens. Isso foi resultado, diz a autora, das foras polticas daquele momento que garantiram a participao na rea cultural de intelectuais oriundos do movimento modernista de 1922, entre os quais Mario de Andrade, chamado para elaborar o anteprojeto da primeira lei federal sobre proteo do patrimnio cultural. Paradoxalmente, foi numa conjuntura poltica caracterizada pelo autoritarismo - o Estado Novo sob o comando de Getlio Vargas, do qual resultou a Constituio de 1937 que houve um avano nessa questo, na medida em que a carta magna estabelecia pela primeira vez o termo monumento natural.

    Artigo 134: Os monumentos histricos, artsticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela

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    natureza, gozam de proteo e dos cuidados especiais da nao, dos Estados e municpios. Os atentados contra eles cometidos sero equiparados aos cometidos contra o patrimnio nacional. (BRASIL, 1937a)

    V-se assim que o patrimnio natural nasceu, tambm no Brasil, sob a designao de monumentos naturais, stios e paisagens naturais de feio notvel, como uma categorizao que qualificava o chamado monumento. H o monumento histrico, o artstico e o natural, todos fazendo parte de uma mesma preocupao nacional, digna de constar na lei maior do pas. Nesse mesmo ano houve a edio da primeira legislao federal especfica para a proteo do patrimnio, o Decreto-lei n 25, de 1937, que elevou os monumentos naturais qualidade de patrimnio nacional. Assim se v no artigo 1, que estabelece o conceito:

    Artigo 1 - Constitui o patrimnio histrico e artstico nacional o conjunto dos bens mveis e imveis existentes no pas e cuja conservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos memorveis da Histria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico... 2 - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e so tambm sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os stios e paisagens que importe conservar e proteger pela feio notvel com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indstria humana. (BRASIL, 1937b, grifo nosso).

    Nos vrios exemplos de legislao at aqui expostos, pode-se indagar: afinal, o que se entendia por monumentalidade do ponto de vista da natureza? O que h de comum entre os adjetivos histrico, artstico e natural que caracterizaram at ento os monumentos? Qual o significado da monumentalidade? H duas vises antagnicas do monumento natural. A viso oriental foca o monumento a partir de seu carter memorial, sua ligao com a tradio, os costumes, as lembranas coletivas. J a experincia francesa, que foi generalizada pelo mundo, associou monumento a sua expressividade esttica - grandiosidade e beleza , que pode estar presente nas obras de arte, nos edifcios histricos ou em

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    testemunhos da natureza. Em contrapartida, enfatizando o critrio esttico distanciou-se da relao de identidade estabelecida entre a sociedade e os objetos. A monumentalidade , assim, um trao que distingue o que considerado comum ou tpico, que muitas vezes o que guarda maior relao de identidade com as comunidades, daquilo que se reconhece hierarquicamente como superior: aquilo que tem valor. Outro elemento marcante dessa monumentalidade, do ponto de vista da natureza, o seu atrelamento a uma condio de rea inalterada, sua associao ausncia da ao humana. Isto aparece no momento em que a noo de monumento natural oficializada por meio da Conveno para a Proteo da Flora, da Fauna e das Belezas Cnicas Naturais dos Pases da Amrica, estabelecida em 1940 e referendada no Brasil atravs do Decreto Legislativo n 3, de 13/02/48.

    Monumento natural As regies, os objetos ou as espcies vivas de animais ou plantas, de interesse esttico ou valor histrico ou cientfico, aos quais dada proteo absoluta, a fim de conservar um objeto especfico ou uma espcie determinada de flora ou fauna, declarando uma regio, um objeto ou uma espcie isolada, monumento natural inviolvel, exceto para a realizao de investigaes cientficas devidamente autorizadas ou inspees oficiais. (BRASIL, 1948).

    Constata-se que o monumento natural tem ainda nessa definio um carter bastante abrangente, podendo variar entre um territrio delimitado at uma espcie viva, animal ou vegetal. Mas, ao designar o monumento natural como inviolvel e indicar apenas a pesquisa cientfica e a fiscalizao como atividades permitidas nessas reas, a Conveno formalizou uma concepo que aparece como resultado da exportao para o mundo do modelo do conservacionismo norte-americano que fundamentou a criao dos parques nacionais como lugares de vida selvagem onde o homem apenas visitante (DIEGUES, 1996).

    H ainda outra importante questo a ser discutida. Nos quatro exemplos apresentados constata-se que a preocupao com o monumento natural apareceu historicamente entre o final do sculo XIX e primeiras dcadas do XX, evocada a partir do interesse pelos bens culturais, o que leva a pergunta: o que teria aglutinado

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    essas duas questes em torno de uma s preocupao? Poder-se-ia pensar na percepo da natureza como parte da histria humana?

    nessa perspectiva que Sitte (1992), arquiteto de grande influncia no urbanismo moderno europeu das primeiras dcadas do sculo XX, entendia a natureza nas cidades. O autor chamava ateno para a dimenso esttico-artstica da cidade, para alm de um simples artefato ou objeto, e ponderava, tambm, sobre a proteo de centros histricos. Para ele o indivduo urbano apresentava-se vido pela natureza e esta guardava para as cidades uma funo esttica, alm da importncia sanitria. Uma simples rvore, por exemplo, para ele fazia parte de uma imagem urbana e por isso deveria ser poupada como uma venervel esttua da histria ou da arte. Criticando o projeto urbano moderno que, ao invs disso, era capaz de destruir estes referenciais da cidade, ele acrescentava e enfatizava uma viso de natureza integrada vida humana: ao lembrar de que em algumas praas de grandes cidades antigas, como Roma e Constantinopla, foram preservadas velhas rvores, o autor afirma que: Tais rvores, remanescentes, so resqucios da histria e da poesia populares, cujos galhos aninharam o esprito potico desde as trovas cortess at os nossos dias [...] (SITTE, 1992, p.170). As idias pioneiras desse autor no representam a concepo da relao homem-natureza presente no pensamento hegemnico do fim do sculo XIX e incio do XX, mas antecipam o sentido mais contemporneo de um patrimnio natural visto a partir das prticas sociais.

    Acredita-se que o que realmente conjugou o histrico e o natural numa s idia de monumento foi o entendimento do papel social de sua proteo, uma ao que envolveria um interesse coletivo e que, portanto, necessitaria de uma interveno do Estado.

    O patrimnio natural monumental

    Foi sob o enfoque do monumento, a partir de caractersticas como o valor esttico e o carter inviolvel, que a noo de patrimnio natural foi formulada e consagrada internacionalmente. Isso se deu por meio da Conveno do Patrimnio

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    Mundial, Cultural e Natural, documento da Unesco resultado da realizao de uma conferncia em Paris, no ano de 1972. Mas, se por um lado, o monumento natural apareceu como o antecessor e fundador da idia de patrimnio natural, com o advento da conveno ele no caiu no desuso, ao contrrio, evoluiu e fortaleceu-se como uma categoria especfica de rea protegida. Em 1978, a UICN props e, em 1994, revisou e atualizou um sistema normativo de reas protegidas, considerado um parmetro para essa questo no mundo. Nesse documento o monumento natural recebeu uma conceituao que lhe garantiu um carter mais circunscrito que o anterior, pois foi definido como uma rea que contm uma ou mais caractersticas naturais/culturais especficas de valor relevante ou excepcional por sua raridade implcita, suas qualidades representativas ou estticas ou sua importncia cultural. (UICN, 1998, p.198). Ao contrrio de seu antecessor, o patrimnio natural da Unesco que havia sido includo na primeira proposta desse sistema internacional como uma categoria especfica de rea protegida, na reviso feita em 1994 foi excludo. Considerou-se que o patrimnio natural e as Reservas de Biosfera eram designaes internacionais e no propriamente categorias de manejo autnomas. Embora a sua excluso no acarrete prejuzos gesto dessas reas, a conseqncia perversa constituiu-se pelo fato do sistema proposto pela UICN ter se tornado um modelo que foi copiado por vrios pases. No caso do Brasil, por exemplo, o Sistema Nacional de Unidades de Conservao (SNUC) constitudo legalmente e fortemente inspirado nesse modelo internacional tambm excluiu os patrimnios naturais tombados, tendncia que se espalha pelos estados.6 O nascimento da idia de um patrimnio universal fez parte de um contexto de mundializao de valores ocidentais, que se iniciou no perodo ps-segunda guerra. A Conveno do Patrimnio foi um dos principais veculos que generalizaram para o mundo prticas preservacionistas gestadas na Europa e nos EUA, difundidas principalmente por meio dos critrios e da conceituao estabelecidos nesse documento internacional.

    6 Para constatao observar a Proposta para discusso do Sistema Estadual de Unidades de

    Conservao , elaborado pelo governo paulista (Secretaria de Meio Ambiente, 1998).

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    Apesar de a conveno ter se constitudo como fato relativamente contemporneo, a Unesco, formada em 1946 como o organismo da ONU encarregado de gerir as questes relativas educao e cultura no mundo, j tinha uma atuao nessa rea muito antes disso.7

    O que explica essa preocupao ter se tornado mundial nos anos 1970 o fato de que processos como a expanso da industrializao e da urbanizao, a modernizao da agricultura e ampliao de fronteiras agrcolas, a necessidade de implantao das infra-estruturas como rede de estradas e represas, implicavam muitas vezes presso sobre o patrimnio. Nas palavras da coordenadora da rea de cultura e patrimnio da Unesco no Brasil, arquiteta Jurema Machado8, a constatao dos rumos dessa modernizao e de que os governos locais eram incapazes de conservar esse patrimnio foi o grande motivador da criao da conveno, em 1972. Um caso particular incentivou a discusso: a construo da represa de Assu, no Egito, que inundaria os monumentos de Abu Simbel9. Surgiu, assim, a idia de um patrimnio mundial cuja ateno e zelo faziam parte de um interesse supranacional.

    Segundo a Conveno do Patrimnio Mundial o patrimnio cultural foi definido como os monumentos, as obras arquitetnicas ou de artes plsticas, as estruturas arqueolgicas, os conjuntos urbanos e lugares notveis. J o patrimnio natural foi estabelecido como as formaes fsicas, biolgicas, geolgicas e fisiogrficas, as zonas de habitat de espcies ameaadas e novamente os lugares notveis.

    Pode-se notar que estes se configuravam at ento como critrios muito gerais para o reconhecimento de bens.

    7 Em 1956 foi criado o Iccrom (Centro Internacional de Estudos para a Conservao e Restaurao

    dos Bens Culturais), uma organizao intergovernamental para a pesquisa sobre o assunto. Quase uma dcada depois um outro organismo internacional voltado a esta temtica foi formado, o Icomos (Conselho Internacional de Monumentos e Stios), constitudo por especialistas de vrios pases, sem vnculo governamental. Segundo Mayume (1999) atravs de misses empreendidas por estes organismos, assim como da OEA (Organizao dos Estados Americanos) e da prpria Unesco, foram disseminadas pelo mundo as prticas relacionadas ao patrimnio e preservao. 8 Palestra realizada no Seminrio Internacional de Preservao e Recuperao do Patrimnio

    Cultural, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura e Arquivo do Estado em maio/2002. 9 E que foram salvos da inundao das guas da represa por uma operao internacional que os

    deslocou para setores mais elevados.

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    Artigo 2. Para os fins da presente conveno sero considerados como patrimnio natural: - os monumentos naturais constitudos por formaes fsicas e biolgicas ou por grupos de tais formaes, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista esttico ou cientfico; - as formaes geolgicas e fisiogrficas e as reas nitidamente delimitadas que constituam o habitat de espcies animais e vegetais ameaadas e que tenham valor universal excepcional do ponto de vista da cincia ou da conservao; - os stios naturais ou as zonas naturais nitidamente delimitadas, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista da cincia, da conservao ou da beleza natural. (UNESCO, 1985, p. 2/3).

    Em ambos os casos os bens deveriam ser expresso de um valor universal excepcional, que no caso do patrimnio natural deveria se expressar do ponto de vista esttico, cientfico e da conservao. At esse momento, a definio do que deveria ser um valor universal excepcional encontrava-se de maneira pouco esclarecida, dificultando assim a sua prpria aplicao. Como diferenciar o que tinha valor universal, nacional, regional ou local? A conveno era omissa quanto a isso.

    O que se pode afirmar com relao conveno e no que diz respeito ao patrimnio natural que ela reafirmou uma noo ligada s questes da esttica da paisagem, de valor cnico, portanto, enfatizando os aspectos formais. Este j era, inclusive, objeto de preocupao da Unesco desde os anos 1960, ocasio em que a organizao elaborou, a partir de uma reunio geral em 1962, o documento intitulado Recomendao relativa salvaguarda da beleza e do carter das paisagens e stios.

    Esse documento, apesar de no utilizar explicitamente o termo patrimnio natural, pode ser considerado o precursor da questo, uma vez que ressaltou a proteo de paisagens e stios como de interesse cultural e enfatizou a relao existente entre a degradao dessas reas e empobrecimento do patrimnio cultural.

    Considerando que em todas as pocas o homem algumas vezes submeteu a beleza e o carter das paisagens e stios que fazem parte do quadro natural de sua vida a atentados que empobreceram o patrimnio cultural, esttico e at mesmo vital de regies inteiras, em todas as partes do mundo [...]

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    Considerando que, por sua beleza e carter, a salvaguarda das paisagens e dos stios definidos pela presente recomendao necessria vida do homem, para quem so um poderoso regenerador fsico, moral e espiritual e por contriburem amplamente para vida artstica e cultural dos povos, como o demonstram inmeros exemplos universalmente conhecidos [...] (UNESCO, 1995, p.97).

    Dentre diversas recomendaes, o documento preconizou medidas de garantia para as paisagens, entre elas a incluso no planejamento urbano e regional, a criao de parques e reservas naturais, a proteo legal por zonas ou por stios isolados, iniciando uma discusso que, dez anos mais tarde, se consolidou na Conveno do Patrimnio Mundial.

    Portanto, mais uma vez, pode-se perceber que foi no mbito da discusso sobre cultura e sobre polticas culturais que se esboou e se manifestou a preocupao com o patrimnio natural e a busca de sua conceituao.

    Mas a Conveno do Patrimnio avanou em relao discusso da Recomendao de 1962, introduzindo um elemento novo para alm da valorizao desse critrio esttico, uma viso sistmica relativa ao funcionamento e as relaes entre os elementos da natureza. Isto se percebe claramente no segundo item, o qual vincula o valor universal no s a beleza, mas a importncia para a cincia e para a conservao. Pode-se dizer que entra em cena o critrio ecolgico.

    De maneira geral esse interesse internacional expresso nos dois documentos da Unesco encaixou-se numa conjuntura de expanso mundial da questo patrimonial a partir da dcada de 1960, fenmeno que Choay (2001) denomina de metamorfose quantitativa do culto ao patrimnio. Trata-se tambm de um momento de reviso de conceitos e de prticas que amplia o significado de patrimnio cultural, do ponto de vista tipolgico e do ponto de vista cronolgico. Na Frana, isso culmina com a admisso de novas categorias de bens.

    [...] um mundo de edifcios modestos, nem memoriais, nem prestigiosos, reconhecidos e valorizados por disciplinas novas como a etnologia rural e urbana, a histria das tcnicas, a arqueologia medieval, foram integrados ao corpus patrimonial. (CHOAY, 2001, p. 09).

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    Alm disso, passou-se a reconhecer valor em testemunhos de um tempo mais presente, ultrapassando a associao da importncia histrica com o carter de antiguidade do patrimnio, representando uma expanso do campo cronolgico. Houve tambm uma significativa ampliao geogrfica desse patrimnio representada na abrangncia mundial da Conveno, que rompeu os limites da Europa, onde se encontrava circunscrita.

    Essa reviso de significados do patrimnio como um movimento contemporneo possibilitou a incorporao definitiva da natureza s polticas culturais, em escala internacional.

    Se, antes, o monumento natural j se configurava como parte do universo cultural, a partir dos anos 1970 a instituio da idia de patrimnio natural pela Unesco marcou o advento de um novo momento na tutela do patrimnio para o qual no devem restar mais dvidas, conforme coloca a Secretaria da Conveno do Patrimnio da Unesco.

    O carter desta Conveno sumamente original e consagra novas e importantes idias. Ela liga as noes de natureza e cultura, at agora vistas como diferentes e, mais do que isso, antagnicas. De fato, durante muito tempo natureza e cultura se opunham: o homem devia conquistar uma natureza hostil, enquanto a cultura simbolizava os valores espirituais. Mas, na verdade, natureza e cultura se complementam: a identidade cultural dos povos forjada no meio em que vivem e, em geral, parte da beleza das mais belas obras criadas pelo homem provm exatamente da integrao com o lugar em que se encontram.(UNESCO, 1985, p.1).

    Cabe ressalvar que, apesar de a Conveno, numa iniciativa pioneira, evidenciar um consenso internacional dessa relao intrnseca entre natureza e cultura, Silva, F.F. (2003) destaca que durante os trabalhos preparatrios desse documento alguns pases - em particular ustria, Estados Unidos e Reino Unido - colocaram-se contrrios a essa idia propondo a separao das tutelas, posio que foi descartada na elaborao final do documento.

    Como j foi dito, as primeiras definies contidas na Conveno do Patrimnio Mundial, eram ainda muito genricas no que dizia respeito ao valor universal que os bens deveriam expressar. Somente a partir em 1977 elas foram

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    detalhadas por meio do documento intitulado Diretrizes Operacionais para Implementao do Patrimnio Mundial, o que permitiu a realizao das primeiras inscries de bens na Lista do Patrimnio Mundial (UNESCO, 2005).

    No caso do patrimnio natural, reforaram-se os trs critrios norteadores do reconhecimento do valor universal: o esttico, o ecolgico e o cientfico. O valor esttico foi expresso nas paisagens notveis e de extraordinria beleza natural ou em condio de exceo. Como exemplos de bens reconhecidos sob esta justificativa podem ser citados o Parque Nacional de Iguau, no Brasil, e Parque Nacional de Los Glaciares, na Argentina.

    O valor ecolgico, atualmente vinculado conservao da biodiversidade, correspondia importncia dos stios como habitat de espcies em risco de extino ou como detentoras de processos ecolgicos e biolgicos importantes, como o caso de remanescentes da Mata Atlntica na Costa do Descobrimento, situados em territrio brasileiro, nos estados da Bahia e do Esprito Santo. J o valor cientfico manifestava-se em reas que continham formaes ou fenmenos naturais relevantes para o conhecimento cientfico da histria natural do planeta, como por exemplo, as Montanhas Rochosas nos EUA e Canad.

    Outra condio essencial para o reconhecimento desse patrimnio era o estado de integridade dos bens. Deste modo, pelo critrio esttico uma rea guardaria condies de integridade se houvesse a preservao no somente do atributo em si, mas de todas as condies para a sua formao. Por exemplo, no caso de quedas dgua a integridade do bem pediria a preservao da bacia que a alimenta. Pelo critrio ecolgico, a rea apresentaria condies de integridade se inclusse toda a gama de processos essenciais ao ecossistema. Assim, um fragmento de Mata Atlntica deveria conter certa quantidade de variao topogrfica, pedolgica, hidrogrfica e de estgios sucessionais.

    A garantia de integridade, para o critrio cientfico, pediria que a rea contivesse a totalidade ou maior parte de elementos interdependentes em suas relaes naturais. Stios vulcnicos deveriam conter toda a srie de tipos de erupo e de rochas associadas. Para o caso das geleiras, deveriam incluir desde o campo

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    de neve, o glaciar, as formas de eroso glacial e as reas de depsito e colonizao vegetal.

    Dois aspectos destas exigncias merecem ser destacados: de um lado as condies rgidas para o reconhecimento deste patrimnio natural no levam em conta o grau de degradao do planeta, que diferenciado, e que pode tornar uma rea remanescente num verdadeiro fragmento de exceo, mesmo que este no inclua toda a variedade de elementos e processos solicitados nas diretrizes.

    Alm disso, o grau de integridade exigido pede que se pense em escalas territoriais de grande amplitude. No deveria haver uma associao necessria entre valor universal e reas de grande extenso, uma vez que se deixa de atentar para a importncia de pequenas reas, tais como mini-enclaves ecolgicos, testemunhos de processos naturais antigos ou de paleoclimas ou at mesmo representativos de determinados endemismos, como destacaram AbSaber e Lutzemberg10 num debate realizado em 1987 sobre o patrimnio natural. Ambos enfatizaram que a viso de escala no pode ser burocrtica, definida por um a priori baseado em quilometragem. Ambos citam exemplos de formaes residuais que ocupam reas restritas, mas que tm uma grande importncia para o conhecimento de fenmenos naturais que fazem parte do conjunto da histria natural do planeta.

    Constata-se nessa viso rgida de integridade de bens aquele carter inviolvel presente na idia de monumento, a sua associao a lugares selvagens, onde a presena humana s admitida na forma de espectador e visitante. Portanto, o patrimnio natural expressa claramente a influncia norte-americana de concepo de reas protegidas.

    Para Lefeuvre (1990) a Conveno do Patrimnio evidencia uma estratgia elitista de excepcionalidade e raridade que, apesar de necessria num momento da histria, no foi suficiente no trato da questo, pois no basta apenas preservar esta ou aquela reserva natural deixando a expanso da urbanizao e industrializao no mundo ocorrer de forma desordenada, sem critrios. Para ele essa estratgia reforou a idia de que existem duas categorias de naturezas: uma de valor a

    10 Mesa Redonda Patrimnio Natural, in Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, n. 22,

    IPHAN, 1987.

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    preservar, a verdadeira natureza como aquela no socializada, a natureza natural, e outra que a ela se ope, a natureza ordinria, aquela que pode ser degradada.

    Nessa escala de valores um remanescente de vegetao nativa deve ser intocvel, enquanto uma rea verde urbana, implantada, porm de uso e apropriao social intensa, pode ser eliminada ou reduzida, pois hierarquicamente inferior. essa lgica de valores, que estabelece uma natureza de maior importncia e uma natureza inferior, que tem justificado a eliminao de tantas reas verdes nas cidades sob o pretexto de no constituir cobertura vegetal nativa.

    importante questionar tambm os critrios que norteiam a definio do valor para o patrimnio cultural mundial. Nesse caso eles refletem claramente a experincia francesa, estabelecida desde o sculo XIX, na instituio da proteo do patrimnio nacional, na qual a monumentalidade e a excepcionalidade eram definidas como caractersticas essenciais para o reconhecimento. De acordo com Choay (2001), com o estabelecimento dessas definies num documento internacional, proclamou-se, assim, a universalidade do sistema de pensamento ocidental para a questo.

    Baseado nessa experincia atrelou-se como condio essencial para o reconhecimento dos bens culturais a autenticidade do desenho, do material, da tcnica e do contexto11. Portanto, identificando nas caractersticas concretas desses bens o seu verdadeiro significado e importncia. Sob o signo dessa viso ocidentalizada de autenticidade que se produziu uma hegemonia europia na Lista do Patrimnio Mundial, o que ser demonstrado no captulo a seguir.

    Mayume (1999), em sua anlise sobre as experincias de preservao no Brasil e no Japo, critica a possibilidade de existncia de critrios nicos e universais para definio do que autntico.

    Um templo japons que foi conservado s custas de incontveis substituies das suas peas de madeira pode ser considerado original, mesmo quando todas as suas peas j tiverem sido substitudas, e nenhuma original restar? A autenticidade de arquiteturas diferentes, de pases diferentes, pode ser avaliada segundo o mesmo critrio? (MAYUME,1999:5).

    11 Artigo 24, item b-1 do documento Diretrizes Operacionais para Implementao da Conveno do

    Patrimnio (UNESCO, 2005).

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    Assim como no caso do patrimnio cultural em que no h como nivelar sob o mesmo parmetro diferentes contextos scio-culturais, para o patrimnio natural cada realidade nacional espelha uma relao histrica entre sociedade e natureza, de forma que um nico critrio de integridade no pode ser aplicado a essa diversidade de situaes.

    1.2 O patrimnio natural e as prticas sociais

    A anlise mostrou at aqui que a trajetria da idia de patrimnio natural, como derivada do patrimnio cultural, evidencia a predominncia do discurso da monumentalidade no plano mundial. O patrimnio firma-se como expresso de grandiosidade e beleza e pressupe a intocabilidade, ou seja, os grandes testemunhos da natureza que foram poupados da interveno humana. Viu-se tambm que o patrimnio guarda uma legitimidade dada pelo discurso tcnico-cientfico dos organismos internacionais. Nessa dimenso, o reconhecimento pblico direto e inquestionvel.

    Entretanto, analisando as prticas de proteo do patrimnio no Brasil em mbito local, verifica-se que aparece uma outra forma de entendimento na qual esse patrimnio manifesta-se como algo que conquistado por meio da luta e da organizao social, configurando uma noo ligada s prticas sociais e memria coletiva. Portanto, um patrimnio natural que antes de tudo faz parte da vida humana e no se ope a ela. Neste caso, a sua legitimidade passa pela discusso do valor social e afetivo que determinados grupos lhe conferem. A identificao dos valores do bem a preservar remete, assim, a um outro tipo de abordagem que leva em conta a relao dos grupos com o lugar, as prticas scio-espaciais e no simplesmente o discurso tcnico advindo da cincia ecolgica.

    Segundo Gonalves (2002), no Brasil o discurso do monumento coexistiu ao mesmo tempo com um outro, o discurso do cotidiano, disputando os dois uma condio de legitimidade. Enquanto o primeiro predominou nas primeiras trs a quatro dcadas da constituio do patrimnio nacional, o segundo manifestou-se

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    com maior fora somente no final dos anos 1970, momento em que o patrimnio ganhou tambm a dimenso da experincia pessoal e coletiva dos diversos grupos sociais. Fonseca (1996, 1997), em seu estudo sobre a proteo do patrimnio nacional realizada atravs do Iphan, mostrou que o perodo 1970-1990 foi marcado por mudanas significativas na concepo de patrimnio cultural, resultando na incorporao de novas categorias de bens que referenciavam diferentes etnias, exemplares da cultura popular e do mundo industrial e, tambm, os bens naturais. Identificou, alm disso, um aumento do nmero de pedidos para tombamento de bens feitos por grupos ou pessoas que no tinham vnculo com a instituio, denotando um maior interesse da sociedade, ou de segmentos sociais, com relao proteo do patrimnio cultural. Isso significava que comeava a haver o reconhecimento por parte da populao do patrimnio como um campo possvel para afirmao de outras identidades coletivas. 12 Isso se deu inclusive na esfera do patrimnio natural com ampliao da demanda social pelo tombamento de bens naturais13.

    Na esfera estadual de proteo ao patrimnio, Rodrigues, M. (2000) examinando a experincia paulista, tambm aponta para uma renovao conceitual ocorrida nesse momento. Ela aparece como resultado, de um lado, da realizao, em 1974, de um curso com especialistas estrangeiros, que abriu perspectivas no tratamento conceitual ao propor o patrimnio como um fato cultural composto por trs categorias de elementos: o meio ambiente, o conhecimento e os objetos fabricados pelos homens.

    A autora enfatiza, ainda, que nesse contexto de debates foi institudo uma nova noo, a de patrimnio ambiental urbano, abrindo perspectivas para a renovao do significado que at ento se reconhecia para o patrimnio cultural. O patrimnio ambiental urbano foi adotado na rea de planejamento urbano, junto ao

    12 No entanto, a autora concluiu que tais mudanas no foram suficientes ainda para representar a

    pluralidade cultural nacional e nem para diminuir as distncias entre a instituio e a sociedade, uma vez em que continuaram persistindo os critrios tradicionais de valorao dos bens, que enfatizavam os aspectos formais. 13

    Segundo Fonseca (1997) cerca de 30 processos abertos no perodo de 1970 a 1990.

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    Programa de Preservao e Revitalizao do Patrimnio Ambiental Urbano14 e tambm passou a ser referenciado em estudos e propostas internas ao Condephaat. Segundo a autora, o programa significou a possibilidade efetiva de transformao da prtica preservacionista, numa perspectiva que nem mesmo internacionalmente havia sido consagrada. O patrimnio ambiental urbano substituiu a monumentalidade por novos valores. O valor histrico passou a contemplar no unicamente a perspectiva da tradio proclamada das elites e dos heris, mas outros sujeitos histricos. Os valores social e afetivo passaram a representar o papel que os bens adquiriram no tecido social. Carlos Lemos, ento arquiteto do servio tcnico do Condephaat, em debate sobre o patrimnio cultural realizado em 1978 (EMPLASA, 1978, p.9), assim definiu:

    [...] nosso patrimnio ambiental urbano no composto apenas de monumentos histricos e artsticos. fundamentalmente composto de uma grande massa de bens culturais tpicos, normais, comuns, cotidianos, que, eles sim, representam alguma coisa no contexto urbano. Os bens histricos e artsticos quase todos so exceo. Percebemos que um dos interesses maiores quanto conservao do patrimnio ambiental urbano a conservao da inteligibilidade do espao urbano, a compreenso da cidade, a leitura da cidade. s vezes essa leitura feita somente atravs de coisas normais, comuns, sem maior importncia, se for cada uma delas considerada isoladamente, e no atravs dos bens excepcionais.

    Alm dessa nova noo aproximar o patrimnio da experincia de vida coletiva, da dimenso do cotidiano, proporcionou um outro desdobramento na medida em que considerou a importncia dos bens e artefatos, para alm de si mesmos, incorporando o ambiente no qual foram produzidos e que com ele guardavam uma relao, abrindo a perspectiva de se pensar a natureza como parte deste.

    O conceito de patrimnio ambiental urbano procurava sintetizar elementos diversos, as ruas, as casas, a paisagem, de modo a compor a um s tempo o quadro material que d suporte memria e permite preservar o meio ambiente.(RODRIGUES, 2000, p.87).

    14 Programa desenvolvido pela Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de So Paulo.

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    Essa nova concepo foi tambm incorporada ao quadro conceitual do Condephaat e foi fundamental para o fortalecimento das prticas na rea de patrimnio natural. A partir da um novo segmento do patrimnio cultural passou a ser admitido com legitimidade. O patrimnio cultural passou a ser definido em duas dimenses: as obras, os artefatos, os bens materiais e a natureza, como objeto de ao cultural, matria primeira a partir da qual a cultura produzida. Isso se observa no documento aprovado pelo rgo em 1984 e intitulado Diretrizes para a formulao de uma poltica de atuao do Condephaat. Dentre as premissas constantes neste, destaca-se:

    Finalmente, deve-se esclarecer que a noo de patrimnio cultural inclui tanto produtos da ao humana, quanto da natureza, j que a apropriao social que unifica e permite entender, por exemplo, artefatos e paisagens. H porm diferenas operacionais importantes, pois, no caso dos bens naturais, os valores aderem a organismos vivos e a sistemas, colocando delicados problemas de manejo, para garantir ao mesmo tempo os diversos usos desses organismos e sistemas, sua dinmica prpria e a permanente disponibilidade dos valores que eles representam. (CONDEPHAAT, 1984)

    No Condephaat, a referncia ao patrimnio natural feita sob a forma de reas naturais tombadas ou bens naturais. Essa terminologia foi amplamente utilizada a partir dos anos 1980, momento em que o rgo avanou com profundidade na questo - assunto que ser abordado ao longo no captulo 4. As primeiras experincias, no entanto, mostram que a origem da idia de patrimnio natural encontra-se na preocupao com a paisagem, uma vez que era assim que a legislao colocava a questo.

    A paisagem como patrimnio natural

    A Constituio do Estado de So Paulo de 1967, em seu artigo 128, estabelecia no interior do amparo estatal cultura: a proteo do patrimnio histrico, arqueolgico, artstico e monumental e a preservao dos locais de interesse turstico e de beleza particular. Assim tambm se apresentava a legislao que regulamentava a matria, a lei estadual n 10.247 de 22/10/1968 que,

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    originariamente, dispunha sobre a competncia do Condephaat. Esse diploma legal institua, em seu artigo 2, a competncia do rgo na proteo de recantos paisagsticos. A paisagem, desde a dcada de 1960, aparece assim como um bem digno de proteo estatal.

    Desde a sua fundao, em 1969, o Condephaat tombou vrios bens sob o enf