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 A CONSTRUÇÃO DOS TEMPOS ESCOLARES Claudia da Mota Darós Parente * RESUMO: O presente estudo analisa a concepção de tempo, considerando sua construção sócio-histórica e cultural. Apresenta algumas heranças dos tempos escolares, mostrando que estes são construções humanas e, por isso mesmo, passíveis de transformações. Os tempos escolares fazem referência ao início e à duração da escolarização (tempos de escola); à organização da escolarização (tempos de escolarização); às construções conso- lidadas no interior das instituições escolares (tempos na escola). Ao apresentar a abran- gência da noção de tempos escolares, o presente estudo incita a busca de inovações polí- ticas e escolares que produzam alternativas aos tempos escolares vigentes e indica a necessidade de construir tempos escolares mais humanos, mais atentos às necessidades dos sujeitos da educação. Palavras-chave:  Tempo Escolar; Política Educacional; Org anização Escolar. THE CONSTRUCTION OF SCHOOL TIMES ABSTRACT:  This study examines the concept of time, g iven its socio-historical and c ul- tural construction. It presents some legacies of school time, showing that these are human constructions and therefore are subject to change. The school time refers to the starting and the duration of schooling (school term), the organization of schooling (schooling time), and the consolidated constructions within the educational institutions (school time). In presenting the scope of the concept of school time, this study encour- ages the pursuit of innovation and educational policies that produce alternatives to the current school time and indicate the build a more humanistic and careful school approach towards the needs of the educational subjects. Keywords: School Time; Educational Policies; School Organization. 135 Educação em Revista | Belo Horizonte | v.26 | n.02 | p.135-156 | ago. 2010 * Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Professora Adjunta do Departamento de Educação do Campus Prof. Alberto Carvalho da Universidade Federal de Sergipe (UFS); Líder do Grupo de Pesquisa em Avaliação, Política, Gestão e Organização da Educação (APOGEU). E-mail: [email protected]

A Construção Dos Tempos Escolares

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A construção dos tempos escolares

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  • A CONSTRUO DOS TEMPOS ESCOLARES

    Claudia da Mota Dars Parente*

    RESUMO:O presente estudo analisa a concepo de tempo, considerando sua construoscio-histrica e cultural. Apresenta algumas heranas dos tempos escolares, mostrandoque estes so construes humanas e, por isso mesmo, passveis de transformaes. Ostempos escolares fazem referncia ao incio e durao da escolarizao (tempos deescola); organizao da escolarizao (tempos de escolarizao); s construes conso-lidadas no interior das instituies escolares (tempos na escola). Ao apresentar a abran-gncia da noo de tempos escolares, o presente estudo incita a busca de inovaes pol-ticas e escolares que produzam alternativas aos tempos escolares vigentes e indica anecessidade de construir tempos escolares mais humanos, mais atentos s necessidadesdos sujeitos da educao. Palavras-chave: Tempo Escolar; Poltica Educacional; Organizao Escolar.

    THE CONSTRUCTION OF SCHOOL TIMESABSTRACT: This study examines the concept of time, given its socio-historical and cul-tural construction. It presents some legacies of school time, showing that these arehuman constructions and therefore are subject to change. The school time refers to thestarting and the duration of schooling (school term), the organization of schooling(schooling time), and the consolidated constructions within the educational institutions(school time). In presenting the scope of the concept of school time, this study encour-ages the pursuit of innovation and educational policies that produce alternatives to thecurrent school time and indicate the build a more humanistic and careful schoolapproach towards the needs of the educational subjects.Keywords: School Time; Educational Policies; School Organization.

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    * Doutora em Educao pela Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Professora Adjuntado Departamento de Educao do Campus Prof. Alberto Carvalho da Universidade Federal de Sergipe (UFS); Lder do Grupo dePesquisa em Avaliao, Poltica, Gesto e Organizao da Educao (APOGEU). E-mail: [email protected]

  • Introduo

    O presente artigo discorre inicialmente sobre a categoria tempo,ressaltando sua funo simblica reguladora e destacando-o como constru-o scio-histrica e cultural. Tal argumento sustenta as transformaes daescola ao longo da histria, sendo possvel compreender melhor as configu-raes dos diferentes tempos escolares apresentados ao longo do texto: tem-pos de escolas, tempos de escolarizao, tempos na escola.

    A partir disso, discute as muitas naturalizaes ainda existentesem relao aos tempos escolares, fazendo com que escolas e sujeitos re-produzam lgicas e modelos provenientes de outras pocas, muitas vezespouco associadas s necessidades histricas dos sujeitos da educao.

    Deixar vir tona os diferentes tempos escolares que esto pre-sentes no cotidiano das instituies, alm de possibilitar a captao daslgicas que regem tais tempos, sugere reflexes sobre os condicionantesdos tempos escolares. Por que alterar o incio de entrada na escola? Porque ampliar a escolarizao? Por que organizar a escolarizao de formaseriada? Por que organizar a escolarizao com base nos ciclos de forma-o? Por que alterar os tempos dos sujeitos da escola? Por que refletirsobre os tempos pedaggicos presentes na escola?

    Afirmar que os tempos escolares so construes histricas,sociais e culturais significa entend-los em sua complexidade e dialeticida-de; significa compreender que existem motivaes para as formas presen-tes e possibilidades para as formas futuras. Significa ainda compreenderos sujeitos da educao como seres histricos, sociais e culturais, imersosno processo de construo. Por ltimo, significa desejar que os temposescolares sejam construdos por meio de um olhar mais atento aos sujei-tos das prticas educativas.

    Tempo: uma construo scio-histrica e cultural

    As muitas terminologias lingusticas do nosso cotidiano tempo-ral ilustram a naturalidade com que fomos aprendendo a entender otempo, sem perceber os seus condicionantes e o processo scio-histricoe cultural de sua construo. o tempo que voa, a necessidade decorrer contra o tempo, pois no possvel parar no tempo.

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  • Essa naturalidade de encarar o tempo decorre, em grande medi-da, das transposies temporais. Existem processos naturais e biolgicosque condicionam certos tempos. As prticas humanas, alm de interferi-rem nesses tempos, criam outros.

    A categoria tempo aqui definida como conceito histrico, sociale cultural. Aceitar essa premissa significa aceitar que a noo de tempono elemento a priori, ou seja, que existe assim como os diversos elemen-tos da natureza. Significa ainda aceitar que a noo de tempo elementoda criao humana e tem passado por inmeras transformaes ao longoda histria.

    De acordo com Elias (1998), o tempo um smbolo humano uti-lizado por determinado grupo, a partir de instrumentos e processospadronizados para servir de quadro de referncia e padro de medida. Osrelgios exercem essa funo. Conforme o autor, a noo de tempo umaconstruo que o indivduo vai aprendendo medida que se relacionacom seus pares. O tempo, por isso, tem funo simblica reguladora. Osseres humanos possuem alto nvel de organizao proveniente, entreoutros aspectos, da capacidade que tm de se comunicar por intermdiode smbolos sociais especficos, como o caso da noo de tempo.Conforme esta vai sendo assumida individualmente, a funo reguladorafaz com que o indivduo pense que as sequncias dos acontecimentos fsi-cos, pessoais e sociais fazem parte de sua prpria natureza, ou seja, daprpria natureza humana, levando-o a certo carter paradigmtico de talnoo.

    De acordo com o autor,

    O indivduo no tem capacidade de forjar, por si s, o conceito de tempo.Esse, tal como a instituio social que lhe inseparvel, vai sendo assimiladopela criana medida que ela cresce (...) ao crescer, com efeito, toda crianavai-se familiarizando com o tempo como smbolo de uma instituio socialcujo carter coercitivo ela experimenta desde cedo (ELIAS, 1998, p. 15).

    certo, portanto, que a noo de tempo na histria da humani-dade nunca foi a mesma. O conceito de tempo contemporneo, confor-me o autor citado, exige alto nvel de abstrao e sntese. Quando o indi-vduo das sociedades primitivas tinha como referncia seus processos bio-lgicos (fome, sede, sono, por exemplo), a noo do quando ainda eramuito difusa. A formao de sociedades mais complexas deu margem

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  • necessidade de sincronizar e mensurar o tempo. A necessidade de deter-minao do tempo para produo de alimentos por meio da agricultura exemplo disso. A mensurao e a sincronizao do tempo foram poss-veis, primeiramente, tomando-se como referncia os processos da nature-za, como o movimento da Terra e as fases da Lua, por exemplo. Porm,a determinao do tempo, medida que as sociedades tornaram-se maiscomplexas, sofreu cada vez maior influncia da padronizao social, aindaque tenha como referncia mnima os processos naturais.

    Thompson (1998) enfatiza que a noo de tempo no linear eexata. No possvel simplesmente dizer que o tempo, nas sociedadescomplexas, ganha nova perspectiva, mais elaborada e mais premente doque nas sociedades primitivas. A questo-chave, para esse autor, est muitomais associada natureza do trabalho do homem em cada sociedade e emcada momento histrico.

    Entre os povos primitivos, a medio do tempo est comumen-te relacionada aos processos familiares no ciclo do trabalho a ser realiza-do. Essa medio, sem o relgio, s possvel em pequenas comunidades,com estrutura de mercado e administrao mnimas. Aqui, o tempo estcondicionado pelas diferentes situaes de trabalho e pela relao com osritmos naturais: mar, seca, terra, chuva, etc.

    O que ocorre que, nas sociedades industriais, de forma geral, otempo vira moeda, ganha valor e o que conta no mais o valor das tare-fas e, sim, o valor do tempo. O relgio passa a ser o regulador dos novosritmos da vida industrial e tambm objeto de necessidade para a emergn-cia do capitalismo.

    O referido autor mostra que, quando no h o relgio ou algumcontrolando o tempo do trabalhador, h irregularidade na execuo dastarefas, dia a dia, semana a semana, ms a ms. Nessa fase, o homemdetm o controle de sua vida produtiva. Certamente, a industrializao esuas mquinas possibilitaram a disciplina do trabalho do homem. Noentanto, ressalta-se que essa padronizao da noo e do controle de tra-balho no pode ser generalizada para todas as sociedades e em todos ostempos, at porque, num mesmo tempo, as diferenas entre variados tiposde trabalho, no campo ou na cidade, so relevantes para a mensurao dotempo e da rotina do trabalho.

    Aceitando-se a noo de tempo histrico, social e cultural, pre-ciso aceitar que as estruturas, os processos e as formas de organizao

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  • social que utilizam a categoria tempo tambm passaram e passaro portransformaes. Isso significa aceitar a inter-relao do tempo scio-his-trico e cultural com o tempo escolar, objeto deste estudo.

    A construo dos tempos escolares

    Neste artigo, a referncia no a qualquer tempo. o tempoescolar, ou melhor, os tempos escolares e os tempos associados a eles. Aforma como a escola se organiza, ou seja, o seu tempo decorrente dasconstrues e necessidades histricas que a determinaram. Necessidadesadvindas do processos histricos, sociais e culturais. A escola brasileira uma construo que vem desde o incio de sua histria. Para este estudo,algumas heranas podem ser destacadas.

    Petitat (1994), ao discutir alguns aspectos histricos da evolu-o da escola, chama a ateno para a multiplicidade de elementos queinterferiram e interferem na organizao da instituio escolar e na cons-truo de sua funo. De acordo com o autor, h um elemento de contra-dio intrnseco escola, porquanto, ao mesmo tempo, reproduz e trans-forma. Reproduz e/ou transforma a partir de condies diversas, j quea cultura escolar organiza-se em subconjuntos scio-simblicos que sedefinem uns aos outros (PETITAT, 1994, p. 45). O autor enfatiza que astransformaes scio-histricas produziram determinantes na organiza-o temporal da escola.

    Na Idade Mdia, exemplifica o autor, inexistia hierarquia tempo-ral dos contedos, ritmo regulamentado e generalizado para todos, corres-pondncia idade/srie, estudos dirigidos a grupos etrios especficos, ava-liao como forma de seleo.

    A vida escolar no segue o ritmo de promoes anuais e de exames destina-dos a verificar a assiduidade do estudante e afast-lo em caso de mau resulta-do. De acordo com seus prprios desejos e ambies, e, sem dvida, tambmsegundo seus recursos financeiros, ele permanecer menos ou mais tempojunto a seu mestre (PETITAT, 1994, p. 60).

    Os processos seletivos eram de outra ordem, diferentes dosaspectos temporais rgidos que existem hoje na organizao escolar,aspectos esses produtores de processos excludentes. O prprio tempo de

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  • aprendizagem era outro. Lembre-se de que a entrada nas universidades dosculo XIV era feita a partir dos 12 anos de idade e o tempo de aprendi-zado variava conforme o ritmo do estudante.

    O autor refora ainda que, a partir dos sculos XV e XVI, iniciou-seprocesso lento e gradual de transformaes nas concepes e prticas tem-porais da escola. Os cursos livres aos poucos deram lugar graduao siste-mtica dos estudos em graus e em classes escolares, e as classes passaram ater mestres especficos. Cada vez mais a instituio escolar foi ganhando aforma como se apresenta na atualidade. E Petitat (1994) ressalta a contribui-o dos reformadores e dos jesutas nessa fase de reorganizao da escola.

    Nos primeiros tempos, so introduzidas somente trs ou quatro divises;depois, forma-se o hbito de destinar um mestre a cada uma delas. Contudo,o ensino continua a ser ministrado em uma nica pea, com as trs classesreunindo-se em torno de seus mestres em pontos diferentes da sala. Na lti-ma etapa desta evoluo so introduzidos tantos graus quanto anos de apren-dizagem, e cada classe passa a ter seu local e seu mestre especficos. (PETI-TAT, 1994, p. 78)

    E acrescenta:

    Depois, este tempo repartido em perodos anuais; horrios estritos e bemcarregados dividem as matrias pelos dias e horas. Relgios e sinetas, j pre-sentes no sculo XV e muito difundidos no sculo XVI, marcam agora as ati-vidades escolares. Os alunos dispem de um tempo limitado para assimilardeterminadas matrias, para entregar os temas e para apresentar-se aos exa-mes. (...) A seleo escolar passa a ser munida de bases institucionais, doenquadramento temporal e das relaes de imposio pedaggicas necessriasa seu desdobramento progressivo e contnuo (PETITAT, 1994, p. 79).

    durante a Idade Moderna que os aspectos temporais da esco-la vo ganhando maior visibilidade e, por isso, maior destaque na organi-zao da escola e da escolarizao.

    Neste momento, deseja-se ilustrar algumas heranas deixadaspelos jesutas pela influncia que tiveram na educao brasileira, desde osculo XVI; e as heranas deixadas por Comnio, desde o sculo XVII, apartir de sua Didtica Magna, pelos elementos temporais ento dissemina-dos, muitos deles presentes na escola atual.

    Com base nos estudos de Menezes (1999) e Ribeiro (1981), res-salta-se, sobretudo, a organizao temporal da educao jesutica, que

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  • trouxe uma ordenao estrutura dos nveis de ensino. Alguns aspectosdessa organizao podem ser destacados. Os estudos gerais daCompanhia eram organizados em sete classes, no tendo correspondn-cia com ano: Iniciao Gramtica Portuguesa; 3 Classe (Latim aPretrito); 2 Classe (Sintaxe a Slaba); 1 Classe (Construo e Retrica daLngua Latina); Filosofia; Teologia; Matemtica. Tais estudos sucediam osestudos elementares.

    As aulas tinham cinco horas dirias, sendo metade na parte damanh e metade na parte da tarde. Os alunos estudavam das 8h s 10h edas 15h s 17h, com trinta minutos para esclarecimento de dvidas, nofinal da manh e da tarde. Semanalmente, tinham um dia de descanso,sendo geralmente nas quartas ou quintas.

    Percebe-se, assim, que o delineamento da organizao curricularjesutica segue uma ordenao de classes e etapas que se sucedem. Almdisso, essa organizao curricular no se faz sem definio do tempo deestudo dirio e semanal, evidenciando a importncia do elemento tempopara a consecuo dos objetivos educacionais dos jesutas.

    Com a expulso dos jesutas, o Brasil no apenas ficou sem sis-tema educacional estruturado, como tambm perdeu uma refernciaimportante em termos de organizao temporal da escolarizao. O paspassou por longo perodo sem que houvesse uma organizao da escola-rizao definida, minimamente, para todo o territrio nacional, o que irocorrer apenas em meados do sculo XX.

    Adentrando nas heranas temporais deixadas por Comnio(s.d.), importante notar que suas propostas, sintetizadas a seguir, nortea-ram muitas das aes at hoje validadas pelas unidades escolares, princi-palmente no que se refere organizao do tempo escolar.

    Em resumo, algumas de suas propostas: iniciar os estudos napuercia, primavera da vida; privilegiar os estudos na parte da manh, pri-mavera do dia; ensinar apenas aquilo que os alunos sejam capazes deaprender; pregar a assiduidade; ocupar os alunos com apenas uma mat-ria de cada vez; distribuir os estudos de forma gradual, planejando ade-quadamente o tempo (ano, ms, dia e hora), respeitando-se a ordem dascoisas; conservar as crianas na escola at estarem completamente forma-das; fazer da escola um lugar tranquilo; ter um programa preestabelecido;no tolerar ausncia dos alunos durante o perodo escolar; ter, o aluno, namesma matria, apenas um professor.

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  • (...) a arte de ensinar nada mais exige, portanto, que uma habilidosa reparti-o do tempo, das matrias e do mtodo. Se a conseguirmos estabelecer comexatido, no ser mais difcil ensinar tudo juventude escolar, por maisnumerosa que ela seja, que imprimir, com letra elegantssima, em mquinastipogrficas, mil folhas por dia, ou remover, com a mquina de Arquimedes,casas, torres ou qualquer outra espcie de pesos, ou atravessar num navio ooceano e atingir o novo mundo. E tudo andar com no menor prontido queum relgio posto em movimento regular pelos seus pesos. E to suave e agra-davelmente como suave e agradvel o andamento de um tal autmato (p.COMNIO, s.d., p. 186).

    Levando-se em conta que, para Comnio, o homem deve for-mar-se para compreender a complexidade dos conhecimentos existentes,ainda que se tome por base seus fundamentos e causas principais, umaboa educao somente ser possvel se abranger todo o tempo da juven-tude, desde a infncia at a idade viril, ou seja, 24 anos. Compreende quea cada etapa da vida, o homem necessita de um tipo especfico de escola.Por isso, estabeleceu a seguinte diviso:

    - Infncia (0 a 6 anos): escola materna. Deve existir em todas ascasas, tendo-se como responsveis os prprios pais;

    - Puercia (6 a 12 anos): escola primria ou escola da lngua vern-cula. Deve existir em todas as vilas e aldeias;

    - Adolescncia (12 a 18 anos): ginsio ou escola de latim. Deve exis-tir em todas as cidades;

    - Juventude (18 a 24 anos): academia e viagens. A academia deveexistir em todos os reinos e nas provncias mais importantes.

    Como se viu, as referncias temporais na obra de Comnio somuitas: organizao dos estudos em graus e etapas com base no desenvol-vimento da criana; demarcao do incio da escolarizao; padronizaodo incio do ano letivo, dos horrios de aula e do calendrio escolar;padronizao do programas de ensino com base num planejamento anual,mensal, semanal e dirio.

    Aps relatar algumas heranas, deseja-se ressaltar que elas aindase encontram nos tempos escolares vigentes. De acordo com Teixeira(1999), o tempo da escola influenciado pelo tempo scio-histrico: a rt-mica de determinado contexto social, cultural e histrico determina ascadncias e os ritmos impressos na dinmica das instituies sociais e dosprprios sujeitos que fazem parte dessas instituies em cada contextohistrico. Isso significa que o tempo escolar interage com o tempo indivi-

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  • dual, biolgico, familiar, da cidade, do pas. Existem vrios tempos dentroum do outro. Para a autora, esses tempos e, portanto, as diversas variaesde ritmos, as cadncias pessoais e coletivas devem ser consideradas naorganizao da escola.

    Somos seres rtmicos, viventes num contexto polirrtmico que abarca dasbatidas do corao aos compassos musicais; da respirao aos rtmicos indi-cados nos calendrios. Das cadncias das ondas do mar, aos compassos dasinteraes sociais; dos ritmos do crescimento das plantas aos das aprendiza-gens humanas; dos perodos do sono e da viglia s cadncias do trnsito edas comunicaes humanas. Uma combinao rtmica que exprime a coexis-tncia de mltiplas temporalidades e a imbricao dos tempos da naturezahumana e inumana em nossas vivncias temporais (TEIXEIRA, 1999, p. 91).

    A autora faz referncia rtmica escolar, com suas duraesfixas, nveis, graus, anos, sries, bimestres, quantidades de aulas. Toda essartmica resultado do estabelecimento de padres uniformes nas cadn-cias escolares. Os calendrios, por exemplo, revelam e impem um ritmoescolar, tal qual as sries, os graus, os ciclos. Isso d trajetria escolaruma linearidade que no condiz com os diversos tempos, por exemplo,dos sujeitos coletivos da prtica educativa.

    Por isso importa dar mais ateno lgica temporal da escola.De acordo com Arroyo (2004), h sculos a escola cristalizou a lgicatransmissiva e acumulativa. Os contedos a serem transmitidos so orga-nizados em disciplinas e grades fechadas, em sries e graus, bimestres esemestres. Cada etapa condio para a prxima, sendo ultrapassada ouno pelas aprovaes e reprovaes. Os tempos dessa lgica so predefi-nidos; o sujeito tem um tempo determinado para aprender os contedospreviamente selecionados e os professores so os responsveis pelo cum-primento dos programas preestabelecidos.

    o que tambm ressalta Goergen (S.n.t.) quando cita que asheranas que a escola recebeu da modernidade ainda permanecem im-pregnadas na organizao do trabalho didtico: recortes, divises, limitesimpostos artificialmente cuja razo de tal forma de organizao no entendida pelos alunos.

    Essas caractersticas esto to impregnadas no modo de ser daescola que chegam a ser compreendidas como a prpria essncia da esco-la, concepo naturalizante que impede possveis rompimentos com sua

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  • lgica rgida. Muitos profissionais da educao, imersos em seu trabalhocotidiano, acabam assumindo essa lgica como integrante de seu prpriofazer-pedaggico, legitimando certas prticas histricas.

    Ainda se mantm a concepo de que o tempo escolar, com todaessa rigidez, mecanismo sem o qual a transmisso do conhecimentoseria ineficaz. Da a organizao do conhecimento em reas disciplinaressegmentadas; a organizao de grades curriculares predefinidas; o estabe-lecimento de horrios de aulas/disciplinares; a montagem de planejamen-tos e cronogramas rgidos por rea do conhecimento. Essa rigidez tempo-ral est to sedimentada nos sistemas escolares que parece ser impossveldesmont-la e fazer isso significaria a destruio da prpria lgica da ins-tituio escolar.

    Mudar essa lgica no tem sido fcil. A lgica de organizaodos tempos escolares est carregada de valores e intenes, assim comoqualquer prtica pedaggica. Substituir uma lgica significaria, alm dealterar prticas e valores atuais, construir outros parmetros e vivncias.Estes so os impasses vivenciados por muitos coletivos docentes diantedo desafio de reinventar outra lgica que organize os tempos de aprendi-zagem dos alunos e nossos tempos de trabalho e de docncia(ARROYO, 2004, p. 196).

    Desvendando os tempos escolares

    Para entender a lgica que rege os tempos das instituies esco-lares preciso conhecer os tempos escolares presentes na atualidade. Paraa nossa exposio, optou-se por construir uma diviso, ainda que mera-mente didtica, para melhor entender a abrangncia dos tempos escolarese suas construes e possibilidades. So elas: tempos de escola, tempos deescolarizao e tempos na escola (PARENTE, 2006).

    Tempos de EscolaNo que se refere primeira construo, tempos de escola, que-

    remos chamar ateno para o que convencionamos ser o incio da esco-larizao. Um questionamento central incita a reflexo: existe um tempoespecfico para ir escola? Se existe, quais so os determinantes dessaconstruo?

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  • A definio de uma idade especfica para frequentar a escola estdiretamente associada funo social que a escola desempenhou e desempenhana sociedade e ao prprio papel da educao na formao dos indivduos.Da a importncia de considerar a entrada da criana na escola associada prpria histria da instituio escolar como construo humana que, comotal, j passou por inmeras transformaes, at mesmo na sua funo social.

    Por isso, no deve parecer estranho afirmar que o aluno umaconstruo social criada pelos adultos. Ao longo da histria, a inserodas crianas nas escolas em idade especfica levou naturalizao da asso-ciao da condio da infncia condio de aluno.

    Essa naturalizao prpria dos processos sociais e culturais queforam sendo construdos historicamente, oferecendo a certas situaesum carter aparentemente definitivo e estvel. Discusses como essas soexpostas na obra A aluno como inveno, de Sacristn (2005):

    A infncia construiu em parte o aluno, e este construiu parcialmente a infn-cia. As duas categorias pertencem e aludem a mundos nos quais se separamos menores dos adultos (a infncia da maturidade e o aluno da pessoa eman-cipada); isso constituiu uma caracterstica das sociedades modernas: ser esco-larizado a forma natural de conceber aqueles que tm a condio infantil(SACRISTN, 2005, p. 14).

    No entanto, no porque aluno e infncia se confundem que onosso olhar para eles direciona, necessariamente, o processo de escolari-zao. Nem sempre a escolarizao proposta resultado de um olhar maisatento infncia presente, ou melhor, s infncias presentes, isso porquenem sempre nossas representaes e aes sobre a infncia percebem asnecessrias modificaes ocorridas na espaciotemporalidade. Nossas crianasescolarizadas de hoje no so as mesmas crianas que, em Atenas, naAntiguidade, deveriam aprender as primeiras letras, nem as crianas que,no incio da Idade Moderna, deveriam frequentar a Escola Primria.

    So vrios os determinantes da construo da infncia: as infn-cias reais existentes nos diferentes contextos sociais e histricos; os dis-cursos sobre essas infncias; as concepes cientficas e no-cientficassobre elas, etc. (SACRISTN, 2005).

    O que o presente estudo sugere que, cada vez mais, o olharsobre a infncia seja um determinante privilegiado na construo da esco-la; que as diferentes infncias consolidem diferentes escolas; que a com-

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  • preenso dessas diferentes infncias seja fator preponderante na monta-gem dos tempos escolares; que as necessidades histrico-sociais das dife-rentes infncias sejam consideradas na organizao dos tempos escolares.Souza (1999) tambm refora o vnculo estreito entre infncia e escolari-zao, afirmando que o tempo escola um tempo vinculado constitui-o da infncia como classe de idade cuja identidade se associa ao tempode ir escola (SOUZA, 1999, p. 129).

    Diante desse contexto, como se apresentam os nossos temposde escola? O estudo da histria da educao mostrou que, durante aAntiguidade, a Idade Mdia e a Idade Moderna, havia certo consenso deque a educao escolar, ou aquela sob a responsabilidade do Estado, deve-ria iniciar-se entre 5 e 7 anos de idade, aps o perodo de educao fami-liar. A partir dessa idade, a criana estaria apta ao aprendizado das letras,a ingressar na escola primria. De certa forma, pode-se afirmar que aAntiguidade, a Idade Mdia e a Idade Moderna articulavam a idade dossujeitos aos tempos e s formas de educar.

    At a Idade Moderna, a educao no havia ainda sido sistema-tizada da forma como hoje encontrada. justamente nesse perodo quea educao passou a ser alvo de teorias e propostas sobre sua organizao,considerando, entre outros elementos, utilizando uma terminologia maiscontempornea, a espaciotemporalidade do ensino-aprendizagem.

    A partir do sculo XV, iniciou-se o processo de montagem dasclasses escolares, dividindo-se a populao escolar em grupos de mesmacapacidade. O senso comum, que at ento aceitava a mistura das idades,foi substitudo por um sentimento das idades e da infncia. Essa distinodas classes indicava portanto uma conscientizao da particularidade dainfncia ou da juventude, e do sentimento de que no interior dessa infn-cia ou dessa juventude existiam vrias categorias (ARIS, 1981, p. 173).

    Passou-se a compreender que existia um momento especficopara iniciar a escolarizao, sem que isso fosse generalizado ou universa-lizado. As propostas educacionais comearam a adiar a entrada da crianana instituio escolar, diferenciando o trmino da primeira infncia (idadeanterior escola), 5-6 anos, com o incio da escolarizao adiado para os10 anos de idade.

    (...) a mistura arcaica das idades persistiu nos sculos XVII e XVIII entre oresto da populao escolar, em que crianas de 10 a 14 anos, adolescentes de13 a 18 e rapazes de 19 a 25 freqentavam as mesmas classes. At o final do

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  • sculo XVIII, no se teve a idia de separ-los (...). De fato, ainda no se sen-tia a necessidade de distinguir a segunda infncia, alm dos 12-13 anos, daadolescncia ou da juventude. Essas duas categorias de idade ainda continua-vam a ser confundidas: elas s se separariam mais para o fim do sculo XIX,graas difuso, entre a burguesia, de um ensino superior: universidade ougrandes escolas. (ARIS , 1981, p. 176)

    Com o desenvolvimento das sociedades industriais surgiramnovas demandas para a escola e suas funes comearam a ser repensa-das. Isso acarretaria nova organizao escolar, no apenas em termos deespao fsico, mas tambm de incio e de tempo de escolarizao. Essesdois elementos levariam reorganizao do tempo escolar.

    A regularizao do ciclo anual das promoes, o hbito de impor a todos osalunos a srie completa de classes, em lugar de limit-la a alguns apenas, e asnecessidades de uma pedagogia nova, adaptada a classes menos numerosas emais homogneas, resultaram, no incio do sculo XIX, na fixao de umacorrespondncia cada vez mais rigorosa entre a idade e a classe. Os mestresse habituaram ento a compor suas classes em funo da idade dos alunos.(ARIS, 1981, p. 177)

    Se antes a escolaridade prolongava-se at a maturidade, a partirdo sculo XVIII, a escolarizao passou a ter como alvo crianas e jovens.Isso implicava a delimitao de um ciclo escolar mnimo e a fixao do in-cio da escolarizao, que at ento eram, de certa forma, aleatrias. Aospoucos, a articulao entre aluno e infncia, exposta anteriormente, passaa consolidar-se.

    No Brasil, vive-se hoje um momento de adequaes em funodas mudanas legais. A antecipao da escolarizao obrigatria dos 7para os 6 anos de idade1 e a ampliao da escolarizao2 tm gerado in-meras discusses, principalmente decorrentes das motivaes a elas ine-rentes. Essas motivaes podem ser caracterizadas da seguinte forma: deordem econmico-financeira; relacionadas ao direito educao; relacio-nadas s intervenes pedaggicas.

    Cabe destacar que, ao delimitar uma idade de frequncia esco-la, o Estado define tambm suas prprias linhas de ao e de responsabi-lidade. Talvez por isso mesmo vimos o grande atraso que tivemos nessadelimitao e, portanto, na assuno da educao obrigatria como pol-tica pblica.

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  • Compreende-se, sobretudo, que a antecipao e a ampliao daescolarizao obrigatria devem ser vistas sob o enfoque do sujeito a quea educao se destina, o que nem sempre acontece.

    Tempos de escolarizaoComo vimos na exposio relativa s heranas dos jesutas na

    histria da educao brasileira, houve grande destaque organizao tem-poral no sistema educacional por eles difundido. Esse sistema contempla-va a ordenao do ensino em graus e classes, hierarquizando os conte-dos e as etapas do ensino. Eis, ento, nossa segunda construo temporalalvo deste estudo: tempos de escolarizao.

    Se, por um lado, o pas demorou a definir diretrizes nacionaispara a educao, indicando referncias s formas de organizao da esco-larizao, por outro, a livre iniciativa de instituies particulares que aquise instalaram e o fato de os estados, devido descentralizao, desenvol-verem suas redes de ensino, determinaram a construo de diferentes for-mas de organizao da escolarizao. O Brasil tem 5.564 municpios, 26estados e um Distrito Federal. Dada a autonomia dos entes federativos,toda essa imensido, em termos de organizao poltica e administrativa,resulta na existncia de inmeras formas de organizar a educao escolar.Considerando a autonomia relativa das unidades de ensino (escolas),pblicas e particulares, as diversidades ampliam-se ainda mais.

    Apesar de toda essa diversidade, o modelo seriado predomi-nante na educao brasileira. Nesse modelo, de forma geral, o tempo deescolarizao dividido em sries anuais, correspondentes ao ano letivo.Ele foi sendo consolidado e tem como herana as principais caractersti-cas da escola tradicional, sistematizadas a partir da Idade Moderna.

    A diviso da escolarizao em sries sustenta um modelo cujaestrutura prega a necessria compartimentao do tempo, a fim de queseja possvel criar mecanismos de controle mais eficientes de seu aprovei-tamento. O modelo seriado organiza o tempo de escolarizao com baseem precondies, em sequenciaes predefinidas, e processos avaliativoscujo objetivo atestar o acesso ao prximo ano de escolarizao. Ou seja,a seriao sustentada por processos de avaliao cujo objetivo a veri-ficao do aproveitamento adequado dos tempos de estudos, o que indi-car a possibilidade de seguir adiante no processo de escolarizao ourepetir o tempo que no foi bem-aproveitado. Traz, portanto, uma carac-

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  • terstica seletiva e excludente que no considera a progressividade dostempos de vida dos sujeitos da prtica educativa. Essa organizao dotempo de escolarizao materializou significativos processos e prticas nainstituio escolar, extremamente difceis de substituir ou eliminar.

    No modelo seriado, a estreita relao que se constri entre aforma de organizao da escola, a sequncia de contedos do currculoescolar e a aprendizagem do aluno leva a determinadas concluses sobreo prprio processo de desenvolvimento do educando, naturalizando cria-es temporais rgidas e que no se referem, necessariamente, formaohumana.

    Por sua caracterstica seletiva e pelas concepes de educaoque carrega, produziu inmeros problemas na educao brasileira, entreeles a reprovao, a evaso escolar e a distoro idade-srie, processosesses extremamente marcantes na vida do aluno. A tendncia naturali-zar a forma de organizao da escolarizao e os processos e prticas deladecorrentes e culpar o sujeito-aluno por no se adequar aos tempos esco-lares predefinidos.

    Se o tempo do sujeito-aluno (seu ritmo de aprendizagem, o que precisa paracumprir determinada tarefa) no se acomoda ao tempo regulado escolar e aoestabelecido para desenvolver o currculo por ser mais lento, ento o alunoser tachado de atrasado e at poder ser excludo. Atrasar-se, no termi-nar a tempo, realizar com lentido uma prova de avaliao, no aprovei-tar adequadamente o tempo so anomalias na sincronia entre o tempo pes-soal e o escolar. Se o aluno for mais rpido, ento ser qualificado comoadiantado ou ser considerado que o ritmo de desenvolvimento do ensino ofaz perder tempo. (SACRISTN, 2005, p. 149)

    No sem razo, portanto, que inmeras crticas so feitas a essaforma de organizao da escolarizao. Entre as alternativas de reorgani-zao da escolarizao, destacamos os ciclos de formao, proposta quepretende associar-se diretamente aos ciclos de desenvolvimento humano.

    A estreita e necessria associao entre tempos de vida e temposde formao, no entanto, nem sempre considerada na montagem daorganizao escolar. A organizao escolar brasileira, contemplando-sesua diversidade, convive com uma ordenao que, de modo geral, no sevincula aos tempos de vida dos sujeitos da educao. A fragmentao daeducao bsica em sries escolares, por exemplo, no tem como pressu-posto o respeito s temporalidades dos sujeitos.

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  • Para Lima (2002), os Ciclos de Formao Humana esto emba-sados na teoria histrico-cultural do desenvolvimento humano, bemcomo nas contribuies atuais das neurocincias, da psicolingustica e daantropologia. Com base nisso, possvel afirmar que a aprendizagem e odesenvolvimento humanos no podem ser aferidos apenas pelo ponto devista da maturao biolgica e psicolgica do indivduo. Cultura, histria,aspectos sociais, entre outros elementos, condicionam a constituio dosujeito.

    O processo de desenvolvimento do ser humano de ordem biolgico-cultu-ral, se realiza segundo os parmetros estabelecidos pela gentica da espcie, e funo da cultura. Isto faz com que os perodos de desenvolvimento, mar-cados por caractersticas distintas uns dos outros, primeiramente, no sejamregulares (...) tm durao varivel (LIMA, 2002, p. 11).

    Arroyo (1999) conceitua Ciclo de Formao da seguinte forma:

    uma procura, nada fcil, de organizar o trabalho, os tempos e espaos, ossaberes, as experincias de socializao da maneira mais respeitosa para comas temporalidades do desenvolvimento humano. Desenvolver os educandosna especificidade de seus tempos-ciclos, da infncia, da adolescncia, dajuventude ou da vida adulta. (...) As idades da vida da formao humana pas-sam a ser o eixo estruturante do pensar, planejar, intervir e fazer educativos,da organizao das atividades, dos conhecimentos, dos valores, dos tempos eespaos. Trabalhar em um determinado tempo-ciclo da formao humanapassa a ser o eixo identitrio dos profissionais da educao bsica e de seu tra-balho coletivo e individual (ARROYO, 1999, p. 158).

    O autor defende essa postura menos por seu carter instrumen-tal e mais pelos objetivos que antecedem a prpria organizao da escola-rizao. Enfatiza que os Ciclos de Formao, mais do que uma forma deorganizao escolar, so uma postura humanizadora em face dos proces-sos formativos. A organizao escolar por Ciclos de Formao somentese consolida quando est associada a alteraes em outros processos. Parao autor,

    inadivel criarmos culturas, lgicas, estruturas escolares e profissionais quedem conta de processos de ensinar-aprender menos desumanos (...) Quandobuscamos outras lgicas, outras estruturas, os ciclos de formao, por exem-plo, buscamos ao menos tornar o tempo de escola mais humano. (...) A orga-

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  • nizao por ciclos de desenvolvimento ou de formao pretende chamar aateno para a funo nuclear de toda a ao e instituio educativa: respei-tar, trabalhar pedagogicamente cada temporalidade-ciclo desse desenvolvi-mento ou dessa aprendizagem (ARROYO, 2002, p. 61).

    Reconstruir os condicionantes da organizao escolar umaforma de compreendermos que os tempos escolares podem seguir pro-cessos alheios ou que tratem, secundariamente, os tempos de vida. tam-bm uma forma de reforarmos que os tempos de formao sejam con-dicionados pelos tempos de vida dos sujeitos coletivos da educao.

    Ao fazer esse exerccio, inevitavelmente, estamos defendendo aproposio de alteraes nos modelos de organizao escolar vigentes, jque muitos deles no recorrem a esse olhar mais atento aos sujeitos.

    Tempos na escolaComo cada sistema de ensino, cada rede ou cada escola organi-

    za seu trabalho pedaggico? Quais tempos delimitam as prticas pedag-gicas e o fazer docente? Que outros tempos surgem e so construdospelas instituies escolares para que seus objetivos educacionais sejamcumpridos? Tempos perpetuados ou criados pela prpria escola: nossaterceira construo, tempos na escola.

    Existem algumas estruturas temporais que vm de longa data.Algumas dessas estruturas so reforadas ou mesmo impelidas pela legis-lao educacional; outras, com ou sem embasamento legal, se perpetuampor meio de prticas cotidianas realizadas nas instituies escolares;outras ainda vo justamente na contramo dos preceitos legais, promo-vendo transgresses nas prticas educativas de educadores que acreditamem outras estruturas temporais, diferentes daquelas existentes.

    Nas tentativas de superar as incongruncias da organizao daescolarizao e da prpria organizao escolar, novos tempos escolaresso criados, pluralizando culturas, valores, concepes e olhares. Parte-sedo pressuposto de que plurais so os sujeitos e, portanto, plurais devemser as prticas e os tempos escolares. Por isso, importante analisar ostempos escolares como resultado da interseo de polticas pblicas e deprticas escolares.

    De acordo com nosso objetivo, importa ainda ressaltar as possi-bilidades e alternativas criadas e desenvolvidas no mbito das redes deensino e das instituies escolares, destacando o papel dos sujeitos coleti-

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  • vos (alunos, professores, gestores, pais, comunidade) na consolidao des-sas propostas e a ampliao da funo da instituio escolar na criao deseus prprios tempos. Deseja-se mostrar ao leitor que as possibilidades ealternativas plurais no concernente aos tempos escolares so construdasa partir de polticas educacionais consistentes, a partir de projetos polti-co-pedaggicos consolidados e de coletivos de educadores comprometi-dos.

    Essa anlise de que a organizao escolar espao privilegiadode produes e saberes baseia-se na concepo de Forquin (1993) sobrecultura escolar e cultura da escola:

    (...) a escola tambm um mundo social, que tem suas caractersticas devida prprias, seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seu imaginrio, seusmodos prprios de regulao e de transgresso, seu regime prprio de produ-o e de gesto de smbolos. E esta cultura da escola (no sentido em que sepode tambm falar de cultura da oficina ou da cultura da priso) nodeve ser confundida tampouco com o que se entende por cultura escolar,que se pode definir como o conjunto dos contedos cognitivos e simblicosque, selecionados, organizados, normatizados, rotinizados, sob o efeitodos imperativos de didatizao, constituem habitualmente o objeto de umatransmisso deliberada no contexto das escolas (FORQUIN, 1993, p. 167).

    Compartilhando dessas noes, Libneo (2001) ressalta que cadaescola possui determinada lgica de funcionamento, advinda das relaesque se estabelecem nela e/ou sobre ela, da forma como as decises sotomadas, dos comportamentos, valores e interesses dos diferentes atoresque dela fazem parte. H congruncia dos fatores externos e internos queproduzem a cultura da escola. Para o autor,

    (...) por um lado, a organizao educa os indivduos que a compem; poroutro, os prprios indivduos educam a organizao, medida que so elesque a constituem e, no final de contas, a definem com base nos seus valores,prticas, procedimentos, usos e costumes (LIBNEO, 2001, p. 22).

    Cada vez mais as escolas, como instituies sociais que possuemsua prpria cultura criam novos tempos em resposta aos seus objetivosespecficos. Tempos pedaggicos relativos aos tempos dos professores edos alunos, tempos para reunies pedaggicas, tempos de encontros deformao, tempos de participao na gesto escolar, tempos de planeja-

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  • mento coletivo. Agrupamentos e enturmaes flexveis com base em dife-rentes propostas e que mexem com tempos de alunos e professores.Ampliao da jornada escolar, integrando-se ou no com outras institui-es ou espaos sociais, conduzindo educao em tempo integral.

    No h como discutir que as polticas educacionais produzemefeitos, condicionando o rumo da organizao escolar, o que indica opeso dessa varivel nas construes temporais da escola. No entanto, aescola, entendida como instituio muito mais verstil do que o meroreflexo das determinaes e aes polticas, constri seus prprios valo-res e concepes, capazes de conservar lgicas de longas datas, de impul-sionar aes polticas, de transgredir normas legais e sociais, de inovar emface das condies estruturais e conceituais vigentes.

    Se, por um lado, na escola que ocorrem as inovaes educacio-nais, por outro a prpria poltica que possibilita, em grande medida, queas condies materiais para as inovaes se estabeleam. , certamente,via de mo dupla: uma poltica que cria condies para inovaes; umaescola que inova, ao aderir a uma poltica inovadora. E mesmo uma esco-la inovadora que impulsiona a formulao de uma poltica e uma polticaque inova justamente porque aderiu s inovaes escolares.

    O entendimento de que a inovao educativa deve partir da equi-pe escolar, predominantemente dos professores, altamente defendida porCarbonell (2002). No entanto, o mesmo autor ressalta a necessidade de quehaja uma preocupao do poder pblico de garantir meios e instrumentospara que a inovao acontea. Isso refora a ideia de que defender a inova-o escolar no significa retirar do Estado o papel que lhe compete.

    Qual , ento, o papel do Estado ou de qualquer outro poder pblico?Basicamente, tomar as medidas necessrias de poltica educativa e dotar aescola pblica dos recursos necessrios para que os professores possam levara cabo as inovaes sob as necessrias condies de qualidade. (CARBO-NELL, 2002, p. 27-28)

    Parece conveniente destacar que o papel do Estado deve ser demapear o que h de consolidado no campo educacional, no que se refereaos tempos escolares, e o que est latente em razo de concepes e pr-ticas educativas. Ao fazer isso, ter condies de visualizar o que h paraser feito em funo do que j foi feito, trazer propostas e discernir onde possvel dar continuidade e o que possvel construir e reconstruir.

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  • Consideraes finais

    Ao longo do presente artigo, destacamos nossa noo de tempoe buscamos mostrar a abrangncia dos tempos escolares e seu processode construo social. Ao fazermos isso, destacamos o papel das institui-es escolares nesse processo de criao. No entanto, reforamos que asconstrues temporais melhor se desenvolvem e melhor se consolidamquando estas so afirmadas como resultado da interseo de polticaspblicas e de prticas escolares, ou seja, quando h legitimao das aesproduzidas pelas instituies escolares.

    No defendemos que as mudanas sejam simplesmente atitudescriativas de alterar os tempos escolares presentes e as lgicas advindas depocas passadas. importante analisar os condicionantes das mudanaspolticas e escolares, verificando se as necessidades histrico-sociais e cul-turais dos diferentes sujeitos da educao so consideradas na montagemdos diversos tempos escolares.

    Destacamos ainda a importncia de concretizarmos estudos epolticas educacionais que desenvolvam anlises mais atentas dos temposescolares e dos fatores que condicionam a sua organizao, levando-os emconsiderao na montagem de polticas, programas e projetos educacio-nais.

    Notas1

    A Lei n 11.114, de 16/05/2005, trouxe alteraes em relao ao incio da escolariza-o, antecipando a entrada da criana no ensino fundamental a partir dos 6 anos de idadee efetivando as indicaes que a prpria legislao j apontava.2

    A Lei n 11.274, de 07/02/2006, amplia o Ensino Fundamental, de 8 para 9 anos. Deacordo com a referida lei, os municpios, os estados e o Distrito Federal tm o prazo at2010 para implementar o ensino fundamental de 9 anos, com incio aos 6 anos de idade.

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    Endereo para correspondncia:Rua Poeta Jos Salles de Campos, 87

    Atalaia49035-650Aracaju SE

    Data de recebimento: 06/12/2007Data de aprovao: 10/11/2009

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