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No período pós Segunda Grande Guerra nos países mais desenvolvidos, em especial nos Estados Unidos, a sociedade começava a se consolidar como um grande exemplo tecnocrático, exportando seu estilo de vida para o resto do mundo: american way of life. Como tecnocracia entende-se à forma social da sociedade industrial que torna tudo puramente técnico e absorve a população promovendo a satisfação material, gerando uma sociedade de consumo submissa, pobre de protestos racionais e que reforça a burocratização da vida, para Theodore Roszak: Com base em imperativos incontestáveis como a procura de eficiência, a segurança social, a coordenação em grande escala de homens e recursos, níveis cada vez maiores de opulência e manifestações crescentes de força humana e coletiva, a tecnocracia age no sentido de eliminar as brechas e fissuras anacrônicas da sociedade industrial. (ROSZAK, 1972, p. 19) Os jovens nascidos depois de 1940 perceberam que viviam numa sociedade que nem impunha nem merecia respeito, mecanizada, alienante e excessivamente materialista. A juventude dos grandes centros urbanos rejeitou o acesso aos privilégios das camadas altas e médias, como as possibilidades de entrada no mercado de trabalho, a estrutura de pensamento predominante nas sociedades ocidentais, voltando-se contra o establishment, o sistema. Nos anos 40 jovens soturnos começaram a formar uma subcultura que preenchia o vazio rebelde: os hipsters, cuja

A contracultura e sua poesia - dos beats aos marginais: à margem do cânon

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Trabalho de conclusão do curso de Letras: Português/ Literaturas de língua portuguesa, 2009, de Francieli Sampaio Vieira de Oliveira.

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Page 1: A contracultura e sua poesia - dos beats aos marginais: à margem do cânon

No período pós Segunda Grande Guerra nos países mais desenvolvidos, em especial

nos Estados Unidos, a sociedade começava a se consolidar como um grande exemplo

tecnocrático, exportando seu estilo de vida para o resto do mundo: american way of life.

Como tecnocracia entende-se à forma social da sociedade industrial que torna tudo puramente

técnico e absorve a população promovendo a satisfação material, gerando uma sociedade de

consumo submissa, pobre de protestos racionais e que reforça a burocratização da vida, para

Theodore Roszak:

Com base em imperativos incontestáveis como a procura de eficiência, a segurança social, a coordenação em grande escala de homens e recursos, níveis cada vez maiores de opulência e manifestações crescentes de força humana e coletiva, a tecnocracia age no sentido de eliminar as brechas e fissuras anacrônicas da sociedade industrial. (ROSZAK, 1972, p. 19)

Os jovens nascidos depois de 1940 perceberam que viviam numa sociedade que nem

impunha nem merecia respeito, mecanizada, alienante e excessivamente materialista. A

juventude dos grandes centros urbanos rejeitou o acesso aos privilégios das camadas altas e

médias, como as possibilidades de entrada no mercado de trabalho, a estrutura de pensamento

predominante nas sociedades ocidentais, voltando-se contra o establishment, o sistema.

Nos anos 40 jovens soturnos começaram a formar uma subcultura que preenchia o

vazio rebelde: os hipsters, cuja inspiração se dá pelos sons do bebop – novo estilo de jazz que

permitia a improvisação dos músicos – pelo existencialismo francês e sua visão da vida

humana como um espaço vazio, personagens furtivos, não viam esperança de mudanças

positivas. Poucas características os identificavam, eram inter-raciais; passaram a ser definidos

como “negro-branco” – o white negro dos versos de Norman Mailer – “ cuja consciência dos

extremos terrores da vida assemelha-se e é derivada da que tem o negro” (PEREIRA, 1986, p.

36), tinham suas próprias expressões lingüísticas, privadamente gostavam de maconha e

heroína, que utilizavam para abandonar a mente racional e mergulhar no bebop. Opunham-se

aos square, os “caretas”, que o establishment transformava em conformistas bem ajustados e

defensores do american way of life.

Nos anos 50 e contemporâneos aos hipsters surgiram os beat – movimento que será

tratado mais adiante. Nas primeiras décadas dos anos 60, um grupo passa a ser conhecido

mundialmente: os hippies, nome que deriva de hipster. Entretanto, nos anos 40 o termo

originalmente era uma expressão de desprezo; hipsters negros começam a chamar os hipsters

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brancos de hippies, na década de 50 os hipsters brancos chamam aos hipsters de final-de-

semana de hippies. Somente a partir de 1967 que os hippies começam a ser aceitos e

conhecidos, com slogans como “Faça amor, Não a guerra”, “Paz e Amor”, distribuindo flores

e sorrisos nas manifestações às pessoas em volta, ou as colocando nos canos das armas dos

policiais, vivendo em comunidades, defendendo as questões ambientais; o amor livre, as

minorias, o pacifismo e como afirma Carlos Alberto M. Pereira:

Com seu mundo psicodélico, seus cabelos agressivamente compridos, suas roupas coloridas e exóticas, enfim, com eu ar freak (estranho, extravagante), eles começaram a encher as ruas dos Estados Unidos, ou melhor, da Califórnia, já desde os primeiros anos da década de 60. E não é preciso dizer que, de lá, eles começaram a se espalhar pelo mundo inteiro, numa viagem longa e sinuosa. (PEREIRA, 1986, p. 74)

Do movimento hippie surgem os yippies oriundos da sigla YIP (Youth International

Party, o Partido Internacional da Juventude). O partido foi criado na tentativa de organizar

uma instituição canalizadora da energia revolucionária da juventude rebelde, que convergisse

os projetos de revolução cultural e revolução política.

Na Nova Esquerda – os militantes não eram marxistas nem tinham simpatia pelo

socialismo, de composição social diversificada, seus principais representantes eram escritores

e poetas, como Allen Ginsberg – nos anos 60 seu desenvolvimento juntamente com suas

idéias e publicações foram relevantes frente aos setores contraculturais que pregavam uma

forma contestatória explicitamente política, como também junto ao movimento estudantil

internacional. Organizando protestos e seminários em cidades e campus universitários por

todos os EUA, desenvolvendo uma identidade única, colocando-se além de movimento pelos

direitos civis.

O ano de 68 na Europa foi decisivo para o movimento estudantil, de acordo com Ken

Goffman e Dan Joy:

Na França os jovens não tinham adotado o estilo de vida contracultural psicodélico no mesmo grau que nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas uma importante subcultura de estudantes franceses estava se encaminhando para um conjunto muito particular de memes anarquistas de esquerda (...) uma tentativa da polícia de Paris de encerrar um encontro de estudantes que planejavam protestos contra a Guerra do Vietnã, (...) atraiu uma multidão de estudantes, (...) seguiu-se uma violenta batalha campal, (...) Professores, funcionários de universidades e militantes operários se juntaram a um número crescente de estudantes em manifestações de rua contra a repressão,

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que continuaram dia após dia, (...) cerca de dez milhões de trabalhadores entraram em greve. (...) agora não queriam apenas seus direitos, ou um novo conjunto de benefícios e privilégios. (...) começaram a falar de um novo tipo de sociedade. (GOFFMAN e JOY, 2007, p. 312 e p. 313)

Como afirma Carlos Alberto M. Pereira:

A década de 60, a nível internacional, foi realmente um tempo de muita agitação, esperança e inovação nas formas de luta política (...) dos grandes acontecimentos que se destacavam (...) três exigem uma referência especial: a Revolução Cultural Chinesa, a resistência popular vietnamita à agressão armada dos Estados Unidos e a guerrilha de Guevara na Bolívia. (...) o que estava em jogo era a abertura de novos espaços de contestação política e de luta, com a surpreendente emergência de novas vitórias. Muito provavelmente, este era o dado que tanto fascinava a juventude da época e lhe permitia, inclusive, uma identificação tão forte com acontecimentos até certo ponto bastante afastados de seu cotidiano. (PEREIRA, 1986, p. 77 e p. 78)

De maneira amadora foram os jovens que executaram as teorias e hipóteses rebeldes

adultas, retiradas de revistas e livros escritos pela geração anterior descontente,

transformando-as num estilo de vida experimental. É na universidade em plena expansão de

seus cursos superiores que há uma significativa concentração de jovens favorecendo uma

identidade grupal, num espaço de discussão e questionamento. Em meio a um sistema

repressivo e massificante a juventude contestadora se afirma e caracteriza pela ênfase na

individualidade, como também, pela simpatia e sensibilidade por qualquer movimento grupal

cultural ou étnico que se encontre marginal ou excluído pelas vantagens e promessas da

sociedade ocidental.

Como nos movimentos: flower power, os estudantes e intelectuais da Nova Esquerda,

os gay power e as women’s lib, que são observados pelos black power, cujo poder negro surge

e se consolida na difícil batalha pelos direitos civis, tornando-se atraente para os jovens

brancos - com seus valores perdidos - encontrando no negro: em suas tradições, sua cultura e

sua música, a força e o vigor necessário, atuando como fonte de rebeldia e recusa, como

afirma Carlos Alberto M. Pereira:

Pela posição especial que o negro ocupa na sociedade americana, visivelmente oprimido e radicalmente excluído frente ao american way of

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life,ele não apenas detém um enorme potencial de revolta, como também se constitui num aliado quase que natural do jovem branco de camadas médias que se rebela diante do Sistema, recusando suas eventuais ofertas e vantagens, ainda que não seja possível omitir a diferença racial existente entre os dois grupos. Para este jovem branco o negro é, ao mesmo tempo, um corajoso símbolo de rebeldia diante opressão e de recusa de estilo de vida contra o qual aquele mesmo jovem – filho do Establishment – luta deseperadamente. (PEREIRA, 1986, p. 41 e p. 42)

A afirmação do poder individual, a não-aceitação das regras das autoridades sociais,

seja das convenções dominantes ou subculturais, é que define esse movimento denominado

contracultura, expressão popularizada por Theodore Roszak em seu livro The Making of a

Counter Culture, de 1969, lançado no Brasil em 1972, pela editora Vozes, com o título A

Contracultura.

Ao defender a individualidade, a contracultura encoraja a expressão pessoal, não

apenas como “liberdade de opinião”, mas aplicando também nas crenças, na aparência

pessoal, na sexualidade e em todos os outros aspectos da vida. De acordo com Ken Goffman e

Dan Joy (2007, p. 51) “A individualidade contracultural não significa puro egocentrismo. (...)

é uma profunda individualidade, partilhada. Ela inclui pessoas e culturas que seguem o

conselho socrático de “conhece-te a ti mesmo.”

Compromissando-se com o processo de eliminação à submissão das autoridades

aplicadas externamente e apreendidas internamente, fazendo então florescer a verdadeira

individualidade, os contraculturistas desafiam o autoritarismo tanto obviamente quanto

sutilmente. Para Ken Goffman e Dan Joy (2007, p. 52) “(...) desafiam o autoritarismo mais

sutil exercido por sistemas de crenças rígidos, convenções amplamente aceitas, paradigmas

estéticos inflexíveis e tabus explicitados ou não.” No parecer de Luís Carlos Maciel:

Contracultura é a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. No sentido universitário do termo é uma anticultura. Obedece a instintos desclassificados nos quadros acadêmicos. (...) A contracultura surgiu do confronto entre a cultura reconhecida como doença, e a visão juvenil, cujo instinto natural é para a saúde. A audácia dessa visão não pode ser considerada mera precipitação ingênua, pois funda-se, antes, num desencanto radical – atingido por saturação, maturidade – com o mundo tal como conhecemos. (Maciel, 1981 apud PEREIRA, 1986, p. 13 e p. 18)

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Na contracultura o rock é uma manifestação não somente musical, mas revela-se

num dos principais elementos da nova cultura, sintetizando a música branca e negra, e

embalando o cotidiano da juventude que descobria sua força e seu alcance contestatório.

(...) este é o pano de fundo contra o qual vemos florescer toda a cultura jovem dos anos 60, batizada com o rótulo de contracultura. Esta, por sua vez, se concretizou através de inúmeras manifestações surgidas em diferentes campos, como o das Artes, com especial destaque para a música, ou melhor, para o rock; o da organização social, aparecendo em primeiro plano a ênfase dada pelo movimento hippie à vida comunitária, na cidade ou no campo, e, ainda, o da atuação política. (PEREIRA, 1986, p. 40)

E há três nomes que proporcionaram a fusão da revolução cultural que o rock dos anos

60 apresenta; Os Beatles, Bob Dylan e os Rolling Stones, que encarnavam as aspirações e

revolta de sua geração, aliando a arte, o comportamento e a contestação, promovendo a

possibilidade de expressão e sustentação de sua identidade.

(...) o panorama da música jovem dos anos 60 e começo dos anos 70 certamente engloba uma quantidade incrível de outros nomes que seria difícil listar aqui, The Mama’s and Tha Papa’s, Genesis, Yes, Deep Purple, Led Zeppelin, Queen, Animals, The Who, Pink Floyd, Mothers of Invention, Jethro Tull, são apenas algumas referências dentro de uma enorme série. (...) há dois nomes que, pelo impacto que causaram no curto espaço de suas carreiras, exigem um registro especial: Jimmy Hendrix e Janis Joplin. (...) significavam a angustiante exploração quase obrigatória dos limites do seu tempo. (ibidem, 1986, p. 66 e p. 67)

Na segunda metade da década de 60, os festivais reuniram um grande número de

grupos, compositores e intérpretes, além do público, era o lugar de encontro dos que tentaram

criar um novo mundo fugindo das rédeas do establishment. Os festivais aconteceram em

diferentes cidades dos EUA e da Europa, o acontecimento musical de maior repercussão foi

Woodstock ocorrido em 1969 nos EUS, que extrapolou a barreira musical e marcou época

como movimento contestador da juventude internacional, como também representou “(...) a

realização, aqui e agora, da utopia do peace and love, pelo clima de tranqüilidade e alegria em

que transcorreu “ (ibidem, 1986, p. 70)

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A geração beat ou movimento beat ficou conhecido na década de 50, entretanto, sua

delimitação cronológica como movimento literário data de 1944 indo até 1958 ou 1959. O

termo beat foi criado por Jack Kerouac, “não para nomear a geração, mas sim para desnomeá-

la.” (WILLER, 2009, p. 7), Traduzida quer dizer “derrubado”, palavra polissêmica, refere-se

também à batida rítmica do jazz, pode ser associado à beatitude, beato, santificação; a

contestação os induzia a se refugiarem numa suposta beatitude.

A palavra beatnick foi criada pelo jornal San Francisco Chronicle, num sentido

depreciativo, irônico. Fusão com Sputinick, o primeiro satélite artificial lançado ao espaço

pela União Soviética, alude à suposta simpatia dos jovens americanos às idéias esquerdistas,

expressando alienação cultural e social:

Imediatamente o beatnick se tornou uma figura grotesca para todos os Estados Unidos. Nesse tipo de representação, o estilo substituía o conteúdo. O beatnick da mídia tinha um visual típico: os homens usavam cavanhaque e não colocavam a camisa para dentro das calças. As mulheres se vestiam de preto, culminando com uma boina francesa. Eles carregavam bongôs para toda parte. Era um consenso que eles não gostavam de banho. Por mais que fosse insultuosa, a redução da rebelião boêmia hipster a um estereótipo engraçadinho pode ter subvertido os Estados Unidos convencionais mais do que diminuído os beats. (GOFFMAN E JOY, 2007, p.265)

O movimento literário da geração beat segundo Ginsberg “(...) um grupo de amigos

que trabalharam juntos em poesia, prosa e consciência cultural desde meados da década de

1940 até que o termo se tornasse nacionalmente popular no final dos anos 1950.” (apud

WILLER, 2009, p. 10), tem como integrantes: Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Willian

Burroughs (considerados os principais autores beat), Neal Cassady, Herbert Huncke, John

Clellon; em 1948, Carl Salomon e Philip Lamantia; em 1950 Gregory Corso; em 1954,

Lawrence Ferlinghetti e Peter Orlovsky. Em meados de 1950, o círculo reduzido pelas

afinidades de pensar e estilo literário foi ampliado por outros escritores de São Francisco;

Michael McClure, Gary Snyder, Philip Walen; Em 1958 por Bob Kaufman, Jack Micheline,

Ray Bremser e o poeta negro LeRoi Jones entre outros mais.

O movimento conectou-se com outras modalidades artísticas; cinema e fotografia,

Robert Frank e Alfred Leslie: música, David Amram; pintura, Larry Rivers; publicação, Cid

Corman, Jonathan Willians, Don Allen e Barney Rosset, de acordo com Willer:

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A beat se formou com o jazz bop e se expressou através do rock – e de música pop, balada country, blues, rap e criações de vanguarda, experimentais. Percorreu um trajeto de Lester Young, Dizzie Gillespie, Charlie Parker, Thelonius Monk e Lennie Tristano, passando por Bob Dylan (com quem Ginsberg se apresentou e fez parcerias), Ray Charles (que homenageou Kerouac em “Hit the Road Jack”), Janis Joplin (“Mercedes Benz”, letra de Michael McClure), Jim Morrison e Ray Manzarek (que fez récitas junto com McClure), e The Grateful Dead (que homenageou Neal Cassady), até The Clash (que recebeu Ginsberg em shows), Laurie Anderson (com quem Burroughs contracenou), Philip Glass (que compôs uma ópera sobre temas de Ginsberg) e The Band (que se apresentou com Ferlinghetti em um concerto filmado por Scorsese). Poesia e música sempre caminharam juntas. Mas em nenhum movimento literário da modernidade, ou desde o romantismo, a ligação foi tão íntima. A beat foi sonora. Tem discografia, e não só bibliografia. (WILLER, 2009, p.13)

A beat era influenciada pelo romantismo e pela poesia experimental:

(...) não foi um vanguardismo tardio, mas um movimento típico da segunda vanguarda. Representou o novo e foi inovadora naquele contexto, do mesmo modo como futurismo e dadaísmo representaram o novo, de diferentes modos, em outro momento. Se recuperou o ímpeto inovador do primeiro ciclo vanguardista, adicionou-lhe – assim como outros movimentos de época – novas tomadas de posição, não só estéticas, mas políticas. Representou a busca de alternativas que ultrapassassem a polaridade típica da Guerra Fria, entre stalinismo e macarthismo, ortodoxia soviética e reacionarismo burguês. (WILLER, 2009, p. 16)

A amizade comentada por Ginsberg diferenciou ou definiu a beat. Amizade,

cumplicidade, solidariedade; no sentido sexual, transcendental e jurídico, já que alguns foram

presos ou se deixaram prender em prol da amizade com bandidos, era uma “Literatura

marginal por marginais.” (ibidem, 2009, p. 21). Mas tudo isso colaborou na criação literária,

criavam juntos:

(...) os textos-colagem de Burroughs em parceria com Bryon Gisin e Gregory Corso, que resultaram em Minutes to Go. Ou em And the Hippos Were Boiled in their Tanks (E os hipopótamos ferveram em seus tanques), narrativa policial de Burroughs e Kerouac que se perdeu. No poema “Pull my daisy” (Puxe minha “margarida”) de Ginsberg, Kerouac e Cassady, que daria o título ao filme de Robert Frank. Copidescavam-se como na releitura de Kaddish de Ginsberg por Ferlinghetti. (ibidem, 2009, p. 17 e p. 18)

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Os beats encarnaram a rebeldia marginal dos anos 50:

Foram os beatnicks um dos grupos de destaque a encarnar, de modo especialmente vigoroso, a rebeldia marginalizada dos anos 50 nos Estados Unidos. Já fascinados pelas doutrinas orientais, ponto de encontro entre eles e os alegres hippies dos anos 60, rejeitavam o caminho do intelectualismo, devotando-se a uma vida marcadamente sensorial e deixando-se arrastar por uma ludicidade e desprezo pelas satisfações de uma carreira e de um rendimento regular. E este estilo de comportamento que os faz um dos grupos pioneiros do espírito de contestação da contracultura dos anos 60, de certa forma, os hippies prematuros de um momento anterior. (PEREIRA, 1986, p. 34)

O ideal libertário e questionador da contracultura, já se configurava nos anos 50, com

os poetas beats. A poesia beat surge nos bairros boêmios dos Estados Unidos, o poema Howl

(uivo, berro) de Ginsberg, lançado de modo visceral na Six Gallery em 55 - quando publicado

foi proibido pela censura rendendo processos tanto para o editor quanto para Ginsberg, porém

os beats conquistaram a liberdade de expressão e abriram precedentes na censura de obras

literárias estadunidenses – e o livro On the Road de Kerouac lançado em 57, tornam-se

símbolos do movimento. Mostrando, revelando à sociedade americana tudo o que acontecia

com os jovens daquela geração; loucura, sexo, drogas, etc. Associando e confundindo as

esferas da produção simbólica, “da vida e dos acontecimentos históricos (...) inauguraram

uma nova relação entre arte e vida, literatura e sociedade.” (WILLER, 2009, p. 26) para

Willer:

Escreveram transcrevendo a fala; reciprocamente, falaram o que escreveram. (...) a beat rompeu a barreira da exclusão literária em uma sessão de leitura da poesia, a récita da Six Gallery de 1955. Poesia sempre foi falada; bem antes, inclusive, de circular por escrito. (...) Mas o alcance da recitação de poemas mudou a partir da beat, desde a subseqüente proliferação de sessões em pequenos locais, cafés ou livrarias, algo que acontecia, mas não na mesma escala, até as grandes manifestações ao ar livre, no mundo todo. Houve reintegração da poesia à fala. (WILLER, 2009, p. 27 e p. 28)

Fragmentos do poema Howl, Uivo, do livro Uivo e outros poemas, de 2000:

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Uivo (para Carl Salomon)

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa "hipsters" com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite, que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaramfumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuandosobre os tetos das cidades contemplando jazz, que desnudaram seus Cérebros ao céu sob oElevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas decômodos, que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake entre os estudiosos da guerra, que foram expulsos das universidades por serem loucos& publicarem odes obscenas nas janelas do crânio, que se refugiaram em quartos de paredes de pinturadescascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestas de papel, escutando o Terror através da parede,

(...)

II Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seusCrânios e devorou seus cérebros e imaginação?Moloch! Solidão! Sujeira! Fealdade! Latas deLixo o dólares intangíveis! Crianças berrando sob as escadarias! Garotos soluçando nos exércitos! Velhos chorando nos parques!Moloch! Moloch! Pesadelo de Moloch! Moloch o mal-amado! Moloch mental! Moloch o pesadojuiz dos homens!Moloch a incompreensível prisão! Moloch o Presidio desalmado de tíbias cruzadas e o CongressoDos Sofrimentos! Moloch cujos prédios são Julgamento! Moloch a vasta pedra da guerra!Moloch os governos atônitos!    Moloch Cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujoSangue é dinheiro corrente! Moloch cujosDedos são dez exércitos! Moloch cujo peito éUm dínamo canibal! Moloch cujo ouvido éUm túmulo fumegante!Moloch cujos olhos são mil janelas cegas! MolochCujos arranha-céus jazem ao longo de ruas comoInfinitos Jeovás! Moloch cujas fábricas sonhamE grasnam na neblina!

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 Para Claudio Willer:

Ginsberg tende a ser lembrado como autor dos poemas longos que o celebrizaram, Uivo, Kaddish (cuja leitura em voz alta demanda mais de uma hora), (...) Para alguns, Uivo, cujo ritmo veloz pode ser associado à prosódia bop de Kerouac, seria vigoroso, mas prolixo. É um erro de avaliação, pois, sendo extenso, também é sintético. Suas frases longas são séries de versos curtos, encadeados; algumas, com a estrutura semelhante ao hai-kai, três enunciados onde cada um modifica o anterior1.

On the Road de Kerouac foi escrito em três semanas; e refeito para atender a editores,

ficou conhecido como obra de estrada e originou o estereótipo do beat estradeiro e mochileiro.

Escrita em prosa, a narrativa é uma sucessão de fatos, um atrás do outro. Pelo caminho Sal

encontra amigos como Dean Moriarty, representando Neal Cassady, Carlo Marx (Allen

Ginsberg), Old Bull Lee (William Burroughs) e uma vasta quantidade de tipos pelo interior

dos Estados Unidos. Cowboys, aventureiros e fugitivos viram seus companheiros de viagem,

amigos de um dia, fantasmas de beira de estrada. Os personagens aparecem, somem e

desaparecem sem deixar nada além da lembrança das festas e bebedeiras vividas, segundo

Claudio Willer:

Corresponde ao melhor de Kerouac, nos blocos de texto sem pontuação, nas palavras que vão sendo reduzidas a sons, nas colagens, nas 130 páginas de transcrição de fita gravada, na síntese de realismo com o fluxo de consciência. (WILLER, 2009, p. 80)

Trecho de On the Road, Pé na Estrada:

“Nós as abraçávamos e dançávamos. Não havia música, apenas dança. O lugar lotou inteiramente. As pessoas começaram a trazer garrafas. Caíamos fora para curtir os bares e voltávamos voando. A noite estava se tornando mais e mais desvairada. Desejava que Dean e Carlo estivessem ali – aí percebi que estariam deslocados e infelizes. Eles eram exatamente como o homem melancólico da pedra que geme na masmorra, erguendo-se dos subterrâneos, os sórdidos hipsters da América, uma inovadora geração

1 www.revista.agulha.nom.br/ag30ginsberg.htm acesso em: 06 dez. 2009.

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beat, com a qual eu estava me ligando lentamente.” (KEROUAC, 2004 p. 78)

Reconfigurando o movimento beat e correspondendo à literatura underground

(contracultural) norte-americana, temos no Brasil dos anos 70, período de ditadura militar, os

poetas marginais. Entende-se como poeta marginal o sujeito representante de uma minoria

discriminada, que não se enquadra em padrões sociais, que trabalha independente ou

alternativo, autônomo frente à indústria editorial, conhecido também como geração

mimeógrafo, pois para imprimirem seus textos utilizavam o mimeógrafo.

Explorando todas as possibilidades do papel – folhetos, jornais, revistas, manuscritos -, a poesia chegou aos muros, através de pichações, foi às praças, aliou-se à música, organizou exposições. Desenvolvida sob a mira da polícia e da política dos anos 70, foi uma manifestação de denúncia e de protesto, uma explosão de literatura geradora de poemas espontâneos, mal-acabados, irônicos, coloquiais, que falam do mundo imediato do próprio poeta, zombam da cultura, escarnecem a própria literatura. (CAMPEDELLI, 1995, p. 10)

O tropicalismo teve um papel importante na formação dos poetas marginais

representando o que o movimento antropofágico representou para o modernismo de 22,

segundo Armando Freitas Filho:

(...) geração voltada para a lição oswaldiana de retomada das “raízes”, com a

diferença, entretanto, de que os produtos não eram especificamente

literários, mas interdisciplinados, um pau-brasil eletrificado, ligado na

tomada dos amplificadores, um cafarnaum onde o poema se fazia não apenas

na página, mas no papel da voz, no palco, sob o som estridente das guitarras

(FREITAS FILHO, apud CAMPEDELLI, 1995, p. 14)

Para Ana Cristina Cesar:

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É com o chamado movimento tropicalista (1967 – 1968) que vão surgir as primeiras manifestações culturais desse desvio. O país estava ingressando num novo período, caracterizado pela modernização econômica, era estimulado o ressurgimento ideológico de valores arcaicos da direita que assumia o poder. (...) A marginalidade é tomada não como saída alternativa mas sim como ameaça ao sistema, como possibilidade de agressão e transgressão. A contestação é assumida conscientemente. O uso de tóxicos, a bissexualidade, o comportamento exótico são vividos e sentido como gestos perigosos, ilegais e portanto assumido, como contestação de caráter político. (CESAR, apud CAMPEDELLI, 1995, p. 11)

Os poetas marginais mais conhecidos são Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski, Chacal,

Francisco Alvim e Cacaso, no entanto outros personagens também fizeram parte desta época

como: Torquato Neto, Wally Salomão, Charles, Leila Miccolis, Alice Ruiz, Isabel Câmara,

Nicolas Behr, Luis Martins Silva, Roberto Piva, Alex Polari, Ulisses Tavares, etc.

Participaram pelo menos três gerações diferentes, com valores e ideais distintos, não foi um

movimento poético de características padronizadas, mas pode-se apontar como peculiaridade:

ser mutável; recuperando traços do primeiro modernismo, experimentando técnicas de

colagem, de desmontagem dadaísta, fazendo uso do soneto ou do haicai; linguagem visual,

fragmentária: utilizavam-se de técnicas de composição com a imagem se justapondo; captação

do flagrante: escritos que captam e contam sobre o contexto cultural brasileiro; poesia de

domínio público; por estar fora do mercado editorial, os poetas marginais faziam sua poesia

circular de mão em mão, nos muros ou em folhetos jogados de edifícios.

A poesia de Ana Cristina Cesar revela “principalmente, a mulher que muito refletiu

sobre a condição feminina, recusando-se a aceitar a ideia de que a mulher deve escrever sobre

coisas diáfanas, leves, etéreas, nuvens e riachos.” (CAMPEDELLI, 1995, p.64) o poema

Psicografia, do seu livro Inéditos e dispersos, metalingüístico, dialoga com o poema

Autopsicografia de Fernando Pessoa :

Também eu saio à reveliae procuro uma síntese nas demorascato obsessões com fria têmpera e digodo coração: não soube e digoda palavra: não digo (não posso ainda acreditarna vida) e demito o verso como quem acenae vivo como quem despede a raiva de ter visto.

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A poesia de Paulo Leminski é marcada pela mutabilidade escrevia haicais, poemas-

grafites, etc. Misturava à poesia marginal a poesia concreta, porém retirando o rigor do

concretismo, adicionando à marginalidade erudição e lirismo. No texto abaixo encontra-se

uma metalinguagem daquilo que ele considerava como literatura marginal, do livro Distraídos

Venceremos:

[Marginal é quem escreve à margem,]

Marginal é quem escreve à margemdeixando branca a páginapara que a paisagem passee deixe tudo claro à sua passagem. Marginal, escrever na entrelinha,sem nunca saber direitoquem veio primeiro,o ovo ou a galinha.

O poeta Francisco Alvim ou Chico Alvim que era marxista convicto, com a situação

ditatorial, evidencia-se sua percepção sobre a retórica falida do Partido Comunista, no poema

Revolução de tom descrente, inclusive na possibilidade de contestar sobre a ditadura:

Antes da revolução eu era professorCom ela veio a demissão da UniversidadePassei a cobrar posições, de mim e dos outros (meus pais eram marxistas)Melhorei nisso – hoje já não me maltratonem a ninguém

Se na geração beat há um descentramento com relação ao cânone literário europeu, na

poesia marginal esse descentramento será manifestado no abandono da temática do nacional

que sempre marcou a literatura brasileira desde a época do Modernismo. Da mesma forma

que os escritores beat são performáticos, os marginais adotam, também, a poesia como

performance. Assim como em "Uivo", de Allen Ginsberg, há uma multiplicidade de discursos

resultantes de recortes textuais, citações, metalinguagem e referências a personagens e

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passagens da beat generation, o mesmo se dará com a poesia de Ana Cristina César, Cacaso,

Chacal, Chico Alvim, Eudoro Augusto e Geraldo Carneiro.

A poesia marginal juntamente com a poesia beat registrou na sua estética temas do seu

cotidiano. Falaram sobre sexo, utilizaram palavrões, gírias, as drogas, vistas pelo beat e

marginal como componente transcendental, de escapismo, o drop out (cair fora), para os beats

a droga estava ligada à Nova Visão que fundia “a vidência resultante do desregramento de

sentidos em Rimbaud; o misticismo visionário de William Blake, mais aquele de Yeats,

especialmente em A Vision” (WILLER, 2009, p. 49), consumidas para debates filosóficos,

literários, para escreverem sem parar ou para reviverem autores, pois “projetaram em seu

comportamento os autores que liam: (...) ao terem visões, eram Blake, Yeats ou Böhme; sob

alucinógenos reviviam De Quincey, Baudelaire, Michaux;” (WILLER, 2009, p. 52) e

projetaram-se também na figura de Adous Huxley autor de As portas da percepção. Por

exprimirem em sua poesia atitudes de sua realidade, foram acusados de incultos e iletrados

pelo cânon de seus países. Os beats sofreram nos Estados Unidos:

É possível mostrar que o fundamento das objeções à espontaneidade e ao informalismo era a suposição de serem manifestações de incultura, ignorando que Ginsberg, Kerouac, Burroughs, Corso etc., foram dedicados leitores e pesquisadores. Mas suas leituras não eram as da comunidade acadêmica; por conseguinte, não existiam. Desconheceram que, antes de criar obra espontânea e informal, haviam produzido bastante texto formal, conforme os padrões. (WILLER, 2009, p. 98)

No Brasil a geração desbunde – influência da contracultura - dos anos 70 reagiu

através do escapismo que está relacionado à marginalidade ideológica da poesia.

O fato é que a poesia do desbunde não se prende a diretrizes estéticas nem políticas, e esse descompromisso resulta num tratamento irreverente, irônico, de todos os temas, indistintamente, fato que também reflete uma visão crítica da sociedade (e portanto uma atitude política), porém com bom humor. È o que distingue tais poetas não só dos marginais engajados como de todos os autores considerados “sérios” na história da nossa literatura. Nesse sentido, convém frisar bem, os desbundados são realmente uma exceção (MATTOSO, s/d, p. 40)

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Poesia de caráter desbundado, com o nome de Rápido e Rasteiro, poema

descompromissado, celebrando a vida e sugerindo a dança; de Chacal:

vai ter uma festaque eu vou dançaraté o sapato pedir para pararaí eu paro, tiro o sapatoe danço o resto da vida.

.

A contracultura deixou marcas comportamentais às gerações posteriores e o ano de 68

foi um marco na história mundial, com muitas das conquistas da modernidade nascendo ou

sendo implantadas nesse ano. Como o novo prisma frente aos direitos das mulheres; com

imagens marcantes, como o das mulheres queimando os sutiãs em praça pública, alcançando

direitos à igualdade dos gêneros e de trabalho. Dos negros, com sua luta pelos direitos civis e

contra a segregação racial, nos Estados Unidos, tendo como principal porta-voz o pastor

Martin Luther King, que pregando a resistência pacífica, foi assassinado. Das minorias (como

gays e lésbicas), da juventude, etc:

Quarenta anos depois, 68 continua enigmático, estranho e ambíguo como um adolescente em crise existencial. Ele foi o ano da livre experimentação de drogas. Das garotas de minissaia. Do sexo sem culpa. Da pílula anticoncepcional. Do psicodelismo. Do movimento feminista. Da defesa dos direitos dos homossexuais. Do assassinato de Martin Luther King. Dos protestos contra a Guerra do Vietnã. Da revolta dos estudantes em Paris. Da Primavera de Praga. Da radicalização da luta estudantil e do recrudescimento da ditadura no Brasil. Da tropicália e do cinema marginal brasileiro. Foi, em suma, o ano do “êxtase da História”, para citar uma frase do sociólogo francês Edgar Morin, um dos pensadores mais importantes do século XX. Foi um ano que, por seus excessos, marcou a humanidade. As utopias criadas em 68 podem não ter se realizado. Mas mudaram para sempre a forma como encaramos a vida. (SEGALLA, 2008, p. 23)

Uma geração que intentou a revolução política, mas acabou realizando uma revolução

comportamental. E para Zuenir Ventura:

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Realmente eles mudaram os costumes, mudaram os hábitos, mudaram a maneira de pensar, a maneira de ser, os valores. Quando você olha para hoje, muitas das conquistas da modernidade foram gestadas ou nasceram em 68. Movimentos como o ecológico, o feminista, o gay, o negro, nasceram em 68 ou adquiriram uma importância muito grande nesse momento. Do ponto de vista do comportamento, o legado de 1968 é inegável. Claro que isso está associado, por exemplo, ao avanço da ciência. Uma dessas conquistas mais significativas é a da pílula anticoncepcional, que não nasceu em 1968, mas que se expandiu pelos campi das universidades neste ano. E ela foi muito responsável pela revolução sexual, que durou até pelo menos a chegada da Aids, que foi uma espécie de contra-revolução. (...) argumentos para mostrar que muita coisa boa aconteceu – a valorização das minorias, a preocupação com o outro, os movimentos coletivos, a generosidade, a entrega a uma causa a ponto de você arriscar a vida por ela, a ética na política, a paixão pela causa pública foram valores de 68 que são inestimáveis até hoje2.

Portanto, ao considerar os meios pelos quais a literatura é transmitida, o seu suporte, a

literatura dos anos 70 desafiou a ideia da escrita, do livro de editora e comercial como único

meio válido e se apossou novamente da voz e do corpo do poeta como suporte poético.

Os autores beat são quem reinauguram nos anos 50, a performance de ler ou dizer seus

próprios poemas em público. Influenciaram a geração marginal no Brasil e o movimento

desencadearia a contracultura dos anos 60.

O exercício da contracultura, por sua vez, desembocaria, numa prática de subversão política,

com a repulsa à guerra no Vietnã e ao próprio way of life americano que acabou marcando uma era de

revolta pacífica, através de grandes manifestações hippies, ou pelo fortalecimento dos movimentos das

minorias como o feminista, o dos gays/lésbicas e dos negros. A performance de poesia que era

aplicada na cena alternativa estava relacionada também com todo o movimento questionador e

transformador daquela geração, portanto, tinha um fim político.

No Brasil esse movimento também é encontrado e temos jovens vendendo nas portas dos

cinemas, teatros, showzinhos, etc., os livros que foram confeccionados, editados e escritos por eles

mesmos. O grupo Nuvem Cigana (1972 a 1981) criou um tipo de performance festiva chamada

Artimanha, que reunia várias áreas: carnaval, editoração, cenografia, iluminação e produção de

eventos. O Nuvem Cigana trabalhava o ano todo, com lançamento de livros e shows, tornou-se

sobretudo a base do movimento de poesia marginal.

Julgar a poesia beat e marginal como sendo pobre ou meramente autobiográfica, como fazem

os críticos, deixa de fazer sentido, pois se deve reconhecer o valor cultural e geracional desses

movimentos, como também, olhá-los por um novo prisma, livre de preconceitos estéticos.

2 <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI4696-15254-1,00-O+ANO+DAS+TRANSFORMACOES.html>. Acesso em: 09 dez. 2009.

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BIBLIOGRAFIA

CAMPEDELLI, Samira Youssef, Poesia marginal dos anos 70. São Paulo: Scipione, 1995.

GOFFMAN, Ken, JOY, Dan. A contracultura através dos tempos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

WILLER, Claudio. Geração beat. Porto Alegre: L& PM, 2009.

KEROUAC, Jack. On the Road-Pé na estrada. tradução Eduardo Bueno: Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1986.

ROSZAK, Theodore. A contracultura. Petrópolis: Vozes, 1972.

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