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  • A CONTRIBUIO DA UNIVERSIDADE PARA A FORMAO DO SUJEITO MORAL

    Fernanda Santos Bastos1

    Resumo: Este estudo examina a relao entre a formao da conscincia moral e o trabalho pedaggico da universidade. O desenvolvimento do trabalho agrega o entendimento da escola moderna como principal agncia formadora do sujeito tico-moral, sendo essa tese assumida no discurso legal na educao contempornea. Assim, discute-se a formao de professores face aos desafios da constituio do sujeito moral. Diante das anlises, afirmamos as limitaes da escola no que concerne constituio dos elementos necessrios conscincia moral, seja ela heternoma ou autnoma.

    Palavras-chave: Conscincia moral. Disciplina. Educao universitria. Formao docente. Sujeito tico-moral.

    1 Introduo

    As prticas educativas vm assumindo diferentes formas ao longo da histria, variando conforme o tempo e o espao sociais. Diante dos estudos realizados por pesquisadores em diversas reas do conhecimento Histria, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Filosofia

    dentre outras afirma-se a existncia de processos educativos em toda

    Prxis Educacional Vitria da Conquista v. 4, n. 5 p. 173-190 jul./dez. 2008

    1 Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia. Ps-graduanda em Docncia do Ensino Superior, ABEC-CEPPEV. Coordenadora Pedaggica do CEFET-BA, Unidade de Ensino de Santo Amaro. E-mail: [email protected]

    ARTIGOS

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    e qualquer sociedade humana, desde os tempos mais remotos, quando os indivduos so submetidos a processos de aquisio de informaes

    que se convertem em conhecimentos, valores, habilidades e atitudes que constituem modos de compreenso do mundo.

    Atualmente, ganha fora o discurso sobre educao integral que compreende as vrias facetas da formao humana: educao corporal, educao intelectual, educao sexual, educao ambiental, educao afetiva. Dentre essas diversas dimenses, encontra-se tambm a educao

    moral que, sendo um dos componentes da formao do homem, essencial completude de tal processo, pois atravessa todos os mbitos da educao e da personalidade (PUIG, 1998).

    Em linhas gerais, podemos dizer que essa preocupao com a formao moral, embora no seja recente, se deve a uma crise social generalizada, sobretudo na dinmica do controle da vida humana institucional e associada, que provoca um redimensionamento dos valores e das regras. incontestvel a afirmao de que o mundo

    contemporneo est em transio e marcado pelas constantes crises, seja no campo social, poltico, econmico, cultural e marcado, tambm, pela corrupo e falncia de algumas instituies sociais como a igreja,

    a famlia e a escola, responsveis pela educao.Noutra direo, mudanas de valores e crenas pessoais e culturais

    apontam para uma nova viso de mundo, em que a valorizao do ser humano e do esprito passa a ser a prpria essncia da vida. Este rpido panorama evidencia a importncia da Educao Superior no pas, que, apesar das crises que atravessa, uma das mais respeitadas instituies

    sociais no que concerne formao dos formadores dos cidados.As instituies educativas formais2, alm de serem um lugar de

    transmisso de um saber sistematizado e socialmente legitimado, so tambm um local de internalizao de idias, valores e atitudes que podem contribuir para a manuteno ou transformao do status quo vigente.

    Essa compreenso sobre o papel das instituies educacionais

    partilhada por diferentes tericos (Kant, Durkheim, Foucault e outros) 2 O termo formal est indicando os locais onde o processo educativo reconhecido legalmente e ocorre sistematicamente.

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    que consideram a escola como um espao de desenvolvimento da conscincia moral do sujeito e, a partir da Modernidade, de formao para a cidadania. A pessoa moral se constitui na vida intersubjetiva e social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes de sua sociedade. Essa educao se d em diversas instituies sociais:

    famlia, escola, igrejas, sindicatos etc. Sendo a escola a instituio legitimada pela sociedade como local privilegiado de transmisso de saberes e valores socialmente relevantes, caber a ela desenvolver a conscincia moral dos indivduos (CHAU, 2003).

    A Universidade faz parte desse sistema na medida em que reconhecida como uma instituio social responsvel pela difuso do conhecimento e pela gerao de novos saberes pautados nos princpios da verdade, da justia, da igualdade e do belo, comunicando-os sociedade.

    O presente artigo se prope a examinar a relao entre o trabalho

    pedaggico da Universidade na contemporaneidade e a formao do sujeito moral. O itinerrio traado pretende: avaliar as relaes entre

    as finalidades da universidade e suas incidncias sobre a formao

    da conscincia moral dos indivduos e analisar os documentos legais que norteiam a prtica pedaggica no ensino superior no Brasil e suas implicaes para a constituio do sujeito moral.

    Tem-se em mente que o trabalho ora apresentado pode refletir

    uma das vises possveis sobre as relaes que podem ser estabelecidas

    entre o trabalho pedaggico da universidade e a socializao dos seus alunos, no sentido de promover a formao do sujeito moral. A leitura aqui realizada pode contribuir para uma apreciao mais aprofundada sobre a responsabilidade que vem sendo atribuda s instituies

    educativas na formao do sujeito moral, discernindo com mais clareza as suas possibilidades e os seus limites no desempenho desse papel.

    2 Educao universitria: (des)construtora do sujeito moral

    A modernizao das sociedades europias promoveu significativas

    mudanas em vrios mbitos da sociedade social, econmico, poltico, cultural etc. sobretudo na esfera cultural, ao promover a laicizao,

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    emancipando a conscincia humana, e a racionalizao da cultura. Essa revoluo implicou em mudanas na educao que passou a ser compreendida, numa tradio que se inicia com Rousseau, como um processo de aquisio de ensinamentos necessrios formao do sujeito tico-poltico (CAMBI, 1999).

    A educao ter como finalidade a formao do sujeito tico-

    poltico, ativo na sociedade do qual parte integrante. Segundo Cambi (1999), alm da famlia e da igreja, outras instituies sociais (hospitais,

    prises, manicmios, etc.) constituem-se em locais formativos agindo

    em funo do controle e da conformao social, operando no sentido educativo. Dentre essas instituies, a escola ocupa um lugar de destaque

    centralizando os processos educativos e responsabilizando-se pela formao da conscincia moral do indivduo.

    Em se tratando do ensino superior, Santos (2005) caracteriza com propriedade a educao universitria localizando-a no tempo e espao sociais. A intrnseca relao entre educao e a estrutura socioeconmica e poltica, proclamada, inclusive, pela clebre frase de Manacorda (1997, p. 249) fbrica e escola nascem juntas, expressa as transformaes

    a que foi submetido o sistema educacional, transformando, junto com ele, os processos de trabalho, as idias e a moral dos indivduos na sociedade moderna. Mudanas que deixaram marcas na sociedade contempornea. Isto significa que a universidade tambm assume um

    carter ideolgico tornando-se um agente de disseminao e reproduo da cultura dominante. Assim, converte-se num aparato ideolgico do Estado, como diria Althusser (Apud CAMBI, 1999, p. 207).

    Conforme Jaspers (apud SANTOS, 2005, p.188), a universidade pode ser conceituada como um lugar onde por concesso do Estado e da sociedade uma determinada poca pode cultivar a mais lcida conscincia de si prpria, congregando-se em torno dela os seus membros com o nico objetivo de procurar, incondicionalmente, a verdade, que direciona os seus objetivos:

    porque a verdade s acessvel a quem a procura sistematicamente, a investigao o principal objetivo da universidade; porque o mbito da verdade bem maior que o da cincia, a universidade deve ser um centro de cultura, disponvel para a educao do

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    homem no seu todo; finalmente, porque a verdade deve ser transmitida, a universidade ensina e mesmo o ensino das aptides profissionais deve ser orientado para a formao integral. (JASPERS apud SANTOS, 2005, p.188).

    Em suma, os trs grandes fins da universidade so: a transmisso

    da cultura; o ensino das profisses orientado para a formao

    integral; e a investigao cientfica. Alis, a investigao, que a busca

    desinteressada pela verdade, a paixo pelo avano da cincia, constitui a marca ideolgica da universidade moderna. Sempre foi considerada o fundamento e a justificao da educao universitria, o contexto ideal

    para o florescimento dos valores morais que so essenciais formao do

    carter humano. O discurso legal referenda essa concepo ao elaborar documentos norteadores da organizao do trabalho pedaggico.

    A Constituio Federal Brasileira (BRASIL, 2004) de 1988, define

    a educao como direito subjetivo de todos e garante o acesso ao ensino obrigatrio e gratuito para todos nas escolas pblicas e, ao mesmo tempo, incumbe Unio a tarefa de fixar as diretrizes e bases da educao

    nacional. Os preceitos constitucionais possibilitaram a organizao de um sistema de ensino nacional de educao como instrumento de democratizao da educao pela via da universalizao da escola bsica. Entretanto, no se trata apenas de universalizar a educao bsica, mas tambm tem sido adotada, pelo Estado brasileiro, uma poltica de expanso e democratizao do ensino superior (SAVIANI, 1998).

    A elaborao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB n. 9.394/96) apontou o caminho para realizar a possibilidade evocada na constituio. Promulgada em 20 de dezembro de 1996, a atual LDB estabelece que:

    Art. 1- A educao abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivncia humana, no trabalho, nas instituies de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizaes da sociedade civil e nas manifestaes culturais.

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    1. Esta Lei disciplina a educao escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituies prprias. 2. A educao escolar dever vincular-se ao mundo do trabalho e prtica social.

    Art. 2 - A educao, dever da famlia e do Estado, inspirada nos princpios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho. (BRASIL, 2006).

    A leitura do texto da LDB 9.394/96, no que se refere a esses dois artigos, d margem a uma concepo de educao constitutiva de processos formativos que, apesar restringi-la, no pargrafo 1, ao mbito da educao escolar. Tais processos, inspirados nos ideais de liberdade e solidariedade humana, devem promover o pleno desenvolvimento do homem, seu preparo para o exerccio da cidadania e qualificao para o trabalho. Atribui

    famlia e ao Estado a responsabilidade pela educao.Podemos ento dizer, a partir de uma interpretao da lei, que a

    educao ganha uma dimenso integral preconizando a integralidade do desenvolvimento humano, via educao escolar (JASPERS apud SANTOS, 2005).

    Consoante essa idia, a educao universitria na contemporaneidade ainda abarca a dimenso moral da formao humana destacando a escola como local privilegiado para o desenvolvimento dessa tarefa, pois, apesar da formao profissional especializada, o ensino deve buscar desenvolver

    o sujeito na sua integralidade, articulando as dimenses epistemolgica,

    tica e esttica.Entre as tendncias para o sculo XXI, ganha fora o discurso

    sobre a educao integral. Delors (2005) apresenta, no relatrio elaborado para a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a

    Cultura (UNESCO), fruto das discusses da Comisso Internacional

    sobre a Educao para o sculo XXI, os quatro pilares que devem ser a base da educao: aprender a conhecer, a aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser.

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    O primeiro deles, aprender a conhecer, enfatiza a necessidade de abertura para o novo e o constante processo de aprendizagem. Naturalmente, o ensino proporciona a aprendizagem de saberes necessrios apreenso do mundo que rodeia o educando. Entretanto, faz-se necessrio considerar o conhecimento como uma representao da realidade, suscetvel a erros e mudanas. Conhecer significa apreender o objeto de conhecimento em sua essncia e particularidades, contextualizando-o. Isto implica um processo constante de aprendizagem onde aprender a aprender torna-se fundamental.

    O segundo pilar, aprender a fazer, decorre do primeiro, pois conhecer e fazer constituem-se em componentes imbricados no processo de ensino-aprendizagem. Refere-se capacidade de mobilizar os conhecimentos construdos frente a numerosas situaes. Coloca em

    prtica o conhecimento cultivando as qualidades humanas no trabalho em equipe, formando alianas, aprendendo a solucionar conflitos.

    Esse pilar destaca a importncia da relao entre a coletividade e a individualidade dos sujeitos num processo de tomada de decises.

    O terceiro pilar aprender a viver juntos. Refere-se aprendizagem de conhecimentos que possibilitem a compreenso de si mesmo e do outro, percebendo as interdependncias e semelhanas entre os seres humanos.

    O quarto e ltimo pilar, aprender a ser, exercita o auto-conhecimento. atravs do reconhecimento do nosso prprio ser que passamos a conhecer a complexidade da natureza humana. Essa percepo conduz a uma verdadeira confiana de si prprio; sua ateno

    plena passa a representar uma fonte geradora de fora, uma base segura de sustentao que nos equilibra na relao com ns mesmos e com os outros. Esse pilar afirma o desenvolvimento integral da pessoa,

    isto , esprito e corpo, inteligncia, sensibilidade, sentido esttico, responsabilidade pessoal. Cabe educao preparar a pessoa no apenas para a sociedade do presente, mas criar um referencial de valores e de meios para compreender e atuar em sociedades que dificilmente

    imaginamos como sero (DELORS, 1998). Em suma, esses quatro

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    pilares devem estar presentes na poltica de melhoria da qualidade da educao, pois eles abrangem o ser em sua totalidade, do cognitivo ao tico, do esttico ao tcnico, do imediato ao transcendente.

    Da idia apresentada pelos pilares decorre a seguinte interpretao: na educao escolar residem as possibilidades de interveno educativa para a constituio do sujeito moral. Puig (1998, p. 20) reconhece importncia da educao moral que se converte no ponto central da educao porque pretende dar direo e sentido ao ser humano como um todo. Entendida como o eixo transversal de todo o processo educativo, a educao moral um aspecto-chave da formao humana. Salienta ainda a contribuio da pedagogia, j que ela incide na prtica escolar, ao dizer que

    a pedagogia dificilmente pode desconsiderar o imperativo de contribuir para tornar melhores as relaes entre os homens e os grupos humanos e tambm porque a formao da individualidade moral depende da qualidade do espao social em que cada indivduo se forma. (PUIG, 1998, p. 20).

    A contribuio da pedagogia reside, pois, na criao de condies

    que favoream a construo e otimizao das relaes intrapessoais,

    interpessoais e ambientais considerando a dimenso sociocultural do ambiente em que se desenvolve o processo educativo.

    A conscincia moral do indivduo no um dado gentico, mas se estabelece num processo de aprendizagem ao longo da vida. nesse caminho que o homem se constitui um sujeito tico moral. Ele se constri como ser social ao longo de um processo, aprendendo a deliberar, escolher, decidir e agir de forma refletida. A existncia

    desse sujeito se condiciona a quatro elementos constitutivos de sua natureza. Primeiro, necessrio que o indivduo tenha conscincia de si mesmo e dos outros, reconhecendo-os como sujeitos ticos iguais a si. Segundo, que ele seja dotado de vontade, isto , seja capaz de controlar e orientar seus desejos em conformidade com as normas e os valores reconhecidos pela conscincia moral, bem como de deliberar e decidir

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    dentre vrias alternativas possveis. Em terceiro, ser responsvel por seus atos avaliando e respondendo pelas conseqncias deles. E o quarto elemento refere-se liberdade, conduzir a si mesmo outorgando-se as regras de conduta (CHAU, 2003).

    De fato, a educao se apresenta como uma prtica social intimamente associada ao desenvolvimento integral do sujeito, comprometida com a formao da cidadania e seu pleno exerccio. A essa concepo subjaz a dimenso moral da educao e sua efetivao na instituio escolar expressando a importncia dada a essa questo que est ratificada nos discursos oficiais (Constituio Federal de 1988,

    a LDB 9.394/96, dentre outros).Entretanto, convm nos questionarmos sobre a aplicabilidade

    das propostas oficiais diante da realidade da educao pblica brasileira:

    condies de trabalho e remunerao dos profissionais inadequadas,

    parco investimento por parte do Estado nas instituies de ensino

    pblicas, formao de professores que no atende s reais demandas sociais, dentre outros fatores.

    Embora, ao longo dos anos, vrias polticas e reformas legislativas tenham incorporado a crescente tendncia democratizao e universalizao do ensino pblico, em todos os nveis e modalidades, a realidade indica que essas polticas tm apresentado poucos resultados significativos e permanentes em termos qualitativos.

    Levando em conta essa realidade, pergunta-se: Como se materializa, na realidade das instituies de ensino pblicas brasileiras

    nos diferentes nveis e modalidades de ensino, o discurso presente nos discursos oficiais?

    No queremos desmerecer os mritos desse discurso, pelo contrrio. Afirmamos a sua importncia dado o reconhecimento de que

    a tica permeia as relaes humanas, sociais, cientficas e necessita ser

    tratada com urgncia no mbito educacional. Entretanto, essa uma proposta difcil de materializar sem que haja um agente centralizador. Isto porque o prprio Ministrio da Educao (MEC) reconhece que a tica, que no limitada a uma disciplina cientfica e que compe um continente

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    de problemas to antigo e complexo quanto a prpria Filosofia, no

    deve ser caracterizada como uma disciplina a ser lecionada, mas deve ser aplicada como um tema transversal que perpassa todas as disciplinas. A dificuldade reside no fato de que transversalidade responsabiliza a

    todos pela implementao da proposta, entretanto, ela se dissemina de tal forma nas atividades escolares que se corre o risco da superficialidade

    ou at mesmo do esquecimento.O desenvolvimento de um trabalho srio perpassa pelo domnio

    de quem se prope a fazer: dos conhecimentos sobre o campo tico

    e do desenvolvimento de competncias cientficas e habilidades (bem

    desenvolvidas, bvio) concernentes ao trabalho com a tica. Isto implica, numa sria e slida formao inicial docente que contemple a formao humana.

    2 A formao de professores face aos desafios da exigncia do

    desenvolvimento humano

    A construo da conscincia moral autnoma requer a considerao de determinadas e complexas condies sociais e prticas

    educativas reflexivas e dialgicas.

    Nesse sentido, o educador assume papel fundamental. A autoridade do educador reside em sua superioridade cultural e tcnica. O domnio do conjunto de conhecimentos e habilidades morais legitima a sua interveno junto aos educandos que se encontram em desenvolvimento. Atua de modo a possibilitar a aquisio dos valores morais ou contedos ticos que constituam a conscincia moral autnoma. Os educandos, por sua vez, so sujeitos ativos que aprendem por meio da atividade (PUIG, 1998).

    A importncia da interveno do educador na aprendizagem da moral apresentada por Rosa(2001) num artigo que aborda o estudo sobre a relao entre o trabalho pedaggico e a socializao, realizado em uma escola comunitria e em uma escola pblica. Segundo a autora,

  • 183A contribuio da universidade para a formao do sujeito moral

    uma das questes da maior relevncia para o desenvolvimento da educao moral na escola a capacidade da escola e a habilidade do professor de fazer com que o aluno se exercite, com o assessoramento do professor, no tratamento de problemas morais. (ROSA, 2001, p. 117).

    A escola deve criar todas as condies necessrias ao

    desenvolvimento do sujeito moral (clima escolar, as relaes intra e

    extra-escolares, as relaes interpessoais, currculo contextualizado

    etc.) associadas competncia do professor no que concerne prtica voltada para a abordagem da tica.

    O que se percebe que a ao do professor torna-se indispensvel para a consecuo dos objetivos propostos nos documentos legais que versam sobre a educao Importa saber se a formao desses educadores, pelo menos as diretrizes para os cursos de formao de professores da educao bsica, em nvel superior, comporta essa discusso.

    Embora no seja recente, a discusso em torno do tema formao de professores, em especial da educao bsica, sempre pertinente quando tratamos quer seja dos avanos e sucessos e das prioridades em educao, quer seja do seu fracasso expresso nos nmeros alarmantes de evaso, repetncia etc.

    O Ministrio da Educao elaborou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formao de Professores da Educao Bsica, em nvel superior, curso de licenciatura, graduao plena, definidas na

    Resoluo CNE/CP n. 1, de 18 de fevereiro de 2002, que buscam orientar as instituies de ensino superior na melhoria da qualidade da

    educao a partir da adequao curricular, respeitando aspectos legais que regem a educao brasileira (Constituio Federal de 1988 e as Leis de Diretrizes e Bases da Educao Nacional n 9.394/96) e, ao mesmo tempo, assegurando as particularidades regionais/locais.

    Nesse documento, v-se reconhecida a necessidade de tratar da formao do sujeito tico-moral ao estabelecer a aprendizagem como processo de construo de conhecimentos, habilidades e valores em interao com a realidade e com os demais indivduos, no qual

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    so colocadas em uso capacidades pessoais (BRASIL, 2007b, p. 2). Tambm reconhece a necessidade de o Estado democrtico investir na escola a fim de que ela possa preparar e instrumentalizar indivduos e

    jovens para o processo democrtico, por meio do acesso educao e s possibilidades de participao social.

    As diretrizes definem:

    Art. 6 Na construo do projeto pedaggico dos cursos de formao dos docentes, sero consideradas:I - as competncias referentes ao comprometimento com os valores inspiradores da sociedade democrtica;II - as competncias referentes compreenso do papel social da escola;III - as competncias referentes ao domnio dos contedos a serem socializados, aos seus significados em diferentes contextos e sua articulao interdisciplinar;IV - as competncias referentes ao domnio do conhecimento pedaggico;V - as competncias referentes ao conhecimento de processos de investigao que possibilitem o aperfeioamento da prtica pedaggica;VI - as competncias referentes ao gerenciamento do prprio desenvolvimento profissional. 3 A definio dos conhecimentos exigidos para a constituio de competncias dever, alm da formao especfica relacionada s diferentes etapas da educao bsica, propiciar a insero no debate contemporneo mais amplo, envolvendo questes culturais, sociais, econmicas e o conhecimento sobre o desenvolvimento humano e a prpria docncia. (BRASIL, 2007b, p. 3).

    A partir da leitura desse artigo, possvel afirmar que o processo

    de formao dos professores dever constituir-se numa prtica atravs da qual podero ser desenvolvidas as capacidades humanas (fsicas, psquicas, intelectuais, morais) at que atinjam seu melhor estado. Para isso, necessria a criao de certas condies que promovam a

    aprendizagem de contedos referentes s diversas reas do conhecimento necessrias preparao do docente para que este possa participar ativamente da sociedade e mediar a construo do conhecimento de outros sujeitos.

  • 185A contribuio da universidade para a formao do sujeito moral

    necessrio contemplar, nos currculos dos cursos de formao de professores, de seus alunos/educadores considerando que valores e regras so transmitidos atravs das relaes interpessoais entre os

    diversos atores da escola (professores, alunos, funcionrios, etc.) e da organizao institucional.

    Neste sentido, h que se buscar uma formao docente humanitria alinhada Pedagogia Libertadora que tem como grande pensador Paulo Freire, que permita ao aluno/educador desenvolver as competncias relacionadas tica enquanto um tema transversal a ser abordado no espao educativo. O pensamento freireano admite a necessidade de uma prtica educativa que ultrapasse os limites tcnicos, caracterizando-se como acolhedora, amorosa, dialgica, que provoca a possibilidade do humano tornar-se humano, tico, esttico e epistmico, estruturando-se como um todo integrado em uma relao de cooperao e amor no mundo e para com o mundo do qual parte integrante (ALVES, 2006).

    Em sua obra, Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire (1996) discute os saberes necessrios formao docente que so demandados pela prtica educativa em si mesma, independentemente da opo poltica do educador. Por isso mesmo, ele utiliza como subttulo da obra saberes necessrios prtica educativa.

    O autor afirma que ensinar e aprender fazem parte do processo de

    apropriao do conhecimento. So faces de uma mesma moeda. Quando h capacidade de refazer o que foi ensinado, reconstruir o conhecimento, de fato houve ensino e aprendizagem. Freire (1996, p. 25) afirma que

    quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. No h ensino sem aprendizagem nem aprendizagem sem ensino.

    Educador e educando so sujeitos do processo de elaborao do conhecimento. Nesta relao de construo epistemolgica no h espao para a passividade, para a submisso. O exerccio de aprender exige a curiosidade epistemolgica que se ope prtica bancria. Isto

    significa tornar o aprendiz um aventureiro na seara do conhecimento, um

    curioso insacivel, um rebelde, que no se conforma com as respostas, mas, antes, questiona, busca perguntas, instiga a dvida.

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    O educador democrtico deve cultivar, em sua prtica, o fomento capacidade crtica do educando, sua insubmisso, sua curiosidade epistemolgica. Deste modo, uma das tarefas primordiais do educador trabalhar com os educandos a rigorosidade metdica com que devem apreender os objetos de conhecimento, pois ensinar exige pensar certo: refletir, relacionar, contextualizar, compreender, criticar. Alis, este um

    ensinamento-aprendizado essencial constituio da conscincia moral, posto que esta exige a racionalizao das aes.

    O ensino e a aprendizagem do conhecimento j existente e a reflexo em torno dele permite a reconstruo de forma a produzir

    um novo conhecimento, constituindo o que Freire (1996) denomina de ciclo gnosiolgico. Neste caminho de elaborao e reelaborao do conhecimento, ensinar exige criticidade e pesquisa, ou seja, a pesquisa torna-se um princpio educativo. Isto porque a curiosidade inerente condio humana, vital, sendo histrica e socialmente reconstruda.

    Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. Isto implica no compromisso da escola e dos educadores e educadoras com os saberes dos educandos, sobretudo aqueles oriundos das classes populares. Neste sentido, o currculo escolar deve ser um documento de identidade da comunidade escolar, vinculado, ou melhor, enraizado na realidade dos educandos, respeitando os saberes populares, desvelando as suas implicaes polticas e ideolgicas e buscando tornar-se um saber

    metodicamente rigoroso.O autor afirma ainda que ensinar exige esttica e tica porque ambas

    fazem parte da formao humana. Por isso, Freire (1996, p. 37) afirma

    que o ensino dos contedos no pode dar-se alheio formao moral do educando. Educar substancialmente formar. O pensar certo exige que o educador assuma as suas escolhas, suas opes polticas e ideolgicas

    perante os demais. A experincia tica propicia o investimento nos sujeitos humanos inserindo-os no universo da sociabilidade e das relaes. A

    legitimidade da educao perpassa pela dimenso tica.Consoante esta idia, Freire (1996) afirma que ensinar exige a

    corporeificao das palavras pelo exemplo. Faz parte do pensar certo o

  • 187A contribuio da universidade para a formao do sujeito moral

    gosto pela generosidade e a prtica testemunhal. Faz parte, igualmente, do pensar certo a rejeio a qualquer forma de discriminao, o risco, a abertura ao novo. A relao educador e educando pressupe

    inteligibilidade, dilogo e respeito porque ensinar exige risco, aceitao do novo e rejeio a qualquer forma de discriminao.

    A mudana pressupe uma reflexo crtica sobre a prtica o que

    significa sair da posio de sujeito, assumindo-se como objeto de seu

    prprio conhecimento. Ensinar exige a reflexo crtica sobre a prtica,

    pois este um elemento fundante do processo de formao permanente do professor. Freire (1996, p. 44) afirma que o seu distanciamento

    epistemolgico da prtica enquanto objeto de sua anlise, deve dela aproxim-lo ao mximo.

    Freire (1996) afirma que ensinar exige o reconhecimento e a

    assuno da identidade cultural: a assuno de si mesmo enquanto um ser histrico, social, poltico, cultural, humano (afetividade). Implica uma prtica educativa acolhedora, reconhecedora e valorativa das diferenas, pluralidade, dos sentimentos, emoes e afetividade. Por isso, uma

    das tarefas mais importantes da prtica educativo-crtica propiciar as condies em que os educandos em suas relaes uns com os outros e

    todos com o professor ou a professora ensaiam a experincia profunda de assumir-se (FREIRE, 1996, p. 46).

    O importante sermos docentes-discentes buscando submeter a nossa natureza intuitiva a uma anlise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemolgica. Por isso, nenhuma formao docente deve estar alheia ao exerccio da criticidade, que implica na promoo da passagem da curiosidade ingnua para a epistemolgica, e nem tampouco alheia valorizao dos sentimentos, das emoes, da sensibilidade, da

    afetividade, enfim.

    Substancialmente, os saberes apontados por Freire (1996) como indispensveis prtica educativa caracterizam uma proposta de formao docente que congrega as diretrizes curriculares nacionais para a formao de professores da educao bsica. Intrinsecamente, revela os atributos necessrios constituio da conscincia moral: conscincia de si e reconhecimento do outro, vontade, responsabilidade e liberdade.

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    5 Consideraes finais

    A concepo de educao elaborada no seio da Modernidade laica e racional associa-se emancipao do homem e formao do cidado. Encontra-se arraigada a essa compreenso a formao da conscincia moral desenvolvida, principalmente, sob a responsabilidade da escola.

    Dado o reconhecimento da responsabilidade atribuda escola no que concerne formao do sujeito tico-moral, bem como da complexidade do tema tica, torna-se um imperativo contemplar tal conhecimento no processo de formao docente, j que este o principal responsvel por mediar o desenvolvimento dos valores morais ou contedos ticos que constituam a conscincia moral dos educandos. Cabe ao professor a responsabilidade pela mediao do processo de formao moral dos educandos dada a sua supremacia tcnica e cultural, da a importncia da qualidade da formao desses profissionais para

    realizar tal tarefa.A educao, especialmente aquela desenvolvida no ambiente

    escolar, ainda se apresenta como possibilidade de forjar o sujeito tico-moral por ser um espao destinado ao desenvolvimento integral do homem abarcando sua dimenso moral e resguardando a confluncia de

    fatores externos que concorrem para tal formao.

    THE UNIVERSITY CONTRIBUTION TO THE FORMATION OF MORAL INDIVIDUALS

    Abstract: This study examines the relation between moral conscience formation and the university pedagogic work. It makes use of the modern understanding of school as the main formation agency of ethical-moral individuals, argument assumed in the legal contemporary educational discourse. Therefore it is discussed the formation of teachers facing the challenges concerning the constitution of moral individuals. Based on the analysis, it is pointed out the school limitations regarding the existence of indispensable elements to the formation of moral conscience.

    Key words: Discipline. Ethical-moral individuals. Moral conscience. Teachers formation. Universitarian education. Referncias

  • 189A contribuio da universidade para a formao do sujeito moral

    Referncias

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    Artigo recebido em: 24/10/2007Aprovado para publicao em: 03/06/2008