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PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI ORIENTADOR PROF. DR. NELSON POPINI VAZ FLORIANÓPOLIS 2009

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PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER

VICENTE NASPOLINI

ORIENTADOR PROF. DR. NELSON POPINI VAZ

FLORIANÓPOLIS 2009

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DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM URBANISMO, HISTÓRIA E ARQUITETURA DA CIDADE

PGAU-CIDADE

PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER

VICENTE NASPOLINI

Dissertação de mestrado submetida ao programa de Pós-graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade, da Universidade Federal de Santa Catarina, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade. Linha de pesquisa: Configurações Regionais, Planejamento Urbano e Meio-Ambiente.

ORIENTADOR PROF. DR. NELSON POPINI VAZ

FLORIANÓPOLIS, ABRIL DE 2009

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A G R A D E C I M E N T O S

À CAPES, por ter financiado parte dos meus estudos;

À UFSC, por me propiciar chegar até aqui;

A todos os professores do PGAU-Cidade;

Aos professores Lino e Elson, por suas valiosas contribuições;

Ao professor Popini, por sua paciência e predisposição;

Aos meus clientes, por saberem esperar;

Aos meus amigos, por sua amizade;

À família Macari, pela ajuda inestimável;

À minha família, irmãos, pais e vó pelo suporte e pela torcida;

E, finalmente, à Anelise, por ter estado sempre comigo!

:)

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Se houvesse uma única verdade não seria possível pintar

cem telas com o mesmo tema

Pablo Picasso

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R E S U M O

Esta dissertação tem como tema as teorias sobre a cidade e o urbanismo, focando mais especificamente na obra teórica do sociólogo francês François Ascher. O urbanismo vem passando por uma crise paradigmática desde os anos 60/70, após longo tempo de hegemonia da corrente modernista. De lá para cá, tem-se assistido a uma profusão de opiniões, debates e discursos com o objetivo de darem conta de um devir da cidade que se torna cada vez mais incerto e inquietante. Nos últimos anos, alguns temas têm direcionado as reflexões urbanísticas: globalização cultural e econômica, generalização das tecnologias da informação e comunicação, governabilidade e gestão, dispersão urbana. O estudo focou-se sobre o pensamento de Ascher como fio condutor para abordar esses temas contemporâneos, ao mesmo tempo em que se analisa a própria contribuição do francês. Apresentou-se, assim, suas análises dos eventos históricos recentes, hipóteses de evolução, conceitos elaborados, como “metápole”, as defesas por uma governança urbana, gestão estratégica da cidade e pela adoção de novos princípios de urbanismo.

Palavras-chaves: urbanismo, teoria, paradigmas, François Ascher

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A B S T R A C T This dissertation has as its theme the theories about the city and

urbanism, focusing more specifically on the theoretical work of the french sociologist François Ascher. The town planning has been going through a paradigmatic crisis since the 60s/70s, after long time of hegemony of the modernist current. Since then, there has been a profusion of opinions, debates and speeches aimed at giving an account of the city evolution that is becoming increasingly uncertain and unsettling. In recent years, some themes have directed urban reflections: cultural and economic globalization, spread of information technologies and communication, governability, management and urban sprawl. This study addressed and focused on the thought of Ascher to make contact with these contemporary issues, at the same time it analyzes the contribution itself of the french thinker. Presented, therefore, its analysis of the recent historical events, development of hypotheses, concepts developed, as “metapolis”, the defenses of a urban governance, city strategic management and the adoption of new principles of urbanism.

Keywords: urbanism, theory, paradigms, François Ascher

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S U M Á R I O

LISTA DE IMAGENS E TABELAS ............................................................ 17

INTRODUÇÃO ....................................................................................... 19

CAPÍTULO I — URBANISMO E PARADIGMAS .................................... 23

CAPÍTULO II — SOCIEDADE HIPERMODERNA ................................... 47

CAPÍTULO III — METÁPOLE: A NOVA FORMA URBANA ................... 65

CAPÍTULO IV — GOVERNANÇA URBANA METAPOLITANA ............... 87

CAPÍTULO V — NOVOS PRINCÍPIOS DO URBANISMO ...................... 99

CONCLUSÃO ........................................................................................ 113

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 119

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L I S T A D E I M A G E N S E T A B E L A S IMAGENS Imagem 1: Proposta de Owen. ............................................................ 42Imagem 2: Cerdà, projeto de expansão para Barcelona, 1858. ......... 42Imagem 3: Hausmann, intervenções em Paris. ................................... 43Imagem 4: Howard, detalhe de sua "Rurisville", 1898. ...................... 43Imagem 5: Le Corbusier, Ville Contemporaine, 1922. ......................... 44Imagem 6: Mapa psicogeográfico proposto pelos situacionistas. .... 44Imagem 7: Walking City, a cidade do futuro. ...................................... 45Imagem 8: Las Vegas, um dos visuais da Strip. ................................... 45Imagem 9: Cidades com mais de 1 milhão de habitantes. .................. 82Imagem 10: Grandes conurbações. Urbanização aparente. .............. 82Imagem 11: População urbana e rural do mundo, 1950-2030. ............ 84Imagem 12: Contribuição do crescimento da população urbana e

rural ao crescimento total, 1950-2030. .....................................84Imagem 13: Modelo christalleriano. .................................................... 85Imagem 14: Modelo hub-and-spokes. (ASCHER, 1995) ....................... 85 TABELA Tabela 1: Megacidades e suas populações, 2005 e 2015. .................... 83

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I N T R O D U Ç Ã O

presente trabalho constitui-se numa pesquisa especificamente teórica. Isso quer dizer que ela se debruça sobre a teoria do urbanismo, detém-se sobre a dimensão

ideológica, sobre os pressupostos que fundamentam e as lógicas que sustentam o discurso e este, posteriormente, a prática urbanística. Além disso, possui um caráter expositivo, evitando-se ao máximo a interferência do autor na apresentação das ideias, além, obviamente, daquelas inerentes a qualquer trabalho e às quais não se pode escapar. A própria escolha do tema já representa uma tomada de posição particular e pessoal.

O interesse pelo assunto surgiu após a constatação da proliferação de visões e opiniões, tão distintas quanto numerosas, acerca de variados temas concernentes às cidades e seu desenvolvimento. Essa dissonância e falta de um paradigma comum e aceito amplamente cresceu no pós-segunda guerra e vem se estendendo até hoje. As novas proposições e teorias foram sendo continuamente ultrapassadas pelas rápidas mudanças estruturais ocorridas no mundo inteiro e que sempre se refletiram com grande intensidade no território.

Particularmente nos últimos anos, entrou na pauta das discussões a globalização econômica e cultural, as tecnologias avançadas de comunicação e transporte, a preocupação ambiental e a relação poder público/setor privado — ou, de forma mais clara, Estado/mercado. Tudo isso em conjunto levou os debates a um novo patamar de questionamentos, interpretações e prospectivas sobre o papel da cidade no contexto atual.

Devido ao curto tempo destinado à feitura deste trabalho,

O

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insuficiente para se fazer uma pesquisa aprofundada sobre o panorama teórico contemporâneo, decidiu-se restringi-lo à análise de um único estudioso do urbanismo, o sociólogo francês François Ascher, e através dele poder relacionar as principais questões que animam e suscitam o debate atual.

Ascher foi escolhido dentre tantos outros teóricos por três motivos básicos: a) sua reflexão atravessa vários campos relacionados à realidade da cidade em geral e à condição do urbanismo enquanto disciplina do conhecimento em particular; b) por deixar clara sua intenção de formar um novo paradigma no urbanismo e c) apesar de se embasar principalmente sobre o contexto francês e europeu, pretender que esse paradigma tenha caráter global, isto é, que suas problemáticas e seus conceitos se reflitam, com variações ocasionais e locais, no mundo globalizado.

Assim, a presente dissertação tem como pano de fundo as questões que estão no centro das pesquisas e das polêmicas acerca do urbano. Entre os objetivos desta dissertação estão o de realizar um exercício de análise e síntese de uma teoria do urbanismo, no caso a de François Ascher, de forma a apreendê-la criticamente; e aprofundar o conhecimento do meio acadêmico brasileiro no pensamento de Ascher, que, na maioria das vezes, limita-se a citar suas opiniões acerca da “dispersão urbana”, ou seja, de apenas um ponto de um quadro teórico bem mais amplo.

Além disso, constituindo os principais objetivos deste trabalho, tem como questões fulcrais a serem respondidas: qual o contexto em que aparecem os discursos de Ascher? Quais são os seus focos, seus temas privilegiados, suas problemáticas fundamentais a serem considerados na abordagem da cidade contemporânea? Quais os elementos que ajudam a construir sua visão de mundo? A que resultados, prescrições e recomendações ele chega? Enfim, qual o significado, implícito ou explícito, de seu paradigma?

Deste modo, a pesquisa se deu basicamente através de revisão bibliográfica. Primeiramente de obras do próprio Ascher, essencialmente livros e artigos publicados a partir de 1990, os quais foram considerados aqui neste trabalho como uma única obra, coesa e homogênea e não textos fragmentados e dispostos cronologicamente, expondo uma possível “evolução”. Isso porque

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não há negações ou contradições no conteúdo das publicações desse período, mas um contínuo alargamento e aprofundamento em relação ao que já foi tratado anteriormente.

Revisou-se também a bibliografia necessária e suficiente para tratar sobre temáticas atuais e históricas a fim de situar e contextualizar o pensamento ascheriano. Assuntos como revolução industrial, metropolização, evoluções econômicas, globalização e, claro, urbanismo foram tratados de modo a dar a compreensão das questões a que Ascher se refere.

O trabalho foi estruturado em cinco capítulos, cada um com um eixo temático próprio, dispostos numa seqüência lógica de dedução do mais geral ao mais particular, das transformações sócio-econômicas do século XIX aos princípios do urbanismo de hoje elaborados por Ascher.

No Capítulo I — Urbanismo e paradigmas — expõe-se uma correlação entre as grandes mudanças históricas decorrentes dos avanços técnicos e científicos, seus efeitos no espaço urbano e rural e as diversas respostas teóricas e práticas, vistos como expressões de paradigmas concorrentes. Iniciando no século XIX com a Revolução Industrial e o nascimento do urbanismo com pretensão científica, passando pela ascensão do fordismo no século XX, o modernismo, pós-modernismo até a inserção de Ascher nessa cadeia de ideias.

O Capítulo II — Sociedade hipermoderna — trata do cenário do pós-segunda guerra, a ascensão, consolidação e declínio do Estado keynesiano, a contraproposta neoliberal, a desregulamentação econômica e o predomínio do setor financeiro, a generalização das novas tecnologias de comunicação e informação. Para Ascher tudo isso contribui à terceira revolução urbana moderna, baseada, segundo ele, numa economia “cognitiva”, competitiva e incerta, e na emergência de uma sociedade hipermoderna, individualizada, racionalizada e diferenciada.

A cidade como objeto específico da reflexão contemporânea está presente no Capítulo III — Metápole: a nova forma urbana. Neste capítulo são elencados alguns autores contemporâneos e suas respectivas leituras da conjuntura urbana atual e futura. Dá-se atenção maior à obra de Saskia Sassen, na qual Ascher se ancora para descrever a situação da metrópole hoje e dela derivar a

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conceituação da “metápole”. A problemática política referente ao contexto da cidade

globalizada e individualizada é o tema do Capítulo IV — Governança urbana metapolitana. Nele é demonstrado a constatação de Ascher do declínio do interesse comum, da cidadania e da governabilidade; a progressiva dissolução da polarização direita/esquerda e a procura por uma terceira via; as contribuições das ciências “não-lineares” e da filosofia política na construção de um novo paradigma do Estado; a instituição de um poder público que dê conta e atue em múltiplos níveis, escalas e racionalidades, ou seja, a constituição de uma governança urbana metapolitana.

O derradeiro Capítulo V — Novos princípios do urbanismo — apresenta finalmente as considerações e proposições de Ascher ao urbanismo, sintetizados em dez princípios ao fim do capítulo. Eles expressam sua preocupação em suplantar o modo de pensar e agir positivista e simplista característico do modernismo “corbusiano” por uma abordagem mais condizente com a complexidade social e espacial atual. Assim, enxerga na gestão estratégica, oriundo do mundo corporativo, instrumentos e metodologias, um modus operandi, para lidar com as incertezas e variáveis mutantes cada vez mais freqüentes.

A Conclusão traz, por fim, um resumo do que foi tratado até então, seguido de uma breve reflexão sobre a aplicabilidade do pensamento de Ascher às tendências que se avizinham no vir-a-ser da cidade contemporânea, deixando em aberto questionamentos para futuras pesquisas.

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C A P Í T U L O I U R B A N I S M O E P A R A D I G M A S

Urbanismo sempre esteve envolto em debates questionadores de sua própria fundamentação enquanto disciplina. A impressão que temos é que ele ainda está longe

de poder autodenominar-se ciência no sentido rigoroso da palavra, ou seja, «conhecimento que inclua, em qualquer forma ou medida, uma garantia da sua própria validade»1

Além da dificuldade de delimitação de seu território de ação e definição de seus elementos e instrumentos analíticos, sua estreita relação com fenômenos sociais e políticos concretos o faz, algumas vezes, distorcer seus objetivos; em outras, o faz afastar-se de uma abordagem mais metódica e racional. Deste modo, a imparcialidade, a neutralidade e a autonomia “científicas” do urbanismo já se encontrariam, ab initio, comprometidas.

. Atualmente, pode-se considerá-lo, mais exatamente, como um campo técnico e acadêmico de constituição disciplinar variada, pois diferem as fontes, os valores, os métodos, os objetos, as técnicas, etc., dependendo da comunidade científica em geral, ou do pesquisador em particular, que o sistematize e lhe dê significado e coerência interna.

[...] a despeito de suas pretensões, o discurso do urbanismo continua normativo e só em caráter mediato compete a uma prática científica qualquer: seu recurso lícito e justificado às ciências da natureza e do “homem” se subordina a escolhas éticas e políticas, a finalidades que não pertencem somente à ordem do

1 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.

157.

O

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saber.2

A carga ideológica nos debates e pesquisas urbanísticas sempre foi — ainda é e talvez nunca deixe de sê-lo — muito significativa, fazendo com que o urbanismo fique dependente de discursos fundadores. Tais discursos constituem-se em corpos teórico-práticos que se colocam como novas abordagens sobre o fato urbano ao mesmo tempo em que estabelecem as diretrizes para a ação futura.

Esses mesmos discursos, expressões de “ideologias inconfessas e não-assumidas”3

Daí a necessidade de nos debruçarmos criticamente sobre a atividade teórica do urbanismo, pois nela se apóiam as práticas posteriores, sejam projetos, sejam políticas públicas. Isso não significa julgar e condenar a priori todo e qualquer discurso devido às questões levantadas acima, as quais deturpam suas pretensões científicas. Antes disso, trata-se de torná-lo transparente, clarificar seus propósitos e ordenar seus argumentos. Talvez assim, conhecendo e compreendendo as filigranas do discurso, evita-se que a prática resultante não amplifique, no espaço da cidade ou numa região mais ampla, paralogismos, equívocos, posicionamentos que trariam um alto custo econômico, social e político a médio ou longo prazo à sociedade à qual se dirige. Como veremos, discurso e prática sempre tiveram uma relação conflituosa e historicamente marcada por teses e antíteses, defesas e refutações, deturpações e manipulações.

, quando adquirem projeção entre certo número de pesquisadores e profissionais, se tornam verdadeiras doutrinas que conduzem estudos teóricos e aplicações práticas ulteriores. Nesse momento, evidentemente, assume um grau de importância elevado ao constatarmos que, sob o efeito dessas aplicações teórico-práticas à grande escala urbana, estão milhares, até milhões, de pessoas.

O urbanismo (enquanto campo de análise e proposições sistemáticas) possui uma história recente, surgindo como disciplina autônoma apenas no século XIX, datando deste mesmo período

2 CHOAY, Françoise. A Regra e o Modelo: Sobre a Teoria da Arquitetura e do Urbanismo.

São Paulo: Perspectiva, 1985, (Série Estudos), p. 2. 3 Ibidem, p. 2.

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também a própria invenção de seu nome. Mesmo assim, como era de se esperar, tem sua evolução marcada por diversos conflitos entre pensamentos, discursos, métodos e objetivos. Fundamentações várias, lógicas diferentes, objetos enfocados e definidos de modos díspares.

Essa evolução pode ser mais bem compreendida utilizando-se os conceitos de “paradigma” e “revolução científica”, como exposta por Thomas Kuhn em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas4

“Ciência normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior.

. Para Kuhn, a atividade científica divide-se em dois momentos básicos: a “ciência normal” e a “ciência extraordinária”.

5

Essas realizações anteriores devem possuir duas características essenciais: serem sem precedentes e suficientemente abertas. Assim, definirão, às gerações posteriores, problemas e métodos a serem utilizados na pesquisa científica, conformando, deste modo, um paradigma, partilhado por uma mesma comunidade como exemplar de lei, teoria, aplicação e instrumentação.

Os paradigmas adquirem seu status porque são mais bem sucedidos que seus competidores na resolução de alguns problemas que o grupo de cientistas reconhece como grave.6

Aqui é necessário esclarecer o conceito de paradigma formulado por Kuhn e utilizado neste trabalho. Num sentido mais sociológico, um paradigma pode ser entendido como uma “matriz disciplinar”: «“disciplinar” porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular; “matriz” porque é composta de elementos ordenados de várias espécies»

7

4 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções cientificas. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva,

1978.

. Os principais

5 Ibidem, p. 29 6 Ibid., p. 44 7 Ibid., p. 226

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elementos formadores de uma matriz disciplinar seriam as “generalizações simbólicas”, os compromissos coletivos com crenças em modelos explicativos, os valores, e as soluções concretas de problemas, transmitidos e apresentados nas instituições de ensino, manuais ou periódicos científicos, que indicam como se deve realizar o trabalho.

A partir do momento em que um paradigma é estabelecido, os cientistas procuram articulá-lo e precisá-lo «em condições novas ou mais rigorosas», em busca de um maior conhecimento e correlação entre os fatos e as predições do paradigma. «Parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma». Consequentemente, a ciência normal se caracteriza pela atividade de “limpeza” e resolução de quebra-cabeças, de uma maneira altamente determinada, não necessariamente por leis, mas pelo próprio paradigma. Não tem como objetivo a novidade, ou seja, a descoberta de fenômenos até então desconhecidos, «na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem são vistos»8

Já que o resultado da pesquisa pode geralmente ser antecipado, o interesse e o problema a ser resolvido recaem sobre o modo de obtê-lo. «Resolver um problema da pesquisa normal é alcançar o antecipado de uma nova maneira»

.

9

A partir daí inicia-se um novo tipo de pesquisa: a ciência extraordinária. Os princípios e os métodos «são submetidos a uma discussão crítica de tipo filosófico, novos tipos de quebra-cabeças são propostos até que um deles acabe conquistando a adesão de pelo menos uma parte da comunidade que sofre a crise»

. A ciência normal acaba por ser uma atividade cumulativa e altamente bem sucedida na ampliação do conhecimento científico, até o momento em que uma anomalia resiste às tentativas de redução e absorção no paradigma, o qual entra em crise.

10

8 Ibid., p. 45

, substituindo o paradigma por outro que torne o anômalo no esperado. São características comuns a todas as descobertas científicas a «consciência prévia da anomalia, a emergência gradual e

9 Ibid., p. 59 10 HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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simultânea de um reconhecimento tanto no plano conceitual como no plano da observação e a conseqüente mudança das categorias e procedimentos paradigmáticos»11

Nos momentos de crise intensificam-se as buscas de novas teorias que dêem conta das lacunas dos quebra-cabeças. Um sintoma desse período é a proliferação de versões de uma teoria, sobretudo nos primeiros estágios do desenvolvimento de um novo paradigma, já que «mais de uma construção teórica pode ser aplicada a um conjunto de dados determinado, qualquer que seja o caso considerado»

.

12

No entanto, paradigmas diferentes geram mundos diferentes e a discussão entre partidários de paradigmas concorrentes é uma discussão entre surdos devido à incomensurabilidade e descontinuidade da ruptura existente. Aceitar um paradigma implica ao mesmo tempo negar outro, numa transição revolucionária.

. Outros sintomas dessa transição podem ser testemunhados na disposição dos cientistas de tentar qualquer coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à Filosofia e ao debate sobre os fundamentos.

Esse “paradigma” kuhniano de interpretação da evolução científica através de “revoluções” pode também, apesar de que com reservas e precauções devido à heterogeneidade de suas naturezas epistemológicas, ser aplicado à história das ciências “humanas”. Enquanto que nas ciências da natureza um paradigma toma o lugar do outro de modo inequívoco, nas ciências humanas, ou “sociais”, a evolução é bem menos clara. Seja na Sociologia, Filosofia, Psicologia, há geralmente a convivência entre diversos ramos paradigmáticos, que se alternam na prevalência da comunidade científica, sem, no entanto, tornarem-se hegemônicos.

O Urbanismo, por ser composto, além das ciências exatas e da natureza, de ciências sociais (com as disciplinas éticas e estéticas adquirindo grande relevância), também tem sua evolução marcada por disputas entre paradigmas, sem, no entanto, algum deles alcançar a posição de corpo teórico supremo e absoluto, fonte de todas as pesquisas e práticas subseqüentes. Diferentes “vontades de

11 KUHN, op. cit., p. 89 12 Ibid., p. 98

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28 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER — VICENTE NASPOLINI — PGAU-CIDADE/UFSC

verdade”13

De fato, ao realizarmos um breve histórico do urbanismo, constatamos a proliferação e alternância de visões distintas acerca do que deveria ser o urbanismo ou como se deveria atuar na construção da cidade. As “vontades de verdade” que se altercam acabam por se cristalizar em discursos normativos e indutivos.

inerentes a cada uma das partes do debate chamam para si a posse da razão.

No século XIX, grandes mudanças nas estruturas econômicas e sociais, e por conseqüência no espaço da cidade, impeliram inúmeros pensadores, cientistas e engenheiros a refletir sobre os caminhos que as aglomerações deveriam seguir.

A ascensão da burguesia, impulsionada pelas revoluções na indústria, trouxe consigo o pensamento iluminista, de caráter historicista reflexivo, e a concepção positivista da ciência, submetendo a natureza ao poder do homem. A ciência adquire papel central na pesquisa e desenvolvimento de novos meios de extração, produção e invenção. Tal contexto contribuiu ao rápido avanço tecnológico, principalmente na área industrial, mas também na infra-estrutura e construção, transportes e comunicação, agricultura e comércio.

A demanda de mão-de-obra pelas indústrias, a crescente mecanização do campo e o aumento dos padrões nutritivos culminaram no êxodo da população em direção aos centros fabris. Cidades multiplicaram o número de habitantes sem que os sistemas de infra-estrutura acompanhassem tamanha evolução. Processo esse que nada tinha de espontâneo.

A parte mais progressiva da cultura econômica e política persuade os governos e a opinião pública a não interferirem e, portanto, a não reconhecerem os problemas derivados das transformações em curso no território; desacredita e enfraquece os métodos tradicionais de controle urbanístico, sem propor outros métodos em alternativa, preconizando pelo contrário nesta matéria uma absurda extensão do laissez-faire. 14

13 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 17ª ed. São Paulo: Loyola, 2008. (Série Leituras

Filosóficas)

14 BENEVOLO, Leonardo. As Origens da Urbanística Moderna.. 3ª ed. Lisboa: Presença, 1994.

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PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER — VICENTE NASPOLINI — PGAU-CIDADE/UFSC 29

Apenas como ilustração da intensidade do processo de concentração urbana ocorrida no século XIX, a população de Manchester passou de 75.000 em 1801 para 600.000 em 1901; no mesmo período Londres passou de 1 milhão para 6,5 milhões, enquanto Paris de 500.000 para 3 milhões de habitantes15

O enorme contingente de pessoas que chegou às cidades num curto espaço de tempo as dotou de gigantescos bolsões de pobreza, com construções precárias, sem esgoto, água, luz e ventilação naturais, espaço. As condições eram propícias à propagação de doenças e muitas epidemias eclodiram em várias cidades européias.

. Incapaz de receber e acomodar o enorme contingente de pessoas, crescendo em proporção geométrica, a cidade medieval finita e precária entrou em colapso.

A constatação dos males da cidade industrial e o protesto dos seus habitantes perfilam-se, pois, por agora, num vazio ideológico que deixa a sociedade dos primeiros decênios do século XIX momentaneamente privada de instrumentos para corrigir esses males na prática: insuficientes e desacreditados os antigos instrumentos, ainda não caracterizados os novos. Doravante trata-se de encher este vazio com uma série de iniciativas individuais de propostas, de leis capazes de saldar-se por uma nova e coerente experiência; caracterizar uma a uma as feições da “coisa”, para conseguir mudá-la. 16

A fim de reverter esse quadro de miséria e degradação (consideradas “anomalias” do sistema), teorias e métodos surgiram: de “fábricas modelos” a cidades utópicas, de “cidades industriais” a “cidades jardins”, dependendo da filiação teórica, partidária ou científica que lhes dava guarida. Mal surgiu e o Urbanismo já adentrou numa fase “revolucionária”. Em termos genéricos, deixando de lado diferenças pontuais individuais, as correntes discursivas se resumiam, utilizando a classificação já clássica de Françoise Choay

17

15 FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins

Fontes, 1997.

, principalmente em “progressistas” e

16 BENEVOLO, op. cit., p. 48. 17 CHOAY, O Urbanismo: Utopias e Realidades, Uma Antologia. 5ª ed. São Pauo:

Perspectiva, 2003.

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30 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER — VICENTE NASPOLINI — PGAU-CIDADE/UFSC

“culturalistas”. Os progressistas, majoritariamente socialistas e anarquistas,

eram racionais e otimistas, crentes no progresso da ciência e das técnicas. Propunham a criação ex-nihilo de comunidades auto-suficientes e endógenas baseadas em sistemas coletivistas e não na propriedade privada. (Imagem 1, página 42) Robert Owen criou Lanark, uma instituição pioneira do movimento cooperativo. Titus Salt criou Saltaire, uma “cidade fabril paternalista”. A proposta mais influente foi a do “novo mundo industrial” de Charles Fourier, os “falanstérios”, comunidades agrícolas onde as pessoas se relacionariam pelo «princípio fisiológico fourieriano da “atração passional”»18

Outra corrente, a dos “culturalistas”, viam na História e na Arqueologia, na época duas disciplinas científicas prestigiadas, as suas bases conceituais. Pugin, Ruskin e Morris voltavam-se à revalorização das estéticas do passado, às tradições, aos valores que fundavam a cultura inglesa desde tempos remotos e que se expressavam nas formas arquitetônicas e urbanas, essas últimas ameaçadas pelo crescimento desordenado e sem critérios.

. Godin o aplicaria, não sem algumas modificações conceituais e pragmáticas, em sua fábrica em Guise, chamando-o de “familistério”.

Contudo [...] todos esses pensadores imaginam a cidade do futuro em termos de modelo. Em todos os casos, a cidade, ao invés de ser pensada como processo ou problema, é sempre colocada como uma coisa, um objeto reprodutível. É extraída da temporalidade concreta e torna-se, no sentido etimológico, utópica, quer dizer, de lugar nenhum. 19

Já Ildefonso Cerdà (

Imagem 2, página 42), mais ligado ao academismo científico, focou-se nas necessidades de luz solar e ventilação natural das habitações, na presença de áreas verdes, no destino do lixo e principalmente na eficiência da circulação urbana. Já havia percebido que as novas técnicas de comunicação e transporte iriam causar grande impacto nas formas de urbanização. Acabou por aplicar suas teorias no plano de extensão de Barcelona

18 FRAMPTON, op. cit. p. 15. 19 CHOAY, op. cit., 2003.

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(Eixample), de 1859, mas não foi capaz de gerar uma escola de pensamento e deixar discípulos que continuassem suas pesquisas.20

No entanto, apesar da miríade de discursos e proposições, o que foi levado a cabo generalizadamente foram legislações higienistas e intervenções do tipo “haussmaniano”. Na Inglaterra, as reformas sanitárias buscaram obter o controle sobre as construções e os aglomerados, esgoto, coleta de lixo, fornecimento de água, limpeza das vias públicas, enterro dos mortos. Em Paris (

Imagem 3, página 43), Haussmann rasgou grandes avenidas, abriu ruas, demoliu cortiços, canalizou rios, com o discurso de viabilizar a despoluição das águas, a construção de um sistema de esgoto mais adequado, a criação de parques e cemitérios e criar escoamento para o congestionado tráfego, sem esquecer, é claro, da facilitação de controle social em tempos de revoltas e barricadas. Outras cidades pelo mundo adotaram medidas semelhantes de intervenção urbana.

As realizações de Haussmann em Paris constituem o protótipo daquilo que chamamos de urbanística neoconservadora; esta transforma-se na praxe comum de todas as cidades européias, sobretudo depois de 1870, mas já no tempo do Segundo Império é possível relacionar uma série de iniciativas, na França e em outras partes, orientadas da mesma maneira. 21

O século XX inicia apresentando a defasagem existente entre as propostas urbanísticas e a constante evolução dos meios de produção e modos de vida (a

Imagem 4, página 43, é um exemplo dessa defasagem). As primeiras já surgiam obsoletas e ultrapassadas pela “segunda” Revolução Industrial e seus avanços tecnológicos nos campos da indústria química, siderúrgica (aço), elétrica (lâmpada, dínamo) e petróleo.

Inovações capitais, que modificariam completa e definitivamente a vida urbana, também surgiram ou começaram a se generalizar nesta virada de século. O telefone por um lado e as novas técnicas de armazenamento e refrigeração de alimentos de outro, abriram novas possibilidades de manejo do tempo individual cotidiano. A produção em massa contribuiu a reduzir o custo dos 20 Cf. idem, op. cit., 1985, p. 267. 21 BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva,

1998.

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bens de consumo além de representar uma reestruturação das localizações das funções urbanas: a indústria agora passava a constituir-se de imensas unidades fabris, distanciadas do centro e rodeadas pelos bairros operários. Os transportes também foram aprimorados. Aumento da malha ferroviária, navios a vapor, aviões, motor a explosão, automóveis, tudo isso multiplicou o poder de deslocamento e expandiu os limites das cidades. Os automóveis dotavam a cidade de extensas periferias pobres e de baixa densidade, “deslocando para a escala territorial todos os problemas da organização urbana”22

A cultura de vanguarda não somente ignora esses novos problemas, como também não está apta a fornecer uma alternativa coerente à praxe urbanística tradicional para resolver os problemas usuais; as experiências de Garnier, de Howard, de Soria, de Berlage, são tentativas parciais e hesitantes [...] e que resultam pateticamente desproporcionais em relação à importância dos problemas que já nessa época se delineiam.

. A “cidade industrial” transformava-se numa rapidez e escala não acompanhada pelo urbanismo contemporâneo.

23

A I Guerra Mundial acabou por agudizar os problemas urbanos, principalmente o déficit habitacional. O Estado, que até aqui atuou apenas como observador e financiador das obras, era, neste momento, a única entidade capaz de reverter o quadro de destruição e efetuar as tarefas de reconstrução necessárias. Assim, o urbanismo adquiriu importância e passou a ser subvencionado pelo poder público.

Mas agora o foco das discussões mudou. O urbanismo passou a ser matéria de especialistas no assunto e despolitizado24

22 Ibidem, p. 374.

. Os paradigmas continuam cindidos numa dicotomia clara: progressismo e culturalismo, mas, diferentemente do século XIX, numa quase total hegemonia a favor do primeiro, autodenominado de “movimento moderno”.

23 Ibidem, p. 374. 24 CHOAY, op. cit., 2003, p. 18.

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Como no pré-urbanismo progressista, encontra-se, pois, na base do urbanismo progressista uma concepção da era industrial como ruptura histórica radical. Mas o interesse dos urbanistas deslocou-se das estruturas econômicas e sociais para as estruturas técnicas e estéticas. A grande cidade do século XX é anacrônica porque não é a contemporânea verdadeira nem do automóvel, nem das telas de Mondrian: eis o escândalo histórico que eles vão denunciar e tentar suprimir. 25

“O preconceito contra os processos mecânicos [...] é substituído por uma apreciação mítica dos valores industriais”

26. A máquina, e tudo o que ela representava: racionalização, rapidez, economia, pré-fabricação, se tornou o Leitmotiv das teorias arquitetônicas e urbanísticas, voltadas para um novo homem, o “homem multiplicado pelo motor”, na expressão de Marinetti27

O período “extraordinário” do Urbanismo havia acabado, iniciando uma nova fase de resolução de quebra-cabeças tendo como fundamento o novo paradigma modernista. Os CIAMs, a partir de 1928, divulgaram as novas doutrinas internacionalmente, tendo como principal porta-voz Le Corbusier e sua síntese na Carta de Atenas, de 1933, não sem lutas internas entre grupos de paradigmas distintos pelo poder de administrar o congresso e conseqüentemente determinar as pautas de discussões.

.

A hegemonia interna dos CIAM legitimou-se na disputa interna entre dois grupos de liderança, o grupo alemão e o francês. Além disso, a insistência em alguns temas tidos como centrais nas discussões levantadas foram essenciais para a legitimação dessa hegemonia. Esses temas foram a habitação social e a cidade funcional. Outro importante fator que levou à consolidação da hegemonia foi a centralização da gestão interna dos Congressos em um comitê formado por Walter Gropius, Le Corbusier, Sigfried Giedion, José Luis Sert e Cornelius van Eesteren. Eles determinavam o rumo das

25 Ibidem, p. 20. 26 BENEVOLO, op. cit., 1998, p. 374. 27 BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina. 2ª ed. São Paulo:

Perspectiva, 1979. (Coleção Debates)

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discussões, fazendo enfraquecerem outros grupos que levantassem temas incompatíveis com seus interesses práticos. Finalmente, a historiografia também teve um papel importante na consolidação da hegemonia do Movimento Moderno em Arquitetura a partir dos CIAM, muitas vezes identificando os congressos com o próprio movimento. 28

O urbanismo tornou-se uma disciplina centralista, técnica e teleológica. Com a tecnologia industrial, a padronização, a pré-fabricação em série, aliadas aos estudos científicos sobre saúde e higiene na habitação, poder-se-ia resolver não só o problema da moradia, mas a cidade como um todo seria repensada, aplicando a lógica reducionista industrial do funcionalismo ao espaço urbano.

Fruto da razão demiúrgica do urbanista-arquiteto-artista, a cidade seguiria a estética pura da geometria ortogonal (Imagem 5, página 44), da lógica matemática — «o ponto de encontro do belo e do verdadeiro»29

Para nós, hoje, está claro que o objetivo do movimento é a indicação de uma alternativa para a cidade burguesa pós-liberal, não uma correção de seus conflitos; portanto é inevitável uma solução de continuidade entre a pesquisa moderna e a prática corrente, embora enriquecida pelas contribuições das vanguardas operantes antes de 1914.

. O espaço não mais compartimentado, limitado, fragmentado, irracional, mas contínuo, homogêneo, aberto, livre e arborizado, eficiente, setorizado pelas funções-tipo que correspondiam às necessidades-tipo do homem-tipo: habitar, trabalhar, circular e “cultivar o corpo e o espírito”.

30

O segundo pós-guerra trouxe novamente, mas desta vez em maior escala do que no primeiro, os problemas das reconstruções e das habitações. Mas o reerguimento e restabelecimento das situações internas se deram num curto período graças à ajuda financeira norte-americana e às novas técnicas de construção. O desenho moderno da arquitetura e do urbanismo foi usado

28 BARONE, Ana Cláudia Castilho. Team 10: arquitetura como crítica. São Paulo:

Annablume: Fapesp, 2002, p. 25. 29 CHOAY, op. cit., 2003, p. 23. 30 BENEVOLO, op. cit., 1998, p. 486.

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amplamente nos planos de reconstrução de cidades em vários países afetados pela guerra ao longo das décadas de 40 e 50.

Cidades arrasadas pela guerra foram reconstruídas rapidamente e populações foram abrigadas em condições muito melhores do que as do período entre-guerras. Dadas as tecnologias disponíveis na época e a evidente escassez de recursos, é difícil ver como tudo isso poderia ter sido conseguido, exceto por uma variante do que foi de fato feito. E, apesar de algumas soluções terem se revelado mais bem-sucedidas [...] do que outras [...], o esforço geral teve razoável êxito na reconstituição do tecido urbano de modo a preservar o pleno emprego, a melhorar os equipamentos sociais materiais, contribuindo para metas de bem-estar social e, de modo geral, facilitando a preservação de uma ordem social capitalista bastante ameaçada em 1945. 31

No entanto, as bases para uma futura contestação do movimento moderno já começavam a aparecer. O mal-estar na civilização, com os resultados e aplicações da racionalidade, da ciência, das tecnologias aplicadas à destruição e ao genocídio com grande maestria na segunda grande guerra, alimentou o florescimento de correntes filosóficas e científicas que não só rejeitavam os legados das teorias totalizantes precedentes. Também relativizavam a razão humana em relação ao contexto cultural em que estava inserida, questionando a noção de verdade absoluta, objetiva e positiva. Além disso, duvidavam da crença positivista de que o progresso da humanidade era inevitável.

Dilacerada entre Auschwitz e Hiroshima, entre a impossível lembrança da Shoah e o insuportável terror do apocalipse nuclear, cortada ao meio pela guerra fria, cética em relação à construção “comunitária” que lhe propõem tecnocratas e políticos, a Europa dos anos 50 deixou de acreditar no futuro. 32

As artes expressavam o pessimismo geral: a mesma

31

HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 72. 32 DELACAMPAGNE, História da Filosofia no Século XX, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

1997, p. 233.

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incomunicabilidade, recusa da civilização, desespero, cólera fria no cinema de Antonioni e Resnais, nos romances de Beckett, nos aforismos de Cioran.33

A modernidade entrou em crise. Os paradigmas se multiplicaram e se sucederam um após o outro

Na pintura, o expressionismo abstrato de Pollock e de Kooning rompe com qualquer tentativa de representação transcendente à própria tela, nem busca a inteligibilidade ou o belo, apenas o indeterminado, o indefinido.

34

A arquitetura e o urbanismo acompanharam a tendência de crítica e procura por um novo sentido de atuação. A comunidade dos profissionais e estudiosos da área empreendeu um período de revisão do modernismo que talvez ainda não tenha conhecido seu ponto final.

. A hermenêutica, a fenomenologia, a lingüística, o estruturalismo, o pós-estruturalismo, a desconstrução, o marxismo, o feminismo, todos procurando novos caminhos e significações na complexa sociedade que emergia, tentando juntar seus próprios quebra-cabeças.

As controvérsias iniciaram no interior do próprio CIAM, nos anos 50, com as propostas de uma nova geração de arquitetos e urbanistas de incorporação de novos temas a serem debatidos além daqueles que sempre foram privilegiados pelos modernistas. Essa nova geração, principalmente aqueles que faziam parte do grupo Team 1035

Arquitetos como Aldo van Eyck, Jaap Bakema e Georges Candilis expressavam suas insatisfações com o funcionalismo estrito da Carta de Atenas e a descrença no “poder das novas cidades em criar as condições para a organização de uma nova sociedade”

, além de buscar uma maior abertura e pluralidade de visões no CIAM, proclamavam a necessidade de mudança do foco da atividade arquitetônica e urbanística.

36

33 Ibidem, p. 233.

. Propunham uma concepção urbana mais complexa e flexível. Em detrimento do rígido e abstrato macro zoneamento, múltiplas escalas de intervenção, a começar pela casa, depois a rua, o bairro,

34 cf. NESBITT, Kate (Org.). Uma Nova Agenda para a Arquitetura: Antologia Teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006. (Coleção Face Norte)

35 Faziam parte deste grupo os arquitetos holandeses Jacob Bakema e Aldo van Eyck, os ingleses Alison e Peter Smithson, o francês Georges Candilis, o americano Shadrach Woods e o italiano Giancarlo de Carlo.

36 BARONE, op. cit., p. 77.

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para então chegar à cidade.

A intenção fundamental dos jovens era questionar a validade desses princípios universais a partir da noção de que o homem se organiza em comunidades, que desenvolve a necessidade de se diferenciar, se identificar com o local onde habita, criar vínculos sociais e apreender o espaço a partir de seus próprios valores culturais. [...] No seu modo de ver, os valores humanos não se traduziam em atributos e necessidades genéricas para um tipo universal, mas constituíam-se historicamente em função de características locais e culturais. 37

Dois grupos ainda são dignos de nota no debate geral do urbanismo no pós-guerra, não para o aprimorar, muito pelo contrário, para questioná-lo e erodir suas bases: o grupo francês da Internacional Situacionista (IS), nos anos 50, e o grupo inglês Archigram, nos 60. Os situacionistas, liderados por Guy Debord — sem esquecer também a influência inicial exercida por Henry Lefebvre — rejeitavam a condução da cidade através do urbanismo e planejamento em geral, os quais consideravam como instrumento ideológico do capitalismo e até mesmo como crime contra o modo de vida da população

38

Imagem 6

. Desejavam revolucionar a vida na cidade através da apropriação de seus espaços e de situações que fugissem do cotidiano ( , página 44). Já o Archigram, de caráter menos político e já inserido na cultura pop dos anos 60, utilizou da ironia e ficção para imaginar cidades futuras e altamente tecnológicas, não mais fixas, estáticas, mas compostas de unidades arqui-mecânicas interconectáveis, móveis, nômades (Imagem 7, página 45), dotadas de todas as funções e equipamentos de uma cidade normal, que pudessem estar em qualquer parte do mundo a qualquer momento, criando assim um espaço urbano mutante para o qual o planejamento não possuía mais nenhuma utilidade39

Os anos 60 foi a década em que realmente o paradigma .

37 Ibidem, p. 61. 38 Cf. JACQUES, Paola Berenstein. Breve Histórico da Internacional Situacionista – IS (1). Portal Vitruvius, São Paulo, abr. 2003, Arquitextos 035, Texto Especial 176. 39 Cf. SILVA, Marcos S. K. Redescobrindo a Arquitetura do Archigram. Portal Vitruvius, São Paulo, mai. 2004, Arquitextos 048, Texto Especial 231.

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modernista, tanto na arquitetura quanto no urbanismo, começou a sofrer as suas mais sérias contraposições advindas de várias áreas do conhecimento40

Tendo acompanhado e absorvido os debates promovidos nas disciplinas filosóficas e científicas nascidas no pós-guerra e vivido os acontecimentos sociais fundamentais para a configuração da época, como a revolta estudantil de maio de 68, a luta pelos direitos das minorias, a contracultura, arquitetos e críticos pós-modernos estabeleceram alguns temas recorrentes: a história, o significado, a responsabilidade social, o corpo, o lugar “fenomenológico” e a cidade como artefato cultural

, inaugurando uma era posteriormente chamada pós-modernismo e que teria como símbolo a implosão, em 1972, do conjunto habitacional Pruitt-Igoe, em St. Louis, nos Estados Unidos, projeto baseado nos cânones do modernismo corbusiano, incluindo as “ruas no ar”, corredores anônimos e peças sem privacidade.

41

O primeiro tema diz respeito à atitude em relação à historicidade da disciplina. Enquanto os modernistas propunham uma ruptura radical com a história, os pós-modernos admitiam o retorno a ela, seja copiando-a ou apropriando-se dela. Já o tema do significado invocava a semiologia para tratar da comunicação e do simbolismo impregnado nas formas, um processo de leitura da cidade como texto. As discussões sobre a responsabilidade social do arquiteto se resumiam a quatro tipos de atitude: indiferente e autônoma; resignada ao status quo; pacífica mas reformadora; crítica radical. O problema do corpo questionava a perda da escala humana nos projetos arquitetônicos e urbanos. O “lugar”, conceito recém-nascido, retomava, de forma alegórica, a antiga crença romana do genius loci (espírito do lugar) para relacionar o corpo, o local e sua identidade.

. Geralmente mais voltados à arquitetura dos edifícios do que ao urbanismo da cidade, ao fim e ao cabo, acabaram por fazer parte de um único discurso.

Por fim, o debate teórico sobre a cidade girava em torno da essência do espaço urbano enquanto artefato cultural. Alguns nomes se sobressaíam em meio à multidão de opiniões. Robert

40 Cf. KOHLSDORF, Maria Elaine. Breve Histórico do Espaço Urbano Como Campo

Disciplinar. In: FARRET, Ricardo Libanez. (Org.) O Espaço da Cidade: Contribuição à análise urbana. São Paulo: Projeto, 1985, p. 15-72.

41 Cf. NESBITT, op. cit., p. 45.

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Venturi utilizava da ironia para, ao mesmo tempo, criticar a esterilidade moderna e elogiar o urbanismo populista americano simbolizada pela Strip42 Imagem 8 de Las Vegas ( , página 45). Colin Rowe e Fred Koetter pregavam a continuidade da lógica precedente, um contextualismo pluralista, inserindo o novo como colagem sobre a estrutura espacial já consolidada. Rob e Leon Krier defendiam a morfologia tradicional da cidade européia em desenhos de rigidez tipológica. Aldo Rossi tinham um programa parecido com o dos Krier, sendo, contudo, mais racional.

A partir dos anos 80, algumas questões se destacaram e se tornaram o foco das reflexões. A economia mundial, modificada pelos meios de produção e comunicação informatizados, caminhou em direção a um capitalismo ultraliberal, acentuando e acelerando o processo de globalização econômica. A reorganização geográfica em escala planetária da indústria operou em dois sentidos inversos: dispersão da produção industrial transcontinental e a concentração dos recursos financeiros nas grandes cidades43. A desregulamentação da economia e a retirada do Estado de certos setores fizeram das grandes cidades os grandes palcos e agentes dessa nova fase do capitalismo44

Outra questão que ganhou proeminência foi o ambientalismo e a chamada “sustentabilidade”. Já em 72, o think tank “Clube de Roma” publicou o livro The Limits to Growth, no qual alertava sobre a incapacidade de manter os crescimentos populacional e econômico indefinidamente frente às limitadas reservas de recursos naturais. Em 1987, o Relatório Brundtland (Our Common Future), da Comissão Mundial sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento, da ONU, cunhou o termo “desenvolvimento sustentável”, o qual serviu de base à formulação da Agenda 21, documento de princípios de ação global, nacional e local, aprovado na Eco-92.

. Os limites urbanos se estenderam ainda mais através de subúrbios, conurbações, urbanizações de áreas rurais, favelas.

Atualmente, devido às mudanças operadas nas últimas três 42 A Las Vegas Strip é uma porção de aproximadamente 6,4km da Las Vegas Boulevard

South e onde se concentram os maiores hotéis e cassinos da cidade. 43 Cf. SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton

University Press, 1991. 44 Essa nova fase do capitalismo recebe várias designações: pós-fordismo, pós-

industrialismo, capitalismo informacional, capitalismo tardio...

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décadas, vemos as tentativas de estudiosos das questões urbanas em apreender as complexas dinâmicas que afetam a cidade, definir suas causas e efeitos, identificar as tendências. Autourbanismo, telépolis, glocal, hiperiferia, ruburbia, sprawl, cidade patchwork, multicidade, edge-city, pós-metrópole, macrometrópole, cidade global, são todos conceitos construídos a fim de, supostamente, melhor descrever os fenômenos recentes.

Em meio à abundância e prolificidade de termos e opiniões, divisam-se, ultimamente, três amplas matrizes de diretrizes que, de fato, não possuem limites precisos entre si e, volta e meia, são acionadas em conjunto simultaneamente: a matriz do ambientalismo e sustentabilidade45, que insere a cidade numa perspectiva ecológica e numa lógica sistêmica do fluxo de matérias-primas, energia, dejetos; a matriz da gestão estratégica, que assemelha a cidade às empresas capitalistas enfatizando, principalmente, seu aspecto econômico frente à globalização e à estruturação reticular da produção; e a matriz do marketing urbano46

Uma das vozes que tem contribuído à discussão sobre a cidade e o urbanismo contemporâneos é a do sociólogo francês François Ascher. Nascido em 1946, Ascher se formou em ciências econômicas, especializando-se posteriormente em estudos sociológicos e urbanos. Foi membro do Partido Comunista francês e encarregado pela Comissão de Habitação do comitê central. Nos anos oitenta, inicia a carreira acadêmica no Instituto de Urbanismo da Universidade de Paris VIII. Desde 2000, preside o conselho científico do Institut pour la Ville en Mouvement (Instituto pela Cidade em Movimento), dedicado à reflexão sobre a mobilidade urbana e formas de aprimorá-la.

, estreitamente ligada à anterior, centrada na comunicação e publicidade, na consolidação de uma imagem, nas políticas de efeito midiático, destinadas a atrair investimentos.

Seu pensamento gira em torno da emergência da sociedade “hipermoderna” e seu habitat correspondente, a cidade atual em sua

45 Cf. ACSELRAD, Henri. Discursos da Sustentabilidade Urbana. Revista Brasileira de

Estudos Urbanos e Regionais, Campinas, nº 1, p. 79-90, mai./nov. 1999. 46 Cf. SÁNCHEZ, Fernanda. Políticas Urbanas em Renovação: Uma Leitura Crítica dos

Modelos Emergentes. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Campinas, nº 1, p. 115-132, mai./nov. 1999.

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forma mais extrema: espraiada por vastas regiões, aglutinando cidades vizinhas e as integrando em seu cotidiano, formando, no fim, uma imensa aglomeração urbana de milhões de habitantes, para a qual ele cunhou o termo “metápole”. Assim, se questiona que práticas, que espaços, que políticas e formas de democracia são criadas ou demandadas neste contexto hipermoderno. O livro mais importante que lança os principais questionamentos e que praticamente resume toda a sua fundamentação teórica é Metapolis ou l’Avenir des Villes, publicado em 1995. Posteriormente escreverá outros livros destinados a aprofundar e detalhar as suas teses seja no campo do modo de vida, como em La Société Hypermoderne, no da alimentação, como em Le Mangeur Hypermoderne, no do urbanismo, como em Nouveaux principes de l'urbanisme e no da política como em La société change, la politique aussi.

Pois, globalmente, o urbanismo parte do postulado que é necessário e possível agir conjuntamente sobre as cidades e sobre a sociedade. Nós entendemos [...] o urbanismo de maneira bastante ampla, como o conjunto das teorias e práticas de organização e gestão dos espaços urbanos, da planificação urbana aos serviços urbanos, passando pelo urbanismo operacional, os estudos e a composição urbana. Apresentando-se, então, ao mesmo tempo, como conhecimento dos fenômenos urbanos, projeto de cidade e técnicas de ação sobre o espaço, o urbanismo é um pensamento e uma atitude essencialmente reformadores.47

Nos próximos capítulos, veremos como se insere o pensamento do sociólogo francês François Ascher no debate contemporâneo sobre a cidade e o urbanismo. Analisaremos mais detidamente como constrói o ciclo de sua reflexão, que vai da análise das transformações da sociedade e economia, passa pelo espaço que lhe dá sustentação e chega à reflexão política voltada à redefinição da democracia. Em que premissas se baseia, quais as linhas de raciocínio que utiliza, quais os aspectos enfatizados, quais problemáticas levantadas, quais questionamentos efetuados e a que conclusões chega.

47 ASCHER, François. Métapolis ou l’avenir des villes. Paris: Editions Odile Jacob, 1995, p. 204.

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Imagem 1: Proposta de Owen.

Imagem 2: Cerdà, projeto de expansão para Barcelona, 1858. Em preto, a cidade velha.

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Imagem 3: Hausmann, intervenções em Paris. As novas ruas em preto.

Imagem 4: Howard, detalhe de sua "Rurisville", 1898.

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Imagem 5: Le Corbusier, Ville Contemporaine, 1922.

Imagem 6: Mapa psicogeográfico proposto pelos situacionistas.

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Imagem 7: Walking City, a cidade do futuro segundo Ron Herron, do grupo Archigram.

Imagem 8: Las Vegas, um dos visuais da Strip.

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C A P Í T U L O I I S O C I E D A D E H I P E R M O D E R N A

rançois Ascher formula a hipótese de que estamos vivendo, já há algum tempo e continuando nesta virada do século XX ao XXI, a terceira revolução urbana moderna, decorrente da

terceira fase da modernização da sociedade. As outras duas fases foram a da Idade Moderna e a da Revolução Industrial.

A revolução da Idade Moderna (“Primeira” ou “Alta modernidade”) diz respeito às reconfigurações das principais instituições e campos políticos, econômicos e filosóficos. A política seculariza-se, cria-se o Estado-Nação, a religião perde espaço para a filosofia e a ciência, que se desenvolve junto com o capitalismo mercantil. A urbanização proveniente é moderna porque é projeto, desígnio, ambição de controlar o futuro. A cidade, então, é concebida racionalmente tanto para os indivíduos autônomos quanto para a representação do Estado-Nação.

A segunda fase é a da Revolução Industrial (“Segunda Modernidade” ou “Modernidade Média”) com a evolução técnica atingindo o sistema de produção industrial e agrícola, logo em seguida o crescimento demográfico e a expansão territorial. O fordismo e taylorismo regem as atividades produtoras. O Estado se torna do “Bem-Estar Social”, procurando dar suporte à sociedade de massa. O urbanismo segue a tendência e concebe a cidade como um sistema simplificado, mecânico e eficiente, baseado principalmente no zoneamento monofuncional e na circulação hierárquica.

Segundo Ascher, esse segundo ciclo entrou em crise e vem sendo questionado paulatinamente nos últimos trinta anos em diversos campos do conhecimento humano. A seguir, neste capítulo,

F

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48 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER — VICENTE NASPOLINI — PGAU-CIDADE/UFSC

veremos as questões centrais e as mutações advindas dessa crise nos seus aspectos econômicos e sociais, e o entendimento do sociólogo francês acerca dessa conjuntura.

Podemos datar em 1973 o marco da transição entre dois

grandes sistemas sócio-econômicos: o sistema fordista-keynesiano e o “flexível-liberal”. Nos deteremos brevemente nos fatos econômicos antecedentes e subsequentes a esta data, em suas transformações e permanências, materiais e conceituais, por se considerarem fundamentais na compreensão do discurso atual.

Segundo Harvey1

O que havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista.

, o fordismo era um conjunto de antigas atitudes e tendências revigoradas e aprimoradas por Henry Ford, tais como a forma cooperativa de organização de negócios, o detalhamento da divisão do trabalho, a separação entre gerência, concepção, controle e execução, além da abordagem científica do trabalho proposta por Taylor que prescrevia a rigorosa decomposição e organização do processo produtivo.

2

Após a Segunda Guerra, o fordismo, que até então encontrava muita resistência à sua implementação, conheceu o início de sua generalização nas indústrias graças, por um lado, à aceitação das massas trabalhadoras do regime rotinizado, pouco exigente e fora de seu controle e, por outro, às reformulações das formas de intervenção e regulamentação estatais, iniciadas uma década antes devido à crise dos anos 30. Juntamente com a ascensão dos EUA como potência financiadora, através do Plano Marshall, da reconstrução dos países capitalistas europeus e do Japão, gravemente afetados pela guerra, dá-se a adoção de medidas e

1 HARVEY, op. cit. 2 Ibidem, p. 121.

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estratégias keynesianas pelos Estados nacionais com o objetivo de controlar a economia e evitar o retorno da crise da década anterior.

O Estado keynesiano cumpriu sua missão, pelos quase trinta anos seguintes, de evitar crises cíclicas do capitalismo sob a instituição de políticas fiscais e monetárias, investimentos públicos em setores que propiciaram a expansão da produção e do consumo de massa e a busca da realização do pleno emprego. Além das medidas macro-econômicas, o Estado keynesiano adotava um caráter redistributivo e socialmente compromissado, instituindo direitos trabalhistas, seguridade social, assistência médica, educação, habitação3. Desse modo, recebeu também a denominação de Estado do Bem-Estar Social ou Estado-Providência (Welfare State)4

O equilíbrio entre o trabalho organizado, o capital corporativo e o Estado criou não só cenários estabilizados internamente como estabeleceu um novo internacionalismo na base de mão-dupla do consumo de massa dos produtos industrializados e no comércio de matérias-primas baratas, durante um «longo período de expansão pós-guerra que se manteve mais ou menos intacto até 1973»

.

5

Ao longo desse período, o capitalismo nos países capitalistas avançados alcançou taxas fortes, mas relativamente estáveis de crescimento econômico. Os padrões de vida se elevaram, as tendências de crise foram contidas, a democracia de massa, preservada e a ameaça de guerras intercapitalistas, tornada remota. O fordismo se aliou firmemente ao keynesianismo, e o capitalismo se dedicou a um surto de expansões internacionalistas de alcance mundial que atraiu para a sua rede inúmeras nações descolonizadas.

.

6

Essa estabilidade e prosperidade se mantiveram fundamental-mente graças ao poderio financeiro e militar dos EUA, que emergiu da segunda guerra como a grande potência econômica, com alto grau de industrialização e acúmulo de capitais, incluindo aí grande parte das reservas mundiais de ouro. «A América agia como o banqueiro do mundo em troca de uma abertura dos mercados de

3 Ibidem. 4 v. também BARUCO, G. C. da C. (2005), LEAL, S. M. R. (1990). 5 HARVEY, op. cit. 6 Ibidem, p. 125.

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capital e de mercadorias ao poder das grandes corporações»7

Mas, em meados dos anos 60, o sistema já apresentava sinais de exaustão. A começar pela incapacidade norte-americana de manter os acordos de Bretton Woods. Para financiar o déficit de sua balança comercial, os EUA acabaram por emitir dólares no mercado, que por sua vez gera uma onda inflacionária ao redor do mundo. Além disso, os mercados internos estavam saturados, as empresas apresentavam queda na produtividade e lucratividade, a competição internacional se intensificava à medida que o fordismo se implantava em mercados de trabalho novos e de custo reduzido.

.

As pressões por mudanças vinham de ambos os lados do espectro político. A contracultura reclamava do consumo de massa padronizado, da racionalidade burocrática tecnicista-científicista, da aridez e funcionalismo urbanos. Os empresários criticavam principalmente a rigidez do sistema, presentes nos investimentos de larga escala e longo prazo, no mercado de trabalho, nos poderes dos trabalhadores.

As revoltas de 1968 foram um marco cultural e político do período pós-guerra, mas, economicamente, foi o ano de 1973 que apareceu como um divisor de águas. Dois anos antes, Richard Nixon já havia cancelado unilateralmente os acordos de Bretton Woods, liberando as cotações monetárias frente ao dólar. Agora, em 73, o mundo capitalista adentrava numa profunda recessão e “estagflação” (estagnação econômica e inflação alta), aumento do desemprego, crise dos mercados imobiliários, contexto complicado ainda mais pelo uso do petróleo como arma política pela OPEP, levando a um encarecimento da energia e, consequentemente, de toda a cadeia produtiva.

A crise, que se estenderia até o início dos anos 80, impulsionou revisões e reestruturações nos mecanismos financeiros, nas regulamentações estatais, nos modelos organizacionais do trabalho, sempre objetivando um maior liberalismo econômico e flexibilidade de atuação.

A acumulação flexível [...] é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados

7 Ibidem, p. 131.

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de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional.8

Muitas indústrias adotaram o toyotismo como modelo de produção, caracterizado pelo alto índice de automação, flexibilização da produção, flexibilização da mão-de-obra e subcontratação, controle de qualidade total e armazenamento just-in-time. Ao mesmo tempo em que diminuiu os custos de produção e sintonizou de maneira mais dinâmica as empresas às necessidades do mercado, também contribuiu ao aumento do desemprego, à incerteza e à efemeridade do trabalho, ao enfraquecimento das organizações trabalhistas e da consciência de classe. Na verdade, isso corresponde essencialmente aos países centrais, já que «onde a produção podia ser padronizada, mostrou-se difícil parar o seu movimento de aproveitar-se da força de trabalho mal remunerada do Terceiro Mundo, criando ali o que Lipietz chama de ‘fordismo periférico’»

9

Na área econômica, ganha importância a corrente teórica do neoliberalismo, profundamente contrária ao keynesianismo. Teóricos, como Friedrich von Hayek, Ludvig von Mises e Milton Friedman, defendiam, sob a alegação da defesa da liberdade pessoal, a não intervenção estatal na economia, o livre mercado, ou seja, uma reedição das doutrinas de Adam Smith sobre a mão invisível do mercado como dispositivo ideal de mobilização dos instintos egoístas do homem em benefício geral.

.

O neoliberalismo é, em primeiro lugar, uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser mais bem aprimorado ao se liberar as competências e liberdades empresariais individuais no âmbito de um quadro institucional caracterizado por fortes direitos de propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar um quadro institucional apropriado a tais práticas. O Estado tem de garantir,

8 Ibidem, p. 140. 9 Ibidem, p. 146.

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por exemplo, a qualidade e integridade do dinheiro. Deve também instituir aquelas estruturas e funções militares, de defesa, policial e legal requeridas para garantir, pela força se for preciso, o adequado funcionamento dos mercados. Além disso, se os mercados não existem (em áreas tais como terra, água, educação, saúde, seguridade social ou poluição ambiental) então eles devem ser criados, pela ação estatal se necessário. 10

Com a chegada ao poder de Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1979, e de Ronald Reagan, nos EUA, em 1980, ambos, partidários do neoliberalismo

11

As duas tendências em conjunto, de um lado a evolução do fordismo em direção ao toyotismo, favorecendo e impulsionando as inovações tecnológicas num ritmo cada vez mais veloz, segmentando ainda mais os mercados, aumentando a proporção do setor de serviços; de outro, a desregulamentação da economia, derrubando barreiras protecionistas e estimulando os investimentos financeiros ao redor do mundo — sem esquecer aí do papel representado pelas instituições internacionais FMI, OMC e Banco Mundial —, criaram uma nova etapa do capitalismo.

, intensificaram-se as medidas de desregulamentação, corte de impostos, privatização e retirada do Estado de vários setores econômicos e sociais, seguido por outros países avançados nos anos 80 e pelos países em desenvolvimento nos anos 90.

De fato, a comunhão entre a flexibilidade produtiva e a desregulamentação, aliadas às novas infra-estruturas e tecnologias de informação e comunicação (principalmente a microeletrônica, a optoeletrônica e a Internet), integraram as economias nacionais numa estrutura global de interdependência em rede cujos «componentes centrais têm a capacidade institucional, organizacional e tecnológica de trabalhar em unidade e em tempo real, ou em tempo escolhido, em escala planetária»12

10 HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism. Oxford: University Press, 2005, p. 2.

. Esse mercado

11 Conta-se que, numa das reuniões do Partido Conservador inglês, em fins dos anos 70, Margaret Thatcher, então chefe do partido, interrompeu o orador e, despejando na mesa o livro de Hayek, A Constituição da Liberdade, disse a todos: “isto é o que acreditamos”. 12 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 9ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1), p. 142.

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global de dinheiro e crédito, de commodities, de ações atuais e futuras, de especulação financeira e derivativos, tornou-se altamente complexo e independente do controle público, «dando muito mais autonomia ao sistema bancário e financeiro em comparação com o financiamento corporativo, estatal e pessoal» 13

Por fim, é o desempenho do capital nos mercados globalmente interdependentes que decide, em grande parte, o destino das economias em geral. Esse desempenho não depende inteiramente de normas econômicas. Os mercados financeiros são mercados, mas tão imperfeitos que só atendem parcialmente às leis da oferta e da procura. Os movimentos nos mercados financeiros são o resultado de uma combinação complexa de leis de mercado, estratégias empresariais, regulamentos de motivação política, maquinações de bancos centrais, ideologia de tecnocratas, psicologia de massa, manobras especulativas e informações turbulentas de diversas origens.

.

14

Nesse contexto de inúmeras variáveis, incerteza, mudanças bruscas e complexidade, a aquisição e posse de informações e conhecimentos tornaram-se crucial às empresas a fim de dar suporte à produtividade e lucratividade bem como garantir posições estratégicas na concorrência tanto local quanto regional e global, visto que são as empresas e suas redes, e não mais os países, as verdadeiras unidades de comércio

15

Enfim, Manuel Castells resume bem as características econômicas deste novo período histórico:

.

Uma nova economia surgiu em escala global no último quartel do século XX. Chamo-a de informacional, global e em rede para identificar suas características fundamentais e diferenciadas e enfatizar sua interligação. É informacional porque a produtividade e a competitividade de unidades ou agentes nessa economia (sejam empresas, regiões ou nações) dependem basicamente de sua capacidade de gerar,

13 HARVEY, op. cit., 1993, p. 155. 14 CASTELLS, op. cit., p. 147. 15 Ibidem, p. 156.

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processar e aplicar de forma eficiente a informação baseada em conhecimentos. É global porque as principais atividades produtivas, o consumo e a circulação, assim como seus componentes (capital, trabalho, matéria-prima, administração, informação, tecnologia e mercados) estão organizados em escala global, diretamente ou mediante uma rede de conexões entre agentes econômicos. É rede porque, nas novas condições históricas, a produtividade é gerada, e a concorrência é feita em uma rede global de interação entre redes empresariais.16

Ascher, ao analisar todo esse período histórico recente, também enfatiza as evoluções e reconfigurações na economia como essenciais na reestruturação social. Segundo ele, o sistema “fordo-keynesiano” era limitado por suas próprias características intrínsecas, ou seja, aquilo que havia sido suas principais ferramentas de manejo econômico transformou-se, a partir de um determinado momento, na camisa de força do sistema capitalista. A produção em massa não acompanhou a crescente diferenciação e complexificação da demanda, as “receitas keynesianas” tornaram-se “antiprodutivas”, as intervenções estatais começaram a gerar efeitos inversos aos desejados.

Paralelamente às pressões pela liberalização, prosseguiram as pesquisas tecnológicas destinadas a facilitar a comunicação e aumentar a flexibilidade do rígido sistema fordo-keynesiano. Ascher fala que as técnicas surgem não de forma espontânea, mas devido a um contexto que as engendre, que apresente desafios a serem resolvidos. As técnicas estariam inextricavelmente ligadas às sociedades que as geram, sendo as expressões de suas necessidades momentâneas. Mas também acabam por modificar a mesma sociedade que as criou, pois elas “não são inertes”. «As tecnologias inscrevem-se primeiro em contextos que as selecionam e abrem-lhes potencialidades de ação»17

A ininterrupta modernização fez surgir uma “nova economia”: de um lado, extensivamente calcadas nos novos meios

. Essa constatação tem uma importância capital a todo o desenrolar do pensamento de Ascher.

16 Idem. 17 ASCHER, op. cit., p. 52.

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telecomunicacionais, principalmente a internet, daí o nome de net-economia; de outro, seu aspecto essencialmente cognitivo, isto é, «as indústrias e serviços em que predominam a produção, venda e utilização de conhecimentos, informações e procedimentos»18

A produção industrial depende cada vez mais das lógicas e dos poderes da economia cognitiva, de sua capacidade de conhecer os mercados, de utilizar os conhecimentos técnicos e científicos, de inventar respostas, de desenvolver capacidades de inovação, de organizar processos, dirigir as reações frente aos acontecimentos, de analisar custos, coordenar atuações e controlar as comunicações em caso de crise.

. Essa característica cognitiva também alimenta o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TIC), criando um círculo virtuoso de inovação.

19

Muitos autores falam em “pós-fordismo” ou “pós-industrialismo” para designar este novo ciclo, enfatizando as mudanças no modo e nas relações de produção. Para Ascher, esses termos mascaram o fato de que a indústria fordista, e muitos de seus paradigmas, ainda estão presentes neste novo ciclo, mas que, na verdade, foram geograficamente relocalizadas. Apenas nos países tecnologicamente avançados, tais conjecturas teriam algum sentido. Contudo, o fim do “industrialismo” obviamente não significa o fim do capitalismo. A concentração de capital e renda continua de forma intensa. A tendência à monopolização dos mercados permanece.

O que Ascher nota é a sua transformação a um capitalismo mais reflexivo. A demanda mais diversificada e mercados mais incertos impeliram à utilização por parte das empresas de racionalidades variadas, saindo da lógica “preço-custo” para a “qualidade-diferenciação”, da massificação à diversificação, do planejamento a longo prazo à gestão de curto prazo. A coleta de informações conjunturais, a criação de cenários futuros de ação e a retroalimentação do planejamento, conhecimento mais especializado, a subcontratação e as joint-ventures são peças fundamentais na gestão das empresas globalizadas. 18 ASCHER, François. Los nuevos principios del urbanismo. Madrid: Alianza, 2002, p. 46 19 ibidem, p. 44

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O caráter estratégico da economia cognitiva se confirma de certa forma pelo proceder, em certos setores, das grandes empresas dos países desenvolvidos que parecem deixar a produção material a outros — e ao resto do mundo — e que se concentram nas novas tecnologias atraindo capitais e pessoal qualificado de todo o mundo para garantir seu desenvolvimento.20

A mecânica da globalização atinge todas as atividades econômicas, integrando inclusive as pequenas e médias empresas. Todos os “atores” acabam por estar integrados na rede da concorrência internacional, direta ou indiretamente. O mercado de trabalho se torna cada vez mais competitivo, exigindo uma maior especialização da mão-de-obra, o que força os Estados a criarem e atualizarem constantemente as instituições de ensino técnico e superior a fim de capacitar pessoal e suprir as demandas das novas empresas, em velocidade crescente de mutação ininterrupta. Mesmo assim, a duração média do conhecimento especializado está diminuindo e a maioria dos empregos oferecidos dos próximos dez anos não existe hoje

21

Evidentemente, todas essas mudanças nas técnicas, nos modos de produção e nas relações de trabalho têm os seus efeitos culturais. Principalmente quando se trata da globalização. Para Octavio Ianni, a globalização é um novo desafio epistemológico para as ciências sociais, há muito tempo fundadas na reflexão do paradigma clássico da sociedade nacional, e exige «novos conceitos, outras categorias, diferentes interpretações»

. O desnível entre aqueles que têm acesso à educação e os que não têm, portanto, cresce ainda mais, visto que os últimos têm cada vez mais dificuldade em arranjar emprego e obter renda.

22

20 Ibidem, p. 44

. Ascher partilha dessa perspectiva. Para ele, a globalização faz parte de um macroprocesso de sentido único: a modernização.

21 MORAES, Maria Cândida. O perfil do engenheiro dos novos tempos e as novas pautas educacionais. In: LINSINGEN, Irlan von. Formação do engenheiro: desafios da atuação docente, tendências curriculares e questões contemporâneas da educação tecnológica. Florianópolis: UFSC, 1999. 22 IANNI, Octavio. Globalização: Novo Paradigma das Ciências Sociais. Revista Estudos Avançados, v. 8, 21, p. 147-163, São Paulo, IEA-USP, 1994, p. 147.

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Segundo o sociólogo, a modernização da sociedade é caracterizada por três “dinâmicas sócioantropológicas” que interagem entre si: a individualização (representação do mundo a partir do indivíduo e não mais do grupo), a racionalização (substituição da tradição e repetição pela razão e escolha) e a diferenciação social (diversificação das funções individuais e grupais na sociedade).

O século XX viu essas três dinâmicas serem intensificadas por diversos fatores. Um deles é a metropolização das cidades. A metrópole não é apenas um território, mas também modos de vida e modos de produção. Elas concentram cada vez mais as riquezas e o poder político e econômico, tornando-as o destino de grande parcela da população em busca de emprego e salários melhores. No entanto, as vagas de trabalho não são suficientes para absorver toda essa mão-de-obra. As metrópoles apresentam, assim, tendências sóciossegregativas muito mais acentuadas que as cidades médias ou pequenas.

Modificando um pouco as estruturações clássicas da sociedade em classes ao enfatizar sua presença urbana, Ascher diz que a sociedade contemporânea acaba se dividindo em três grandes categorias: a classe estável, a instável e a marginalizada. A classe estável é aquela que possui um trabalho durável, altos rendimentos, controle da localização de sua moradia na cidade, alto poder de escolha de suas práticas sociais e por isso é a classe mais heterogênea, constitui um mercado chave para a economia internacional.

Recentemente, e particularmente nos EUA, destacou-se o surgimento de uma nova classe entre os ricos, uma espécie de evolução dos yuppies: os bobos, ou “burgueses boêmios”. Os bobos teriam o poder aquisitivo e auto-interesse dos tradicionais burgueses, mas valores diversos, influenciados pelo idealismo liberal da contracultura e questões éticas atuais como a fome, o multiculturalismo, a poluição ambiental, etc. Assim, se recusam a gastar com caviar, um Corvette ou um conjunto de mídia com TV gigante, mas não vêem problemas em pagar caro por legumes italianos importados, uma Range Rover que os permite andar off-

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road ou uma cozinha de ultima geração23

A classe instável, ou frágil, possui empregos mais sujeitos às instabilidades econômicas e de remuneração baixa ou mediana. Seus indivíduos são menos heterogêneos por possuírem menos poder de escolha, e também por isso adotam atitudes “oportunistas” ou “táticas” para adaptarem-se às situações. Geralmente moram distante na periferia das grandes cidades, distantes de seus empregos. De certa forma e por ter acesso crescente às TIC, é a classe que mais sofre os efeitos das inovações tecnológicas pois, ao mesmo tempo em que vê suas potencialidades comunicativas e de deslocalização aumentarem, tem seus empregos dramaticamente modificados, adicionados em carga horária ou, até mesmo, extintos pela informatização e automação

.

24

Já a classe marginalizada é a dos indivíduos que possuem empregos informais e precários, subempregos ou estão desempregados, vivendo basicamente com a ajuda de subsídios públicos. É uma classe bastante homogênea em suas práticas e expressões, não participam das benesses das inovações tecnológicas, seus laços sociais ainda se encontram estruturados nas comunidades em que vivem. Por não terem condições financeiras para adquirir veículos próprios, dependem fundamentalmente do transporte público coletivo.

.

Em vista dessas disparidades entre as capacidades de deslocamentos no espaço urbano, Ascher dá grande importância à mobilidade dos indivíduos na metrópole. «A mobilidade está no coração do processo de urbanização, é um princípio da metropolização e não uma de suas conseqüências»25

23 Cf. BROOKS, David. Bobos in Paradise: The New Upper Class and How They Got There. New York: Simon & Schuster, 1999.

. Usa diversas estatísticas das últimas duas décadas (como o número crescente de deslocamentos diários por pessoa, inclusive de idosos e crianças; o aumento da duração e distância desses deslocamentos; a evolução dos motivos; a diminuição dos deslocamentos a pé e de bicicletas; o crescimento do uso de automóvel nas pequenas cidades e zonas rurais) para concluir que o desenvolvimento das TIC não tem como

24 Cf. RIFKIN, Jeremy. O Fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 2004. 25 ASCHER, op. cit., 1995, p. 133.

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corolário a perda de importância do espaço da cidade e a reclusão dos indivíduos em suas casas, como aponta a criação de conceitos tipo cocooning26

Hoje, é precisamente a mobilidade das pessoas que origina o desenvolvimento dessa nova tecnologia móvel: o tempo passado nos transportes e, particularmente, no carro é a primeira motivação. De fato, pode-se considerar que o desenvolvimento do celular favorece a mobilidade física e torna “tolerável” o tempo de deslocamento metapolitano, fazendo do transporte um “lugar” multifuncional. [...] As telecomunicações participam, assim, nas recomposições dos motivos e sistemas de deslocamentos; tornando possíveis as trocas nas metápoles entupidas e dilatadas, elas tendem a favorecer a metropolização.

(encasulamento), mas, pelo contrário, as TIC vêm suprir as necessidades de uma sociedade cada vez mais móvel.

27

A evolução da deslocalização do cidadão metropolitano já possui uma longa história, desde os primeiros bondes e metrôs como meios de transporte rápido, passando pelo refrigerador, fornos a gás e a microondas como armazenamento e preparo da comida, até o advento do rádio, do telefone, da televisão e do vídeo-cassete como meios de informação à distância e independência da sincronia. Agora, com os meios de transporte coletivo atuais ainda mais rápidos, permite-se os indivíduos deslocarem-se por vastas regiões em pouco tempo, alargando os espaços-tempo individuais e fortalecendo sua autonomia em relação às escolhas e modo de vida. A regra pessoal torna-se “onde quero, quando quero, como quero”.

Além das transformações da esfera pública, destaca também as da esfera privada. As alterações nos modos de vida e sistemas de valores se aceleram, a estrutura familiar se modifica, as gerações diferenciam-se. A tradição e as crenças não tem mais a garantia de sua transmissão e aceitação. Cada vez mais revistas e colocadas em questão pela racionalização, elas sãos substituídas por uma atitude reflexiva por parte do indivíduo ao determinar suas próprias ações, já que as situações e eventos que ele enfrenta são cada vez mais

26 Cf. POPCORN, Faith. The Popcorn Report. Nova York: HarperBusines, 1992. 27 ASCHER, op. cit., 1995, pp. 59-60.

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diferentes e cambiantes, muitas vezes desconhecidos pelas tradições.

Há, portanto, a multiplicação das polaridades e centralidades, e também a multiplicação de grupos de pertencimento. O indivíduo não é mais o representante de um grupo homogêneo e fechado, ele agora transita de um grupo a outro, de acordo com a sua vontade. Ascher denomina esse fenômeno como “sociedade hipertexto”. Hipertexto é o texto formado por palavras que fazem ligações a outros textos, ou seja, a mesma palavra participa simultaneamente de vários textos, mas com sentidos diferentes, tendo o sufixo hiper a conotação de espaço com n dimensões. Do mesmo modo, os indivíduos são as ligações entre diferentes universos sociais, cada qual com seus modos e suas regras aos quais estariam vinculados temporariamente, porém de maneira débil.

O multipertencimento simultâneo de cada indivíduo a vários grupos sob referências diversas, variável, além disso, ao longo dos ciclos de vida, dá assim uma aparência caótica aos espaços dos modos de vida! Cada personalidade joga sobre registros cada vez mais variados que emprestam suas referências ora à família, ora ao grupo sócioprofissional, ora à classe etária, ora a uma origem geográfica, religiosa, ou a qualquer outra afinidade particular.28

Temos assim uma estruturação social em rede, ou “reticular”, onde os indivíduos multigrupais interconectam seus grupos numa malha densa, complexa, heterogênea e mutante. Essa interconexão se apóia sobre os mais variados meios de comunicação, deixando obsoletas as antigas estruturas areolares de relacionamentos que operavam por difusão, limitadas, hierárquicas e estanques. Essa interconexão e interdependência entre indivíduos fundam uma nova solidariedade:

Depois da “solidariedade mecânica” da comunidade rural e da “solidariedade orgânica” da cidade industrial, surge um terceiro tipo de solidariedade, a “solidariedade comutativa” que relaciona indivíduos e organizações pertencentes a muitas redes conectadas entre si. 29

28 Ibidem, p. 122.

29 Idem, op. cit., 2001, p. 41.

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Solidariedade, aqui, entendida como no sentido atribuído por Durkheim, de quem Ascher evidentemente toma o conceito emprestado: como o fato social de natureza moral, criada pela divisão do trabalho social a qual teria por função garantir a coesão e unidade do grupo em questão, ou seja, seria a condição de sua existência30

Já a solidariedade “comutativa”, de Ascher, surge de uma sociedade (a contemporânea) onde a divisão do trabalho se aprofunda ainda mais numa estrutura de interdependências em rede mas de vínculos débeis, com indivíduos cada vez mais autônomos e indiferentes a uma base social comum e coletiva, relacionando-se à base de trocas (ou comutações) descompromissadas.

. Para Durkheim, a solidariedade mecânica corresponde àquela sociedade baseada na semelhança entre seus membros, onde crenças e sentimentos comuns são partilhados de modo impositivo em relação à personalidade de cada um. A solidariedade orgânica, por outro lado, diz respeito à sociedade na qual existe uma profunda divisão do trabalho, fazendo com que os indivíduos dependam mais um dos outros, mas simultaneamente abrindo espaço à personalidade individual a fim de criar a diferenciação.

Não apenas a divisão de trabalho modifica as relações interpessoais. Os meios de transporte cada vez mais rápidos e de comunicação cada vez mais eficientes possibilitam a multitemporalidade e ubiqüidade que debilitam progressivamente as comunidades locais, já que o trabalho, família, vizinhança não são mais os círculos para a maioria das práticas sociais. A natureza do “local” se modifica.

O peso dos fatores de proximidade enfraquecem também no que determina as relações amigáveis e parentais, as práticas esportivas, a adesão a associações diversas, a vida cultural, as condições estão reunidas para que o vizinho possa se tornar um “estrangeiro”.31

O local, hoje em dia, se resume ao domicílio. Enquanto a metápole se movimenta ao redor feito nômade, enquanto os pontos

30 DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (Coleção Tópicos) 31 ASCHER, op. cit., 1995, p. 151.

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de interesse, o trabalho, o estudo, o lazer, etc., mudam incessantemente de lugar e se distanciam cada vez mais, o indivíduo estabelece a sua própria residência como ponto fixo e por ela cria suas estratégias de atuação na cidade. Entretanto, mesmo com a importância da casa, o bairro perde gradativamente seu caráter de território próprio da sociabilidade comunitária, de uma identidade social. Os vizinhos não possuem mais os laços de semelhança, muitas vezes nem se conhecem. A perda da sociabilidade local é um dos pontos da reflexão ascheriana sobre a política e a governabilidade, tratada mais detidamente no capítulo IV.

Ao contrário do que isso possa dar a entender, a vida social não irá ser capturada pelo espaço virtual. O barateamento e a banalização das telecomunicações e informática tem como conseqüência o paradoxo de valorizar aquilo que não é telecomunicável. Ascher constata essa afirmação tanto no mundo dos negócios quanto na esfera cultural.

No mundo dos negócios, a posse e uso simplesmente das TIC não mais se converte em vantagem concorrencial devido à sua penetração em todos os ramos técnicos e produtivos. O fator de distinção recai sobre o poder de deslocamento material, do contato direto, ou seja, sobre a proximidade. A riqueza da relação face-a-face, presente nos gestos, posições, encenações, códigos corporais, ainda não foi substituída pela tecnologia e «permanecerá, portanto, incontornável para bom número de trocas tanto profissionais quanto pessoais»32

Na cultura, a generalização das tecnologias audiovisuais fazem com que a procura por eventos imediatos tais como esportes, festivais, gastronomia aumente por suas emoções ou sensações mais “reais” e “fenomenológicas”. Um fenômeno atual interessante que poderíamos qualificar dentro do paradoxo da banalização tecnológica — e apenas para dar uma ilustração meio banal — é o retorno dos discos de vinil em detrimento dos CDs, sob a justificativa de os primeiros possuírem um som mais “rico” e “quente”, de terem dois lados e emitirem o ruído da agulha

.

33

Esses sentidos que escapam ainda à mediatização

.

32 Ibidem, p. 56. 33 BUSKIRK, Eliot Van. Vinyl May Be Final Nail in CD’s Coffin. [online] Wired. 29 out. 2007.

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telemática qualificam e valorizam os espaços que os abrigam ou os produzem e que não são acessíveis senão fisicamente. O valor do espaço, longe de desaparecer na telecomunicação, se reconstitui, portanto, em torno do que só a proximidade torna possível de trocar, de comunicar. É a “vingança espacial do laço social”. Assim, no domínio da vida quotidiana, o paradoxo das telecomunicações é que sua generalização transfere os valores sociais ao que é inacessível. 34

A esfera pública e seus elementos, a cidadania e a “citadinidade”, a criação do consenso e do compromisso, as alternativas do Estado contemporâneo, da política, da governança metapolitana serão tratados mais detalhadamente no terceiro capítulo.

Abaixo, um esquema comparativo35

, concebido pelo sociólogo, entre as três revoluções urbanas modernas em diferentes dimensões e que resume de certa forma o que foi tratado neste capítulo:

Comunidade Sociedade

industrial Sociedade hipertexto

Vínculos sociais

Pouco numerosos, curtos, sem diversificar, estáveis, fortes e multifuncionais

Mais numerosos, de vários tipos, evolutivos, fortes, em via de especialização

Muito numerosos, muito variados, mediatizados e diretos, frágeis, especializados

Solidariedade Mecânica Orgânica Comutativa

Territórios sociais (espaço das relações sociais)

Autárquicos e fechados, com centralidade local

Integrados num conjunto maior, entreabertos, com base nacional

Abertos, múltiplos, cambiantes, escalas variáveis reais e virtuais

Morfologia sócio-territorial

Alveolar Areolar Reticular

34 ASCHER, op. cit., 1995, p. 78. 35 ASCHER, op. cit., 2001, p. 53.

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Paradigmas dominantes

Crenças, tradição e continuidade, destino, força, autoridade, sabedoria

Razão universal, funcionalidade, simplificação e especialização, democracia representativa

Complexidade, incerteza, autorregulação, flexibilidade, governança

Atuações Repetitivas e rotineiras

Racionais Reflexivas

Regulações principais

Costumes, chefe Estado e leis Sistemas estatais, direito e sociedades, contratos, opinião pública

Atividades econôm. dominantes

Agrícolas Industriais Cognitivas

Cultura Predominantemente local

Componentes sócio-profissionais

Diversificada e híbrida (multipertencimento)

Tipo urbano dominante

Cidade-mercado Cidades industriais hierarquizadas

Sistema metapolitano

Instituições Paróquias, cantões, Estado-nação

Comunas, centralização, Estado do bem-estar, pactos, alianças e tratados

Aglomerações, países, regiões, organizações internacionais e supranacionais, ONGs

A conjunção de todas essas transformações econômicas e

sociais, aliadas ao aprimoramento dos transportes e das tecnologias da informação e comunicação gerou um espaço urbano completamente diferente. Ascher cunhou o termo “metápole” para designar essas aglomerações conurbadas, extensas, descontínuas, heterogêneas e multipolarizadas, uma nova fase do processo de urbanização.

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C A P Í T U L O I I I M E T Á P O L E : A N O V A F O R M A U R B A N A

s cidades, mais uma vez, se tornaram o foco das discussões acerca dos rumos da condição humana no mundo. Intrinsecamente aos processos econômicos e sociais,

políticos e científicos analisados no capítulo anterior, testemunhou-se o nascimento e desenvolvimento de uma nova fase da evolução urbana que talvez ainda seja muito cedo para antever o seu desfecho, mas que já rendeu inúmeras teorias, hipóteses e previsões. Enfim, paradigmas surgiram para tentar relacionar e integrar todos os dados observados e fatores decisivos numa abordagem coerente.

Algumas dessas especulações tendem a ser pessimistas, outras otimistas, outras ainda neutras ou apenas interrogativas, cada qual enfatizando uma perspectiva diferente da questão. Mas, de uma forma ou de outra, todas elas partem do princípio de uma total e irreversível mutação das cidades advindas da matriz tecnológica da comunicação e do deslocamento das pessoas, dos bens e da informação.

Existem aqueles que enxergam essa matriz como dissolvedora daquilo que comumente entendemos, genericamente, por cidade: um grande «estabelecimento de habitações estreitamente espaçadas»1

1 WEBER, Max. Concepts and Categories of the City (1921). In: Meagher, Sharon. Philosophy and the City. Albany: State University of New York Press, 2008, p. 102.

. Desde Marshall McLuhan e seu conceito de “aldeia global”, muito se falou sobre o fim das cidades, a desvalorização do espaço físico em favor dos espaços virtuais de interação interpessoal ou o definhamento da sociabilidade urbana decorrentes do desenvolvimento das tecnologias de comunicação e transportes. O

A

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próprio Marshall, estudioso da comunicação, após analisar a massificação da televisão e antes do advento da Internet, proferiu sua sentença:

A cidade não existe há muito tempo, exceto como um fantasma cultural para turistas. Qualquer lanchonete de beira de estrada com seu aparelho de TV, seus jornais e revistas, é tão cosmopolita quanto Nova York ou Paris. [...] A metrópole é obsoleta. 2

Paul Virilio, mais pessimista que McLuhan, teme pela “desurbanização pós-industrial” que estaria acarretando a deterioração das cidades através das tecnologias de comunicação instantâneas. O espaço cedendo ao regime de urgência do tempo; o “onde” não interessa mais, o “quando”, em qual “horário”, dita o ritmo da vida em torno do “centro do tempo”. Os limites objetivos, as noções de “intramuros” e “extramuros” se dissipariam e passariam a flutuar num «éter eletrônico desprovido de dimensões espaciais».

A instantaneidade da ubiqüidade resulta na atopia de uma interface única. Depois das distâncias de espaço e de tempo, a distância-velocidade abole a noção de dimensão física. A velocidade torna-se subitamente uma grandeza primitiva aquém de toda medida, tanto de tempo como de lugar. Esta desertificação equivale de fato a um momento de inércia do meio. A antiga aglomeração desaparece então na intensa aceleração das telecomunicações para gerar um novo tipo de concentração: a concentração de uma “domicilização” [...]. 3

Françoise Choay lamenta a transformação e desaparecimento da cidade européia tradicional pela técnica e aponta a velocidade e facilidades dos deslocamentos e comunicações, com seus efeitos de dispersão suburbana e esvaziamento dos centros históricos, como instauradores de um divórcio entre urbs e civitas. A “urbanização

2 McLUHAN, Marshall. The Alchemy of Social Change. New York: Something Else Press, 1967, apud MITCHELL, William J., E-topia: a vida urbana – mas não como a conhecemos. São Paulo: SENAC, 2002, p. 19. 3 VIRILIO, Paul. O Espaço Critico e as Perspectivas do Tempo Real. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p.13.

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universal” proclamaria a morte da cidade e o início do reino do urbano.

O exame do léxico e de seus neologismos desvela a hegemonia do urbano. Região urbana, comunidade urbana, distrito urbano..., essas novas entidades dizem suficientemente o apagamento da cidade e o anacronismo de “município”, “vilarejo”, “cidade”: tantos termos que, logo, se reportarão apenas à história ou a nostalgias carregadas de sentidos. 4

Outros autores não chegaram ao extremo de apostar no “desaparecimento” da cidade, mas destacaram aspectos cruciais para o entendimento do estádio presente e tendências futuras. Alvin Toffler

5 profetizou que a “terceira onda”, uma mudança estrutural e profunda na civilização como um todo, traria consigo a mudança de «milhões de empregos para fora das fábricas e escritórios», em direção ao lar, ou ao que ele chamou de “cabana eletrônica”, uma “estação de trabalho de baixo custo” repleta de dispositivos eletrônicos. William Mitchell6 chama de e-topia a total integração, através dos cabos de fibra ótica, das cidades entre si e destas com o espaço rural. Manuel Castells a designa “cidade informacional”, mas não vê nela uma nova forma, mas um «processo caracterizado pelo predomínio estrutural do espaço de fluxos»7, fluxos de capital, de informação, de tecnologia, de imagens, sons e símbolos. Joel Garreau8

A cidade contemporânea, aquela que é constituída por essas periferias, deveria gerar uma espécie de manifesto, uma homenagem prematura a uma forma de modernidade que, confrontada com as cidades do passado, talvez parecesse desprovida de qualidades, mas na qual um dia haveremos de reconhecer ao

festeja o urban sprawl do subúrbio norte-americano, a cidade fora da cidade que ele convencionou chamar de edge-cities, no que é seguido por Rem Koolhaas:

4 CHOAY, Françoise. O Reino do Urbano e a Morte da Cidade. Revista Projeto e História, São Paulo: PUC-SP, nº18, p. 67-89, mai/1999. 5 TOFFLER, Alvin. The Third Way. New York: Bantam Books, 1981. 6 MITCHELL, op. cit. 7 CASTELLS, op. cit. 8 GARREAU, Joel. Edge City: Life on the New Frontier. New York: Anchor Books, Doubleday, 1992.

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mesmo tempo vantagens e desvantagens. Esqueçam Paris e Amsterdã, olhem para Atlanta, logo e sem preconceitos — é tudo o que posso dizer. 9

Mas o trabalho mais esclarecedor e influente é o de Saskia Sassen

10

O conceito de economia global entranhou-se profundamente nos círculos da mídia e nos círculos políticos do mundo inteiro. [...] Estão ausentes deste modelo abstrato os processos, atividades e infraestrutura material que são fundamentais para a implementação da globalização. Fazer vista grossa à dimensão espacial da globalização econômica e dar ênfase excessiva às dimensões da informação só serviu para distorcer o papel exercido pelas grandes cidades na atual fase dessa mesma globalização.

. Além de fazer uma abordagem global da problemática, alargando os horizontes epistêmicos para além da relação interna urbe/tecnologia, toma a cidade como local fundamental para a estruturação mundial atual. Para ela, a chave para se entender a situação presente é analisar as mudanças ocorridas nas esfera econômica nos últimos quarenta anos em geral, e da globalização em particular, e porque as grandes cidades se tornaram seu principal palco de atuação.

11

Além do que já foi dito no capítulo II, segundo Sassen, os anos 60 e 70 caracterizaram-se pela predominância, na atividade financeira internacional, de grandes bancos transnacionais e suas atividades bancárias tradicionais. O quadro regulatório obrigava os bancos a criarem centros bancários offshore para onde afluíam grande parte do capital excedente. Os EUA eram os grandes investidores e origem dos empréstimos do mundo e a Europa e América Latina os destinos da maior parte deles e dos investimentos estrangeiros diretos.

Os anos 80 conheceram uma transformação fundamental na dinâmica internacional com a desregulamentação dos mercados. A

9 KOOLHAAS, Rem. Por Uma Cidade Contemporânea. In: NESBIT, op. cit., p. 358-361. 10 Neste trabalho, foram usados como referência os livros: SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University Press, 1991, e SASSEN, Saskia. A Cidade na Economia Mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998. (Coleção Megalópolis). 11 SASSEN, op. cit., 1998.

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mobilidade do capital, facilitada pela abertura dos canais de transação e pelas técnicas de acompanhamento e comunicação, ocasionou o crescimento rápido dos investimentos estrangeiros diretos, mas agora a fonte principal sendo o Japão e o destino preferido o sudeste asiático. Além disso, os bancos não estavam mais sozinhos na indústria financeira, novos personagens ganharam importância como as seguradoras e as bolsas de valores. Muito do capital depositado offshore é repatriado. A produção manufatureira perdeu o status de motor do sistema em favor dos serviços e finanças.

De fato, trata-se de um novo regime econômico. A produção se dispersa globalmente e as corporações se adaptam através da transnacionalização no domínio pelas fusões, aquisições, joint-ventures. A interconexão e mediação se dão através dos mercados financeiros. Mas os mercados financeiros são muito mais “complexos, competitivos, inovadores e arriscados” do que o sistema bancário, daí sua necessidade de uma vasta infraestrutura de serviços altamente especializados. Essa necessidade induz à concentração das empresas e instituições financeiras em alguns nós da rede geográfica global, esses nós são as grandes cidades que adquirem assim um novo papel estratégico nessa lógica dual de dispersão e integração global.

Além de sua longa história como centros do comércio e negócios internacional, estas cidades funcionam agora em quatro novas maneiras: primeiro, como pontos de comando altamente concentrados na organização da economia mundial; segundo, como locais chaves para finanças e firmas de serviços especializados [...]; terceiro, como sítios de produção, inclusive a produção de inovações, nestas principais indústrias; e quarto, como mercados para os produtos e inovações produzidas. Essas mudanças no funcionamento das cidades tiveram um impacto massivo sobre tanto a atividade econômica internacional quanto a forma urbana: Cidades concentram controle sobre vastos recursos, enquanto indústrias de serviços especializados e de finanças reestruturaram a ordem econômica e social. Assim, um

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novo tipo de cidade surgiu. É a cidade global. 12

Deste modo, ao contrário dos discursos da não-cidade como aqueles vistos acima, Sassen desvela a importância das cidades no contexto atual. Elas «são os lugares para certos tipos de produção, serviços, marketing e inovação»

13

Evidentemente, essa concentração de atividades e capital, de, edifícios inteligentes e seguros, de trabalhadores white-collars, de técnicos super-especializados, de empresários de alto poder aquisitivo necessita de sua contraparte, ou seja, daqueles que atendam o telefone, limpem os prédios, que guardem os carros, que sirvam a comida, que cuidem das crianças e que dêem comida aos cachorros e, além de tudo, consumam os produtos. Como diz Sassen, assim como os altos circuitos do capital são vitais à economia, também o são os baixos, mas que geralmente são ignorados nos conceitos de globalização, economia da informação e telemática.

. São centros de finanças e de gestão globais. Concentram em si todos os requisitos para funcionamento do sistema: infra-estrutura, instituições de ensino avançado, firmas de serviços ao produtor (producer services), instituições bancárias, financeiras e mercantis.

Ao deixar de incluir essas atividades e trabalhadores, ela ignora a variedade de contextos culturais em que eles existem, uma diversidade tão presente nos processos de globalização quanto a nova cultura internacional das corporações. Ao enfocarmos o lugar e a produção, podemos perceber que a globalização é um processo que diz respeito à economia das corporações e à nova cultura transnacional corporativa e, ainda, por exemplo, às economias dos imigrantes e às culturas do trabalho evidentes em nossas grandes cidades.

A obra de Saskia Sassen pode explicar, afinal de contas, boa parte das causas da tendência ao aumento da migração interna dos países, de suas áreas rurais ou sem pujança econômica para as grandes cidades, bem como da imigração de países pobres ou em desenvolvimento para países centrais da economia global.

12 SASSEN, op. cit., 1991, p. 3-4. 13 Ibidem, p. 87.

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Consequentemente, com afluxo de novos residentes, o número de metrópoles ao redor do globo aumenta (Imagem 9, página 82) e elas mesmas não param de crescer e expandir seus limites, ocupando cada vez mais áreas que antes eram destinadas à agricultura ou ainda mantinham características naturais como banhados, mangues, desertos, florestas, etc., seja com ocupações do tipo suburbanas de baixa densidade destinadas às classes médias e altas, seja com ocupações na forma de loteamentos para baixa renda, ou mesmo assentamentos irregulares e precários.

Sassen diz que não há a persistência de velhas formas, mas a ocorrência de novas formas urbanas respondendo a uma nova lógica econômica. Tanto ela quanto Castells afirmam que essa nova forma urbana se expressa nas grandes cidades, ou melhor, megacidades, aglomerações urbanas com mais de dez milhões de habitantes alastradas sobre um vasto território. Existiam apenas duas megacidades em 1950; hoje há 20 delas, 15 localizadas nos países em desenvolvimento (Tabela 1, página 80).

Consequentemente, a questão ambiental aparece com força no debate e geralmente num tom apocalíptico. Fred Pearce ressalta que, apesar das cidades ocuparem apenas 2% da superfície da Terra, ela consome três quartos dos recursos gastos a cada ano14

Tudo indica que a urbanização ainda seguirá a tendência de aumento, principalmente nos países do leste asiático. Se em 1950 a população urbana era de 29% do total, em 2007 chegou-se à igualdade entre esta e a população rural (

. O consumo de seus habitantes pressiona ainda mais a procura por terra cultivável, água e madeira. Segundo Pearce, Londres necessita de 125 vezes sua própria área para prover os recursos que consome, e «se as novas megacidades no mundo em desenvolvimento são possibilitadas a crescerem da mesma maneira que as cidades fizeram no ocidente, seus impactos ambientais serão catastróficos».

Imagem 11, página 84). A previsão é de que no ano de 2030, 60% da população mundial, ou 4,9 bilhões de pessoas, estejam habitando em áreas urbanas15

14 PEARCE, Fred. Eco-Cities Special: Ecopolis Now. New Scientist, London, 16 jun. 2006. Seção Environment. Acesso em: 19 mar. 2009.

. A taxa de crescimento da população urbana é maior nos países em

15 UNITED NATIONS. Department of Economic and Social Affairs. Population Division. World Urbanization Prospects: The 2005 Revision. New York: United Nations, 2006.

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desenvolvimento do que nos desenvolvidos (Imagem 12, imagem 84), resultando na projeção de que em 2030, os primeiros terão quatro vezes mais população urbana que os segundos. Além disso, o afluxo de migrantes dos países menos desenvolvidos aos mais desenvolvidos tem crescido nos últimos vinte anos chegando a 115 milhões de pessoas em 200516

O crescimento dessas megacidades é de tal escala que “megaconurbações” se formaram, transformando imensas regiões em áreas urbanizadas, tecidos contínuos de ocupação humana, apelidadas de “megalópolis”. Mas em cada lugar uma dinâmica própria. Enquanto algumas dessas megalópoles pertencem aos países desenvolvidos, como “BosWash” (de Boston a Washington, nos EUA, com aproximadamente 55 milhões de habitantes) e

.

Taiheiyō beruto (ou “Cinturão do Pacífico”, formado por várias metrópoles japonesas, entre elas Tóquio, Nagóia e Osaka, e abrigando quase 83 milhões de pessoas); outras estão nos países em desenvolvimento como a conurbação de cidades do delta do Rio das Pérolas (Cantão, Hong Kong, Shenzhen, Macau..., na China, chegando a 50 milhões) ou a grande São Paulo, Brasil, incluindo aí Campinas e Jundiaí, alcançando uma população de quase 30 milhões (Imagem 10, página 82).

Ascher concorda com Sassen acerca do papel das cidades no contexto contemporâneo e os efeitos em retorno que isso provoca em seu espaço e em suas dinâmicas. De fato, é como se o pensamento do estudioso francês tivesse a obra de Sassen como background e dela partisse para análises mais específicas do processo, ou seja, como a nova lógica do sistema econômico se expressa na escala urbana, do ponto de vista tanto das empresas, quanto dos políticos, decisores e cidadãos.

As visões e prognósticos de dispersão urbana total e desaparecimento da cidade, que fazem parte de debates antigos sobre as conseqüências descentralizadoras dos meios de transporte ou comunicação e reativadas a cada etapa evolutiva destes últimos, também lhe parecem equivocadas. A tese de Ascher sustenta que, apesar de as tecnologias novas trazerem consigo um afluxo de conseqüências e efeitos de amplos alcances, elas «não geram uma 16 Idem. Department of Economic & Social Affairs. International Migration Report 2006: A Global Assessment. New York: United Nations, 2007.

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dispersão generalizada dos homens e das atividades. Ao contrário, elas acompanham e até mesmo suscitam novas aglomerações e polarizações»17

Como introduzido no capítulo anterior, Ascher identifica três revoluções urbanas de caráter moderno: a primeira a da Idade Moderna; a segunda a da Revolução Industrial; a terceira seria a que vivemos hoje em dia, decorrente da revolução tecnológica, informacional ou técnico-científica. A resposta urbana foi a mudança de escala e forma, foi o prosseguimento e aprofundamento da metropolização e da modernização, iniciando um novo ciclo: a da cidade supermoderna, a metápole.

.

A metropolização contínua da cidade, ou seja, a concentração cada vez maior das riquezas, atividades e pessoas em cidades com milhões de habitantes, tem sido, há algum tempo, influenciada e incentivada pelo desenvolvimento das técnicas de transporte e comunicação, bem como pela ligação cada vez mais forte das cidades com a economia internacional.

As metrópoles são o palco da economia globalizada, os grandes centros de decisões, onde se instalam as grandes empresas. Além disso a organização atual em unidades menores, fluxos estendidos e a comunicação avançada entre unidades e setores da produção ou serviços traduzem-se através da externalização das empresas, tornando a cidade uma extensão do processo produtivo e reforça a importância do espaço físico. A economia se torna mais urbana18

Ascher destaca que o conceito de rede está na moda nas mais diferentes ciências, inclusive nas ciências urbanas, utilizada como um paradigma, pois ela evoca noções como complexidade, interdependência e fluidez. No campo territorial, segundo ele, deve-se ter em conta os diversos tipos de redes que existem ou atuam espacialmente como as redes de comunicações, redes de empresas e redes de cidades, como uma influencia a outra e qual o papel de cada uma na conformação geral da rede urbana. Na cidade atual, a

. Consequentemente, também, a logística, seja do abastecimento, da venda ou reversa, assume um lugar crítico para os setores econômicos ao lidar com os transportes de bens e recursos a distâncias constantemente estendidas.

17 ASCHER, op. cit., 1995, p. 37. 18 ASCHER, op. cit., 2002, p. 48.

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importância está na facilidade em passar de uma rede à outra, ou seja, a importância competitiva está nas interconexões.

As redes, sociais ou espaciais, de indivíduos ou de cidades, também podem agir como mecanismos de seleção e obtenção de vantagem na estrutura de interdependências. Pierre Bourdieu explica, através do chamado “efeito clube”, que, para ingressar num novo espaço, «o indivíduo deve satisfazer as condições que aquele espaço tacitamente requer de seus ocupantes»19

Desse modo, a lógica privada em geral e a logística em particular, tanto da manufatura quanto dos serviços, contribuem de maneira significativa à formação das redes intra e interurbanas, favorecendo a polarização e concentração das funções avançadas de controle e gestão em torno dos nós de interconexão, tais como estações de transporte rápido

, do contrário corre o risco de sentir-se “fora de lugar”. As condições exigidas podem ser a posse de certo capital cultural, econômico ou social. O pertencimento às redes hoje em dia, conclui Ascher, é fundamental tanto para os indivíduos quanto para as empresas e cidades, por isso a busca incessante pela formação de interconexões.

20, aeroportos, teleportos21

A velocidade é o fator essencial nas relações econômicas em rede contemporâneas. As relações da grande metrópole com as cidades satélites não são as mesmas que as mantidas nos outros grandes ciclos históricos. Aquelas pequenas ou médias cidades que desejam incluir-se no mercado internacional procuram ter a mais

, etc.; enquanto as de manufatura e armazenamento, onde a natureza repetitiva e normalizável não são influenciadas decisivamente pelas novas tecnologias de comunicação, buscam terras mais baratas, proximidade às redes de infra-estrutura de transporte e acesso à mão-de-obra.

19 BOURDIEU, Pierre. Site Effects. In: BOURDIEU, Pierre et al. The Weight of the World: Social Suffering in the Contemporary Society. Stanford: Stanford University Press, 1999, p. 128. 20 Na França, especificamente, existe o sistema TGV (Train à grande vitesse), centrado em Paris, conecta cidades de um lado ao outro do país. 21 Teleporto, ou “porto de telecomunicações", é um «núcleo provedor de serviços eficientes com custo-benefício de alta performance voltados para empresas que demandam grande conectividade em banda larga, tanto local quanto a longa distância, servidos por satélites, fibra ótica, ondas curtas e outras estruturas de rede». (Teleporto Brasil, disponível em: <http:// www.teleportobrasil.com.br/ definicao.htm>)

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direta conexão possível com a metrópole mais próxima. Ascher atesta, baseado nestas estruturações polarizadas pelos

transportes rápidos, que os modelos abstratos tradicionais de descrição das redes de cidades criados por economistas ou geógrafos estariam obsoletos e que, hoje em dia, a cidades se relacionariam e organizariam numa lógica de hub-and-spokes.

Um dos modelos tradicionais é a teoria das localidades centrais, de Walter Christaller, também chamado modelo christalleriano (Imagem 13, página 85). De acordo com Christaller22

Já o sistema de organização por hub-and-spokes (centros e raios) seria o mais indicado a descrever a hierarquia entre cidades atualmente, depois da globalização e dos transportes rápidos (

, todos os núcleos de povoamento, grandes ou pequenos, urbanos ou rurais, são considerados como localidades centrais dotadas de funções centrais para os residentes de uma região complementar. Cada localidade central possuiria uma alcance máximo e mínimo referente, respectivamente, à área de deslocamento dos consumidores e à área que possui o número mínimo de consumidores necessários para que uma atividade comercial ou de serviços possa se instalar. Assim, estabelece-se uma hierarquia sistemática e cumulativa entre as localidades centrais com base na oferta de bens e serviços, sendo a metrópole regional o núcleo mais importante do esquema por oferecer o maior número de bens e serviços e por ter o maior alcance espacial.

Imagem 14, página 85). O nome deriva da analogia com a roda de uma bicicleta, a qual possui um centro ou cubo (hub) de onde partem os raios (spokes). Foi utilizado com eficiência no sistema de transporte aéreo americano após a desregulamentação do mesmo pelo governo nos anos 70, substituindo o sistema ponto-a-ponto anterior. Desde então, os maiores aeroportos do mundo se tornaram os hubs do sistema aéreo para onde convergem os vôos de baixa demanda que fazem conexão com linhas mais procuradas, otimizando o uso das aeronaves e diminuindo custos. O modelo, hoje, é amplamente utilizado nas mais variadas áreas, incluindo redes de computadores, processos de trabalho e, logicamente, também nos sistemas de transporte não-aéreos. 22 Cf. CORRÊA, Roberto Lobato . A rede urbana. São Paulo: Atica, 1989. 96p. (Principios ; 168), p. 21 et seq.

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Ou seja, num contexto de intensas conurbações, de tecnologias avançadas de comunicação e de integração econômica global que muda e se inova constantemente, as armaduras rígidas como a de Christaller já não possuem pertinência. As comunicações e transportes, ao diminuírem o tempo e os custos das transações mercantis, produtivas, educacionais, etc., e aumentarem o raio de ação das cidades, rearranjam as hierarquias urbanas numa rede muito mais complexa, regional e globalmente, na qual redes de níveis e naturezas distintas se sobrepõem, se cruzam, integram locais distantes ou diferenciam os mais próximos e o modelo de hub-and-spokes traduz, segundo Ascher, as conexões atuais.

Mas o que Ascher destaca nesse modelo não é a questão da redução dos custos de operação ou a quantidade de conexões existentes numa cidade. É a própria existência da lógica de centros e raios que lhe interessa. Segundo ele, esse sistema acaba por polarizar o tecido urbano, principalmente das grandes metrópoles, tornando-o descontínuo e heterogêneo devido ao “efeito túnel” que ele carrega consigo. Os trens de alta velocidade, os metrôs, os aviões criam o “efeito túnel” ao ligar grandes distâncias sem paradas intermediárias, o que se encontra na travessia desaparece. Segundo Herce Vallejo23

Assim, “intraurbanamente” falando, as metrópoles se desenvolvem numa dupla lógica de integração de regiões e cidades vizinhas em seu funcionamento cotidiano e exclusão de localidades que não se conectam ao sistema, concentração de atividades que buscam acesso fácil aos nós de interconexão e alastramento da ocupação de baixa densidade pelos loteamentos cada vez mais distantes do core urbano.

, esse é um dos temas principais no debate da globalização, trazendo a reflexão sobre as reais dimensões sociais e territoriais das infraestruturas, pois tendem a criar periferias situadas entre dois espaços centrais.

As zonas rurais, por sua vez, quando não atuam como uma hinterlândia ou são relegadas como regiões atrasadas, aparecem cada vez mais como espaços de serviços e turismo (“turismo rural”) ou como territórios de expansão para o alto mercado imobiliário na forma de grandes condomínios fechados, propagandeados como 23 HERCE VALLEJO, Manuel; FARRERONS, Joan Miró. El soporte infraestructural de la ciudad. Barcelona: Edicions UPC, 2002. (Colección Arquitext nº29), p. 18.

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“refúgios naturais” do stress da cidade grande, destacando a “natureza exuberante e a qualidade de vida”24 em empreendimentos devidamente loteados e ajardinados, criando uma “rurutopia”, “parques temáticos” da vida no campo “que conta com toda a infraestrutura de chácara e sítio”25

Ascher diz que a segregação sempre acompanhou o desenvolvimento das cidades e que aquela imagem de mistura funcional e social «revela antes uma mitologia comunitária provinciana que referências históricas concretas»

. Talvez esteja-se criando aí a última fronteira de autossegregação da classe rica.

26

Como Sassen demonstrou

. A concentração das riquezas nas metrópoles não significou uma melhor distribuição delas. Pelo contrário, a tendência à diferenciação social apenas se acentuou desde os anos 80, às quais se seguem especializações sociais e segregações dos espaços metropolitanos, mais acentuadas do que nas outras cidades.

27

Enquanto a concentração de renda prosseguir, e essa é a tendência na atual conjuntura, os grupos marginalizados só irão aumentar. Ascher se pergunta se alcançarão resultados mais consistentes além de simplesmente mitigar os graves sintomas da exclusão. Ele diz que a situação é similar em muitos países, mas tem em mente a situação francesa e, principalmente, os banlieues (periferias) de Paris.

, enquanto aumentaram os investimentos em construções comerciais e residenciais luxuosas, há agora uma maior desigualdade nos salários, um maior predomínio da pobreza e mais gente desempregada. Os centros antigos ou novos, se bem localizados, gentrificam-se. Aqueles que não tem o poder aquisitivo suficiente, a classe “instável”, aceitam se estabelecer longe de seus empregos. A classe marginalizada mora onde puder, nos espaços interstícios ou em abrigos do governo.

A França é conhecida por seus programas assistenciais e políticas sociais que remontam ao fim do século XIX, para sanar os

24 INCORP. VILLAGE DA MONTANHA. Condomínio Village da Montanha – Rancho Queimado: onde é natural viver bem. Folder propagandístico. [S. l.: s. n.], 2008?. 25 INCORP. FIORI EMPR. IMOB. Condomínio Jardim da Serra: Venha viver cercado de verde. Folder propagandístico. [S. l.: s. n.], 2008?. 26 ASCHER, op. cit., 1995, p. 142. 27 Cf. SASSEN, op. cit., 1991.

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78 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER — VICENTE NASPOLINI — PGAU-CIDADE/UFSC

efeitos da da Revolução Industrial28. Após a Segunda Guerra, o Estado francês se torna eminentemente providencial, voltado à Proteção Social para assegurar a coesão social, constituído de políticas transversais de combate à pobreza e à exclusão além de previdência, seguro-saúde, assistência social às famílias, à velhice, aos imigrantes, e seguro-desemprego. Mesmo assim, existem críticas29

A política habitacional francesa

, hoje em dia, sobre como o Estado Providencial francês tornou-se, com o passar dos anos, corporativista, criador de desigualdades e concentrador de renda.

30 acompanhou lado a lado as medidas de proteção social. Os debates também iniciaram no século XIX e polarizavam-se entre Jules Siegfried, a favor da facilitação do trabalhador ao acesso à propriedade, e Jean-Baptiste Godin, que idealizou a habitação locativa social31. A experiência de Godin foi uma exceção no panorama da habitação social francesa. Na primeira metade do século XX, devido às guerras, a qualidade das construções era muito baixa, chegando mesmo a “suprimir instalações sanitárias por considerar um luxo para os operários”32

A revitalização da construção civil se deu por dois motivos. O primeiro foi, como já dito acima, a ajuda financeira do EUA aos países aliados através do Plano Marshall. O segundo foi o programa federal, aliado ao setor industrial, de recrutamento de mão-de-obra barata nas colônias ultramarinas, principalmente do norte da África, para suprir as necessidades da indústria e construção. «Além disso, o setor industrial preferia os operários imigrantes por considerá-los mais

. A Segunda Guerra só fez piorar o quadro, criando uma massa de inválidos ou doentes além do déficit habitacional.

28 BUSTILLOS, Catarina Setúbal R. Políticas Sociais Públicas: O Estado-Providência Francês. Revista do BNDES. Rio de Janeiro, v. 8, nº 15, p. 195-212, 2001. 29 Cf. EICHENBERG, Fernando. A França entre o velho e o novo. Mas que novo? TERRA MAGAZINE. Seção Colunistas. Disponível em: <http:// terramagazine.terra.com.br /interna/ 0,,OI2101144-EI6782,00-A+Franca+entre+o+velho+e+o+novo+Mas+que+novo.html>. Acesso em: 17 mar. 2009. 30 ABIKO, A. K.; GÓES, L. F.; BARREIROS, M. A. F. Política Habitacional na França: Locação Social e Villes Nouvelles. São Paulo: USP, Dep. de Eng.ª de Const. Civil, BT/PCC/122, 1994. 31 Seu “familistério” em Guise, depois denominado Palais Social de l’Avenir, edificado entre 1858 e 1877, tinha capacidade para 1.170 operários de sua indústria e contava com escolas, teatro, comércio e lazer. Durou até 1968. Engels, em seu tempo, já o considerava a única experiência socialista que deu certo. 32 ABIKO, op. cit., p. 4.

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passivos e menos inclinados a aderir a sindicatos»33

Com o passar do tempo e a emergência de governos pró-neoliberalismo, efetuando cortes de gastos e benefícios sociais, a deterioração do ambiente construído e das condições de vida só se agravaram, e esses bairros, enfim, viraram verdadeiros guetos. Foi nesse contexto que eclodiram os distúrbios nos banlieues franceses em 2005

. Todo esse afluxo de imigrantes, muçulmanos e negros, foram alojados em conjuntos habitacionais em bairros longínquos do centro, sem infraestrutura adequada, opções de lazer ou emprego próximos, nem eram servidos por transportes coletivos.

34

Ascher já mostrava pessimismo frente às políticas públicas destinadas a essa parcela da população e do território. O “Estado animador”, que apenas incentivaria a criação de dinâmicas “endógenas”, para ele representa claramente a «incapacidade dos poderes públicos a ter alguma eficácia sobre os mecanismos que geram a marginalização social, econômica e espacial dessas populações»

(e que repetiram-se em 2007). O estopim foi a morte acidental de dois jovens descendentes de imigrantes africanos que se escondiam da polícia. Logo depois eclodiria a revolta dos jovens da periferia de Paris e se propagaria a outras periferias da França, com automóveis incendiados e confrontos com a polícia. Os distúrbios se prolongaram por três semanas e culminaram na instauração do Estado de Emergência, uma lei de 1955 até então utilizada apenas nas colônias francesas.

35

Não se corre o risco de ver estabelecer-se progressivamente uma zona de “abandono” ou de “desqualificação”, subvencionada e mais ou menos “autogerida”, de tal maneira que a situação não seja muito explosiva e não venha a perturbar o resto da metrópole?

. Preocupado com a situação dos quartiers en crise, questionou em seu livro Metapolis:

33 IRELAND, Douglas. Trinta anos de negligência incendiaram a França. Folha Online. São Paulo, 15 nov. 2005. Especiais, 2005, Mundo, Violência na França, Artigo. Disponível em: <http:// www1.folha.uol.com.br/ fsp/ mundo/ ft1511200502.htm>. Acesso em: 18 mar. 2009. 34 ONDA de violência na França levanta questões sobre política social. Folha Online. São Paulo, 15 nov. 2005. Especiais, 2005, Mundo, Violência na França, Governo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u89356.shtml>. Acesso em: 18 mar. 2009. 35 ASCHER, op. cit., 1995, p. 146.

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Enfim, a cidade contemporânea cresce sem parar e concentra mais e mais pessoas de origens, culturas e interesses diferentes. A evolução do quadro é mais rápida que os mecanismos de ajuste e organização, multiplicando-se as ocupações e fugindo do controle das autoridades ou simplesmente com a anuência delas. Ascher qualifica este desenvolvimento incansável de metropolização “metastática”, uma nova forma urbana que ultrapassa os limites da metrópole clássica, que se diferencia em termos de escala e de vivência de todos as etapas anteriores da história urbana e que coloca problemáticas novas. Para qualificá-la e diferenciá-la da metrópole, criou o termo metápole. O uso do prefixo meta, que em grego significa “depois”, “além de”, denota o surgimento de uma outra forma urbana, diferente da metrópole, mas não necessariamente melhor ou pior.

Uma metápole é o conjunto de espaços cujo todo ou parte dos habitantes, das atividades econômicas ou dos territórios estão integrados no funcionamento quotidiano (ordinário) de uma metrópole. Uma metápole constitui geralmente uma só zona de emprego, de habitação e de atividades. Os espaços que compõem uma metápole são profundamente heterogêneos e necessariamente contíguos. Uma metápole compreende ao menos algumas centenas de milhares de habitantes. 36

Como agir num objeto com tal complexidade e tamanho? Após realizar uma análise dos modelos e práticas utilizados nas fases precedentes, Ascher conclui que elas não são mais suficientes ou nem mesmo adaptadas à nova situação social, espacial e epistemológica. Baseado nos avanços científicos ocorridos em diferentes áreas do conhecimento, procura construir uma nova metodologia capaz de dar conta dos desafios urbanos.

Primeiro deve-se assegurar a comunicação, a conversação e o deslocamento dos bens informações e pessoas. Conceber uma cidade onde a individualidade da escolha possa de fato efetuar-se. A mobilidade deve se espelhar em escolhas individuais, mais do que opções idênticas às massas. Os espaços devem ser dotados de

36 Ibidem, p. 34

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elementos e qualidades sensoriais que vão além do simples olhar. A gestão urbana deve adquirir um caráter mais estratégico,

aproveitando oportunidades, integrando-se no fazer a cidade mais como um “ator” do que “instituição”, lidando com outros “atores” públicos e privados, adquirindo de cada um os saberes que podem vir a ser necessários no processo de planejamento. Não mais um planejamento objetivando um produto final acabado, feito por experts fechados em gabinetes, mas um processo onde o meio é mais importante que o fim, o “modo” de planejar e executar é o mais importante.

Esse tipo de atitudes interativas e flexíveis modifica também as competências técnicas e profissionais necessárias para a elaboração e a gestão dos planos diretores [...]. Fazer, refazer ou implementar de maneira criativa um plano diretor supõe notadamente a compreensão das lógicas do urbanismo operacional e de seus atores.37

Para isso, são necessárias duas coisas: um “projeto de cidade” e a criação de consenso. O projeto de cidade definiria um conjunto de objetivos fixos a serem seguidos durante o processo de planejamento e elaborados conjuntamente pelos diversos atores da metápole. Evidentemente, conflitos surgirão e serão integrados num consenso mediado pelos urbanistas. Assim, é fundamental o “agir comunicacional” na mediação dos interesses públicos e privados. Os dois próximos capítulos tratarão mais detalhadamente das medidas políticas e urbanísticas mais condizentes nesta direção, segundo formulado por Ascher.

37 Ibidem, p. 221

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82 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER — VICENTE NASPOLINI — PGAU-CIDADE/UFSC

Imagem 9: Cidades com mais de 1 milhão de habitantes.

Imagem 10: Grandes conurbações. Urbanização aparente. (Imagens baseadas na captura das luzes à noite, NASA, layer do GoogleEARTH®)

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Tabela 1: Megacidades e suas populações, 2005 e 2015. (ONU, 2005)

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84 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER — VICENTE NASPOLINI — PGAU-CIDADE/UFSC

Imagem 11: População urbana e rural do mundo, 1950-2030. (ONU, 2005)

Imagem 12: Contribuição do crescimento da população urbana e rural ao crescimento total, 1950-2030. (ONU, 2005)

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Imagem 13: Modelo christalleriano.

Imagem 14: Modelo hub-and-spokes. (ASCHER, 1995)

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C A P Í T U L O I V G O V E R N A N Ç A U R B A N A M E T A P O L I T A N A

scher segue sua reflexão examinando as ressonâncias das mutações sociais na esfera pública. Segundo ele, a política vive, hoje em dia, uma crise. Crise ideológica, crise de

interesse popular, crise de legitimidade, crise de representação. «É a política, entendida como o conjunto das instituições e dispositivos que asseguram o funcionamento e a regulação da sociedade que não está mais adaptada à sociedade contemporânea»1

A rápida transformação da sociedade e a individualização acentuada pelo processo de modernização fazem com que os grupos sociais multipliquem-se e comutem entre si visões de mundo, moralidades, gostos e opiniões. Mas agora são os indivíduos, e não mais a massa da sociedade, que determinam o peso e a relação entre os elementos que formam o seu caráter (ethos) e, por fim, a sua personalidade. O eu tomou o lugar do nós. A consciência cada vez maior da singularidade individual torna mais difícil a formação de amplos grupos homogêneos.

.

A atomização da sociedade em indivíduos autônomos hipermodernos, e por isso mesmo “ecléticos”, que ainda não chegaram a formar uma solidariedade reflexiva, põe em questão os procedimentos da democracia representativa. Num contexto de incerteza e instabilidade, de questionamentos e revisionismos, de fragmentação do interesse comum, parece que o cenário político perdeu substância por trás dos discursos ideológicos. «De fato, os programas dos partidos tendem a esvaziar-se de todo conteúdo

1 ASCHER, François. La société évolue, la politique aussi. Paris: Odile Jacob, 2007, p. 8.

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preciso e a exaltar principalmente os méritos de seus líderes, e a revestir as proposições categoriais e setoriais de grandes princípios»2

Até mesmo a dicotomia ideológica direita/esquerda estaria, para Ascher, obsoleta pois percebe-se uma crescente fluidez entre essas posições antagônicas do espectro político. Para o sociólogo francês — tendo em mente principalmente a Europa — isso se deve ao declínio do sovietismo, por um lado, e dos regimes reacionários, por outro. Muitas posições sobre questões morais e governamentais, que sempre estiverem quase que inequivocamente polarizadas, e.g. direitos das mulheres e homossexuais, educação, segurança pública, têm sido toleradas por ambos os lados. Até mesmo nos governos a distinção se torna difusa

.

3

É interessante observar que o próprio Ascher faz parte desta mutação política. Em 1975, enquanto membro do Partido Comunista Francês, escrevia em seu livro O Urbanismo e a Política

.

4

Então desenvolver-se-á a consciência que só o socialismo, isto é, a transformação radical das relações sociais de produção, permitirá um desenvolvimento sem entraves das forças produtivas, condição necessária para que as necessidades sejam satisfeitas. Em todas estas etapas, o Partido Comunista tem um papel indispensável a desempenhar, porque é o Partido da classe operária à volta da qual as outras camadas e classes dominadas podem unir-se. Mas só a classe operária, por se opor radicalmente ao capitalismo, por estar na origem da produção, pode

, numa linguagem marxista ortodoxa, que as «cidades do capitalismo» estariam «doentes», «postas ao serviço da oligarquia monopolista» e que apenas uma análise e uma práxis baseada em «conceitos marxistas-leninistas», através de um «partido revolucionário de vanguarda», poderiam lhes reservar um futuro próspero.

2 Ibidem, p. 84. 3 Um exemplo foi o mandato de Lionel Jospin como primeiro ministro da França, de 1997 a 2002. Membro do Partido Socialista francês (PS), Jospin efetuou, entre outras medidas, a diminuição de impostos e privatizações. 4 ASCHER, François; GIARD, Jean. O Urbanismo e a Política. Lisboa: Estampa, 1976. Com a colaboração de Jean-Louis Cohen. (Coleção Praxis, 33) Título original: Demain la Ville? Urbanisme et Politique.

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apresentar, a partir de agora, as perspectivas históricas suscetíveis de fazerem triunfar definitivamente a união.5

Atualmente, ou melhor, já há praticamente duas décadas, tendo abandonado os quadros do Partido nos anos 80 e diversificado o discurso para além da ortodoxia ideológica, Ascher bebe na fonte da obra de Anthony Giddens e sua “terceira via”, na tentativa de transcender a limitação das escolhas políticas e integrar uma dimensão social à economia capitalista.

Giddens diz que a terceira via, ou “social-democracia”, tem por objetivo geral «ajudar os cidadãos a abrir seu caminho através das mais importantes revoluções de nosso tempo: globalização, transformação na vida pessoal e nosso relacionamento com a natureza»6

Voltando à democracia representativa e sua crise, Ascher pensa que aquela não está ultrapassada, mas que necessita de uma atualização de seus princípios a fim de que possa estar melhor adaptada à nova sociedade de indivíduos e seja capaz de gerar ou pôr em evidência o interesse geral.

. Assim, buscando uma nova doutrina entre a esquerda tradicional e a direita neoliberal, de um lado, os social-democratas aprovariam a globalização sem protecionismos mas com reservas e regulações ao livre-mercado; abandonariam o coletivismo em favor de uma redefinição de direitos e obrigações entre o indivíduo e a comunidade; estenderiam a noção de direitos e responsabilidades a todos. De outro lado, defenderiam a democracia como fonte da autoridade; proporiam valores cosmopolitas e buscariam uma modernização mais cautelosa e “nuançada”.

Para renovar a política, é necessário fazer evoluir as condições de seu funcionamento. É necessário, portanto, tentar situar ao nível dos princípios de governo e reformas estruturais que permitirão fazer aparecer os desafios estratégicos e as escolhas políticas. É necessário pensar a política em função da sociedade e das margens de ação que ela deixa entrever para que em seguida a filosofia política, a

5 Ibidem, p. 141. 6 GIDDENS, Anthony. A Terceira Via: Reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 74.

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ciência jurídica e é claro a política possam guiar as escolhas. 7

A complexificação crescente, manifestada na multitude de grupos e práticas sociais gera dois caminhos à metápole: o primeiro, de uma urbanidade intensa, repleta de trocas sociais (civilização “rica”); o segundo o da negação da alteridade, do retraimento da sociabilidade a micro-grupos que apenas coexistem na base de relações utilitárias mínimas (civilização “minimal”). O primeiro caminho seria o da “civilidade”, ou seja, a «capacidade de observar as ‘conveniências’, ‘boas maneiras em uso num grupo social’»

8. O segundo caminho levaria a uma metápole “fria” e “pulverizada” «na qual uma individualização empurrada a seu limite extremo distende as relações sociais, mina as instituições políticas, ou mesmo gera a reconstituição de pequenas comunidades fechadas» 9

A escolha entre esses dois caminhos dependeria daquilo que Ascher chamou de “citadinidade”, ou seja, a «consciência do pertencimento a uma coletividade urbana e o exercício dos direitos e deveres relacionados». Apesar de alguns autores preferirem usar o termo “cidadania urbana”, ele quis diferenciar “citadinidade” (citadinité) de “cidadania” (citoyenneté), pois o último conceito evoca a condição do indivíduo em relação à nação e, portanto, na escala supra-urbana e «tem como projetos transcender os particularismos de todos os tipos, notadamente as especificidades locais». «Citadinidade, civilidade e urbanidade aparecem assim como as qualidades interdependentes à vida metapolitana».

.

Ascher avalia que a citadinidade e a cidadania estão em déficit devido à exacerbação do individualismo e comunitarismo. O individualismo pode ser exemplificado pela “síndrome NIMBY” (not in my backyard, “não no meu jardim”) que é a recusa a implementações de equipamentos coletivos próximos a suas casas, mesmo sendo de grande utilidade à comunidade em geral. O comunitarismo se manifesta na aglutinação de indivíduos a grupos ideológicos, éticos, religiosos, ou mesmo de classe, gerando, por exemplo, os condomínios fechados norte-americanos e brasileiros.

O individualismo do “nimbismo” e o comunitarismo 7 ASCHER, op. cit., 2007, p. 15. 8 Idem, op. cit., 1995, p. 155 9 Ibidem, p. 156

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excludente põem em crise a noção de interesse geral (ou comum), bem como a definição e possibilidade de arbitragem entre interesses de escalas espaciais e temporais diferentes. A nação não é mais a escala da qual procedem os interesses coletivos.

A crise da definição de interesse geral, que perturba profundamente a nação e a cidadania, explica assim por uma grande parte as dificuldades de fazer existir um sentimento para legitimar ações de interesse coletivo territorializado. 10

Desse modo, Ascher questiona se é possível que a metápole constitua «uma base para fundar identidade e projetos territoriais, legitimar um interesse geral metapolitano, ou mesmo constituir um componente local da cidadania»

11

Aqui é necessário relacionar três elementos formadores do pensamento do sociólogo: o primeiro seria o desenvolvimento de novos paradigmas científicos advindos principalmente da teoria dos jogos, da cibernética e da teoria da complexidade; o segundo é a teoria da justiça de John Rawls e o terceiro a teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas, cada qual participando numa etapa da argumentação de Ascher.

, já que os habitantes dessas grandes aglomerações vivem sob tensões dicotômicas como entre individualismo e identidades coletivas ou entre os níveis local, nacional e internacional. A única maneira, segundo ele, é modificar a natureza das instituições e lhes dotar de uma racionalidade e lógica múltiplas, dinâmicas e adaptáveis à crescente complexidade da cidade contemporânea.

A teoria dos jogos é um ramo da matemática aplicada dedicada ao estudo das escolhas e estratégias de partes oponentes em situações complexas de tomadas de decisão, ou “jogos”12

10 Ibidem, p. 169

. Originalmente destinada à análise da competição econômica, a teoria dos jogos passou a ser utilizada em outras áreas como biologia, filosofia, psicologia, ciência política e sociologia devido à sua capacidade de avaliar fenômenos sociais, integrando atitudes humanas em seus modelos.

11 Ibidem, p. 175 12 Cf. DAVIS, Morton D. Game Theory: A Nontechnical Introduction. New York: Courier Dover Publications, 1997.

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A cibernética trata dos sistemas complexos deterministas ou probabilistas, autorregulatórios e autorreprodutores, que evoluem e aprendem, dependendo das informações que recebem, como os interpretam e da comunicação entre seus componentes internos e destes com os agentes externos13

Já a teoria da complexidade, ou teoria do caos, é considerada uma das três revoluções científicas do século XX, ao lado da relatividade e da mecânica quântica

. Assim como a teoria dos jogos, a cibernética extrapolou o ramo inicial de atuação, o das máquinas e servomecanismos, e foi adotada num amplo espectro disciplinar, desde a evolução das espécies até o estudo dos grupos sociais, burocracia, instituições, mercados, tráfego de veículos, cérebro, etc.

14

Para Ascher, esses novos ramos do conhecimento contribuíram para que a ciência passasse a ser vista de forma diferente, menos linear, reducionista e determinista, mais intrigante, transdisciplinar e holística. Contribuíram também à conscientização de uma racionalidade limitada, à renovação das modelizações e representações e à disseminação de noções importantes como “retroalimentação” (feedback) e “homeostase”. «Todas esses procedimentos se inscrevem numa dinâmica científica que abre à razão novos campos, novas possibilidades, inclusive de se confrontar à incerteza»

. Ela é, na verdade um modo diferente de ver as irregularidades das coisas. Com seu advento, passou-se a prestar mais atenção aos sistemas simples que dão origem a comportamentos complexos e vice-versa, passou-se a encontrar ordem e padrão em fenômenos desordenados e aleatórios na aparência. A natureza altamente genérica da teoria da complexidade possibilitou sua aplicação dos estudos das populações de mariposas às aglomerações estelares, dos atratores estranhos à formação de nuvens.

15

O segundo elemento é a teoria da justiça de John Rawls. Esta pretende ser uma alternativa à concepção de justiça do utilitarismo ao estabelecer a justiça como eqüidade, que opera pela igualdade de

. Indiretamente, essa conscientização da limitação da racionalidade também recai sobre a esfera da ciência política, exigindo a revisão das noções de poder, justiça e democracia.

13 Cf. EPSTEIN, Isaac. Cibernética. São Paulo: Ática, 1986. (Série Princípios, 62) 14 Cf. GLEICK, James. Caos: A Criação de uma Nova Ciência. Rio de Janeiro: Campus, 1990. 15 ASCHER, op. cit., 2007, p. 174.

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oportunidades e princípio da diferença, e que procura «generalizar e elevar a uma ordem mais alta de abstração a teoria tradicional do contrato social representada por Locke, Rousseau e Kant»16. O contrato entre “partes racionais e mutuamente desinteressadas” teria como princípios, na situação inicial, a igualdade na atribuição de deveres e direitos básicos e a “desigualdade justa”, ou seja, «desigualdades econômicas e sociais [...] são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para os membros menos favorecidos da sociedade»17. Para Ascher, o princípio de desigualdade justa permite transformar o mérito em princípio de igualdade ou justificação de desigualdades. Mas se o mérito como justiça é viável no trabalho ou na educação, não o é na saúde, por exemplo. Portanto, deve-se «agir de maneira mais sutil hoje em matéria de justiça social»18

O terceiro elemento está ligado ao anterior como perspectiva metodológica. Trata-se da teoria do agir comunicativo, de Jürgen Habermas, que procura restabelecer um espaço dialógico aos indivíduos, destruído pelo “agir estratégico ou instrumental”, hegemônico nas sociedades modernas. É no “mundo da vida”, ou seja, no cotidiano prático e intersubjetivo, que os indivíduos se reconhecem, ao mesmo tempo, como identidades únicas e comunitárias

.

19

Desse modo, Ascher considera que «o primeiro desafio é suscitar a consciência e a identificação das interdependências» para posteriormente se avançar na construção do “interesse geral”, necessária para viver em comunidade. O interesse geral, por sua vez, para se efetivar na esfera pública necessita de um sistema adequado de participação da população, ou seja, dar uma dimensão participativa à democracia representativa.

. Através da universalização do diálogo e da livre argumentação, afirma Habermas, chega-se a um patamar de entendimento mútuo guiado por princípios éticos universais.

O poder público deve, por isso, ser “reformado”. Ao invés de

16 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Coleção Ensino Superior), p. XXII. 17 Ibidem, p. 16. 18 ASCHER, op. cit., 2007, p. 138. 19 Cf. FIEDLER, Regina C. do P. A Teoria da Ação Comunicativa de Habermas e uma Nova Proposta de Desenvolvimento e Emancipação do Humano. Revista da Educação, Guarulhos, UnG, v. I, nº 1, p. 93-100, 2006.

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operar pela lógica de um programa “substancial”, seguindo uma lista de decisões concretas elaboradas a priori, deveria utilizar de um programa “procedural”, elaborando maneiras e critérios de decisão à medida em que se apresentem as ocasiões. Ora, se as realidades social, econômica e política ficam cada vez mais complexas, as opções de métodos de atuação existentes se tornam ineficazes, inadequadas e ultrapassadas. Daí a necessidade de uma racionalidade procedural que acompanhe de perto as mutações, otimize as respostas e as retroalimente com novas direções, caso seja necessário.

No mesmo caminho seguiriam as relações entre o Estado e os atores privados. Ao invés de se criar novas leis para cada nova situação que apareça, sem abarcá-la completamente e enrijecendo as engrenagens do sistema, as relações entre as partes assentar-se-iam sobre um contrato ad hoc, estipulando de maneira mais precisa e, por isso, mais flexível ao conjunto geral dos atores. As parcerias público-privadas seriam, dessa forma, uma opção a mais na execução das políticas.

A perda da aura positivista da ciência e a ética comunicacional da democracia participativa demandam uma maior independência da burocracia, da especialização, da hierarquia, dos experts. Mas para que essa independência realmente tenha alguma profundidade, Ascher sugere a criação e institucionalização de um “quarto poder”, independente dos outros três, que teria por objetivo a organização dos debates e a instrução dos interessados das questões levantadas.

Ele permitirá alargar e renovar o espaço público do debate, e dar às argumentações e às deliberações os instrumentos científicos que exige hoje a democracia no contexto de uma sociedade hipermoderna. Ele permitirá aos poderes públicos e aos cidadãos de pensar e agir com pleno conhecimento dos fatos. Enfim, ele contribuirá a criar confiança frente às justificações das decisões públicas, o que só pode reforçar a legitimidade da democracia representativa.

A lógica procedural, a diferenciação dos princípios de justiça e a instituição de uma democracia participativa comportam o conceito de “hiper-Estado”, ou seja, de um «Estado a n dimensões, capaz de se organizar e de agir segundo lógicas e sob modalidades distintas de

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acordo com as diferentes esferas»20. Ascher concorda com a filósofa Nancy Fraser quando esta afirma que, atualmente, constatamos a emergência de uma estrutura de soberania a múltiplos níveis e a nação é apenas um desses níveis. Daí que o «desenvolvimento de novos elementos estatais é possível simultaneamente em escalas diferentes, infranacionais ou multinacionais»21

Para dar conta das interlocuções entre as diversas escalas e esferas de atuação, Ascher defende a constituição de uma “governança urbana”, ou seja, uma renovação das relações entre as autoridades locais e os cidadãos a fim de «reconstituir modalidades territoriais concretas de gestão dos interesses coletivos que articulem uma cidadania renovada e a citadinidade».

.

O futuro das metápoles depende antes da possibilidade de suscitar uma verdadeira “governança urbana”, isto é, um sistema de governo que articule e associe instituições políticas, atores sociais e organizações privadas, nos processos de elaboração e implantação das escolhas coletivas capazes de provocar uma adesão ativa dos cidadãos.22

Governança é um termo extraído diretamente do mundo empresarial, derivado de “governança corporativa”. A governança corporativa surgiu da necessidade de resolver os “problemas de agência” das empresas privadas, quando há conflitos de interesses entre os proprietários (acionistas) e os que estão no controle da gestão, ou também pode ser entre os acionistas (shareholders) e os demais interessados (stakeholders).

23

Segundo Alain Bourdin, o conceito de governança «contribui para organizar o debate sobre as novas formas da ação coletiva, e

Surgida nos anos 80 através da mobilização de grandes investidores contra administrações irregulares de corporações das quais tinham ações, a governança corporativa teve sua importância acrescida nos anos 90 depois de alguns escândalos financeiros que expuseram a necessidade de um maior controle dos rumos da empresa por parte dos proprietários.

20 ASCHER, op. cit., 2007, p. 167. 21 Ibidem. 22 Idem, op. cit., 1995, p. 269. 23 Cf. BORGES, L. F. X.; SERRÃO, C. F. de B. Aspectos de Governança Corporativa Moderna no Brasil. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, nº 24, p. 111-148, dez. 2008.

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seu caráter flexível lhe permite justamente uma “ampla varredura”»24. A governança substituiria o governo ao passar mais autonomia e poder do Estado governamental às autoridades estatais e aos componentes da sociedade civil. Abre espaço também à formação de coalizões entre setores públicos e privados. «Construir a coalizão é, pela interação, fazer evoluir as preferências dos atores para se chegar a preferências partilhadas»25

A transposição de termos de mercado para a política não significa, dentro do pensamento ascheriano, a mercantilização do Estado, mas sim, a compreensão de uma maior participação dos diversos “atores” envolvidos nas decisões. «A noção de governança remete precisamente a uma forma de governo muito mais complexa e [...] que as ações públicas são necessariamente coproduzidas com aqueles aos quais concernem»

.

26. Abre, também, a perspectiva de uma efetiva parceria público-privada “que introduz, na própria concepção dos serviços públicos, as lógicas privadas”27

Essa espécie de instituição metapolitana geriria numa escala mais regional, englobando as zonas centrais, periferias, conurbações, subúrbios tentando, assim, eliminar as defasagens existentes entre as dinâmicas metapolitanas e os territórios institucionais.

.

Mesmo tendo os conceitos de descentralização e complexidade sido utilizados por longo tempo para censurar o Estado centralizador como pesado, lento e ineficiente, é necessário, continua o sociólogo, reforçá-lo em seus próprios domínios de competência, como o da planificação urbana e o da habitação social. Mas se o Estado deve ser reforçado em alguns domínios, deve agir de forma mais pragmática, buscando utilizar variadas ferramentas de qualquer sistema para resolver os problemas ou aproveitar as oportunidades.

Ou esses instrumentos cumprem sua missão e acabam por se inserir no sistema de conjunto, o que é ótimo. Ou eles não conseguem; certamente, correm o risco de participar na inflação das leis e decretos; mas geram

24 BOURDIN, Alain. A Questão Local. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. (Coleção Espaços do Desenvolvimento) p. 136. 25 Idem, p. 138. 26 ASCHER, op. cit., 2007, p. 8. 27 ASCHER, François. Les nouveaux compromis urbains: Lexique de la ville plurielle. Paris: Editions de l'Aube, 2008, p. 106.

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então cedo ou tarde uma crise talvez necessária para permitir evoluções mais globais e mais coerentes. 28

Mas a descentralização pode ser útil à governança urbana, ao dotar as diversas esferas públicas, do local ao global, de competências conjuntas, atuando mais horizontalmente, e ao mesmo tempo assegurando a hierarquia com o princípio de subsidiariedade, que define a atuação das esferas superiores apenas quando da incapacidade da esfera inferior em resolver ou decidir sobre determinado caso, ficando então a tomada de decisões sempre mais próxima possível do cidadão. É no interior desse sistema de governança, sob as mesmas lógicas e dinâmicas, que o urbanismo ascheriano seria instituído e formalizado.

28 ASCHER, op. cit., 1995, p. 182

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scher não se limita a apontar, descrever, analisar e criticar os fatos, delineados até aqui. Na verdade, toda a sua arquitetura conceitual serve como embasamento das, e converge para,

suas propostas de ação ulteriores. É por isso que, a cada obra que publica, retoma os mesmos argumentos iniciais acerca das recentes mutações da conjuntura cultural-econômico-espacial — conforme expostos nos capítulos II e III — como se fossem postulados dos quais deduzirá os conselhos práticos. Cabe, então, recordar os principais pontos do seu discurso antes de apresentar os seus “novos princípios” para o urbanismo, pois estes decorrem diretamente daqueles.

A começar pela sociedade “hipermoderna” que, sob o impacto das novas tecnologias da informação e comunicação, tornou-se mais fragmentada, individualizada e heterogênea. Os indivíduos, multipertencentes, mais autônomos e menos conscientes de sua interdependência com os outros, passam de um grupo a outro, enfraquecendo a solidariedade e desfazendo a noção de interesse geral.

Paralelamente, a economia tornou-se mais competitiva, diversificada, rápida e abrangente. Baseada na obtenção, produção e venda de conhecimentos, informação e procedimentos e no uso das novas TIC, o capitalismo “cognitivo” adquire um caráter mais estratégico, recorrendo menos ao planejamento a longo prazo e mais a lógicas de gestão contínua de ajuste, produção enxuta e acumulação flexível. Além disso, o setor financeiro da economia se tornou mais importante que a própria manufatura, ampliando o

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contexto de incerteza e risco. Já a cidade, que sempre teve seu desenvolvimento fortemente

vinculado às técnicas de transporte, bens e pessoas, foi ao mesmo tempo quadro delimitador das atividades e processos engendrados pelas transformações recentes, e o próprio objeto transformado por esses mesmos processos e atividades. Dentre eles, dois processos umbilicalmente ligados influenciaram radicalmente a evolução urbana nas últimas décadas. A continuação e o aprofundamento da metropolização através dos transportes e telecomunicações expandiu os limites das cidades a escalas nunca antes vistas, num tecido descontínuo e multipolarizado, vivenciado de modo fragmentado por seus habitantes, iniciando uma nova etapa histórica à qual Ascher deu o nome de “metápole”. O outro processo foi o do estabelecimento de redes de interdependências globais que inseriram novas e fortes dinâmicas no espaço intraurbano e regional, relocalizando os espaços produtivos, os centros financeiros, as zonas de interesse, concentração, dispersão e segregação.

Para Ascher, tudo isso configura um cenário complexo onde é «cada vez mais difícil programar o futuro, de pensar a cidade como uma máquina e a vida urbana como a repetição de práticas rotineiras»1

É justamente numa crítica e rejeição da racionalidade urbana modernista que o sociólogo francês funda a sua carta de princípios. Segundo ele, não há mais contexto onde aplicar a doutrina corbusiana de modo puro e inquestionável. Assim, não é mais possível aplicar um programa de longo prazo junto com princípios de

. Por isso questiona se ainda é possível planejar e controlar o desenvolvimento urbano a longo prazo. Ele tem em mente como centro desse questionamento principalmente o conjunto de ideias e práticas que denominou de “fordo-keynesio-corbusiano”. O fordismo pela fabricação em série e em massa, a repetição ad infinitum, a homogeneização e linearidade da lógica do processo. O keynesianismo pela planificação da economia e homogeneização das medidas de proteção social. O corbusianismo pela racionalidade simplificadora e homogeneização do espaço urbano em zonas monofuncionais.

1 ASCHER, François. La vie sociale et la variété des situations font qu’il est de plus en plus difficile de programmer l’avenir, de penser la ville comme une machine. (entrevista) Millénaire 3. Lyon: GrandLyon, n° 27, 2002, pp 65-66.

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organização espacial, reduzir a incerteza e controlar o futuro; utilizar unicamente de regras simples, imperativas e estáveis, com conceitos globais, funcionais e que ignoram as especificidades geográficas, culturais e históricas locais; zonear rígida e detalhadamente; dar preferência às soluções permanentes, coletivas e homogêneas; limitar claramente a fronteira entre público e privado; contar com interesse geral a priori; ter o poder público exclusivamente no trato das questões urbanas, muito menos de forma centralizadora e impositiva2

Ascher parte da tese de que, numa cidade complexa como um sistema aberto, instável e incerto, de racionalidades múltiplas e até contraditórias, «é impossível para os responsáveis públicos pretender uma dominação total dos fenômenos urbanos, mas que é considerável “guiar” as transformações, “regular” os funcionamentos»

.

3

Face a essa incerteza, o planejamento urbano não pode mais ser linear e seqüencial, mecanicista e balístico; ou seja, não pode mais pretender ser previsional, programático, sistemático, imperativo. Ele deve se construir sobre a base de uma racionalidade limitada em universo incerto. Para orientar, enquadrar, regular, gerir, o planejamento e mais genericamente o urbanismo [...] devem implementar instrumentos que admitam as flutuações, a criatividade, a incerteza, a contradição, a ambigüidade, a imprecisão. O urbanismo deve de alguma forma passar do “planejamento estratégico” à “gestão estratégica”.

.

4

É nas empresas modernas que Ascher enxerga o modelo no qual basear as novas práticas urbanísticas, afinal, segundo ele, tanto as cidades quanto as empresas sofrem os efeitos dos mesmos fatores econômicos, administram um grande número de serviços, produção e trabalhadores e, atualmente, estão inseridas num contexto de concorrência internacional. Por isso a adoção de termos e conceitos (e, obviamente, de seus significados) advindos da administração empresarial como governança (de governança

2 ASCHER, op. cit., 2002, p. 72 et seq. 3 Idem, op. cit., 1995, p. 211. 4 Ibidem, p. 212.

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corporativa, conforme visto no capítulo anterior), projeto de cidade (de projeto de empresa) e gestão estratégica.

A noção de gestão estratégica, no mundo empresarial, refere-se, resumidamente, às «análises, decisões e ações que uma organização exerce a fim de criar e manter vantagens competitivas»5 ao longo do tempo. Sua importância cresceu consideravelmente nos últimos anos devido a três “forças motrizes” chaves: a globalização, na qual os mercados operam num ritmo “24/7”; a tecnologia, que impõe a constante inovação como fator de competitividade, resumido no lema “inove ou morra”6

A gestão estratégica possui, então, quatro atributos principais: a) direcionamento às metas e objetivos organizacionais gerais, isto é, os esforços devem se voltar à organização como um todo e não apenas a uma simples área funcional; b) inclusão, na elaboração de decisões, de múltiplos “interessados” (stakeholders), agentes, de uma forma ou de outra, envolvidos no sucesso da organização, incluindo proprietários, empregados, consumidores, fornecedores, etc; c) a incorporação de perspectivas a curto e longo prazos, isso significa que os gestores devem manter uma visão de futuro da organização bem como foco nas necessidade operacionais presentes; d) reconhecimento dos conflitos (trade-offs) entre eficácia e eficiência.

; e o capital intelectual, que transforma a posse de conhecimento em vantagem competitiva. Tudo isso forçou os gestores a buscar obter uma visão mais integradora da empresa, a delegar poderes em todos os níveis administrativos e avaliar o modo como as áreas funcionais se encaixam na tarefa de alcançar as metas e objetivos da organização.

Três processos altamente interdependentes são fundamentais à gestão estratégica: análise ou “análise da estratégia”, quando são delineados os objetivos gerais e estudado o ambiente interno e externo; decisões ou “formulação de estratégia”, desenvolvida a vários níveis e dedicada à definição de como competir e atingir vantagens; e ações ou “implementação de estratégia” para garantir controles e projetos adequados às ações elaboradas.

5 Cf. DESS, G. G.; LUMPKIN, G. T.; TAYLOR, M. L. Strategic Management: Creating Competitive Advantages. 2ª ed. New York: Irwin/McGraw-Hill, 2004. 6 «“Inove ou morra” é a primeira regra da competição industrial internacional.» Frase de David de Pury (1943-2000), economista neoliberal suíço. Apud Ibidem, p. 22.

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Como a capacidade de análise do mundo dos negócios é limitada, na maioria das vezes, esses três processos não ocorrem sequencialmente, um após o outro, mas simultaneamente e descontinuamente, podendo ser revistos a qualquer momento, de acordo com as contingências. Acontecimentos inesperados internos ou externos à empresa, restrições orçamentárias antecipadas ou mudanças administrativas podem levar algumas partes da estratégia traçada a não serem realizadas, mas por outro lado podem tornar-se oportunidades para novas ações e estratégias. Em vista de tudo isso, «raramente a estratégia planejada sobrevive em sua forma original»7

Contudo, Ascher vê limites no paralelismo entre a gestão de uma cidade e a de uma empresa e critica aqueles que levam a comparação e aplicação das ferramentas empresarias na esfera pública urbana a níveis elevados, incluindo a roupagem dada a prefeitos e políticos como empreendedores ou gerentes. A cidade não opera na lógica do lucro per se e possui especificidades que exigem a manutenção de sua natureza pública e submetida às políticas governamentais.

, mas desenvolve-se e efetua-se como uma combinação de estratégias deliberadas e emergentes.

Nos anos 70 e 80, a burocracia e o planejamento urbano estatais estavam sob ataques e eram considerados obsoletos, pesados e rígidos demais, limitando as iniciativas privadas e emperrando os investimentos imobiliários. Com o retorno do liberalismo, principalmente na Inglaterra com a eleição de Margaret Thatcher, surgiu o conceito de “market lead city planning”. O planejamento estatal seguindo as dinâmicas do mercado, ou seja, longe de abandonar toda e qualquer intervenção pública, age acompanhando as exigências dos atores privados e do desenvolvimento “espontâneo”, «encarregado de implementar as condições que permitem a intervenção dos atores privados onde desejam e de intervir apenas onde a lógica privada não pode resolver sozinha um problema de planejamento ou infraestrutura»8

7 Ibidem, p. 11.

. A ironia é que, após um tempo de aplicação do laissez-faire por parte do governo conservador inglês, ele foi combatido pelos próprios

8 ASCHER, François. Projet Public et Réalisations Privées: Le Renouveau de la Planification des Villes. Les Annales de la Recherche Urbaine. Paris, nº 51, p. 5-15, jul. 1991.

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agentes privados que reivindicavam maior controle legal a fim de garantir seus investimentos9

Apesar de Ascher concordar que essa abordagem de market lead tenha trazido pontos positivos ao poder público como o autoquestionamento e “fontes novas de eficiência”, afirma que ela também «evidenciou a impossibilidade de aplicar sistematicamente às grandes cidades européias uma abordagem liberal»

.

10 e as disfunções ligadas ao boom imobiliário e à exclusão urbana «trouxeram progressivamente à ordem do dia a necessidade de um planejamento urbano mais voluntário»11, sem o qual as dinâmicas sociais acabam por «espontaneamente produzir caos e injustiça»12

Assim, voltando à gestão estratégica da metápole esboçada por Ascher, o poder público abriria as portas do processo de planejamento e gestão urbanos à participação dos diversos atores interessados ou afetados pelas medidas, para, em conjunto, definirem o “projeto de cidade”, ou seja, as metas e os objetivos gerais a serem alcançados pela coletividade. Os trabalhos não seriam mais fundamentados exclusivamente nos conhecimentos dos experts dos órgãos governamentais, mas contariam com a contribuição daqueles mesmos atores. Isso traria dois pontos positivos, segundo Ascher: faria com que o projeto de cidade e as diretrizes contidas nele adquirissem autonomia frente aos ciclos eleitorais, geralmente caracterizados pela descontinuidade das políticas públicas; e também favoreceria a emergência, explicitação e consolidação dos interesses gerais daquela determinada coletividade.

.

O urbanismo deve também tornar-se “incremental” e “heurístico”, ou seja, aprender com as conseqüências das próprias decisões e assim descobrir novos caminhos a tomar, num contínuo processo de retroalimentação, pela coleta e avaliação de informações à medida em que avança na implementação dos projetos. Portanto, os objetivos a longo prazo e grande escala estão constantemente sujeitos a revisões e redirecionamentos de curto prazo e pequena escala. Trata-se aqui do princípio da autorregulação de sistemas

9 Idem, op. cit., 1995, p. 209. 10 Ibidem, p. 209. 11 Ibidem, p. 209. 12 ASCHER, op. cit., 2008.

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cibernéticos — já mencionado no capítulo anterior — aplicado ao método urbanístico. Consiste-se, evidentemente, numa abordagem metodológica bem diferente da prática tradicional de juntar o maior número de informações possíveis sobre um determinado contexto num dossiê e a partir dele elaborar planejamentos de grande escala a longo prazo. É uma aproximação com a não-linearidade do fazer arquitetônico.

Numa metápole altamente complexa e diversificada, o poder público deve procurar operar sobre uma racionalidade múltipla, de acordo com as variáveis do momento. Ascher chega a estipular seis tipos principais de abordagens urbanísticas que poderiam ser utilizadas separadas ou em conjunto, dependendo das necessidades latentes e objetivos estabelecidos: a) a abordagem tipomorfológica e o plano qualitativo, geralmente usada com o objetivo de adaptar formalmente o novo ao antigo; b) infraestruturas e composição urbana, voltadas mais às periferias em desenvolvimento; c) enquadramento e estimulação, em situações sem necessidade de grandes intervenções; d) “projetos diretores”, destinados a difundir e consolidar as funções centrais das autoridades metapolitanas; e) urbanismo paisagista, que teria a paisagem como princípio ordenador do projeto ou plano de intervenção; e f) planejamento-serviço, teria não apenas como função construir equipamentos e instituir serviços públicos, mas também de geri-los e mantê-los funcionando.

Tais “metodologias” ou “lógicas de ação”, mesmo atuando em partes da cidade, não devem perder de vista as carências urbanas globais. Segundo Ascher, as principais exigências às quais a gestão urbana metapolitana deve responder incluem a mobilidade urbana, a “qualidade de vida”, os “bairros em crise” e conservar seu território.

A mobilidade urbana talvez seja o mais importante dos fatores a serem trabalhados pelos gestores, convertendo-se num tema fundamental para as democracias atuais. Mobilidade na cidade significa a facilitação e a diminuição das distâncias e tempos de deslocamento através da generalização das estruturas de transporte coletivo e individual e da instituição de serviços públicos ao redor dos nós de interconexão. Trata-se, efetivamente, da acessibilidade urbana e integração dos espaços metapolitanos e, por isso, na visão ascheriana, de um “direito genérico” que possibilita o exercício de

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todos os outros direitos. Para Ascher, a justiça social passa pela mobilidade urbana irrestrita e abrangente, fazendo com que seja «necessário passar de uma política do transporte social a uma política social dos transportes».13

Do mesmo modo, deve haver uma contínua preocupação e políticas de revalorização, integração e “desenclavamento” dos chamados, na França, “quartiers en crise”, aqueles bairros periféricos onde são alocadas as populações de baixa renda, geralmente imigrantes, e que, por ficarem longe das zonas centrais e serem mal servidos por equipamentos e serviços urbanos e sociais, acabam por entrarem num processo de degradação e “guetização” — como demonstrado no capítulo III.

O território metapolitano deve ser utilizado de modo a não configurar fatores negativos à espacialidade urbana como o são, por exemplo, os terrenos baldios ou as construções abandonadas devido à desindustrialização mas, pelo contrário, devem ser requalificados e inseridos numa lógica de desenvolvimento durável, se possível ainda, mantidos como reservas fundiárias. Além desses, também os centros das cidades devem passar por constante avaliação pois readquiriram importância estratégica14

Já as exigências de “qualidade de vida” entram, para Ascher, como medidas mais direcionadas à construção da imagem da cidade para uso de marketing e atração de investimentos e empresas e sua mão-de-obra qualificada, como a «oferta residencial abundante e diversificada, equipamentos educativos, culturais, esportivos, comerciais adaptados aos cânones funcionais e simbólicos desses grupos»

.

15

É importante, afirma ele, que enfrentemos os desafios que os novos espaços urbanos nos impõem, principalmente as zonas de baixa densidade e fragmentadas, hoje em dia dominantes na paisagem urbana. Estas geralmente se encontram no centro das críticas dos urbanistas e estudiosos e tendem a ser negadas sob a alegação da dificuldade de fornecimento dos serviços públicos e

.

13 Idem. op. cit., 2007, p. 160. 14 Cf. ASCHER, François. “Metropolização e transformação dos centros das cidades”. In: ALMEIDA, Marco Antonio Ramos (ap.). Os centros das metrópoles: reflexões e propostas para a cidade democrática do século XXI. São Paulo: Editora Terceiro Nome: Viva o Centro: Imprensa Oficial do Estado, 2001. p. 59-68. 15 Idem, op. cit., 1995, p. 233.

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transporte coletivo, a perda da aura da cidade antiga, o consumo de energia imposto pelas grandes distâncias. Mas esta é a cidade que se apresenta hoje e permanecerá num futuro próximo e onde a nostalgia de épocas passadas em nada ajudaria na resolução dos problemas contemporâneos.

[...] uma volta ao passado reflete um princípio reacionário que é indesejável em si mesmo, e é irreal em termos das políticas que poderia implicar. É uma ilusão crer que poderíamos retornar a um estilo de vida de um povo ou de uma vida centrada regionalmente, onde tudo o que fazemos sucede localmente. [...] A divisão do trabalho não se reverterá e o emprego utilizará espaços urbanos cada vez mais extensos. Não há volta atrás na demanda por uma maior diversidade cultural, e a cultura e o ócio seguirão gerando um desenvolvimento a grande escala.16

Assim, Ascher sintetiza a sua pesquisa e discurso normativo em dez princípios para o urbanismo da cidade atual e futura. Com eles tenta dar conta das novas características e fenômenos que afetam a metápole e que colocam à mesa novos e complexos desafios de desenho, controle, planejamento e gestão urbanos. Na verdade, são mais que princípios, são teses refundadoras do pensar e fazer urbanístico sobre novas bases, sob a influência dos paradigmas filosóficos e científicos surgidos na segunda metade do século XX. São atitudes de reflexão, crítica, revisão e ultrapassagem tanto dos modelos racionalistas, funcionalistas, universais e rígidos quanto dos irracionalistas, aleatórios, permissivos. Abaixo segue a lista do dez princípios de seu neourbanismo17 e seus respectivos significados, listado na mesma ordem e com os mesmos títulos do seu livro Novos Princípios do Urbanismo18

1) «Elaborar e dirigir projetos num contexto incerto — do planejamento urbano à gestão estratégica urbana» : gestão mais reflexiva e projetos de natureza variada, que integram a crescente

:

16 ASCHER, François. Ciudades con velocidad y movilidad múltiples: un desafío para los arquitectos, urbanistas y políticos. ARQ (Santiago), Santiago, nº 60, 2005. 17 Assim denominado para se diferenciar do Novo Urbanismo norte-americano. 18 Cf. ASCHER, op. cit., 2002, p. 71-85.

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dificuldade de reduzir a incerteza e o azar. O projeto, sendo parte do núcleo desse urbanismo, mostra as possibilidades e limitações de ação, é ao mesmo tempo analisador e ferramenta de negociação. A gestão atua não-linearmente, de modo heurístico, interativo, incremental e recorrente.

A gestão estratégica urbana não é, pois, um urbanismo descafeinado, com ideias sem valor; é o contrário das teses espontaneístas, dos postulados do caos criativo e das ideologias simplistas do “mercado radical”. Pelo contrário, trata de aproveitar de forma positiva todo tipo de acontecimento e evolução relacionado com seus objetivos estratégicos.19

2) «Dar prioridade aos objetivos frente aos meios — das regras da exigência às regras do resultado» : estabelecimento de normas qualitativas que facilitem e limitem ao mesmo tempo, que estimulem o atores públicos e privados a encontrar as melhores formas de cumprir os objetivos definidos a priori, daí a necessidade aproveitar a criatividade e talentos diferentes existentes entre os atores participantes.

Esta complexidade das normas se faz necessária pela diversidade crescente de territórios e costumes urbanos, pelo aumento da exigência de qualidade, pela maior dificuldade de aplicar decisões igualitárias e a necessidade de substituí-las por enfoques mais sutis, menos estereotipados, baseados no princípio de equidade.20

3) «Integrar os novos modelos de resultado — da especialização espacial à complexidade da cidade de redes» : não busca simplificar realidades complexas, mas as integrar pela variedade, flexibilidade e capacidade de reação. Urbanisticamente, isso traduz-se na diversidade funcional, multicentralidade, polivalência dos sistemas urbanos até para responder às questões ambientais de economia de recursos naturais e conservação do patrimônio natural e cultural.

O avanço da ciência e da técnica nos diversos campos

19 Ibidem, p. 73. 20 Ibidem, p. 74.

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do urbanismo fará igualmente necessária a renovação dos conhecimentos profissionais e dos dispositivos pluridisciplinares permanentes (serviços técnicos locais, gerências de urbanismo, organismos de ordenação e gabinetes técnicos multidisciplinares).21

4) «Adaptar as cidades às diferentes necessidades — dos equipamentos coletivos a equipamentos e serviços individualizados» : instituição de equipamentos mais variados e personalizados integrados em redes mais complexas apoiadas largamente nas novas técnicas de informação e comunicação para dar conta do processo de individualização e diversificação social.

5) «Conceber os lugares em função dos novos uso sociais — dos espaços simples aos espaços múltiplos» : a crescente atuação conjunta entre instituições públicas e privadas e o uso das tecnologias de comunicação transtorna os significados dos espaços e seus estatutos jurídicos e práticos. O advento de espaços virtuais, “ciberespaços” ou “quase-espaços” públicos permite variadas práticas num mesmo lugar, logo o urbanismo deve levar em consideração essas estruturas de socialização e conceber hiperespaços que combinem o real e o virtual.

O fato de ter em conta os costumes sociais leva os projetistas a incluir progressivamente a responsabilidade de exploração e gestão dos espaços e dos equipamentos urbanos. Isto conduz à redefinição do exercício e os limites da profissão de urbanista, posto que este deve incorporar as exigências da gestão futura dos espaços que contribuíram a criar.22

6) «Atuar numa sociedade muito diferenciada — do interesse geral substancial ao interesse geral procedimental» : a crescente dificuldade em se concretizar interesses coletivos amplos e estáveis impõe aos decisores, políticos, urbanistas e outros agentes o desafio de procurar construir (ação procedimental), sob diversas formas participativas, o interesse geral que possui uma importância substantiva objetiva mas que não se sustenta mais pelo simples

21 Ibidem, p. 76. 22 Ibidem, p. 78-79.

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apelo às maiorias.

Estas gestões procedimentais modificam a natureza da intervenção dos experts e profissionais e, em concreto, do trabalho do urbanista. [...] Ademais, cada vez lhes resulta mais difícil adaptar sua intervenção ao interesse geral, e devem por seus conhecimentos ao serviço de diversos grupos e atores, o que expõe de uma forma nova as questões de ética e deontologia neste campo profissional. O neourbanismo fomenta a negociação e o compromisso frente à aplicação da regra da maioria, o contrato frente à lei, a solução ad hoc frente à norma.23

7) «Readaptar a missão dos poderes públicos — da administração à regulação» : ir além das medidas repetitivas, tentar resolver os problemas caso a caso, achar soluções adaptadas a cada situação particular e, em conjunto, definir as regras do jogo no qual atuarão os atores, não os opondo, mas conciliando-se a eles, em sinergia e arbitrando em situações inextricáveis e entravadas.

O neourbanismo dá prioridade à regulação sobre a administração. Os poderes público tentam garantir o funcionamento “regular” dos sistemas de atores urbanos; atuam para limitar os problemas de funcionamento e as incoerências. Impulsionam a gestão procedimental do interesse geral. Na medida do possível fazem fazer em lugar de fazer, para aproveitar os conhecimentos e a experiência dos especialistas. Mas também controlam, avaliam, corrigem, compensam e, em ocasiões, sancionam.24

8) «Responder à variedade de gostos e demandas — de uma arquitetura funcional a um desenho urbano atrativo» : o neourbanismo não nega as complexidades e variedades estilística e histórica que porventura existam na cidade, pelo contrário, vê nelas uma oportunidade de criar uma cidade “à la carte”, de múltiplas sensibilidades e estéticas, e procura utilizar-se das dinâmicas de mercado como meio de preservação do patrimônio construído de cidades antigas.

23 Ibidem, p. 80. 24 Ibidem, p. 81.

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O novo urbanismo aproveita as distintas arquitetura e as formas urbanas para criar cidades diversificadas, oferecer alternativas e fazer possíveis os câmbios a escala metapolitana. De certo modo, confere uma importância renovada à questão dos estilos arquitetônicos separando-os das questões de funcionalidade e morfologias urbanas. Mas também inscreve estas opções estéticas — quando afetam a espaços públicos — em procedimentos próprios do debate democrático, modificando o marco de atuação dos criadores e sua relação com o público e o político.25

9) «Promover uma nova qualidade urbana — das funções simples ao urbanismo multisensorial» : ter como objetivo a construção de uma cidade com espaços públicos multifuncionais e multisensoriais, aspectos visuais, sonoros, táteis e olfativos, como resposta à complexidade e à variedade das práticas urbanas e à necessidade de uma maior integração das pessoas portadoras de deficiências sensoriais e motoras.

10) «Adaptar a democracia à terceira revolução urbana — do governo das cidades à governança metapolitana» : Em lugar de governos centralizados, firmes e fortes que imponham regras e as faz cumprir, o neourbanismo propõe um sistema onde estariam reunidos instituições e representantes da sociedade civil para elaborar e implementar as políticas públicas, apoiado em lógicas “tecnoeconômicas” privadas e participação.

A governança urbana supões um enriquecimento da democracia representativa por novos procedimentos deliberativos e consultivos. Se faz necessária uma relação mais direta com os cidadãos e ao mesmo tempo formas democráticas de representação a escala metapolitana, que é a escala a que devem tomar-se as decisões urbanas estruturais e estratégicas. Esta nivelação da democracia local é uno dos elementos essenciais do futuro das cidades e das sociedades ocidentais.26

25 Ibidem, p. 82-83.

26 Ibidem, p, 84.

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C O N C L U S Ã O omo, numa sociedade extremamente diferenciada, individualizada e completamente inserida na rede da mercantilização e competição generalizada, manter o mínimo

de coesão necessária ao funcionamento da democracia, implementar a governabilidade e levar a efeito medidas de amplo alcance? Como administrar e integrar os diversos conflitos, visões de mundo, éticas ou até mesmo paradigmas diferentes, e por vezes opostos, sem que suas especificidades se percam ou sejam ignoradas? Como valorá-los e arbitrar entre eles? Qual cidade resulta das respostas dadas e como fazê-la?

É sob estas indagações tão amplas quanto cruciais que François Ascher erige o seu discurso. Pretende com atualizar os conceitos e métodos que circundam o urbanismo. Retorna aos princípios para chegar a recomendações de longo alcance. Assim, realiza um ciclo completo de reflexão, partindo da caracterização da sociedade contemporânea, passando pelos conceitos em cena hoje, cidadania, dispersão urbana, governança, gestão, para chegar finalmente aos novos princípios do urbanismo para a sociedade que, segundo ele, os demanda.

Como vimos, Ascher formula seu programa urbanístico a partir de duas contribuições epistemológicas básicas: as ciências “não-lineares” surgidas da metade do século XX em diante — basicamente teoria dos jogos, da complexidade e cibernética — e o know-how das teorias científicas gerenciais de companhias privadas.

As ciências “não-lineares” forneceram a Ascher a conceitualização necessária para que ele pudesse formar o seu próprio paradigma e, deste modo, enfrentar a “crise” em que se

C

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encontra o urbanismo e poder transcender os seus predecessores: o urbanismo moderno com seu caráter positivista, linear e absoluto; e as teorias pós-modernas que elogiavam o caos da cidade ou regrediam ao passadismo. Igualmente faz uma crítica das políticas massificantes do Estado keynesiano por um lado, e do laissez-faire inconseqüente das correntes neoliberais radicais, por outro. Feita as devidas críticas, passa então a montar o “quebra-cabeça” dos fatos usando o próprio paradigma.

Já o paralelo entre gestão de cidade e gestão de empresa e a transposição de ferramentas, conceitos e métodos organizacionais corporativos — como gestão estratégica, governança e projeto de empresa — utilizado por Ascher, conforme exposto nos capítulos precedentes, não é invenção, nem exclusividade sua. Vem sendo utilizado com freqüência nos últimos anos por diversos autores e instituições como discurso de adaptação da cidade ao contexto atual de globalização econômica e competição urbana1

Mas se estes efetuam o «perfeito e imediato rebatimento, para a cidade, do modelo de abertura e extroversão econômicas propugnado pelo receituário neoliberal para o conjunto da economia nacional»

.

2

É na adoção de uma mentalidade estratégica por parte dos poderes públicos, órgãos governamentais e instituições de planejamento urbano que Ascher acredita estar o caminho da governabilidade e do controle do desenvolvimento urbano. Mas, ao contrário do oximoro “planejamento estratégico” utilizado no passado, onde eram definidos os fins e os meios de uma vez, entraria

, Ascher é mais moderado e enfatiza aspectos diferentes da teoria administrativa empresarial. Se os primeiros dizem que a cidade deve ser vendida como uma mercadoria e que ela deve se submeter às lógicas do mercado, desenvolvendo sua produtividade e competitividade, ao segundo interessa a capacidade das empresas de ajustarem-se às contingências e utilizarem racionalidades múltiplas a fim de alcançarem os objetivos previamente definidos, ou seja, seu caráter estratégico.

1 Cf. VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 75-103. 2 Ibidem, p. 80.

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em ação agora a “gestão estratégica”, os fins constantemente submetidos a avaliações e reflexões e os meios tateados e formulados pragmaticamente ao longo do tempo.

Este processo estaria condizente com a complexidade e a incerteza oferecidas tanto pela sociedade “hipertexto” quanto pelo capitalismo “cognitivo” decorrentes de seus entrelaçamentos com as novas tecnologias. A primeira seria complexa por se atomizar em indivíduos multipertencentes a microgrupos instáveis e não manifestar mais comportamentos uniformes, previsíveis e duradouros. A segunda por apresentar dinâmicas aceleradas e pulverizadas em redes locais, regionais, nacionais e globais difíceis de prever.

Ao longo de sua narrativa analítica, constatamos que, na sua tentativa de construir um mundo factível, sem cair na utopia ou “nas ideias fora do lugar”, o estudioso francês acaba por admitir grande parte do cenário contemporâneo como inelutáveis. “Não há volta”, diz ele. Caberia a nós aprendermos com as situações e as ordenarmos para que não sucumbam na anomia absoluta e se tornem obstáculos ao bem viver. Ascher aceita e assume a economia globalizada, a diferenciação social, a individualização, a dispersão urbana cada vez mais pujantes. Segundo ele, são processos da modernização que fazem parte há muito tempo do vir-a-ser da sociedade humana e que se aprofundam cada vez mais. Lutar contra é assumir uma atitude “reacionária” e “indesejável”. Cumpre fornecermos os meios e incentivos propícios ao seu desenvolvimento “reflexivo”.

A gestão urbana estratégica seria, então, o instrumento da governança metapolitana para pensar e atuar na cidade, baseando-se num compromisso previamente estipulado. Sua natureza procedimental não significaria propriamente um market lead planning, mas o mercado consistiria num fator a ser levado em consideração, não de forma negativa, na organização dos espaços e na elaboração das diretrizes. A governança metapolitana e a gestão urbana envolveriam, assim, participação de atores externos à esfera pública, trazendo consigo todas as contradições e interesses inerentes. É aí que surgem as dificuldades ou, nas palavras de Ascher, os “desafios”.

Para solucioná-los, Ascher adota dois princípios éticos para

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embasar as ações coletivas: o princípio de “igualdade desigual” de Rawls e o “agir comunicativo” de Habermas. O primeiro como justificação, numa sociedade eqüitativa em oportunidades, das desigualdades materiais desde que com elas haja benefício à sociedade em geral; e o segundo como meio de instigar e envolver os diversos atores a encontrar racionalmente um apoio comum onde pudessem solidificar um “interesse geral” suficientemente coeso e abrangente, permitindo a formação de um “compromisso” ou “contrato” e assim garantir todo o desenrolar de um processo durável de construção da cidade.

Ora, apenas quando estes dois princípios estiverem efetivamente sendo seguidos é que então se poderá falar em governança e democracia participativa plenas. Mas para isso teríamos que esperar, usando os termos de Rawls, pela “benevolência”, “desinteresse mútuo”, “objeção de consciência” de todos os membros da sociedade, o que, evidentemente, está longe de acontecer.

A tendência, mesmo a curto e médio prazos, é a agudização dos conflitos, injustiças, segregações e desigualdades. O aumento da importância do conhecimento na economia capitalista aliado à mobilidade do capital só aprofunda a divisão social e a concentração de renda. As metrópoles, como acontece desde o século XIX, continuarão a ser o palco ostensivo desses fenômenos dissonantes e desagregadores; do alto luxo contrastado à miséria absoluta; dos condomínios fechados, arborizados e vigiados às favelas com esgoto a céu aberto.

Além desses aspectos estruturais, outros fatores contribuirão para a intensificação dos problemas urbanos, metropolitanos ou não, principalmente decorrentes da migração forçada. As constantes guerras e violações dos direitos humanos criam grandes levas de refugiados, como acontece na África e Oriente Médio. As crises econômicas fazem evaporar parte da riqueza e do poder aquisitivo dos mais pobres, além de restringir a oferta de emprego nas cidades, evidenciado recentemente em países tão diferentes quanto Argentina e Japão. A contínua degradação ambiental e o aquecimento global pelo efeito estufa, poluição e desmatamento, causam a queda da produtividade das lavouras e até mesmo a desertificação de terras antes agricultáveis, expulsando mais e mais

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trabalhadores das zonas rurais em direção aos centros urbanos, demonstrado pela intensificação da seca no sertão nordestino.

A percepção da migração de um grande contingente populacional às metrópoles só faz agravar os sentimentos de insegurança, intolerância e xenofobia de seus habitantes. A crise econômica global originada em 2008 e o rescaldo da recessão deram um exemplo disso ao fomentar a demanda por políticas antimigratórias nos países desenvolvidos. Os fenômenos demográficos, as crises econômicas em cadeia e os desastres naturais são eventos que acontecem num ritmo acelerado. O fato é que como os governos locais não são capazes, ou não sabem lidar, ou são lentos demais para enfrentar tais fenômenos, a expectativa de que as cenas dos distúrbios das periferias francesas se repitam com maior freqüência em outras partes do mundo.

Ficou claro, na sua sistematização teórica, que Ascher tem em mente as grandes cidades e a sociedade da Europa ocidental quando fala em gestão urbana, projeto, mobilidade, governança. Com o seu crescimento populacional em fase de estabilização, baixa carência de infra-estrutura básica, educação e saúde de alto nível, problemas sociais de escala e gravidade não elevados, serviços de transporte coletivo eficientes, grande penetração dos novos meios de telecomunicação, presença de empresas de alta tecnologia e finanças atuando fortemente num cenário internacional, é compreensível a ênfase no urbanismo enquanto gestão e comunicação, focado no curto prazo, na agilidade, na flexibilidade, nos contratos ad hoc.

De certa, é uma afirmação do abandono do papel heróico do urbanista, da incapacidade do urbanismo em se antecipar às transformações conjunturais. O urbanismo perde a sua antiga aura demiúrgica e visionária e passa a esperar pela sociedade ou, no máximo, a acompanhá-la pari passu. Menos ciência, menos técnica, o urbanismo volta-se à política. Menos planejamento e prognósticos, os urbanistas devem responder às vicissitudes através do projeto. Os dados da realidade que fundamentariam o projeto interessam menos que a opinião dos stakeholders que lhe dá a legitimação de sua existência.

Apesar do não aprofundamento e detalhamento prático de suas propostas, o sociólogo francês contribui ao debate geral sobre

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o urbanismo adequado aos dias de hoje e de amanhã. As questões que levanta são realmente de grande importância e suas respostas a elas no mínimo devem ser levadas em conta, nem que seja para contrapor-se a elas.

Contudo, após toda a análise efetuada neste trabalho, surgem algumas questões que Ascher não respondeu e nem procurou responder. Esse urbanismo gerencial, de projetos, de contratos, é passível de ser aplicado em outros contextos que não o europeu ocidental? Será viável a aplicação desse novo paradigma independentemente das condições materiais, históricas, políticas ou sociais de determinado local? As especificidades de cada cidade, região, país impede a simples e pura transferência de lógicas, métodos e valores de uma realidade a outra. Mas então, deve-se começar do zero ou pode haver adaptações, e de que tipo? Todas essas questões exigiriam um outro trabalho para tentar respondê-las. Espero, com esta pesquisa, ter contribuído à discussão que porventura se venha a realizar sobre o urbanismo mais adequado — se é que ele existe — à realidade brasileira.

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