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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA CAMPUS V - MINISTRO ALCIDES CARNEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E SOCIAIS APLICADAS CCBSA CURSO DE BACHARELADO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS THAMIRYS FERREIRA CAVALCANTE A COOPERAÇÃO TÉCNICA BRASILEIRA PARA O DESENVOLVIMENTO: A HORIZONTALIDADE NA ERA DOS GIGANTES EMERGENTES JOÃO PESSOA PB 2012

A Cooperação Técnica Brasileira Para o Desenvolvimento - A Horizontalidade Na Era Dos Gigantes Emergentes

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Monografia apresentada para a obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARABA

    CAMPUS V - MINISTRO ALCIDES CARNEIRO

    CENTRO DE CINCIAS BIOLGICAS E SOCIAIS APLICADAS CCBSA CURSO DE BACHARELADO EM RELAES INTERNACIONAIS

    THAMIRYS FERREIRA CAVALCANTE

    A COOPERAO TCNICA BRASILEIRA PARA O DESENVOLVIMENTO: A HORIZONTALIDADE

    NA ERA DOS GIGANTES EMERGENTES

    JOO PESSOA PB 2012

  • THAMIRYS FERREIRA CAVALCANTE

    A COOPERAO TCNICA BRASILEIRA PARA O DESENVOLVIMENTO: A HORIZONTALIDADE

    NA ERA DOS GIGANTES EMERGENTES

    Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado

    em Relaes Internacionais da Universidade

    Estadual da Paraba, em cumprimento exigncia

    para obteno do grau de bacharel.

    Orientadora: Prof Dr Giuliana Dias Vieira

    JOO PESSOA PB 2012

  • F ICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA SETORIAL CAMPUS V UEPB

    C376c Cavalcante, Thamirys Ferreira

    A cooperao tcnica brasileira para o desenvolvimento: a

    horizontalidade na era dos gigantes emergentes / Thamirys

    Ferreira Cavalcante. 2012.

    75f. : il. color

    Digitado.

    Trabalho de Concluso de Curso (Graduao em Relaes

    Internacionais) Universidade Estadual da Paraba, Centro de Cincias Biolgicas e Sociais Aplicadas, Curso de Relaes

    Internacionais, 2012.

    Orientao: Profa. Dra. Giuliana Dias Vieira, Curso de Relaes Internacionais.

    1. Cooperao tcnica brasileira 2. Cooperao horizontal.

  • DEDICATRIA

    Em memria da minha amada me, Maria de Ftima Marques

    Cavalcante, e ao meu querido pai, Eugenio Ferreira Cavalcante.

    DEDICO.

  • AGRADECIMENTOS

    minha me, quem com os gestos repletos do amor mais lindo que eu j conheci foi o

    maior incentivo aos meus estudos.

    Ao meu pai, cujo trabalho e dedicao marcaram profundamente todos esses anos de

    estudo.

    A Jos Dia Neto, cujo apoio e ateno foram fundamentais ao longo desta

    caminhada.

    minha famlia, cheia de bons exemplos, sempre prontos a me incentivar e encorajar.

    minha orientadora, Giuliana Vieira, pelo seu carinho e comprometimento, expresso

    a honra de ter sido sua pupila ao longo de todo o curso.

    Aos meus admirados e queridos professores da UEPB, em especial, Augusto Teixeira

    Jr, Silvia Nogueira, Henrique Altemani, Ana Paula Maielo, Otvio Corra, Paulo Kuhlmamn,

    Luiza Rosa Lima, Liliana Frio e Cristina Pacheco, que muito contriburam durante esses

    quatro anos de curso, atravs de disciplinas e conversas, para o meu engrandecimento pessoal

    e profissional.

    Aos colegas de classe pelos momentos de amizade e apoio, em especial Nayanna e

    Maylle, que muito me ampararam nos momentos difceis.

  • Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silncio - e eis que a verdade se me revela.

    Albert Einstein

  • RESUMO

    A cooperao tcnica (CT) entendida atualmente como uma importante ferramenta para o

    alcance do desenvolvimento, na medida em que ela capaz de auxiliar os pases na promoo

    de mudanas estruturais. Nesse sentido, a cooperao Sul-Sul, embora ainda embrionria, tem

    adquirido cada vez mais importncia. Em contraposio cooperao Norte-Sul, ela tida

    como uma prtica positiva, uma vez que no percebida como um agente propulsor da

    dependncia estrutural. No que se refere ao Brasil, a cooperao Sul-Sul adquiriu tanta

    relevncia que hoje constitui a principal linha de atuao da Agncia Brasileira de

    Cooperao (ABC), sendo um dos principais instrumentos da poltica externa brasileira.

    Dentre outras questes, o presente trabalho pretende contribuir para o debate sobre

    Cooperao Tcnica, que ainda incipiente no Brasil. Alm disso, buscar refletir sobre a

    atuao do governo brasileiro na cooperao tcnica horizontal e seu papel no desafio de

    promover um desenvolvimento mais justo, atravs de uma cooperao tida como uma via de

    mo dupla. Para tanto, parte das produes acadmicas sobre o tema e estudos realizados pelo

    Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea), em colaborao com a ABC, auxiliaram a

    pesquisa. Ainda cedo para dimensionar ou avaliar a cooperao Sul-Sul. Apesar disso, no

    se pode negar que ela adota uma abordagem mais adequada realidade dos pases do Sul.

    Contudo, at o momento, suas limitaes impelem uma ao combinada dos eixos horizontal

    e vertical. Acreditamos que o Brasil tem contribudo atravs das suas atividades de

    cooperao Sul-Sul, com a horizontalizao do discurso sobre cooperao tcnica. Assim, a

    atuao da ABC em projetos e fruns internacionais sobre Cooperao Tcnica entre Pases

    em Desenvolvimento (CTPD) tem ajudado a difundir uma concepo mais simtrica de

    cooperao internacional, contrastando com a concepo predominante nos arranjos

    tradicionais, Norte x Sul, de ajuda internacional. Portanto, para alm de posicionamento

    favorvel ou contrrio, buscaremos retratar o potencial que a CTPD brasileira tem para

    continuar a transformar o discurso internacional, principalmente em um contexto

    contemporneo de redefinio da arquitetura da cooperao internacional.

    PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento. Cooperao Tcnica Brasileira. Cooperao

    Horizontal.

  • ABSTRACT

    Technical cooperation is understood nowadays as an important tool for achieving

    development, to the extent that it is able to assist countries in promoting structural changes.

    Accordingly, the South-South cooperation, though still embryonic, has gained increasing

    importance. In contrast to North-South cooperation, she is seen as a positive practice as it is

    not perceived as a propellant structural dependence. With regard to Brazil, the South-South

    cooperation has acquired so much relevance that today it represents the main line of action of

    the Brazilian Cooperation Agency (ABC), being one of the main instruments of Brazilian

    foreign policy. Among other issues, this work aims to contribute to the debate on Technical

    Cooperation, which is still incipient in Brazil. Also, seek to reflect on the performance of the

    Brazilian government in horizontal technical cooperation and its role in the challenge of

    promoting more equitable development through a type of cooperation seen as a two-way street. For this, the academic productions and studies on the subject conducted by the Institute of Applied Economic Research (Ipea), in collaboration with ABC, supported this

    research. It is too early to assess or scale the South-South cooperation. Nevertheless, no one

    can deny that it adopts a more appropriate approach to the reality of the South, however, its

    limitations still impel a combined action of horizontal and vertical axes. We believe that

    Brazil has contributed through its activities of South-South cooperation, with the

    horizontalization of the discourse on technical cooperation. Thus, the performance of ABC in

    projects and fora on Technical Cooperation between Developing Countries (TCDC) has

    helped to disseminate a more balanced international cooperation, contrasting with the

    prevailing conception in traditional arrangements, North x South, of international aid.

    Therefore, and without putting ourselves in favor or not of a particular type of international

    cooperation, we seek to portray the potential that the Brazilian TCDC has to continue to

    transform the international discourse, particularly in a context of contemporary redefinition of

    the international cooperation architecture.

    KEYWORDS: Development. Brazilian Technical Cooperation. Horizontal Cooperation.

  • LISTA DE SIGLAS

    ABC

    ABC

    AOD

    BIRD

    CAD

    CAS

    CBC-Nano

    C&T

    CI

    CID

    CNS

    COBRADI

    COSBAN

    CSS

    CT

    CTPD

    FMI

    IPEA

    ISRO

    LEAP

    LNNano

    MCT

    MDS

    MRE

    MME

    NERCN

    OCDE

    ONU

    PD

    PED

    PNUD

    Agncia Brasileira de Cooperao

    Associao Brasileira de Cincia

    Ajuda Oficial para o Desenvolvimento

    Banco Internacional para Reconstruo e Desenvolvimento

    Comit de Assistncia ao Desenvolvimento

    Academia Chinesa de Cincias

    Centro Brasil-China de Pesquisa e Inovao em Nanotecnologia

    Cincia e Tecnologia

    Cooperao Internacional

    Cooperao Internacional para o Desenvolvimento

    Cooperao Norte-Sul

    Cooperao Brasileira para o Desenvolvimento Internacional

    Comisso Sino-Brasileira de Alto Nvel de Concertao e Cooperao

    Cooperao Sul-Sul

    Cooperao Tcnica

    Cooperao Tcnica entre Pases em Desenvolvimento

    Fundo Monetrio Internacional

    Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    Indian Space Research Organisation

    Livelihood Empowerment Against Poverty

    Laboratrio Nacional de Nanotecnologia

    Ministrio de Cincia, Tecnologia e Inovao

    Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome

    Ministrio das Relaes Exteriores

    Ministrio de Minas e Energia

    Centro Nacional de Pesquisa em Engenharia de Nanotecnologia

    Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico

    Organizao das Naes Unidas

    Pases desenvolvidos

    Pases em vias de desenvolvimento

    Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

  • SUS

    TIC

    UNCTAD

    Sistema nico de Sade

    Tecnologia da Informao e Comunicao

    Conferncia das Naes Unidas para Comrcio e Desenvolvimento

  • SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................................... 12

    1 A COOPERAO TCNICA INTERNACIONAL: DA VERTICALIDADE

    HORIZONTALIDADE NA COOPERAO INTERNACIONAL PARA O

    DESENVOLVIMENTO...............................................................................................

    19

    18

    1.1 UMA ABORDAGEM VERTICAL DA COOPERAO PARA O DESENVOLVIMENTO........

    20

    1.2 A TENDNCIA HORIZONTALIZAO DA CID...................................................

    24

    2 A GLOBALIZAO NO CONTEXTO DA COOPERAO INTERNACIONAL.............. 30

    2.1 A TECNOLOGIA COMO UMA ALAVANCA PARA O DESENVOLVIMENTO .................... 31

    2.2 A COOPERAO TCNICA INTERNACIONAL LUZ DA DINMICA DA

    GLOBALIZAO....................................................................................................

    33

    2.3 A GLOBALIZAO COMO AGENTE INTENSIFICADOR DAS DESIGUALDADES............ 34

    2.4 OS NOVOS PARADIGMAS DO DESENVOLVIMENTO.................................................. 35

    2.5 EM BUSCA DA COOPERAO HORIZONTAL............................................................ 43

    3 A COOPERAO TCNICA HORIZONTAL BRASILEIRA: NOVOS CAMINHOS........ 47

    3.1 A COOPERAO TCNICA BRASILEIRA: UM ESFORO GENUNO DE

    HORIZONTALIDADE?..............................................................................................

    48

    3.2 A COOPERAO SINO-BRASILEIRA: UMA PARCERIA ESTRATGICA ........................ 51

    3.3 A COOPERAO BRASIL-NDIA : UMA COOPERAO PROMISSORA........................ 55

    3.4 A COOPERAO BRASIL-FRICA: A EXPERINCIA DO PROGRAMA PILOTO EM

    GANA LIVELIHOOD EMPOWERMENT AGAINST POVERTY (LEAP)......................

    58

    CONCLUSO.................................................................................................................... 65

    REFERNCIAS................................................................................................................. 68

  • 12

    INTRODUO

    Dilma Rousseff: Este novo ciclo que agora se inicia no fruto de nenhuma mgica. a evoluo dos bons resultados que conseguimos at

    aqui e uma necessidade imperiosa para podermos continuar crescendo e

    distribuindo renda. J somos o pas que tem a melhor tecnologia social do

    mundo e nossos instrumentos de poltica social so copiados em dezenas de

    pases.

    (ROUSSEFF, 2012)

    A Cooperao Tcnica Internacional para o Desenvolvimento se apresenta como

    uma das dinmicas mais relevantes no mbito das relaes internacionais, desde o fim da

    Segunda Guerra Mundial. A disseminao da informao, da tcnica e da tecnologia, que

    fizeram os pases se interligarem cada vez mais em um mundo globalizado, fez da

    cooperao, enquanto uso institucionalizado pelos Estados, uma das dimenses mais

    marcantes do Ps-Guerra.

    Nesses termos, a cooperao tcnica (CT) entendida atualmente como uma

    importante ferramenta para o alcance do desenvolvimento, na medida em que ela capaz de

    auxiliar os pases na promoo de mudanas estruturais nos seus sistemas produtivos, de

    maneira que se possam superar os empecilhos ao seu crescimento natural (AGNCIA

    BRASILEIRA DE COOPERAO, 2012). Ao mesmo tempo, a cooperao tcnica

    internacional definida como sendo

    um instrumento especfico pelo qual pases e/ou organismos internacionais

    transferem conhecimento e tcnicas dentro de um processo planejado de mudanas,

    associado s prioridades de desenvolvimento socio-econmico (sic.) e articulado

    com a poltica externa do Pas (PLONSKI, 1994 apud WARWAR ET alii, 1991).

    O seu momento mais enrgico tem incio durante a Guerra Fria. Uma vez inserida no

    contexto de dualidade entre o Leste e o Oeste e de suas respectivas reas de influncia, a

    cooperao tcnica internacional, um dos pilares da Cooperao Internacional para o

    Desenvolvimento (CID), assume, juntamente com as outras modalidades de cooperao, um

    significativo carter estratgico.

  • 13

    Embora nossa pretenso no seja pensar especificamente a cooperao tcnica

    estabelecida pelo plano de reconstruo europeia no Ps-Guerra, o Plano Marshall, cabe

    ressaltar que esse empreendimento bem sucedido muito influenciou a cooperao para o

    desenvolvimento no que concerne a uma modalidade de cooperao que adota investimentos

    macios em assistncia tcnica e financeira nas reas necessitadas.

    Ainda no contexto da Guerra Fria, outro elemento que muito influenciou a

    Cooperao Internacional para o Desenvolvimento foi o significado atribudo ao termo

    desenvolvimento, que, no perodo, era quase sinnimo de crescimento econmico. Veremos

    no captulo 1 que, com o decorrer do tempo, surgiro novos paradigmas de desenvolvimento

    que continuaro a influenciar as modalidades de cooperao.

    Tendo em vista que o tema da Cooperao Tcnica para o Desenvolvimento no

    hoje menos importante que no passado, buscar-se- traduzir a enorme relevncia que essa

    modalidade de cooperao tem para os pases, de um modo geral, e principalmente para o

    Brasil, que a adota no apenas com o intento de atingir seus objetivos de desenvolvimento,

    mas tambm como instrumento de poltica externa.

    Considerando a evoluo do significado da cooperao tcnica internacional,

    adotaremos o conceito que acreditamos ser o mais compatvel com a doutrina e a prtica

    vigentes, atribudo por Iglesias Puente (2010, p.74). Segundo ele, a cooperao tcnica

    internacional :

    [u]m processo multidisciplinar e multissetorial que envolve, normalmente, um pas

    em desenvolvimento e outro(s) ator(es) internacionais (pas ou organizao

    multilateral), os quais trabalham juntos para promover, mediante programas,

    projetos ou atividades, a disseminao e transferncia de conhecimentos, tcnicas,

    experincias bem-sucedidas e tecnologias, com vistas construo e

    desenvolvimento de capacidades humanas e institucionais do pas em

    desenvolvimento, despertando-lhe, dessa forma, a necessria autoconfiana que

    contribua para o alcance do desenvolvimento sustentvel, com incluso social, por

    meio da gesto e funcionamento eficazes do Estado, do sistema produtivo, da

    economia e da sociedade em geral.

    Como se pode aferir da definio de Puente, so incorporados ao desenvolvimento

    almejado pela cooperao tcnica internacional as dimenses ambientais e sociais. Busca-se,

    assim, um novo paradigma de desenvolvimento, segundo o qual desenvolver-se no

    significa apenas o crescimento econmico de outrora. Desde a aceitao pela ONU dos

    Objetivos de Desenvolvimento do Milnio1, em 2000, o conceito de desenvolvimento passa a

    1 Ver tpico 2.4.

  • 14

    abranger questes como a pobreza, a igualdade entre os gneros e a sustentabilidade

    ambiental. Nesses termos, o presente estudo dar especial ateno evoluo dos paradigmas

    do desenvolvimento, uma vez que eles claramente tm exercido forte influncia na

    cooperao tcnica como ferramenta para o alcance do desenvolvimento.

    No obstante, este estudo seguir a linha de pensamento de alguns estudiosos, como

    Harry Derksen2, que alertam sobre o fato de que apesar do grande salto nesse sentido, ainda

    h muito a se progredir no que concerne ao fenmeno da pobreza. Esses autores criticam a

    concepo que instituies internacionais como o FMI e o Banco Mundial tm sobre a

    pobreza, que ainda compreendida por elas to somente a partir de referncias econmicas,

    correspondentes falta de recursos para a satisfao das necessidades. Tais crticas alimentam

    o debate sobre a pobreza, que considerada por muitos como um dficit de direitos humanos.

    Nessa conjuntura, a globalizao ganha destaque. Diante dos novos paradigmas do

    desenvolvimento, os preceitos da ideologia capitalista liberal de reduo mxima da

    interveno estatal e de abertura econmica se tornam um paradoxo. Em decorrncia da

    transnacionalizao, do rpido fluxo de informaes e de pessoas, alm do avano da tcnica

    e da tecnologia, que caracterizam a globalizao, muitos arriscam questionar o papel do

    Estado. Veremos, contudo, que ao mesmo tempo em que mandatrio o estabelecimento de

    uma globalizao mais humanizada, o papel do Estado passa a adaptar-se s novas

    circunstncias da ordem atual. O que se tem percebido que, enquanto nem todos os Estados

    so iguais no que se refere capacidade de satisfazer suas funes sociais, os governos

    passaram a assumir a responsabilidade de se constiturem como promotores de um Estado

    social, passando a desempenhar funes que resultem no desenvolvimento, no gerenciamento

    econmico, na sade de qualidade, na boa educao, no bem estar e no planejamento social,

    entre muitos outros (CLARK, 2011). Tal situao demonstra o papel relevante do Estado na

    promoo do desenvolvimento.

    Sendo assim, em um mundo globalizado, a cooperao tcnica e cientfica torna-se

    cada vez mais relevante para que se possa atender demanda do desenvolvimento e da

    insero internacional (MARCOVITCH, 1994b, p.61-62). imprescindvel, portanto,

    compreender a cincia e a tecnologia como tendo uma importncia essencial na promoo do

    desenvolvimento, pois o conhecimento cientfico e tecnolgico constitui um fator de produo

    essencial para a competitividade das economias.

    2 Esta problemtica ser abordada no captulo 2. No entanto, para maiores informaes consultar: DERKSEN,

    2003.

  • 15

    Aps abordarmos o pano de fundo e os conceitos que consideramos mais importantes

    para a nossa temtica, nossas reflexes se direcionaro para a cooperao que passa a ser

    estabelecida aps a Guerra Fria. Nesse perodo, mais por uma questo de necessidade do que

    uma ao espontnea, os pases do ento chamado sul passam a estreitar e intensificar os

    processos de cooperao entre eles. Esse novo relacionamento desencadeado pelas

    frustraes desses pases na tentativa de obter maior ateno das potncias dominantes, que

    negligenciaram a problemtica do sul subdesenvolvido e os apelos desses pases por maior

    empenho no auxlio vindo dos pases desenvolvidos e voltado para a superao do

    subdesenvolvimento.

    A cooperao Sul-Sul, ou entre pases em desenvolvimento, tem a pretenso de ser

    uma cooperao baseada na horizontalidade, opondo-se ao modelo de cooperao

    tradicional mantido com os pases desenvolvidos, a chamada cooperao vertical. Na tica

    dos pases em desenvolvimento, o modelo de cooperao tradicional, ao mesmo tempo em

    que no era eficaz no combate ao problema do subdesenvolvimento, tambm reproduzia a

    situao de dependncia entre eles. O curioso que questes como essa tambm se voltam

    atualmente para o tema da cooperao Sul-Sul: embora tenha pretenso de ser horizontal, ela

    consegue atingir esse objetivo em sua plenitude?

    Estamos cientes de que o debate sobre Cooperao Tcnica ainda incipiente no

    Brasil e, por isso, a partir de algumas reflexes, este estudo tem como objetivo geral trazer

    contribuies para esse debate, que acreditamos merecer ser cada vez mais estimulado pelas

    reflexes acadmicas, tendo em vista sua grande importncia estratgica para o nosso pas

    como uma ferramenta relevante na promoo do desenvolvimento.

    Alm disso, buscaremos localizar o Brasil no nosso tema de estudo, observando o

    caminho seguido pelo pas em suas parcerias cooperativas. Nesse ponto, importante

    mencionar que o presente trabalho corrobora a ideia segundo a qual o Brasil tem contribudo

    com a horizontalizao do discurso sobre cooperao tcnica, atravs do exerccio da

    Cooperao Tcnica entre Pases em Desenvolvimento (CTPD). Acreditamos que a atuao

    da Agncia Brasileira de Cooperao (ABC) em projetos e fruns internacionais sobre CTPD

    tenha ajudado a difundir uma concepo mais simtrica de cooperao internacional,

    contrastando com a percepo predominante nos arranjos tradicionais da ajuda internacional.

    Assim, sem deixar de localizar o Brasil nessa temtica, o nosso estudo buscar

    explanar o tema da cooperao tcnica internacional, tanto no que se refere modalidade

    Norte-Sul quanto Sul-Sul, inserindo-a na problemtica do desenvolvimento. Para tanto, se

    utilizar do levantamento da produo bibliogrfica j existente sobre o tema. Os dados

    ThamirysHighlight

  • 16

    quantitativos que daro suporte ao nosso trabalho tero como fonte os estudos feitos pelo

    Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) em colaborao com a ABC. Esses estudos

    foram realizados em dezembro de 2010 e consistem em um levantamento sobre a Cooperao

    Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (COBRADI), durante o perodo 2005-2009.

    Tambm utilizaremos como suporte as informaes fornecidas pelo Programa das Naes

    Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), pelo Ministrio das Relaes Exteriores (MRE) e

    pelo Ministrio de Cincia, Tecnologia e Inovao (MCT) e Ministrio de Desenvolvimento

    Social e Combate Fome (MDS). Ademais, tiraremos proveito de documentao indireta,

    resultante de pesquisas documentais da bibliografia j existente. Portanto, nossa anlise se

    voltar para uma combinao de dados secundrios e revises bibliogrficas.

    A ttulo de esclarecimento, chamamos a ateno para o fato de que, embora

    prefiramos o uso do termo cooperao em relao ao termo assistncia, no fazemos

    grande distino no uso desses termos ao longo do texto. Todavia, como ser explicado no

    tpico 1.1, essas expresses conduzem a prticas diferentes. Por ora, podemos dizer que, de

    maneira geral, a expresso cooperao se refere a uma interao entre dois ou mais atores,

    na qual todos tem participao ativa. J na assistncia, um desses atores se comporta

    passivamente, sendo apenas um receptor de assistncia. Em outras palavras, ao passo que o

    primeiro remete a uma relao igualitria entre os parceiros, o segundo traz implcita uma

    relao de desigualdade. Nesses termos, lembramos ao leitor de que sempre que um dessas

    expresses seja mencionada, seus conceitos devem ser situados e entendidos de acordo com

    seus respectivos tempos histricos.

    De qualquer forma, nossa proposta no defender ou rejeitar determinada

    modalidade de cooperao tcnica, nem muito menos propor solues para o problema do

    subdesenvolvimento. Com efeito, procuramos expor a problemtica da cooperao tcnica,

    oferecendo uma viso geral sobre os pressupostos e argumentos acerca do fenmeno da

    Cooperao Tcnica Internacional para o Desenvolvimento.

    Finalmente, optamos pela seguinte estrutura narrativa: no primeiro captulo,

    abordaremos de maneira geral a cooperao para o desenvolvimento em perspectiva histrica,

    partindo de uma tradicional cooperao verticalizada at a recente e imatura, porm, no

    menos importante cooperao horizontal.

    Posteriormente, no captulo 2, traremos o tema da globalizao que, alm de

    representar o pano de fundo da cooperao tcnica, tambm um de seus agentes propulsores.

    Propomos um estudo mais cauteloso desse processo que, a nosso ver, deve ser entendido no

    apenas como um fenmeno que pretende homogeneizar o mundo, mas tambm como um

  • 17

    fator que apresenta fortes implicaes nos processos de criao de desigualdades.

    Questionando essa face negativa da globalizao, consideramos a emergncia de novos

    paradigmas preocupados com a perspectiva socioambiental do desenvolvimento. Assim,

    traremos a cooperao Sul-Sul, que pelo menos no nvel do discurso, corrobora este novo

    paradigma. Por ser um tema indissocivel da globalizao e que ao mesmo tempo est

    intimamente ligado ao tema do desenvolvimento, acreditamos ser pertinente tratar ainda, neste

    mesmo captulo, sobre a relevncia dos investimentos em pesquisa, cincia e tecnologia.

    Dando seguimento, o captulo terceiro abordar a cooperao tcnica horizontal

    brasileira, seus princpios e atributos. Procuraremos refletir sobre o discurso de uma

    cooperao brasileira movida por princpios alinhados s vises de relaes equnimes e de

    justia social, constituindo-se em importante instrumento de poltica externa.3 (CINTRA,

    2010, p.16) Dessa maneira, esperamos fornecer alguma contribuio para os estudos do vis

    estratgico da Cooperao Tcnica para o Desenvolvimento na poltica externa brasileira.

    Nesse mbito, seria impossvel deixar de relatar as parcerias brasileiras em cooperao tcnica

    com China, ndia e no continente africano em um perodo no qual esses pases4 tem assumido,

    como nunca, uma performance to significante e influente na arena internacional. Esses

    pases reconhecem a necessidade de investir em pesquisa e conhecimento como meio para se

    atingir o desenvolvimento competitivo e, por isso, no deixaram de lanar mo das iniciativas

    Sul-Sul. So esses gigantes emergentes que desempenham um papel diferenciado no

    sistema internacional e que bastante tm contribudo para a CTPD, tendo, portanto, inspirado

    o ttulo deste trabalho.

    3 Ver tpico 3.1.

    4 Leia-se China, ndia e frica do Sul.

    ThamirysHighlight

  • 18

    CAPTULO 1 - A COOPERAO TCNICA INTERNACIONAL: DA VERTICALIDADE

    HORIZONTALIDADE NA COOPERAO INTERNACIONAL PARA O DESENVOLVIMENTO

    O termo Cooperao Tcnica Internacional, tal como se pretende utilizar no presente

    trabalho, constitui uma das modalidades clssicas da Assistncia Oficial para o

    Desenvolvimento (AOD), juntamente com a Cooperao Financeira e a Assistncia

    Humanitria. Como oportunamente se mostrar neste trabalho, a cooperao tcnica (CT) foi

    inicialmente denominada assistncia tcnica, sendo essa expresso posteriormente

    substituda em funo da sua conotao implcita de desigualdade entre os pases.

    Igualmente, no s a expresso assistncia tcnica foi alvo de crticas, como

    tambm a AOD. Iglesias Puente (2010) apropriadamente lembra que, desde ento, passou-se a

    optar pela expresso Cooperao Internacional para o Desenvolvimento (CID). Conforme

    se ver adiante, o termo AOD no corresponde mais aos princpios contemporneos que

    orientam a cooperao internacional para o desenvolvimento, entendida como o fluxo de

    recursos pblicos (financeiros ou tcnicos) oriundos de Estados ou Organizaes

    Internacionais e que tm como objetivo declarado o desenvolvimento econmico e social dos

    pases recebedores (LOPES, L., 2008, p.17). No obstante, o termo AOD persiste, sendo

    utilizado preferencialmente pelos pases desenvolvidos (IGLESIAS PUENTE, 2010). De

    acordo com Aylln (2006), a AOD passou a designar uma cooperao mais especfica, que

    corresponde a fluxos econmicos, de carter concessional e um elemento de doao de ao

    menos 25%, oriundos de estados ou organizaes internacionais e destinados aos PED e s

    instituies multilaterais, cujo principal objetivo deveria ser o crescimento econmico desses

    pases. Portanto, daremos preferncia ao termo CID, pois o que mais se aproxima daquilo

    que pretendemos discutir nesta monografia.

    Atualmente, a CT tem sido empregada como instrumento de cooperao para o

    desenvolvimento, a fim de melhorar as capacidades humana e institucional, e utilizado, para

    tanto, transferncia, adaptao e uso de habilidades, conhecimento e tecnologia (LOPES, C.,

    2005, p.61). Contudo, como se observar ao longo do texto, os objetivos da cooperao para o

    desenvolvimento, nem sempre seguiram a tendncia atual de buscar o desenvolvimento

    econmico e sustentvel, consoante com o bem estar social e ambiental. Indubitavelmente,

    pode-se afirmar que a CID sofreu (pelo menos no nvel do discurso) bastante influncia, em

    cada momento da histria, do pensamento predominante acerca do conceito de

    desenvolvimento e da melhor forma de alcan-lo. Na gnese da cooperao internacional,

  • 19

    os paradigmas sobre o desenvolvimento sugeriram uma abordagem vertical, ou Norte-Sul, da

    cooperao para o desenvolvimento, implicando, posteriormente, no surgimento de uma

    abordagem horizontal, ou Sul-Sul5. A esse respeito, Carlos Lopes (2005, p.61-62) ilustra que:

    [t]radicionalmente, a CT comeou por se concentrar na transferncia de

    conhecimentos atravs de: (a) bolsas de estudos, e (b) pagamentos para consultores,

    conselheiros e funcionrios afins, bem como professores e administradores. Durante

    dcadas, a CT assumiu formas diferentes, tais como treinamento de especialistas

    para parceiros em mobilizao e consultoria e adotou diferentes estratgias. O contedo dessas estratgias correspondia aos paradigmas prevalentes de

    desenvolvimento.

    claro que se a CT utilizada como uma ferramenta para alcance do

    desenvolvimento, ao longo dos anos, mudanas nas vises sobre o desenvolvimento,

    certamente implicariam em mudanas no entendimento de como essas ferramentas seriam

    melhor aplicadas, de maneira que os meios possibilitem os fins esperados. Assim, para que se

    possa ter uma boa compreenso da CTI, preciso respeitar a sua evoluo histrica, sem

    dissoci-la completamente da Cooperao para o Desenvolvimento, pois sua origem est

    irrefutavelmente ligada ao contexto da Guerra Fria e ao processo de descolonizao. Ademais,

    necessrio delimitar sua natureza e especificidade, bem como ressaltar-lhe a caracterstica

    horizontal que foi adquirida ao longo dos anos, como se ver adiante.

    Portanto, o presente captulo ser dividido em duas partes especficas. A primeira

    (1.1) tratar do desdobramento da abordagem vertical da cooperao tcnica para o

    desenvolvimento. A segunda (1.2), por sua vez, tratar da abordagem horizontal dessa

    cooperao. Juntas, elas compem a evoluo da Cooperao Internacional para o

    Desenvolvimento, em seu aspecto tcnico. Nesse ponto, cabe ressaltar a importante

    contribuio de Iglesias Puente, cujas fases da evoluo6 da CID representam um alicerce

    para este trabalho.

    5 Apesar de serem quase sinnimos, cabe distinguir a cooperao tcnica horizontal da cooperao Sul-Sul. Esta

    ltima abrange uma cadeia de atividades que vo alm da cooperao tcnica. A cooperao tcnica

    internacional, por sua vez, exclui a ajuda financeira e corresponde apenas s atividades de capacitao tcnica.

    Ela objetiva a promoo do desenvolvimento dos pases, por meio da absoro (cooperao recebida) ou da

    transferncia (cooperao prestada), de conhecimentos e tecnologias. 6 Em seu livro, o autor distingue quatro fases na evoluo da cooperao para o desenvolvimento. A primeira, a

    Fase das Lacunas, correspondia ao perodo de 1950 a 1960. A segunda compreendia a dcada de 1970, sendo chamada de Fase da Dimenso Social. A terceira, a partir dos anos 1980, correspondia Fase do Ajuste Estrutural. E, por ltimo, a Fase do Aps Guerra Fria e da Boa Governana compreendia o perodo de 1990 em diante. A esse respeito ver: Iglesias Puente (2010).

  • 20

    1.1 UMA ABORDAGEM VERTICAL DA COOPERAO PARA O DESENVOLVIMENTO

    O fim da II Guerra Mundial marca o colapso de um antigo sistema internacional que

    substitui um regime de balana de poder por um sistema bipolar, formado por Estados Unidos

    e Unio Sovitica. Como aponta Oliveira (2005), a tenso bipolar gerada pela Guerra Fria e a

    possibilidade de expanso do comunismo, inicialmente na Europa e posteriormente na sia,

    ameaava o projeto norte americano de uma economia mundial aberta e internacionalizada,

    pautado pela eliminao de todas as barreiras ao livre comrcio e ao livre fluxo de servios e

    capitais. Dadas as circunstncias, o projeto americano teve de dar lugar a novas prioridades

    estratgicas: de incio, a reconstruo europeia, e posteriormente, a reconstruo asitica, em

    especial a do Japo, aps o triunfo das foras comunistas na China e o incio da Guerra da

    Coria.

    Com efeito, no final da dcada de 1940, a reconstruo dos continentes europeu e

    asitico atuou como uma alavanca para o surgimento da Cooperao para o Desenvolvimento

    tal como a conhecemos hoje. Como sustenta Iglesias Puente (2010), essa modalidade de

    cooperao fundamentava-se em dois pilares bsicos: a assistncia tcnica e assistncia

    financeira7. Ela era motivada por fatores polticos, econmicos, sociais, geoestratgicos,

    ideolgicos, morais e ticos. Contudo, o peso e a importncia desses fatores variaram ao

    longo dos anos, condicionando e moldando a Cooperao para o Desenvolvimento, a escolha

    dos pases beneficirios e a prioridade a eles atribuda.

    Assim, como afirma Oliveira (2005), a lgica da Guerra Fria fez com que os Estados

    Unidos voltassem suas polticas para as novas questes de segurana. Muito embora esse pas

    ainda mantivesse parcerias com o restante da Amrica, o volume das relaes com a

    Amrica Latina foi bastante reduzido. importante lembrar que, nesse perodo, existia uma

    espcie de consentimento tcito da hegemonia norte-americana no restante da Amrica e, em

    contra partida, os Estados latino-americanos esperavam uma ampliao dos laos de

    solidariedade, em funo do apoio dado aos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. A

    conduta assumida por este pas, no entanto, confrontava com as expectativas dos Estados

    latino-americanos e, consequentemente, fez com que a insatisfao da Amrica Latina em

    relao liderana consentida aos Estados Unidos aumentasse com o passar do tempo.

    7 Hoje, d-se preferncia ao uso dos termos cooperao tcnica e cooperao financeira em detrimento de

    assistncia tcnica e/ou financeira. O termo assistncia atualmente assume uma conotao diferente da utilizada na poca.

  • 21

    De fato, os principais pases do norte, sob liderana dos Estados Unidos, estavam

    muito mais preocupados com o rumo das relaes Leste-Oeste e entendiam que o Eixo Norte-

    Sul era um componente a ser utilizado estrategicamente na confrontao capitalismo versus

    comunismo, lgica que presidia tambm a preocupao do bloco sovitico (IGLESIAS

    PUENTE, 2010).

    Para a tica do ps-guerra, muito influenciada pelos esforos bem sucedidos do

    Plano Marshall e da reconstruo europeia, desenvolvimento e crescimento econmico eram

    quase sinnimos. Esse pensamento muito influenciou a fase inicial da Cooperao para o

    Desenvolvimento (1950 - 1960), que Iglesias Puente (2010) chama de Fase do

    preenchimento das lacunas8. O autor aponta que, nessa conjuntura, predominava o

    pensamento de que o caminho para o desenvolvimento estaria necessariamente associado ao

    imperativo de investimentos macios de capital nas economias subdesenvolvidas que, apesar

    de possurem fatores de produo, como matrias-primas e mo de obra, possuam relativa

    escassez de capital. Dessa forma, os investimentos macios de capital e de tcnicas nas reas

    subdesenvolvidas assumiram, preponderantemente, um carter assistencialista.

    Iglesias Puente (2010, p. 43) destaca ainda o pressuposto de Rostow, de acordo com

    o qual, para que se consiga o arranque de uma economia subdesenvolvida necessrio o

    aumento na taxa de investimento:

    Como os PED [...] no dispunham de poupana interna suficiente, a soluo seria a

    entrada de capital exgeno, mediante assistncia externa. Por conta desse

    pressuposto, caberia aos pases doadores preencher a lacuna de capital existente. Nessa fase, a tentativa de industrializao viabilizada, em muitos casos, pelos

    programas de substituio de importaes concentra a ateno prioritria da ajuda ao

    desenvolvimento.

    Da mesma forma, dadas as insuficientes reservas de conhecimento nos pases em

    desenvolvimento (representadas por deficincias em mo-de-obra (sic.)

    especializada, bem como fragilidade organizacional e institucional), outra lacuna, a

    tcnica, seria preenchida via assistncia tcnica, dando, assim, aos PED condies

    de absorver os capitais injetados (IGLESIAS PUENTE, 2010, p.43 apud BROWNE,

    2006, p. 29).

    A partir do esclarecimento de Iglesias Puente, pode-se perceber que a ajuda externa

    era considerada fundamental na promoo do desenvolvimento. Em vista disso, a Cooperao

    para o Desenvolvimento foi utilizada pelas grandes potncias para manter alianas

    estratgicas e alcance poltico sobre suas reas de influncia (IGLESIAS PUENTE, 2010).

    8 Para maiores aprofundamentos, ver Iglesias Puente (2010).

  • 22

    Na percepo dos pases em desenvolvimento (PED), as relaes Norte-Sul estavam

    inundadas de determinantes polticos e estratgicos9, bem como, estavam estreitamente

    vinculadas aos interesses comerciais dos doadores e, por isso mesmo, repleta de

    condicionalidades. Esse modelo de cooperao tampouco congregava as reais prioridades

    nacionais dos pases beneficirios, pouco colaborando para os seus objetivos de

    desenvolvimento econmico, alm de reproduzir esquemas de dependncia (IGLESIAS

    PUENTE, 2010).

    A propsito, cabe ressaltar a inestimvel contribuio de Mrcio Corra (2010). O

    autor aponta que o dficit de recursos humanos e das capacidades institucionais de muitos

    PED comprometem as suas possibilidades de discutir com os pases doadores em igualdade

    de condies. Isso faz com que os programas elaborados priorizem os interesses dos pases

    doadores em detrimento das necessidades e realidades locais.

    Corra (2010, p.75) assinala ainda que os programas de cooperao Norte-Sul -

    embora contemplem problemas e deficincias estruturais dos PED, como nas reas de sade,

    educao, segurana alimentar e, entre outros, gesto pblica - do prioridade a temas pr-

    estabelecidos para o financiamento de projetos. Ademais, essa modalidade de cooperao

    frequentemente marcada por abordagens que refletem paradigmas estranhos s realidades

    locais, que se alinham aos interesses de longo prazo dos pases doadores e acabam por

    limitar o potencial de impacto de longo prazo dos investimentos de cooperao

    internacional.

    Ora, quando tais problemas ocorrem, o objetivo primordial de desenvolvimento

    econmico e social, declarado pela CID10

    , usurpado. A cooperao internacional, portanto,

    tem sua eficcia limitada e legitimidade comprometida.

    Assim, os PED, que se multiplicaram com o processo de descolonizao iniciado na

    dcada de 1950, lanaram mo da busca por alternativas prprias para afirmar a sua presena

    internacional. Na procura por essas alternativas, alm da problemtica Leste-Oeste, o tema

    Norte-Sul passou a fazer parte da agenda mundial. Esse novo debate foi articulado nos anos

    50, no plano poltico, pelo movimento dos no alinhados, e nos anos 60, no plano econmico,

    pelo grupo dos 77 (LAFER, 1991).

    9 A lgica da Guerra Fria, que tambm governou o domnio da AOD, certamente ilustra a correlao entre

    determinantes polticos e estratgicos e a ajuda externa. Nesse perodo, os pases doadores elegiam os receptores

    de cooperao, muitas vezes condicionando a ajuda com base em lealdades poltico-estratgicas. Apesar de

    terem se adaptado s novas realidades do sistema internacional, tais determinantes ainda persistem e, na maioria

    dos casos, no fazem parte do discurso oficial motivador da cooperao. Para maiores informaes ver Iglesias

    Puente (2010). 10

    Ver captulo 1.

  • 23

    Segundo Celso Lafer (1991), o movimento dos no alinhados baseava-se na

    rivalidade entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica e na possibilidade de uma terceira

    frente. J o grupo dos 77 fundamentava-se na importncia econmica das matrias-primas dos

    PED para o funcionamento da economia mundial e na probabilidade de relacionar esta

    relevncia a uma ao poltico-diplomtica conjunta, que permitisse o surgimento de uma

    nova ordem mundial nas lacunas do conflito Leste-Oeste.

    Cabe ressaltar que, a partir dos esforos da UNCTAD (Conferncia das Naes

    Unidas sobre o Comrcio e o Desenvolvimento), a expresso pases subdesenvolvidos deixa

    gradativamente de ser utilizada, dando lugar aos termos pases em desenvolvimento ou

    pases em vias de desenvolvimento. Conforme aponta Soares (1994), passou-se a entender

    que o termo subdesenvolvido remete a uma situao esttica, um estado que no passvel

    de mudana, logo, tido como definido, certo. Tal concluso exclui a hiptese de mudana, de

    superao dos problemas do subdesenvolvimento e a consecuo do desenvolvimento. Exclui

    o espao existente entre o subdesenvolvido e o desenvolvido. O mesmo no acontece com o

    termo pases em vias de desenvolvimento, que pressupe um caminho a ser percorrido,

    refletindo assim, um processo em andamento e o estado dinmico em que se encontram os

    pases. Com efeito, tal acontecimento no reflete apenas uma mudana vocabular, mas

    tambm uma mudana de enfoque nas relaes internacionais.

    A assistncia tcnica, um dos pilares da cooperao para o desenvolvimento

    juntamente com a assistncia financeira, tambm alvo de crticas. Sobre esta questo, Soares

    (1994, p.169 apud FEUER e CASSAN, 1985, p. 297), cautelosamente, adverte que o conceito

    de assistncia sempre esteve ligado ao de ajuda e

    na poca em que apareceu... correspondia noo que os pases ocidentais tinham

    para si do subdesenvolvimento e dos meios de remedi-lo. Para tais pases, [...] o

    subdesenvolvimento se analisava como um atraso que se poderia remediar por uma

    assistncia tcnica e financeira. Ora, ficou evidenciado que tal concepo conduzia,

    na maioria dos casos, perpetuao da dependncia e ao desenvolvimento do subdesenvolvimento.

    Decerto, na maneira como era conduzida, a assistncia tcnica no s fracassou em

    superar o atraso dos pases subdesenvolvidos como reproduziu esquemas de dependncia. Isso

    fez da assistncia um alvo de crticas, levando-a a assumir, gradativamente, outra conotao.

    Segundo Iglesias Puente (2010), por trazer uma denotao implcita da desigualdade entre os

    parceiros, sugerindo uma atitude caritativa ou paternalista por parte do doador e, em

    contrapartida, uma reao passiva e dependente por parte do receptor, a expresso

  • 24

    assistncia deu lugar ao termo cooperao. Este termo, por sua vez, pressupunha uma

    relao mais igualitria entre os parceiros, ao mesmo tempo em que se estabelece uma troca

    entre eles, sendo ambos agentes ativos na relao.

    Ainda de acordo com Iglesias Puente (2010), j no incio dos anos 1970, se

    reconhecem falhas latentes no modelo de preenchimento de lacunas, uma vez que os pases

    em desenvolvimento no conseguiram promover a condio de arranque em suas

    economias. Novos temas so inseridos na agenda internacional, como o meio ambiente e

    populao. A situao de dependncia dos pases em desenvolvimento em relao ao

    desenvolvidos, agravada e sustentada pelo modelo de preenchimento de lacunas, passa cada

    vez mais a ser questionada pelos pases do sul. Ademais, a perspectiva social do

    desenvolvimento vai gradativamente ganhando espao, uma vez que se reconhece a

    necessidade de se obter crescimento com redistribuio de renda.

    Foi nessa etapa que, durante o ano 1969, o Comit de Assistncia ao

    Desenvolvimento (CAD) da Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico

    (OCDE) cria o mecanismo de graduao. Tal mecanismo teve impacto relevante no que

    concerne forma e distribuio da Assistncia Oficial para o Desenvolvimento (AOD), em

    funo da prioridade que dava aos pases mais necessitados de acordo com seus nveis de

    renda per capita. Vale pena ressaltar que, na prtica, esse mecanismo acabou por delimitar

    parcialmente o acesso dos pases em desenvolvimento de renda mdia AOD (IGLESIAS

    PUENTE, 2010).

    Em um contexto ainda assinalado pela rivalidade bipolar, a segunda fase conhece um

    crescimento relevante na cooperao multilateral, especialmente por parte do Banco Mundial

    e das agncias das Naes Unidas. Os clamores do terceiro mundo por uma Nova Ordem

    Internacional so cada vez mais ouvidos. O movimento no alinhado ganha mais visibilidade

    e expresso, sendo os primeiros esboos de uma cooperao Sul-Sul inicialmente delineados

    (IGLESIAS PUENTE, 2010).

    1.2 A TENDNCIA HORIZONTALIZAO DA CID

    A cooperao entre PED foi um emblema no que se refere formao de uma nova ordem

    econmica internacional, tambm no plano da assistncia tcnica. Muito embora o debate

    sobre a chamada cooperao Sul-Sul tivesse iniciado desde 1964, na I UNCTAD, at 1972 a

  • 25

    abordagem recai nas relaes do comrcio e da integrao regional. A partir de 14 de

    dezembro de 1972, na resoluo 2974 (XXVII), a Assembleia Geral da ONU passa a realar

    as caractersticas da cooperao Sul-Sul, ao definir a criao de um grupo de trabalho para

    analisar o melhor modo para os PED conjugarem esforos e experincias, com o objetivo de

    alargar e aperfeioar a assistncia tcnica ao desenvolvimento, bem como, de observar as

    possibilidades e as vantagens relativas da cooperao tcnica regional e internacional entre os

    PED (SOARES, 1994).

    Como apropriadamente lembra Iglesias Puente (2010), na dcada de 1980, a

    Cooperao para o Desenvolvimento marcada pelos efeitos das crises de 1970 e a

    consequente recesso nos pases desenvolvidos. J no mbito dos pases em desenvolvimento,

    a Fase do Ajuste Estrutural11

    marcada pela tenso em funo da dvida externa.

    Em conformidade, Oliveira (2005) adverte que o padro de desenvolvimento

    econmico adotado pelo Brasil levou a um crescente consumo de petrleo e de bens de

    equipamento, para o provimento do mercado interno, e de bens de produo, para o setor

    externo, tambm culminando com um crescimento descontrolado da dvida externa.

    Essa conjuntura internacional ocasionou redues drsticas na Cooperao para o

    Desenvolvimento por parte dos pases doadores e fez com esta fosse reorientada pelos

    ajustes estruturais. O Consenso de Washington12 transfere a nfase da luta contra a pobreza

    e o desenvolvimento social para a estabilidade macroeconmica e a reduo da interveno do

    Estado (IGLESIAS PUENTE, 2010). Dessa maneira, a Cooperao Internacional para o

    Desenvolvimento reorientada de modo a no ameaar ainda mais um sistema financeiro

    internacional que se encontra em situao indigesta.

    No Brasil, ainda que de forma incipiente, se comea a delinear uma poltica externa

    que intensifica relaes com parceiros mais diversificados, sobrepujando o conceito de

    fronteiras ideolgicas. Como bem lembra Oliveira (2005, p.144),

    em razo das dificuldades de acesso ao mercado internacional e igualmente das

    implicaes das medidas protecionistas por parte dos pases industrializados,

    exatamente no momento em que o Brasil mais necessitava expandir suas

    exportaes para a obteno de supervits comerciais, a sada foi no apenas aumentar as exportaes de artigos mais compensadores (os manufaturados), mas

    tambm procurar novos compradores: os pases do Sul.

    11

    Para maiores informaes ver Iglesias Puente (2010). 12

    Comentaremos um pouco mais sobre este item no tpico 2.3.

  • 26

    Sem dvida, a conduta dos pases desenvolvidos colide com os anseios do Sul por

    um desenvolvimento sustentvel, justamente no momento que os PED mais precisavam

    estreitar as relaes como o primeiro mundo e intensificar a assistncia externa. Destarte, a

    cooperao Sul-Sul se apresentou oportunamente como uma vlvula de escape, em face da

    crise e de um ambiente econmico internacional cada vez mais adverso, se tornando, ao longo

    do tempo, uma iniciativa cada vez mais slida e importante para os pases do Sul.13

    Em

    consonncia, Oliveira (2005, p.144 apud LIMA; MOURA, 1982, p. 352) evidencia a

    crescente relevncia das relaes Sul-Sul para o Brasil, que no fugia da realidade dos PED.

    Em consequncia, a poltica externa brasileira passou a priorizar as iniciativas Sul-Sul,

    particularmente, s relaes com a Amrica e a frica Meridional, regies onde, por razes

    histricas e geogrficas, o Brasil teria condies de maximizar suas vantagens

    comparativas.

    Para agravar ainda mais a situao, de 1990 em diante, aps a queda do Muro de

    Berlim e o final da Guerra Fria, a Cooperao para o Desenvolvimento sofre, mais uma vez, a

    reduo do seu volume. Parte da AOD foi redestinada para os pases do Leste europeu e da

    sia Central, fazendo com que os prprios pases da antiga cortina de ferro, e at mesmo a

    URSS, se tornassem doadores e receptores, conforme aponta Iglesias Puente (2010).

    Ainda de acordo com Iglesias Puente (2010), os conflitos tnicos e religiosos, que

    ganhavam cada vez mais relevncia no campo poltico, aliados s decorrentes catstrofes

    humanas e instabilidade, fazem despontar a preocupao com a Assistncia Humanitria e

    com as novas reas de cooperao, como a preveno de conflitos, democracia preventiva e

    recuperao ps-conflito, em detrimento da Cooperao para o Desenvolvimento. Somado a

    isso, cresce a percepo dos pases doadores e das agncias multilaterais internacionais de que

    a falta de comprometimento dos pases receptores em tornar a AOD efetiva, mediante reforma

    de processos internos, desvios do apoio para outros destinos que no os estabelecidos e

    corrupo endmica eram os principais fatores que tornavam a AOD ineficiente.

    13

    Nesse ponto, cabe ressaltar a crtica de Corra (2010, p.88-89) a essa viso dos fatos. O autor argumenta que a expanso da cooperao Sul-Sul ocorreu no em funo do esgotamento da cooperao Norte-Sul e da retrao

    da ajuda vinda dos pases desenvolvidos, mas sim pelo fato de a expanso ser uma consequncia natural do

    crescimento tcnico, econmico e poltico dos PED. Dessa maneira, foi o desenvolvimento econmico,

    tecnolgico e institucional de um seleto grupo de pases em desenvolvimento que possibilitou que a cooperao

    Sul-Sul passasse de um estgio preponderantemente retrico e marcado por aes pontuais, para um estgio

    caracterizado por iniciativas resultantes de planejamento, conduzidas em bases regulares e com maior envergadura. Todavia, deve-se ter em mente que, embora seja claro que o desenvolvimento dos PED foi um elemento indispensvel para a ampliao da cooperao Sul-Sul, a aceitao de tal argumento no anula a

    influncia do ambiente econmico adverso e do esgotamento das relaes Norte-Sul. Sendo, portanto, o

    alargamento do eixo de cooperao horizontal ocasionado pela combinao desses fatores.

  • 27

    Em decorrncia desses fatores a questo da boa governana14

    passa a condicionar a

    AOD. Em termos prticos, esse paradigma consagrava a tendncia entre os pases

    desenvolvidos de responsabilizar os PED pelo seu prprio desenvolvimento, na presuno de

    que os fluxos internacionais privados de capitais e de comrcio deveriam estar no primeiro

    plano dos esforos pelo desenvolvimento. Nesse pressuposto, a AOD deveria atuar apenas

    como catalisadora desses fluxos, ao mesmo tempo em que promovia a boa governana e as

    condies para que o capital privado encontre terreno frtil (IGLESIAS PUENTE, 2010, p.

    49-50).

    Iglesias Puente (2010) tambm recorda que as crises econmicas, no final dos anos

    1990, na Amrica Latina, Rssia e no Sudeste Asitico e a inabilidade do sistema neoliberal

    de erradicar a pobreza fazem com que o Consenso de Washington seja questionado. Um

    paradigma reformado da cooperao se estabelece. Agora menos rgido, mas ainda

    promovendo o livre mercado e, nos PED, conferindo ao Estado a responsabilidade em setores

    como educao, sade e segurana. A preocupao com a erradicao da pobreza volta a ter

    espao nos objetivos da Cooperao para o Desenvolvimento, explicitamente definidos em

    1995, em Copenhague, na Conferncia Sobre Desenvolvimento Social.

    Muitos crticos e muitos organismos multilaterais, como o PNUD, compartilham a

    ideia de que a cooperao Sul-Sul no representaria simples e unicamente uma alternativa ao

    antigo modelo de cooperao Norte-Sul, mas se apresentaria tambm como uma estratgia

    complementar a ele, uma vez que os pases em desenvolvimento enfrentam problemas de

    mesma natureza, bem como possuem ecossistemas e condies sociais semelhantes

    (IGLESIAS PUENTE, 2010). Nesse sentido, buscando ajustar-se a atual conjuntura das

    relaes internacionais, pretende-se formular uma nova frente entendida como um processo

    de cooperao Sul-Sul, que objetiva a discusso e a defesa conjunta de interesses

    relativamente comuns aos pases em desenvolvimento ante os desenvolvidos.

    Ao contrrio da cooperao Norte-Sul que d prioridade a uma demanda gerada

    pelos temas previamente estabelecidos para o financiamento, as iniciativas Sul-Sul se

    direcionam para as necessidades mais urgentes dos pases em desenvolvimento. Essa frente se

    caracteriza ainda pela nfase solidariedade motivadora da cooperao. Em contraposio s

    14

    De acordo com Iglesias Puente (2010), o Banco Mundial, em 2005, define a boa governana como incluindo no mnimo sete aspectos: a democracia participativa, responsabilizao (accountability), estabilidade poltica e

    ausncia de violncia, eficincia governamental ou ao menos sua percepo pelos cidados, marco regulatrio

    estvel, imprio da lei (rule of law) e transparncia, que implica controle da corrupo.

    ThamirysHighlight

  • 28

    condicionalidades15

    caractersticas da cooperao tradicional, a cooperao Sul-Sul estaria,

    portanto, desvinculada de interesses diferentes da promoo do desenvolvimento. Como

    afirma Corra (2010, p.91), [t]rata-se de uma viso idealista da cooperao internacional,

    que no deixa de estar tambm presente no discurso dos pases doadores. De fato, no existe

    cooperao desinteressada. Vale esclarecer: dizer que no existe cooperao desinteressada

    no significa dizer que ela seja interesseira. A existncia de um interesse no qualifica de

    maneira negativa a cooperao, chegando at a ser algo natural desse tipo de relao.

    Outra caracterstica da cooperao Sul-Sul sua tendncia horizontalidade,

    entendida como uma relao estabelecida entre parceiros com condies semelhantes.

    importante mencionar que esse termo no de todo apropriado, pois, mesmo entre os PED,

    existe uma grande heterogeneidade em termos de desenvolvimento, o que pode representar o

    risco de uma relao vertical se estabelecer. Nesse ponto, a maneira pela qual a cooperao

    ser operacionalizada determinante para evidenciar se o discurso de horizontalidade est ou

    no sendo aplicado na prtica (CORRA, 2010).

    Por fim, cabe ressaltar que o nosso objetivo no versar sobre a melhor modalidade

    de cooperao. Ao contrrio, achamos importante apresentar o debate Norte-Sul e a

    problemtica do desenvolvimento como um tema que detm bastante importncia e que por

    muito tempo tem estado presente na agenda internacional. Nesse debate, a cooperao

    internacional tem sido uma ferramenta de suma importncia para a promoo do

    desenvolvimento e, por isso mesmo, no deve ficar sedimentada em uma nica estratgia de

    desenvolvimento. Deste modo, importante que ela esteja sempre aberta a possibilidades

    inovadoras e construtivas. Essas possibilidades devem, portanto, ser conduzidas de maneira

    que se tenha o melhor aproveitando possvel dos investimentos empregados e sempre de

    acordo com as diferentes realidades e necessidades dos pases.

    Como se poder demonstrar no captulo seguinte, causar dependncia e acentuar a

    desigualdade entre os pases foge da essncia dos objetivos da CID. Nesse sentido, a questo

    do desenvolvimento deve ser encarada com cuidado e seriedade, principalmente, porque a

    pobreza e a desigualdade ainda esto acentuadamente presentes no mundo como um todo.

    nesse cenrio, que emerge um paradigma de desenvolvimento, mais humano e sustentvel,

    que no deve ser de forma alguma negligenciado. Por isso essencial perceber a cooperao

    tcnica como uma alternativa que tem grandes chances de contribuir para melhorar a

    15

    Em tese, as condicionalidades tm o objetivo de oferecer bases institucionais e gerenciais que favoream o desenvolvimento da cooperao. Contudo, as condicionalidades podem assumir formas nocivas aos PED. Em

    alguns casos, por exemplo, as condicionalidades poderiam ter o formato de contrapartidas negociadas de maneira

    transparente com o pas beneficirio. Para maiores informaes ver Corra (2010).

    ThamirysHighlight

    ThamirysHighlight

  • 29

    competitividade das economias e, consequentemente, para dirimir a pobreza e reduzir o fosso

    entre ricos e pobres.

  • 30

    CAPTULO 2 - A GLOBALIZAO NO CONTEXTO DA COOPERAO INTERNACIONAL

    Como dito no captulo anterior, a cooperao tcnica internacional, tal como a

    conhecemos hoje, surge no contexto da reconstruo europeia e asitica, j no final da dcada

    de 1940. Desde sua origem, ela faz parte da Ajuda Oficial para o Desenvolvimento16

    (AOD),

    e tem como objetivo ltimo o preenchimento das lacunas existentes nos pases, de modo que

    estes possam aumentar seus nveis de desenvolvimento.

    A globalizao, por sua vez, descrita por Hurrell e Woods (2000) como um

    processo conduzido pelo desenvolvimento tecnolgico e caracterizado pela crescente

    interdependncia global, que ocorre na medida em que o fluxo do dinheiro, das pessoas, dos

    valores, da informao e das ideias corre cada vez mais rapidamente atravs das fronteiras

    nacionais.

    Esse fenmeno recente tem sua gnese na construo da ordem capitalista liberal e,

    desde sua fase inicial, nos sculos XV e XVI, o mundo vem sendo testemunha dos avanos da

    cincia, da tcnica e da tecnologia. Dessa maneira, a formao do processo da globalizao

    permeia o advento do capitalismo comercial mercantilista, com a expanso martima europeia,

    e, posteriormente, com a chegada do capitalismo industrial (JAGUARIBE, 1994). Portanto,

    ainda em sua formao, esse processo est aliado predominncia da ideologia liberal de

    Adam Smith e doutrina do laissez-faire, a partir do sculo XVIII.

    A globalizao, junto das frentes Norte-Sul e Sul-Sul de cooperao internacional,

    foi uma das dinmicas que exerceu considervel influencia na Cooperao Internacional para

    o Desenvolvimento (CID). Isso porque, como previne Browne (2002), no se pode negar que

    ela tem sua participao no desenvolvimento das capacidades individuais, institucionais e

    sociais. Esse fenmeno, nas suas mais variadas faces (econmica, financeira, tecnolgica,

    informacional, etc.) gera efeitos que no podem ser negados, sejam eles positivos ou

    negativos. A propsito, preciso mencionar que a globalizao, particularmente em sua face

    econmica, foi bastante criticada por agravar a pobreza nos pases em desenvolvimento

    (PED). Tais crticas colaboraram para a emergncia de um novo paradigma de

    desenvolvimento, cuja repercusso tem alcance direto na CID.

    Por este motivo, este captulo se prope a refletir sobre o processo de globalizao,

    bem como, a discutir suas implicaes no que se refere aos paradigmas do desenvolvimento e,

    consequentemente, cooperao internacional. Porm, acreditamos que seja prudente tratar

    16

    Atualmente, d-se preferncia expresso Cooperao Internacional para o Desenvolvimento.

  • 31

    antes do importante papel que a tecnologia desempenha na promoo do desenvolvimento.

    Dessa forma, o presente captulo ser divido em quatro tpicos distintos. O primeiro (2.1)

    tratar da tecnologia como agente propulsor do desenvolvimento. O segundo (2.2) abordar a

    atuao negativa da globalizao como agravante das desigualdades intra e interestatais. Em

    consequncia dessa problemtica, o terceiro tpico (2.3) discutir a emergncia de um

    paradigma de desenvolvimento que, alm do crescimento econmico, incluir os aspectos

    sociais e ambientais. Por fim, o ltimo tpico (2.4) versar sobre uma modalidade de

    cooperao que, pelo menos no nvel do discurso, abraa esse novo paradigma: a cooperao

    horizontal.

    2.1 A TECNOLOGIA COMO UMA ALAVANCA PARA O DESENVOLVIMENTO

    O desenvolvimento tecnolgico se tornou um elemento primordial para o

    crescimento das economias e o progresso das sociedades, consistindo, por isso mesmo, em

    uma representao de poder. Como efeito colateral, possibilitou a interdependncia das

    economias e o estreitamento das relaes entre culturas e pessoas, gerando o fenmeno que

    ns conhecemos por globalizao. Sobre o assunto vale destacar, diga-se de passagem, que o

    desenvolvimento tecnolgico um dos grandes elementos de diferenciao entre pases

    desenvolvidos e pases em vias de desenvolvimento. Em consonncia, Hlio Jaguaribe (1994,

    p. 72 -73) atentamente observa:

    interessante recordar que a diferena gigantesca que hoje separa alguns pases do

    Sul de alguns pases do Norte um fenmeno histrico relativamente recente. At o

    sculo XV, diria mesmo at o sculo XVI, todas as sociedades integrantes de

    grandes civilizaes tinham padres de vida equivalentes. [...] A diferenciao se

    processa medida que a Europa ingressa na revoluo mercantil, atravs do

    comrcio internacional, num primeiro momento, depois por intermdio da

    explorao das colnias, passando, logo a seguir, a obter vantagens crescentes sobre

    os pases que so sociedades agrrias estticas.

    Marcovitch (1994a) corrobora este pensamento quando lembra que, h muito tempo,

    nos grandes centros desenvolvidos que acontece a produo tecnolgica, o que ocorre pelo

    fato de esses pases possurem capital suficiente para investir em universidades e financiar as

    custosas pesquisas cientficas. Por sua vez, os pases em desenvolvimento carecem de capital

    e/ou de investimentos nessa rea, afastando-se da produo cientfica que resulta em

  • 32

    tecnologia. Dessa forma, a maior parte da tecnologia utilizada pelo terceiro mundo , em

    grande medida, importada dos pases desenvolvidos.

    Com o Brasil no ocorre diferente. Luiz Alfredo Paulin (1994) adverte que, embora

    os esforos domsticos para promover o desenvolvimento tecnolgico brasileiro sejam

    tmidos e voltados para a absoro e adaptao da tecnologia s condies locais, o recente

    progresso foi baseado na transferncia de tecnologia oriunda dos pases desenvolvidos.

    Com efeito, a simples exportao de tecnologia no suficiente para a superao do

    atraso tecnolgico, o que s acontecer a partir do momento em que [os PED] tiverem

    pessoal capacitado tanto para absorver tecnologia importada como para gerar tecnologia

    prpria (PAULIN, 1994, p.624). S assim a tecnologia deixar de ser um fator que gera

    dependncia e passar a atuar como uma alavanca para o desenvolvimento.

    Recentemente, a Presidente Dilma Rousseff (2012), em pronunciamento por ocasio

    do Sete de Setembro, afirmou que para tornar o modelo de desenvolvimento mais vigoroso, o

    governo ir incorporar um novo elemento ao trip estabilidade-crescimento-incluso: a

    competitividade. De acordo com a Presidente, ser competitivo significa baixar custos de

    produo e baixar preos de produtos para gerar emprego e gerar renda. J para Marcovitch

    (1994b, p.56), a competitividade descreve a capacidade dessa economia em incrementar e

    sustentar sua participao no mercado internacional de bens e servios, com a elevao

    simultnea do nvel de vida da populao.

    Sem dvida, a competitividade de suma importncia para elevar os ndices de

    desenvolvimento de um pas. Entretanto, para se atingir o desenvolvimento competitivo, so

    de suma importncia elementos como a educao, o suporte pesquisa, legislao fiscal e

    trabalhista, energia, comunicao, infraestrutura de transportes, etc. A cooperao tcnica

    internacional, por sua vez, no fica de fora desse conjunto, pois a competio que estimula

    os acordos de cooperao para elevar a competitividade. Nesse sentido, alianas estratgicas

    vm sendo feitas com o objetivo de elevar a competitividade dos pases e promover o

    desenvolvimento (MARCOVITCH, 1994b). Assim, fica demonstrado o papel fundamental do

    Estado nesse desafio, como um agente atuante e estimulador de um ambiente frtil para o

    desenvolvimento competitivo.

  • 33

    2.2 A COOPERAO TCNICA INTERNACIONAL LUZ DA DINMICA DA GLOBALIZAO

    Foi na medida dos avanos da globalizao e da consequente disseminao das

    informaes, da tcnica e da tecnologia, que a cooperao tcnica internacional se tornou uma

    das dinmicas mais importantes do ps-guerra. Desde ento, a cooperao tcnica passou a

    ser adotada como prtica institucionalizada pelos Estados, a partir das iniciativas de

    reconstruo promovidas pelo Plano Marshall.

    Ao observar-se a dinmica da cooperao tcnica inserindo-a no contexto da

    globalizao, torna-se curiosa a percepo de como esses dois elementos exercem influencia

    um no outro e, como se ver posteriormente, na promoo do desenvolvimento. Como dito

    antes, a concepo de desenvolvimento da poca estava fortemente atrelada ao

    desenvolvimento econmico. Portanto, na medida em que o Plano Marshall busca conseguir o

    desenvolvimento da Europa durante a Guerra Fria, por meio da cooperao internacional17

    ,

    ele cria um terreno cada vez mais frtil para o aprofundamento do processo da globalizao,

    na mesma proporo em que o desenvolvimento vai sendo atingido.

    Portanto, como apropriadamente sustenta Marcovitch (1994b), preciso

    compreender o intercmbio da cincia e a tecnologia como tendo uma importncia essencial

    na promoo do desenvolvimento, na medida em que o conhecimento cientfico e tecnolgico

    constitui um fator de produo essencial para a competitividade das economias.

    Nesse cenrio, a cooperao tcnica e cientfica torna-se cada vez mais relevante

    para que se possa atender demanda do desenvolvimento e da insero internacional em uma

    economia globalizada (MARCOVITCH, 1994b). Ela se apresenta como o eixo de uma

    alternativa eficaz que visa promoo do desenvolvimento sustentvel e diminuio das

    desigualdades intraestatais e interestatais, pois combate o monoplio da tecnologia e da

    cincia que contribui cada vez mais para o alargamento do fosso Norte-Sul.

    Como se poder ver no tpico seguinte, os efeitos negativos da globalizao

    acabaram por gerar demanda por uma globalizao que possibilite um crescimento econmico

    em harmonia com o bem estar do meio ambiente e da sociedade. Essa nova problemtica

    alcanaria o debate sobre o desenvolvimento, culminando com o surgimento de um novo

    paradigma que, alm do crescimento econmico, inclui temas como a pobreza, a

    sustentabilidade ambiental e a igualdade entre gneros.

    17

    No perodo, cooperao internacional era entendida como assistncia tcnica e financeira. Ver captulo 1.

  • 34

    2.3 A GLOBALIZAO COMO AGENTE INTENSIFICADOR DAS DESIGUALDADES

    Os impactos negativos da globalizao econmica e a consequente insatisfao com

    as polticas neoliberais evidenciam amplas contradies quanto aos objetivos e os resultados

    da Cooperao Internacional para o Desenvolvimento, expostas ante as tenses decorrentes

    dos impasses do desenvolvimento e do aprofundamento do fosso entre os pases do Norte e do

    Sul (ABONG, 2003).

    Como aponta Derksen (2003), desde que os propulsores primrios nos campos

    poltico e econmico passaram a ser o Fundo Monetrio Internacional (FMI), o Banco

    Mundial18

    e os Estados Unidos, ocorreu uma intensificao do processo de globalizao, cuja

    face econmica corresponde energizao do alastramento da ideologia capitalista liberal.

    Uma vez inseridos em um ambiente predominantemente liberal, os pases so praticamente

    forados a se comportarem como manda a boa conduta: liberando seus mercados, reduzindo

    ao mximo a interveno estatal e prezando pela estabilidade econmica.

    Segundo o iderio neoliberal, o desenvolvimento, a democracia e a melhoria das

    condies sociais decorrem automaticamente da liberalizao econmica. Contudo, como

    apropriadamente recorda Brum (1998, p.104), a prtica neoliberal evidenciou o contrrio:

    [e]m economias em diferentes graus de desenvolvimento, os mais fortes levam vantagem.

    Sem a presena forte do poder poltico do Estado, a tendncia dominante a concentrao da

    riqueza e do poder.

    Decerto, denominador comum descrever as polticas de ajustes estruturais e

    programas de estabilizao macroeconmica como tendo um impacto calamitoso nas polticas

    sociais e nos coeficientes de pobreza em muitos pases. Nesse ponto, Carlos Lopes (2011)

    acrescenta que, na sequencia das primeiras reformas adotadas pelos pases africanos e latino-

    americanos endividados - incluindo cortes nas despesas pblicas, introduo de medidas de

    recuperao de custos nas reas da sade e educao, e redues na proteo industrial ,

    ocorreu um claro aumento do desemprego e da pobreza.

    Conforme Brum (1998, p.106), em 1996, por ocasio da Conferncia sobre o

    Pensamento e a Prtica do Desenvolvimento, que teve o propsito de fazer uma reviso sobre

    o Consenso de Washington, os participantes concluram que

    18

    Quando foi criado em 1944, na Conferencia de Bretton Woods, o Banco Mundial tinha o nome de Banco

    Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD).

  • 35

    o Consenso de Washington acelerou a globalizao atravs do aumento dos fluxos

    financeiros, ajudou na desregulamentao da economia e no aumento dos fundos

    privados, favoreceu o incremento do comrcio mundial, mas no conseguiu acelerar

    satisfatoriamente o crescimento econmico nem atenuar a desigualdade social na

    Amrica Latina.

    Com efeito, as polticas do Consenso, formulado em 1989 (BRUM, 1998), e da Boa

    Governana no s deixaram de atenuar a desigualdade social como afetaram (e ainda

    afetam) negativamente o bem estar da sociedade, especialmente a dos pases em

    desenvolvimento. Isso, porque, no mbito domstico, as medidas de arrocho so sustentadas

    pelas camadas mais pobres da sociedade. Dessa maneira, a disparidade entre ricos e pobres

    cresce no s no que diz respeito ao mbito interestatal, mas tambm ao intraestatal, o que faz

    com que a face econmica da globalizao seja frequentemente qualificada como divisor

    Norte-Sul (DERKSEN, 2003).

    Refletindo sobre o aspecto da globalizao como agente intensificador das

    desigualdades, fora e dentro do Estado, Harry Derksen (2003), de maneira apropriada, chama

    ateno para a necessidade da adeso a uma nova forma de globalizao. Uma globalizao

    que combata o divisor ns - eles e que propicie o equilbrio do chamado 3Ps: Profit

    (lucro), Planet (planeta) e People (pessoas). Em outras palavras, uma globalizao na qual as

    metas econmicas estejam em consonncia com as metas sociais e ambientais e que tenha

    uma atuao no s de cima para baixo, mas tambm de baixo para cima.

    Por fim, este o cenrio que abre o debate sobre os princpios que norteiam o eixo

    vertical da cooperao para o desenvolvimento, e ainda sobre os que viriam a nortear o eixo

    horizontal, que j vinha sendo desenhado. Esse debate, cuja influncia alcana as relaes

    bilaterais e multilaterais da cooperao para o desenvolvimento, colabora para a visualizao

    de novas tendncias, bem como para a criao de polticas que visem difuso dos

    mecanismos de desenvolvimento.

    2.4 OS NOVOS PARADIGMAS DO DESENVOLVIMENTO

    Aps a Segunda Guerra Mundial a poltica econmica da Amrica Latina sofreu

    constantes mudanas ao longo dos anos. A industrializao, durante o perodo do conflito

    estava voltada forosamente para dentro dos pases, em funo da escassez de produtos para a

  • 36

    importao, passando a ser formalizada como poltica explcita de industrializao para a

    substituio de importaes. No perodo, a maioria dos economistas acreditava que o

    crescimento e a transformao econmica dependiam do processo de acumulao de capital.

    De maneira consoante, acreditava-se cada vez mais na necessidade do avano tecnolgico e

    do treinamento vocacional, como se observa com a criao, dentre outros, do Servio

    Nacional de Aprendizagem Industrial, o Senai (CARDOSO JR, 2009).

    Segundo Cardoso Jr. (2009), na dcada de 1950, a apreciao da economia latino

    americana, associada s crticas em relao s doutrinas at ento determinantes, levou a uma

    verdadeira revoluo na forma de enxergar o fenmeno do subdesenvolvimento. Como bem

    observa o autor, o subdesenvolvimento deixou de ser concebido como uma fase de

    retardamento em um processo linear que culmina com as economias avanadas e passa a ser

    percebido como uma expresso das diferenas estruturais, cujo agravamento se d em

    funo da acentuada assimetria do sistema econmico.

    A partir de ento, um novo paradigma de desenvolvimento predominou na maioria

    dos PED (ao menos como meta desejada, porm raramente atingida em sua plenitude) at o

    final dos anos 1970: o chamado modelo de insero internacional soberana (CARDOSO

    JR, 2009). Jos Luis Fiori (2010), ao definir uma insero soberana, parte do pressuposto de

    que

    um estado e um governo que se proponham (sic.) expandir o seu poder

    internacional, inevitavelmente tero que questionar e lutar contra a distribuio

    prvia do poder, dentro do prprio sistema. Como condio preliminar, eles tero

    que ter sua prpria teoria e sua prpria leitura dos fatos, dos conflitos, e das

    assimetrias e disputas globais, e de cada um dos tabuleiros geopolticos regionais ao redor do mundo.

    Esse conceito representa nada mais que a ideia de que os pases devem deter o

    espao necessrio para adotar, com a exibilidade necessria, as polticas e tticas de

    desenvolvimento mais apropriadas a seus objetivos polticos, econmicos e socioculturais,

    sem deixar de levar em considerao as especicidades emanadas de suas situaes concretas

    (CARDOSO JR, 2009).

    Sendo assim, o modelo de insero soberana repousava em uma estratgia voltada

    para fora e baseava-se, de acordo com Cardoso Jr. (2009, p.22), em uma forte formao de

    capital e em uma dinmica de expanso de exportaes tradicionais e no tradicionais. Dessa

    maneira, pretendia-se que os pases em desenvolvimento desfrutassem de espao suficiente

  • 37

    para obter a acelerao da formao de capital, alm de variar suas estruturas produtivas e

    dar ao crescimento um sentido distributivo de equidade.

    Apesar das deficincias desse modelo, ele foi capaz de produzir a mais alta e

    sustentada taxa de crescimento dos perodos de expanso das economias latino-americanas.

    Contudo, alguns eventos influenciaram o abando do modelo de insero soberana

    (CARDOSO JR, 2009). Para Brum (1998), a recesso nos pases desenvolvidos, ocasionada

    pelas crises do sistema de paridades fixas ocorridas em 1970, culminou com o fim do sistema

    de Bretton Woods. Em seguida, j aps a crise do setor externo, nos anos de 1980, as agncias

    de desenvolvimento norte-americanas passaram a recomendar aos pases latinos

    americanos, obrigados a recorrer ao socorro destes, a adoo de polticas neoliberais para

    enfrentar o endividamento externo e a crise econmica que vivenciavam.

    Essas recomendaes, consolidadas no Consenso de Washington e associadas ao

    programa de ajustes do FMI, provocaram o surgimento de um paradigma de desenvolvimento

    drasticamente diferente daquele baseado em um setor pblico forte e atuante na estratgia do

    desenvolvimento. O ponto chave deixa de ser a acumulao de capital e volta-se para a

    capacidade das foras de mercado em melhorar a eficincia na alocao dos fatores de

    produo. Portanto, o Consenso de Washington adota uma conduta de incentivo

    privatizao, desregulamentao e liberalizao comercial e financeira, com o propsito

    de melhorar a alocao de recursos e de reduzir a necessidade de ao discricionria do

    Estado (CARDOSO JR, 2009).

    Adequadamente, Cardoso Jr. (2009) sustenta que apesar das polticas de ajuste e

    estabilizao terem ajudado a Amrica Latina a combater a inflao crnica, as promessas do

    Consenso no que se refere dinmica do crescimento e formao de capital no se

    concretizaram, o que alimentou as crticas contra o novo modelo de desenvolvimento.

    No que se refere esfera social, as implicaes dos programas ortodoxos geraram

    insatisfao ainda maior. Ainda conforme Cardoso Jr. (2009), houve aumento do desemprego,

    queda considervel dos salrios, isso sem mencionar o sensvel aumento da pobreza. Assim, o

    agravamento das condies sociais pressionou para que a reduo da pobreza fosse o foco da

    prxima estratgia para o desenvolvimento.

    Dessa maneira, a gravidade do problema da pobreza foi reconhecido pela

    Organizao das Naes Unidas em 2000, com a aceitao dos Objetivos de Desenvolvimento

    do Milnio. A partir dos Objetivos, o conceito de desenvolvimento passou a incorporar temas

    diversos como a pobreza, a sustentabilidade ambiental e a igualdade entre gneros

    (CARDOSO JR, 2009).

  • 38

    Esse conceito de desenvolvimento mais abrangente ganha destaque no debate sobre a

    cooperao para o desenvolvimento. Como aponta Iglesias Puente (2010, p.49), um

    paradigma reformado para a cooperao se estabelece. Agora menos rgido, porm ainda

    atendendo as virtudes do livre mercado e da liberalizao. No entanto, nos PED, as reas de

    educao bsica, sade, segurana pblica, proteo ambiental e formulao de polticas

    econmicas, cujas atribuies demandam instituies fortes, passam a ficar sob

    responsabilidade do Estado. De acordo com esse novo paradigma, a cooperao

    para o desenvolvimento deve tornar-se mais seletiva e colaborar para o desenvolvimento de

    capacidades19

    . Isso sem mencionar na importncia que a erradicao da pobreza volta a ter

    para a cooperao.

    Derksen (2003, p.26-27), contudo, chama a ateno para um elemento importante:

    segundo ele, o FMI ainda define a pobreza como um fator econmico. A partir da anlise do

    conceito de pobreza, que o FMI atribui como sendo um poder de compra de menos de US$ 1

    por dia, ele conclui que a pobreza considerada um fracasso econmico, podendo, na

    lgica do FMI e do Banco Mundial, ser solucionada a partir de uma ttica pr-pobre e pela

    criao de ambientes habilitados para pobres. As estratgias dessas instituies, entretanto,

    tm nos levado a perceber o agravamento das desigualdades e da excluso de grandes grupos

    de pessoas. Portanto, a construo de um novo paradigma de desenvolvimento se faz

    necessria, no devendo a pobreza ser entendida como a falta de recursos ou como um

    fenmeno econmico, mas sim com um dficit de direitos humanos. Para o autor, as

    pessoas pobres so pessoas com direitos direitos que no esto sendo atendidos. Dessa

    forma, a pobreza deve ser entendida como o resultado da falha em assegurar direitos como, a

    ttulo de exemplo, a incluso sociopoltica e a reduo da violncia. Tal viso a respeito da

    pobreza, como falha em assegurar direitos, constitui um novo paradigma de

    desenvolvimento.

    19

    O desenvolvimento de capacidades, pelo menos em tese, tem sido o objetivo da cooperao tcnica para o

    desenvolvimento. De acordo com os Princpios Diretivos do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento o termo capacidades pode ser entendido como a habilidade de atores [...] para desempenhar funes especficas (ou buscar objetivos especficos) de forma efetiva, eficiente e sustentvel (LOPES, C., 2005). J o desenvolvimento de capacidades entendido atualmente como um processo tridimensional, pois atua

    nos nveis individual, institucional e social (BROWNE, 2002). No nvel individual, as capacidades so

    percebidas como aptides e habilidades dos recursos humanos. No nvel institucional, alm das habilidades e

    aptides das pessoas que compem a organizao, as capacidades envolvem a maneira como as instituies so

    estruturadas, como elas atuam e se relacionam com o ambiente em que esto imersas (LOPES, C., 2005). Logo,

    no nvel institucional, as capacidades envolvem as leis, os procedimentos, os sistemas e os costumes. Por ltimo,

    o nvel social envolve a abertura e o alargamento das oportunidades que possibilitam que as pessoas usem e

    expandam suas habilidades ao mximo (BROWNE, 2002).

  • 39

    Desde que Derksen escreveu seu texto, ocorreram inovaes consideravelmente

    importantes a esse respeito. A propsito, cabe mencionar que o Relatrio de Desenvolvimento

    Humano do ano de 2010, elaborado pelo PNUD, introduz novos ndices para a pobreza.

    Dentre eles, o ndice de pobreza multidimensional complementa as avaliaes de pobreza

    baseadas no rendimento, levando em conta diversos fatores relativos ao nvel de vida das

    famlias, como acesso a escolaridade, gua potvel e cuidados com a sade

    (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 2010).

    Embora nos ltimos anos tenham-se dado saltos positivos na forma de enxergar o

    desenvolvimento, a vitria na luta para a promoo de um desenvolvimento mais humano e

    inclusivo est muito distante dos discursos e conceituaes. Nesse sentido, Calos Lopes

    (2005) afirma que para concretizar uma causa como essa, imprescindvel questionar os

    sistemas, processos e ferramentas que guiam a prtica do desenvolvimento. Dessa forma,

    nenhuma outra rea pode se beneficiar mais de tal movimento do que a cooperao tcnica e

    o desenvolvimento de capacidades.

    evidente que a cooperao tcnica e o desenvolvimento de capacidades esto

    vivenciando um perodo de transio, cuja origem est no cerne do debate sobre os novos

    paradigmas de desenvolvimento. O quadro 1, demonstra essa nova realidade. Como se pode

    observar, estamos vivenciando a transio de um paradigma de desenvolvimento de

    capacidades que objetiva a melhoria das condies econmicas e sociais (diga-se de

    passagem, com nfase nas primeiras) para um novo paradigma que visa transformao

    social. Assim, enquanto o antigo paradigma de desenvolvimento encara a assimetria entre os

    pases como algo que pode ser superado pelo esprito de parceria entre os pases, agindo no

    sentido de transferir o conhecimento do Norte para o Sul e com o intuito de desenvolver os

    recursos humanos e tornar as instituies mais fortes, no novo paradigma tais condutas no

    so suficientes. O ideal seria que o conhecimento no fosse simplesmente transferido, mas

    adquirido e combinado com o saber local, de maneira que a relao assimtrica seja

    compensada, para que no s as capacidades individuais e institucionais sejam desenvolvidas,

    como tambm as sociais, de forma que as pessoas possam expandir suas habilidades ao

    mximo.

  • 40

    QUADRO 1- Um novo paradigma para o desenvolvimento de capacidades

    Paradigma atual Novo paradigma

    Natureza do

    desenvolvimento

    Melhoria das condies

    econmicas e sociais

    Transformao social, at

    mesmo se valendo das

    capacidades certas

    Condies para uma

    cooperao efetiva para o

    desenvolvimento

    Boas polticas que so

    prescritas externamente

    Boas polticas que tm de ser

    domsticas

    Relao assimtrica entre

    doadores e recebedores

    Deve ser combatida de forma

    geral, por meio de um

    esprito de parceria e de um

    esprito mtuo

    Deve ser tratada

    especificamente como um

    problema, ao se tornarem

    medidas compensatrias

    Desenvolvimento de

    capacidades

    Desenvolvimento de recursos

    humanos, combinados com

    instituies mais fortes

    Trs camadas de capacidade

    interligadas: individual,

    institucional e social

    Aquisio de conhecimento O conhecimento pode ser

    transferido

    O conhecimento tem de ser

    adquirido

    Formas mais importantes

    de conhecimento

    O conhecimento

    desenvolvido no hemisfrio

    norte exportado para o sul

    O conhecimento local

    combinado com o