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A Coruja Natália Uma história do STRI com ilustrações de Paulo Alves STRI Rapinas Nocturnas de Portugal http://rapinasnocturnas.blogspot.pt um projecto

A Coruja Natália

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Uma aventura da coruja Natália

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Page 1: A Coruja Natália

A Coruja Natália

Uma história do STRI com ilustrações de Paulo Alves

STRI – Rapinas Nocturnas de Portugal http://rapinasnocturnas.blogspot.pt

um projecto

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A coruja Natália sempre foi teimosa. Ainda bebé, com muito poucas penas,

queria voar. Vinha para fora do buraco onde nasceu, lá bem no alto de um

sobreiro, e, pé ante pé, avançava até à extremidade do ramo mais comprido

da árvore. Era uma caminhada corajosa e Natália tinha sempre alguma

dificuldade em manter o equilíbrio, na parte final do caminho. O ramo, de tão

fino, balouçava ao mais pequeno sopro de vento. Mas era dali que Natália via

tudo sem impedimentos e achava ser o melhor local, para treinar os seus

primeiros voos. Natália gostava de ver o que existia para lá da sua árvore.

É claro que todos sabemos que as corujas vêem muito bem. Pois, isso todos

sabem. O problema, naquela árvore, o tal sobreiro, eram as folhas: a

quantidade de ramos finos e folhas era tão grande que só mesmo daquele

ramo comprido, podia ver-se para fora da árvore. Naquele sítio, mesmo no

final do ramo, não havia folhas e, por esta razão, desde o primeiro dia em que

Natália descobriu isso, fazia o mesmo todas as noites - pé ante pé, como já

dissemos, lá ia ela até à sua varanda, de onde podia avistar as luzes coloridas,

bem distantes, da cidade. E, nesses momentos, sonhava com saber voar.

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Um dia, uma noite, quero eu dizer, Natália esperava ansiosamente que os pais

saíssem. Ao contrário da sua irmã, nem sequer pensava em comer, tal era a

vontade de sair de casa. Não interessava nada se os pais iam hoje à quinta

grande, de onde vinham os melhores ratos, ou aos campos próximos da igreja

amarela, abandonada há muito, de onde vinham, também, uns excelentes

musaranhos. Nada disso tinha importância. Natália ficou bem quieta, junto à

saída de casa e só lhe vimos um sorriso assim que os pais partiram, para mais

uma noite de caça.

Como sempre, ao sair, os pais tornaram a alertar as duas irmãs. Deviam ficar

sossegadas e em silêncio, dentro de casa. Só assim poderiam aprender todos

os barulhos que vinham do campo, à noite. O que, insistia sempre a mãe, era

muito importante para uma coruja. Devemos saber ouvir, dizia ela, só assim

poderemos viver muitos anos. Mas Natália, assim que os pais saíram,

esqueceu tudo o que lhe tinham dito e, zás, para fora de casa.

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Acontece que, nessa noite, o vento estava um pouco mais forte que nos outros

dias. Natália até já tinha pensado nisso, mesmo antes de sair de casa, tal era o

ruído que as folhas faziam. Assim, com um pouco mais de dificuldade, a nossa

coruja teimosa lá foi andando; com passos curtos, entusiasmada, apertava as

garras contra o ramo e seguia um pouco trémula, equilibrando-se o melhor que

podia com as asas. Com um pouco mais de dificuldade, chegou ao seu

cantinho habitual que, hoje, estava particularmente bonito - sem nuvens, viam-

se bem as cores das luzes: amarelas, azuis e encarnadas.

Umas eram muito brilhantes e cintilavam como as estrelas, só um pouco mais

coloridas, e Natália, com saltinhos de entusiasmo, abanava as poucas penas

que tinha e, deste modo, a cada batidela de asas, conseguia elevar-se no ar. E

foi assim, por causa destas batidelas, que, num instante, o vento ajudou

Natália a fazer o que todas as noites ela tentava ter coragem para fazer: voar.

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Bem… voar, voar não voou. Ao esvoaçar, com pequenos saltos, Natália nunca

pensou que o vento pudesse soprar um pouco mais forte e, num instante, foi

empurrada para a frente. Acabou por cair a uma velocidade tão grande que

quase não teve tempo para pensar. Batia as asas, torcia-se, alongava o curto

pescoço e esticava as pernas, aflita, tentando prender-se a algum ramo, mas

… nada! Sentiu o vento na cara, um ruído estranho, os olhos cada vez mais

secos e acabou por desistir – sem esperança, fechou os olhos e deixou-se cair

até ao chão.

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No meio disto tudo, acabou por ter muita sorte. Foi mesmo cair por cima de

umas folhas secas que o vento, o mesmo vento que a tinha empurrado,

arrastou para junto do sobreiro. Assustada, olhou para cima, ainda sem

perceber bem o que lhe tinha acontecido. Reconheceu a sua árvore e saltitou

para junto do tronco. Bem encostada ao tronco, empurrava as costas contra

este e olhava em todas as direcções. Não havia nada a fazer: tinha caído. Até

os pais chegarem, tinha de manter-se junto à árvore.

Tudo era diferente aqui em baixo. Quase não se sentia o vento, não se viam as

luzes, era tudo mais escuro, não se viam as estrelas. Nesse momento,

lembrou-se das palavras da mãe, quando lhe dizia como era importante

ouvir… como era importante ouvir, pensou… e, imóvel, no mais absoluto

silêncio, escutou. A princípio, ouviu uns batimentos rápidos, não muito fortes, e

esboçou um sorriso. Este som era-lhe familiar, ouvia-o sempre que dormia com

a cabeça encostada ao peito da sua irmã. Era o coração, tinham-lhe dito os

pais.

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Mas, logo de seguida, ouviu um som persistente vindo de umas ervas. Ficou

parada, um pouco aflita; lembrou-se do pai, que distinguia qualquer ruído que

ouvisse no chão, mesmo lá do alto da árvore. De entre as ervas, saiu um rato

pequeno. Ficou a vê-lo afastar-se e sentiu um pouco de fome. Ganhou um

pouco mais de coragem e andou em volta da velha árvore. Mesmo junto à

base, havia uns pedaços de cortiça, colocados uns em cima dos outros.

Arrastou-se e conseguiu colocar-se no meio deles.

Assim, estava melhor, mais escondida e com possibilidade de ver tudo à sua

volta. Bastava colocar um pouco a cabeça de fora e rodá-la, para um lado e

depois para o outro; e as corujas fazem isso muito bem. Mas nem foi preciso

espreitar para fora do seu esconderijo para ouvir outro som, desta vez, mais

forte. Parecia que batiam no chão, podia até sentir as vibrações na cortiça. A

tremer, jurou nunca mais sair de casa. Espreitou com cuidado e viu um animal

que nunca tinha visto. Estava longe, mas dava para ver que era enorme,

parecia andar com alguma pressa e não tinha asas, tal como os ratos.

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Muito maior do que um rato, Natália nunca tinha visto um ser tão grande.

Como era encarnado, pensou, talvez fosse uma raposa - um dos animais que

os pais diziam sempre não gostarem muito das corujas. Pensou em como

seria fácil fugir-lhe, se soubesse voar. Sair de casa sem saber voar tinha sido

uma tolice; como entendia bem, agora, o que lhe diziam os seus pais. Suspirou

assustada. Havia pouco que pudesse fazer; restava-lhe esperar, em silêncio,

até os pais chegarem. Com alguma sorte, ela conseguiria chamá-los e eles

saberiam o que fazer.

A raposa passou a um palmo da Natália. Nunca ficaremos a saber por que

razão não a viu. Apesar de muito quieta e com a cabeça entre as asas, foi

mesmo uma sorte. As raposas encontram muitas coisas, graças ao seu

poderoso olfacto. E conseguem muito bem cheirar uma pequena coruja, à

distância. Mas não foi o que aconteceu; não nesta história. E a nossa coruja

pode muito bem guardar na memória todos os sons que ouviu, vindos da

raposa.

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Quase não se sentia o vento. Natália começou a achar que talvez fosse melhor

espreitar; afastar-se um pouco da árvore e tentar ver a sua casa. Para isso,

teria de sair deste lugar, pois, sempre que olhava para cima, só via ramos e

folhas. Cautelosamente, colocou a cabeça de fora do seu abrigo de cortiça.

Girou-a, como se fosse a luz de um farol e, de uma só vez, viu que tudo estava

sossegado em seu redor.

(Eu já vos tinha dito que as corujas conseguem ver para trás das costas, ao

rodar assim a cabeça? Pois; isso é porque não conseguem mover os olhos,

como nós, para os lados, para cima e para baixo. Olham sempre em frente e,

por isso, rodam muito bem a cabeça.)

Mas voltando à nossa história, a Natália, ao ver que estava tudo calmo, saltou

e correu até ao muro que estava mesmo ao lado. Desta forma, um pouco mais

distante da sua árvore, apercebeu-se de que os bocados de cortiça, onde se

tinha escondido, chegavam quase aos primeiros ramos da árvore. Já sabemos

que esta é uma coruja aventureira e corajosa. Teimosa, também. E foi assim

que, sem pensar duas vezes, a Natália achou que conseguiria chegar a casa.

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Um pouco receosa, saltou para cima da cortiça e olhou para o ramo, mesmo

por cima da sua cabeça. O primeiro salto que deu, e bem se esforçou, deixou-

a muito longe do seu objectivo. Olhou novamente, abanou a cabeça para os

lados, como se estivesse a dançar, e, sem retirar os olhos do ramo, dobrou um

pouco as pernas e saltou. Desta vez, esteve quase. Bateu com a cabeça no

ramo e voltou de novo à cortiça. Foi falta de jeito, pensou. Passou a asa na

cabeça; tinha sido uma pancada valente e as penas fofas evitaram um grande

galo. Sentia-se animada; com fome, mas animada com a ideia de poder

regressar a casa.

Avançou para uma terceira tentativa; dobrou as pernas novamente e, desta

vez, bateu as asas com tanta força que viu o ramo ficar para baixo, indo

agarrar-se, com o bico, a outro um pouco mais alto. Que trapalhada! Quase

caía do ramo outra vez, tal era o entusiasmo. Andou apressadamente para um

lado e para o outro. Pensava na melhor forma de ir, de ramo em ramo, até ao

cimo da árvore, até à porta da sua casa. Tinha de o fazer com cuidado, não

fosse parar ao chão, novamente.

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E assim, de ramo em ramo, umas vezes com saltos, outras elevando-se com o

bico e as garras, chegou ao ramo mais grosso, mesmo à porta de sua casa, na

copa da árvore. Tentava controlar a respiração pois tinha sido um grande

esforço. Olhou para o local onde, todas as noites, imaginava a vida fora da

árvore. Aproximou-se mais do buraco, no tronco. Exausta, saltou para dentro

de casa. Reparou na sua irmã que se encontrava deitada e de olhos fechados.

Tudo parecia tranquilo. Natália não tinha um pingo de força. Nem sequer

conseguia fechar as asas, pareciam um casaco comprido a arrastar-se pelo

chão. O que haveria de fazer? Como contar aos pais o que lhe tinha

acontecido?

O melhor seria não contar, pensou. Ficaria muito quieta, junto à sua irmã e,

assim que os pais chegassem, logo depois de comer, pois estava com uma

fome como nunca tinha tido, ouviria, muito calada, a história que eles

costumavam contar, antes de se deitarem. Estava decidido, era o melhor que

tinha a fazer. Encostou-se à irmã e sentiu um calor agradável que passava do

corpo dela para o seu. Olhou à sua volta e ficou contente por estar novamente

em casa. Quente e segura, bem encostada à irmã, que continuava a dormitar,

fechou os olhos.

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Lembrou-se da sua aventura. Agora, que o medo já passara, lembrava-se de

como tinha achado tudo tão misterioso e, ao mesmo tempo, interessante.

Pensou em como iria ser quando pudesse voar; que locais poderia conhecer.

Sorriu, mesmo de olhos fechados, e pensou que não faltava muito para o

Verão. Logo, logo, teria as penas necessárias para poder sair, primeiro, com os

pais; depois, sozinha. Aprender a caçar, conhecer lugares afastados,

diferentes e, como dizia a mãe, a seu tempo, ser capaz de voar tão rápido

como o pensamento!

Estava quase a dormir quando ouviu um barulho. Abriu os olhos e viu o pai,

logo seguido pela mãe. Pareciam também eles cansados. Comeu tudo o que

lhe deram. Brincou com a mãe enquanto o pai passava o bico nas suas penas

do pescoço. Aproximou-se mais dele e bicou-lhe carinhosamente as patas.

Encostou-se para trás e olhou os pais e a irmã – como gostava deles. Pensou,

pensou, fechou os olhos, abriu os olhos, pensou novamente e disse:

-Hoje, conto eu uma história.

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FIM

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STRI – Rapinas Nocturnas de Portugal

As aves de rapina nocturnas sempre estiveram ligadas ao mais estranho folclore.

Pouco conhecido da maioria das pessoas, é, no entanto, um grupo fascinante de aves que exerce uma atracção especial, em todos os que procuram conhecê-lo melhor.

Não pretendemos retirar o ar misterioso a estas aves. Ao reunir informação sobre as espécies existentes no território nacional, esperamos que um cada vez maior número de pessoas tenha consciência da importância destas aves e que contribua, através de um melhor conhecimento das espécies, na promoção e conservação das mesmas.

Desta forma, o que lhe propomos é que, ao ouvir o canto de uma coruja-do-mato, numa daquelas noites quentes de Primavera, não pense na lengalenga que fala de azar, mas, sim, que pode estar muito próximo de ter a sorte de ver uma.