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Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 135 Marcelo Dias Varella 1. Introdução: a descentralização das fontes de direito internacional Do século XV até o século XIX, o direito internacional focalizou assuntos essenciais para a regulação da vida internacional, tais como as fronteiras, as relações de guerra e de paz, o fluxo de pessoas, a navegação, as relações de alto-mar. Ele se opõe ao direito internacional que emerge no início do sécu- lo XX e que se caracteriza pela multiplica- ção dos assuntos tratados, entre os quais, na origem, muitos eram tipicamente ineren- tes aos assuntos internos dos Estados, tais como o meio ambiente, os direitos do ho- mem, a economia, o comércio e o regime po- lítico. Esse direito, característico de um con- texto em que prevalece a expansão da glo- balização, desenvolve-se com a vontade dos Estados de multiplicar os assuntos tratados pelo direito internacional, apesar da ausên- cia de necessidade, a priori, em vê-los trata- dos fora das fronteiras. É baseado na coope- ração. A crescente complexidade do sistema jurídico internacional Alguns problemas de coerência sistêmica Marcelo Dias Varella é Doutor em Direito pela Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbon- ne. Professor no Centro Universitário de Bra- sília, (UniCEUB). Coordenador do programa de mestrado em Direito. Pesquisador do CNPq. Sumário 1. Introdução: a descentralização das fontes de direito internacional. 2. A extensão da atri- buição das capacidades em matéria jurídica. 2.1. A atribuição das capacidades materiais. 2.2. A Atribuição das capacidades formais. 3. A ques- tão da coerência do direito internacional. 3.1. A falta de coerência entre as normas. 3.2. A fal- ta de coerência entre as técnicas de interpreta- ção jurisdicional. 4. Conclusão.

A crescente complexidade do sistema jurídico internacional · internacional que emerge no início do sécu-lo XX e que se caracteriza pela multiplica-ção dos assuntos tratados,

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Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 135

Marcelo Dias Varella

1. Introdução: a descentralização dasfontes de direito internacional

Do século XV até o século XIX, o direitointernacional focalizou assuntos essenciaispara a regulação da vida internacional, taiscomo as fronteiras, as relações de guerra ede paz, o fluxo de pessoas, a navegação, asrelações de alto-mar. Ele se opõe ao direitointernacional que emerge no início do sécu-lo XX e que se caracteriza pela multiplica-ção dos assuntos tratados, entre os quais,na origem, muitos eram tipicamente ineren-tes aos assuntos internos dos Estados, taiscomo o meio ambiente, os direitos do ho-mem, a economia, o comércio e o regime po-lítico. Esse direito, característico de um con-texto em que prevalece a expansão da glo-balização, desenvolve-se com a vontade dosEstados de multiplicar os assuntos tratadospelo direito internacional, apesar da ausên-cia de necessidade, a priori, em vê-los trata-dos fora das fronteiras. É baseado na coope-ração.

A crescente complexidade do sistemajurídico internacionalAlguns problemas de coerência sistêmica

Marcelo Dias Varella é Doutor em Direitopela Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbon-ne. Professor no Centro Universitário de Bra-sília, (UniCEUB). Coordenador do programade mestrado em Direito. Pesquisador do CNPq.

Sumário1. Introdução: a descentralização das fontes

de direito internacional. 2. A extensão da atri-buição das capacidades em matéria jurídica. 2.1.A atribuição das capacidades materiais. 2.2. AAtribuição das capacidades formais. 3. A ques-tão da coerência do direito internacional. 3.1.A falta de coerência entre as normas. 3.2. A fal-ta de coerência entre as técnicas de interpreta-ção jurisdicional. 4. Conclusão.

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Nosso objetivo é estudar essa expansãode complexidade do direito internacional,em função da coerência (ou da incoerência)do conjunto jurídico internacional, paradeterminar se há realmente um sistema jurí-dico, isso sendo entendido como um con-junto coerente de normas e de princípiosjurídicos. Para isso, é preciso, primeiramen-te, entender a descentralização das fontesdo direito internacional com a significativaexpansão do direito internacional, que do-ravante abrange temas que eram peculiaresao direito interno e à criação de instrumen-tos de controle desse novo direito. No quediz respeito ao direito internacional do meioambiente e desenvolvimento sustentável,assuntos centrais deste artigo, é preciso es-tudar sua evolução mediante seus instru-mentos e suas fontes distintas, a origem daslógicas nas quais eles se apóiam, seu êxitoou sua ausência de eficácia e a construçãodo desenvolvimento sustentável entre direi-to comum e direitos especiais.

A descentralização das fontes se originana atribuição progressiva de competênciase de capacidades dos Estados às organiza-ções internacionais e supranacionais, per-mitindo inspirar, produzir, implantar e con-trolar o direito. O conjunto das normas eprincípios resultantes dessas atribuiçõesnão é sempre coerente. O espírito que presi-de a extensão do direito internacional a as-suntos até então internos deriva do cresci-mento da cooperação interestadual, funda-da na vontade de atuar em comum, na esca-la internacional, para a resolução de algunsassuntos de interesse regional ou global.Claro, nenhum Estado é forçado a adotaruma norma internacional, a participar deum processo de expansão do direito volun-tário, cedendo seus espaços de competên-cia internaTodavia, os Estados estão cons-tantemente submetidos a um conjunto deescolhas, a respeito das quais, para poderobter alguns benefícios jurídicos, políticos,econômicos, ambientais ou outros, precisamceder, cooperar, participar de uma regula-ção jurídica e política progressivamente

mais internacionalizada. Devem praticaruma constante análise do conjunto das op-ções negociáveis, das vantagens e desvan-tagens que apresenta a adoção ou a não-adoção do conjunto das regras benéficas oumaléficas que caracterizam as negociaçõesrealizadas para a formação do sistema jurí-dico internacional.

A passagem do nacional para o internaci-onal se opera por meio dos atos ou por abs-tenções. Entre os atos, podemos situar os ins-trumentos jurídicos internacionais, taiscomo os tratados ou convenções internacio-nais. Um exemplo de abstenção será o silên-cio de um Estado frente à interferência dacomunidade internacional num assunto ti-picamente interno. De uma forma mais con-creta, no exemplo da Antártica, instrumen-tos jurídicos internacionais regulamentama distribuição de competências sobre um ter-ritório antes disputado por vários países,referindo-se às diferentes teorias jurídicas.Ao contrário, a ausência de instrumentosjurídicos e a não-oposição da Rússia às ati-vidades das outras nações se tornam a re-gra para as atividades que acontecem noÁrtico. Mas são duas modalidades de ex-pansão do direito internacional voluntário.

Essas evoluções se referem a várias áre-as e são favorecidas, sobretudo, pelos avan-ços tecnológicos, expansão do comércio in-ternacional, maiores facilidades de trans-porte, constituição de empresas globais, ra-pidez com a qual a sociedade civil1 local einternacional se organiza, constituição dosvalores mundiais, crescimento do processode globalização financeira. Todas essastransformações precisam de um quadro ju-rídico mais homogêneo ou do desapareci-mento de regulamentações nacionais hete-rogêneas ou restritivas demais. A incertezajurídica, a instabilidade política e econômi-ca devem desaparecer ou, pelo menos, serdiminuídas para que os valores emergentespossam consolidar-se. O sistema jurídiconecessita, num mundo globalizado, de umtratamento internacional para se desenvol-ver. Mas essas necessidades não são funda-

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das numa lógica homogênea. Lógicas dife-rentes conduzem a expansão do direito in-ternacional. Há mesmo uma acumulação delógicas diferentes, o que compromete a coe-rência do conjunto.

Todo esse processo de expansão do di-reito voluntário implica uma atribuição pro-gressiva das competências e das capacida-des em fazer, implantar e controlar o direitoàs organizações internacionais e suprana-cionais. A atribuição das competências e dascapacidades é um dos poderes inerentes àsoberania. A soberania absoluta, como Gro-tius ou Hobbes tinham previsto, não existemais, caso tenha existido. A soberania naci-onal vê seu domínio de aplicação atual res-tringir-se, na medida em que os assuntostratados anteriormente pelo direito nacio-nal estão resolvidos pelo direito internacio-nal e são criadas novas fontes de direito enovos órgãos de execução e de controle des-se direito. O direito internacional avança erecua no tempo de acordo com as vontades,os jogos de forças e de interesses entre osEstados e os outros atores não-estatais.

Nem sempre se trata de um processo deautolimitação voluntária, como o demons-trou Georg Jellinek, mas de um processo li-gado ao jogo das forças e à imposição deregras pelas principais potências mundiais,atuando numa relação de interdependên-cia. Juridicamente, pelo menos2 , os Estadoscontinuam sendo iguais, apesar da defasa-gem entre instrumentos jurídicos e realida-de política. Portanto, é nessa ótica jurídicaque vamos analisar o processo de fortale-cimento do direito internacional, apresenta-do mais como um ato voluntário de coopera-ção, sabendo que as opções de cessão feitaspelos Estados sempre resultam da análiseconstante das opções possíveis e imagináveis.

Vamos estudar a importância das atri-buições de capacidades, permitindo criar,implementar e controlar o direito. Esse pro-cesso de atribuição de capacidades e de so-berania não é racional, nem linear. É difuso,não-organizado. A ausência de coerência ea multiplicação das ações criam um roteiro

de duplo tratamento dos assuntos, de su-perposição de regras, de acumulação de ló-gicas contraditórias, de um lado, e de au-sência de tratamento, de raciocínios fecha-dos, produzidos, seja pelo Estado, seja pelodireito internacional, de outro lado, o todose referindo ao conceito de sistema, tratan-do-se do conjunto jurídico internacional.

2. A extensão da atribuição dascapacidades em matéria jurídica

As marcas de soberania se encarnam nascapacidades e competências do Estado. No ní-vel das capacidades, podemos citar: a capa-cidade de elaborar atos jurídicos internaci-onais, como a assinatura de acordos, de tra-tados ou de convenções; o fato de ser res-ponsabilizado por fatos ilícitos internacio-nais e, inversamente, de poder pedir repa-ração das conseqüências danosas de umfato ilícito; o acesso aos procedimentos in-ternacionais de resolução dos conflitos,como aqueles da Corte Internacional de Jus-tiça ou a arbitragem; a qualidade de mem-bro das organizações internacionais inter-governamentais; o estabelecimento de rela-ções diplomáticas e consulares com os ou-tros Estados (DUPUY, 1998, p. 57).

As competências se exercem sobre osterritórios e as pessoas físicas e jurídicas. Acompetência territorial é aquela que permiteexercer plenamente o direito soberano nointerior do território nacional, com exclusãode qualquer outro Estado ou fonte depoder

3.

A competência sobre as pessoas físicasdiz respeito à instituição das regras da na-cionalidade (jus soli ou jus sanguinis) e davida civil em geral. A competência sobre aspessoas jurídicas, da mesma maneira, levaem consideração as nacionalidades, os direi-tos, as obrigações das pessoas jurídicas, o quevaria muito de acordo com a posição ideoló-gica e a situação econômica de cada país.

A igualdade soberana dos Estados é tam-bém reconhecida, assim como a incapacida-de dos Estados em exercer suas competên-

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cias sobre o território e sobre os cidadãosdos outros Estados, o que foi dito no casoLotus, na Corte Permanente Internacionalde Justiça4 .

Uma vez estabelecidas as diferenças en-tre a soberania, as capacidades e as compe-tências, é possível responder a uma pergun-ta importante: existe uma transferência desoberania dos Estados nacionais para a co-munidade internacional ou para as organi-zações internacionais?

Não. Mesmo considerando que algunsespecialistas em ciências políticas susten-tam a idéia do fim ou da transferência dasoberania (BADIE, 1999), esse conceito estáfora da realidade presente5 . A soberaniasempre persiste. Ela é a base do direito in-ternacional e das relações entre os Estados.Não há transferência de soberania, porquetransferir implica perder uma parte do quese está transferindo. As organizações inter-nacionais e os outros atores que recebem ospoderes não têm soberania. Eles não são so-beranos. Os Estados não perdem seus po-deres. Os Estados continuam a poder fazer,executar e julgar seus atos jurídicos. Trata-se de uma atribuição. Atribuir não implicadar sem conservar para si próprio. O Esta-do atribui poderes aos outros atores inter-nacionais. Entretanto, quais são esses po-deres? São poderes de competência e capa-cidades, de acordo com os conceitos defini-dos acima. Devemos realçar dois paradig-mas: não existe um poder superior ao Esta-do e não existe, tampouco, um poder cria-dor do direito dos órgãos jurisdicionais.

Assim, a ordem internacional, na óticajurídica, é marcada pela forte presença doEstado nacional. O Estado soberano é aindaa principal fonte do direito, dos instrumentosde regulação da vida internacional, apesarda presença de entidades que têm uma in-fluência sobre suas decisões. O soberano,seja o príncipe, a nação ou o povo, não ésubmetido a qualquer poder superior(DINH; DAILLIER; PELLET, 1999, p. 61).

Um outro ponto de análise a respeito domesmo assunto poderia tratar do poder que

os Estados concedem aos órgãos jurisdicio-nais de decisão. Se considerar que o juiz in-ternacional tem um poder criador de nor-mas que limita as ações dos Estados, trans-feriram realmente capacidades soberanas.O desafio é importante no caso de se apre-sentarem normas em conflito ou textos con-fusos, com difícil interpretação. Contudo, osjuristas são quase unânimes. O juiz não tempoder criador, somente interpreta a norma,apesar de essa hermenêutica não ser sem-pre fiel a sua origem normativa. O consenti-mento à decisão do juiz internacional não écriativo, mas perceptivo. Ele não cria o di-reito, mas percebe-o e interpreta-o – sem cri-ação – diante do caso concreto6 . A outraquestão é a perda de poder sobre a criaçãodo direito considerado pelos juízes, pois odireito internacional é cada vez mais impor-tante, às vezes tanto quanto o direito nacio-nal, sobretudo em função do efeito direto dodireito internacional nas ordens jurídicasnacionais, visto que, na Constituição de di-versos países, é integrado automaticamenteao ordenamento jurídico interno.

Poderia haver uma dúvida, quando efe-tivamente os Estados perdem o poder deagir sobre certos temas: é quando eles atri-buem à comunidade internacional o direitode estabelecer normas sobre alguns assun-tos, sem conservar para eles mesmos essedireito. A Comunidade Européia é um exem-plo disso. Nesse caso, há uma transferênciade competência e de capacidade. Essa transfe-rência é gradativa e podemos imaginar que,num dado momento, não haverá mais com-petências nem capacidades na esfera naci-onal. Naquele momento, a soberania nacio-nal seria esvaziada de seu conteúdo. Numavisão mais conservadora, a soberania é con-servada, pois ela é imutável, embora semconteúdo. Numa visão mais progressista, háuma transferência de soberania.

A passagem do nacional para o interna-cional ou do nacional para o local se faz apartir do momento em que o Estado atribuiuma parte de suas competências e capaci-dades a outros atores. O que nos interessa

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mais neste trabalho é a atribuição de capa-cidades a novos atores, como as organiza-ções internacionais, como a atribuição decapacidade à Organização Mundial do Co-mércio a fim de resolver conflitos suprana-cionais, como o caso das transferências rea-lizadas pelos Estados Europeus em várioscampos para a Comunidade ou organiza-ções não-governamentais (ONGs), comomostra a UICN (União Internacional para aConservação da Natureza e dos Seus Re-cursos), que administrou a Secretaria deCITES (Convenção sobre o Comécio Inter-nacional das Espécies da Flora e da FaunaSelvagens em Perigo de Extinção)7 . É exata-mente essa atribuição gradativa das capa-cidades e das competências que alimenta aexpansão do direito internacional voluntá-rio. O estudo dessa expansão, frente à flexi-bilidade crescente das modalidades de exer-cício do poder soberano, deve ser feito ana-lisando os dois tipos de atribuição das prer-rogativas dos Estados nacionais a entida-des não pertencentes ao Estado. O primeiroé a atribuição de capacidades materiais(item 2.1.), representadas pelas atribuiçõesde poderes tipicamente inerentes ao poderlegislativo e judicial nacional, a organiza-ções internacionais ou outros atores, ou re-presentado por normas internacionais. Osegundo é a atribuição de capacidades for-mais (item 2.2.), representadas pelo poderde controlar as normas sobre o território na-cional e mesmo fora dele, quando se trata denacionais.

2.1. A atribuição das capacidades materiais

A expansão do direito internacional vo-luntário se caracteriza pela multiplicaçãodas fontes do direito internacional e dos te-mas tratados por ele. Os Estados e as Orga-nizações Internacionais são os únicos su-jeitos de direito internacional, mas não sãoa única fonte de direito, nem o único ator nodireito internacional. Identificam-se váriasfontes e atores diferentes, como as organi-zações supranacionais e não-governamen-tais. O direito internacional avança, orien-

tando-se para novos temas, ignorados pe-los direitos nacionais, ou até para antigosassuntos, tratados anteriormente pelos Es-tados. Esse crescimento rápido dos objetosdo direito internacional tem como conseqü-ência a expansão de sua importância navida quotidiana.

Para entender essa complexa realidade,é preciso analisar dois pontos distintos: amultiplicação dos temas novos tratados nonível do direito internacional e a multipli-cação de fontes de inspiração de conteúdodo direito internacional.

I. A multiplicação dos temas tratadospelo direito internacional

O ponto de partida da expansão do di-reito internacional voluntário é o direito so-cial, com a criação da Organização Interna-cional do Trabalho (OIT), em 1919. A OITfoi a primeira organização internacional eprecedeu até mesmo a Sociedade das Na-ções. Os Estados nacionais atribuíram, des-sa forma, uma parte de sua capacidade delegislar sobre as regras do trabalho para umaorganização internacional composta pelospróprios Estados, mas também por empre-sas e sindicatos. Duas observações impor-tantes impuseram-se, portanto. Primeiro, acapacidade emana do Estado, em nível na-cional, e parte para a comunidade interna-cional. Admitimos, assim, a possível supe-rioridade das normas internacionais sobreas normas nacionais nos assuntos internos,como o direito trabalhista. Segundo, a atri-buição de capacidade se faz em benefício deuma organização não exclusivamente com-posta por Estados. Reconhecemos, portan-to, a importância da sociedade civil e dasempresas no processo da elaboração dasnormas. As resoluções da Organização In-ternacional do Trabalho, em parte dos Paí-ses-Membros, integram imediatamente odireito interno, de uma forma obrigatória, oque evidencia ainda mais essa transferência.

A partir da criação da Sociedade dasNações e, sobretudo, da Organização dasNações Unidas e das instituições de Bret-

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ton Woods, a expansão das atribuições decapacidades aumentou de intensidade. Nosúltimos quinze anos, esse processo se con-centrou sobre o direito internacional econô-mico, direito humanitário e sobre o direitointernacional do meio ambiente8 . Em direi-to internacional econômico, os avanços sãonotáveis. Com a ratificação do Acordo Ge-ral das Tarifas e do Comércio (GATT), em1947, os Estados iniciam um processo deatribuição de capacidades, com uma autoli-mitação de sua ação sobre a fixação de tari-fas alfandegárias, restringidas a uma por-centagem fixada pelo produto, medidas pro-tetoras para as indústrias nacionais, sub-venções, obrigação de adotar princípios co-muns tal como aquele da cláusula da naçãomais favorecida e tratamento nacional.

É preciso, portanto, perguntar-se até queponto vão as atribuições de capacidade emdireito econômico. As revisões do GATTsobretudo após o Ato de Marrakech, inte-graram outros assuntos importantes aos li-mites da regulamentação internacional e osconsolidaram no direito internacional pú-blico. Trata-se, entre outros, do controle sa-nitário e fitossanitário, da propriedade in-telectual, dos serviços. Esses assuntos estãoagora regulados pelos interesses da comu-nidade internacional, apesar do fato de quea desigualdade entre os assuntos de direitono nível internacional é mais denunciada eessa comunidade nem sempre representa osinteresses desta ou daquela minoria. A As-sembléia Geral da Organização Mundial doComércio (OMC) tem, portanto, o poder decriar normas que afetem as menores parti-cularidades da vida doméstica dos Países-Membros, assim que esses detalhes tiveremum efeito comercial, mesmo indireto.

A Organização Mundial do Comércio éautônoma. Ela tem relações com as outrasorganizações internacionais, sobretudo comas agências das Nações Unidas, o FundoMonetário Internacional e o Banco Mundi-al, mas não se submete a suas organizaçõese não é obrigada a levá-las em considera-ção, mesmo se um país contratante solici-

tar9 . O nível de especificidade dos acordosé importante, pois essa questão comportauns cinqüenta textos sobre os mais diversosassuntos. Na agricultura, os prazos do aces-so aos mercados para os países produtoressão fixados com a previsão de tarifas maisfavoráveis dadas a países menos desenvol-vidos, e o prazo de abertura total dos merca-dos agrícolas mundiais é de dez anos. As-sim, todas as modalidades de subvenção ti-veram que ser reduzidas a um conjunto res-tritivo de regras monetárias claras.

As normas sanitárias, fitossanitárias,tanto quanto as normas técnicas do comér-cio também são envolvidas pela expansãodo direito voluntário, no seio da OMC. umasupervalorização das normas técnicas in-ternacionais. Trata-se disso para o controledos rótulos, das embalagens e dos regula-mentos técnicos que não podem exibir in-formações consideradas discriminatórias.As únicas exceções são os problemas urgen-tes que se colocam ou ameaçam colocar-se aum membro, como os problemas de segu-rança, de saúde, de proteção ao meio ambi-ente ou de segurança nacional. Nesse caso,o julgamento da urgência efetua-se, também,sob os auspícios da OMC. As tarifas alfan-degárias devem ser simplificadas e limita-das de uma forma detalhada, que interesseprincipalmente às pequenas e médias em-presas nacionais. A propriedade intelectu-al, apesar de ser somente ligada indireta-mente ao comércio, é também uniformiza-da. A adoção de regras específicas de pro-priedade intelectual foi imposta à maiorparte dos países do mundo, como condiçãode sua entrada na OMC.

Além da homogeneização das condiçõese prazos de proteção, uma longa lista deobjetos suscetíveis de apropriação foi pre-parada. Assim, as indústrias e o acesso àtecnologia, até mesmo à saúde10 , às vezesacabam tornando-se objetos do direito in-ternacional econômico, pois hoje tudo pare-ce ligado, embora indiretamente, ao comér-cio. Apesar da oposição de vários países doSul e de alguns países do Norte, aumentou

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o nível de proteção dos produtos e proces-sos farmacêuticos, da biotecnologia e dosorganismos vivos. A imposição dessas nor-mas internacionais tem importantes reper-cussões, na medida em que ignora os valo-res éticos das diferentes civilizações no to-cante à apropriação da vida.

Especificamente na área da saúde, osprogramas são, em parte, estabelecidos emnível internacional. A regulamentação dasdrogas, a especificação de zonas endêmi-cas e até mesmo as políticas nacionais deluta contra as doenças são elaboradas pe-las organizações internacionais, sobretudopela Organização Mundial da Saúde (OMS)e, no caso específico da Aids, pela ONUSI-DA (Programa Conjunto das Nações Uni-das sobre o VIH/SIDA). Regula-se a com-posição dos medicamentos, determina-sesua eficiência, sua dosagem, seu preço, o queé constantemente aceito sem oposição porparte dos diferentes países.

O papel da OMC é aqui fundamental-primeiro, há uma limitação das medidas queos Estados podem adotar, sendo que têm querespeitar os limites fixados pelos acordosinternacionais, como o acordo SPS (Acordosobre Aplicação de Medidas Sanitárias eFitossanitárias), por exemplo; depois, o or-ganismo se interessa pelo estabelecimentodas regras de propriedade intelectual. Nes-se último caso, os direitos de propriedadeintelectual dos produtos farmacêuticos re-velaram ser uma barreira, às vezes impossí-vel de transpor pelos países do Sul, estandosem possibilidade de dar assistência a seusdoentes. O respeito das patentes definidopelo Acordo ADPIC (Acordo sobre Aspec-tos dos Direitos de Propriedade IntelectualRelacionados ao Comércio) foi estendido amais de cem países em desenvolvimento, quedevem respeitar o monopólio de comerciali-zação imposto pelas patentes. O exemploda Aids é ilustrativo: algumas empresastransnacionais farmacêuticas detêm o direi-to de exploração comercial exclusivo dosprodutos que formam o coquetel utilizadopara combater a Aids, o que tornou possível

a fixação dos preços desses produtos numnível tal que nem os países do Sul nem seushabitantes podem comprá-los. Os acordosde Marrakech não oferecem alternativa, épreciso respeitar o direito de propriedadeintelectual.

É necessário perguntar-se até que pontoexistem atribuições de capacidades emdireito do meio ambiente.

Para o meio ambiente, a regulamentaçãointernacional é significativa, mas menos res-tritiva. Quase todos os aspectos do meioambiente são, de uma forma ou de outra,regulamentados por normas internacio-nais11 . O direito internacional determina asespécies ameaçadas12 , fixa as emissões depoluentes pela indústria, as emissões espe-cíficas como os CFC, protege a diversidadebiológica, regulamenta a navegação inter-na e internacional, a caça e a pesca, a prote-ção das espécies e dos sítios históricos oudas florestas.

No direito humanitário, a expansão sedeu sobretudo em função da progressão in-tensa do direito de ingerência após o iníciodos anos 90. Em menos de dez anos, maisde mil resoluções do Conselho de Seguran-ça da ONU foram aprovadas. De 1946 até1989, o Conselho de Segurança reuniu-se2.903 vezes e adotou 646 resoluções, ou seja,uma média de 15 resoluções por ano. Nosanos 90, teve 1.183 reuniões e adotou 638 re-soluções, isto é, uma média de 64 por ano!Nos anos 90, o capítulo VII da Carta dasNações Unidas, que dispõe sobre as condi-ções para uma intervenção, foi a base jurídi-ca de uma média de 24 resoluções por ano,sendo o equivalente de sua utilização du-rante o conjunto dos 44 anos anteriores(CHESTERMAN, 2000, p. 153). Ao estudar-mos o número de intervenções realizadasou autorizadas pelo Conselho de Seguran-ça das Nações Unidas, notamos 13 inter-venções suplementares entre os anos 1946 e1988 (42 anos) contra 40 entre 1989 e 2000(11 anos). Enquanto as Nações Unidas ti-nham movimentado 10.000 homens em 50países, em cinco operações, em 1987, mo-

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vimentaram, em 1994, 72.000 homens em74 países, em 180 operações diferentes(ROSENAU, 1997).

As principais intervenções (CHES-TERMAN, 2000, p. 154) dos anos 90 refe-rem-se aos Estados seguintes: Iraque(1990)13 , Estados sucessores da ex-Iugoslá-via (1991-1996)14 , Somália (1992)15 , Líbia(1992-1999)16 , Libéria (1992-)17 , Haiti (1993-1994)18 , Ruanda (1994-1996)19 , Sudão(1996)20 , Serra Leoa (1997-1998)21 , Iugoslá-via (1998)22 e Afeganistão (1993)23 .

No direito do meio ambiente, criado nummomento de fortalecimento da lógica de ex-pansão do direito voluntário, o número dematérias submetidas ao direito internacio-nal é considerável: até os anos sessenta24 ,havia somente alguns dispositivos a respei-to da proteção dos pássaros úteis para aagricultura, da proteção das focas e da pro-teção das águas. De 1960 até nossos dias,foram criados mais de 30.000 dispositivoslegais de direito do meio ambiente, entre osquais mais de 300 tratados multilaterais, 900acordos bilaterais referentes à conservaçãoe mais de 200 textos oriundos das organiza-ções internacionais (KISS, 1992, p. 28, 46).

No âmbito da Convenção sobre a Diver-sidade Biológica, o protocolo de Cartagenaregulamenta a biossegurança. Nele, as liga-ções com o comércio internacional são evi-dentes, visto que o mercado dos processos eprodutos biotecnológicos cresce de uma for-ma notável no mundo inteiro. Aí encontram-se normas de controle biológico e métodosde análise e de compreensão do risco. A de-finição do risco, apesar de representar umassunto controvertido, é regulada pelo di-reito internacional. A influência direta dosEstados que não podem fazer parte dessaconstrução do direito internacional, mas queestão freqüentemente presentes, é expressi-va; basta mencionar o exemplo dos EstadosUnidos, o maior produtor mundial de orga-nismos geneticamente modificados, que nãoratificaram a Convenção sobre a Diversida-de Biológica, mas foram um dos atores maisimportantes nas negociações do Protocolo

de Cartagena. Essas modalidades de con-tradições estão sempre presentes em direitointernacional do meio ambiente, sobretudoquando se trata dos Estados Unidos, incon-tornável Estado em várias áreas e presenteno processo de negociação de diferentes con-venções às quais ele não pertence25 . Apesardo caráter não-obrigatório de certas normasligadas aos organismos geneticamente mo-dificados, a adesão dos países a essas nor-mas é relativamente forte; basta ver os guiasde boa conduta redigidos pela Organizaçãodas Nações Unidas para o Desenvolvimen-to Industrial (ONUDI), cujo modelo foi ado-tado por mais de 50 países.

II. Multiplicação das fontes de inspiração nadefinição do conteúdo do direito internacional

Existe atribuição da capacidade de ins-pirar o direito internacional a partir do mo-mento em que o Estado atribui à comunida-de científica, às ONGs, às associações deempresas ou às organizações internacionaiso poder de participar da elaboração do con-teúdo de uma norma jurídica. Essa atribui-ção pode ser direta e formal, como no casoem que a organização internacional propõenormas que os Estados devem aceitar, ouindireta, quando os Estados delegam pode-res a uma organização internacional à qualeles confiam a elaboração de normas priva-das, garantindo seu reconhecimento, comoé o caso dos guias de boa conduta do PNU-MA (Programa das Nações Unidas para oMeio Ambiente) sobre o controle da disse-minação dos organismos geneticamentemodificados ou da OCDE (Organizaçãopara a Cooperação e Desnvolvimento Eco-nômicos) em várias áreas. A atribuição podeser explícita, quando o Estado se refere dire-tamente a um documento produzido por umoutro ator do direito internacional, ou im-plícita, quando o Estado manda aprovaruma norma que foi concebida e discutidapor um outro ator não-estatal ou interestatal.

O Estado e as Organizações Internacio-nais são os únicos sujeitos do direito inter-nacional, mas há várias fontes de inspira-

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ção de direito não-estatal, como os meioscientíficos, as organizações não-governa-mentais, as associações de empresas. Suaparticipação pode ocorrer direta ou indire-tamente, fixando as bases sociológicas, po-líticas, econômicas e jurídicas que contribui-rão à formação do direito internacional. Asorganizações internacionais são atores re-conhecidos por sua influência no direitointernacional, visto que compostas, na mai-or parte, por Estados. Por sua vez, o reco-nhecimento dos meios científicos e das or-ganizações não-governamentais não é evi-dente. Os juristas estão divididos, mas ospolitólogos já têm uma posição favorável noque concerne ao reconhecimento desses ato-res. Devemos estudar, em primeiro lugar, amultiplicação e o crescimento do papel dasorganizações internacionais (A) e depoisfazer o mesmo no tocante às organizaçõesnão-governamentais e às associações deempresas (B).

A. As organizações internacionais

É significativa a multiplicação das orga-nizações internacionais. Na segunda meta-de do século XX, foram criadas centenas deorganizações. O sistema onusiano contacom mais de quarenta instituições. Em ní-vel regional, contam-se centenas. Umas têmum alcance geral, como a Comissão Euro-péia, outras, um alcance científico, como aSecretaria da Diversidade Biológica. Cadauma dessas organizações agrega valores einteresses que têm uma influência materialsobre o processo formal de produção do di-reito. Assim, cada uma dessas organizaçõesprepara reuniões sobre assuntos pontuaistratados pelos convênios específicos. Vamosilustrar essa realidade com o exemplo daConvenção sobre a Diversidade Biológica.A Secretaria da Convenção sobre a Diversi-dade Biológica organiza três tipos de reuni-ões de discussão e deliberação: os gruposde discussões, as reuniões do corpo subsi-diário técnico e científico e do conselho tec-nológico (SBSTTA)26 e as conferências daspartes (COP).

Os grupos de discussão são criados paratratar de assuntos determinados, como ogrupo criado pelo artigo 8 (j), sobre a parti-cipação das comunidades indígenas, com-posto de peritos, de representantes diplo-máticos de diversos países e de associaçõesindígenas27 . Outros grupos de discussãosão formados para tratar de aspectos os maisdiversos, no seio das discussões técnicas doSBSTTA. Os grupos de discussão têm reu-niões periódicas e a proposição de docu-mentos técnicos à Conferência das Partes épermanente. Essas reuniões têm como fun-ção oferecer propostas tecnicamente discu-tidas e consolidadas pelos cientistas.

A Conferência das Partes é a reunião emque as propostas são aceitas ou não pelosPaíses-Membros e se tornam normas jurídi-cas. Foi oferecido um grande número de pro-postas e de documentos. As Conferênciasproduzem dezenas de decisões28 . Essas po-dem consistir em pedir a criação de outrosgrupos de discussão ou exigir que sejamcontinuados os debates sobre certo assuntoe adotadas as recomendações dos gruposde discussões e do SBSTTA, ou ainda proto-colos, como o Protocolo da Biossegurança.Portanto, elas fazem parte do direito inter-nacional em vigor e revelam o grau de espe-cialização do direito internacional do meioambiente. Os numerosos atores do processode negociação, como as organizações não-governamentais e os cientistas, são cada vezmais visíveis.

Existem também estruturas e lógicas defuncionamento para outros setores ligadosà proteção do meio ambiente: mudanças cli-máticas, zonas úmidas, espécies ameaçadas,dejetos, habitat. Considerada a produçãoconstante de normas jurídicas por cada ór-gão, esse conjunto todo de instituições con-tribui para a expansão do direito internaci-onal. Isso significa que vários setores sejamincorporados gradativamente ao conjuntodo direito internacional e que a regulamen-tação internacional desses novos assuntosresulte num importante grau de detalhestécnicos. Isso explica a importância assu-

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mida pelas entidades intergovernamentais29

na expansão do direito internacional con-temporâneo.

Entretanto, apesar de todo esse espaçode participação cedido ao meio científico, oreconhecimento da participação dos cien-tistas não é unânime entre os juristas. Denossa parte, consideramos que é preciso re-conhecê-la, em vista do crescimento do ní-vel técnico das discussões e da especifici-dade crescente dos assuntos tratados. Emdiversos momentos, as comunidades cien-tíficas reúnem-se em torno de um assuntodiscutido internacionalmente, com o objeti-vo de trazer um suporte científico às pro-postas de normas jurídicas. O direito inter-nacional não é mais assunto exclusivo dosdiplomatas formados, de uma forma geral,em política internacional. Necessita hoje deconhecimentos técnicos, ao único alcancedos cientistas, dos peritos, mas também deum nível de certeza reconhecido pela comu-nidade científica internacional. O direitointernacional sobre o clima, a diversidadebiológica, os organismos geneticamentemodificados é baseado na técnica. Da mes-ma forma, em se tratando de direitos huma-nos, no caso particular do desarmamento eda retirada de minas. Os fundamentos dasnormas são tanto políticos quanto técnicos.O reconhecimento de uma técnica por parteda comunidade científica internacional temuma influência sobre as fontes materiais dodireito internacional. O reconhecimento dospossíveis efeitos do CFC pela comunidadecientífica, por exemplo, fez progredir a Con-venção sobre a Camada de Ozônio. A parti-cipação dos peritos é, com efeito, reconheci-da, tanto nos órgãos subsidiários da Con-venção sobre as Mudanças Climáticas,quanto na Convenção sobre a DiversidadeBiológica.

Esses comitês técnicos são compostospor representantes dos Estados. Mas essesrepresentantes devem ser peritos nas áreasem questão. Têm um papel fundamental,pois delimitam os problemas e desenhamas soluções possíveis. Aqui se identifica um

importante problema de neutralidade nonível das posições, visto que, na condiçãode representante político, a neutralidade docientífico está certamente comprometida.Contudo, o sistema de participação dos pe-ritos não apresenta uma solução para essaquestão essencial que o vicia. O político e ojurídico estão, sob vários aspectos, delimi-tados pelo científico. Mas a defasagem deconhecimento técnico entre os Estados doSul e aqueles do Norte contribui para o en-fraquecimento da participação dos primei-ros nesses comitês, em relação àquela dosEstados do Norte. Em quase todos os seto-res científicos, a maior parte dos Estados doSul não tem peritos de alto nível internacio-nal, com notáveis exceções, como a Índia, aChina, a Rússia, o Brasil, o México, a Ar-gentina, a África do Sul ou outros Estados,para algumas situações específicas. Se nãotêm representantes possuindo nível sufici-ente para uma participação ativa, não po-dem concorrer à fixação dos limites das op-ções jurídicas e políticas possíveis. Ao Esta-do cabe a possibilidade de contratar peritosde países desenvolvidos encarregados derepresentá-lo. Entretanto, para isso é preci-so que o Estado dê uma significativa impor-tância ao assunto tratado.

B. As organizações não-governamentaise as associações de empresas

A participação das organizações não-governamentais é igualmente crucial noprocesso de produção das normas, visto quemobilizam a opinião pública sobre assun-tos específicos, exercendo uma pressão so-bre os Estados para que produzam normasinternacionais. Participam de uma formamais ativa quando o Estado as convida pararedigir um projeto de norma, como no casoda União Internacional para a Conservaçãoda Natureza, que é constantemente solicita-da pelos Estados, a fim de elaborar projetosde normas de proteção ambiental. No casodas Convenções sobre a Diversidade Bioló-gica e sobre as Mudanças Climáticas, as dis-cussões das Conferências das partes são

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atentamente acompanhadas pelas ONGs.No primeiro caso, RAFI e GRAIN, IISD, Gre-enpeace, WWF têm um papel ativo, produ-zindo documentos, financiando a partici-pação dos peritos e, às vezes, até dos mem-bros das delegações, e organizando semi-nários para a informação dos diplomatas.A RAFI, ela própria, tem uma média de trin-ta mil baixas mensais, via Internet, de rela-tórios, dos quais vários são recuperadospelas embaixadas30 . Evidentemente, é difí-cil demonstrar a relação de causalidade en-tre o estudo dos documentos feito pelasONGs e as decisões finais por parte dos Es-tados, mas essas informações mostram que,de certa forma, as ONGs participam ativa-mente do processo de formação do direitointernacional. A decisão final da aceitaçãoda norma jurídica pertence ao Estado. Con-tudo, a contribuição das ONGs durante todoo processo da formação jurídica não podeser negligenciada. Além disso, é preciso ob-servar que a formação jurídica de normasprivadas, elaboradas por redes de gruposprivados e aceitas pela comunidade inter-nacional, é, às vezes, mais eficiente do queas normas públicas. Nesse caso, não há par-ticipação do Estado, mas seu acordo ou to-lerância explícita31 ou implícita da existên-cia dessas normas.

As associações das empresas funcionamde uma forma paralela. A certificação ex-clusivamente privada é aceita pelo direitointernacional, como as normas da Organi-zação Mundial do Comércio para a verifi-cação dos padrões reconhecidos pela Inter-national Standard Organisation (ISO), porexemplo. Isso quer dizer que os Estados acei-tam como norma jurídica internacional umaregra produzida exclusivamente por empre-sas privadas, a partir do momento em que éaceita internacionalmente pelas empresas.

Aqui, a participação das instituições doNorte pesa mais do que aquela das institui-ções do Sul: primeiro, por causa da defasa-gem do nível e da capacidade de participa-ção dos fóruns globais, por parte das enti-dades privadas internacionais. A defasagem

que existe entre os Estados se reproduz nonível privado. Estabelece-se um tipo de re-produção das relações entre os Estados nasrelações entre as entidades privadas, masessa contradição é ali ainda mais evidente,pois não se encontra no setor privado a pre-sunção da igualdade soberana, que escon-de os problemas no nível público.

2.2. A atribuição das capacidades formais

A atribuição de capacidades formais desoberania é o ato pelo qual o Estado conce-de à comunidade internacional o poder deobrigá-lo a respeitar a norma internacionale puni-lo em caso de desrespeito. Essa con-cessão se caracteriza pela multiplicação dosinstrumentos de controle da implantaçãodessas normas. Assim, tem-se uma cessãode autoridade, submissão ao direito inter-nacional. Essa transferência formal vem danecessidade de instaurar uma cooperaçãoentre os Estados para que as obrigações con-tratadas sejam controladas, vigiadas e paraque se tenham instâncias de resolução dosconflitos. Uma importante parte das conven-ções internacionais apresenta essa necessi-dade de cooperação como elemento primor-dial, podendo garantir o êxito dos compro-metimentos32 . No direito internacional emvigor até o século XIX, não havia instrumen-tos eficientes de coerção, com a única exce-ção da guerra. De um lado existiam normasinternacionais restritivas, mas nenhum ins-trumento tornando-as imperativas. De ou-tro lado, eram estabelecidas normas não-restritivas, e esse caráter as esvaziava de suarazão de ser.

A evolução do direito internacional du-rante as últimas décadas criou um conjuntocomplexo de medidas previstas a fim deobrigar os Estados a respeitar as restriçõescontratadas, que vão desde sua estigmati-zação aos olhos da sociedade civil interna-cional até a intervenção militar da comuni-dade internacional, passando pela adoçãode sanções comerciais. Além disso, as nor-mas não-obrigatórias (soft norms) se multi-plicaram, mas são portadoras de uma fun-

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ção precisa, com um nível importante de efi-ciência.

Paralelamente assiste-se ao aparecimen-to de uma multiplicação de instâncias juris-dicionais: tribunais, órgãos de solução decontrovérsias, comissões de arbitragem obri-gatórias, instâncias de reconciliação. Asinstâncias de resolução dos conflitos têmcomo função verificar o respeito às normasinternacionais, formular sentenças ou opi-niões, condenar os Estados, moral, econô-mica ou até militarmente.

Assim, os dois principais fenômenos li-gados à expansão da atribuição de capaci-dades formais pelos Estados aos atores in-ternacionais são a multiplicação das nor-mas restritivas e das soft norms e das organi-zações internacionais, dominando diferen-tes instrumentos, tornando as normas ado-tadas eficientes, controlando a eficiência dalei e punindo os Estados, e, conseqüente-mente, a multiplicação de tribunais inter-nacionais .

I. A multiplicação das normasrestritivas e das soft norms

Desde 1945, é impressionante a multi-plicação das normas internacionais. B. Ba-die (1999, p. 88) indica que mais de trinta ecinco mil tratados foram assinados pelosEstados desde a Segunda Guerra Mundial.O direito internacional voluntário contémduas modalidades principais de normas: asnormas obrigatórias e as normas não-restri-tivas, na realidade simples comprometimen-tos, mais conhecidos sob o nome de softnorms.

A. A expansão das normas obrigatóriase dos instrumentos de controle

Os mecanismos permitindo garantir aimplementação de um acordo internacionale a compliance33 de uma norma diversifica-ram-se, sobretudo, nos setores mais flexíveisdo direito internacional, como os direitos dohomem ou o direito internacional do meioambiente34 . Quando um Estado não respei-ta as obrigações tratadas, deve-se poder dis-

por de mecanismos para garantir a imple-mentação dessas obrigações ou, se isso nãofor possível, para aplicar-lhe uma sanção.São o conjunto dos instrumentos obrigató-rios, os mecanismos utilizados a fim de for-çar a implementação35 e as possibilidadesde sanção que conferem mais eficácia aodireito internacional necessário, assim comoao direito voluntário. Esses mecanismospodem ser mecanismos de cooperação oude coerção.

Os principais mecanismos de controledos acordos internacionais, funcionandoem cooperação, são a criação de um contro-le dos relatórios, das inspeções, das insti-tuições, tendo esse objetivo específico, as-sim como o controle público, garantido pe-las organizações não-governamentais. Osprincipais mecanismos de sanção, no casode não-realização dos comprometimentosrealizados, são a perda do direito à obten-ção de um recurso financeiro36 , as sançõescomerciais37 e a responsabilização de qual-quer dano causado38 . A multiplicação dasnormas obrigatórias é um fenômeno eviden-te. A criação de normas comerciais ou quetenham uma relação com o comércio no seioda Organização Mundial do Comércio é oexemplo mais marcante. Outros poderiamser relatados, como a expansão do direitode ingerência nos assuntos humanitários oua criação de uma corte penal internacional.A questão central para ser estudada é aque-la das formas de controle criadas nesse con-texto. Vamos analisar, um após o outro, es-ses dois tipos de mecanismo. Em primeirolugar, os mecanismos de cooperação apare-cem sob várias formas:

O controle por relatórios é usado tantopelo direito internacional do meio ambientequanto para o controle do desarmamentoou o respeito dos direitos do homem. A so-fisticação do controle por relatórios aumen-ta a cada acordo internacional, e as comis-sões têm mais poderes de controle sobre asatividades dos Estados. A Convenção sobrea poluição transfronteiriça de longa distân-cia, de 197939 , e seus protocolos contêm tam-

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bém um mecanismo de relatório, considera-do precário, pois os dados não podem serverificados e a Comissão não pode tomarmedidas para punir os Estados que apre-sentam relatórios viciosos ou imprecisos40 .

Ainda rudimentares, mas um poucomais desenvolvidas, algumas convençõesprevêem relatórios que estão na origem denegociações sobre a implementação, masque nem sempre tornam possível a sançãodos Estados infratores. A Convenção deParis, de 1974, sobre a prevenção da polui-ção marinha a partir de fontes terrestres pre-vê relatórios que estão na origem de acor-dos e0ntre as partes, concernentes à lutacontra as poluições. É um importante ele-mento, sobretudo quando os poluentes sãooriundos de um outro Estado. Em outrasconvenções, a comissão específica ou a se-cretaria podem ajudar os Estados a fazer osrelatórios, como a Convenção da Basiléia,de 1989, sobre o controle dos movimentostransfronteiriços, o que representa, portan-to, uma participação mais ativa e possibili-dades de um certo controle. Como sistemamais evoluído, notamos a existência de con-venções que permitem à secretaria avaliarrelatórios fornecidos pelos Estados, como,por exemplo, a Convenção de 1973 sobre ocomércio internacional das espécies de fau-na e flora selvagens ameaçadas de extinção(CITES), de acordo com a qual é possível darum parecer contrário e pedir medidas desti-nadas ao aumento da eficiência da Conven-ção41.

Outros acordos internacionais são maisexigentes, como o Protocolo de Montreal ins-crito na Convenção sobre a proteção da ca-mada de ozônio ou a Convenção sobre aproteção do meio ambiente marinho do nor-deste do Atlântico. Na primeira, o Secretari-ado pode iniciar um processo bilateral deverificação das informações, pedir mais da-dos aos Estados e indicar medidas a seremadotadas. Na segunda, o Estado é obrigadoa tornar públicas todas as informações so-bre o assunto, o que possibilita aos repre-sentantes da sociedade civil participarem

do processo, usando sua influência paraforçar o Estado a cumprir suas obrigaçõesou a via jurisdicional.

As Convenções mais recentes exigem re-latórios redigidos de acordo com um méto-do homogêneo, o que permite comparações.No Protocolo de Kyoto, que figura no âmbi-to da Convenção sobre as Mudanças Cli-máticas, os relatórios são uniformizados,publicados e discutidos pelos representan-tes dos outros Estados assim como pelosobservadores das organizações não-gover-namentais. Além disso, é possível corrigiros relatórios que não respeitam o formatoprevisto. Os Estados têm, por outro lado, uminteresse particular em apresentar relatóri-os mais fiéis à realidade, sendo que a confi-abilidade de suas informações pode trazer-lhes a credibilidade necessária, que deter-minará sua participação no mercado dosdireitos de emissão de poluentes.

Em direito international econômico, aOrganização Mundial do Comércio exigetambém, por parte dos Estados, relatóriossobre as medidas adotadas para implemen-tar os textos internacionais. Os Estados de-vem detalhar suas atividades alfandegári-as, de tarifação, seus subsídios, as subven-ções e outros aspectos ligados ao comércio.A não-realização dos relatórios pode levar àperda de alguns benefícios previstos e colo-car o Estado em situação de irregularidade.

As inspeções são mais usadas no pro-cesso de desarmamento. As organizaçõesinternacionais mandam peritos para verifi-car o progresso do desarmamento no interi-or dos Estados. Em alguns casos, o controleé mais rígido, como nos acordos entre asNações Unidas e o Iraque, por causa da exis-tência eventual das usinas bacteriológicas.Em direito internacional do meio ambiente,a CITES permite ao Secretariado fazer uminquérito no interior das fronteiras de umEstado para verificar se uma espécie é ame-açada de extinção por causa do comércio. Oinquérito depende do consentimento do Es-tado. A regra é a mesma para a Convençãode 1971 sobre as zonas úmidas com impor-

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tância internacional (Ramsar). A Conven-ção sobre a caça à baleia, de 1974, prevêtambém a formação de um esquema obser-vador que transmite relatórios à Comissão.A escolha dos observadores depende igual-mente dos acordos entre os Estados (WOL-FRUM, 1998).

Muito mais adiantado, o Tratado de 1991sobre a Antártida prevê uma inspeção-sur-presa, sem o consentimento dos Estados-Partes42. Tem como objetivo observar que ouso do território da Antártida se faz comfins pacíficos. A Convenção de 1980 sobre aconservação dos recursos marinhos compor-ta a mesma cláusula. A inspeção deve, por-tanto, informar ao Secretariado sobre qual-quer irregularidade. Em outras situações, osEstados podem tomar medidas coercitivasse irregularidades forem observadas duran-te as inspeções. É o caso das inspeções rea-lizadas no âmbito do Acordo do dia 10 dedezembro de 1982, relativo à implementa-ção das provisões da Convenção das Na-ções Unidas sobre o Direito dos Mares(UNCLOS) (ROBERT; REMOND-GOUI-LLOUD, 1983, p. 193 et seq.). Os Países-Membros são autorizados a tomar medidascontra as embarcações, mesmo navegandocom a bandeira de Países não-Membros daConvenção.

A criação das organizações internacio-nais tem como objetivo a uniformização doscritérios de elaboração dos relatórios, seucontrole, a difusão das informações produ-zidas pelos Estados-Membros, pelas orga-nizações não-governamentais, pelos meioscientíficos e pelas outras organizações in-ternacionais, a transferência de tecnologia,como o clearing house mechanism. Elas ser-vem também como fórum das negociaçõespara os avanços do acordo internacional.São comissões43 ou secretarias44 criadas apartir de um acordo internacional. Essasorganizações são mais presentes em direitointernacional do meio ambiente. Elas semultiplicaram sobre assuntos diversos, àsvezes mesmo sobre questões conexas, mastratadas no âmbito de organizações diferen-

tes. Todavia, o controle exercido é não-des-centralizado e não-organizado.

O controle exercido pelas organizaçõesinternacionais depende de sua estrutura, desuas competências e de seu nível de organi-zação. Algumas organizações realizam reu-niões regulares e suas secretarias têm vári-as funções, como a Convenção de Londressobre a imersão dos dejetos, as Convençõesdo Programa das Nações Unidas para oMeio Ambiente (PNUMA) sobre os maresregionais e a CITES. As Convenções sobre aproteção da camada de ozônio e sobre asmudanças climáticas criaram comissõesmais amplas, em que cada órgão tem fun-ções diferentes, como se tivessem várias co-missões45. A maior parte dessas organiza-ções tem uma função mais diplomática doque de controle. Numa modalidade maisrestritiva, podem ter uma função quase ju-risdicional, como a Comissão conjunta en-tre os Estados Unidos e o Canadá, formadapara estabelecer o Tratado das águas trans-fronteiriças, de 1909 (WOLFRUM, 1998, p. 49).Assim, a cooperação recíproca, característicado direito internacional tradicional, deixalugar à cooperação coletiva (IMPERIALI,1998, p. 26; KISS, 1991, p. 266).

As comissões e secretariados não têm osmesmos poderes que as organizações inter-nacionais, tendo uma função jurisdicional.Os Estados se submetem a um controle maisou menos exigente, mas sem que severassanções sejam possíveis. Algumas comis-sões têm o poder de realizar inquéritos, comoaquele oriundo da Convenção sobre a pro-teção da camada de ozônio, mas as sançõessão ditadas pelas coletividades dos Estados-Membros, de preferência à comissão. Assim,alguns Estados, a exemplo da Rússia, tive-ram que se explicar a respeito de sua deso-bediência junto à Convenção46. Outros po-dem avaliar as informações e tomar iniciati-vas, como vimos acima. As comissões de-vem ajudar os membros e criar as condições,permitindo o cumprimento de suas obriga-ções. De uma forma mais restritiva, a UN-CLOS deu poder ao Conselho da autorida-

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de internacional dos fundos marinhos paracontrolar e coordenar a implantação da ParteXI da Convenção (WOLFRUM, 1998, p. 51).

A participação das organizações não-governamentais é também importante. Asconvenções internacionais, como algumassecretarias e comissões, vêem em sua parti-cipação um instrumento de controle e deimplantação das convenções internacio-nais. São responsáveis pela coleta das in-formações, pelo preparo dos documentos edos relatórios, assim como pela análise dosrelatórios produzidos pelos Estados. A par-ticipação das organizações não-governa-mentais depende do acesso à informaçãoprevisto pelo acordo, mas este não representaainda um elemento comum do direito inter-nacional público. Algumas convenções am-bientais o prevêem, mas é raro no âmbito dodireito internacional econômico e ainda maisraro nos acordos sobre o desarmamento.

A Convenção-quadro sobre as mudan-ças climáticas é recente, mas não prevê oacesso à informação, conquanto esteja es-crito na Convenção sobre a proteção do meioambiente marinho do nordeste do Atlânti-co. Em geral, na Europa, as convenções so-bre proteção ambiental mais recentes devemprever o acesso à informação, em aplicaçãoà Convenção de Aarhus sobre o acesso àinformação, a participação pública no pro-cesso decisório e o acesso à Justiça para osassuntos ambientais.

Ainda em direito internacional do meioambiente, a organização não-governamen-tal World Conservation Monitoring Unit con-trola os relatórios dos Estados sobre as im-portações e exportações das espécies amea-çadas. A União Internacional para a Con-servação da Natureza desempenha ali umafunção de extrema importância. Outras or-ganizações como RAFI e Grain têm umaparticipação efetiva no controle organiza-do pela Convenção sobre a Diversidade Bi-ológica47.

O segundo tipo de mecanismo é aqueleda coerção. Os mecanismos de coerção sãoos instrumentos jurídicos criados pelos Es-

tados para tornar efetiva a aplicação dosacordos internacionais. Além da criação dostribunais internacionais, vários métodos decoerção podem ser usados pelas comissões,pelas secretarias ou pelo conjunto dos Paí-ses-Membros de um acordo internacional.Alguns acordos, como o Protocolo de Mon-treal, na Convenção sobre a proteção da ca-mada de ozônio, criaram um fundo para ospaíses em desenvolvimento. Se um país nãofornecer os dados pedidos sobre os níveisde consumo das substâncias controladas,nos prazos estabelecidos, pode ser excluídoda lista dos países beneficiários desse fun-do. Da mesma forma, a Convenção sobre aHerança Mundial prevê a exclusão da listados países beneficiários de seu fundo da-queles que violarem a obrigação de conser-vação dos sítios históricos (WOLFRUM, 1998,p. 57), mesmo se isso ainda não ocorreu.

Outras convenções prevêem sanções co-merciais. É o caso da Convenção sobre aconservação do Pacífico Norte e sobre asfocas, de 1976, ou da CITES48. As disposi-ções de cada convenção variam. Em aplica-ção de alguns acordos, os Estados têm o di-reito de tomar medidas comerciais para for-talecer a eficiência das obrigações não cum-pridas pelos outros Estados. A Convençãode 1989 sobre a proibição da pesca com redede grande dimensão para pesca à deriva noPacífico Sul autoriza os Estados-Partes aproibir a importação dos peixes pescadoscom o uso das redes que pescam à deriva. OProtocolo de Montreal sobre as mudançasclimáticas e a Convenção sobre a camadade ozônio possuem também disposições derestrição comercial sobre os produtos cujafabricação constitui uma infração às dispo-sições acordadas (WOLFRUM, 1998, p. 61).

“Artigo 4: Regulamentação das tro-cas comerciais com os Estados que não sãoPartes do Protocolo

1. A partir de 1 o de janeiro de 1990,cada Parte proíbe a importação das subs-tâncias regulamentadas no anexo A,oriundas de qualquer Estado que nãoé Parte do presente Protocolo. (…)

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2. A partir de 1 o de janeiro de 1993,cada Parte proíbe a exportação de qual-quer uma das substâncias regulamen-tadas no anexo A para um Estado quenão é Parte do presente Protocolo.”

Há ainda dois tipos de medidas desti-nadas ao fortalecimento da aplicação dosacordos internacionais que não são atribui-ções de competências, mas que, em razão desua importância no direito internacional,merecem ser mencionados. Trata-se dasmedidas positivas e negativas. As medidaspositivas são criadas pelas organizaçõesinternacionais para os países que garantema eficácia dos acordos firmados, assim comodas medidas unilaterais impostas por paí-ses mais poderosos. Esses atos não são atri-buições de capacidades, pois os Estados nãotransmitiram nenhum poder à organizaçãointernacional ou a um outro poderoso Esta-do para que ele aplique a medida e estenão efetivou nenhum gesto de submissãoao ato internacional ou nacional. É relati-vamente mais a situação inversa que ocor-re. Um ato externo oriundo da comunida-de internacional ou de um outro Estadoatinge um Estado soberano e pode criaruma mudança em sua política internaci-onal.

O primeiro ato jurídico é positivo. O Es-tado que pratica algumas ações, tais como apreservação da natureza, a conservação dopatrimônio cultural, por exemplo, é habili-tado a receber fundos de um financiadorinternacional. Isso acontece com a Conven-ção sobre a Diversidade Biológica e o Fun-do Global para o Meio Ambiente (GEF), doPrograma-piloto para as florestas tropicais,do Grupo dos 7 (G7), dos projetos de desen-volvimento do Programa das Nações Uni-das para o Desenvolvimento (PNUD) e doFundo Multilateral do Protocolo de Montreal(WOLFRUM, 1998, p. 62).

O segundo é negativo. Ao lado das me-didas negativas, ou medidas de sanção, en-contram-se as imposições unilaterais oriun-das de alguns Estados poderosos. Apesardo fato não fazer parte do direito internacio-

nal, alguns Estados mais poderosos possu-em, em seu direito interno, disposições desanção contra outros Estados que violam osacordos internacionais ou valores conside-rados importantes. Os Estados Unidos sãoo exemplo mais freqüente desse modo derepressão. Em razão do peso das importa-ções norte-americanas na economia de nu-merosos países, as restrições impostas pe-los Estados Unidos podem provocar impac-tos importantes, às vezes até mais significa-tivos que as disposições tomadas por umconjunto de países europeus ou pelo Japão,no âmbito de uma convenção internacional.A emenda Packwood-Magnuson 49 , porexemplo, prevê sanções comerciais contraos países que realizam operações de pesca,pondo em perigo o programa internacionalde pesca dos Estados Unidos. Nesse con-texto, a Guarda Costeira dos Estados Uni-dos realizou várias operações de patrulha-mento no norte do Oceano Pacífico, entre1996 e 1998 (ROTHWELL, 2000, p. 140-141).A atitude é a mesma no que diz respeito aoMarine mammal protection act50 , ao Sea turtleconservation amendments to the endangered spe-cies act51 , ao High seas driftnet fisheries enfor-cement act52. Esse tipo de medida unilateralde sanção comercial foi, várias vezes, apli-cado pelos Estados Unidos, seja com o obje-tivo de conservação, seja, na realidade, comomedidas políticas mascaradas sob o rótulode preservação da natureza ou de respeitodos direitos do homem. Essas medidas nãosão consideradas legais de acordo com odireito internacional, uma vez que são uni-laterais, e algumas medidas americanas deretorsão foram condenadas pelo GATTe,mais tarde, pelo Órgão de Solução de Con-trovérsias da OMC53. É a defasagem de po-der entre os países que permite que sejamaplicadas sem muita oposição ou contrame-dida equivalente.

Vimos, portanto, que as normas interna-cionais conheceram uma importante expan-são. Hoje, esse direito já trata de uma gran-de variedade de assuntos, antes não regula-dos ou regulamentados pelo direito domés-

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tico. Esse novo direito internacional é dota-do de uma pletora de instrumentos jurídi-cos de controle para garantir sua implanta-ção. Esses instrumentos podem ser instru-mentos de cooperação e de coerção. No en-tanto, falta ainda analisar as normas conhe-cidas como soft norms, que são tão impor-tantes quanto as normas precedentes, masque não dispõem desses instrumentos decontrole.

B. A expansão das soft norms

Uma outra característica da expansão dodireito internacional é a profusão de softnorms, na seqüência do aumento dos textosinternacionais de todos os tipos: soft e res-tritivos. Evidentemente, essas normas nãotêm o mesmo grau de atribuição de capaci-dades, nem são tão importantes quanto asnormas restritivas, mas os Estados se com-prometem a cooperar e a respeitar os acor-dos realizados, sem submeterem-se, no en-tanto, a obrigações jurídicas. Consideramosque essa modalidade de comprometimentorepresenta, ela também, uma atribuição decapacidade, sendo que o Estado permite àcomunidade internacional garantir primei-ramente um controle moral sobre as dispo-sições dos acordos e depois porque essesacordos servem como base à realização defuturos acordos restritivos54. Por isso, cons-tituem uma etapa intermediária da atribui-ção de capacidade, mas já portadora de con-seqüências concretas.

As normas não-restritivas foram desig-nadas durante algum tempo com o termosoft law ou droit mou. A expressão inglesaparece pouco adequada, porque o termo lawtem um sentido de obrigação, o que não é ocaso aqui. Todavia, não existe uma expres-são em língua portuguesa adequada e usual.As obras mais recentes utilizam a expressãosoft norm, que preferimos conservar55.

As razões principais que farão com quese escolha uma soft norm em vez de umanorma restritiva são as seguintes:

a) Maior facilidade para fazer aprovarnormas sobre assuntos ainda incertos, cuja

validade científica é sempre discutida, so-bretudo se houver divergência a respeito danecessidade das medidas; por exemplo, seo princípio da precaução está em pauta. Oscódigos de boa conduta sobre a segurançanuclear adotados pela Agência Internacio-nal de Energia Atômica são a ilustração dis-so (KISS, 2000, p. 238-239);

b) Necessidade de fazer aprovar umanorma sobre um assunto politicamente con-trovertido, encontrando grande resistênciapor parte de alguns Estados ou de gruposde pressão no interior dos Estados. É maisfácil obter a obediência a uma soft norm, rati-ficada por um número significativo de Esta-dos, do que a uma proposta de convençãonão aprovada ou mesmo a uma convençãorestritiva cujo número de membros é redu-zido;

c) Preocupação com a precaução porparte dos Estados que hesitam em adotarnormas restritivas, sabendo que, freqüente-mente, não têm certeza de poder cumprir asobrigações contratadas ou que não estão deacordo com um ou vários aspectos da nor-ma, ao mesmo tempo que estão de acordocom a maior parte ou uma parte importantedas disposições. A soft norm permite que oEstado faça parte de um acordo internacio-nal sem ser obrigado a respeitar suas dispo-sições;

d) Necessidade de uma maior flexibili-dade burocrática num primeiro momento emque devem ser estudados a implantação, ocontrole, os impactos concretos da norma;

e) Soft norm podendo servir para fazerpressão sobre os Estados que não aceitaramintegrar um acordo rígido, mas que têm in-teresse em participar de um acordo interme-diário. Assim, é possível desenvolver maiso assunto, num primeiro momento, e, a pos-teriori, envolver-se nas negociações visan-do a um acordo restritivo;

f) Poder ser escolhida para resolver as-suntos menos sensíveis, o direito rígido sen-do reservado aos assuntos fundamentais.Em geral, as normas ambientais são consi-deradas menos importantes que as normas

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econômicas. É por isso que há mais normasrestritivas comerciais e mais soft norms am-bientais;

g) Tornar possível a participação dasorganizações não-estatais, sabendo que osEstados são mais abertos ao controle exter-no e interno quando não há obrigações con-cretas (SHELTON, 2000, p. 12-14). Por exem-plo, a UICN preparou uma versão prelimi-nar da Carta Mundial da Natureza, que foimandada pela Assembléia Geral das Na-ções Unidas aos Estados para receber seuscomentários e foi aprovada posteriormente,no dia 28 de outubro de 1982 (KISS, 2000, p.238).

A multiplicação das soft norms56 começoua partir da segunda metade dos anos cin-qüenta e continuou no decorrer dos anossessenta, com o aumento do número demembros da Assembléia Geral das NaçõesUnidas. O aumento se deve, sobretudo, àchegada dos países em processo de desco-lonização. Foi nessa época que se implanta-ram a organização dos países do Sul e a cons-trução de um direito do desenvolvimento.Naquele momento, uma série importante deresoluções e declarações sobre o direito dodesenvolvimento foi aprovada pela Assem-bléia Geral, mas sem eficiência concreta57. Ocaráter não-restritivo dessas normas foisempre discutido, mas na prática não en-contraram nenhum eco. A norma mais ilus-trativa nesse contexto é aquela da Nova Or-dem Econômica Internacional58.

Vários documentos importantes são ba-seados nas soft norms, como o Ato Final deHelsinque, sobre o uso dos rios internacio-nais, que foi redigido pela Associação deDireito Internacional, em 1966 (KISS, 2000,p. 226); o acordo de 1993 entre Israel e a Or-ganização para a Libertação da Palestina,destinado a reativar o processo de paz, as-sim como vários documentos de restaura-ção da paz entre eles; a Declaração do Riosobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimen-to ou a Ação 21.

Nos anos noventa, o número de soft nor-ms aumentou muito, principalmente em di-

reito internacional do meio ambiente. Amaior parte das grandes convenções ambi-entais sobre os direitos do homem, da po-pulação e das mulheres, como a Convençãosobre as mudanças climáticas, a Conven-ção sobre o habitat, a Convenção sobre o de-senvolvimento social, são convenções-qua-dro. As convenções-quadro são geralmentesoft norms, negociadas sem formulação con-cernente às obrigações de cada parte, quedependem de negociações posteriores. Elasconstroem, por outro lado, um conjunto deprincípios gerais diretores utilizados nas ne-gociações internacionais (PORTER; BROWN,1991, p. 20).

As principais características das soft nor-ms são as seguintes: são não-restritivas; con-têm expressões vagas e conceitos impreci-sos; dirigem-se também a atores não-esta-tais, cuja prática não pode constituir direitocostumeiro; é voluntária a implantação desuas disposições, não havendo instrumen-tos jurídicos para forçar essa implantação(CHINKIN, 2000, p. 30).

A natureza das soft norms não é ditadapor sua classificação, nem unicamente pelalinguagem usada, mas, sobretudo, pela prá-tica dos Estados e dos outros atores interna-cionais perante essa norma. A Corte Inter-nacional de Justiça já se pronunciou a esserespeito59 , assim como a Comissão de Direi-to Internacional60. Assim, o painel de inspe-ção do Banco Mundial transformou, por suaprática, guias de boa conduta em normaobrigatória, em função de sua aceitabilida-de por um número representativo de Esta-dos61. Da mesma forma, o Codex Alimenta-rius, que era uma norma de importância se-cundária, tornou-se uma norma obrigatóriaimportante para o direito internacional eco-nômico em razão de sua valorização pelaOrganização Mundial do Comércio, a par-tir de sua referência expressa nos acordosassinados em Marrakech (REINICKE; WIT-TE, 2000, p. 88).

Normas privadas, criadas por agentesprivados e não por Estados ou organizaçõesinternacionais, podem também se tornar soft

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norms e ser, às vezes, consideradas comoobrigatórias por parte das organizações in-ternacionais. A Organização Mundial doComércio aceita as normas do ISO e suasevoluções, no Acordo sobre as barreiras téc-nicas ao comércio. Isso implica, portanto,que os Estados têm indiretamente atribuídocompetência a agentes privados para pro-duzir normas que lhes serão impostas(O’CONNEL, 2000, p. 112). Poder-se-ia até,de uma forma mais extrema, dizer que seassiste a uma transferência de soberania.Dessa forma, a transferência de soberaniase produz no momento em que os Estadosaceitam submeter-se a uma norma privada,que será criada por uma organização deempresas.

Vimos, portanto, que o desenvolvimentodas soft norms contribui, de forma importan-te, para a expansão do direito internacio-nal. Apesar de essas normas não terem umcaráter obrigatório e carecerem de elemen-tos para garantir sua execução (enforcement),elas têm um alto grau de aceitabilidade edesempenham um papel significativo naevolução do direito internacional. E, umavez constatada a multiplicação das normas,falta analisar a multiplicação de tribunaisinternacionais.

II. A multiplicação de tribunais internacionais

Quando um conjunto de Estados cria umtribunal internacional, há uma atribuiçãode capacidade constituída pela submissãoao poder de interpretação da Corte sobre osatos dos Estados e por sua submissão àsdecisões do tribunal. A criação de um tribu-nal pode ser decidida diretamente pelosEstados ou indiretamente por uma organi-zação internacional. Os tribunais são essen-ciais para a determinação do nível de en-volvimento dos Estados numa convençãointernacional. A existência de um órgão ju-risdicional é um elemento diferenciador en-tre as convenções, ainda mais se os Estadosprevirem a possibilidade de sanções econô-micas. O processo de criação e de multipli-cação dos tribunais internacionais começou

no início do século passado, com a criaçãoda Corte Permanente de Justiça Internacio-nal, que sucedeu à Corte Internacional deJustiça. Antes daquela época, recorria-se, deuma forma mais intensa, a conciliadores eárbitros para a resolução dos conflitos es-pecíficos62.

Após a Segunda Guerra Mundial, umnúmero significativo de cortes importantesfoi criado, como a Corte de Justiça das Co-munidades Européias, a Corte Européia dosDireitos do Homem, a Corte Interamericanados Direitos do Homem e o Tribunal sobre oDireito dos Mares. Órgãos de solução decontrovérsias nasceram no âmbito do Acor-do Geral das Tarifas e Comércio e da Orga-nização Mundial do Comércio, com instru-mentos similares no Acordo Norte-Ameri-cano de Livre Comércio (NAFTA ou ALE-NA) e no Acordo de Comércio Livre (FTA)(SANDS, 2000a, p. 372; MACKENZIE, 1999).

Além disso, em função da importânciade algumas organizações para o direito, aeconomia e a política mundial, seus tribu-nais administrativos adquiriram uma pree-minência, como aqueles das Nações Unidas,da Organização Internacional do Trabalhoe do Banco Mundial. Outras cortes têm, tam-bém, uma função essencial em virtude derepercussão política de suas decisões, mascom um alcance mais restrito, como o Tribu-nal Militar de Nuremberg, o Tribunal Inter-nacional Militar63 , o Tribunal para as Re-clamações do Irã e dos Estados Unidos, oTribunal Penal Internacional para a ex-Iu-goslávia e o Tribunal Penal Internacionalpara Ruanda64.

Outros mecanismos de decisão menosestruturados merecem também ser citados,como o Comitê das Nações Unidas para osDireitos do Homem, o Pacto Internacionalpara os Direitos Civis e Políticos, a Comis-são Européia dos Direitos do Homem e aComissão Interamericana dos Direitos doHomem.

Evidentemente, se compararmos a quan-tidade de decisões por parte dos tribunaisinternacionais com o número das decisões

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dos tribunais internos, a participação dostribunais internacionais não é muito repre-sentativa. Mas a importância de suas deci-sões é política e juridicamente significativa,por duas razões65 . Primeiramente, eles jul-gam, principalmente, Estados e não parti-culares, ainda que algumas cortes interna-cionais aceitem a participação e a ação departiculares, mas sempre dirigidas contraos Estados, como a Corte Européia dos Di-reitos do Homem, por exemplo. Depois, ospareceres e opiniões consultivos têm reper-cussões nas cortes do mundo inteiro e, por-tanto, na evolução do direito internacionale do direito interno de muitos países.

Todavia, não há necessariamente umahierarquia das normas. A Corte Internacio-nal de Justiça (CIJ) não é uma instituiçãoacima dos outros tribunais, mesmo se elatem um estatuto político superior (FABRI,1997, p. 719-720). Esse estatuto superior temorigem na tradição da Corte, na variedadedos temas tratados e no fato de ser ela o prin-cipal órgão judicial das Nações Unidas. Masnão é uma instância superior às outras. Asdecisões do Órgão de Solução de Contro-vérsias da Organização Mundial do Comér-cio e da maioria dos tribunais citados são aúltima instância no tocante aos conflitosjulgados. As únicas exceções são o Tribu-nal Administrativo das Nações Unidas66 , oTribunal Administrativo da OIT67 e o Con-selho da Autoridade Internacional da Avi-ação Civil68 , cujas decisões podem ser revi-sadas pela CIJ.

Assim, a preferência pela CIJ não é umaregra. Ao contrário, cada corte tem suas com-petências. Os Estados preferem apelar parauma ou outra das instâncias de resoluçãodos conflitos em função de cada situaçãoparticular. Várias razões podem explicar anão-preferência da CIJ (CHARNEY, 1999,p. 122). Para alguns assuntos, mais especi-alizados, como o comércio, as finanças ouos investimentos, os Estados preferem umainstância dotada de peritos e que se mostremais tradicional nesses campos. Às vezes,os Estados preferem lidar com outros mem-

bros que com os 15 juízes da Corte Interna-cional de Justiça e podem, então, dirigir-se apessoas oriundas da região ou da culturaem que o conflito tem sua origem, fazendouso da arbitragem ou de um tribunal regio-nal. Ou, ainda, preferem manter o segredo arespeito dos casos controvertidos, o que nãoseria possível diante da CIJ, em que os casostêm sempre grande repercussão mediática.Podem ainda desejar a participação das or-ganizações não-governamentais, o que tam-bém não é possível diante da CIJ.

A Corte Internacional de Justiça concen-tra mais seus esforços nos casos ligados aodireito internacional tradicional. A maiorparte deles diz respeito a problemas de fron-teiras, de águas internacionais, de projetoscomuns de desenvolvimento sobre recursoscomuns etc. As outras cortes podem tratardo direito internacional necessário; no en-tanto, as mais importantes são aquelas quetratam do direito internacional voluntário,como os direitos do homem, o direito do meioambiente, a saúde pública ou o comérciointernacional. Nesse caso, o Estado limita oexercício de sua liberdade soberana a partirde sua adesão às normas internacionais esubmete suas atividades ao julgamento deuma corte internacional. Como a progres-são da competência dessas cortes sobre odireito voluntário está em plena expansão,o número das atividades tipicamente inter-nas aos Estados que se vêem submetidos àscortes internacionais está crescendo. Portan-to, cada vez mais os tribunais internacio-nais controlam as atividades quotidianasdos Estados, nas disciplinas mais diversase mais corriqueiras, e, conseqüentemente, osindivíduos.

Apesar da competência, à primeira vistarestrita, das instâncias de resolução dos con-flitos, algumas cortes têm uma competênciabastante ampla e se beneficiam de um po-der importante na expansão do direito in-ternacional voluntário. É o caso da Corte eda Comissão Européia dos Direitos Huma-nos, ou ainda do Órgão de Solução de Con-trovérsias da Organização Mundial do Co-

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mércio. A Comissão Européia dos DireitosHumanos, por exemplo, havia registrado404 casos em 1981, 2.037 em 1993 e 4.750em 1997. O número de dossiês não-registra-dos ou provisórios abertos pela Comissãoem 1997 foi maior do que 12.000. Os núme-ros para a Corte (1999, p. 4) aumentaramtambém: 7 casos deferidos em 1981, 52 em1993 e 119 em 1997.

O Órgão de Solução de Controvérsias daOrganização Mundial do Comércio adqui-riu grande importância em vários setores.Isso se tornou possível pelo ganho de legiti-midade obtido pelo Órgão, em vista da am-plitude das matérias tratadas e da submis-são dos Estados aos pareceres emitidos69 .Casos importantes, como o uso dos hormô-nios bovinos, os auxílios ao desenvolvimen-to dados às ex-colônias e fixados pela Con-venção de Lomé, as normas sobre a conser-vação da qualidade do ar, os subsídios esalvaguardas a setores industriais impor-tantes, como o aço ou a agricultura, tiveramque ser modificados por causa das decisõesda Organização Mundial do Comércio.

Diante dessa quantidade de normas e detribunais, pode-se imaginar a eventualida-de de um problema, devido à dupla compe-tência de dois ou mais tribunais num mes-mo caso ou à falta de coerência de um trata-mento, por vários tribunais distintos, dematérias relativas a um mesmo assunto.Essa questão resulta em outra mais ampla,a da coerência do direito internacional. É oque vamos abordar na seqüência.

3. A questão da coerência dodireito internacional

A Convenção de Viena sobre o Direitodos Tratados, de 23 de maio de 1969, esta-belece que: 

“Artigo 31 – Regra geral de inter-pretação

(...)3. Será levado em consideração,

concomitantemente ao contexto:(...)

c) Toda regra pertinente de direitointernacional aplicável nas relaçõesentre as Partes”.

A Convenção confirma, assim, a tentati-va visando ao reconhecimento da noção desistema jurídico internacional, visto que pro-põe um método de resolução dos conflitosintermediários entre os tratados e costumesinternacionais. Além disso, o artigo 31 (3)(c) estabelece que todas as regras do direitointernacional, aplicáveis nas relações entreas Partes, devem ser consideradas70. A clas-sificação do conjunto das normas interna-cionais como sistema depende da coerênciaentre essas normas, assim como da possibi-lidade de resolução dos conflitos de normas.Enfim, a palavra sistema significa “um con-junto ordenado de princípios formando umcorpo de doutrina” ou uma “combinaçãode partes que se coordenam para formar umconjunto”. Donde duas hipóteses importan-tes: a existência de um único direito inter-nacional, formado pelo conjunto das nor-mas assinadas pelos Estados, e a coerênciadesse direito internacional, coerência garan-tida por um método de resolução dos confli-tos entre normas opostas.

Entre os não-juristas, Raymond Aron(1962, p. 103)71 discutiu também a noção desistema internacional, mas com bases dife-rentes. Sua concepção do sistema baseia-seno conceito de direito internacional neces-sário, mais precisamente sobre a paz e aguerra. Ele hesitou em empregar a palavrasistema, pois a coerência do sistema repou-sava na competição, que se organiza em fun-ção de um conflito. A questão da coerência,naquela época, repousava mais sobre a idéiade que a coerência era fundada na possibi-lidade de um conflito armado entre os Esta-dos-Partes do sistema. Hoje o problema dacoerência repousa, sobretudo, numa outranoção de sistema, orientada principalmen-te no direito internacional moderno, ele pró-prio focalizado, não sobre o conflito, massobre a cooperação entre os Estados, por-tanto, pacífico. Nessa perspectiva, o proble-ma em questão trata da coerência lógica en-

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tre as normas e as instituições jurídicas queformam o sistema e, mais especificamente,nessa ordem jurídica em que se multiplicamas capacidades, as competências, as disci-plinas e as fontes do direito, que articula-ções e que efeitos estão em jogo.

A resolução das contradições entre asnormas do direito internacional que dizemrespeito a um setor determinado, como osconflitos internos dos direitos humanos, eos conflitos que opõem o direito econômicoe o direito do meio ambiente não criam mui-tos problemas, pois existe um certo nível decoordenação e de coerência entre os diferen-tes acordos, e os tribunais que os julgam são,em geral, os mesmos ou pouco numerosos.A questão maior é aquela dos conflitos en-tre normas pertencendo a diferentes ramosdo direito internacional, como se constatanum conflito que opõe uma norma do direi-to internacional do meio ambiente e uma dosdireitos humanos ou ainda uma norma dodireito internacional do meio ambiente euma do direito econômico internacional, porexemplo. É um problema (de falta) de coe-rência entre as normas. A resolução dessesconflitos nem sempre é fácil, sobretudoquando os fóruns de resolução dos confli-tos são organizados segundo uma lógicaespecífica, inerente a cada domínio técnicoparticular, que segue não somente a legisla-ção específica e hermética de um setor dodireito, mas, sobretudo, a lógica inerente aessa legislação. Para verificar se há umacoerência entre os diferentes setores do di-reito internacional, é preciso igualmente fa-zer uma análise da forma pela qual os tribu-nais internacionais se comportam diantedos conflitos de normas, em situações con-cretas, para avaliar a (falta de) coerênciaentre os tribunais.

3.1. A falta de coerência entre as normas

No direito interno, a resolução dos con-flitos de normas varia de acordo com o país.De uma forma geral, Kelsen propõe um mé-todo lógico de resolução, examinando su-cessivamente a hierarquia, a especificidade

(lex specialis derogat lex generalis) e a data deadoção da norma jurídica. Outros atributospoderiam ser acrescentados, dependendodo Estado, como a competência de um tipode norma para tratar de um assunto especí-fico ou a competência de um órgão na pro-dução de uma norma relativa a um determi-nado assunto. No direito internacional, essaanálise não se opera da mesma forma. Paracomeçar, não há uma hierarquia entre os tra-tados. Pode existir uma hierarquia entreuma convenção internacional e um proto-colo que a regulamenta, mas não há, porexemplo, uma superioridade entre uma con-venção relativa aos direitos humanos e umaconvenção relativa ao direito do meio ambi-ente, uma vez que as duas normas são con-venções internacionais. Depois, é difícil de-finir a especificidade de uma norma, sobre-tudo se o mesmo assunto é regulado em doissetores diferentes do direito internacional.Podemos mencionar como exemplo as nor-mas humanitárias e as normas ambientais,visto que o direito do meio ambiente é, àsvezes, considerado um direito do homem.Enfim, a norma mais recente não é sempre amais válida, porque é possível que os Esta-dos-Partes não sejam todos signatários detodas as normas em conflito72.

O principal problema é aquele da coe-rência entre as normas relativas a setoresdiferentes. As normas dos direitos huma-nos, as normas econômicas, aquelas da pro-priedade intelectual, do meio ambiente e asnormas militares são com freqüência orga-nicamente desconectadas entre si. O con-junto é somente uma coleção fragmentadade diferentes textos raramente colocados emrelação uns com os outros. Esse mosaico for-mado pelas normas do direito internacio-nal começa a conectar-se aos poucos, mas ésempre fragmentado. A comparação entre odireito internacional posterior à SegundaGuerra Mundial e o direito internacionalcontemporâneo é, a esse respeito, interessan-te: os primeiros instrumentos jurídicos im-portantes como o GATT, criado em 1947, ascartas do Banco Mundial e do Fundo Mone-

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tário Internacional não fazem quase nenhu-ma referência aos valores emergentes daépoca, como aqueles dos direitos do homem.O mesmo ocorre no tocante à ConvençãoEuropéia dos Direitos do Homem, de 1950,ou ao Pacto sobre os Direitos Civis, Políti-cos, Econômicos e Sociais, de 1966. Eviden-temente, alguns elementos garantindo a co-nexão entre os diferentes setores do direitopodem ser encontrados, como a Parte IV doGATT, de 1976, e o Pacto sobre os DireitosCivis, Políticos, Econômicos e Sociais, rela-tivo aos países em desenvolvimento, mas sãoelementos pontuais e pouco marcantes.

No direito contemporâneo, ao contrário,há mais referências de um setor ao outro, e agrande maioria das normas refere-se ao di-reito do meio ambiente. Quase todos os acor-dos comerciais se reportam à proteção danatureza ou ao desenvolvimento sustentá-vel. Igualmente, os acordos ambientais fa-zem referência a importantes aspectos eco-nômicos, como a propriedade intelectual, atransferência de tecnologia e o comércio in-ternacional (SANDS, 1999, p. 41-43). Essavisão de um direito internacional contem-porâneo mais interconectado é essencialpara entender sua evolução. No entanto, asligações não são coerentes, porque as lógi-cas que conduziram à evolução desses seto-res do direito são distintas. O direito econô-mico, incorporado pelo direito do meio am-biente, contém disposições particulares e sesubmete à lógica ambiental. As normas am-bientais incorporadas pelo direito econômi-co são submetidas à lógica liberal. Entretan-to, às vezes essas lógicas são opostas, poisse chega a limitar ao máximo ou a anular aproteção do meio ambiente em nome do co-mércio ou, ao contrário, a permitir medidascomerciais unilaterais em defesa da nature-za, o que vai contra a lógica de cada umdesses setores do direito.

É comum ver diferentes convenções in-ternacionais tratar do mesmo assunto e ofe-recer soluções diferentes para os mesmosconflitos. Para o que nos interessa, vamosfocalizar a análise sobre as contradições

entre o direito internacional econômico e odireito do meio ambiente. O principal acor-do do direito internacional econômico, emcomércio internacional, é o Ato de Marrake-ch, que criou a Organização Mundial doComércio. Será analisado no âmbito de umacomparação com os acordos multilateraisambientais, no tocante aos problemas deincoerência entre essas normas.

Um primeiro conflito potencial é levadoao tribunal competente para as questõesambientais ou ligadas à proteção do meioambiente. A Convenção sobre a Diversida-de Biológica estipula, em seu artigo 27 (3)(b), que os conflitos entre as partes relativosà interpretação ou à aplicação da Conven-ção devem ser feitos por meio de negocia-ção, conciliação, arbitragem e ser levados àCorte Internacional de Justiça, em últimainstância. O Protocolo de Biossegurança73

– que trata dos organismos geneticamentemodificados – regula a Convenção sobre aDiversidade Biológica. Ele submete possí-veis futuras controvérsias sobre os assun-tos tratados à CIJ74. Entretanto, um conflitosobre o comércio internacional dos organis-mos geneticamente modificados, em relaçãoao controle do processo de produção, porexemplo, poderá ser julgado tanto pela Or-ganização Mundial do Comércio, pois setrata de uma matéria comercial, quanto pelaCorte Internacional de Justiça. Mas seriadifícil que, nessa situação, as duas cortesaplicassem as mesmas normas jurídicas.Inicialmente, a CIJ se baseará tanto nas nor-mas econômicas do direito da OMC quantona Convenção sobre a Diversidade Biológi-ca e no Protocolo de Biossegurança. Eviden-temente, esses textos poderão ser tambémusados pelo Órgão de Solução de Contro-vérsias da OMC, mas serão os acordos daOMC que serão levados em consideração emprimeiro lugar, o que poderia mudar com-pletamente a decisão final. Ainda nesse con-texto, o controle de segurança do processode produção poderia, portanto, ser levadoem consideração pela CIJ, mas jamais pelaOMC, diante da qual essa análise não é líci-

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ta. Enfim, a análise referente à consideraçãodo princípio da precaução não teve a mes-ma sorte em processos anteriores debatidosno seio dos dois fóruns de decisões, o queanalisaremos mais tarde75. Essas diferençasde apreciação poderiam ser encontradastambém na Convenção sobre as MudançasClimáticas, a respeito do comércio das au-torizações de emissões, em que se determi-na a competência da CIJ, estabelecida pelaConvenção sobre as Mudanças Climáticas,mas também da OMC, visto que o tema podeter repercussões comerciais.

Uma situação concreta é representadapelo conflito entre o Chile e as Comunida-des Européias, em relação à pesca do peixe-espada, a respeito da qual as ComunidadesEuropéias pediram, em abril de 2000, a aber-tura de um painel contra o Chile perante aOSC 76 e, em dezembro desse ano, as duaspartes pediram também a solução do mes-mo conflito diante do Tribunal Internacio-nal do Direito ao Mar (ITLOS)77. A apresen-tação do conflito diante do ITLOS demons-tra que a incoerência do direito internacio-nal pode ser usada pelas partes, em funçãode seus interesses particulares. Os dois sis-temas de soluções de conflitos progrediramem paralelo, mas, em março de 2001, as par-tes firmaram um acordo e pediram o fim doprocesso ao ITLOS e ao OSC. Embora essescasos não tenham resultado numa soluçãoelaborada pelos juízes, os dois parecerespoderiam estar em contradição, em razãodas diferenças de prioridade dadas às nor-mas do direito do mar e do direito internaci-onal econômico, por parte do tribunal dodireito do mar e da OSC.

Nos conflitos entre as regras do direitointernacional econômico da OrganizaçãoMundial do Comércio e os acordos ambien-tais multilaterais, o método de análise poderepresentar o principal obstáculo à coerên-cia das decisões oriundas de diferentes tri-bunais. O Órgão de Solução de Controvérsi-as da OMC já implementou uma metodolo-gia que consiste em analisar, em primeirolugar, os aspectos ambientais, nos casos

Gasolina, que opunham os Estados Unidos,de um lado, ao Brasil e à Venezuela, do ou-tro, a respeito da proteção do ar. A mesmafoi desenvolvida no caso Camarões que opôsos Estados Unidos à Índia, ao Paquistão, àTailândia e à Malásia (SANDS, 2000a, p.391-392). A metodologia adotada coloca noprimeiro plano a proteção do meio ambien-te. Uma vez avaliadas as medidas em pau-ta, procede-se à análise das questões comer-ciais: a norma não deve ser uma restriçãodisfarçada ao comércio internacional nemum meio de discriminação arbitrária ou in-justificável entre os países em que existemas mesmas condições comerciais. Para queuma medida seja considerada válida, é pre-ciso que as duas avaliações sejam satisfei-tas, a avaliação ambiental e a avaliação co-mercial. É preciso, também, ter feito esforçospara negociar as soluções a serem trazidasaos problemas ambientais antes de tomarmedidas unilaterais. Essa avaliação múlti-pla não está prevista por outras convençõesmultilaterais sobre o meio ambiente, salvoalgumas exceções, de caráter genérico, comoa Convenção sobre a Diversidade Biológi-ca, e constitui, assim, um motivo de conflito.

Uma outra área de conflito potencial éaquela das medidas unilaterais tomadas porum Estado, a fim de desencorajar a produ-ção de substâncias nocivas ao meio ambi-ente, como aquelas que destroem a camadade ozônio, ou os processos de produção queafetam a fauna e a flora, como a comerciali-zação do CFC. Essa modalidade de discri-minação, prevista pelos acordos ambientais,viola os artigos XX (b) e (g) do GATT(HUDEC, 2000, p. 150-151).

Igualmente, a Convenção sobre o comér-cio internacional das espécies de fauna e deflora selvagens ameaçadas de extinção78, aConvenção de 1940 sobre a proteção da na-tureza e a preservação da vida selvagem nohemisfério ocidental79 , a Convenção de 1950sobre a proteção das aves80 , o Acordo sobreos ursos polares81 , de 1973, a Convenção de1989 sobre a proibição da pesca com redesde pesca à deriva no Pacífico Sul82 , o Proto-

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colo de Montreal e a Convenção da Basiléiasobre o controle dos movimentos transfron-teiriços de dejetos perigosos e sua elimina-ção, na medida em que todos esses textosprevêem regras restritivas ao comércio fun-damentadas na proteção do meio ambiente,podem todos ser matéria de conflito. Essesacordos internacionais têm um número con-siderável de partes que, em geral, são asmesmas que aquelas da OMC. Todaviaa re-lação entre essas medidas e as disposiçõesdo GATT não são obrigatoriamente concor-dantes e a aplicação de uma medida unila-teral, por parte de um determinado país83 ,sem negociação prévia entre as partes, podeser julgada como ilegal pela OMC. A Con-venção sobre a proibição da pesca com umarede de grande dimensão pescando à deri-va, no Pacífico Sul, de 1989, traz em seu ar-tigo 3 uma restrição comercial sobre a prote-ção dos recursos haliêuticos84 .

Poderia ser útil, nessa situação, aplicaras regras de interpretação, como a lex speci-alis derrogat lex generalis, e uma lei posteriorderrogar uma lei anterior. As normas ambi-entais são mais específicas, às vezes maisrecentes do que as regras do GATT. Nessecaso, se considerar a validade da Conven-ção de Viena, seria necessário aplicar o acor-do ambiental. Mas o Órgão de Solução deControvérsias tem o poder de interpretarsuas obrigações segundo as regras daOMCe, independentemente de outras nor-mas, documentos ou outras instituições evo-cadas pelas partes, os pareceres demons-tram essa tendência85. Segundo o Órgão deSolução de Controvérsias,

“consideramos que um grupo especi-al tem também o poder de aceitar ourejeitar qualquer informação e opiniãoque poderia ter pedido ou recebido,ou dispor disso de uma outra forma,tanto apropriada. […] Um grupo es-pecial tem, em particular, a possibili-dade e o poder de determinar se infor-mações e opiniões são necessárias,num determinado caso, para avaliara admissibilidade e a pertinência das

informações ou opiniões recebidas epara decidir qual importância convémdar ao que foi recebido”86.

Nos casos citados, as normas econômicasda OMC são colocadas acima das outrasnormas do direito internacional, porque odireito internacional é interpretado à luzdas regras da OMC. A primazia do direitointernacional econômico sobre outros seto-res importantes do direito internacional sefaz à medida que o Órgão de Solução deControvérsias ganha legitimidade e cresceo número de casos que lhe são submetidos.

Um outro aspecto importante nesse con-texto é a validade das medidas restritivasao comércio, tomadas por razões ambien-tais e impostas a Países não-Membros dasconvenções internacionais. Na Convençãoda Basiléia, CITES e Protocolo de Montreal,figuram medidas previstas contra os paísesnão-signatários. Mas a aplicação dessasmedidas a países não-signatários é ilegalpara o sistema do GATT (HUDEC, 2000, p.162). Uma análise desses acordos pelo Ór-gão de Solução de Controvérsias seria pro-vavelmente interpretada à luz da Conven-ção de Viena, e os Estados não-Partes esta-riam isentos da obrigação de respeitar acor-dos ambientais.

A análise das decisões já tomadas pelostribunais internacionais, e especialmentepelo Órgão de Solução de Controvérsias,como por outras cortes, será útil para a veri-ficação da coerência entre as práticas de in-terpretação do direito internacional87.

3.2. A falta de coerência entre as técnicas deinterpretação jurisdicional

A falta de coerência entre as técnicas deinterpretação pode resultar em diferençasimportantes entre as decisões dos diferen-tes órgãos jurisdicionais internacionais,particularmente no momento do confrontoentre o comércio e o meio ambiente. Entre ostemas mais importantes, colocam-se as ques-tões comerciais ligadas ao meio ambiente.A ascensão do Órgão de Solução de Contro-vérsias da OMCseu tratamento dos casos

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ligados à proteção da natureza e sua postu-ra fechada frente às organizações não-go-vernamentais provocaram uma nova dis-cussão a respeito da necessidade de umaOrganização Mundial do Meio Ambientedotada de um Órgão de Solução de Contro-vérsias específicas às matérias ligadas àproteção do meio ambiente e ao comércio,que atue à luz dos acordos multilaterais domeio ambiente. Essa opção não parece ser omecanismo mais apropriado a fim de resol-ver um possível problema de reducionismoeconomista do meio ambiente, visto que seidentificam hoje várias organizações inter-nacionais específicas de proteção à nature-za como a UNCLOS ou genéricas como oPNUE, mas que não têm a mesma força quea OMC para julgar os casos ligados ao co-mércio. Assim, a criação de uma nova orga-nização não trará muitos elementos novosno contexto internacional de hoje. Mesmose tal organização for criada, a questão-cha-ve será sempre aquela de resolver os possí-veis problemas de conflitos de competênciae de interpretação distinta em relação àsconvenções ambientais.

Uma outra solução mais apropriada se-ria readaptar a postura do Órgão de Solu-ção de Controvérsias da OMC para atenderas críticas e aplicar os acordos ambientaismultilaterais nos casos julgados, evitando,assim, a falta de coerência entre os diferen-tes tribunais existentes. A falta de coerênciapode traduzir-se de várias formas: diferen-ças de interpretação sobre um mesmo as-sunto, não-integração dos diferentes seto-res do direito internacional.

I. Diferenças de interpretação sobre um mesmoassunto – o exemplo do princípio da precaução

Esse exemplo é emblemático, pois já foisimultaneamente objeto de diferentes inter-pretações oriundas de diferentes jurisdiçõesinternacionais. É por isso que o usaremosaqui como o exemplo perfeito para confir-mar as divergências jurisdicionais sobre oplano internacional e os problemas de coe-rência que decorrem disso.

O princípio da precaução foi geralmenteapresentado como sendo a ferramenta deconciliação entre o meio ambiente e o de-senvolvimento. Mas sua implementação noplano jurisdicional mostra até que ponto aconciliação é materialmente árdua. A ques tãoda aceitabilidade do princípio da precauçãono seio da OMC é um bom indicador quandose quer comparar a coerência entre as nor-mas comerciais e ambientais, sobretudo se asconfrontamos com a interpretação que é dadapela Corte Internacional de Justiça. O objetodo estudo – o princípio da precaução – é umprincípio em construção, cujo reconhecimen-to é visto como um gesto precursor, favorávelà proteção do meio ambiente.

A Organização Mundial do Comércio ea Corte Internacional de Justiça já tiveram aoportunidade de se pronunciar sobre a apli-cabilidade do princípio da precaução. Alémdisso, os objetos são comparáveis. O que sepretende analisar aqui é a questão de saberse as duas organizações internacionais in-cluíram ou não o princípio em sua interpre-tação do direito internacional e, no caso deuma resposta positiva, como o princípio foientendido. Examinaremos, portanto, umapós outro, os pareceres da OrganizaçãoMundial do Comércio, da Corte Internacio-nal de Justiça e da Corte de Justiça das Co-munidades Européias.

a) O Órgão de Apelações da OMC

O Órgão de Apelações da OMC teve, emtrês momentos, a oportunidade de emitirconsiderações a respeito da aplicabilidadedo princípio da precaução. Trata-se dos ca-sos: Austrália – medidas afetando a importaçãode salmão (Salmão)88 ; Comunidade Européia –medidas relativas à carne e aos produtos da car-ne (Hormônios)89 ; e Japão – medidas afetandoos produtos agrícolas (Produtos agrícolas)90. Oprincípio da precaução foi invocado cadavez, no âmbito do acordo sobre a aplicaçãodas medidas sanitárias e fitossanitárias(Acordo SPS) (Cf. FABRI, 2000).

O artigo 2.2 prevê que um País-Membronão pode tomar medidas de proteção sem

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ter “provas científicas suficientes”. A pri-meira dificuldade está na necessidade deidentificar o conteúdo da expressão sufici-ente, presente no artigo. Segundo o Órgão deApelações, no caso Produtos agrícolas, sufi-ciente é uma palavra relacional. Deve serlida em função da relação existente entre onível de restrição imposto pela medida to-mada pelo país e a evidência científica. As-sim, o grau de consolidação da ligação cau-sal entre a medida e as provas científicastorna-se o aspecto mais importante do de-bate. Conseqüentemente, trata-se de umaexpressão que deve ser verificada em cadacaso. Ela diz respeito, também, à última fra-se do artigo, portanto, a palavra suficienteinclui os artigos 3.3 e 5.791 .

Para a concretização do princípio daprecaução, o Órgão de Apelações, funda-mentado no artigo 5.7, coloca condições. Amedida deve ser:

1. Imposta numa situação em que as in-formações científicas pertinentes são insu-ficientes;

2. Baseada na informação científica dis-ponível;

3. Seguida de um esforço para obter in-formações complementares necessárias auma avaliação mais objetiva do risco;

4. Condicionada a uma nova análisenum prazo razoável.

Encontramos uma quinta condição, en-quanto o Órgão de Apelações somentemenciona quatro, visto que exige tambémque a medida seja provisória e não consi-dera seu caráter provisório como umacondição de análise, fato com o qual nãoconcordamos. Exigir que a medida sejaconsiderada provisória: essa condição é,na prática, uma condição de aceitabilida-de da medida.

Essas condições são acumulativas eigualmente importantes para determinar aconsistência da disposição. Como indica oÓrgão de Apelações, no caso Produtos agrí-colas, se faltar uma dessas condições, a me-dida será considerada contrária ao direitoda OMC92.

A determinação da insuficiência de pro-vas científicas disponíveis é feita por cadapaís. Evidentemente, não é preciso unani-midade científica a favor da medida, pelomenos, existência de uma dúvida, até mes-mo de uma controvérsia científica. Se nãohouver controvérsia, não há também umabase permitindo que seja tomada uma me-dida SPS93 . A periodicidade da revisão daanálise é determinada caso a caso, de acor-do com a natureza da medida, aquela dosprodutos em questão e os avanços científi-cos. Mediante a da análise realizada, perce-be-se, portanto, que a OMC reconhece o prin-cípio da precaução e lhe dá um conteúdoconcreto, embora essa análise limite a mar-gem de manobra dos Estados.

b) A Corte Internacional de Justiça

A Corte Internacional de Justiça igual-mente teve a oportunidade de avaliar a apli-cação do princípio da precaução no casorelativo ao projeto Gabcíkovo-Nagymaros,opondo a Eslováquia e a Hungria e para oqual o veredicto foi dado no dia 25 de se-tembro de 199794 . Trata-se, portanto, de umadecisão recente, posterior a um grande nú-mero de normas internacionais estabeleci-das sobre a existência do princípio da pre-caução. Ela é somente dois meses anterior àdecisão emitida no caso Hormônios, naOMCEvidentemente, a relação entre os doisassuntos é quase inexistente, exceto no quediz respeito à tomada em consideração doprincípio da precaução. Vamos, portanto,estudar a alegação do princípio da precau-ção diante da CIJ e sua interpretação sobre aaplicação do princípio.

A Corte Internacional de Justiça preferiujulgar o caso, inscrevendo-o na teoria da res-ponsabilidade civil e, mais especificamen-te, na tomada em consideração do estado denecessidade como causa do não-cumpri-mento das obrigações da Hungria na exe-cução de um tratado internacional. Have-ria, de acordo com a Hungria, um estado denecessidade ambiental, baseado no princí-pio da precaução, sendo oobjeto do tratado

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a realização de um investimento compatí-vel com a proteção do meio ambiente e ex-plorado concomitantemente pelas duas par-tes contratantes. Visto que a compatibilida-de com a proteção do meio ambiente já nãoexistia, a realização do objeto do tratado eraimpossível de acordo com os artigos 61 e 62da Convenção de Viena95.

A Corte96 não considerou que os avan-ços em matéria de meio ambiente fossem umelemento imprevisto, inscrevendo-se noâmbito da teoria da imprevisibilidade97. Atéreconheceu que os impactos ambientais dosprojetos foram consideráveis98 . Tanto a evo-lução científica quanto o desenvolvimentosustentável são citados como elementos im-portantes da discussão99. Todavia, a partirdo momento em que a Corte Internacionalde Justiça julga a matéria sob a ótica do di-reito de responsabilidade, exige que o peri-go seja “sério e iminente” e acrescenta queas dúvidas evocadas pela Hungria não eramsuficientes para caracterizá-lo. Além disso,não havia provas do caráter “sério e imi-nente” do perigo. O texto do parecer é claro:

“Entretanto, a Corte considera, portão sérias que pudessem ter sido es-sas incertezas, que elas não poderiampor si só estabelecer a existência de um‘perigo’ como elemento constitutivo de umEstado de necessidade. A palavra ‘peri-go’ evoca, é claro, a idéia de ‘risco’; éprecisamente nisso que o ‘perigo’ sedistingue do dano materializado. Masnão poderia haver estado de necessi-dade sem um ‘perigo’ devidamentecomprovado no momento pertinente;a única apreensão de um ‘perigo’ possívelnão bastaria a este respeito . Seria, aliás,difícil que fosse de outra forma, desdeque o ‘perigo’ constitutivo do estadode necessidade deve ser ao mesmotempo ‘sério’ e ‘iminente’.

A ‘iminência’ é sinônimo de ‘imedi-atismo’ ou de ‘proximidade’ e ultrapas-sa muito o conceito de eventualidade.Como enfatizou a Comissão do Direi-to Internacional em seu comentário, o

perigo extremamente sério e iminentedeve ser ‘encontrado, pesando, nomesmo momento, sobre o interesseameaçado”.

Em uma palavra, a Corte Internacionalde Justiça não considerou, no caso Gabcíko-vo-Nagymaros, que o princípio da precau-ção era suficiente para permitir o reconheci-mento dos elementos, demonstrando o esta-do de necessidade numa situação concreta.Perdeu, portanto, uma importante oportu-nidade de fazer progredir o direito interna-cional pela incorporação do princípio daprecaução à doutrina do estado de necessi-dade (cf. SANDS, 2000b, p. 211 et seq.).

c) Corte de Justiça das Comunidades Européias

O princípio da precaução foi invocadoem vários casos levados à Corte de Justiçadas Comunidades Européias (CJCE). Asposições da Corte Européia a esse respeitonão foram tão vagas como a posição da Cor-te Internacional de Justiça, nem tão rígidascomo a posição do Órgão de Solução deControvérsias da OMC100. Essa terceira pos-tura frente ao princípio da precaução con-tribui para a elaboração de uma conclusãoformada a partir das diferentes interpreta-ções dadas a respeito da implementaçãodesse princípio. Entre os casos mais perti-nentes, destacaram-se Safety Hi-Tech Srl con-tra S&T Srl., Gianni Bettati contra Safety Hi-Tech Srl101 e o caso vaca louca, que opôs aFrança à Comissão Européia102 quanto aofim do embargo sobre a carne inglesa; elassão interessantes em relação aos princípiosda precaução e da proporcionalidade, masé a de Mondiet (C-405/92) que é a mais ilus-trativa da posição da Corte.

A Corte analisou o caso à luz do princí-pio da precaução. Entendeu que não haviareais estudos científicos precisos sobre asconseqüências que poderia ter o uso de re-des pescando à deriva sobre todas as espé-cies ameaçadas e, portanto, que o Conselhotinha agido na esfera de seu poder discrici-onário, sem ter demonstrado o excesso quefoi invocado e apoiando-se no princípio da

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precaução. Ela considerava, portanto, quenão tinha havido desvio de poder, comopretendiam os pescadores103 .

Enfim, a Corte aceitou também a posiçãodo Conselho, que defendia a idéia que po-deria mudar a norma jurídica no caso de ternovos estudos contrários à restrição adota-da. Isso torna a posição da CJCE completa-mente distinta do parecer do Órgão de Solu-ção de Controvérsias da OMC, porque ne-nhuma obrigação foi solicitada ao Conse-lho para realizar estudos científicos parajustificar a medida restritiva, nem praticarnovas análises periódicas relativas à medi-da. A posição da Corte mantém o Conselhonuma posição confortável e fortalece seupoder discricionário para usar o princípioda precaução, sem obrigações concretas fu-turas para a manutenção de uma norma res-tritiva.

II. A não-integração dos diferentessetores do direito internacional

Para mostrar concretamente esse fenô-meno, o exemplo do direito internacional domeio ambiente e dos direitos do homem apa-rece como útil. Cada vez mais, o direito domeio ambiente é considerado pelos juristasdos direitos humanos como uma parte des-se setor do direito internacional. Se for ocaso, ali, de uma visão relativamente antro-pocêntrica que divide os juristas, ela é acei-ta pelas cortes internacionais e vários casosjá foram julgados na Corte Européia dosDireitos do Homem que se referiam ao res-peito ao direito do meio ambiente. Existemtambém pareceres em que situações trata-das pelas convenções de direito internacio-nal do meio ambiente são analisadas sob aótica dos direitos do homem, e as decisõesestão baseadas nesse direito. Mesmo se che-garmos a soluções semelhantes, constata-mos uma falta de coerência na aplicação denormas mais gerais em vez de normas espe-cíficas, que demonstram como os tribunaissetoriais ainda estão fechados à multidisci-plinaridade do direito internacional, sobre-tudo do direito internacional voluntário.

O caso Lopez Ostra versus Espanha ilustraesse fenômeno. A Corte Européia dos Direi-tos do Homem julgou que as normas estabe-lecidas para lutar contra a poluição ambi-ental estavam baseadas em um direito indi-vidual, previsto no artigo 8 da ConvençãoEuropéia dos Direitos do Homem, que tratado direito ao respeito à vida privada104 . Acorte procede a uma série de consideraçõessobre a proteção do meio ambiente ao longodo parecer, mas somente faz referência auma norma ou a uma prática costumeira dodireito internacional do meio ambiente.Num outro parecer, Balmer-Schafroth e outrosversus Suíça, a maioria dos juízes (doze) de-cidiu que o artigo 6 da Convenção Européianão garantia o direito dos residentes locaisao acesso aos órgãos administrativos e ju-diciais na Suíça, para obter que fosse postoum fim à extensão de uma licença de opera-ção de uma central nuclear, enquanto ou-tros oito juízes condenaram a posição do-minante, formulando uma repreensão, vis-to que o direito do meio ambiente e notada-mente o princípio da precaução tinham sidoignorados (SANDS, 1991, p. 47). No casoArrondelle versus Reino Unido e Rayner versusReino Unido, a Corte considerou como sen-do uma violação da qualidade de vida, por-tanto, dos direitos do homem, o barulho pro-vocado por um aeroporto105 . Tudo isso de-monstra que, apesar da existência de dife-rentes setores de direito, no meio jurisdicio-nal, esses setores são tratados de forma her-mética, com pouca comunicação, o que con-firma a idéia de um direito compartimenta-do, incoerente ou não-sistêmico.

4. Conclusão

A expansão do direito internacional éevidente. O direito internacional toca gra-dativamente as áreas tradicionalmente con-sideradas como sendo internas aos Estados,o que explica um deslocamento de capaci-dades materiais e formais do nível nacionalpara o nível internacional. No plano mate-rial, identifica-se uma multiplicação dos te-

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mas que são ligados ao direito internacio-nal, assim como fontes de inspiração do con-teúdo na formação desse direito. No planoformal, a expansão das normas restritivas edas soft norms é notável, tanto quanto a mul-tiplicação dos tribunais internacionais. En-tretanto, existe uma defasagem entre o po-der de participação dos países do Sul e aque-le dos países do Norte. Os Estados do Nortecolaboram mais na formação do direito in-ternacional. Isso significa que os Estados doSul assumem, cada vez menos, uma parteda evolução da regulamentação que diz res-peito a seus assuntos internos.

Essa expansão acompanha lógicas dife-rentes, e a coexistência, assim como a acu-mulação de lógicas diversas, contribui paraa formação de um conjunto jurídico incoe-rente. A existência de vários conjuntos denormas jurídicas contraditórias permite aosEstados mais poderosos usar o direito quelhes convém mais, enquanto se contribuipara desenvolver um outro direito mais fa-vorável ao meio ambiente ou aos paísesmenos desenvolvidos ou a outros valorespoliticamente importantes, mas sem o mes-mo nível de eficiência do direito restritivo. Éexatamente o nível de restrição de cada con-junto de normas internacionais que vai de-terminar a eficiência de um setor do direitointernacional.

Notas1 A sociedade civil é entendida como sendo o

conjunto dos indivíduos no nível local, regional ouglobal de acordo com o contexto. Chamar-se-á so-ciedade civil organizada a associação dos indiví-duos com um objetivo determinado, como os mo-vimentos sociais, as organizações não-governamen-tais ou os sindicatos de classe. Isso não abrange asassociações de pessoas morais.

2 Segundo o artigo 34 da Convenção de Vienasobre os direitos dos tratados, de 23 de maio de1969, “um tratado não cria nem obrigações nemdireitos para um terceiro Estado sem seu consenti-mento”.

3 Ver a famosa sentença de Max Hubber ([199- ?], p. 838). Ver também Dupuy (1998, p. 59).

4 CPJI, 1927, p.18-19. Ver também Dupuy(1998, p. 31).

5 A formação da União Européia é uma reali-dade especial que também será estudada.

6 Entrevista com o Juiz da CIJ, Franscisco Re-zek, no dia 23 de maio de 2001.

7 Nesse caso específico, a Secretaria tinha umpoder de avaliação das relações nacionais.

8 É preciso mencionar a expansão importantedos direitos do homem, mas que não faz parte daanálise deste artigo.

9 Ver o caso WT/DS111/1, entre Argentina eEstados Unidos, relativo à participação do FundoMonetário Internacional no processo. Isso afetatambém a coerência do direito internacional, o queserá analisado a partir do item 3.

10 Fazemos referência à questão da Aids, discu-tida pela Organização Mundial do Comércio, queopõe os países em desenvolvimento, como o Brasil,a Índia, a China e a África do Sul, às empresastransnacionais farmacêuticas cujos interesses sãodefendidos pelos Estados Unidos da América.

11 É preciso dizer que há um conjunto impor-tante de normas nacionais que estão ainda em vi-gor, que às vezes especificam as normas internaci-onais, às vezes regulamentam assuntos ainda nãotratados pelo direito internacional.

12 Convenção CITES; Convenção-Quadro sobreas Mudanças Climáticas; Convenção para a Prote-ção da Camada de Ozônio; Protocolo de Montrealsobre a Biossegurança; Convenção de Montego Baysobre os Direitos dos Mares.

13 Resolução do Conselho de Segurança 661(1190), sobre a invasão do Kuweit.

14 Resoluções do Conselho de Segurança 713(1991) e 757 (1992), sobre o conflito interno.

15 Resolução do Conselho de Segurança 773(1992), sobre o conflito interno.

16 Resoluções do Conselho de Segurança 748(1992) e 883 (1993), sobre o pedido feito à Líbia derenunciar ao apoio ao terrorismo.

17 Resolução do Conselho de Segurança 788(1992), sobre a violação do cessar-fogo.

18 Resolução do Conselho de Segurança 841(1993), em resposta ao fluxo de refugiados do Hai-ti e à não-restauração do governo legítimo.

19 Resolução do Conselho de Segurança 918(1994), em razão da violência interna.

20 Resoluções do Conselho de Segurança 1054(1996) e 1070 (1996), em razão do atentado contrao Presidente H. Mubarak, no Egito.

21 Resoluções do Conselho de Segurança 1132(1997) e 1171.

22 Resolução do Conselho de Segurança 1160(1998), por causa do conflito no Kosovo.

23 Resolução do Conselho de Segurança 1267(1999), por causa da não-extradição de Osama BinLaden.

24 M. Huglo e Lepages-Jessua (1995, p. 73) qua-lificam o período que precede os anos sessenta de

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período em que “o direito tinha como função prote-ger a sociedade contra a natureza. Não existem,por conseqüência, verdadeiras preocupações coma proteção do meio como tal; o meio ambiente nãoé considerado como um recurso consumível, orga-nizável e utilizável. As relações de propriedade,quer sejam públicas ou privadas, predominam eessas relações de propriedade como tais justificame legitimam as agressões contra a natureza, diantedo direito de propriedade inviolável e sagrado [...]O meio ambiente somente existe num ângulo esté-tico ou histórico”.

25 Ver Convenção de Montego Bay, sobre o direi-to do mar.

26 Criada pelo artigo 25 da Convenção sobre aDiversidade Biológica.

27Nas reuniões de Madri, em 1997, por exem-plo, dezenas de organizações participaram: verAgência EFE, Al Fatihah Foundation, Inc., Alterna-tiva Solidária, Amazon Coalition, Bioresources De-velopment and Conservation Programme (BDCP),CEDPAN/CODESPA, Center for InternationalAffairs, Center for International Environmental Law(CIEL), Centre for Indigenous Environmental Re-sources, COAG, COBASE, Cultural Survival Ca-nada, European Alliance with Indigenous People,Food and Peace Development Center, Foundationfor International Environmental Law and Develop-ment (FIELD), Friends of the Earth Sweden, Gene-tic Resources Action International (GRAIN), GrandCouncil of the Crees (Eeyou Astchee), GrassrootsInternational, Grupo de Apoyo Ayoko Ind. Nacio-nal y Comuneros, Grupo de Trabajo «Ungurahui»,Grupo Semillas, Healing Forest Conservancy, IBIS,Indigenous Knowledge Programme, IndonesianCenter for Environmental Law (ICEL), Instituto So-cioambiental, International Development ResearchCenter (IDRC), International Work Group for Indi-genous Affairs (IWGIA), La Vanguardia, NationalAboriginal and Islanders Legal Services Secretariat,Netherlands Centre for Indigenous Peoples, ONDAVERDE-Ameríndia, Organisation d’aide au déve-loppement communautaire, Oxford Centre for En-vironment, Ethics and Society, Planeta Humano,RNE, Safari Club International, School of Orientaland African Studies, Sciences Biologiques GuinéeEcologie, Service Centre for Development Coorpo-ration (Finland), Society for International Develop-ment (SID), SODEPAZ, Suelos Agua y Semillas deOaxaca, Tele-Madrid, The Gaia Foundation, TRA-MSO – Traditional Medicine System Organisation,Uganda Association for Socio-Economic Progress,Via Campesina, WATU/Accíon Indígena, Wo-men’s Association for Natural Medicine Therapy(WAINAMATE), World Wide Fund for Nature(WWF).

28 Mais de trezentos documentos foram pro-postos durante as seis primeiras reuniões.

29 A expressão “entidade intergovernamental”se refere às organizações internacionais e às entida-des criadas para gerir as convenções internacionais.

30 Entrevista com Pat Roy Mooney, diretor daRAFI. Eles têm o controle parcial da origem dodownload.

31 Poder-se-ia discutir sobre a possibilidade deuma tolerância explícita. Seria mais correto deno-miná-la aceitação em vez de tolerância explícita.

32 Ver a Declaração de Rio sobre o Meio Ambi-ente e o Desenvolvimento, de 14 de junho de 1992,e o acordo de Marrakech, que cria a OrganizaçãoMundial do Comércio, no dia 15 de abril de 1994.

33 Aqui também a expressão inglesa não encon-tra equivalente em português.

34 A terceira conferência sobre sua implementa-ção formulou a definição seguinte a restrição(contraignante em francês, compliance em inglês):

“Compliance is the full implementation of en-vironmental requirements. Compliance occurs whenrequirements are met and desired changes are achie-ved, e.g., processes of raw material are changed ;work practices are sites, tests are performed on newproducts or chemicals before they are marketed,etc. The design of requirements affects the successof an environmental management program. If re-quirements are well-designed, then compliance willachieve the desired environmental results. If the re-quiments are poorly designed, then the achievingcompliance and/or the desired results will likely bedifficult” (GERADU; WASSEMAN, 1994, p. 15-16apud WOLFRUM, 1998, p. 29).

35 A língua inglesa possui expressões mais apro-priadas para estes termos: compliance para os me-canismos obrigatórios e enforcement para o meca-nismo de implementação, no caso de o acordo care-cer de eficácia.

36 Como o não-acesso a fundos internacionais.Ver a Convenção sobre a Herança Mundial, daUnesco.

37 Ver o sistema de sanção da Organização Mun-dial de Comércio.

38 Como a Corte Internacional de Justiça.39 ILM 18, 1979, p. 1442 apud WOLFRUM, 1998.40 Cf. WOLFRUM, 1998 , p. 37. Ver o protocolo

que se refere à redução das emissões de enxofre oude seus fluxos transfronteiriços de pelo menos 30%,artigo 4, “Relatórios sobre as emissões anuais. CadaParte informa anualmente o órgão executivo sobreo nível de suas emissões anuais de enxofre e a basesobre a qual foi calculado”. O Protocolo relativo àluta contra as emissões de óxidos de amônia ou deseus fluxos transfronteiriços é ilustrativa:

“Artigo 8.Troca de informações e relatórios anu-ais

1. As partes trocam informações notificando aoÓrgão executivo os programas, políticas e estraté-gias nacionais que elas estabelecem conforme o arti-

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Revista de Informação Legislativa166

go 7 acima e entregando um relatório a cada ano sobreos progressos realizados e todas as modificações ocor-ridas nesses programas, políticas e estratégias, eem particular sobre:

a) as emissões anuais nacionais de óxidos deamônio e a base sobre a qual foram calculadas,

b) os progressos na aplicação de normas nacionais deemissão previstas nas alíneas 2 a) e 2 b) do artigo 2acima, e as normas nacionais de emissão aplicadasou a aplicar, assim como as fontes e/ou categoriasde fontes consideradas,

c) os progressos na adoção das medidas antipoluição,previstas na alínea 2 c) do artigo 2 acima, as fontesconsideradas e as medidas adotadas ou a adotar,

d) os progressos realizados na disponibilização aopúblico de combustível sem chumbo,

e) as medidas tomadas para facilitar a troca detecnologias, e

f) os progressos realizados na determinação de car-gas críticas.”

41 Cf. WOLFRUM, 1998. Fazem parte das com-petências da secretaria de CITES: “Artigo XII (2)(d) estudar os relatórios das Partes e pedir às Partestodo complemento de informação que ela julgar neces-sário para garantir a aplicação da presente Con-venção”.

42 Artigo VII, ver 402 UNTS 701.43 As Convenções Ramsar e CITES possuem co-

missões.44 A Secretaria da Convenção sobre a Diversida-

de Biológica, a Secretaria da Convenção sobre asMudanças Climáticas são exemplos.

45 A Convenção de Paris sobre a prevenção dapoluição marinha a partir de fontes terrestres, aConvenção sobre a poluição do Reno, a Convençãode Oslo e a Convenção de Helsinque sobre a prote-ção do mar Báltico fizeram a mesma coisa.

46 UNEP/OzL.Pro/WG.3/CRP.1, de 1991. Aspartes da Convenção decidiram posteriormente ali-viar a interpretação da Convenção a partir do do-cumento UNEP/OzL.Pro.LG.1/3, que sustenta oaspecto não-conflitual do procedimento de contro-le do respeito.

47 Seu combate pelos direitos do homem e odesarmamento rendeu às ONGs dois prêmios No-bel da paz; o primeiro foi dado a Médicos SemFronteiras, por sua intervenção a favor da imple-mentação dos acordos internacionais, e o segundofoi entregue a uma rede de ONGs, que participaativamente do direito internacional por sua coali-zão para o controle da retirada de minas.

48 Ver também a Convenção de 1940 sobre aproteção da natureza e a preservação da vida sel-vagem no hemisfério ocidental, a Convenção sobrea proteção das aves, de 1950, o Acordo sobre osursos polares, de 1973.

49 16 USC, § 1821 (e) (2), 1988, apud WOL-FRUM, 1998, p. 63.

50 16 USC I1361 et seq.51 16 USC, § 1357, sup. IV, 1992.52 16 USC, § 1826 (a).53 Ver casos WT/DS58/AB/R Estados Unidos –

Proibição da importação de certos camarões e certos pro-dutos à base de camarões e GATT. Estados Unidos –Proibição da importação de atum e produtos à base deatum do Canadá.

54 Como o exemplo do Codex Alimentarius. VerNoiville; Gouyon (2000).

55 Não se trata somente de uma questão de nome,mas a expressão tem um grande conteúdo concei-tual, em razão da diferença essencial entre uma leiinternacional, obrigatória, e uma norma não obri-gatória. Claro, o termo escolhido não lhe dá seuvalor, mas é melhor utilizar uma expressão maispróxima da realidade concreta. Uma parte consi-derável do trabalho dos juristas consiste em identi-ficar o valor exato da norma internacional. (BIL-DER, 2000, p. 71-72).

56 A expressão soft law é atribuída a Lord Mc-Nair. Ver A Tammes (1983), Chinkin (2000, p. 22).

57 Ver os textos das resoluções sobre as décadaspara o desenvolvimento, como as Resoluções 1710(XVI) e 1715 (XV), de 1961; 2626 (XXV), de 1970; e35/36, de 1980.

58 Ver Resolução 3201 (S-VI) “Declaração sobreo estabelecimento de uma nova ordem econômicainternacional”, Resolução 3202 (S-V), “Programade ação sobre o estabelecimento de uma nova or-dem econômica internacional”.

59 Caso sobre o Templo do Preah Vihear, entreCamboja e Tailândia, 1961, e Caso sobre as experi-mentações nucleares entre Austrália e França, 1974.

60 Ver (1966) Y.B.I.L.C. p. 172 apud Chinkin(2000, p. 37).

61 Cf. CHAZOURNES, 1999, p. 281 apudCHINKIN, 2000, p. 33.

62 Houve um grande número de arbitragens an-tes da Primeira Guerra Mundial. No decorrer doséculo XX, sobretudo após 1930, o uso da arbitra-gem freou consideravelmente sua evolução, masrecomeçou sua progressão no fim do século. Umtratado de 1794 marcou o início da arbitragemmoderna. Assim, entre 1795 e 1922, houve perto de350 arbitragens. Entre 1891 e 1900, especificamen-te, houve 74 arbitragens. Nesse mesmo ritmo inten-so, entre 1900 e 1930, 165 arbitragens. A partir de1930, o uso desse mecanismo de resolução dos con-flitos caiu bastante e, entre 1930-1990, somente 50arbitragens foram realizadas. (CHARNEY, 1998,p. 119).

63 Conhecido também como Tribunal Internaci-onal Militar de Tóquio.

64 Cf. CHARNEY, 1999, p. 122. O autor menci-ona também a Corte de Conciliação e Arbitragemda Conferência sobre a Segurança e Cooperação naEuropa e os esforços realizados para a constituição

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de um órgão de solução de controvérsias da Orga-nização Mundial da Propriedade Intelectual.

65 Para dados estatísticos de várias instâncias deresolução de conflitos, ver: Sands (2000b, p. 244-245).

66 Ver Application for Review Judgement no.333 of the United Nations Administrative Tribunal(Adv. Op), ICJ Reports 1987 18 (27 may); Applica-tion for review judgement no. 158 of the UnitedNations Administrative Tribunal (Adv. Op), ICJReports 1973 166 (12 july) apud Charney, 1998, p.122.

67 Estatuto do Tribunal Administrativo da Or-ganização Internacional do Trabalho. Disponívelem: <http /www.ilo.org/public/french/tribunal/stateng.htm#Statut>, artigo XII. Ver também Char-ney (1998, p. 123).

68 Ver Appeal Relation to the Jurisdiction of theICAO Council (India v. Pakistan), ICJ Reports 197246 (18 august). Ver também os casos Irã x EstadosUnidos (Incidente aéreo de 3 de outubro de 1988).Disponível em: <http ://www.icj-cij.org/icjwww/Icases/iirus/iirusframe.htm>. Acesso em: 11 dez.2001. Ver também Charney (1999, p. 122).

69 Em seis anos, a OMCatendeu 228 reclama-ções sobre 175 diferentes assuntos, sempre em di-reito internacional voluntário. A maior parte dospareceres foi decidida em conciliação ou pela viajurisdicional. Entre 1o de janeiro de 1995 e 23 demarço de 2001. Ver Overview of the State-of-playof WTO Disputes. OMC23 de março de 2001, p. 2.

70 Sobre o não-uso por parte da OMC em várioscasos, ver Sands, (2000a, p. 401-402). Ver também:Sands (2000b, p. 211 et seq.).

71 Aron (1962, p. 706) já identificava a possibi-lidade de instâncias paralelas no direito internacio-nal, que permitiam a contradição.

72 A Convenção de Viena propõe uma forma deresolução desse conflito que consistiria em analisaras normas mais recentes assinadas pelos mesmosEstados e as práticas internacionais.

73 O artigo 34 reafirma o artigo 27 da Conven-ção sobre a Diversidade Biológica

74 Mais de sessenta países signatários reconhe-ceram a competência obrigatória da CIJ, segundo oartigo 27 da Convenção sobre a Diversidade Bioló-gica.

75 Na Organização Mundial do Comércio, veros Casos Comunidades Européias – medidas relativas àcarne e aos produtos da carne (Hormônios, WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R), Aústralia – medidas afe-tando a importação de salmão (salmão, WT/DS18/AB/R) e Japão – medidas afetando os produtos agríco-las (produtos agrícolas, WT/DS76/AB/R). Na CorteInternacional de Justiça, ver Gabcíkovo-Nagymaros,entre a Slováquia e a Hungria, cujo veridito saiu nodia 25 de setembro de 1997.

76 WT/DS193, Chile – Medidas relativas ao trans-porte em trânsito e a importação de peixes-espada.

77 Caso relativo à conservação e exploração sus-tentável dos estoques de peixe-espada, no Sudestedo Oceano Pacífico. Ver a decisão 2001/1 do tri-bunal.

78 Ver em particular os artigos VII e VIII deCITES.

79 Ver artigo IX.80 Ver artigo IX.81 Ver artigos III e V.82 Ver artigo 3.83 A obrigação das negociações prévias não é

uma característica comum desses textos internaci-onais, mas ela é obrigatória na OMC.

84 “Artigo 3. (2) Cada parte deve também to-mar medidas consistentes com o direito internacio-nal para: (c) proibir a importação de qualquer peixeou produto de peixe, industrializado ou não in-dustrializado, cuja pesca foi feita com rede pescando àderiva”.

85 Ver caso WT/DS111/1, entre Argentina eEstados Unidos, relativo à participação do FundoMonetário Internacional ao processo.

86 Caso Estados Unidos – proibição da importaçãode alguns camarões e alguns produtos a base de camarões(WT/DS58/AB/R), parágrafos 105 e 107. (Grifonosso).

87 Apesar da não-ratificação de algumas con-venções internacionais de proteção ao meio ambi-ente, os Estados podem evocar essas convençõescomo parte do direito costumeiro. No que diz res-peito ao direito internacional do meio ambiente e aodireito econômico internacional, reencontra-se a evo-cação da Convenção de Montego Bay sobre o direi-to do mar pelos Estados Unidos (não-signatários),no caso Camarões.

88 WT/DS18/AB/R.89 WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R.90 WT/DS76/AB/R.91 O artigo 3.3 também é citado em razão de

sua estreita ligação com o artigo 5.7, embora nãoseja citado no artigo 2.2. WT/DS76/AB/R, pará-grafos 73 e 74.

92 WT/DS76/AB/R, parágrafo 89.93 Ver: Relatório do Grupo especial Estados Uni-

dos, parágrafos 8.157 e 8.158; relatório do Grupoespecial Canadá, parágrafos 8.160 e 8161, citados,também, por WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R, parágrafo 120.

94 No que diz respeito à consideração das ques-tões ambientais pela Corte Internacional de Justiça,ver também: Sands (1996, p. 56-72, 1993, p. 61-62).

95 “Artigo 61 – Surgimento de uma situação tor-nando a execução impossível.

1. Uma parte pode invocar a impossibilidadede executar um tratado como sendo o motivo parapôr fim nele ou para retirar-se dele se essa impossi-bilidade resultar do desaparecimento ou da destruição

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definitiva de um objeto indispensável à execução daqueletratado. Se a impossibilidade for temporária, podeser invocada como motivo para suspender a apli-cação do tratado (…)

Artigo 62 – Mudança fundamental de circunstâncias.1. Uma mudança fundamental de circunstân-

cias que ocorreu em relação àquelas que existiamno momento da conclusão de um tratado, e nãotinha sido prevista pelas partes, não pode ser invo-cada como motivo para pôr fim ao tratado ou paradeixá-lo, salvo se:

a) a existência dessas circunstâncias tenha cons-tituído uma base essencial para o consentimentodas partes ligadas pelo tratado; e que

b) essa mudança tenha como efeito transfor-mar radicalmente o alcance das obrigações que res-tam a executar, em virtude do tratado.”

96 Ver parágrafo 104.97 Ver se os avanços legislativos dessa ordem

podem ser incluídos nas teorias da imprevisibi-lidade.

98 Ver parágrafo 140.99 “No decorrer do tempo, o homem não parou

de atuar na natureza por razões econômicas e ou-tras. No passado, ele o fez freqüentemente sem le-var em consideração os efeitos sobre o meio ambi-ente. Graças às novas perspectivas que a ciênciaoferece e a uma consciência crescente dos riscos queo prosseguimento dessas atuações, num ritmo de-senfreado e inconsiderado, representaria para ahumanidade – quer se trate das gerações atuais oufuturas –, novas normas e exigências foram imple-mentadas e enunciadas num grande número de ins-trumentos, no decorrer das duas últimas décadas.Essas novas normas devem ser levadas em consi-deração e essas novas exigências convenientementeapreciadas, não somente quando Estados imagi-nam novas atividades, mas também quando elesdão prosseguimento a atividades que começaramno passado. O conceito de desenvolvimento sus-tentável traduz bem essa necessidade de conciliardesenvolvimento econômico e proteção do meioambiente” (in parágrafo 140).

100 A CJCE começa cedo a preocupar-se com aproteção do meio ambiente. Alguns autores comoP. Sands percebem essa tendência logo no final dosanos oitenta. Ver Sands (2000, p. 685-698).

101 Casos C-284/95 e C-341/95. A discussãodo princípio da precaução está presente à medidaque se discute a necessidade da medida restritivade CFC, cuja Corte aceita a adoção do princípio. Adiscussão sobre o princípio da proporcionalidade éimportante, pois o Conselho da Europa tinha to-mado medidas restritivas para algumas susbstân-cias e não para outras, mais perigosas, como oshalons. A argumentação do Conselho defendeu aidéia de que não havia substâncias capazes de subs-tituir o uso dos halons e que sua utilização era pra-

ticada em pequena escala. Portanto, de uma formaglobal, essas susbstâncias eram menos nocivas aomeio ambiente. A argumentação foi aceita pelaCorte. Ver também Noiville (2000, p. 46).

102 Casos C-157/96, C-180/96 e, sobretudo, ocaso C-1/00. Nesse último caso, a França não acei-tou a comercialização das carnes bovinas oriundasdo Reino Unido, apesar do posicionamento científi-co do Comitê Científico Diretor da ComunidadeEuropéia favorável à comercialização. A França foicondenada a aceitar a posição do órgão científicocomunitário, em detrimento da posição científicadas autoridades francesas. Esse caso é interessanteem relação à imposição comunitária dessas nor-mas de segurança dos alimentos para os Estados-Membros.

103 A consideração sobre a posição restritiva daCIJ é observada por Dupuy (1997, p. 890, nota 54).

104 (1995) EctHR Ser. A., no. 303-C.105 No primeiro caso, a Corte não julgou o méri-

to, mas fez a proposta de um acordo entre as par-tes. No segundo, a Corte concluiu pela violação dedireitos. Ver Desgagné (1995), Maljean-Dubois(1998, p. 995).

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