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1 A CRIANÇA E A INVENÇÃO DO MUNDO Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Buscamos em nossa pesquisa problematizar as concepções de cognição e aprendizagem que fundamentam tanto as práticas pedagógicas, quanto as práticas (e políticas) curriculares que informam as ações cotidianas da/na escola das crianças de classes populares. Buscamos desdobrar a concepção de aprendizagem disseminada para deslocar seu significado da solução de problemas ou apresentação de respostas, para um aprender como produção de singularidades. Interrogar o conceito de cognição leva a reflexão sobre o vazio epistemológico da escola, movimento imprescindível à formulação de políticas cognitivas mais justas. O que chamamos de vazio epistemológico da escola corresponde ao desgaste de seu quadro conceitual fundado na razão indolente que desperdiça as experiências sociais (saberes e práticas) que não fazem parte do modelo socialmente valorizado. O vazio da escola se dá através do perverso processo da produção da não-existência - o que não pode ser formulado segundo os esquemas conceituais hegemônicos é negado ou desacreditado. Isso se explica porque o modelo cognitivo ocidental se reivindica como única forma de racionalidade e, produz a não-existência ao perceber o outro como ignorante ou atrasado. Em nossas formulações teóricas e em nossas investigações com as crianças 1 , vimos afirmando o cotidiano da sala de aula como o espaçotempo da possibilidade de reaçãoinvenção, em oposição à concepção dominante na vida escolar que entende o cotidiano como um espaço de rotinização e um tempo de repetição [do mesmo]. As práticas pedagógicas disseminadas no cotidiano escolar, de um modo geral respondem/correspondem a um modelo ou concepção de cognição que expulsa dos bancos escolares a imaginação, o rememorar, a herança cultural e os modos de fazer de todos aqueles que não se limitam a quantificar, analisar, buscar a verdade ou pensar de 1 -A pesquisa Injustiças Cognitivas: ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e saberes no cotidiano escolar refere-se à investigação que vimos desenvolvendo há 03 anos, com crianças de classes populares, alunas do Ciclo de Alfabetização da rede municipal de Educação de Duque de Caxias – cidade situada na Baixada Fluminense na periferia do Rio de Janeiro.

A criança que rememora: memórias infantis e invenção do mundo · 2018. 6. 30. · Perguntas tais como: são os mapas cognitivos, formados na e pela relação experiência-aprendizagem,

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A CRIANÇA E A INVENÇÃO DO MUNDO

Carmen Lúcia Vidal Pérez

Luciana Pires Alves

Buscamos em nossa pesquisa problematizar as concepções de cognição e

aprendizagem que fundamentam tanto as práticas pedagógicas, quanto as práticas (e

políticas) curriculares que informam as ações cotidianas da/na escola das crianças de

classes populares. Buscamos desdobrar a concepção de aprendizagem disseminada para

deslocar seu significado da solução de problemas ou apresentação de respostas, para um

aprender como produção de singularidades.

Interrogar o conceito de cognição leva a reflexão sobre o vazio epistemológico da

escola, movimento imprescindível à formulação de políticas cognitivas mais justas. O

que chamamos de vazio epistemológico da escola corresponde ao desgaste de seu

quadro conceitual fundado na razão indolente que desperdiça as experiências sociais

(saberes e práticas) que não fazem parte do modelo socialmente valorizado. O vazio da

escola se dá através do perverso processo da produção da não-existência - o que não

pode ser formulado segundo os esquemas conceituais hegemônicos é negado ou

desacreditado. Isso se explica porque o modelo cognitivo ocidental se reivindica como

única forma de racionalidade e, produz a não-existência ao perceber o outro como

ignorante ou atrasado.

Em nossas formulações teóricas e em nossas investigações com as crianças1, vimos

afirmando o cotidiano da sala de aula como o espaçotempo da possibilidade de

reaçãoinvenção, em oposição à concepção dominante na vida escolar que entende o

cotidiano como um espaço de rotinização e um tempo de repetição [do mesmo]. As

práticas pedagógicas disseminadas no cotidiano escolar, de um modo geral

respondem/correspondem a um modelo ou concepção de cognição que expulsa dos

bancos escolares a imaginação, o rememorar, a herança cultural e os modos de fazer de

todos aqueles que não se limitam a quantificar, analisar, buscar a verdade ou pensar de

1 -A pesquisa Injustiças Cognitivas: ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e saberes no

cotidiano escolar refere-se à investigação que vimos desenvolvendo há 03 anos, com crianças de classes

populares, alunas do Ciclo de Alfabetização da rede municipal de Educação de Duque de Caxias – cidade

situada na Baixada Fluminense na periferia do Rio de Janeiro.

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forma a classificar, segregar, separar e ordenar o conhecimento. (Pérez & Alves,

2009c:114).

Quando as questões cognitivas se tornam questões políticas2, se evidencia que, a

negação da relação existencial das pessoas com o conhecimento e a desqualificação de

suas formas de significar o mudo constituem a produção de uma forma de injustiça.

Legitimar a história corpórea e social dos sujeitos da escola é abrir o fazer pedagógico

para o processo de produção de subjetividade que dialoga com as estruturas pelas quais

as pessoas existem no sentido “ter um mundo”, ou seja, nas suas hipóteses de vida. Para

tanto nos dobramos sobre as questões relativas à formulação de novas possibilidades

para a ação educativa da escola a partir da revisão-ampliação do conceito de cognição,

articulando-o a uma perspectiva político-epistemológica fundada na concepção de

injustiças cognitivas3.

Algo (se)passa/entre algo (se)passa/aqui/melancolicamente

algo (se)passa/agora/no alvorecer/no silêncio algo (se)passa/no labirinto /adentro

algo (se)passa/distraidamente/ como quem/ nada quer4.

Da tabula rasa às ciências cognitivas modernas, a criança é concebida como

criatura, ou seja, aquele que deve receber ou representar o mundo/realidade que

encontra. À cria biológica cabe o papel do infante que deve ser cuidado, alimentado,

protegido e educado. Como conseqüência dessa concepção, seu fazer é encerrado no

espaço da brincadeira, sua linguagem obliterada pela figura do ser sem voz e suas

lógicas são marcadas pela incompletude.

A criança confinada na infância vive uma ambivalência: a existência como

criatura autoriza o lugar de objeto dos pequenos nos discursos dos diferentes domínios

2 A política cognitiva baseada na recognição fundada na racionalidade moderna sustenta o mecanismo

de produção de analfabetos escolarizados, pois ao fabricar matrizes de aprender, unifica as expectativas

e relega para zonas de descrédito ou rezidualização experiências diferentes a dos seus modelos. 3 Boaventura de Sousa Santos nos apresenta o conceito de Injustiça Cognitiva Global, a partir do qual as

hierarquias entre diferentes tipos de conhecimento são, ao mesmo tempo, produto e produtoras de

hierarquias sociais e das desigualdades por elas geradas. Segundo Santos, a injustiça social traduz-se

freqüentemente em injustiça cognitiva – que ocorre no interior das sociedades e nas relações entre elas

(Norte/Sul, Centro/Periferia, etc). Ver SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento Prudente para

uma Vida Decente. Um Discurso sobre as Ciências revisitado. São Paulo. Cortez, 2004, p. 4 4 Larroza, Jorge. Estudar. Estudiar. Belo Horizonte. Autêntica, 2003, p.11

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do conhecimento e, o impulso gerador e criativo como ser na linguagem. O regime de

verdade da ciência moderna iluminou fortemente a criança–criatura: o infante passa a

ser empregado como sinônimo de criança somente no século XVIII. Já o termo criança

remonta ao século XIII relacionado ao ato de criar- creātor-ōris5, referindo-se ao

humano pequeno ou ao ser criativo.

Com a escolarização, a criança passa de pequeno a menor, como explica

Sacristán, ao teorizar a respeito da invenção do aluno:

O aluno é uma construção social inventada pelos adultos ao

longo da experiência histórica, porque são os adultos (pais,

professores, cuidadores, legisladores ou autores de teorias

sobre a psicologia do desenvolvimento) que têm poder de

organizar a vida dos não-adultos ( 2005:11).

Nas sociedades escolarizadas, a criança, além da infância, ocupa o lugar do aluno o

ser menor dentro da relação pedagógica. Para romper com o processo histórico de

enquadramentos e reduções, não basta apenas investigar os conceitos de infância que

habitam o imaginário dos sujeitos praticantes da escola e os discursos sobre as crianças

que autorizam essas ou aquelas práticas pedagógicas. É preciso encontrar caminhos para

estar com elas em suas elaborações, pensamentos, práticas e invenções.

A busca pelo compreender das crianças reflete a assunção do desejo de fazer

pesquisa segundo outro paradigma de produçãoinvenção do conhecimento. A procura

não se dá por leis gerais do desenvolvimento ou sistemas de classificação infantil, mas

por partilhar com as crianças suas andanças e presenças pelo mundo. Por mais ousado

que seja, propomos o exercício de procura pelas crianças livre das infantilizações.

À margem do conceito de infância, que vias são possíveis para a elaboração do

fazer com desejado? Um dos caminhos para captar a aura (as crianças em sua

singularidade) obliterada pelo uso recorrente do conceito de infância aparece ao

compartilhar do que Agamben(2005) chama de tarefa infantil . Para filósofo, a infância

5 A criança como ser criativo ou criador que está na origem da palavra creātor-ōris sofre um

apagamento nos usos e sentidos que a infância recebe historicamente. Essa operação sobrepõe a figura da

criança e do infante. O termo infante originalmente, em língua portuguesa, designava os filhos dos reis de

Portugal e Espanha que não eram herdeiros da coroa. O infante como toda criança é uma construção

posterior, surge no século XIX , como os termos criançada - 1899 e criancice- 1899.

Ver mais: CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro

Lexikon Edistoricoitora Digital,2000.

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é a dimensão original do humano, cabendo as crianças a constituição da vida humana

enquanto ethos, enquanto vida ética. Buscar uma polis (cidade) e uma oikía (habitação)

que estejam à altura desta comunidade vazia e impresumível. (p.17)

A questão proposta por Agamben nos coloca diante das crianças como sujeitos

da experiência, que engendram a si e ao mundo em tantos temposespaços. A experiência

única e múltipla: tantas são as crianças e tantos são os grupos: experiência originária -

partilhada por todos - de uma diferença indizível de tantos temposespaços. Cada um que

chega encontra e re-cria um espaço e um eu.

Os estudos da neurobiologia têm nos mostrado que inversamente aos postulados

da psicologia cognitiva6 (clássica), o ser humano não possui uma capacidade inata para

ordenar mentalmente o espaço e o tempo. Pelo contrário, tais estudos têm demonstrado

que a noção de espaço é uma invenção do cérebro humano: como não temos um órgão

sensorial “dedicado” ao espaço, assim como a relação olhos-visão, ouvido-audição, etc.,

o cérebro tem que combinar informações oriundas de diferentes modalidades sensoriais

processando tais informações em noções multissensoriais de espaço – completas, mas

não únicas, que incluem, mas não dependem exclusivamente de nenhuma dessas

informações. A noção de espaço é plural e complexa, engloba muitos espaços com

diferentes modos de espacialidade e propriedades distintas.

A compreensão de que a relação experiência-aprendizagem substancia a

produção de mapas espaciais, se contrapõe a política cognitiva [fundada na recognição7]

que fundamenta e organiza as práticas educativas no cotidiano da escola. Perguntas tais

como: são os mapas cognitivos, formados na e pela relação experiência-aprendizagem,

semelhantes em todos?, vêm alimentando os estudos da biologia molecular, por

exemplo - que já conseguiu detectar, através de experimentos com neuroimagens que

homens e mulheres (adultos), ativam áreas mentais diferentes quando pensam sobre o

6 - Kant, um dos ancestrais da psicologia cognitiva sustentou que a capacidade de representar o espaço

faz parte de nossa mente. Para ele o ser humano tem a capacidade inata para ordenar o espaço e o tempo. 7 O conceito de recognição preconiza que conhecer é representar o mundo ou o ambiente, quem conhece

apreende a realidade já elaborada dirigindo o raciocínio para criar soluções para a apresentação de

respostas. A recognição enfatiza a aquisição da perícia numa determinada área do conhecer, o que requer

a especificação do conhecimento, a representação do ambiente e a focalização da atenção, processo, esse,

que se traduz nos mecanismos de retenção da informação, internalização dos enunciados e de

habilidades de auto-regulação ou controle de si.

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espaço. E as crianças, como pensam o espaço? Que espacialidades estão presentes em

suas experiências? Que propriedades configuram seus mapas espaciais? Como a escola

compreende as experiências e aprendizagens espaciais das crianças? Como uma criança

que vive numa “casa que vira” 8 pensa o espaço? O que significa a chegada de alguém

nesse espaço habitado? A poesia de Moska captura o sentimento da chegada:

É mais uma boca dentro do barraco Mais um quilo de farinha do mesmo saco

Mais um do mesmo e de outrem em qualquer tempoespaço que recebe suas

crianças em suas culturas através de seus linguageares9. Cabe aos pequenos o ato de

elaborar o sentimento de pertencimento, de morada - uma oikía; compreender o sistema

de relação da polis que encontra; operar segundo os códigos do ethos que rege o grupo

que lhes recebe. Essa realização é a tarefa de tornar-se humano que se dá através da

linguagem – num círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem é a

origem da infância (p.59). Como ressalta Agamben não encontramos o outro – a

infância- fora da linguagem, nela e através dela a criança integra a coletividade dos

adultos. As crianças apenas representam o mundo que encontram? Há um tempo, uma

duração própria para tornar-se alguém?

Acreditamos que não. Encontrar as crianças em nossa constante tarefa talvez

seja uma via dialógica de convivência com esses outros que ainda somos e já não somos

mais. O encontro entre gerações não garante apenas a transmissão da cultura - a criança

reinventa o mundo.

Pensar a infância como dimensão original do humano é vê-la no encontro (nas

conversações) entre diferentes [adultos e crianças] que é possibilitado pela linguagem e

8 Participar da elaboraçãoinvenção da “casa que vira” foi o debruçar-se sobre a ausência para descobrir

uma presença, para fazer da prática alfabetizadora uma prática de enfrentamento das negações. Não só a

casa, mas própria planta como astúcia, dos “narradores praticantes” – um saber dizer de sua

operatividade, o que permitiu perceber os sujeitos e a cultura popular em suas possibilidades, revelando a

astúcia de quem mesmo com pouco faz muito, uma vitória do tempo sobre o espaço, da memória sobre a

rarefação dos meios.

9 O termo linguajear é utilizado por Maturana para definir a linguagem e as relações humanas, segundo o

autor o linguajear não é um sistema de operação com símbolos abstratos na comunicação. É o fluir em

coordenações de coordenações comportamentais consensuais. Quando, numa conversação, muda a

emoção, muda também o fluxo das coordenações comportamentais consensuais. E vice-versa. Esse

entrelaçamento do linguajear com o emocionar consensual e se estabelece na convivência. (2004).

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desafiado pela duração - Meu estado de alma, ao avançar na estrada do tempo, infla-se

continuamente com a duração que vai reunindo; por assim dizer faz uma bola de neve

consigo mesmo”(Bérgson, 1990, p.34). O adulto, este estado que reúne em si mais

tempo e vivências, tem diante da criança, de fato, a riqueza da experiência?

A duração apenas não nos autoriza a ser adulto, a maturidade diante dos

pequenos se faz a partir ou se partindo na experiência, na constituição do repertório da

narrativa que permite a autoridade. Porém, a substância que permite essa constituição se

dilui constantemente, seja pela busca da sobrevivência, pela massificação da cultura,

pelo enfraquecimento dos vínculos afetivos ou pelo adoecer dos ritos. Acaba por se

perder no sujeito do conhecimento moderno que ao produzir seus experimentos

desperdiça a experiência.

O encontro entre crianças e adultos - ainda que se dê a partir da assunção de

nossas fragilidades e não saberes - exige a inversão da atenção criança–adulto para

adulto-criança: o aluno ouve o professor, a criança ouve os pais, os mais velhos e

aprende que silenciamento é condição de respeito - que é dever da criança. A

socialização da criança engendra e é engendrada por mecanismos de asujeitamento, que

consubstanciam uma moralidade fundada num conjunto de regras e sansões que devem

aplicadas à e aprendidas pela criança, portanto, assim como tantas outras, a noção de

respeito, vai sendo imposta apartada da experiência. Em uma defesa de tese, uma das

professoras, membro da banca, se vale da experiência vivida com sua neta de 03 anos,

para fundamentar sua intervenção:

“- Minha neta de 03 anos fez uma malcriação para mãe (minha filha),

que imediatamente a repreendeu dizendo: ‘Como você fala assim com a

mamãe. Isso é uma falta de respeito. Eu sou sua mãe, você não pode

falar assim com a mamãe’. A minha neta imediatamente retrucou:’

Mamãe eu não sei nada sobre essa coisa de respeito. Eu estou

aprendendo’.

Como a criança acima, constatamos que nada ou muito pouco sabemos sobre as

crianças e seus universos cognitivos - estamos aprendendo. Para nós as crianças e suas

infâncias, ainda se constituem um mistério e são elas, as crianças com as quais

pesquisamos que têm nos ensinado a compreendê-las - aprendemos com as crianças a

compreender suas infâncias.

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Procurar aprender com as crianças os processos de apeensãoinvenção de si e do

mundo é entregar-se a aura perdida da experiência original com a linguagem, no ato de

criar na palavra (Agamben, 2005:65). A criança que rememora é o ser corpóreo da

experiência que desafia o conceito aprisionador da infância. Longe de destituí-la de um

estatuto próprio, é procurar um fazer junto, incluindo nossas diferenças como incita

Benjamin: O fato de termos sido crianças nesta época faz parte de sua imagem objetiva

[...] A criança é capaz de fazer algo que o adulto não consegue: rememorar o novo

Benjamin(435). O que as crianças de agora vão rememorar? Que imagens serão

produzidas para atualizar nosso patrimônio simbólico?

- Tia, o fundo de tela da minha coberta é azul!

A fala retirada da conversa com as crianças mostra a marca da época no estilo

cognitivo, somente no tempo presente essa fala é possível, Juliana tem como referência

de estampa o fundo de tela do computador. Outra construção pertencente às crianças de

nosso tempo é a brincar de leptop: as crianças abrem as pastas plásticas, dispõem o

alfabeto móvel na base, prendem com clips um folha de ofício na aba e pronto, temos

um leptop.

O jogo de leptop demonstra a dimensão histórica do brinquedo, como revela

Agamben, a percepção da criança retira da ordem do sagrado ou da esfera prático-

econômico seu objeto, inscrevendo nele a temporalidade humana. A brincadeira de

leptop, diferente dos computadores em miniatura que visam a imitação do objeto em si,

requer uma combinação de elementos e operações de adequação com os materiais: a

pasta-estrutra, a folha-tela, o alfabeto-teclado. A criança produz história na

manipulação dos objetos, assim como a bola, a peteca e as bonecas brinquedos

“clássicos” guardam o acesso a outros tempos pela operação histórica que lhes tornou

possível, os brinquedos e jogos de hoje guardarão o acesso para nosso tempo e

denunciam a sua passagem pois irão fazer do novo (atual) velho (passado).

A criança como um ser produtor de história está na origem do brinquedo, seus

jogos recebem a marca das gerações anteriores, pois as crianças usam a sua maneira o

universo material e simbólico que encontram. Seus jogos podem ser percebidos como

configurações coletivas, entremeando gerações: o brinquedo não narra histórias apenas

em sua origem, em seus rastros, a brincadeira como origem, evoca aura da criação -

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Pois é a brincadeira, e nada mais, que está na origem de todos os hábitos [...]

justamente através desses ritmos que tornamos senhores de nós mesmos (Benjamim

1996: 253).

Não só a sala é transformada em Lan-house quando as crianças brincam de

computador, mas a Lan-house passa a funcionar como espaço para a aula quando o

grupo usa a internet como meio para aprender, seja pela busca de respostas ou

informações ou pela curiosidade que suscita. Ver a intimidade da criança com os

computadores, o desembaraço no uso dos aparelhos, a presença da informática como

instrumento simbólico e a fala de Juliana, revela que a tecnologia dos adultos vai se

transformando em artefato pelas crianças. Talvez ver as crianças em suas elaborações,

nos permita regatar a autoridade baseada na experiência da maturidade que se faz

possível pela antecipação da idéia da morte, como na alegoria benjaminiana, a

verdadeira herança residia na sabedoria transmitida aos mais jovens.

A brincadeira confere à infância a dimensão original do humano: a manipulação,

as linguagem, os ritmos convidam quem chega a entrar no jogo e apresentam o ritos

(hábitos), a conjugação de tempos aion (o brincar) e cronos (o calendário ritualizado e

estruturado) e assegura a continuidade da história. Compartilhar com as crianças desse

presente que se faz passado, voltando a atenção para as criações desse outro fortalece o

vínculo no qual se tece a autoridade necessária para alimentar nossas redes de

conversações.

O fortalecer dos vínculos que funda a autoridade da experiência coletiva se

expressa nas trocas na padaria da rua Chopin10, regadas a refrigerante em nosso lanches

coletivos após as aulas na Lan -house e na negociação para que os créditos (que cada

um possui) em horas não gastas fiquem no login do grupo para a próxima aula-visita e

não no “nic name” individual que muitas crianças possuem.

- Eu quero aprender a ler e a escrever mais!

10 - Os lanches coletivos fazem parte da dinâmica do grupo ao permitirem momentos de diálogo e a

produção e a produção de outro emocionar. Outro emocionar surge quando aquele coletivo aceita, não o

outro, mas a si na legitimidade da convivência, abrindo caminho para a possibilidade de um outro

linguajear. Esse processo, que Maturana (1998) coloca como condição de interação a aceitação do outro

como legítimo outro da convivência, engendra outro emocionar nas relações cotidianas na sala de aula.

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O desejo da criança aponta para o desafio que se coloca diante de nós: aprender

a ler e escrever no computador mobiliza outras lógicas e configurações que fraturam

nossas certezas e nosso saber já sabido, como nos lembra Freire (1996).

Mistério que se traduz como enigma diante de nossa perplexidade e

incompreensão. A forma como a criança escreve seu nome nos surpreende11

E R

A S

N

Interrogada pela professora sobre por que escreveu tudo fora de ordem, a menina

retruca:

- “Não tia eu escrevi certo, é o meu nome SERENA. Quando eu

digito é assim que eu escrevo e na tela aparece meu nome igual ele

é”, assim.

Sua resposta nos cala e nos faz pensar. O turbilhão de perguntas que emergem de

nossas experiências com as crianças alimenta nossa curiosidade epistemológica: o que

pode emergir quando investimos na procura do que as crianças das classes populares

sabem e nas suas formas de conhecer, nas narrações de suas histórias pessoais e

coletivas? Que problematizações são possíveis quando se defende que o coletivo

aprende ou que as aprendizagens podem ser coletivas e que conhecer envolve inventar a

si e o mundo? Quais as implicações de pensar a escola partindo de um conceito amplo

de cognição que inclua a memória, a imaginação e que defenda a abordagem conceitual

do conhecimento e não as fragmentações ou “didatizações” com que a escola trabalha?

(Pérez e Alves, 2009ª:34)

Uma cigarra cantando em baixo da janela da sala de aula suscitou a curiosidade das

crianças transformando-se numa questão de pesquisa, investigação e produção de novos

conhecimentos.

Ao nos dobrarmos (crianças-professora-pesquisadora) sobre a questão “como

conhecemos?”, a primeira constatação refere-se à pergunta: a gente conhece por que

pergunta. Questão que se desdobra na própria questão de investigação: o que sabemos

sobre as cigarras? Descobrimos que sabemos muitas coisas, mas que também temos

11 - Experiência narrada por Giane Grotti em um dos encontros do GEPEMC – Grupo de Estudos e

Pesquisas Escola, Memória e Cotidiano, coordenado por Carmen Lucia Vidal Pérez

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muitas dúvidas. O que fazer agora? Perguntar. A quem? Aos professores. Procurar nos

livros. A professora faz uma provocação: podemos procurar respostas também na

internet. No computador? Maneiro...! Uma nova descoberta se anuncia – pesquisar na

internet. E lá vamos nós consultar o oráculo digital - o Google.

Na Lan House, novas aprendizagens, computadores antes usados apenas para

jogar transformam-se em fonte de pesquisa e conhecimento. As crianças distribuídas

nos 11 computadores iniciam sua busca. Ligar o computador e acessar internet é fácil, a

novidade é o que fazer para “saber sobre as cigarras” e agora o que fazer? Acessamos

o Google e fizemos a pergunta: como vivem as cigarras? As crianças fascinadas

perguntam sem parar: o que é Google? E agora apareceu um monte de coisas. Cada

dupla escolhe um site para pesquisar, ler e anotar as informações. Com as folhas das

pranchetas repletas de informações voltamos à sala de aula.

Foto deles na Lan House

É hora de “confrontar” as informações. Os grupos se organizam para discutir

suas pesquisas. As respostas obtidas na pesquisa pela internet, ao serem compartilhadas

geram dúvidas e debates. “Tem mais de 1600 tipos (espécies) de cigarras no mundo”. É

uma família muito grande! Na Austrália tem mais de 200 tipos. Onde é a Austrália?

Vamos ver no mapa? Que língua eles falam lá? Inglês. Igual do Google, né? Eu sei

falar inglês – Google. Na Inglaterra só tem um tipo.

Das cigarras passamos rapidamente a discutir geografia. As crianças vão

estabelecendo conexões com os seus saberes. Conceitos científicos e conceitos

cotidianos (Vigotsky,2001) se mesclam e se interagem na produção de um

conhecimento novo. As conexões nos trazem de volta ao tema: “Lá no Google está

escrito que tem 05 tipos de cigarras no Brasil”. Eu não vi isso no meu Google não. É

verdade tia? As diferentes informações geram dúvidas e desconfianças, a solução é

continuar a pesquisa em outras fontes.

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Elaboramos um questionário com

perguntas que temos dúvidas e partimos para

pesquisa. Buscamos outras informações nos

livros, no quintal, em conversas com os mais

velhos. No dia seguinte chegam novas

descobertas. Vamos anotando as novas

informações: Meu avô não sabe nada de

cigarra que mora na Inglaterra e na

Austrália. Eu não achei nada das cigarras

brasileiras. Só das cigarras, mas não diz

onde elas moram. Agente trouxe um monte

de cigarra morta. Olha só! Essas são

macho. Os machos morrem logo. É só eles

que cantam. Eles cantam pra namorar. Mas

eles só cantam no verão. É eles saem da

terra por que é muito calor lá. Não é não!.

Embaixo da terra é frio. No verão não é

não! É sim, eu vi um filme Viagem ao

Centro da Terra, lá no fundo tem gelo. Isso

é no filme! Mas é verdade....

A proposta de examinarmos o corpo da cigarra suscita curiosidade e interesse,

embora a questão sobre a temperatura da terra não tenha sido esquecida. Aqui olha só,

como é asa dela, assim ela não sente frio lá. Lá aonde? Embaixo da terra. Examinar a

asa da cigarra no eyeclopss12, ao mesmo tempo em que mobiliza a curiosidade

epistemológica das crianças, se traduz numa gostosa brincadeira.

12 - Eyeclops: o aparelho semelhante ao microscópio reproduz as imagens aumentadas em até 200 vezes.

Aclopado ao aparelho de televisão permite ao grupo explorar detalhes que a visão humana não consgue

captar.

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Em nossas pesquisas descobrimos que as cigarras vivem de 01 a no máximo 02

meses em cima da terra. Elas vivem por volta de 04 a 17 anos embaixo da terra. Ao

examinarem as cigarras trazidas, as crianças perceberam que tinham tamanhos

diferentes. A pergunta por que elas tem tamanhos diferentes gera debates e hipóteses: as

menores são filhotes. Tem cigarra pequena que não é filhote. Eu li isso no Google. Eu

também li, mas no livro de insetos. Ktlem encerra o debate ao ler suas anotações: tem

cigarra com 15 e com 65 milímetros de comprimento. Imediatamente algumas crianças

pegam a régua para “medir” as cigarras. Medir cigarras torna-se uma brincadeira, que

gera apostas e vencedores – ganha aquele que tiver a maior cigarra. As crianças

confirmam Vigotsky (2001), quando nos fala da imaginação como atividade criadora do

cérebro humano que possibilita a criação artística, científica e técnica. Brincar e estudar

faz parte do processo de conhecer.

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As aprendizagens engendradas na pesquisa sobre as cigarras foram registradas

em diferentes linguagens, os relatórios foram produzidos conjugando escrita e desenho

– registrados individualmente nos cadernos e coletivamente nos cartazes produzidos.

Fotografias das crianças estudando as cigarras foram tiradas pelas próprias crianças e

fazem parte do registro iconográfico das aulas. Também foram produzidos slides nas

idas à Lan House (novidade – aprender a fazer Power point) e ainda estudamos os

conceitos de metamorfose, ninfa e exoesqueleto, devidamente registrados no caderno de

conceitos.

A pesquisa com as crianças tem sido para nós uma experiência estética, com elas

temos aprendido que o exercício de olhar o olhar das crianças nos possibilita captar as

singularidades no/do processo de conhecer de cada uma. O exercício do olhar estético

no cotidiano da sala de aula implica mobilizar os diferentes sentidos e as redes de

significados que tecem as idéias, as imagens, as concepções presentes nos diferentes

estilos cognitivos das crianças. Implica ainda em pensarfazer uma escola em que

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O estudo se faz/de desfazer-se :

não há mais que o risco/

entre ler e escrever, /o desconhecido que / volta a começar,

algo (se) passa,/ o gesto de apagar/

o que acaba de ser lido/ou escrito

para que a página/continue/em branco,

ainda por ler, /por escrever13.

Desafiando o olhar tatuado.... – a pesquisa com as crianças

As aulas na lan-house, as brincadeiras de lep-top e a produção do filme, são

incursões nas linguagens que nos permitiram marcar um estilo cognitivo próprio obtido

na experiênciainvenção do conhecimento. Chamamos de estilo cognitivo14 os

fenômenos de conhecer que emergem nas possibilidades criativas ao aprender não só a

palavra escrita, mas alfabetizar-se na conexão das linguagens. Entre o filme e o

computador, entre os livros e a câmera, entre ver a si na tela e a produção do caderno de

conceitos, um modo próprio de conhecer se engendra no grupo que tem a pergunta

como elemento detonador.

O mundo capturado pela câmera e as percepções de mundo que nos capturam

promovem as conjugações que formamos ao fazer “O filme da gente. Cenas cotidianas

de nossa vida na escola”. Viver as descobertas da narrativa fílmica exige constante

negociação, não só ao eleger o que será registrado, mas da escolha das cenas

significativas para contar o que se deseja e a adequação dos comportamentos do grupo

em que cada um tem um papel importante para que a filmagem aconteça. A percepção

de cada um no trabalho que está em processo de realização estrutura um coletivo de

investigação potencializando os sentimentos de pertencimento (oikía), que re-funda o

ethos permitindo outras maneiras de co-existir no espaçotempo da sala de aula. O

movimento de estabelecimento de um coletivo alimenta os afetos e fortalece os

vínculos, o que fornece “enredos da rivalidade” porque outras formas de sentir e

13 Larrosa, op.cit., p:113 14 - Ricardo Vieira, fundamentado em Raul Iturra, define estilos cognitivos como as diferentes

interpretações do real, os diferentes posicionamentos éticos, morais, afetivos, os variados modos de

classificar o meio em resultado das aprendizagens e experiências quotidianas, que diferem com as

latitudes, com a história e as tradições. Estilos Cognitivos são os utensílios mentais com que a criança se

vai munir no entendimento escolar quando aí chega. VIEIRA, Ricardo. Entre a Escola e o Lar. O

currículo e os saberes da infância. Lisboa. Fim de Século. 1998, p. 87.

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significar a si e ao mundo se tornam possíveis quando tecemos redes de conversações,

como aponta Cyrulnik:

A conversa constitui certamente o mais humano de todos os

nossos atos, ela cria um campo sensorial estruturado como um

ritual. É na conversa que nossos psiquismos se encontram e

tecem a afetividade que vai nos ligar. [...] O pequeno grupo que

se estrutura em torno de idéias, ações e afetos constitui a

organização de uma dimensão humana em que o indivíduo se

personaliza com facilidade .(2007:143)

Nas redes de conversação entre os integrantes do coletivo da gente 15 e na

conexão entre as linguagens, a produção do filme acontece. As questões da filmagem

surgem - uma das primeiras interrogações foi marcar a diferença entre a fotografia e o

filme, a criança que filmava apresentava a necessidade de enquadrar o outro com a

câmera, no lugar de seguir com o movimento.

As discussões giravam em torno de questões relativas ao uso (e abuso) da

câmera fixa (que corta o outro), da falação que impede o registro do áudio durante as

filmagens, do silêncio negociado, das marcas da rotina (no sentido de rota) de um fazer

que implica a mudança de um perceber. Após cada filmagem, o grupo assiste o que foi

feito e conversa a respeito das filmagens, cada um avalia e planeja a próxima ação

segundo critérios elaborados pelo grupo, cada um é diretor do filme, no sentido ter

autonomia na elaboração da narrativa.

A câmera como instrumento de registro revela o olhar das crianças, mesmo com

o foco no entrevistado, o que deveria estar ao fundo aparece, sendo bastante comum

quem fala ficar no canto da imagem, não há sobreposição na atenção multifocal, tudo

interessa. O excesso de pontos de vista revela a intensidade do tempo de Aion? Em nós

a dúvida se instala: quando e por quais caminhos a intensidade curiosa é substituída?

Mais uma entre tantas perguntas que colecionamos ao longo da pesquisa.

Estamos aprendemos com as crianças a pesquisar com as crianças. Ao longo

desses 03 anos de pesquisa temos colecionado muitas perguntas; as respostas e/ou

soluções, são muito poucas em relação a infinidade de perguntas que a pesquisa nos

coloca - mesmo as aproximações que julgamos traduzir algumas respostas/soluções,

15 A expressão “da gente” nomeia o grupo.

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trazem em suas configurações uma infinidade de perguntas. O movimento de

dobradesdobraredobra, que marca o estilo cognitivo singular das crianças e de cada

criança em particular exige, de nós pesquisadoras da e com a infância, a coragem de

enfrentar a difícil e dolorosa tarefa de apagar as tatuagens que marcam nosso olhar

sobre as crianças e suas infâncias – reconhecendo que pouco sabemos sobre elas e suas

elaborações do mundo.

Ao ver as filmagens feitas pelas crianças percebemos que elas sorvem o mundo,

sem deixar nada se perder, numa percepção em que nada se desperdiça pelo desencanto

da banalidade. A apreensão do mundo pela criança é um ato simples engendrado na e

pela sua própria experiência de mundo. No entanto, o que temos conseguido apreender

na pesquisa com as crianças é que a simplicidade da relação experiência-aprendizagem

está implicada numa multiplicidade qualitativa e virtual – que se atualiza nas diversas

direções em que flutuam a atenção das crianças e na pluralidade de pontos de vista que

caracterizam suas descobertas e invenções.

O ponto de vista desvelado possui encadeamentos curtos de imagens, mostra a

professora, a outra criança, o cachorrinho no portão, o en-foque é cortado pela outra

criança que passa fazendo careta para a câmera. A câmera que rompe com a

cotidianidade da aula, através do uso passa a integrar nosso ordinário e a compor outra

rota através da poética das crianças.

A produção de imagens não possui apenas a dimensão do arquivo. Produzir

imagens para apreciação, pelo prazer de fazê-las aparece durante nossa visita à Praça de

Gramacho - Lúcio desliza a câmera pela grade que recobre o muro de uma escola

vizinha. O efeito da imagem pura que se desprende da narrativa do passeio se aproxima

do que Deleuze (1998) chamou de opsignos - porque permitem aos sentidos uma

liberdade na relação direta como tempo e o pensamento.

O compartilhar com as crianças suas intervenções com as tecnologias dentro e

fora da escola, tem nos permitido reafirmar que suas interações com o mundo são de

caráter criativo ou inventivo.

A pesquisa tem nos ensinado que o encontro com as crianças em sua

corporeidade (em suas elaborações, pensamentos, práticas e invenções) exige a busca

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no mistério, nas zonas de invisibilidade produzidas pela modernidade. Como indica

Benjamin na alegoria em que um bêbedo procura sua moeda perdida próximo ao

candeeiro, apesar dela ter caído nos lugares de sombra, porque a luz era a condição de

encontrá-la; a procura de formas de conversações com as crianças se dá no

distanciamento de zonas de segurança ou conforto para experimentar o desafio de nossa

sensibilidade. Pesquisar com crianças é enfrentar o desafio de procurar “moedas” nas

sombras sem a segurança das luzes.

Estar com as crianças implica o exercício de uma escuta sensível16 às suas

perguntas, formulações, ações e desejos – traduções singulares de suas invenções do/no

mundo. A relação entre o desejo e o saber funda uma política cognitiva em outros

termos, há algo mais tirânico do que estudar as respostas para perguntas que não se

formulou? Ter que aprender um conhecimento sem a menor (im)plicação com a sua

vida?

Fazemos questão de afirmar que a perspectiva políticoepistemológica que

informa nossas investigações se pauta na tomada de partido pelo direito das crianças

das classes populares de terem seus processos de aprender respeitados, o que implica

uma ordem escolar emancipatória contra a própria condição da infância ou o infante

como o ser sem voz ou que não sabe o que diz. Por defender como Freire (1998), que

nenhum estudo ou postura são neutros, sentimos a necessidade de afirmar nosso ponto

de vista, mesmo compreendendo a impossibilidade de falar em nome do outro (Pérez

& Alves, 2009ª).

16 - Trata-se de um escutar-ver. O ouvinte sensível deve saber sentir o universo afetivo, imaginário e

cognitivo do outro para poder compreender de dentro suas atitudes, comportamentos e sistema de

idéias, de valores de símbolos. A escuta sensível pressupõe uma inversão da atenção. Antes de situar

uma pessoa em “seu lugar” começa-se por reconhecê-la em “seu ser”, dentro da qualidade de pessoa

complexa dotada de liberdade e de imaginação criadora. A escuta sensível aceita surpreender-se pelo

desconhecido que anima a vida. É mais uma arte que uma ciência - pois toda ciência procura

circunscrever seu universo e impor seus modelos de referência. É como a arte de um escultor sobre a

pedra, que para fazer aparecer a forma, deve antes passar pelo trabalho do vazio e retirar todo o excesso

para que a forma surja. Barbier, R. A escuta sensível na abordagem transversal. São Carlos. Editora

UFSCar, 1998.

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Boaventura Santos (2004) serve de inspiração para a concretização desta

ousada tarefa de dialogar com o conhecimento que circula, marginalmente, no

cotidiano da sala de aula [produzido na vida cotidiana e pautado na multiplicidade de

lógicas que a caracterizam] e que se contrapõe à racionalidade hegemônica que

sustenta a lógica da organização do conhecimento na escola.

A pesquisa se configura a partir de uma agenda políticaepistemológica que

sintetiza nossos debates, reflexões e compreensões sobre o papel da escola das classes

populares. Elaboramos tal agenda para orientar nossas ações investigativas, não temos

nenhuma intenção propor “cinco passos, ou sete maneiras de...”, pelo contrário,

acreditamos como Deleuze, que não há método somente uma grande preparação - é

esta perspectiva que informa nossa agenda de investigação com as crianças.

Defendemos que a escola precisa ser (re)inventada em sua base epistemológica

e em sua função política, o que exige a formulação de uma política cognitiva

comprometida com a produção de um conhecimento prudente para uma vida decente,

como postula Boaventura Santos. Nesse sentido pautamos nossas ações de pesquisa e

docência em alguns princípios epistemológicos que nos ajudam a (re)pensar e (re)criar

uma política cognitiva articulada à reinvenção da escola das classes populares. Tais

princípios são: (i)a diferença – entendida não somente como celebração da

diversidade, mas visceralmente ligada à desigualdade social; (ii) a descolonização das

mentes - através da reivindicação por uma Pedagogia da Pergunta como forma de auto-

organizar as práticas, currículos, usos de linguagens e demais ações e rituais

escolares/pedagógicos; (iii) a endogenese - processo de defesa da natureza sistêmica e

de invenção segundo hipóteses de vida, epistemologias marginais e a superação da

ignorância de nossa própria condição; (iv) a necessidade de estudar outras formas de

conceituar a cognição, superando a dicotomia ente/existente, mente/mundo,

desdobrando as explicações construtivistas baseadas na assimilação e acomodação

entre o sujeito e o objeto ou nas relações de conhecimento baseadas na representação,

referências insuficientes à produção de um conhecimento a serviço da emancipação;

(v) a mudança paradigmática, em que experiência e cognição se reencontram na

articulação prática-teoria-prática - pelo reconhecimento de processos como auto-

organização, emergência, enação e até mesmo a noção de ZPDs [admitindo uma

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leitura a partir das virtualidades em Deleuze]; (vi) a prática da professora como um

trabalho de co-implicação - aprender e ensinar na lógica da invenção17.

Estudar: ler/ perguntando. Percorrer, /interrogando-as,/palavras de outros.

E também: escrever/perguntando. Ensaiar/ as próprias palavras/ perguntando-lhes.

Perguntando-se nelas/e diante delas. Tratando de fazer pulsar/as perguntas que latejam/em seu interior mais vivo.

Ou em seu fora mais impossível.18

A pesquisa com as crianças tem nos permitido aprender com as impressões

produzidas por quem habitava a margem - as crianças eram vistas como incapazes, com

dificuldades de aprendizagem19. Das margens para as conexões foi o movimento que

fizemos, pois a elaboração do filme e as aulas na lan-house detonam práticas de escrita e

leitura que permeiam as outras linguagens. Enigma que reside num círculo no qual a

infância é a origem da linguagem e a linguagem é a origem da infância (p.59).

Pensar numa formação cíclica da qual entramos e saímos a cada acesso à

linguagem – e que negamos com as tantas interdições à fala, linguagem escrita,

linguagem de sinais ou informática - nos permitiu constatar o óbvio: ficamos mais sós

quando não recebemos aquel@s que chegam com diferentes possibilidades do dizer;

ficamos mais pobres pois o intercambiar de experiências é potência do dizer, do narrar;

por fim, podemos ser esquecidos ou apagados com maior rapidez, pois, se deixa menos

marcas quando as redes de conversações são menores e seus fios mais frágeis.

Agamben ao incorporar na relação linguagem e infância a questão da

experiência, nos ajuda a elaborar algumas aproximações de ordem teórico-

metodológica, no que se refere à pesquisa com as crianças: longe de procurar decifrar o

mistério da infância ou de circunscrever a criança num tempo cronológico idealizado

vimos buscando em nossas investigações, nos colocar diante - e junto com a criança -

da experiência de constituir a si na linguagem numa circularidade singular em que o

ingresso de cada um marca o discurso.

17 - A esse respeito ver PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal e ALVES, Luciana Pires. Injustiças Cognitivas:

ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e saberes no cotidiano escolar. Relatório de

Pesquisa. Rio de Janeiro. FAPERJ, 2009ª, p. 12. 18 - Larrosa Jorge op.cit., p: 99 19 A formação inicial da turma teve como critério a junção das crianças que segundo os critérios da

escola apresentavam dificuldades para aprender, principalmente questões relativas à alfabetização.

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