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A CRIANÇA E A INVENÇÃO DO MUNDO
Carmen Lúcia Vidal Pérez
Luciana Pires Alves
Buscamos em nossa pesquisa problematizar as concepções de cognição e
aprendizagem que fundamentam tanto as práticas pedagógicas, quanto as práticas (e
políticas) curriculares que informam as ações cotidianas da/na escola das crianças de
classes populares. Buscamos desdobrar a concepção de aprendizagem disseminada para
deslocar seu significado da solução de problemas ou apresentação de respostas, para um
aprender como produção de singularidades.
Interrogar o conceito de cognição leva a reflexão sobre o vazio epistemológico da
escola, movimento imprescindível à formulação de políticas cognitivas mais justas. O
que chamamos de vazio epistemológico da escola corresponde ao desgaste de seu
quadro conceitual fundado na razão indolente que desperdiça as experiências sociais
(saberes e práticas) que não fazem parte do modelo socialmente valorizado. O vazio da
escola se dá através do perverso processo da produção da não-existência - o que não
pode ser formulado segundo os esquemas conceituais hegemônicos é negado ou
desacreditado. Isso se explica porque o modelo cognitivo ocidental se reivindica como
única forma de racionalidade e, produz a não-existência ao perceber o outro como
ignorante ou atrasado.
Em nossas formulações teóricas e em nossas investigações com as crianças1, vimos
afirmando o cotidiano da sala de aula como o espaçotempo da possibilidade de
reaçãoinvenção, em oposição à concepção dominante na vida escolar que entende o
cotidiano como um espaço de rotinização e um tempo de repetição [do mesmo]. As
práticas pedagógicas disseminadas no cotidiano escolar, de um modo geral
respondem/correspondem a um modelo ou concepção de cognição que expulsa dos
bancos escolares a imaginação, o rememorar, a herança cultural e os modos de fazer de
todos aqueles que não se limitam a quantificar, analisar, buscar a verdade ou pensar de
1 -A pesquisa Injustiças Cognitivas: ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e saberes no
cotidiano escolar refere-se à investigação que vimos desenvolvendo há 03 anos, com crianças de classes
populares, alunas do Ciclo de Alfabetização da rede municipal de Educação de Duque de Caxias – cidade
situada na Baixada Fluminense na periferia do Rio de Janeiro.
2
forma a classificar, segregar, separar e ordenar o conhecimento. (Pérez & Alves,
2009c:114).
Quando as questões cognitivas se tornam questões políticas2, se evidencia que, a
negação da relação existencial das pessoas com o conhecimento e a desqualificação de
suas formas de significar o mudo constituem a produção de uma forma de injustiça.
Legitimar a história corpórea e social dos sujeitos da escola é abrir o fazer pedagógico
para o processo de produção de subjetividade que dialoga com as estruturas pelas quais
as pessoas existem no sentido “ter um mundo”, ou seja, nas suas hipóteses de vida. Para
tanto nos dobramos sobre as questões relativas à formulação de novas possibilidades
para a ação educativa da escola a partir da revisão-ampliação do conceito de cognição,
articulando-o a uma perspectiva político-epistemológica fundada na concepção de
injustiças cognitivas3.
Algo (se)passa/entre algo (se)passa/aqui/melancolicamente
algo (se)passa/agora/no alvorecer/no silêncio algo (se)passa/no labirinto /adentro
algo (se)passa/distraidamente/ como quem/ nada quer4.
Da tabula rasa às ciências cognitivas modernas, a criança é concebida como
criatura, ou seja, aquele que deve receber ou representar o mundo/realidade que
encontra. À cria biológica cabe o papel do infante que deve ser cuidado, alimentado,
protegido e educado. Como conseqüência dessa concepção, seu fazer é encerrado no
espaço da brincadeira, sua linguagem obliterada pela figura do ser sem voz e suas
lógicas são marcadas pela incompletude.
A criança confinada na infância vive uma ambivalência: a existência como
criatura autoriza o lugar de objeto dos pequenos nos discursos dos diferentes domínios
2 A política cognitiva baseada na recognição fundada na racionalidade moderna sustenta o mecanismo
de produção de analfabetos escolarizados, pois ao fabricar matrizes de aprender, unifica as expectativas
e relega para zonas de descrédito ou rezidualização experiências diferentes a dos seus modelos. 3 Boaventura de Sousa Santos nos apresenta o conceito de Injustiça Cognitiva Global, a partir do qual as
hierarquias entre diferentes tipos de conhecimento são, ao mesmo tempo, produto e produtoras de
hierarquias sociais e das desigualdades por elas geradas. Segundo Santos, a injustiça social traduz-se
freqüentemente em injustiça cognitiva – que ocorre no interior das sociedades e nas relações entre elas
(Norte/Sul, Centro/Periferia, etc). Ver SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento Prudente para
uma Vida Decente. Um Discurso sobre as Ciências revisitado. São Paulo. Cortez, 2004, p. 4 4 Larroza, Jorge. Estudar. Estudiar. Belo Horizonte. Autêntica, 2003, p.11
3
do conhecimento e, o impulso gerador e criativo como ser na linguagem. O regime de
verdade da ciência moderna iluminou fortemente a criança–criatura: o infante passa a
ser empregado como sinônimo de criança somente no século XVIII. Já o termo criança
remonta ao século XIII relacionado ao ato de criar- creātor-ōris5, referindo-se ao
humano pequeno ou ao ser criativo.
Com a escolarização, a criança passa de pequeno a menor, como explica
Sacristán, ao teorizar a respeito da invenção do aluno:
O aluno é uma construção social inventada pelos adultos ao
longo da experiência histórica, porque são os adultos (pais,
professores, cuidadores, legisladores ou autores de teorias
sobre a psicologia do desenvolvimento) que têm poder de
organizar a vida dos não-adultos ( 2005:11).
Nas sociedades escolarizadas, a criança, além da infância, ocupa o lugar do aluno o
ser menor dentro da relação pedagógica. Para romper com o processo histórico de
enquadramentos e reduções, não basta apenas investigar os conceitos de infância que
habitam o imaginário dos sujeitos praticantes da escola e os discursos sobre as crianças
que autorizam essas ou aquelas práticas pedagógicas. É preciso encontrar caminhos para
estar com elas em suas elaborações, pensamentos, práticas e invenções.
A busca pelo compreender das crianças reflete a assunção do desejo de fazer
pesquisa segundo outro paradigma de produçãoinvenção do conhecimento. A procura
não se dá por leis gerais do desenvolvimento ou sistemas de classificação infantil, mas
por partilhar com as crianças suas andanças e presenças pelo mundo. Por mais ousado
que seja, propomos o exercício de procura pelas crianças livre das infantilizações.
À margem do conceito de infância, que vias são possíveis para a elaboração do
fazer com desejado? Um dos caminhos para captar a aura (as crianças em sua
singularidade) obliterada pelo uso recorrente do conceito de infância aparece ao
compartilhar do que Agamben(2005) chama de tarefa infantil . Para filósofo, a infância
5 A criança como ser criativo ou criador que está na origem da palavra creātor-ōris sofre um
apagamento nos usos e sentidos que a infância recebe historicamente. Essa operação sobrepõe a figura da
criança e do infante. O termo infante originalmente, em língua portuguesa, designava os filhos dos reis de
Portugal e Espanha que não eram herdeiros da coroa. O infante como toda criança é uma construção
posterior, surge no século XIX , como os termos criançada - 1899 e criancice- 1899.
Ver mais: CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro
Lexikon Edistoricoitora Digital,2000.
4
é a dimensão original do humano, cabendo as crianças a constituição da vida humana
enquanto ethos, enquanto vida ética. Buscar uma polis (cidade) e uma oikía (habitação)
que estejam à altura desta comunidade vazia e impresumível. (p.17)
A questão proposta por Agamben nos coloca diante das crianças como sujeitos
da experiência, que engendram a si e ao mundo em tantos temposespaços. A experiência
única e múltipla: tantas são as crianças e tantos são os grupos: experiência originária -
partilhada por todos - de uma diferença indizível de tantos temposespaços. Cada um que
chega encontra e re-cria um espaço e um eu.
Os estudos da neurobiologia têm nos mostrado que inversamente aos postulados
da psicologia cognitiva6 (clássica), o ser humano não possui uma capacidade inata para
ordenar mentalmente o espaço e o tempo. Pelo contrário, tais estudos têm demonstrado
que a noção de espaço é uma invenção do cérebro humano: como não temos um órgão
sensorial “dedicado” ao espaço, assim como a relação olhos-visão, ouvido-audição, etc.,
o cérebro tem que combinar informações oriundas de diferentes modalidades sensoriais
processando tais informações em noções multissensoriais de espaço – completas, mas
não únicas, que incluem, mas não dependem exclusivamente de nenhuma dessas
informações. A noção de espaço é plural e complexa, engloba muitos espaços com
diferentes modos de espacialidade e propriedades distintas.
A compreensão de que a relação experiência-aprendizagem substancia a
produção de mapas espaciais, se contrapõe a política cognitiva [fundada na recognição7]
que fundamenta e organiza as práticas educativas no cotidiano da escola. Perguntas tais
como: são os mapas cognitivos, formados na e pela relação experiência-aprendizagem,
semelhantes em todos?, vêm alimentando os estudos da biologia molecular, por
exemplo - que já conseguiu detectar, através de experimentos com neuroimagens que
homens e mulheres (adultos), ativam áreas mentais diferentes quando pensam sobre o
6 - Kant, um dos ancestrais da psicologia cognitiva sustentou que a capacidade de representar o espaço
faz parte de nossa mente. Para ele o ser humano tem a capacidade inata para ordenar o espaço e o tempo. 7 O conceito de recognição preconiza que conhecer é representar o mundo ou o ambiente, quem conhece
apreende a realidade já elaborada dirigindo o raciocínio para criar soluções para a apresentação de
respostas. A recognição enfatiza a aquisição da perícia numa determinada área do conhecer, o que requer
a especificação do conhecimento, a representação do ambiente e a focalização da atenção, processo, esse,
que se traduz nos mecanismos de retenção da informação, internalização dos enunciados e de
habilidades de auto-regulação ou controle de si.
5
espaço. E as crianças, como pensam o espaço? Que espacialidades estão presentes em
suas experiências? Que propriedades configuram seus mapas espaciais? Como a escola
compreende as experiências e aprendizagens espaciais das crianças? Como uma criança
que vive numa “casa que vira” 8 pensa o espaço? O que significa a chegada de alguém
nesse espaço habitado? A poesia de Moska captura o sentimento da chegada:
É mais uma boca dentro do barraco Mais um quilo de farinha do mesmo saco
Mais um do mesmo e de outrem em qualquer tempoespaço que recebe suas
crianças em suas culturas através de seus linguageares9. Cabe aos pequenos o ato de
elaborar o sentimento de pertencimento, de morada - uma oikía; compreender o sistema
de relação da polis que encontra; operar segundo os códigos do ethos que rege o grupo
que lhes recebe. Essa realização é a tarefa de tornar-se humano que se dá através da
linguagem – num círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem é a
origem da infância (p.59). Como ressalta Agamben não encontramos o outro – a
infância- fora da linguagem, nela e através dela a criança integra a coletividade dos
adultos. As crianças apenas representam o mundo que encontram? Há um tempo, uma
duração própria para tornar-se alguém?
Acreditamos que não. Encontrar as crianças em nossa constante tarefa talvez
seja uma via dialógica de convivência com esses outros que ainda somos e já não somos
mais. O encontro entre gerações não garante apenas a transmissão da cultura - a criança
reinventa o mundo.
Pensar a infância como dimensão original do humano é vê-la no encontro (nas
conversações) entre diferentes [adultos e crianças] que é possibilitado pela linguagem e
8 Participar da elaboraçãoinvenção da “casa que vira” foi o debruçar-se sobre a ausência para descobrir
uma presença, para fazer da prática alfabetizadora uma prática de enfrentamento das negações. Não só a
casa, mas própria planta como astúcia, dos “narradores praticantes” – um saber dizer de sua
operatividade, o que permitiu perceber os sujeitos e a cultura popular em suas possibilidades, revelando a
astúcia de quem mesmo com pouco faz muito, uma vitória do tempo sobre o espaço, da memória sobre a
rarefação dos meios.
9 O termo linguajear é utilizado por Maturana para definir a linguagem e as relações humanas, segundo o
autor o linguajear não é um sistema de operação com símbolos abstratos na comunicação. É o fluir em
coordenações de coordenações comportamentais consensuais. Quando, numa conversação, muda a
emoção, muda também o fluxo das coordenações comportamentais consensuais. E vice-versa. Esse
entrelaçamento do linguajear com o emocionar consensual e se estabelece na convivência. (2004).
6
desafiado pela duração - Meu estado de alma, ao avançar na estrada do tempo, infla-se
continuamente com a duração que vai reunindo; por assim dizer faz uma bola de neve
consigo mesmo”(Bérgson, 1990, p.34). O adulto, este estado que reúne em si mais
tempo e vivências, tem diante da criança, de fato, a riqueza da experiência?
A duração apenas não nos autoriza a ser adulto, a maturidade diante dos
pequenos se faz a partir ou se partindo na experiência, na constituição do repertório da
narrativa que permite a autoridade. Porém, a substância que permite essa constituição se
dilui constantemente, seja pela busca da sobrevivência, pela massificação da cultura,
pelo enfraquecimento dos vínculos afetivos ou pelo adoecer dos ritos. Acaba por se
perder no sujeito do conhecimento moderno que ao produzir seus experimentos
desperdiça a experiência.
O encontro entre crianças e adultos - ainda que se dê a partir da assunção de
nossas fragilidades e não saberes - exige a inversão da atenção criança–adulto para
adulto-criança: o aluno ouve o professor, a criança ouve os pais, os mais velhos e
aprende que silenciamento é condição de respeito - que é dever da criança. A
socialização da criança engendra e é engendrada por mecanismos de asujeitamento, que
consubstanciam uma moralidade fundada num conjunto de regras e sansões que devem
aplicadas à e aprendidas pela criança, portanto, assim como tantas outras, a noção de
respeito, vai sendo imposta apartada da experiência. Em uma defesa de tese, uma das
professoras, membro da banca, se vale da experiência vivida com sua neta de 03 anos,
para fundamentar sua intervenção:
“- Minha neta de 03 anos fez uma malcriação para mãe (minha filha),
que imediatamente a repreendeu dizendo: ‘Como você fala assim com a
mamãe. Isso é uma falta de respeito. Eu sou sua mãe, você não pode
falar assim com a mamãe’. A minha neta imediatamente retrucou:’
Mamãe eu não sei nada sobre essa coisa de respeito. Eu estou
aprendendo’.
Como a criança acima, constatamos que nada ou muito pouco sabemos sobre as
crianças e seus universos cognitivos - estamos aprendendo. Para nós as crianças e suas
infâncias, ainda se constituem um mistério e são elas, as crianças com as quais
pesquisamos que têm nos ensinado a compreendê-las - aprendemos com as crianças a
compreender suas infâncias.
7
Procurar aprender com as crianças os processos de apeensãoinvenção de si e do
mundo é entregar-se a aura perdida da experiência original com a linguagem, no ato de
criar na palavra (Agamben, 2005:65). A criança que rememora é o ser corpóreo da
experiência que desafia o conceito aprisionador da infância. Longe de destituí-la de um
estatuto próprio, é procurar um fazer junto, incluindo nossas diferenças como incita
Benjamin: O fato de termos sido crianças nesta época faz parte de sua imagem objetiva
[...] A criança é capaz de fazer algo que o adulto não consegue: rememorar o novo
Benjamin(435). O que as crianças de agora vão rememorar? Que imagens serão
produzidas para atualizar nosso patrimônio simbólico?
- Tia, o fundo de tela da minha coberta é azul!
A fala retirada da conversa com as crianças mostra a marca da época no estilo
cognitivo, somente no tempo presente essa fala é possível, Juliana tem como referência
de estampa o fundo de tela do computador. Outra construção pertencente às crianças de
nosso tempo é a brincar de leptop: as crianças abrem as pastas plásticas, dispõem o
alfabeto móvel na base, prendem com clips um folha de ofício na aba e pronto, temos
um leptop.
O jogo de leptop demonstra a dimensão histórica do brinquedo, como revela
Agamben, a percepção da criança retira da ordem do sagrado ou da esfera prático-
econômico seu objeto, inscrevendo nele a temporalidade humana. A brincadeira de
leptop, diferente dos computadores em miniatura que visam a imitação do objeto em si,
requer uma combinação de elementos e operações de adequação com os materiais: a
pasta-estrutra, a folha-tela, o alfabeto-teclado. A criança produz história na
manipulação dos objetos, assim como a bola, a peteca e as bonecas brinquedos
“clássicos” guardam o acesso a outros tempos pela operação histórica que lhes tornou
possível, os brinquedos e jogos de hoje guardarão o acesso para nosso tempo e
denunciam a sua passagem pois irão fazer do novo (atual) velho (passado).
A criança como um ser produtor de história está na origem do brinquedo, seus
jogos recebem a marca das gerações anteriores, pois as crianças usam a sua maneira o
universo material e simbólico que encontram. Seus jogos podem ser percebidos como
configurações coletivas, entremeando gerações: o brinquedo não narra histórias apenas
em sua origem, em seus rastros, a brincadeira como origem, evoca aura da criação -
8
Pois é a brincadeira, e nada mais, que está na origem de todos os hábitos [...]
justamente através desses ritmos que tornamos senhores de nós mesmos (Benjamim
1996: 253).
Não só a sala é transformada em Lan-house quando as crianças brincam de
computador, mas a Lan-house passa a funcionar como espaço para a aula quando o
grupo usa a internet como meio para aprender, seja pela busca de respostas ou
informações ou pela curiosidade que suscita. Ver a intimidade da criança com os
computadores, o desembaraço no uso dos aparelhos, a presença da informática como
instrumento simbólico e a fala de Juliana, revela que a tecnologia dos adultos vai se
transformando em artefato pelas crianças. Talvez ver as crianças em suas elaborações,
nos permita regatar a autoridade baseada na experiência da maturidade que se faz
possível pela antecipação da idéia da morte, como na alegoria benjaminiana, a
verdadeira herança residia na sabedoria transmitida aos mais jovens.
A brincadeira confere à infância a dimensão original do humano: a manipulação,
as linguagem, os ritmos convidam quem chega a entrar no jogo e apresentam o ritos
(hábitos), a conjugação de tempos aion (o brincar) e cronos (o calendário ritualizado e
estruturado) e assegura a continuidade da história. Compartilhar com as crianças desse
presente que se faz passado, voltando a atenção para as criações desse outro fortalece o
vínculo no qual se tece a autoridade necessária para alimentar nossas redes de
conversações.
O fortalecer dos vínculos que funda a autoridade da experiência coletiva se
expressa nas trocas na padaria da rua Chopin10, regadas a refrigerante em nosso lanches
coletivos após as aulas na Lan -house e na negociação para que os créditos (que cada
um possui) em horas não gastas fiquem no login do grupo para a próxima aula-visita e
não no “nic name” individual que muitas crianças possuem.
- Eu quero aprender a ler e a escrever mais!
10 - Os lanches coletivos fazem parte da dinâmica do grupo ao permitirem momentos de diálogo e a
produção e a produção de outro emocionar. Outro emocionar surge quando aquele coletivo aceita, não o
outro, mas a si na legitimidade da convivência, abrindo caminho para a possibilidade de um outro
linguajear. Esse processo, que Maturana (1998) coloca como condição de interação a aceitação do outro
como legítimo outro da convivência, engendra outro emocionar nas relações cotidianas na sala de aula.
9
O desejo da criança aponta para o desafio que se coloca diante de nós: aprender
a ler e escrever no computador mobiliza outras lógicas e configurações que fraturam
nossas certezas e nosso saber já sabido, como nos lembra Freire (1996).
Mistério que se traduz como enigma diante de nossa perplexidade e
incompreensão. A forma como a criança escreve seu nome nos surpreende11
E R
A S
N
Interrogada pela professora sobre por que escreveu tudo fora de ordem, a menina
retruca:
- “Não tia eu escrevi certo, é o meu nome SERENA. Quando eu
digito é assim que eu escrevo e na tela aparece meu nome igual ele
é”, assim.
Sua resposta nos cala e nos faz pensar. O turbilhão de perguntas que emergem de
nossas experiências com as crianças alimenta nossa curiosidade epistemológica: o que
pode emergir quando investimos na procura do que as crianças das classes populares
sabem e nas suas formas de conhecer, nas narrações de suas histórias pessoais e
coletivas? Que problematizações são possíveis quando se defende que o coletivo
aprende ou que as aprendizagens podem ser coletivas e que conhecer envolve inventar a
si e o mundo? Quais as implicações de pensar a escola partindo de um conceito amplo
de cognição que inclua a memória, a imaginação e que defenda a abordagem conceitual
do conhecimento e não as fragmentações ou “didatizações” com que a escola trabalha?
(Pérez e Alves, 2009ª:34)
Uma cigarra cantando em baixo da janela da sala de aula suscitou a curiosidade das
crianças transformando-se numa questão de pesquisa, investigação e produção de novos
conhecimentos.
Ao nos dobrarmos (crianças-professora-pesquisadora) sobre a questão “como
conhecemos?”, a primeira constatação refere-se à pergunta: a gente conhece por que
pergunta. Questão que se desdobra na própria questão de investigação: o que sabemos
sobre as cigarras? Descobrimos que sabemos muitas coisas, mas que também temos
11 - Experiência narrada por Giane Grotti em um dos encontros do GEPEMC – Grupo de Estudos e
Pesquisas Escola, Memória e Cotidiano, coordenado por Carmen Lucia Vidal Pérez
10
muitas dúvidas. O que fazer agora? Perguntar. A quem? Aos professores. Procurar nos
livros. A professora faz uma provocação: podemos procurar respostas também na
internet. No computador? Maneiro...! Uma nova descoberta se anuncia – pesquisar na
internet. E lá vamos nós consultar o oráculo digital - o Google.
Na Lan House, novas aprendizagens, computadores antes usados apenas para
jogar transformam-se em fonte de pesquisa e conhecimento. As crianças distribuídas
nos 11 computadores iniciam sua busca. Ligar o computador e acessar internet é fácil, a
novidade é o que fazer para “saber sobre as cigarras” e agora o que fazer? Acessamos
o Google e fizemos a pergunta: como vivem as cigarras? As crianças fascinadas
perguntam sem parar: o que é Google? E agora apareceu um monte de coisas. Cada
dupla escolhe um site para pesquisar, ler e anotar as informações. Com as folhas das
pranchetas repletas de informações voltamos à sala de aula.
Foto deles na Lan House
É hora de “confrontar” as informações. Os grupos se organizam para discutir
suas pesquisas. As respostas obtidas na pesquisa pela internet, ao serem compartilhadas
geram dúvidas e debates. “Tem mais de 1600 tipos (espécies) de cigarras no mundo”. É
uma família muito grande! Na Austrália tem mais de 200 tipos. Onde é a Austrália?
Vamos ver no mapa? Que língua eles falam lá? Inglês. Igual do Google, né? Eu sei
falar inglês – Google. Na Inglaterra só tem um tipo.
Das cigarras passamos rapidamente a discutir geografia. As crianças vão
estabelecendo conexões com os seus saberes. Conceitos científicos e conceitos
cotidianos (Vigotsky,2001) se mesclam e se interagem na produção de um
conhecimento novo. As conexões nos trazem de volta ao tema: “Lá no Google está
escrito que tem 05 tipos de cigarras no Brasil”. Eu não vi isso no meu Google não. É
verdade tia? As diferentes informações geram dúvidas e desconfianças, a solução é
continuar a pesquisa em outras fontes.
11
Elaboramos um questionário com
perguntas que temos dúvidas e partimos para
pesquisa. Buscamos outras informações nos
livros, no quintal, em conversas com os mais
velhos. No dia seguinte chegam novas
descobertas. Vamos anotando as novas
informações: Meu avô não sabe nada de
cigarra que mora na Inglaterra e na
Austrália. Eu não achei nada das cigarras
brasileiras. Só das cigarras, mas não diz
onde elas moram. Agente trouxe um monte
de cigarra morta. Olha só! Essas são
macho. Os machos morrem logo. É só eles
que cantam. Eles cantam pra namorar. Mas
eles só cantam no verão. É eles saem da
terra por que é muito calor lá. Não é não!.
Embaixo da terra é frio. No verão não é
não! É sim, eu vi um filme Viagem ao
Centro da Terra, lá no fundo tem gelo. Isso
é no filme! Mas é verdade....
A proposta de examinarmos o corpo da cigarra suscita curiosidade e interesse,
embora a questão sobre a temperatura da terra não tenha sido esquecida. Aqui olha só,
como é asa dela, assim ela não sente frio lá. Lá aonde? Embaixo da terra. Examinar a
asa da cigarra no eyeclopss12, ao mesmo tempo em que mobiliza a curiosidade
epistemológica das crianças, se traduz numa gostosa brincadeira.
12 - Eyeclops: o aparelho semelhante ao microscópio reproduz as imagens aumentadas em até 200 vezes.
Aclopado ao aparelho de televisão permite ao grupo explorar detalhes que a visão humana não consgue
captar.
12
Em nossas pesquisas descobrimos que as cigarras vivem de 01 a no máximo 02
meses em cima da terra. Elas vivem por volta de 04 a 17 anos embaixo da terra. Ao
examinarem as cigarras trazidas, as crianças perceberam que tinham tamanhos
diferentes. A pergunta por que elas tem tamanhos diferentes gera debates e hipóteses: as
menores são filhotes. Tem cigarra pequena que não é filhote. Eu li isso no Google. Eu
também li, mas no livro de insetos. Ktlem encerra o debate ao ler suas anotações: tem
cigarra com 15 e com 65 milímetros de comprimento. Imediatamente algumas crianças
pegam a régua para “medir” as cigarras. Medir cigarras torna-se uma brincadeira, que
gera apostas e vencedores – ganha aquele que tiver a maior cigarra. As crianças
confirmam Vigotsky (2001), quando nos fala da imaginação como atividade criadora do
cérebro humano que possibilita a criação artística, científica e técnica. Brincar e estudar
faz parte do processo de conhecer.
13
As aprendizagens engendradas na pesquisa sobre as cigarras foram registradas
em diferentes linguagens, os relatórios foram produzidos conjugando escrita e desenho
– registrados individualmente nos cadernos e coletivamente nos cartazes produzidos.
Fotografias das crianças estudando as cigarras foram tiradas pelas próprias crianças e
fazem parte do registro iconográfico das aulas. Também foram produzidos slides nas
idas à Lan House (novidade – aprender a fazer Power point) e ainda estudamos os
conceitos de metamorfose, ninfa e exoesqueleto, devidamente registrados no caderno de
conceitos.
A pesquisa com as crianças tem sido para nós uma experiência estética, com elas
temos aprendido que o exercício de olhar o olhar das crianças nos possibilita captar as
singularidades no/do processo de conhecer de cada uma. O exercício do olhar estético
no cotidiano da sala de aula implica mobilizar os diferentes sentidos e as redes de
significados que tecem as idéias, as imagens, as concepções presentes nos diferentes
estilos cognitivos das crianças. Implica ainda em pensarfazer uma escola em que
14
O estudo se faz/de desfazer-se :
não há mais que o risco/
entre ler e escrever, /o desconhecido que / volta a começar,
algo (se) passa,/ o gesto de apagar/
o que acaba de ser lido/ou escrito
para que a página/continue/em branco,
ainda por ler, /por escrever13.
Desafiando o olhar tatuado.... – a pesquisa com as crianças
As aulas na lan-house, as brincadeiras de lep-top e a produção do filme, são
incursões nas linguagens que nos permitiram marcar um estilo cognitivo próprio obtido
na experiênciainvenção do conhecimento. Chamamos de estilo cognitivo14 os
fenômenos de conhecer que emergem nas possibilidades criativas ao aprender não só a
palavra escrita, mas alfabetizar-se na conexão das linguagens. Entre o filme e o
computador, entre os livros e a câmera, entre ver a si na tela e a produção do caderno de
conceitos, um modo próprio de conhecer se engendra no grupo que tem a pergunta
como elemento detonador.
O mundo capturado pela câmera e as percepções de mundo que nos capturam
promovem as conjugações que formamos ao fazer “O filme da gente. Cenas cotidianas
de nossa vida na escola”. Viver as descobertas da narrativa fílmica exige constante
negociação, não só ao eleger o que será registrado, mas da escolha das cenas
significativas para contar o que se deseja e a adequação dos comportamentos do grupo
em que cada um tem um papel importante para que a filmagem aconteça. A percepção
de cada um no trabalho que está em processo de realização estrutura um coletivo de
investigação potencializando os sentimentos de pertencimento (oikía), que re-funda o
ethos permitindo outras maneiras de co-existir no espaçotempo da sala de aula. O
movimento de estabelecimento de um coletivo alimenta os afetos e fortalece os
vínculos, o que fornece “enredos da rivalidade” porque outras formas de sentir e
13 Larrosa, op.cit., p:113 14 - Ricardo Vieira, fundamentado em Raul Iturra, define estilos cognitivos como as diferentes
interpretações do real, os diferentes posicionamentos éticos, morais, afetivos, os variados modos de
classificar o meio em resultado das aprendizagens e experiências quotidianas, que diferem com as
latitudes, com a história e as tradições. Estilos Cognitivos são os utensílios mentais com que a criança se
vai munir no entendimento escolar quando aí chega. VIEIRA, Ricardo. Entre a Escola e o Lar. O
currículo e os saberes da infância. Lisboa. Fim de Século. 1998, p. 87.
15
significar a si e ao mundo se tornam possíveis quando tecemos redes de conversações,
como aponta Cyrulnik:
A conversa constitui certamente o mais humano de todos os
nossos atos, ela cria um campo sensorial estruturado como um
ritual. É na conversa que nossos psiquismos se encontram e
tecem a afetividade que vai nos ligar. [...] O pequeno grupo que
se estrutura em torno de idéias, ações e afetos constitui a
organização de uma dimensão humana em que o indivíduo se
personaliza com facilidade .(2007:143)
Nas redes de conversação entre os integrantes do coletivo da gente 15 e na
conexão entre as linguagens, a produção do filme acontece. As questões da filmagem
surgem - uma das primeiras interrogações foi marcar a diferença entre a fotografia e o
filme, a criança que filmava apresentava a necessidade de enquadrar o outro com a
câmera, no lugar de seguir com o movimento.
As discussões giravam em torno de questões relativas ao uso (e abuso) da
câmera fixa (que corta o outro), da falação que impede o registro do áudio durante as
filmagens, do silêncio negociado, das marcas da rotina (no sentido de rota) de um fazer
que implica a mudança de um perceber. Após cada filmagem, o grupo assiste o que foi
feito e conversa a respeito das filmagens, cada um avalia e planeja a próxima ação
segundo critérios elaborados pelo grupo, cada um é diretor do filme, no sentido ter
autonomia na elaboração da narrativa.
A câmera como instrumento de registro revela o olhar das crianças, mesmo com
o foco no entrevistado, o que deveria estar ao fundo aparece, sendo bastante comum
quem fala ficar no canto da imagem, não há sobreposição na atenção multifocal, tudo
interessa. O excesso de pontos de vista revela a intensidade do tempo de Aion? Em nós
a dúvida se instala: quando e por quais caminhos a intensidade curiosa é substituída?
Mais uma entre tantas perguntas que colecionamos ao longo da pesquisa.
Estamos aprendemos com as crianças a pesquisar com as crianças. Ao longo
desses 03 anos de pesquisa temos colecionado muitas perguntas; as respostas e/ou
soluções, são muito poucas em relação a infinidade de perguntas que a pesquisa nos
coloca - mesmo as aproximações que julgamos traduzir algumas respostas/soluções,
15 A expressão “da gente” nomeia o grupo.
16
trazem em suas configurações uma infinidade de perguntas. O movimento de
dobradesdobraredobra, que marca o estilo cognitivo singular das crianças e de cada
criança em particular exige, de nós pesquisadoras da e com a infância, a coragem de
enfrentar a difícil e dolorosa tarefa de apagar as tatuagens que marcam nosso olhar
sobre as crianças e suas infâncias – reconhecendo que pouco sabemos sobre elas e suas
elaborações do mundo.
Ao ver as filmagens feitas pelas crianças percebemos que elas sorvem o mundo,
sem deixar nada se perder, numa percepção em que nada se desperdiça pelo desencanto
da banalidade. A apreensão do mundo pela criança é um ato simples engendrado na e
pela sua própria experiência de mundo. No entanto, o que temos conseguido apreender
na pesquisa com as crianças é que a simplicidade da relação experiência-aprendizagem
está implicada numa multiplicidade qualitativa e virtual – que se atualiza nas diversas
direções em que flutuam a atenção das crianças e na pluralidade de pontos de vista que
caracterizam suas descobertas e invenções.
O ponto de vista desvelado possui encadeamentos curtos de imagens, mostra a
professora, a outra criança, o cachorrinho no portão, o en-foque é cortado pela outra
criança que passa fazendo careta para a câmera. A câmera que rompe com a
cotidianidade da aula, através do uso passa a integrar nosso ordinário e a compor outra
rota através da poética das crianças.
A produção de imagens não possui apenas a dimensão do arquivo. Produzir
imagens para apreciação, pelo prazer de fazê-las aparece durante nossa visita à Praça de
Gramacho - Lúcio desliza a câmera pela grade que recobre o muro de uma escola
vizinha. O efeito da imagem pura que se desprende da narrativa do passeio se aproxima
do que Deleuze (1998) chamou de opsignos - porque permitem aos sentidos uma
liberdade na relação direta como tempo e o pensamento.
O compartilhar com as crianças suas intervenções com as tecnologias dentro e
fora da escola, tem nos permitido reafirmar que suas interações com o mundo são de
caráter criativo ou inventivo.
A pesquisa tem nos ensinado que o encontro com as crianças em sua
corporeidade (em suas elaborações, pensamentos, práticas e invenções) exige a busca
17
no mistério, nas zonas de invisibilidade produzidas pela modernidade. Como indica
Benjamin na alegoria em que um bêbedo procura sua moeda perdida próximo ao
candeeiro, apesar dela ter caído nos lugares de sombra, porque a luz era a condição de
encontrá-la; a procura de formas de conversações com as crianças se dá no
distanciamento de zonas de segurança ou conforto para experimentar o desafio de nossa
sensibilidade. Pesquisar com crianças é enfrentar o desafio de procurar “moedas” nas
sombras sem a segurança das luzes.
Estar com as crianças implica o exercício de uma escuta sensível16 às suas
perguntas, formulações, ações e desejos – traduções singulares de suas invenções do/no
mundo. A relação entre o desejo e o saber funda uma política cognitiva em outros
termos, há algo mais tirânico do que estudar as respostas para perguntas que não se
formulou? Ter que aprender um conhecimento sem a menor (im)plicação com a sua
vida?
Fazemos questão de afirmar que a perspectiva políticoepistemológica que
informa nossas investigações se pauta na tomada de partido pelo direito das crianças
das classes populares de terem seus processos de aprender respeitados, o que implica
uma ordem escolar emancipatória contra a própria condição da infância ou o infante
como o ser sem voz ou que não sabe o que diz. Por defender como Freire (1998), que
nenhum estudo ou postura são neutros, sentimos a necessidade de afirmar nosso ponto
de vista, mesmo compreendendo a impossibilidade de falar em nome do outro (Pérez
& Alves, 2009ª).
16 - Trata-se de um escutar-ver. O ouvinte sensível deve saber sentir o universo afetivo, imaginário e
cognitivo do outro para poder compreender de dentro suas atitudes, comportamentos e sistema de
idéias, de valores de símbolos. A escuta sensível pressupõe uma inversão da atenção. Antes de situar
uma pessoa em “seu lugar” começa-se por reconhecê-la em “seu ser”, dentro da qualidade de pessoa
complexa dotada de liberdade e de imaginação criadora. A escuta sensível aceita surpreender-se pelo
desconhecido que anima a vida. É mais uma arte que uma ciência - pois toda ciência procura
circunscrever seu universo e impor seus modelos de referência. É como a arte de um escultor sobre a
pedra, que para fazer aparecer a forma, deve antes passar pelo trabalho do vazio e retirar todo o excesso
para que a forma surja. Barbier, R. A escuta sensível na abordagem transversal. São Carlos. Editora
UFSCar, 1998.
18
Boaventura Santos (2004) serve de inspiração para a concretização desta
ousada tarefa de dialogar com o conhecimento que circula, marginalmente, no
cotidiano da sala de aula [produzido na vida cotidiana e pautado na multiplicidade de
lógicas que a caracterizam] e que se contrapõe à racionalidade hegemônica que
sustenta a lógica da organização do conhecimento na escola.
A pesquisa se configura a partir de uma agenda políticaepistemológica que
sintetiza nossos debates, reflexões e compreensões sobre o papel da escola das classes
populares. Elaboramos tal agenda para orientar nossas ações investigativas, não temos
nenhuma intenção propor “cinco passos, ou sete maneiras de...”, pelo contrário,
acreditamos como Deleuze, que não há método somente uma grande preparação - é
esta perspectiva que informa nossa agenda de investigação com as crianças.
Defendemos que a escola precisa ser (re)inventada em sua base epistemológica
e em sua função política, o que exige a formulação de uma política cognitiva
comprometida com a produção de um conhecimento prudente para uma vida decente,
como postula Boaventura Santos. Nesse sentido pautamos nossas ações de pesquisa e
docência em alguns princípios epistemológicos que nos ajudam a (re)pensar e (re)criar
uma política cognitiva articulada à reinvenção da escola das classes populares. Tais
princípios são: (i)a diferença – entendida não somente como celebração da
diversidade, mas visceralmente ligada à desigualdade social; (ii) a descolonização das
mentes - através da reivindicação por uma Pedagogia da Pergunta como forma de auto-
organizar as práticas, currículos, usos de linguagens e demais ações e rituais
escolares/pedagógicos; (iii) a endogenese - processo de defesa da natureza sistêmica e
de invenção segundo hipóteses de vida, epistemologias marginais e a superação da
ignorância de nossa própria condição; (iv) a necessidade de estudar outras formas de
conceituar a cognição, superando a dicotomia ente/existente, mente/mundo,
desdobrando as explicações construtivistas baseadas na assimilação e acomodação
entre o sujeito e o objeto ou nas relações de conhecimento baseadas na representação,
referências insuficientes à produção de um conhecimento a serviço da emancipação;
(v) a mudança paradigmática, em que experiência e cognição se reencontram na
articulação prática-teoria-prática - pelo reconhecimento de processos como auto-
organização, emergência, enação e até mesmo a noção de ZPDs [admitindo uma
19
leitura a partir das virtualidades em Deleuze]; (vi) a prática da professora como um
trabalho de co-implicação - aprender e ensinar na lógica da invenção17.
Estudar: ler/ perguntando. Percorrer, /interrogando-as,/palavras de outros.
E também: escrever/perguntando. Ensaiar/ as próprias palavras/ perguntando-lhes.
Perguntando-se nelas/e diante delas. Tratando de fazer pulsar/as perguntas que latejam/em seu interior mais vivo.
Ou em seu fora mais impossível.18
A pesquisa com as crianças tem nos permitido aprender com as impressões
produzidas por quem habitava a margem - as crianças eram vistas como incapazes, com
dificuldades de aprendizagem19. Das margens para as conexões foi o movimento que
fizemos, pois a elaboração do filme e as aulas na lan-house detonam práticas de escrita e
leitura que permeiam as outras linguagens. Enigma que reside num círculo no qual a
infância é a origem da linguagem e a linguagem é a origem da infância (p.59).
Pensar numa formação cíclica da qual entramos e saímos a cada acesso à
linguagem – e que negamos com as tantas interdições à fala, linguagem escrita,
linguagem de sinais ou informática - nos permitiu constatar o óbvio: ficamos mais sós
quando não recebemos aquel@s que chegam com diferentes possibilidades do dizer;
ficamos mais pobres pois o intercambiar de experiências é potência do dizer, do narrar;
por fim, podemos ser esquecidos ou apagados com maior rapidez, pois, se deixa menos
marcas quando as redes de conversações são menores e seus fios mais frágeis.
Agamben ao incorporar na relação linguagem e infância a questão da
experiência, nos ajuda a elaborar algumas aproximações de ordem teórico-
metodológica, no que se refere à pesquisa com as crianças: longe de procurar decifrar o
mistério da infância ou de circunscrever a criança num tempo cronológico idealizado
vimos buscando em nossas investigações, nos colocar diante - e junto com a criança -
da experiência de constituir a si na linguagem numa circularidade singular em que o
ingresso de cada um marca o discurso.
17 - A esse respeito ver PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal e ALVES, Luciana Pires. Injustiças Cognitivas:
ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e saberes no cotidiano escolar. Relatório de
Pesquisa. Rio de Janeiro. FAPERJ, 2009ª, p. 12. 18 - Larrosa Jorge op.cit., p: 99 19 A formação inicial da turma teve como critério a junção das crianças que segundo os critérios da
escola apresentavam dificuldades para aprender, principalmente questões relativas à alfabetização.
20
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