A CRIANÇA E O POETA: JOSÉ PAULO PAES E OS SERES EM ROTAÇÃO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

A CRIANA E O POETA: JOS PAULO PAES E OS SERES EM ROTAO

MARCIA CRISTINA SILVA

UFRJ/ Faculdade de Letras Setembro de 2007

MARCIA CRISTINA SILVA

A CRIANA E O POETA: JOS PAULO PAES E OS SERES EM ROTAO

Dissertao de

Mestrado da

apresentada Literatura, Literria,

ao Programa de Cincia

rea de Concentrao em Teoria

Faculdade de Letras Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Literatura.

Orientador: Profa. Dra. Lcia Ricotta

UFRJ/ Faculdade de Letras 2007

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AGRADECIMENTOSAos professores do Curso de Mestrado em Cincia da Literatura da UFRJ que me guiaram de forma brilhante nessa trajetria: Antonio Carlos Secchin, Vera Lins, Eucana Ferraz, Luis Alberto Alves e Antnio Jardim. amiga e professora da UFF Snia Monnerat que despertou em mim a vontade de realizar essa pesquisa durante o curso de Especializao em Literatura Infanto-Juvenil realizado na UFF. querida amiga Suzana Vargas, que me revelou os encantos da poesia e das palavras, mudando toda minha trajetria de vida. mestra e irm de criao literria Anna Claudia Ramos, que me fez entender, valorizar e me apaixonar pela literatura Infanto-Juvenil brasileira. Ao amigo Lus Camargo, que teve a generosidade de me auxiliar nos estudos sobre poesia infantil brasileira. urea Laguna, pelo auxlio precioso nos estudos sobre Monteiro Lobato.

E EM ESPECIAL s minhas duas queridas mes, que me deram asas para chegar at aqui. Professora Lcia Ricotta, mestra admirada, que me ensinou o prazer de pesquisar e a importncia de aprimorar o conhecimento com seus olhos de detetive e corao de poeta.

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Este talvez seja o momento para abrir parnteses e lembrar que os sonhos podem ser uma fonte de inspirao. s vezes trazem-nos sugestes que so como embries de futuros poemas. Mas a lucidez da tcnica e da experincia do poeta- tcnica e experincia cuja aquisio exige anos de leitura e de aplicao quase diria ao ofcio da escrita- que ir desenvolver as sugestes onricas em poemas acabados e compreensveis. Enquanto o sonho pessoal e s comove ou impressiona quem sonhou, o poema tem de comover e impressionar, se no todas as pessoas que lem, pelo menos aquelas cuja sensibilidade foi aprimorada pela leitura regular de poesia. (PAES, 1996, p. 5).

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RESUMO SILVA, Marcia Cristina. A criana e o poeta: Jos Paulo Paes e os seres em rotao. Rio de Janeiro, 2007 (Dissertao Mestrado em Cincia da Literatura/ rea Teoria Literria) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

O presente trabalho de dissertao prope estudar o processo de criao da poesia infantil brasileira, atravs da relao entre o trabalho do poeta e o brincar infantil. Para tal, utilizou-se como suporte poemas dos oito livros para crianas do escritor paulista Jos Paulo Paes analisados luz de poetas, crticos literrios, filsofos, tericos e ensastas, incluindo depoimentos do prprio Jos Paulo Paes. A fim de contextualizar a poesia infantil de Jos Paulo Paes, foi necessrio previamente estabelecer um histrico da literatura infantil brasileira, enfocando aquela produzida antes mesmo do surgimento da obra do pioneiro Monteiro Lobato. A partir das inovaes trazidas pelo escritor e pelos poetas do modernismo brasileiro, destacam-se as principais caractersticas que influenciaram a obra infantil de Jos Paulo Paes. Para o estudo do processo de criao da poesia para crianas de Jos Paulo Paes, optou-se por analisar os quatro elementos fundamentais para a construo de um poema: a sonoridade, a forma, a linguagem e a imagem. Ao analisar como Jos Paulo Paes trabalha com esses quatro elementos em sua obra infantil, pode-se perceber semelhanas do trabalho do poeta com o brincar infantil. Acresceu-se a essa abordagem um breve cotejo entre a poesia infantil de Jos Paulo Paes e a poesia infantil com enfoque meramente pedaggico e conclui que o referencial terico proposto pode ser til para a compreenso da relao entre o processo criativo do poeta e o impulso ldico caracterstico da infncia.

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ABSTRACT SILVA, Marcia Cristina. A criana e o poeta: Jos Paulo Paes e os seres em rotao. Rio de Janeiro, 2007 (Dissertao Mestrado em Cincia da Literatura/ rea Teoria Literria) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

The present Masters thesis intends to study the creation process of the Brazilian poetry for children, through the relationship between the poets work and the childrens playing process. For this purpose, poems from the eight books for children by Jos Paulo Paes, born in So Paulo, were analyzed based on poets, literary critics, philosophers, theorists and essayists, incluiding Jos Paulo Paes own statements . In order to set the backgroung of Jos Paulo Paeschildren poetry it was necessary to establish previously the history of the Brazilian literature for children. We focused on the material produced even before the appearance of the work of the pioneer author Monteiro Lobato. From the innovations brought by the author and by the poets from the so called Brazilian modernism, we pointed out the main characteristics that influenced Jos Paulo Paes work for children. In order to study the creation process of Jos Paulo Paes childrens poetry, we opted to analyze the four main elements required for the making of a poem: sound, form, language and image. Through the analysis of Jos Paulo Paes work for children in view of these four elements, we can perceive similarities between the poets work and the childrens act of playing. In addition to this review, a brief comparison between Jos Paulo Paes children poetry and the childrens poetry with pedagogical focus exclusively was established and we conclude that the theoretical references may be of use for the comprehension of the relationship between the poets creation process and the childs natural playful impulse.

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SUMRIO

1. INTRODUO....................................................................................8 2. OS CAMINHOS DA POESIA INFANTIL NA LITERATURA

BRASILEIRA......................................................................................16 3. A CRIANA E O POETA: SERES EM ROTAO........................47 4. O JOGO POTICO DE JOS PAULO PAES...................................63 5. CONSIDERAES FINAIS: O SABOR DO SABER....................121 6. BIBLIOGRAFIA................................................................................126

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1. INTRODUO

Convite Poesia brincar com palavras como se brinca com bola, papagaio, pio. S que bola, papagaio, pio de tanto brincar se gastam As palavras no: quanto mais se brinca com elas mais novas ficam. Como a gua do rio que gua sempre nova. Como cada dia que sempre um novo dia. Vamos brincar de poesia? (PAES, 1990, n.p.)

Esse poema de Jos Paulo Paes foi a semente de todo o nosso trabalho. Aceitando o convite do poeta, resolvemos investigar como seria brincar de poesia. Quais as regras desse jogo? Que tcnicas o poeta utiliza para renovar a linguagem? Por isso, a hiptese geral de nosso trabalho descobrir o processo de criao da poesia infantil brasileira, retirando-a do mbito menor infantilizado, demonstrando que a poesia destinada ao pblico infantil pode e deve ser estudada utilizando-se os mesmos recursos tericos que se destinam poesia adulta. Para tal nos valemos das idias de escritores como Edgar Allan Poe, Paul Valry, Roland Barthes, Ferdinand Saussure, Roman Jakobson, e dos estudos sobre potica feitos

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por Octavio Paz, Emil Staiger e Hugo Friedrich, entre outros, para analisar a obra potica infantil de Jos Paulo Paes e descobrir como se faz sua brincadeira com as palavras. Porm, ao contrrio da obra de Ana Elvira Luciano Gebara intitulada A POESIA NA ESCOLA1 (2002), que analisa a poesia infantil de Jos Paulo Paes sob um enfoque pedaggico, nosso trabalho tem desde sempre a inteno de aprofundar o lado esttico, isto , o lado da criao potica para crianas, por isso no nos preocupamos em seguir a ordem cronolgica da obra infantil de Jos Paulo Paes. Os poemas aparecem de forma aleatria para podermos focar no trabalho do poeta com as palavras, j que algumas tcnicas se repetem em livros diferentes, e somente estudando de forma entrelaada o que os poemas dos oito livros infantis de Jos Paulo Paes tm em comum, que podemos entender a importncia de sua obra para crianas dentro da literatura brasileira. Nossa hiptese geral tem um desdobramento, que examinar a relao entre a criana e o poeta. A partir da leitura de Homo Ludens2 (1938) de Johan Huizinga procuramos demonstrar como o trabalho do poeta com as palavras muito se assemelha ao jogo infantil. Essa uma questo que percorre toda nossa dissertao, desde o primeiro captulo denominado: Os caminhos da poesia infantil na literatura brasileira, onde traamos a trajetria da literatura infantil no Brasil, observando como s a partir de Monteiro Lobato h a troca de um discurso literrio moralista por um discurso esttico. Nesse primeiro captulo, com o suporte terico da pesquisadora da histria da literatura infantil brasileira Nelly Novaes Coelho e de Marisa Lajolo com seus escritos sobre as inovaes na literatura infantil a partir de Monteiro Lobato, pretendemos reconstruir, no contexto da historiografia e da histria literria, o aparecimento da poesia infantil no Brasil, e analisar suas

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GEBARA, Ana Elvira Luciano. A poesia na escola. So Paulo: Cortez, 2002. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. So Paulo: Perspectiva, 2004.

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caractersticas em comparao com a poesia infantil contempornea. Para tanto, foi necessrio nos aprofundarmos no estudo dos movimentos literrios brasileiros, tendo em vista que procuramos evitar quaisquer padronizaes, respeitando-se as caractersticas prprias de poetas como: Casimiro de Abreu, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, entre outros, bem como a diversidade dos crticos literrios: Antonio Candido, Roberto Schwarz, Joo Lus Lafet e Alfredo Bosi. No segundo captulo denominado: A criana e o poeta: seres em rotao procuramos destacar o momento em que o imaginrio da criana ganha relevncia na chamada literatura modernista. Ressaltemos, que s a partir de Jean-Jacques Rousseau em sua obra Emlio ou Da Educao (1762), abre-se a viso da sociedade para um novo conceito da criana, como um ser que tem necessidades especficas:

No se conhece a infncia; no caminho das falsas idias que se tm, quanto mais se anda, mais se fica perdido. Os mais sbios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o que as crianas esto em condies de aprender. Procuram sempre o homem na criana, sem pensar no que ela antes de ser homem. (ROUSSEAU, 2004, p.4)

Isso no significa que a criana deva ser vista como um ser menor, de compreenso reduzida, mas sim, que a criana no um adulto imperfeito. Portanto, se a infncia tem suas particularidades psquicas, a literatura que a ela se destina h de compor-se de forma atenta para essas particularidades, sem tornar-se, contudo, uma literatura infantilizada. Nesse segundo captulo, verificaremos como as contribuies estticas do passado, principalmente a partir do modernismo brasileiro, iro dar origem muito tempo depois, na

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dcada de 60, a uma poesia destinada as crianas, com uma linguagem mais acessvel, sem a preocupao em transmitir ensinamentos morais, apenas de fazer a criana descobrir o prazer de brincar com as palavras. Atravs dos poetas Ceclia Meireles e Vincius de Moraes, expoentes da poesia infantil na dcada de 60, perceberemos as inovaes estticas na poesia infantil brasileira e chegaremos finalmente a 1984, com Jos Paulo Paes, poeta, ensasta e tradutor, que incorporou em sua poesia para crianas algumas das mudanas apresentadas em nossa literatura infantil por Monteiro Lobato. Jos Paulo Paes com seus poemas em forma de cantigas de roda, acalantos, parlendas, adivinhas, trava-lnguas, demonstra assim como Monteiro Lobato procurou fazer desde o incio de seu trabalho O Saci-Perer: resultado de um inqurito (1918), a importncia da herana da cultura popular brasileira. Ainda nesse captulo, guiados pelos estudos de Srgio Buarque de Holanda sobre a obra de Manuel Bandeira, verificaremos como os poetas so marcados, de forma consciente ou no, pelas impresses poticas que tm na infncia. Se no primeiro captulo traamos um panorama histrico-literrio da poesia infantil at o modernismo brasileiro e no segundo captulo estudamos as influncias das heranas estticas modernistas que do incio na dcada de 60 a uma poesia voltada para o imaginrio infantil, foi para mostrar toda a trajetria da poesia infantil brasileira at chegarmos a estudar no terceiro captulo a poesia para crianas de Jos Paulo Paes. Cabe antes de tudo definir que, a partir da dcada de 60 at o presente momento, consideramos a poesia infantil classificada em dois grupos: um marcado pelo humor, como o caso de Jos Paulo Paes, Elias Jos, Srgio Capparelli,... E outro, marcado pelo lirismo, onde encontramos: Ceclia Meireles, Roseana Murray e Bartolomeu Campos de Queirs, entre outros que escolheram o caminho da sensibilidade que encanta crianas e adultos: o caminho da emoo. ( claro que muitas vezes os dois grupos se misturam e esses mesmos 11

poetas podem apresentar poemas recheados de humor e lirismo.) Se a criana por um lado adora tudo que se refere ao ldico, por outro, tem a emoo a flor da pele, e se comove com coisas que ns adultos j nos tornamos mais insensveis. Os poemas de Jos Paulo Paes tm como principal caracterstica o humor, porque segundo o filsofo Henri Bergson em sua obra O riso3

(1924) a linguagem do humor

mais precisa, tal qual classificamos a linguagem de Paes. No terceiro captulo de nosso trabalho, observaremos que toda a atmosfera da poesia infantil de Jos Paulo Paes caracterizada pela concretude de palavras relacionadas ao universo infantil, como: escola, elefante, zoolgico, circo, palhao, bife, batata-frita, etc., ao contrrio de poetas do grupo lrico, que trabalham com um vocabulrio mais abstrato ligado a emoes, palavras como: tempo, vento, desejo... Ainda, seguindo-se os ensinamentos de Henri Bergson o humor tem trs caractersticas bsicas, que procuramos demonstrar em nossa anlise da obra infantil de Jos Paulo Paes: a semelhana com tudo que h de humano (no caso de Paes, essa semelhana se d atravs da criao de um universo infantil criado por palavras prximas da criana), o distanciamento emocional necessrio para que o riso acontea (verificaremos no estudo da obra de Jos Paulo Paes, como inmeras vezes o poeta se utiliza de tcnicas para criar o riso, como, por exemplo, o freqente uso de onomatopias, paralelismos, prosopopias, paranomsias...), e a terceira caracterstica citada por Bergson: a cumplicidade. De acordo com o autor, o riso precisa de eco em outros ridentes, reais ou imaginrios, pois Bergson considera o riso um gesto social, uma espcie de castigo que a sociedade inflige a alguma coisa que a ameaa. Segundo ele, ns rimos quando aguardamos alguma coisa viva, mvel, flexvel e graciosa como a vida, e, de repente , ao contrrio, aparece algo de endurecido, desgracioso e mecanizado. Ele define o riso como sendo: o3

BERGSON, Henri. O riso. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

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mecnico sobreposto ao vivo (BERGSON, 2004, p.28). Isso nos remete criana, que inconscientemente reconhece quem diferente, e atravs do humor o repreende severamente, excluindo do grupo com apelidos e gozaes, por exemplo, o amigo mais baixo, mais gordo, mais desajeitado. Naquele momento h uma unio coletiva contra o diferente, que deve ser punido com risos. Nos poemas de Jos Paulo Paes estudaremos como o poeta faz uso de elementos aparentemente desconexos para criar o humor. tambm o inesperado, que leva crianas, jovens e adultos a se encantarem com seus poemas. O resultado disso a cumplicidade a que Henri Bergson se referiu. O leitor se encanta com os jogos de palavras, ao ver a possibilidade destas serem descoladas de seus sentidos e usos habituais para serem inseridas em um novo contexto. Com a inteno de analisar o processo criativo da poesia infantil de Jos Paulo Paes, procuramos estruturar esse terceiro captulo do seguinte modo: Destacamos os quatro elementos que consideramos fundamentais em qualquer criao potica: a sonoridade, a forma, a linguagem e a imagem. Primeiro, analisamos cada elemento separadamente na construo potica de Jos Paulo Paes. Depois, demonstramos como eles atuam simultaneamente em seus poemas. Ao mesmo tempo em que cada elemento pode ser estudado separadamente, s temos uma melhor percepo do poema quando passamos a enxerg-lo como um todo. Tal como em um jogo, cada pea tem seu papel fundamental, mas o jogo s se torna possvel a partir do momento em que uma pea interage com a outra. Atravs da anlise da sonoridade, com o suporte terico de Edgar Allan Poe, Paul Valry e Octavio Paz, observaremos como a criao potica muitas vezes comea motivada apenas por um tom, j que o som aponta para os sentidos e estimula pensamento. Na poesia para crianas isto fundamental, pois para elas mais importante do que o sentido das palavras, o encantamento pelo som. 13

No estudo sobre a forma, apoiados em Walter Benjamin e Hugo Friedrich, examinaremos como toda idia precisa de construo. Atravs do estudo do jogo que Jos Paulo Paes faz com as palavras, o sons e as imagens, chegaremos importncia do plano de composio de sua obra, j que a poesia infantil de Paes constitui-se numa dupla face: semiolgica, relacionada aos significantes e epistemolgica, relacionada ao significado das palavras. Com o suporte terico e respeitadas as devidas diferenas entre os escritores Roland Barthes e Ferdinand Saussure, verificaremos como se d esse jogo de interao entre significados e significantes nos poemas de Jos Paulo Paes. Essa relao entre significado e significante ser ainda mais aprofundada quando analisarmos o terceiro elemento: a linguagem. Como os formalistas russos ensinam, a poesia enfatiza o trabalho com a linguagem. Por isso, a partir de Roman Jakobson estudaremos as seis funes bsicas da linguagem, em especial a funo considerada pelo escritor como dominante- a funo potica. Jos Paulo Paes foi tambm tradutor de obras referenciais como: Curso de Lingstica Geral (1916) de Ferdinand Saussure e do ensaio Lingstica e Potica (1960) de Roman Jakobson e incorporou em sua obra o jogo de construo, unindo em seu trabalho maleabilidade com as palavras preciso, para tornar sua poesia fonte de prazer gratuito e no de obrigaes escolares. Seguindo-se a linha de reflexo de T.S. Elliot sobre o prazer como nica funo social da poesia, faremos uma breve comparao entre a poesia contempornea com finalidade pedaggica e a poesia considerada artstica. Na ltima parte desse captulo analisaremos o quarto elemento indispensvel criao potica: a imagem. Atravs das palavras do prprio Jos Paulo Paes, compreenderemos porque o pensamento da criana e do poeta segue uma paralgica: isto , ambos tm um pensamento mais intuitivo. Por isso, as imagens no precisam ter um sentido racional, pois 14

surgem antes mesmo da razo. Seria o que poderamos considerar um pensamento primitivo. Isso nos remete ao livro de Claude Lvi-Strauss: O Pensamento Selvagem (1962), onde o autor afirma que:... a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento cientfico e o pensamento mtico ou mgico, pois todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo de cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que tambm um objeto de conhecimento. (LVI-STRAUSS, 2006, p.38)

Todo artista precisa tambm da intuio sensvel das crianas. Portanto, o trabalho do poeta ao mesmo tempo conseqncia de uma intuio prvia acompanhada de um rduo trabalho de composio. At mesmo as imagens dos poemas infantis de Jos Paulo Paes, que parecem surgir de elementos aparentemente desconexos, so resultado de um trabalho de integrao com os outros trs elementos: a sonoridade, a forma e a linguagem. Assim tambm pretendemos realizar esse trabalho, combinando a busca por mais esclarecimentos a cerca das questes propostas, ao prazer de descobrirmos com o apoio de poetas, crticos literrios, pesquisadores e filsofos: os mistrios que envolvem o processo da criao potica para crianas. E tal qual como num jogo, pretendemos chegar a nossas consideraes finais, esperando termos atingido o objetivo a que nos propomos nesse trabalho.

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2. OS CAMINHOS DA POESIA INFANTIL NA LITERATURA BRASILEIRA

Octavio Paz, em seu livro Signos em rotao (1964), afirma que toda criao potica histrica, cabendo ao poeta ser o mundo sem cessar de ser ele mesmo. (PAZ, 2003, p.121) Esse, sem dvida, o maior desafio que um poeta enfrenta. Vivemos inseridos em um contexto histrico e, ao mesmo tempo, passamos pela Histria sem, s vezes, nem perceber. Somos parte de um passado, e no h como desconsiderar a importncia e o efeito disto sobre a literatura. A poesia guarda uma ligao com a Histria: ao mesmo tempo em que o poeta lida com questes ntimas, trata tambm de temas que, apesar de ligados subjetividade, so resultado de todo um conjunto de circunstncias que acompanham um acontecimento. Michel Foucault, no prefcio de seu livro As Palavras e as Coisas4 (1966), estabelece a importncia dos cdigos nos quais se baseia uma cultura: referenciais de linguagem, tcnica, valores com os quais o autor lida. No se pode ignorar tudo o que j foi pensado e escrito antes. Michel Foucault considera a seguinte questo: a importncia de se encontrar um equilbrio entre o tnue limite que separa e ao mesmo tempo integra a poca clssica ao chamado moderno, o indivduo sua cultura. a partir dessa relao que pode surgir o novo. Segundo Michel Foucault, o homem carrega um passado cultural, mas acolhe uma historicidade prpria, inserida na vida humana. Por isso, o passado no deve ser tratado como algo esttico, plano e uniforme, mas sim como algo em constante movimento, ilimitado e universal. sob tal prisma que pretendemos demonstrar, neste captulo, o processo de criao de poemas para crianas no Brasil. No podemos esquecer que a poesia para crianas, em especial a de Jos Paulo Paes, que ser nosso objeto de estudo, est

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FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. So Paulo: Martins Fontes 2002, p.16.

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tambm inserida na histria da literatura brasileira, uma vez que Paes, nascido em 1926, em pleno perodo considerado modernismo brasileiro5, demonstra em sua poesia desde o primeiro livro destinado as crianas isso ali (1984), escrito muito tempo aps o movimento modernista, as marcas de uma linguagem coloquial e espontnea, fruto de conquistas passadas, como analisaremos a partir de agora. Segundo Antonio Candido, em Iniciao literatura brasileira (2004) 6, as primeiras manifestaes literrias no Brasil, at ento apenas um extenso territrio de terras desconhecidas, ocorreram, no sc. XVI, com base na literatura europia: erudita, culta e elevada. Nossa literatura, no sc. XVI e no incio do sc. XVII, era caracterizada apenas por autores ocasionais que produziram obras no impressas, uma vez que o Brasil s teve licena para produzir tipografias depois de 1808, com a vinda da famlia real portuguesa para o Brasil, acelerando o ritmo do progresso intelectual devido a impresso de livros e o aparecimento dos peridicos. Os primeiros poemas para crianas, escritos nessa poca, visavam apenas circulao familiar, pois conforme a autora Nelly Novaes Coelho afirma em seu livro Literatura Infantil (2000) 7, at o final do sculo XIX, no podemos considerar a existncia de uma poesia infantil enquanto gnero literrio. Destacamos nesse perodo, os poetas: Alvarenga Peixoto, Brbara Eliodora, Sousa Caldas, Domingos de Barros e Gonalves de Magalhes, que apresentam em comum um trao que ser dominante na poesia infantil brasileira at a primeira metade do sc. XX: a presena de uma voz potica adulta, que se dirige a um

No pretendemos estabelecer como verdade absoluta as periodicidades literrias classificadas arbitrariamente conforme caractersticas genricas, pois consideramos tambm que cada autor apresenta uma viso particular, no se podendo, portanto, homogeneizar os diversos fenmenos literrios brasileiros. 6 CANDIDO Antonio. Iniciao Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: ouro sobre Azul, 2004 p. 17. 7 COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil. So Paulo: Moderna, 2003, p. 239.

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leitor infantil, utilizando o poema como veculo de educao moral, como, por exemplo, nessa estrofe do poema Amada filha, j chegado o dia de Alvarenga Peixoto:

... A mo que te gerou teus passos guia Despreza ofertas de uma v beleza, E sacrifica as honras e a riqueza s santas leis do filho de Maria. (COSTA; GONZAGA; PEIXOTO, 1996, p.980.).

Podemos perceber claramente a inteno do verso: o respeito aos pais e aos preceitos religiosos. Os poemas tm um perfil apenas moral. Eram escritos pelo adulto um ser superior, de conhecimento para exigirem obedincia das crianas, consideradas inferiores, ingnuas, desprotegidas e ignorantes. No havia a inteno de compartilhar brincadeiras, apenas a finalidade de ensinar as crianas a importncia da obedincia. Somente aps a Independncia do Brasil, em 1822, perodo que correspondeu ao romantismo brasileiro, nossa literatura passa a ser vista como uma forma de afirmao nacional e de construo da ptria. Para Antonio Candido, porm, seria impossvel que os escritores do tempo da colnia renegassem o momento literrio dominante no mundo ocidental para difundir um nacionalismo romntico antes do tempo. O nacionalismo implicava num esforo de afirmar a singularidade do pas atravs da libertao dos padres clssicos da era colonial, num duplo processo: de integrao da mentalidade e das normas europias e de diferenciao, para se obter a expresso do particular, com caractersticas prprias da terra e da sociedade. Se, no Arcadismo, em 1756, a tendncia era imitar a moda literria da Europa para pertencer ao mesmo passado cultural, no romantismo, ao contrrio, buscava-se a singularidade do pas e a livre expresso da sensibilidade, da individualidade. Porm,

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devemos lembrar: todos esses estilos literrios tiveram incio na Europa. O romantismo mesmo, teve suas primeiras manifestaes literrias, por volta do final do sc. XVIII, na Inglaterra e na Alemanha e, em seguida, j em pleno sc. XIX, na Frana, Itlia, Espanha, Portugal e nos pases ocidentais. Apesar de ter como princpios estticos gerais, o conflito entre a razo e a imaginao e o surgimento de um esprito crtico, em cada lugar, ou melhor, em cada autor a expresso romntica teve caractersticas prprias. No Brasil, houve nesse perodo denominado romantismo, a invaso da poesia pela msica, com nfase numa poesia sentimental, satrica e social, destacando-se os poetas: Gonalves Dias, lvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Castro Alves, entre outros. Ressaltemos, entretanto, a observao de Candido, sobre essa busca pela independncia: segundo ele, esse desejo resultaria em parte apenas na substituio das influncias portuguesas pelas francesas, pois a poesia religiosa e sentimental, por exemplo, seguia os passos de Lamartine. Gonalves Dias e Casimiro de Abreu escreveram alguns poemas que tinham como tema a criana, como o poema A infncia (1857) de Gonalves Dias e os poemas O Que Simpatia (1857) e Meus oito anos (1859) de Casimiro de Abreu. Porm, os poemas eram includos em seus livros dirigidos ao leitor adulto e ainda no chegam a configurar um gnero de poesia infantil, porque por vezes demonstravam apenas um saudosismo ou uma aluso infncia, como nessa estrofe do poema de Casimiro de Abreu, em que h uma idealizao da infncia como sinnimo de felicidade:

Meus oito anos Oh! que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infncia querida

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Que os anos no trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! (ABREU, 2003, n.p.)

O poeta j se aproxima mais de um ritmo familiar e de uma linguagem expressiva com enfoque emocional e prximo ao leitor. Porm, h um excesso de sentimentalismo, o que torna o poema ingnuo, no por se referir infncia, mas, sim, por consider-la como um paraso perdido, enquanto sabemos, na verdade, que a infncia um momento de descobertas, medos e ansiedades. O esprito crtico do romantismo aparece na oposio entre os tempos ditosos da meninice e as mgoas de agora da idade adulta, levando o leitor a crer que s ao adulto cabe o sofrimento. O saudosismo infncia foi tambm retratado por Jos Paulo Paes, muito tempo depois, no ano de 2001, porm, de um modo no melodramtico, e mais prximo da realidade infantil, como no poema a seguir, que tambm tem como referencial uma criana de oito anos:

Infncia Eu tenho oito anos e j sei ler e escrever. Por isso ganhei de presente a histria de Peter Pan. As aventuras dele com o Capito Gancho e o jacar que engoliu um relgio at que so engraadas. Mas achei uma bobagem aquela mania do Peter Pan de querer ficar sempre menino.

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J imaginaram se todos quisessem ficar sempre pequenos e nunca mais crescer? A quem ia cuidar da gente? Fazer comida, passar pito, mandar tomar banho, dizer que hora de ir pra cama? Sarar a gente da dor de barriga e da dor de dente? Ensinar a gente a ler para ganhar de presente a histria de um menino que no quis crescer e nunca pde ter, coitado!,( como eu um dia vou ter) saudades da infncia? (PAES, 2001, p.31)

Jos Paulo Paes embarca no trem de volta infncia e vira um menino de oito anos. Percebemos pela linguagem e pelo modo de expresso que o poema parece ter sido escrito por um menino. Porm, um menino que um dia j tomou o trem da prosa. Jos Paulo Paes faz jus ao ttulo do livro "Vejam como eu sei escrever (2001)" e demonstra que realmente sabe escrever, pois o poema est no limite entre o menino que conversa com o leitor e o adulto que j conhece o sentimento de saudade da infncia. Se, por um lado, o poema parece escrito por um menino que sonha em crescer, por outro, traz de volta um adulto que nunca deixou de ser menino. Podemos notar essa ambigidade claramente na forma do poema tambm que, muitas vezes, lembra uma conversa mais prosaica. Mesmo na forma de poema, poderia perfeitamente ser lido como um texto corrido em prosa, como se fosse o comeo de uma histria, por exemplo. Desde o incio o leitor pode ter essa impresso, quando Paes passa para o segundo verso com uma expresso tipicamente prosaica, explicativa: por isso. H todo um processo de ordenao para que o poema parea ter sido escrito por uma criana. A identificao do poeta com a criana uma das

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caractersticas que mais se destacam na poesia infantil de Jos Paulo Paes. Observemos esse outro poema:

O menino de Olho d gua Era uma vez um menino nem muito gordo nem muito magro nem muito fraco nem muito forte nem muito baixo nem alto. Era um menino comum igual a tantos outros meninos que andam a pelo mundo. Meninos como voc ou como eu de uma outra data no tempo em que era pirata. (PAES, 1991, n.p.)

Jos Paulo Paes se dirige criana: meninos como voc, no para passar lies de moral, e sim como uma forma de se aproximar de um determinado leitor: um menino comum, igual a tantos meninos que , na verdade, identificado com o prprio passado do narrador do poema, o poeta de uma outra data, poeta-menino. O importante nesse poema de Paes o destaque de um discurso prprio a um poeta-menino, endereado ao leitor de poesia tambm menino. O poema de Jos Paulo Paes faz uso de uma linguagem muito simples, dinmica e direta (que busca uma cumplicidade com o leitor). O que nos interessa aqui demonstrar como comeou o processo de busca por uma linguagem mais informal, diferenciada de um rigor gramatical, para chegarmos at essa linguagem ldica. Mencionamos a questo sobre a busca da expresso de uma singularidade para o pas e, principalmente, para o desenvolvimento da sensibilidade prpria de cada escritor, porque, de acordo com Antonio

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Candido, nos sculos XVI e XVII ocorre um fenmeno de adolescncia do nacionalismo, que ir ter seu apogeu no considerado modernismo brasileiro, em 1922, num movimento de defesa da liberdade de criao e experimentao, atacando a esttica acadmica. importante ressaltar ainda que, a partir de 1870, h um perodo de modernizao da economia brasileira. O caf, base de nossa economia, ao mesmo tempo em que preservava aspectos do passado colonial (latifndio, monocultura e escravismo), tornava nossa realidade mais dinmica, estimulando o desenvolvimento da viao frrea, alm de criar condies favorveis para o crescimento de outros empreendimentos como bancos, atividades ligadas ao comrcio interno e uma srie de iniciativas empresariais, inclusive o surgimento de vrias casas editoriais. Com relao a este momento, Antonio Cndido destaca, ainda em Iniciao literatura brasileira (2004) 8, o amadurecimento da conscincia crtica, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro e Recife, onde os intelectuais questionaram os fundamentos tradicionais da sociedade brasileira como a monarquia, a religio e as hierarquias do privilgio, criticando o idealismo romntico e as explicaes religiosas. Dessa reao anti-romntica surgiram vrias tendncias, entre elas: o naturalismo, o simbolismo e, principalmente, o parnasianismo que, entre 1880 e 1890, traz de volta a idia de um purismo gramatical e um rebuscamento da linguagem, contrapondose ao sentimentalismo caracterstico do perodo romntico. Destacamos nessa fase na poesia infantil, o poeta Olavo Bilac, que se interessou pelos problemas educacionais, elaborando livros didticos que se tornaram modelo da poesia eloqente, nas escolas do incio do sculo. Conforme ressalta Nelly Novaes Coelho, em Literatura Infantil (2000) 9, o livro de Olavo Bilac, Poesias Infantis (1904), foi grande sucesso na poca e teve vrias

8 9

CANDIDO Antonio. Iniciao Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: ouro sobre Azul, 2004 p. 64-65. COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil. So Paulo: Moderna, 2003, p.227.

23

reedies at 1950. Porm, na poesia infantil o poeta por vezes escrevia numa linguagem menos elaborada do que em sua poesia para adultos, os versos tratavam de assuntos simples, j mais relacionados ao universo infantil, como ilustra o poema a seguir:

A Boneca Deixando a bola e a peteca, Com que inda h pouco brincavam, Por causa de uma boneca, Duas meninas brigavam. Dizia a primeira: minha! - minha! a outra gritava; E nenhuma se continha, Nem a boneca largava. Quem mais sofria ( coitada!) Era a boneca. J tinha Toda roupa estraalhada, E amarrotada a carinha. Tanto puxaram por ela, Que a pobre rasgou-se ao meio, Perdendo a estopa amarela Que lhe formava o recheio. E, ao fim de tanta fadiga, Voltando bola e peteca, Ambas, por causa da briga, Ficaram sem a boneca... (BILAC, 1952, p.31-32)

Podemos observar no poema as primeiras manifestaes de uma poesia mais ldica. Esse poema datado de 1904, j se diferencia dos poemas caracterizados pelo pedantismo, e pelo artificialismo de linguagem, tpicos do perodo parnasiano em que foi criado. Isso

24

certamente se deve ao fato tambm da publicao do livro Contos Infantis (1886)

10

, de

Jlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira, ter ocorrido poucos anos antes. Esse livro reuniu 27 contos em prosa de Jlia e 31 contos em verso de Adelina, sendo considerado um marco na formao do sistema da poesia infantil brasileira, pois com ele surgem autores escrevendo especificamente para crianas, e crianas que passam a ser consideradas como leitoras, j que o livro se destinava a circulao escolar, e no mais circulao familiar. O modernismo brasileiro posterior a esse perodo literrio, veio marcado por uma reao transformadora. Sua primeira fase ocorre em 1920, com uma acentuada preocupao esttica, de valorizar na poesia os temas cotidianos, expresses coloquiais e de romper com a solenidade caracterstica da poesia parnasiana. Porm, cabe lembrar que essa esttica no foi unificada atravs de postulados rigorosos em comum. No havia uma escola a seguir, apenas alguns autores como Mrio de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, entre muitos outros, tinham o mesmo desejo: a busca por uma expresso livre. Cada um a seu modo defendeu a liberdade de expresso, fosse no vocabulrio, na sintaxe, na escolha de temas ou na prpria maneira de ver o mundo. E no podemos desconsiderar que a criao potica de Jos Paulo Paes, assim como a de outros poetas contemporneos, derive desse contexto histrico, pois como ressalta Roberto Schwarz em seu livro Que horas so?(2002):

... a modernidade no caso no consiste em romper com o passado ou dissolv-lo, mas em depurar os seus elementos e arranj-los dentro de uma viso atualizada e, naturalmente, inventiva, como que dizendo, do alto onde se encontra: tudo isso meu pas. (SCHWARZ, 2002, p.22.)10

ALMEIDA, Julia Lopes de; VIEIRA, Adelina Lopes. Contos infantis: em verso e prosa. Rio de Janeiro: F. Alves, 1923.

25

Observe-se a historicidade e o devir histrico presente na literatura infantil brasileira. De acordo com o artigo De Lobato dcada de 1970 ( 1998) 11, de Laura Sandroni, at fins do sculo XIX, a literatura infantil era acessvel apenas a uma elite por ser toda importada, com tradues vindas de Portugal. No primeiro decnio do sculo XX, autores brasileiros comeam a ser includos nas seletas preparadas e impressas em Portugal. Porm, antes de 1920, a produo literria para crianas caracterizava-se apenas por uma descrio de um cotidiano infantil modelar, com personagens dotados de virtudes a serem incorporadas e defeitos a serem evitados e corrigidos. Em 1917, Monteiro Lobato, influncia confessa no processo de criao para crianas de Jos Paulo Paes em Quem eu? Um poeta como outro qualquer (2006)12compra a Revista do Brasil e comea a editar seus prprios livros. Depois disso, funda a primeira editora nacional: Monteiro Lobato & Cia. que se transforma na Companhia Editora Nacional. Em 1921, com a publicao de A menina do narizinho arrebitado, inaugurada a fase literria de produo brasileira destinada a crianas e jovens. O livro altera a feio da literatura infantil brasileira, pois reivindica a participao da criana na narrativa. Antes de se preocupar em ensinar esse leitor-criana, o livro procurava interessar e divertir o leitor atravs de solues comunicativas inditas no plano lingstico com a predominncia de uma linguagem afetiva, espontnea, coloquial e descontrada. Mas Lobato no planejava realizar apenas uma mudana na esttica tradicional conservadora, ele tratava o livro como um objeto sem aura: como linguagem, como texto, como mercadoria, que poderia ser vendida em qualquer lugar. Em uma das cartas da Barca

11

SANDRONI, Laura in 30 Anos de literatura para crianas e jovens, org: Elizabeth DAngelo Serra. So Paulo: Mercado das Letras, 1998, p.13. 12 PAES, Jos Paulo. Quem eu? Um poeta como outro qualquer. So Paulo: Atual, 1996, p. 15.

26

de Gleyre (1959)

13

, datada de 1921, Lobato chega a comparar A menina do narizinho

arrebitado a dois remdios que mais vendiam na poca: leo de rcino e Gelol. Ele tinha um olhar dessacralizador do livro enquanto produto que deveria render lucros a seu produtor. Comeamos a traar aqui o perfil de Monteiro Lobato, como um homem que sempre se preocupou em unir a fantasia realidade, tanto no trabalho de criao literria, como na funo de editor, pois ao se preocupar com a divulgao e com a ampla recepo de seus livros, Lobato cuidava do meio pelo qual o sonho de todo escritor pode ser exposto e compartilhado com os leitores. A obra de Monteiro Lobato, com a ampla divulgao que teve, tornou-se referencial da literatura infantil brasileira a partir de 1920 at os dias de hoje. De acordo com Marisa Lajolo, no artigo A modernidade em Monteiro Lobato (1983)14

, ele quem inicia o processo de revitalizao da literatura nacional com o

abrasileiramento do imaginrio europeu e a criao de uma literatura voltada para nossas razes folclricas, visto que os contos de Perrault e dos irmos Grimm, retratavam a histria da literatura infantil europia, bem diferente da nossa. Outro nome a ser lembrado nesse processo de resgate das razes nacionais, de nossa tradio oral, foi Cmara Cascudo, estudioso de nosso folclore, preocupado com a literatura oral do Brasil, escreveu inmeras adaptaes de contos para crianas, jovens, e adultos, tendo criado inclusive o Dicionrio do folclore brasileiro, publicado anos mais tarde em 1952. Monteiro Lobato deu incio troca do discurso moralista com intenes educacionais pelo discurso esttico. Ele rompeu com os cnones da escrita tradicional ao misturar o maravilhoso com o real, em uma poca em que os livros infantis preocupavam-se em13 14

LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre.So Paulo: Brasiliense,1964 v.2,p.230. LAJOLO, Marisa. A modernidade em Monteiro Lobato. In: ZILBERMAN, Regina (org.) Atualidade de Monteiro Lobato: uma reviso crtica. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

27

ensinar comportamentos modelares a serem copiados e formas corretas da escrita. Lobato teve um papel inovador na literatura infantil brasileira, diferenciado de outros autores da poca, que consideravam a criana "um adulto pequeno". Ao tratar a criana como um ser ainda "limpo de impresses", com um olhar inaugural em relao ao mundo, ele destacou a importncia das primeiras leituras na construo do imaginrio infantil, j que a fantasia um elemento inerente ao ser potico da criana. Observemos isso nas prprias palavras de Lobato, em carta ao amigo Godofredo Rangel, datada de 1926, em que revela tambm uma de suas influncias literrias:

Ando com idias de entrar por esse caminho: livros para crianas. De escrever para marmanjos j me enjoei. Bichos sem graa. Mas para crianas, um livro todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Cruso do Laemmert. Ainda acabo fazendo livro onde as nossas crianas possam morar. No ler e jogar fora; sim morar, como morei no Robinson e n'Os filhos do capito Grant. (LOBATO, 1964, v.2, p. 292-3)

Nesse relato temos a imagem de um Lobato desiludido com o mundo criado pelos adultos. O livro, ento, passa a ser o lugar do exlio, o lugar que ir completar tudo o que falta na realidade um livro todo um mundo. Nesse depoimento nos parece clara a inteno de Monteiro Lobato: formar leitores, pessoas interessadas em encontrar outro mundo por trs das palavras. Monteiro Lobato j demonstrava em sua literatura, mesmo antes do modernismo brasileiro, algumas caractersticas como: o nacionalismo, temas relacionados ao cotidiano, linguagem com humor e a liberdade no uso de palavras e textos diretos. Desse modo, valorizou o nacional, numa proposta, de autntica brasilidade. Por essa razo, cabe-nos aqui

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sublinhar que, no pretendemos marcar o modernismo como o incio de uma literatura nacional, e excluir momentos e projetos literrios anteriores, que j tinham esse propsito. Antonio Candido, em seu livro Formao da literatura brasileira (1956) revela que o importante perceber o processo de construo do sistema literrio15 nacional, como uma perspectiva emancipatria. Candido tenta historiar o surgimento dessa perspectiva, por exemplo, em imagens poticas com sentimento de apego terra e destaca a importncia inclusive do Arcadismo para contribuio da nossa literatura:Parece-me que o Arcadismo foi importante, plantou de vez a literatura do Ocidente no Brasil, graas aos padres universais por que se regia, e que permitiram articular a nossa atividade literria com o sistema expressivo da civilizao a que pertencemos, e dentro da qual fomos definindo lentamente a nossa originalidade. Note-se que os rcades contriburam ativamente para essa definio, ao contrrio do que se costuma dizer. Fizeram com seriedade dos artistas conscientes, uma poesia civilizada, inteligvel aos homens de cultura, que eram ento os destinatrios das obras. Com isto, permitiram que a literatura funcionasse no Brasil. E quando quiseram exprimir as particularidades do nosso universo, conseguiram elev-las categoria depurada dos melhores modelos...

(CANDIDO, 1993, p.17)

Segundo Antonio Candido, apesar das diferenas entre o arcadismo e o romantismo, j havia uma solidariedade estreita entre ambos, no que tange a um propsito semelhante: construir uma cultura nacional atravs da literatura. Esse foi tambm o compromisso literrio de grande parte de nossa literatura. A relao entre literatura e nacionalidade

15

Antonio Candido define o que entende por sistema literrio em seu livro Iniciao Literatura Brasileira. Segundo o autor, o sistema literrio compreende a articulao dos elementos que constituem a atividade literria regular, sendo estes: autores, pblico e tradio (reconhecimento de obras e autores precedentes). Grande parte da obra de Antonio Candido dedica-se a historiar a constituio dessa relao: autores-obrapblico.

29

aparece configurada na obra de Flora Sussekind Tal Brasil qual romance 1982)

16

. A

professora, ensasta e pesquisadora, preocupada em identificar os movimentos de ruptura e de continuidade, tanto nos autores que se consagraram no sculo XX, quanto nos contemporneos, nos revela em seu livro que a literatura no Brasil sempre esteve associada idia de construo de uma identidade nacional, ficando muitas vezes a prpria literatura em segundo plano, esquecida, diante da necessidade e tarefa dos escritores de afirmar sua cultura nacional como algo sempre em evoluo. Isso porque o Brasil ansiava por fugir de suas razes estrangeiras, no queria ser visto como uma eterna cpia dos modelos europeus, sempre inferior intelectualmente. Os escritores tentavam traar o perfil de um pas sem fraturas, sem rupturas, sem a ameaa de qualquer ambigidade que pudesse desestabilizar e no tornar visvel a relao entre nacionalidade e cultura. Assim, a linguagem tornava-se personagem secundrio, apenas um acessrio para a representao do retrato nacional de uma ptria coesa, una e autnoma, ocultando-se quaisquer sombras que pudessem desfigurar tal retrato. Por isso, Flora Sussekind considera o trabalho historiogrfico como um exerccio de constante interpretao, j que o historiador trabalha com imprecises, indeterminaes, num terreno por vezes movedio devido aos fatos no revelados ou revelados de modo superficial. O movimento modernista quando aparece se prope a revisar toda a histria literria brasileira, sugerindo a formao de uma elite intelectual capacitada a fazer essa reviso. Os autores, classificados pela crtica literria como modernistas, combinaram a informao estrangeira com uma ateno redobrada do que havia sido feito no Brasil, propondo um equilbrio entre ambos. Entretanto, a modernidade literria aparece configurada historicamente entre 1930 e 1950, com os poetas: Carlos Drummond de Andrade, Manuel16

SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil qual romance. Rio de Janeiro: Achiam 1984, p.86.

30

Bandeira, Vincius de Moraes, Mrio de Andrade, entre outros tantos que realizaram uma literatura consistente com um modernismo amadurecido. De acordo com Joo Lus Lafet em, 1930: A Crtica e o Modernismo (2000)17

, na dcada de 20, houve uma preocupao

maior em torno da nova linguagem, enquanto que, a dcada de 30, volta-se para uma preocupao ideolgica; a inteno no mais a de criar um Brasil novo, ajustando-o a uma realidade mais moderna, mas, sim, reformar essa realidade ento criada, pois j havia no pas uma conscincia pessimista do subdesenvolvimento e uma maior preocupao com os problemas sociais. Mas onde entra Lobato nessa histria? Seria ele um modernista, um pr-modernista, um anti-modernista ou um modernista s avessas? Ao destacar sua importncia nesse trabalho, preferimos consider-lo um poeta, como o considerou o editor e colega de trabalho Pedro Paulo Moreira. No artigo Conversando sobre Lobato18, ele o descreve como um sujeito poeta, que no entendia nada de negcio, motivo que levou, segundo o editor, falncia de sua editora Cia. Grfico-Editora Monteiro Lobato e da Revista do Brasil. Devido ao seu jeito irreverente, as relaes entre Lobato e os modernistas sempre foram conflituosas, como passaremos a demonstrar a partir de agora. Conforme o livro Monteiro Lobato-Furaco na Botocndia (1997)19

, de Carmen

Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, Monteiro Lobato foi o principal representante do modernismo na literatura infantil. Embora tenha sido considerado um modernista "s avessas", pois contrariou o grupo de 1922 (formado basicamente por Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Graa Aranha, Manuel Bandeira, Mrio de Andrade, Menotti Del

17 18

LAFET, Joo Lus. 1930: A Crtica e o Modernismo. So Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 28. MOREIRA, Pedro Paulo. IN: Lendo e escrevendo Lobato. Belo Horizonte: Autntica ed. 1999, p.125. 19 AZEVEDO, Carmen Lcia de; CAMARGOS Marcia; SACCHETA Vladimir. Monteiro Lobato-Furaco na Botocndia. So Paulo: Ed. Senac, 1997 p. 169.

31

Picchia, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Villa-Lobos) com a publicao do artigo "Parania ou mistificao", em 1917, cujo ponto de divergncia foi a pintura de Anita Malfatti. Lobato era um apreciador da arte naturalista, interessado por pintura desde mesmo antes de aprender a escrever. Avesso s correntes estticas do sculo XX, fez severas crticas aos elementos plsticos ps-impressionistas, utilizados pela pintora Anita Malfatti, que havia estudado com os mestres da Europa e demonstrava, em seu trabalho, muita ousadia para a poca. Porm, observe-se, aqui, a contradio do autor: ao mesmo tempo em que era um revolucionrio, destruidor de falsos dolos e idias, conservava ainda ideais estilsticos de um mundo ultrapassado. Monteiro Lobato no compreendia a proposta moderna da pintura de Anita, mas clamava, ao mesmo tempo, por um pas mais moderno, nova tecnologia e poucos anos mais tarde, em 1920, considerava de valor Victor Brecheret, um jovem artista que, na escultura, era to inovador quanto Anita Malfatti na pintura. Sua opinio sobre a pintura de Anita Malfatti, serviu de pretexto para severas crticas dos modernistas Menotti del Picchia e Mrio de Andrade, o que levou Lobato a ser excludo da Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de So Paulo. Esse evento representa um marco no surgimento de idias novas que aboliram por completo a esttica do sculo XIX. Alfredo Bosi considerou Lobato, em seu livro Histria Concisa da Literatura Brasileira (1999)20

, um pr-modernista do ponto de

vista temtico, pois ele, mesmo antes de todo o movimento, j revelava em seus livros, assim como nos jornais e revistas de que participava, a tenso da vida nacional. Lobato criticava o Brasil arcaico, negava o academismo e propunha uma ruptura com a Repblica Velha. Um exemplo disso so os artigos publicados no jornal de oposio O Estado de S. Paulo, a partir de 1913, e o seu primeiro livro O Saci-Perer: resultado de um inqurito20

BOSI, Alfredo. Histria Concisa da Literatura Brasileira. So Paulo: Cultrix, 1999 p. 375.

32

(1918)

21

. Embora no levasse sua assinatura, por ter sido escrito a partir de uma pesquisa

de Lobato no jornal, o livro reunia em brochura as respostas da sondagem veiculada pelo jornal a respeito da figura do saci, retirada do imaginrio popular, com a inteno de conscientizar o povo brasileiro sobre a importncia de sua origem. Porm, do ponto de vista esttico, Alfredo Bosi ressalta que as inovaes radicais nos cdigos literrios se do a partir de Mrio de Andrade, com a Paulicia Desvairada (1922)22

e Macunama (1928) 23, e, igualmente, a partir de Oswald de Andrade, com

Pau Brasil (1925) 24. Esses livros trouxeram inovaes na pontuao, no traado grfico do texto at as estruturas fnicas, lxicas e sintticas do discurso. Haroldo de Campos ao comparar os dois Andrades, no prefcio de Pau Brasil (1925), considera o livro de Oswald mais revolucionrio do que os livros de Mrio de Andrade, nos quais subsiste a marca de um sentimentalismo com uma linguagem ainda tradicional, exclamativa, sem o despojamento, a reduo, a sntese do livro de Oswald que, segundo Haroldo de Campos, promove uma "dessacralizao" da poesia, forando o leitor a participar do processo criativo, pois a sintaxe no nasce do ordenamento do discurso, mas, sim, da montagem de peas que parecem soltas. O trabalho do poeta nos faz lembrar a brincadeira de uma criana que, muitas vezes, desconstri um objeto de utilidade domstica para criar um brinquedo. S ela, naquele momento, por exemplo, acreditar que uma vassoura uma boneca, pois ainda no est dominada pelo pragmatismo, sendo capaz de perceber a inocncia das coisas e das figuras.

21

LOBATO, Monteiro. O Saci-Perer: resultado de um inqurito. So Paulo, Seo de Obras de O Estado de S. Paulo, 1918. 22 ANDRADE, Mrio de. Paulicia Desvairada. So Paulo SP: UNICAMP, 1922. 23 ________. Macunama. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Villa Rica editoras Reunidas, 2004. 24 ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. So Paulo: ed.Globo, 1991.

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Esse o olhar que o poeta busca, principalmente, os modernistas Oswald de Andrade e Mrio de Andrade, que procuravam retirar as palavras do contexto prtico imediato, fazendo uso de recursos como: onomatopias, assonncias, aliteraes, reiteraes rtmicas variadas. Assim, tornavam a poesia mais ldica, irreverente e fragmentada, como nesse poema de Oswald de Andrade:

Relgio As coisas so As coisas vm As coisas vo As coisas Vo e vm No em vo As horas Vo e vm No em vo. (ANDRADE, 1991, p.39-40)

O poema tem uma estrutura rtmica ligada marcao do tempo, representando no campo semntico, o movimento pendular do relgio. Por muito explorarem a sonoridade e o ritmo das palavras, poemas como esses, escritos para o pblico adulto, e at hoje encontrados em coletneas, acabavam agradando aos ouvidos infantis, j que para a criana, o dinamismo ldico do poema importa mais do que o significado dos vocbulos. Todo adulto hoje provavelmente memorizou na infncia essa estrofe do poema No meio do caminho de Carlos Drummond de Andrade, publicado em seu primeiro livro, em 1930.

No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho

34

tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.

(ANDRADE, 1987, v.1, p.15) De significado complexo e enigmtico, o poema vem sendo repetido por crianas desde que surgiu. A criana apenas se apega ao ritmo, brincadeira com a repetio das palavras e aparente simplicidade da linguagem, porque cabe lembrar que o modernismo introduziu uma linguagem coloquial, mas nem por isso mais pobre. Na poesia modernista havia um profundo trabalho com a linguagem, pois a busca pela simplicidade requer um enorme esforo, um trabalho constante de aperfeioamento, como nesse poema de Manuel Bandeira, datado de 1936, que tambm sempre agradou as crianas:

Trem de ferro Caf com po Caf com po Caf com po Virge Maria que foi isto maquinista? Agora sim Caf com po Agora sim Voa, fumaa [...]

(BANDEIRA, 1981, p.96-97)

Manuel Bandeira tido como um precursor do modernismo brasileiro, pois desde 1924 j fazia experincias renovadoras com o uso sistemtico do verso livre. Seus primeiros livros: A Cinza das Horas (1917)25

e Carnaval (1919)

26

, assim como os livros j

25 26

BANDEIRA, Manuel. Antologia potica. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1981, p. 7. _________. Antologia potica. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1981, p. 23.

35

mencionados de Mrio de Andrade e Oswald de Andrade, so referncias de inovaes estilsticas e de liberdade formal. Apesar de Bandeira ter se formado na tradio dos parnasianos e simbolistas, toda sua obra constri-se em torno de uma progressiva liberdade de expresso, pois transfigura o prosasmo e, ao contrrio de muitos modernistas, d simplicidade aos temas consagrados. No poema que acabamos de ler, o poeta cria um vocbulo imitativo do barulho do trem, isto , explora a onomatopia como recurso bsico, cativando a ateno do leitor, que pode ter a sensao de ser um viajante atravs das palavras. Assim, no difcil entendermos porque esse poema escrito para adultos capaz de cativar a criana. Contudo, na poesia infantil essas inovaes estticas sero refletidas somente dcadas mais tarde, j que os poucos poemas infantis que aparecem entre 1920 e 1960, insistiam em transmitir lies de moral e bom comportamento, seguindo as formas clssicas, analisadas anteriormente. Mesmo os poemas de Manuel Bandeira e Carlos

Drummond de Andrade, escritores que tambm influenciaram na criao de Jos Paulo Paes, e encantaram muitas crianas pela simplicidade da linguagem, no podem configurar na literatura infantil brasileira uma poesia que pudesse ser chamada de modernista. Reafirmamos o argumento de Nelly Novaes Coelho27 de que o nico escritor que poderia ser considerado modernista na literatura infantil brasileira nos anos 20 foi mesmo Monteiro Lobato, na prosa narrativa. Porm, Monteiro Lobato era um modernista atpico. Eliana Yunes, no texto Lobato e os Modernistas (1983), acentua uma diferena fundamental entre Monteiro Lobato e os Modernistas brasileiros:A procura radicar-se o distanciamento entre o pr-modernista e os modernistas: sua racionalidade pragmtica exigia um realismo, crtico sim, mas objetivo, recusando as aventuras analgico-formais que27

COELHO. Nelly Novaes. Literatura Infantil. So Paulo: Moderna, 2000, p. 236.

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marcariam, por exemplo, a prosa e a poesia andradinas. Sua incurso pelo maravilhoso inslito na obra infantil, nada tem de 'irracional': ao contrrio, aproxima com habilidade insupervel o mgico e o real, fantasia e realidade. Esta contradio apenas ndice da ambigidade que se revela em outros aspectos do texto lobatiano. (YUNES, 1983, p.51-51)

O nacionalismo de Lobato estava ligado diretamente realidade social do pas. Lobato interessava-se pelos problemas nacionais como, por exemplo, o de encontrar petrleo e outros recursos naturais que pudessem fazer o Brasil crescer. Ele demonstrava tais preocupaes em suas histrias, como nessa abertura do captulo XVI do livro O poo do Visconde, publicado em 1937.A descoberta do petrleo no stio de Dona Benta abalou o pas inteiro. At ali ningum cuidara de petrleo porque ningum acreditava na existncia do petrleo nesta enorme rea de oito e meio milhes de quilmetros quadrados, toda ela circundada pelos poos de petrleo das repblicas vizinhas. Mas assim que irrompeu o Caramingu nmero 1 os navegadores ficaram com cara dasno, a murmurar uns para os outros: Ora veja! E no que tnhamos petrleo mesmo? (LOBATO, 1947)

Mas os caminhos de Monteiro Lobato eram outros, que no o dos modernistas, principalmente os destacados anteriormente: Mrio de Andrade, considerado figura central do movimento modernista, e Oswald de Andrade, grande agitador do movimento. J ressaltamos anteriormente que os modernistas brasileiros entre si tambm apresentavam divergncias considerveis. Em seu livro, Que horas so? (2002)28

, Roberto Schwarz

descreve a poesia de Oswald com uma ausncia de saudosismo, e a preferncia por um tom de vanguarda, anti-sentimental, fazendo um uso inventivo de formas para quebrar

28

SCHWARZ, Roberto. Que horas so?So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p 24.

37

convenes. De acordo com Roberto Schwarz, o programa modernista de Oswald inclua um primitivismo local que dava cultura europia um sentido moderno, uma postura cultural irreverente, tirando dos brasileiros o velho sentimento de inferioridade. Porm, ressalta ainda o autor, essa postura de "cpia sim, mas regeneradora (SCHWARZ, 2002, p.46) era de fato carregada de grande ingenuidade e ufanismo, pois a destruio filosfica da noo de cpia no fazia desaparecer os problemas brasileiros. Podemos notar que, a proposta de Oswald muito se assemelha ao olhar infantil da criana que, com olhos livres, vai descobrindo o mundo. s observarmos o poema 3 de maio de seu livro Pau Brasil (1925):Aprendi com meu filho de dez anos Que a poesia a descoberta Das coisas que eu nunca vi. (ANDRADE, 1991, p.99)

A poesia de Oswald de Andrade, portanto, no leva o leitor s solues previstas com esteretipos ou a uma sensibilidade de reaes j codificadas, ele se prope a descobrir algo de novo. Conforme Haroldo de Campos nos esclarece no prefcio de Pau Brasil29 (1925) essa tambm era a proposta de Mrio de Andrade, porm este, sempre se preocupou com a esttica parnasiana e julgava a poesia de Oswald segundo esses critrios, criticando-a por ela no se subordinar aos cnones mtricos e aos parmetros semnticos. Mrio, ao contrrio de Oswald, no questionava a retrica de base, procurava apenas alter-la atravs de conglomerados semnticos inusitados em longas narrativas como no livro Macunama30, publicado em 1928, fruto de anos de pesquisa das lendas e dos mitos indgenas e folclricos que o autor rene utilizando a linguagem popular de vrias regies do Brasil. O livro29 30

ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. So Paulo: ed.Globo,1991, p. 15. ANDRADE, Mrio de. Macunama. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Villa Rica editoras Reunidas, 2004.

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apresenta o personagem principal como um anti-heri que se contrape sociedade moderna, organizada num sistema racional, frio e tecnolgico, retrato da sociedade de 1920, momento em que o comrcio e a indstria prosperavam rapidamente, devido ao crescimento do mercado consumidor formado por moradores das cidades e por colonos de origem estrangeira. Partindo de uma perspectiva que rene literatura e ideologia, Joo Luiz Lafet no livro, 1930: A crtica e o Modernismo (1974)31

, afirma que o modernismo brasileiro

possua dois projetos: um esttico e outro ideolgico. O primeiro, visava a uma mudana na concepo da obra de arte, que passava a ser vista no mais como mimese, mas sim com autonomia em relao linguagem tradicional, incorporando o popular e o primitivo. O segundo inseria o pas num processo de busca de conscincia e interpretao da realidade social. Segundo Lafet, os artistas brasileiros buscavam uma identidade prpria, livre da tradio esttica repleta de alienaes e preconceitos. Era um momento em que precisavam abandonar os valores estticos antigos, ainda muito apreciados em nosso pas, para lutar por um estilo novo, de caractersticas incertas. Macunama, de 1928, o retrato desse momento, em que a poesia rompe com os limites da prosa e se revela numa histria-poema cheia de humor, o que nos faz perceber no modernismo uma alegria criadora prxima ao esprito infantil, um desejo de desmascaramento e de pesquisa do essencial, como nessa passagem de Macunama:A inteligncia do heri estava muito perturbada. As cunhs rindo tinham ensinado pra ele que o sagui-au no era saguim no, chamava elevador e era uma mquina. De-manhzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros no eram nada disso no, eram clxons campainhas apitos buzinas e tudo era mquina. As onas pardas no eram onas pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrols dodges mrmons e eram mquinas. Os tamandus os boitats31

LAFET, Joo Lus. 1930: A Crtica e o Modernismo. So Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p.22.

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as inajs de curuats de fumo, em vez eram caminhes bondes autobondes anncios-luminosos relgios faris rdios motocicletas telefones gorjetas postes chamins... Eram mquinas e tudo na cidade era s mquina! O heri aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras foruda, Tup famanado que os filhos da mandioca chamavam de Mquina, mais cantadeira que a Me-d'gua, em bulhas de separantar. (ANDRADE, 2004, p.42.)

Ao criar um personagem oriundo de um lugar primitivo para a cidade de So Paulo, Mrio de Andrade inova atravs da histria de um ndio que descreve a terra desconhecida para seus pares distantes. Ao dar voz ao ndio, com uma linguagem que, muitas vezes, nos parece estranha, devido ao uso de palavras e expresses caractersticas de diversos recantos do Brasil empregadas em contextos diferentes, com o uso raro de vrgulas, o poeta desconcerta o leitor, forando-o a deixar-se levar pela leitura, j que muitas vezes os termos usados no se encontram no dicionrio. Mas, em Mrio de Andrade, subsistiam ainda traos de um sentimentalismo, nesse texto mesmo h diversas passagens poticas impregnadas de certo mistrio. Isso reflexo de contrastes de um poeta que, conforme relata Roberto Schwarz, no texto O Psicologismo na Potica de Mrio de Andrade32, vivia dividido entre o lirismo e a tcnica, entre um ensino gramatical lusada e uma prxis lingstica afetada por elementos indgenas e africanos. Oswald de Andrade nesse aspecto parece mais determinado a romper com os padres estticos da poca, dando precedncia imagem sobre a mensagem, ao plstico sobre o discursivo, por isso, sua poesia se destaca pela visualidade, pelo equilbrio geomtrico e pela sntese, aspectos inclusive representativos do desenvolvimento industrial da poca.

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SCHWARZ, Roberto IN: A Sereia e o Desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 20.

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Monteiro Lobato parecia antever essa modernizao, porm de um modo muito prprio. Ao mesmo tempo em que apresentava na fico, com a publicao de Urups33, em 1914, as carncias do homem comum, atravs do personagem Jeca Tatu, no mostrava interesse pela reforma esttica, pois mesmo tendo conhecimento das vrias mudanas ortogrficas na lngua portuguesa, no autorizava o emprego de inovaes em sua editora e, quando revisava os livros a serem publicados, fazia cortes na escrita que se apresentava mais atualizada com as regras da poca. Todavia, seu pensamento parecia estar sempre voltado s origens. Assim, observamos tambm no livro Um jeca nos Vernissages: Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil (1995) de Tadeu Chiarelli:

Essa preferncia pela 'simplicidade animal' do homem do campo, em contraponto ojeriza ao homem falsamente sofisticado das cidades brasileiras, ser uma das bases do nacionalismo de Lobato, em sua primeira fase. At o incio dos anos 20, o nacionalismo de Lobato estar baseado, primeiro, num profundo sentimento de inadequao sociedade brasileira culta da poca; segundo, na percepo de que o brasileiro das cidades descaracterizado, inautntico, arrivista, etc..., e, terceiro, na conscincia de que, pelo menos na rea rural, o brasileiro mais caracterstico, pois, vivendo quase como um animal, estaria mais prximo da natureza. (CHIARELLI, 1995, p.124)

Na verdade, a elite brasileira no queria olhar para o pas que Lobato mostrava e preferia copiar modelos literrios europeus, acreditando que o Brasil representasse somente aquele tipo de vida das cidades grandes ou das capitais, So Paulo e Rio de Janeiro, da metade do sculo XX. O escritor mostrava as nossas mazelas para corrigi-las, no exaltava simplesmente o que tnhamos, mas mostrava o que poderamos ter, se aceitssemos enxergar o Brasil que ele via: pobre, doente, dependente etc.33

LOBATO, Monteiro. Urups. So Paulo: Brasiliense, 1948.

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No texto Lobato: um homem da Repblica Velha (1983)

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, de Carlos Jorge Appel,

compreendemos o "fracasso" do personagem Jeca Tatu, criado por Lobato em 1914 para representar a misria em que se encontrava o homem do povo, esquecido pelas instituies polticas. O autor ressalta que a principal idia da histria de Jeca Tatu baseava-se no self made man americano: se tiver sade, qualquer pessoa pode progredir e enriquecer. Esse foi o equvoco ideolgico que levou Lobato a freqentes falncias, por no considerar nossa dependncia econmica. Para ele, bastaria vontade e lucidez para que a dependncia poltica fosse superada. Mrio de Andrade, ao contrrio, entenderia anos mais tarde que no existe independncia cultural efetiva sem independncia econmica. Portanto, a crtica a Lobato, por parte dos modernistas hegemnicos, reside no fato de que, segundo eles, a situao do pas no era perspectivizada por Monteiro Lobato em uma dimenso mais ampla. Monteiro Lobato-Furaco na Botocndia35 nos revela que o projeto de Monteiro Lobato era influir na formao de um Brasil mais desenvolvido a partir de nossas potencialidades culturais e econmicas, valorizando temas nacionais e promovendo assim sua reforma esttica modernista na literatura. Interessou-se pela cultura popular, pelo resgate dos elementos nativos brasileiros: o currupira, o papagaio, o macaco e, sobretudo, o saci-perer, usado como emblema para conclamar os artistas da terra a realizar, o que chamou de "nosso 7 de setembro esttico". Observemos aqui mais um contraste de Lobato: no ano da apario de Paulicia Desvairada (1922) de Mrio de Andrade, Monteiro Lobato ainda se mostrava preso ao modelo purista de escrita, mas, j em seu livro A menina do Narizinho Arrebitado (1921), apresentava um tom inovador, por fazer uso de34 35

APPEL, Carlos Jorge. IN: Atualidade de Monteiro Lobato. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983, p.26. AZEVEDO, Carmen Lcia de; CAMARGOS Marcia; SACCHETA Vladimir. Monteiro Lobato-Furaco na Botocndia. So Paulo: Ed. Senac, 1997 p.64.

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uma linguagem original e criativa, que buscava no coloquial brasileiro, a simplicidade da fala com um tom de oralidade. Monteiro Lobato foi, tambm, o primeiro escritor brasileiro a fazer do folclore tema sempre presente em suas histrias. O saci-perer, por exemplo, um elemento lendrio de nosso inconsciente coletivo e representa, no mbito da literatura lobatiana, o moleque desprezado pelas elites que insistiam em imitar a civilizao francesa. Torna-se personagem de destaque em Lobato, pela necessidade de resgatar "um duende genuinamente nacional" em contraposio imagem dos duendes trajados moda alem, tremendo de frio sob roupas grossas e pesadas que Lobato vira numa visita ao Jardim da Luz, em So Paulo. Lobato acreditava que era preciso lembrar do passado para se construir o futuro, e no neg-lo, como muitos artistas brasileiros de sua poca faziam quando pintavam quadros no estilo francs. Para ele, o artista crescia na medida em que se nacionalizava. Podemos confirmar essa preocupao pela busca de um estilo brasileiro, em uma das pginas da correspondncia de Monteiro Lobato com o amigo Godofredo Rangel, datada de 8 de setembro de 1916.Guardo as tuas notas sobre malazarte. Um dia talvez aborde esse tema. Ando com vrias idias. Uma: vestir nacional as velhas fbulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianas. Veio-me diante da ateno curiosa que meus pequenos ouvem as fbulas que Purezinha lhes conta. Guardam-nas de memria e vo recont-las aos amigos sem, entretanto, prestarem nenhuma ateno moralidade, como natural. A moralidade nos fica no subconsciente para ir se revelando mais tarde, medida que progredimos em compreenso. Ora, um fabulrio nosso, com bichos daqui em vez de exticos, se for feito com arte e talento dar coisa preciosa. As fbulas em portugus que conheo, em geral tradues de La Fontaine, so pequenas moitas de amora do mato espinhentas e impenetrveis. Que que nossas crianas podem ler? No vejo nada. Fbulas assim seriam um comeo da literatura que nos falta... (...) de tal pobreza e to besta a nossa literatura infantil, que nada acho para iniciao de meus filhos.. (LOBATO, 1964, p.323)

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O fabulrio lobatiano dinmico e revelador de uma nova ordem. Nas muitas adaptaes que fez de livros clssicos da literatura infantil, Lobato eliminou a sentimentalidade piegas. Da mesma forma, criticou as moralidades das fbulas, e atravs de vrios volumes ridicularizou tais moralidades, provocando uma verdadeira revoluo nas verdades absolutas que so repetidas atravs dos sculos. O escritor brasileiro usou fbulas para criticar e denunciar as injustias, tiranias, mostrando s crianas a vida como ela . Trocou o sentimentalismo barato pela irreverncia, pelo humor e pela ironia. Monteiro Lobato usou personagens agindo como seres humanos, transitando no tnue limite entre o real e o imaginrio, assumindo seus papis de mensageiros de um novo tempo. O Stio do Picapau Amarelo (1969)36

retrata um microcosmo em que cada um livre

para tomar suas decises. um mundo mgico em que o ser potico da criana acionado. Personagens do mundo real (habitantes do stio) e personagens do mundo imaginrio convivem em inmeras aventuras que despertam prazer e alegria no s nas crianas, mas tambm em muitos adultos que no perderam a capacidade de acreditar nos sonhos. Logo no captulo I do livro, podemos constatar que Lobato j ento se questionava sobre as iluses dos adultos e das crianas:

"A CARTINHA DO POLEGAR

O stio de Dona Benta foi se tornando famoso tanto no mundo de verdade como no chamado mundo de mentira. O mundo de Mentira, ou Mundo da Fbula, como a gente grande costuma chamar a terra e as36

LOBATO, Monteiro. O stio de Picapau Amarelo. So Paulo: Brasiliense, 1969.

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coisas do Pas das Maravilhas, l onde moram os anes e gigantes, as fadas e os sacis, os piratas como o Capito Gancho e os anjinhos, como Flor-das- Alturas. Mas o Mundo da fbula no realmente nenhum mundo de mentira, pois o que existe na imaginao de milhes e milhes de crianas to real como as pginas deste livro. O que se d que as crianas logo que se transformam em gente grande fingem no acreditar no que acreditavam. - S acredito no que vejo com os meus olhos, cheiro com o meu nariz, pego com as minhas mos ou provo com a ponta da minha lngua, dizem os adultos- mas no verdade. Eles acreditam em mil coisas que seus olhos no vem, nem o nariz cheira, nem os ouvidos ouvem, nem as mos pegam. - Deus, por exemplo- disse Narizinho. Todos crem em Deus e ningum anda a peg-lo, cheir-lo, apalp-lo. - Exatamente. e ainda acreditam na Justia, na Civilizao, na Bondadeem mil coisas invisveis, incherveis, impegveis, sem som e sem gosto. De modo que se as coisas do Mundo da Fbula no existem, ento tambm no existem nem Deus, nem a Justia, nem a Bondade, nem a Civilizao- nem todas as coisas abstratas. - Eu sei o que quer dizer "abstrato"- disse Emlia. tudo quanto a gente no v, nem cheira, nem ouve, nem prova, nem pega - mas sente que h. - Muito bem. Logo o Mundo da Fbula existe, com todos os seus maravilhosos personagens. - E tanto existe- declarou Dona Benta- que tenho aqui uma carta muito interessante, recebida hoje. - de mame, j sei! exclamou Pedrinho, aborrecido, com medo que fosse carta de Dona Antonica chamando-o para a cidade. - Errou, meu filho. A cartinha que recebi do Pequeno polegar... " (LOBATO, 1969, p.7-8)

Lobato parecia reconhecer que todo ser humano mgico-potico por natureza, mas se no articula isso acaba mimtico como a maioria. Destacam-se as palavras de Emlia: Eu sei o que quer dizer 'abstrato'... tudo quanto a gente no v, nem cheira, nem ouve, nem prova, nem pega - mas sente que h" O poeta, assim como a criana, est mais prximo de sua sensibilidade. Quando nos tornamos adultos, passamos a ter obrigao de enxergar o mundo com maior preciso, objetividade e, muitas vezes, passamos a desempenhar um comportamento mimtico, apenas para podermos ser aceitos pela sociedade. Por isso que Lobato mencionou no texto: "O que se d que as crianas logo

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que se transformam em gente grande fingem no acreditar no que acreditavam". Essa a atitude que o adulto que deseja estar bem inserido no mundo de "verdade" tem de aprender a desenvolver, tem de romper com sua espontaneidade para sentir-se aceito pelo meio em que vive. E quem no consegue fazer isso? Resta a essa pessoa, ento, a opo pela fantasia, no qual ela poder criar um outro, como fez Lobato, e mais tarde Jos Paulo Paes ao acreditar, sobretudo na valorizao do ser potico da infncia, isento das contaminaes do universo adulto.

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3. A CRIANA E O POETA: SERES EM ROTAO

Se o modernismo Lobatiano teve grande influncia na poesia para crianas, porque a poesia direcionada para crianas rompe com a tradio pedaggica (em que versos reproduzidos em livros didticos se destinavam simplesmente a comemorar datas cvicas, festas de calendrio escolar ou lies de bom comportamento), e amadurece. A fantasia deixa de ser vista como alienante e passa a iluminar a realidade de pequenos e grandes leitores. Por essa razo, podemos afirmar que Monteiro Lobato exerceu duas contribuies importantes no contexto de nossa histria literria: criou um mundo de aventuras, e ao mesmo tempo, deu legitimidade literatura infantil dentro da historiografia literria brasileira. Porm, j mencionamos antes, que no mbito da poesia para crianas, essas contribuies estticas s podero ser reconhecidas muito tempo depois, a partir da dcada de 60. Destacamos como exceo a poeta Henriqueta Lisboa, com seu livro O menino poeta (1943)37

. Esse livro privilegia o lirismo, utilizando largamente a metfora e uma

linguagem mais informal. Mesmo assim, o livro apesar de romper, em alguns poemas, com o discurso de adulto para crianas, ainda permanece obediente quele paradigma, como ilustra o poema Tico-Tico:

Tico-tico no farelo Sinh tem pena. Tico-tico troca as letras Sinh tem pena. Tico-Tico no aprende Sinh tem pena. Tico-tico analfabeto37

LISBOA, Henriqueta. O menino poeta. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991.

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Sinh tem pena. (LISBOA, 1991, p.35.)

Podemos notar que, apesar da poeta criar um jogo ldico com as palavras, ainda est implcito no poema a preocupao do adulto com a educao: sinh tem pena porque Ticotico analfabeto. Consequentemente, o poema visa transmitir a importncia do estudo. Apesar de toda a estrutura do poema, do ritmo e da sntese atrarem o pblico infantil, ainda a viso do adulto, relacionada a valores morais que predomina. Nelly Novaes Coelho demonstra a importncia de poetas como Ceclia Meireles e Vincius de Moraes na trajetria histrico-literria da poesia infantil brasileira. Conforme a autora em seu livro Literatura Infantil (2000)38

, a poesia para crianas na dcada de 60 se

volta para uma linguagem mais acessvel, sem a preocupao de transmitir ensinamentos para as crianas, mas sim de lev-las a descobrir o prazer da poesia: seus jogos sonoros, a brincadeira com as imagens e com mltiplas possibilidades de combinaes semnticas feitas atravs de uma linguagem ldica. Lembremos que Ceclia Meireles foi uma poeta que conseguiu manter a inocncia do olhar-criana e a capacidade sempre renovada de se encantar com as coisas simples do mundo. Em sua obra infantil mais conhecida, Ou isto ou aquilo (1964), Ceclia Meireles apresenta poemas que interessam de imediato criana pelas brincadeiras sonoras, dinmicas e criativas. Leiamos o poema que d ttulo ao livro:

Ou Isto Ou Aquilo Ou se tem chuva e no se tem sol, ou se tem sol e no se tem chuva! Ou se cala a luva e no se pe o anel,38

COELHO, Nelly Novaes. A literatura Infantil. So Paulo: Moderna, 2000,p.243.

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ou se pe o anel e no se cala a luva! Quem sobe nos ares no fica no cho, quem fica no cho no sobe nos ares. uma grande pena que no se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares! Ou guardo o dinheiro e no compro o doce, ou compro o doce e no guardo o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro! No sei se brinco, no sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqilo. Mas no consegui entender ainda qual melhor: se isto ou aquilo. (MEIRELES, 1990, p.72)

A primeira coisa que nos chama ateno que, ao contrrio dos poemas mostrados anteriormente, esse parece ter sido escrito do ponto de vista de uma criana. No h mais a finalidade de transmitir lies de moral e bom comportamento. O poema todo gira em torno de dvidas e incertezas. A criana tem opes claras e por isso vem a dvida, que s pode surgir a partir de uma livre escolha de caminhos que, todavia, no lhe so mais impostos. clara a diferena de pontos de vista entre esse poema e o de Henriqueta Lisboa. Enquanto aqui a criana pode escolher entre brincar ou estudar, no poema de Henriqueta ainda est implcita a mensagem: quem no estuda um coitado digno de pena. Outro poeta que se destaca na poesia infantil nesse perodo Vincius de Moraes, poeta dos mais conhecidos do grande pblico adulto e infantil. Ele demonstra no livro A Arca de No (1971), a capacidade de reencontrar o ingnuo, no dinamismo potico provocado pelo humor, pela brincadeira com as palavras, pelos sons e ritmos, conforme nesse tambm conhecido poema, que nunca cansamos de apreciar:

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A Casa Era uma casa Muito engraada No tinha teto No tinha nada Ningum podia Entrar nela no Porque na casa No tinha cho Ningum podia Dormir na rede Porque na casa No tinha parede Ningum podia Fazer pipi Porque penico No tinha ali Mas era feita Com muito esmero Na rua dos Bobos Nmero Zero. (MORAES, 1993, p.28.)

Com tanto ritmo presente no poema, no de estranhar que tenha sido transformado depois em msica. Uma contribuio do modernismo brasileiro encontra-se na falta de pontuao que acentua, na forma do poema, o que est presente em seu contedo, isto , na casa no tinha nada mesmo, nem vrgulas ou pontos. Porm, essa casa sem cho ou parede, at hoje, a morada perfeita para a grande maioria das crianas e adultos. Jos Paulo Paes tambm criou, muitos anos mais tarde, um poema sobre o tema casa, incorporando o contedo forma do poema: Casa Eu no moro em apartamento. Moro numa casa.

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Apartamento uma casa que tem outra casa em cima que tem outra casa em cima que tem outra casa em cima. A casa onde eu moro s tem o cu por cima dela. Eu s fico dentro de casa quando est chovendo. Quando o tempo est bom vou brincar no quintal. L ningum me diz no mexa nisso!, cuidado com aquilo!, no faa baguna aqui!etc. (Gosto muito do etc.: diz todas as coisas que estou com preguia de dizer.) Por mim, eu morava sempre no quintal. Mas a, eu teria de pr nele um quarto para dormir, uma cozinha para fazer comida, um banheiro para quando me desse vontade etc. Ento o quintal perdia toda a graa porque ficava igual minha casa. (PAES, 2003) Jos Paulo Paes ao longo do poema repetiu a palavra casa oito vezes e numa mesma estrofe fez uma repetio seqencial: uma casa que tem outra casa em cima que tem outra casa em cima que tem outra casa em cima. Uma casa est em cima da outra no s no contedo do poema, mas tambm na sua forma, pois Paes, propositadamente, assim como Vincius de Moraes, tambm no colocou vrgulas nos versos para que tivssemos a idia de sobreposio na forma do poema tambm. Paes usou tcnicas como essa, tpica da poesia considerada modernista, e tambm incorporou a prosa ao poema, num tom de conversa com o leitor, logo no primeiro verso: eu no moro em apartamento. Moro numa

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casa. Entre as afirmaes tpicas da prosa, Paes escapa para a poesia com comentrios do tipo: a casa onde eu moro s tem o cu por cima dela, ou ento: (gosto muito do etc: diz todas as coisas que estou com preguia de dizer). Essa unio entre prosa e poesia s foi possvel porque o modernismo brasileiro reduziu a distncia entre os dois gneros: por vezes era usado o verso ritmado, por vezes era usado o verso livre prosaico. Outros poetas que incorporaram contribuies modernistas na poesia infantil foram Sidnio Muralha com o livro, A televiso da bicharada (1962)39

, mostrando situaes

breves, fragmentos-de-vida, estorietas narradas atravs do olhar potico da sntese, e Mrio Quintana, com P de pilo (1975)40

, um livro que, dentre outras inovaes, rompe com os

esquemas rgidos de rima e ritmo da poesia tradicional. Essas obras poticas para crianas que surgiram a partir de 1960, com enfoque predominantemente ldico, estimularam escritores como Jos Paulo Paes a dedicar parte de sua poesia ao pblico infanto-juvenil. Paes confessa no livro de depoimentos, Poesia para crianas (1996)41

, que seu processo

de criao para o pblico infantil, surgiu a partir das brincadeiras que fazia com seus sobrinhos pequenos, quando passeavam de carro. Por exemplo, ao ver um cemitrio, ele brincava com o significado das palavras e dizia: Uma plantao de defuntos. Alis, criar versos a partir dos diversos significados das palavras uma constante da poesia infantil de Jos Paulo Paes, por isso, essa questo ser aprofundada no prximo captulo. Jos Paulo Paes, nascido em Taquaritinga em 1926, surge no cenrio da poesia infantil em 1984. Nessa poca, j era poeta, ensasta e tradutor renomado. Conseguiu aps buscar duas editoras, publicar seu primeiro livro de poemas para crianas isso ali.. O

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MURALHA. Sidnio. A televiso da bicharada. So Paulo: Global, 1997. QUINTANA, Mrio. P de pilo. So Paulo: tica, 1997. 41 PAES, Jos Paulo. Poesia para crianas. So Paulo, Giordano, 1996, p.16.

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prprio autor reconheceu anos mais tarde a dificuldade de se escrever poesia para crianas em Quem, eu? Um poeta como outro qualquer (1996):No Brasil, praticamente s Ceclia Meireles e Vincius de Moraes conseguiram produzir poesia para crianas cuja qualidade no desmerece a da poesia para adultos que lhes deu justa fama. Embora cada um dos meus livros de poesia para crianas contenha poucos textos, custa-me muito trabalho escreve-los e aperfeioa-los at o ponto de satisfazerem meu senso crtico. (PAES, 1996, p.70.)

De senso crtico apurado, Jos Paulo Paes contribuiu significativamente para a qualidade de nossa poesia infantil. Escreveu poesias relacionadas s cantigas de rodas, bem como aos acalantos, parlendas, adivinhas, trava-lnguas, a exemplo da fora da literatura oral que penetra no universo infantil no Brasil a partir de Monteiro Lobato. Destacamos dois poemas de Jos Paulo Paes, a fim de comprovar a permanncia da cultura oral na produo literria contempornea destinada infncia, expressando a riqueza de nossa literatura em torno do material folclrico:

POEMA1: Cad? Nossa! que escuro! Cad a luz? Dedo apagou. Cad o dedo? Entrou no nariz. Cad o nariz? Dando um espirro. Cad o espirro? Ficou no leno. Cad o leno? Dentro do bolso. Cad o bolso? Foi com a cala. Cad a cala?

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No guarda-roupa. Cad o guarda-roupa? Fechado chave. Cad a chave? Homem levou. Cad o homem? Est dormindo de luz apagada. Nossa! que escuro! (PAES, 1993) POEMA 2 : Acidente Atirei o pau no gato mas o gato no morreu, porque o pau pegou no rato que eu tentei salvar do gato e o rato (que chato) foi quem morreu.. (idem, 1984)

Podemos perceber como nos dois poemas o poeta est prximo da criana. No primeiro, que tem como referencial a parlenda cad o toucinho que estava aqui?, o leitor comea e termina no escuro, com perguntas sem respostas conclusivas, levando sempre em direo a expresses associadas ao mundo infantil como, por exemplo, o dedo no nariz. Ao final, o homem que leva a chave (s do armrio ou da fantasia e dos sonhos, tambm trancados dentro do adulto?) dorme no escuro. Note-se que mesmo sabendo onde est a chave, esta no pode ser alcanada, porque o adulto est dormindo no escuro. Considerando-se a chave tambm como possibilidade de abertura para explicaes e para um lado mais racional, entendemos que o adulto tem repostas trancadas pela chave, mas as explicaes e respostas de nada servem diante da luz apagada. Enquanto isso, a criana, incorporada na voz do poeta, permanece acordada com medo do escuro. Podem os adultos dormir tranqilos por fingirem ignorar o desconhecido? Teriam o poeta e a criana mais

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proximidade com esse outro lado e, portanto mais medos e inquietudes? Seriam o poeta e a criana seres em rotao, enquanto a maioria das pessoas depois que cresce teria a tendncia a permanecer estagnada "dormindo de luz apagada, no escuro?" Do mesmo modo que o primeiro poema, o segundo tambm reverte uma herana da cultura popular, a cantiga: atirei o pau no gato que toda criana aprende desde cedo, e lhe d um novo e surpreendente final: a morte do rato. Observe-se que na cano original nem o gato morre. No poema, porm, o rato morre por acidente. O poeta aqui no tem mais a inteno de educar ou dar finais felizes para as situaes, mas, sim, divertir e fazer a criana chegar ao riso atravs de um elemento surpresa. Jos Paulo Paes transcreve o repertrio oral, j incorporado no dia-a-dia da criana, para a linguagem escrita. O poema torna-se uma brincadeira e a leitura ganha uma dimenso prazerosa. Observemos tambm o tom informal da linguagem do narrador no comentrio: que chato, onde ele exterioriza seus sentimentos, tornando-se cmplice da criana. claro que, se h obras que at hoje so apreciadas por crianas e adultos, isso se deve ao fato de que os poetas, provavelmente atravs de um rduo trabalho, conseguiram transcender o tempo e, por isso, um poema escrito para crianas capaz de tocar tambm os adultos que tm l no fundo uma criana escondida. Assim como no existe uma poesia feita para um determinado tempo, tambm no existe uma poesia feita para crianas que exclua o adulto. Um poema para crianas muitas vezes nos leva de volta infncia em segundos. J um poema escrito para adultos pode no agradar as crianas, pois o adulto domina certo vocabulrio, expresses e assuntos que a criana ainda no teve acesso ou pode no ter maturidade para entender. Existem tambm obras que ficam muito associadas a um momento especfico, enquanto outras conseguem resistir com um brilho que as faz parecer sempre novas e, assim, tambm, renovam o leitor, seja ele criana ou adulto. 55

No h dvidas de que o modernismo de Monteiro Lobato consolidou em nossa literatura infantil considerveis mudanas, ao aproximar cada vez mais a criana da poesia, enfatizando a busca pelo saber inaugural que tanto a criana quanto o poeta tm. A partir de ento, se comea a valorizar o ser potico da infncia, isento das contaminaes do universo adulto. Porm, como foi demonstrado, a poesia infantil s muito tempo depois, em 1960, passa a ser o lugar da espontaneidade, da inveno, da curiosidade, da rebeldia frente ao estabelecido e, principalmente, da imaginao transgressor