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A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo RESENHA O processo de alfabetização escolar recebeu um tratamento bastante diferenciado de Ana Luíza Bustamante Smolka em sua obra intitulada A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo (1999), onde a mesma, analisa alguns pontos concernente a tarefa pedagógica de alfabetização em nossas escolas, que tem favorecido para que um enorme índice de crianças não consiga aprender a ler e escrever, tornando-se marginais em uma sociedade letrada, crescentemente globalizada e dominada pela indústria cultural. Essa obra é resultado de quase duas décadas de pesquisa desenvolvida com o intuito de investigar quais os processos e estratégias utilizados pelas crianças na interpretação da linguagem escrita, e como o pré-escolar vem trabalhando este tipo de linguagem antes do início da instrução formal. O objeto da pesquisa foi, inicialmente, um grupo de 12 crianças de diferentes contextos e classes sociais, mais tarde Smolka ampliou sua pesquisa para o Centro de Atendimento ao Pré- escolar, para trabalhar com as crianças e as mães, deste Centro. Segundo Smolka, o processo de alfabetização nos moldes tradicionais, onde a construção e aquisição da leitura e da escrita pelo (a) alfabetizando (a) faz-se através de métodos convencionais, como a silabação e a palavração, por exemplo, é algo extremamente preocupante e que urge ser repensado e analisado. Pois, até agora, a questão da alfabetização tem se evidenciado enquanto instrumento e veículo de uma política educacional que ultrapassa amplamente o âmbito meramente escolar e acadêmico. A ideologia da ‘democratização do ensino’ anuncia o acesso à alfabetização pela escolarização, mas, efetivamente, inviabiliza a alfabetização pelas próprias condições da escolarização: oculta-se e se esconde nessa ideologia a ilusão e o disfarce da produção do maior número de alfabetizados no menor tempo possível. Nesse processo da produção do ensino em massa (…), as práticas pedagógicas não apenas discriminam e excluem, como emudecem e calam(SMOLKA, 1999; 16). Neste âmbito, cogita-se um responsável pela insustentável situação estabelecida na alfabetização escolar: Os (as) pais/mães? As crianças? Os professores (as)? Em um contexto onde apenas o poder público parece estar isento de quaisquer responsabilidade, faz-se necessário a emergência de um “manual” que “auxilie” a prática pedagógica do (a) professor (a), “facilitando” o processo ensino- aprendizagem.

A criança na fase inicial da escrita

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Page 1: A criança na fase inicial da escrita

A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo

discursivo

RESENHA

O processo de alfabetização escolar recebeu um tratamento bastante diferenciado

de Ana Luíza Bustamante Smolka em sua obra intitulada A criança na fase inicial da

escrita: a alfabetização como processo discursivo (1999), onde a mesma, analisa

alguns pontos concernente a tarefa pedagógica de alfabetização em nossas escolas,

que tem favorecido para que um enorme índice de crianças não consiga aprender a

ler e escrever, tornando-se marginais em uma sociedade letrada, crescentemente

globalizada e dominada pela indústria cultural.

Essa obra é resultado de quase duas décadas de pesquisa desenvolvida com o

intuito de investigar quais os processos e estratégias utilizados pelas crianças na

interpretação da linguagem escrita, e como o pré-escolar vem trabalhando este tipo

de linguagem antes do início da instrução formal. O objeto da pesquisa foi,

inicialmente, um grupo de 12 crianças de diferentes contextos e classes sociais,

mais tarde Smolka ampliou sua pesquisa para o Centro de Atendimento ao Pré-

escolar, para trabalhar com as crianças e as mães, deste Centro.

Segundo Smolka, o processo de alfabetização nos moldes tradicionais, onde a

construção e aquisição da leitura e da escrita pelo (a) alfabetizando (a) faz-se

através de métodos convencionais, como a silabação e a palavração, por exemplo,

é algo extremamente preocupante e que urge ser repensado e analisado. Pois, até

agora, a questão da alfabetização tem se evidenciado enquanto instrumento e

veículo de uma política educacional que ultrapassa amplamente o âmbito

meramente escolar e acadêmico. A ideologia da ‘democratização do ensino’ anuncia

o acesso à alfabetização pela escolarização, mas, efetivamente, inviabiliza a

alfabetização pelas próprias condições da escolarização: oculta-se e se esconde

nessa ideologia a ilusão e o disfarce da produção do maior número de alfabetizados

no menor tempo possível. Nesse processo da produção do ensino em massa (…), as

práticas pedagógicas não apenas discriminam e excluem, como emudecem e

calam(SMOLKA, 1999; 16).

Neste âmbito, cogita-se um responsável pela insustentável situação estabelecida na

alfabetização escolar: Os (as) pais/mães? As crianças? Os professores (as)? Em um

contexto onde apenas o poder público parece estar isento de quaisquer

responsabilidade, faz-se necessário a emergência de um “manual” que “auxilie” a

prática pedagógica do (a) professor (a), “facilitando” o processo ensino-

aprendizagem.

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Eis que surge o livro didático!

Este apresenta-se como a solução para os problemas na alfabetização, pois é um

recurso que “facilita” a ação do (a) professor (a) e torna-se “fonte de

conhecimento” para os (as) alunos (as). Esqueceu-se, contudo, de um “detalhe”

imprescindível: dar significação ao conteúdo do livro didático, que é apresentado ao

aluno e a aluna como algo distante, sem sentido e totalmente alheio à sua

realidade. Assim, as crianças não identificam-se com o livro didático o qual,

conforme Smolka (idem; 16), virou método, adquiriu caráter científico e tornou-se

inquestionável. Mas, se a criança não se adaptou ao livro didático e à situação

imposta pela escola, é porque é, provavelmente, “portadora de alguma patologia”.

Nesta perspectiva, diversos (as) autores (as) vêm estudando e investigando sobre

os processos de aquisição da linguagem escrita em crianças em fase pré-escolares.

Porém, no Brasil, segundo Smolka, apenas o trabalho de Emília Ferreiro, apoiado

em teorias psicolingüísticas, tem adquirido grande relevância no âmbito educacional

da alfabetização escolar. Porém, FERREIRO distancia-se de Smolka, pois esta,

considera o meio sócio-cultural em que a criança vive como fonte rica de saberes

que poderão auxiliá-la no desenvolvimento da linguagem escrita. Enquanto que

Ferreiro, volta-se para o bio-social. Inclusive, em suas investigações sobre a

linguagem escrita, ficou evidente que as condições de vida das crianças influenciam

sobremaneira no seu processo de elaboração e construção do conhecimento do

mundo e que, portanto, situações de privilégio eram oriundas da interação social,

ou seja, das situações sociais. Dessa forma, estar no nível do pensamento

operatório concreto parece não mais ser pré-requisito para a alfabetização, pois, na

perspetiva da elaboração social, os aspectos sócio-culturais são de elevada

relevância no processo de aquisição da linguagem escrita, suprimindo os demais.

Os conflitos surgem, portanto, à medida em que a escola estereotipa, massifica e

generaliza o ato de “ensinar” os conteúdos, ignorando ou negligenciando os

conhecimentos e toda a experiência que as crianças já possuem quando entram na

escola, impondo um livro didático que em nada lhes diz respeito.

Partindo de suas investigações, Smolka sentiu a necessidade de analisar a questão

da alfabetização segundo os parâmetros de apoio da Teoria da Enunciação e da

Análise do Discurso, pois, de acordo com a autora, a alfabetização implica ‘leitura e

escritura’ (…) ‘momentos discursivos’ (…) o próprio ‘processo de aquisição’ também

vai se dando numa ‘sucessão de momentos discursivos’, de interlocução, de

interação (idem.; 29). Nessa análise, é necessário dicotomizar a tarefa de ensinar e

arelação de ensino, donde esta consta das interações pessoais e aquela baseia-se

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na relação de ensino, mas caracterizada pela linearidade e unilateralidade, onde o

(a) professor (a) detém e transmite o saber através do predomínio de seu discurso.

Analisando as relações de ensino, Smolka explicita algumas situações que vivenciou

em contextos escolares quando de sua pesquisa sobre o processo de alfabetização

de crianças, onde professores (as) agem de forma extremamente tradicional,

tomando para si, a função de “ensinar” a linguagem escrita aos alunos e alunas e,

estes (as), “totalmente desprovidos (as)” de qualquer conhecimento que pudesse

ser incorporado ao conhecimento ensinado pela escola.

Dessa forma, o ensino da escrita é alienado de seu sentido e aplicação prática,

tendo sido reduzido a uma simples técnica, enquanto a própria escrita é reduzida e

apresentada como uma técnica, que funciona num sistema de reprodução cultural e

produção em massa (idem; 37). Crianças que não conseguem aprender a ler e

escrever são, contudo, resultado dessa arbitrariedade que tem sido o processo de

alfabetização escolar, em que as mesmas são alijadas de seu saber próprio em

função da necessidade de aprender o saber da escola, como se ambos se negassem

mútua e necessariamente.

Assim sendo, urge que se analise e questione a atual função do (a) educador (a)

dentro do sistema escolar de ensino e se busque alternativas inovadoras para o

processo de alfabetização, de forma a envolver o (a) alfabetizando (a) no processo

de construção e elaboração de sua própria escrita tornando-a, assim, plena de

significação e sentido para o (a) mesmo (a).

Nessa perspectiva, Smolka sente a necessidade de desenvolver uma proposta para

o processo de alfabetização onde a escrita, mais que um instrumento técnico e uma

atividade mecânica, seja um momento de interação e interlocução entre todos (as)

os (as) envolvidos (as) no processo, valorizando as particularidades e as aquisições

e saberes de cada alfabetizando (a) na construção de sua linguagem escrita,

pois, no movimento das interações sociais e nos momentos das interlocuções, a

linguagem se cria, se transforma, se constrói, como conhecimento humano (idem;

45). Dessa forma, a própria dinâmica de sala de aula precisa ser repensada, de

modo que se rompa com a linearidade e unilateralidade estabelecidas e se instaure

uma nova forma de comunicação pedagógica caracterizada por outras formas

de relações de ensino, mais dinâmicas e interativas.

Assim sendo, embora Smolka apresente a possibilidade de o processo de

alfabetização ser desenvolvido sob três pontos de vista, principalmente, quais

sejam: o ponto de vista didático-pedagógico, o ponto de vista construtivista

cognitivista (de Piaget) e o ponto de vista da psicologia dialética (de Vygotsky), ela

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reconhece apenas este último como capaz de promover a alfabetização enquanto

um processo discursivo, de interação e interlocução.

Isto se deve ao fato de que, do ponto de vista didático-pedagógico, a leitura e

a escrita escolares não têm nenhuma relação com as experiências de vida, os

saberes e a linguagem das crianças, apresentando-se estática e estéril,

mantenedora do status quo, reduzida a um processoindividualista e solitário, com

uma concepção de aprendizagem da escrita baseada na repetição, memorização e

reprodução, produzindo seres passivos no seu próprio aprendizado.

Do ponto de vista do construtivismo, a situação acima descrita é negada por

ignorar o ponto de vista da criança que aprende, pois esta torna-se, agora, o

sujeito ativo e construtor do conhecimento. A linguagem é um produto da

inteligência, construída, assim como o conhecimento, de forma individual,

considerando a escrita como um objeto a ser conhecido e o erro como algo

relevante e construtivo numa progressão de etapas que levarão à aquisição da

escrita. Logo, o processo de aprendizagem não é conduzido pelo professor, mas

pela criança (idem; 50). Ponto de vista defendido por Ferreiro & Teberosky (apud

SMOLKA 1999) baseadas em fundamentos piagetianos, pois, entendem a relação

da criança com a escrita independente das condições de interação social e das

situações de ensino.

O ponto de vista da psicologia dialética, embora de certa forma contemple o

ponto de vista construtivista, vai muito além deste ao considerar a atividade mental

da criança no processo de alfabetização não apenas como atividade cognitiva, no

sentido de estruturação piagetiana, mas como atividade discursiva (…), interativa,

instauradora e constituidora do conhecimento na/pela escrita(idem; 63).

Para Vygotsky, assim como Luria, a distância entre a dimensão sonora e a

dimensão gráfica, que implica em dificuldades na compreensão dos mecanismos da

escrita na criança é denominada defasagem, que incorre em problemas na

apreensão do caráter simbólico, e não conflito cognitivo, como sugeriram Ferreiro,

Teberosky e Palácio.

Mas, independentemente da denominação, ambas as posições teóricas necessitam

de um espaço de elaboração que intermedie o ensino/aprendizagem da escrita

enquanto forma de linguagem. Esse processo de elaboração é que será diferenciado

de acordo com a posição teórica que se admita. Piaget & Ferreiro enfatizam a

construção individual do conhecimento do ponto de vista da criança que aprende.

Vygotsky, por sua vez, percebe o papel regulador do adulto como imprescindível na

relação com a criança, de forma que a internalização dos papéis sociais adquiram

caráter intersubjetivo na construção e representação sociais e políticas. Daí a

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afirmação de Smolka (1999; 58) de que apenas a alfabetização do ponto de vista

da psicologia vygotskyana pode dar conta realmente da questão da aquisição da

linguagem oral e escrita enquanto processo de interação social.

Vygotsky analisa a escrita como uma forma de linguagem, levando em conta a

dimensão discursiva(idem; 68), por essa razão não pode ser algo mecânico e

desprovido de sentido para a criança. Mas, ao contrário, a linguagem é um

processo que a criança assimila a partir de seu contexto social, internalizando-a,

resignificando-a para, em seguida, exteriorizá-la plena de significação e sentido

social. Ocorre aí o domínio do discurso social pela criança.

Contudo, se a alfabetização não consiste meramente na aprendizagem da escrita de

letras, palavras e orações. Nem tampouco envolve apenas uma relação da criança

com a escrita (…) implica, desde sua gênese, a ‘constituição do sentido’ (…) ‘uma

forma de interação com o outro pelo trabalho da escritura’ (idem; 69). Surge,

então, a importância da figura do interlocutor no processo discursivo, que favoreça

a construção do conhecimento numa prática dialógica e discursiva junto a (o)

alfabetizando (a). Este é, segundo Smolka, o papel (de interlocutor) do professor

de alfabetização que pretenda trabalhar junto a seus (suas) alunos (as) um

processo de aquisição da leitura e escrita de forma significativa, interdiscursiva e

social, possibilitando às crianças construírem-se e perceberem-se

enquanto leitores e escritores de sua própria história e da história de sua realidade,

de modo a expandir-se cada vez mais, ampliando suas habilidades.

Essa “nova” forma de se trabalhar o processo de alfabetização impõe

necessariamente uma nova forma de relação de ensino, pautada numa prática de

leitura e escrita discursiva, grande interação verbal, ricos momentos de diálogos,

relação professor-aluno recíproca, etc., onde o professor esteja constantemente

inovando, desde a organização do espaço físico de sala de aula até as metodologias

e dinâmicas utilizadas na mesma. Trabalhando dessa forma, onde todos têm vez e

voz, a escola não estará excluindo ou marginalizando alunos provenientes de

contextos sociais diferenciados. Estará, ao contrário, legando a oportunidade de

que todos venham a exercer seus direitos e livre arbítrio no interior de uma escola

que se diz democrática, mas que tem se apresentado, muitas vezes, extremamente

tradicionalista e excludente. E, como a alfabetização constitui a base e o início do

processo escolar da vida do aluno, acredita-se que o ensino democrático deva

partir, principalmente daí, de forma a disseminar-se e atingir a coletividade.

Portanto, é urgente que o (a) educador (a), especialmente das séries iniciais,

reveja sua práxis, de forma a melhor proporcionar às crianças espaços de

discussões, de elaboração de ideias próprias, que venham a favorecer e fortalecer o

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processo de crescimento e apreensão da linguagem escrita na criança,

aproveitando o saber pré-existente das mesmas tornando-se – sujeito que ensina e

sujeito que aprende – parceiros de um processo social que levará ao crescimento

de ambos, superando o saber mecânico repassado pela escola atualmente. É

importante ressaltar, contudo, que a obra de Smolka é preciosa no sentido de

indicar caminhos a serem seguidos por aqueles que pretendem traduzir uma práxis

educativa crítica, humanizadora e consciente. Porém, muito ainda há que se fazer

para se atingir essa meta, pois sabe-se que o problema da escola não é apenas de

ordem metodológica, é, sobretudo, de ordem político-social. Muitas transformações

hão de ser feitas no contexto social e na escola como um todo, pois o próprio

processo de alfabetização discursiva exige condições aptas e adequadas para sua

implementação, o que é bastante dificultado, dadas as atuais condições de

funcionamento da escola pública brasileira, caracterizada pela superlotação de

alunos nas classes, sobrecarga de horas de trabalho dos professores e formação

insuficiente, etc.. Então, assumir a tarefa de proceder o trabalho de alfabetização

segundo a metodologia discursiva proposta por Smolka, implica, necessariamente,

assumir uma postura política de transformação social dentro da escola e fora dela.

Autor: Alzira Carvalho