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A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO CAPITALISMO E O "FOCO NA EFICIENCIA" DO PODER JUDICIARIO: SIMETRIAS DE UMA ATUACAO PELA VIOLENCIA SIMBOLICA LA INSUSTENTABLE LEVISA DEL CAPITALISMO Y EL FOCO EN LA EFICIENCIA DEL PODER JUDICIARIO: SIMETRÍAS DE UNA ACTUACIÓN POR LA VIOLENCIA SIMBÓLICA. Caleb Salomão Pereira RESUMO A retórica do poder objetiva neutralizar resistências, naturalizando as distorções de seus projetos. O discurso da filantropia corporativa incorpora argumentos que se concentram nos efeitos, ignorando as causas dos males que diz combater. O Estado não coíbe o exercício irresponsável do poder econômico; torna-se sócio dessa prática, discursando positivamente sobre a hiperlitigiosidade que tem o capital como causa. Sem elidir práticas corporativas que lesam Direitos, o Poder Judiciário serve-se de uma estatística enganosa para se justificar. Dessas circunstâncias exsurge notável simetria de condutas, marcadas por uma tentativa de convencimento que aposta na naturalização das distorções por meio de um discurso que, assentado em dados quantitativos, cobre com o manto da omissão as suas causas. PALAVRAS-CHAVES: PODER E VIOLÊNCIA SIMBÓLICOS. FILANTROPIA CORPORATIVA. ESTADO. CAPITALISMO. CRISES. ARGUMENTO DE AUTORIDADE. RESUMEN La retórica del poder objetiva neutralizar resistencias, naturalizando las distorsiones de sus proyectos. El discurso de la filantropía corporativa incorpora argumentos que si concentran en los efectos, ignorando las causas de los males que dice combatir. El Estado no cohíbe el ejercicio irresponsable del poder económico; tornase socio de esta práctica, discursando positivamente sobre la hiperlitigiosidad que tiene el capital como causa. Sin elidir prácticas corporativas que defraudan Derechos, el Poder Judiciario sirviese de una estadística engañosa para justificarse. De esas circunstancias surge notable simetría de conductas, marcadas por una tentativa de convencimiento que apuesta en la naturalización de las distorsiones por medio de un discurso que, asentado en dados cuantitativos, cubre con el manto de la omisión sus causas. PALAVRAS-CLAVE: PODER Y VIOLENCIA SIMBÓLICOS. FILANTROPÍA CORPORATIVA. ESTADO. CAPITALISMO. CRISIS. ARGUMENTO DE AUTORIDAD. 829

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A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO CAPITALISMO E O "FOCO NA EFICIENCIA" DO PODER JUDICIARIO: SIMETRIAS DE UMA ATUACAO

PELA VIOLENCIA SIMBOLICA

LA INSUSTENTABLE LEVISA DEL CAPITALISMO Y EL FOCO EN LA EFICIENCIA DEL PODER JUDICIARIO: SIMETRÍAS DE UNA ACTUACIÓN

POR LA VIOLENCIA SIMBÓLICA.

Caleb Salomão Pereira

RESUMO

A retórica do poder objetiva neutralizar resistências, naturalizando as distorções de seus projetos. O discurso da filantropia corporativa incorpora argumentos que se concentram nos efeitos, ignorando as causas dos males que diz combater. O Estado não coíbe o exercício irresponsável do poder econômico; torna-se sócio dessa prática, discursando positivamente sobre a hiperlitigiosidade que tem o capital como causa. Sem elidir práticas corporativas que lesam Direitos, o Poder Judiciário serve-se de uma estatística enganosa para se justificar. Dessas circunstâncias exsurge notável simetria de condutas, marcadas por uma tentativa de convencimento que aposta na naturalização das distorções por meio de um discurso que, assentado em dados quantitativos, cobre com o manto da omissão as suas causas.

PALAVRAS-CHAVES: PODER E VIOLÊNCIA SIMBÓLICOS. FILANTROPIA CORPORATIVA. ESTADO. CAPITALISMO. CRISES. ARGUMENTO DE AUTORIDADE.

RESUMEN

La retórica del poder objetiva neutralizar resistencias, naturalizando las distorsiones de sus proyectos. El discurso de la filantropía corporativa incorpora argumentos que si concentran en los efectos, ignorando las causas de los males que dice combatir. El Estado no cohíbe el ejercicio irresponsable del poder económico; tornase socio de esta práctica, discursando positivamente sobre la hiperlitigiosidad que tiene el capital como causa. Sin elidir prácticas corporativas que defraudan Derechos, el Poder Judiciario sirviese de una estadística engañosa para justificarse. De esas circunstancias surge notable simetría de conductas, marcadas por una tentativa de convencimiento que apuesta en la naturalización de las distorsiones por medio de un discurso que, asentado en dados cuantitativos, cubre con el manto de la omisión sus causas. PALAVRAS-CLAVE: PODER Y VIOLENCIA SIMBÓLICOS. FILANTROPÍA CORPORATIVA. ESTADO. CAPITALISMO. CRISIS. ARGUMENTO DE AUTORIDAD.

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Introdução

As idiossincrasias do Estado Moderno deixam entrever finalidades exclusivas, perceptíveis na baixa pluralidade dos protagonistas na titularidade do poder. Em sua versão absolutista, o Estado centralizava o poder nas mãos do soberano; contudo, no século XVIII, a burguesia não se contentou em controlar o poder econômico e exigiu para si o poder político, até então nas mãos da aristocracia (STRECK e MORAIS, 2006, p. 51). Essa transição da titularidade do poder determinaria os rumos dos Estados e das sociedades que lhes deram origem, pois – uma vez cooptado o poder político – as estruturas estatais passariam a servir com maior liberdade aos credos dos novos protagonistas, os mentores da ordem mercantil.

Nova geometria do poder foi desenhada pelos ideais liberais que demandavam limitação e divisão do poder, simples meios para se garantir a consolidação de direitos já conquistados, tais como a propriedade, liberdades, direitos humanos, ordenamento jurídico, governo representativo, legitimação da mobilidade social etc. (STRECK e MORAIS, 2006, p. 56). A preservação dessa geometria do poder se deu sem que suas interações impedissem a eclosão de crises que revelam corrosão interna e externa desse modelo. Dentre as várias crises identificáveis, uma, que a doutrina denomina funcional, permite essa leitura bifronte.

No aspecto externo, essa crise dever ser entendida como a perda de exclusividade, pelo aparelho oficial, no desempenho das funções estatais, decorrência da “fragilização do Estado em suas diversas expressões, quando perde concorrencialmente diante de outros setores (...) a sua capacidade de decidir vinculativamente a respeito da lei, sua execução e da resolução de conflitos” (STRECK e MORAIS, 2006, p. 155). O Estado, de fato, tem perdido sua capacidade de arbitrar os dilemas que caracterizam as sociedades complexas. No aspecto interno, a clássica teoria da especialização de funções do Estado vem sendo superada no bojo das relações entre seus Poderes. Em crise, a tripartição do poder e suas respectivas funções têm se esboroado na confusão gerada pela usurpação de atribuições que cresce proporcionalmente à desconfiança institucional que uma nutre por outra, bem como à percepção que cada uma desenvolve quanto ao definhamento de sua relevância institucional e capacidade operacional. Desse fato derivam tanto a politização de questões cujo conteúdo é eminentemente judicial, quanto a judicialização das questões sociopolíticas, efeito típico de países cuja Constituição permite maior ativismo de sua Corte Suprema.

O referido aspecto externo da crise funcional vincula-se a outra crise, denominável constitucional-institucional. A sub-repção contida no discurso jurídico-dogmático que, ideologicamente, pregava uma inexistente desideologização do Direito, negando a obviedade ontológica de que o Direito é a política encapsulada em enunciados normativos, tem permitido, mesmo pelas vias institucionais, a corrosão do “instrumento que, na modernidade, serviu como locus privilegiado para a instalação dos conteúdos políticos definidos pela sociedade” (STRECK e MORAIS, 2006, p. 153). Do âmago dessas crises surgem dois fenômenos que serão objeto deste

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trabalho, assim tratados em razão do entendimento de que ambos possuem uma interface sociológica, o que permitirá a construção de uma ponte analógica possivelmente útil às reflexões acerca do Direito e seu ambiente contemporâneo.

O primeiro desses fenômenos é o nominado filantropo-capitalismo, neologismo bem-apanhado para traduzir atividades que ganham a mídia comum e especializada sob o rótulo de responsabilidade social empresarial, como gênero que pode ser, sinteticamente, caracterizado como o esforço das sociedades empresariais de, direta ou indiretamente, promoverem ações organizacionais visando ao atendimento de demandas – sociais, ambientais, profissionais, culturais, desportivas etc. – colhidas entre seus stakeholders[1] com o fito de melhorar sua imagem perante os próprios e também perante os seus shareholders[2].

É apropriado registrar a reflexão sobre uma manifesta incompatibilidade etimológica, ontológica e teleológica entre os conceitos que formam a inesperada conjunção. A suposta incompatibilidade desses vocábulos é objeto deste artigo. O vocábulo português filantropia derivou dos vernáculos grego, latino e francês para receber o sentido de profundo amor à humanidade e também desprendimento, generosidade para com outrem e, ainda, caridade. Fundam o conceito, portanto, idéias essenciais à constituição das sociedades humanas: amor, generosidade, caridade. Noutra consideração, a cognação latina do substantivo capitalismo inclui, primitivamente, acepção daquilo que traz consigo a morte, de inimigo da vida. Por essa via, chegamos a substantivos como criminoso, malvado, celerado, fatal e pernicioso. Por razões compreensíveis, foi esse vocábulo, carregado de um simbolismo nefasto, que denominou o “sistema econômico baseado na legitimidade dos bens privados e na irrestrita liberdade de comércio e indústria, com o principal objetivo de adquirir lucro.”[3] E este sistema, o capitalismo, foi convertido na cabeça, na parte superior e principal das sociedades.

O segundo fenômeno será denominado desnaturação ou corruptela teleológica da função judiciária, cuja manifestação é identificável na prática e no discurso do Poder Judiciário. Os aspectos interno e externo da crise funcional do Estado abalroaram o Poder Judiciário, órgão estatal dos mais despreparados para erguer-se com altivez diante dos ataques desferidos contra a entidade da qual faz parte pelos potentes da nova configuração de forças apresentada pela ordem econômica globalizada.

Sendo a função-fim deste Poder do Estado “a solução em específico dos conflitos surgidos e regulados pelas regras gerais, interpretando e aplicando a lei” (STRECK e MORAIS, 2006, p. 181), é correto considerar teleologicamente o exercício dessa atividade, se bem que de modo a superar o em específico anotado pelos autores. Nesse sentido, para que as instituições do Poder Judiciário não se convertam em mero departamento de queixas que se repetem difusamente na sociedade, sua atuação deve ter dois objetivos: (i) interpretar e aplicar o Direito e (ii) fazê-lo de tal modo que suas decisões funcionem como elementos promotores de ajustamento de conduta, esperando-se, com isso, que a reiteração dos mesmos atos ilícitos seja coibida, exercendo função inibitória da conduta ilícita.

Esses dois fenômenos se manifestam simbolicamente a partir da atuação de seus protagonistas sobre uma circunstância material e também a partir de um estrato psíquico que implicam no que pode ser denominado de violência invisível ou simbólica,

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que opera silente e eficientemente na contenção e, ao mesmo tempo, criação da percepção, tendo como pano de fundo realidades que, se percebidas na sua integridade, no mínimo suscitariam irrespondíveis indagações. Esta assertiva se sustentará na demonstração, no primeiro caso, de um efeito que pode ser denominado esnobismo corporativo: o poder econômico que corrói o Estado sob o discurso da imperatividade de um Estado minimalista e que degenera as relações sociais por meio da mercantilização da convivência, é o mesmo que organiza e profissionaliza exércitos para a prática do filantropo-capitalismo como uma alternativa ao tratamento de algo que é, também, o subproduto de sua própria atividade-fim, a produção e acumulação de riquezas. Afinal, pode-se perguntar, quantos dos males hoje combatidos por práticas de gestão corporativa abrigadas sob a rubrica contábil responsabilidade social têm sua gênese direta em práticas como downsizing, terceirização, reengenharia e deslocamento de investimentos em busca de mercados desregulamentados e origem indireta na imperatividade da maximização do retorno sobre o capital investido sob a forma de lucro?

A violência real promovida pelo exercício irresponsável de um direito fundamental tem sido ignorada por discursos – por vezes muito mais isso do que qualquer ação concreta – construídos para naturalizar o efeito nefasto, o que se constitui numa segunda violência, desta feita envolvida num simbolismo sedutor que tem o condão de inibir a reflexão crítica.

No segundo caso, a assertiva será sustentada a partir da demonstração de uma prática que pode ser denominada esquizofrenia funcional do Poder Judiciário. O uso do jargão psiquiátrico não é aviltante, limitando-se seu caráter pejorativo à desaprovação, expressada neste artigo, ante um discurso dogmático e uma prática institucional inteiramente dissociados do caráter teleológico da função estatal. Essa dissociação se revela, v.g., nas repetidas comemorações protagonizadas por autoridades do Poder Judiciário diante do incremento das demandas judiciais, fato que é visto como avanço institucional benéfico à sociedade, pois traduziria maior acesso à justiça, realçando unicamente elementos quantitativos.

Formula-se, a partir daí, um discurso de autoridade que ignora as razões pelas quais o jurisdicionado submete-se ao Judiciário. Em certas jurisdições esse movimento ao Judiciário se dá pela reiteração de condutas lesivas praticadas pelos mesmos agentes, que chegam mesmo a cativar certas varas da Justiça; ou seja, aquele comemorado incremento se dá (i) pelo acintoso modo com que certos agentes econômicos tratam, com contumácia, direitos erigidos claramente em enunciados estatais e (ii) pela incapacidade funcional do Poder Judiciário de inibir a prática lesiva.

1 A dimensão simbólica do discurso e seu caráter catequizador

Ao desenvolver seu conceito de violência simbólica, Pierre Bourdieu reconheceu ao Estado a titularidade do monopólio da violência absoluta legítima (BOURDIEU, 2004, p. 146) e reconheceu sua derivação de outro, mais abrangente, por ele denominado de poder simbólico, “poder invisível o qual só pode ser exercido com a

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cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2004, p. 8).

O uso da expressão demanda o reconhecimento de que se está transitando no campo dos sistemas simbólicos, no qual o discurso há de ser considerado como instrumento de indução e transformação na proporção em que media o conhecimento e a própria comunicação. Daí decorre a compreensão do poder simbólico como “um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo”, em particular do mundo social (BOURDIEU, 2004, p. 9). O autor cita seu colega tedesco Ernst Cassirer para afirmar que esse sentido imediato do mundo social supõe o denominado conformismo lógico, uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências (BOURDIEU, 2004, p. 9).

Durkheim, também sublinhado por Pierre Bourdieu (2004, p. 10), destaca a função social do simbolismo, denominada pelo segundo de autêntica “função política”, que afirma:

Os símbolos são os instrumentos por excelência da “integração social”: enquanto instrumento de conhecimento e de comunicação (cf. análise durkheimiana de festa), eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração “lógica” é a condição da integração “moral”.

É categórico o pensamento: o discurso argumentativo, logicamente articulado sobre símbolos mediadores da comunicação e da transmissão de compreensões particularistas, viabiliza a nução moral. Referindo esses símbolos, Bourdieu denomina de violência simbólica o processo comunicativo arbitrário por meio do qual alguém, em posição dominante, impõe sua cultura visando ao consensus, sobre outrem, em posição dominada (BOURDIEU e PASSERON, 1982). O processo evolui dentro de sociedades cujas instituições de transmissão de saber e cultura curvam-se ao determinismo de legitimar significados e bens simbólicos dominantes (BOURDIEU, 1992, p. 121). Na linguagem de Bourdieu, o dominado não se opõe a quem o oprime, pois não se reconhece vítima de um processo de dominação. O discurso dominante manipula argumentos de modo a induzir o dominado a naturalizar seus infortúnios.

Esse processo, denominado ação pedagógica por Bourdieu e Passeron (1982, p. 20), é impulsionado por uma autoridade que, exercendo seu poder com o objetivo de impor uma idéia – denominada arbitrário cultural –, naturalizando-a para fins de obtenção do conformismo lógico acima referido. O aspecto alienante do processo foi bem capturado por Jurandir Freire Costa (1986, p. 75) ao expressar seu entendimento sobre o referido conceito, que seria toda imposição de enunciados sobre o real que leva o alvo do discurso dominante a adotar como referencial exclusivo de sua orientação no mundo a interpretação fornecida pelo detentor do saber. Nesse caso, nota o autor, o indivíduo submete-se à posição de dependência “e perde ou amputa a capacidade de criar seu próprio elenco de significados”.

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O argumento de autoridade tem a potência necessária para obnubilar o campo relacional em que a realidade dominada pelo emissor interage com a realidade percebida pelo destinatário do discurso. Partindo do campo econômico – o substantivo é empregado no sentido que lhe empresta Pierre Bourdieu (2004, p. 27): campo como espaço relacional, idéia que “funciona como um sinal que lembra o que há que fazer, a saber, verificar que o objecto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial das suas propriedades” – e do campo jurídico-político, lócus do discurso de autoridade nos casos propostos, o argumento contido no discurso deve ser considerado relacionalmente e não realisticamente ou substancialmente, pois sua raison d’être está na utilização de símbolos para, estabelecendo interações nos espaços sociais relacionais, naturalizar no outro as impressões do emissor. O verbo cria e a realidade se transmuta.

Postas essas considerações teóricas sobre o conceito de poder simbólico e violência simbólica, e modulado código lingüístico fundamental à expressão do raciocínio que se pretende construir, é-nos factível formular os argumentos envolvendo os discursos supra referidos e os seus respectivos campos.

2 A era dos deveres do capital

Resultado de um discurso sustentado por políticas globais destinadas às nações cujas economias estão em desenvolvimento, o fortalecimento da crença de que o liberalismo econômico é pressuposto de liberdade política tem determinado a configuração política, social e econômica dessas nações. A estandardização do receituário dos organismos financeiros internacionais, administrado ao longo da década de 1990 sob o rótulo de globalização econômica, vinha acompanhada de promessas – discurso argumentativo como embalagem de violência simbólica – jamais cumpridas.

Para constituir as condições de crescimento econômico e combate à miséria, os países em desenvolvimento deveriam aceitar os standards da globalização (STIGLITZ, 2002, p. 31). Este discurso do capitalismo global é quase uma representação teológica do pensamento econômico dogmatizante: os sacrifícios no presente assegurarão o paraíso econômico. Entretanto, como reconhece o próprio Stiglitz (2002, p. 32), para muitos no mundo em desenvolvimento a globalização não trouxe os benefícios econômicos prometidos.

De fato, a bula da globalização, mesmo seguida à risca, não reduziu a pobreza e tampouco promoveu a estabilização, econômica ou política. Em inúmeros países sentem-se os efeitos colaterais mesmo quando a boa-intenção orienta a ação de organismos internacionais. Em muitos casos, os benefícios da globalização têm permanecido aquém do que seus promotores apregoavam, e o preço pago tem sido maior, com o meio ambiente destruído e os processos políticos corrompidos – além de o ritmo acelerado das mudanças não ter dado aos países tempo suficiente para uma adaptação cultural (STIGLITZ, 2002, p. 35).

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Para Bernardo Kliksberg (2003, p. 32), a constatação de um abissal desnível sócio-econômico entre os pobres e os ricos refuta a presunção de mera deficiência de recursos econômicos. E nesse contexto de absoluta desigualdade constata-se a ocorrência de permanentes violações de direitos fundamentais, pelas quais se sonega a parcela expressiva da população o acesso à saúde, à educação, ao trabalho, à segurança, à constituição de família, à cultura e ao lazer, bem como, por tudo isso, à efetiva participação na vida democrática.

A sociedade capitalista contemporânea continua a produzir elementos indesejáveis, tanto sob a forma de ideologias ameaçadoras à manutenção do status quo, quanto sob a forma de seres humanos mantidos na periferia do sistema social. É essa eclosão de formas indesejáveis de existência, que contaminam o ambiente que se deseja puro e assentado sob o emblema da ordem e do progresso, que inspira Bauman (1997, p.14) a discorrer amargamente sobre o mal estar da pós-modernidade, era na qual – segundo sua análise inspirada por Lévi-Strauss – o Estado se mostra o implementador das estratégias de controle social: uma antropofágica, destinada à assimilação pelo aniquilamento das diferenças, e outra antropoêmica, promotora da exclusão pelo confinamento e segregação social. A alternativa a estas duas, dirá Bauman (1998, p. 29), é a simples destruição física dos não-enquadrados.

Esse estado de horror econômico se instalou no rastro da globalização econômica e das crises do Estado das quais se tratou acima. A crise institucional, irmã siamesa da crise de soberania, apequenou o Estado em sua capacidade de atuação mesmo social e o curvou ante o poder econômico. Deprimido, o Estado tem cada vez mais reduzido o seu espaço de atuação.

Uma vez demitido o Estado (BOURDIEU, 1997, p. 215), o Poder Estatal foi compelido à omissão regulatória sobre as estruturas da produção, administração e distribuição de riqueza, adotando política de simples correção dos efeitos da desigual distribuição dos recursos do capital econômico e cultural. Com isso, inaugurou-se a era da caridade de Estado (BOURDIEU, 1997, p. 219), que tem como sujeitos aqueles mesmos que, antes, eram alcançados pela filantropia religiosa.

A perda de competências do Estado, efeito das crises que o assolam, implicou no fortalecimento do poder econômico, seja aquele com musculatura e neurônios compatíveis com a arena global, seja aqueles moldado para operar localmente. Agentes do capital têm sido chamados a fazer uso de seu poder consolidado numa linha auxiliar daquela caridade de Estado, expressa numa espécie de caridade do capital. A institucionalização das atividades filantropo-capitalistas tem sido determinada pelo agravamento das crises socioambientais, que tem feito ressoar as lamentações dos excluídos e põe na ribalta o grande capital.

É fato que a questão da restrição de renda fez surgir, tanto o mercado dos pobres[4] – marcado pelo surgimento de empresas e produtos voltados ao atendimento das demandas da parcela social de menor poder aquisitivo –, quanto as tecnologias de gestão da filantropia corporativa, esforço que tem sido empreendido dentro dos métodos peculiares da atuação do capital marcados por controle e governança. Esse know-how corporativo já se tornou mantra dos manuais de administração e tem contribuído no mutirão pela inclusão social cujos apelos, extrapolando os muros religiosos e da caridade estatal, se espraiam pela sociedade despertando sentimentos de culpa em uns e

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espírito solidário em outros; revelando o senso de oportunidade para o exercício de princípios cristãos e, também, o senso de oportunidade para realização de novos negócios, que agora atende também pelo nome de terceiro setor.

A novas tecnologias de gestão corporativa têm recebido atenção especial, em especial quando consideramos novos conceitos, a exemplo daquele que pugna pela superação de certas limitações sistêmicas da gestão do capital e que vem sendo denominado governança corporativa. Esse conceito receberá consideração no próximo tópico, após a inserção do seguinte excerto, extraído por Andrade e Rosseti (2004, p. 19) da obra Cannibals with Forks, de John Elkington, que situa o tema no âmbito do que se denomina capitalismo sustentável:

A transição para o capitalismo sustentável será uma das mais complexas revoluções que a nossa espécie já vivenciou. Estamos embarcando em uma revolução cultural global, que tem como epicentro a sustentabilidade. Ela tem a ver com valores, mercados, transparência, ciclos de vida de tecnologias e produtos e tensões entre o longo e o curto prazo. E as empresas, mais que governos e outras organizações, estarão no comando destas revoluções. Um comando que se exercerá pelos princípios da governança corporativa. (Grifos inexistentes no original)

Certos agentes do capital têm se comportado como missionários na implementação de uma terceira estratégia de influência para fins de controle sociopolítico – vindo a somar-se àquelas identificadas por Lévi-Strauss e referidas por Baumann: antropofágica e antropoêmica – consistente na adoção de uma política de investimento orientada para a responsabilidade no exercício das prerrogativas daquela tríade fundadora: patrimônio-gestão-retorno, e também para a valorização de políticas socialmente inclusivas abrigadas sob o discurso da sustentabilidade e da responsabilidade social corporativa institucionalizada, manifestação de um pensamento crescente no meio empresarial e que vem sendo celebrado como um capitalismo consciencioso (ABURDENE, 2006, p. 25). O discurso dos agentes do capitalismo responsável quer inspirar crenças de que, antes daquela alternativa imaginada por Baumann às duas referidas estratégias – a simples destruição física dos não-enquadrados –, uma outra via está sendo aberta. Essa via seria justamente aquela imaginada por John Elkington e referida linhas acima: canibalismo com garfos pode significar perpetuação menos penosa do modelo, o que dá em sustentabilidade.

A proposta está feita e vem sendo praticada por empresas dos mais diversos setores. Razões para ceticismo derivam da própria lógica interna do capitalismo. Pode-se perceber, nesta proposição, mera e tradicional inclinação à preservação e constituição de mercados consumidores, cujo perfil tem se transformado pelo advento de um consumidor movido por valores, também qualificado como consumidor consciencioso (ABURDENE, 2006, p. 107). É notório que o marketing corporativo já está desenvolvendo estratégias de branding[5] para capturar os sentimentos desse consumidor, mais exigente e que orienta suas aquisições pela relação que o fornecedor estabelece com o seu entorno.

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2.1 Filantropo-capitalismo: a insustentável leveza do capitalismo

O despertar da sensibilidade do capital para o que se pode chamar de era dos deveres, não é bem uma novidade, exceto pela quantidade e pelo profissionalismo que se observa na concepção e na implementação de políticas corporativas que privilegiam incursões nos campos social e ambiental sob o discurso da responsabilidade sócio-ambiental. Entrevê-se a crise ética do próprio capitalismo, que vai desembocar numa crise de lógica interna. Sendo criação e instrumento das relações do homem com o seu ambiente, natural e social, compreende-se essa crise do instrumento econômico como conseqüente lógico das próprias contradições humanas. Pode ser uma chave para ilustrar essa crise, não do capital, mas do capitalista, a reflexão de Parmênides sobre os dois “contraditórios supremos”, o ser e o não-ser: “havendo o ser, é necessário que não haja o não ser” (REALI, 1990, p. 51). Sem temor de ser infiel ao modelo analítico de Parmênides, é aceitável utilizar a essência de seu pensamento sobre o ser , para notar que o ser do capitalismo pode representar simbolicamente um não-ser humano, uma forma racionalmente desenvolvida para promover interesses exclusivistas e que abala a unidade ontológica da humanidade.

Por essa via, o capitalismo – sistema econômico de raízes e funções sociopolíticas – tem buscado um modelo racional que se desdobra num não-ser da humanidade capaz de desencadear crises em seus atores. Exempli gratia, o sistema exige desenvoltura a ser propiciada pela leveza liberal-institucional nos espaços públicos, o que se revela no discurso da liberdade, da desregulamentação, da pura ausência de normas-controle, na realização do homem por uma suposta liberdade, na não-intervenção do Estado, na auto-regulação e na crença na mão invisível. Essa leveza, todavia, assentada num discurso do progresso, tem causado deletérios efeitos sociais, assimetrias econômicas enrubescentes, exarcebação perigosa da exploração humana, tem inviabilizado sociedades humanas e desumanizado o ser humano. Essa leveza, assim, tem se tornado insustentável[6] na medida em que violenta o ser da humanidade pela sua própria negação. Talvez daí derivem as raízes dessa sensibilidade do selvagem: há contradição suficiente entre o ser reconhecido em si no homo faber et mercator e o não-ser exigido pelo projeto capitalista que ele concebeu e executa.

Antecede os nossos dias o debate sobre legalidade e moralidade no ambiente corporativo. Com efeito, nas sociedades de capitalismo avançado, mas não exclusivamente, nas quais as estruturas societárias de maior envergadura se organizam sob a forma de sociedades anônimas e se capitalizam por meio de abertura de capital e IPO[7], é corrente a superação daquele debate, com o abandono da tradicional postura de que a empresa deve se preocupar unicamente com o cumprimento das leis, já que a moralidade ou a justiça de sua performance não serão objeto de avaliação pelas agências de regulação e nem pelos indiretamente relacionados, os stakeholders. Esse pensamento, aliás, orientava o discurso de um dos totens do liberalismo econômico, Milton Friedman, Nobel de Economia, que afirmava ser ganhar dinheiro para os acionistas a única responsabilidade dos negócios (apud PORTER e KRAMER, 2005, p. 135 e ABURDENE, 2006, p. 26).

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Esforços têm sido feitos para superar o paradigma de Friedman e estabelecer um tipo novo de relação com seus investidores e também com o seu entorno socioeconômico. Lócus desses esforços, em determinados tipos de sociedade empresarial, é o Conselho de Administração, órgão deliberativo representante dos interesses dos acionistas, cuja missão consiste em zelar pela segurança e evolução favorável dos valores patrimoniais da sociedade e das empresas controladas e coligadas (LODI, 2000, p. 77). Bússola do agir desse Conselho, e de órgãos símiles, é o sistema – de relações, mas também de governo, de estrutura de poder e de valores e padrões de comportamento (ANDRADE e ROSSETTI, 2004, p. 23) – denominado governança corporativa. Suas definições pela teoria da administração[8] têm variado de conteúdo de acordo com o perfil da sociedade empresarial, de seus shareholders e de seus administradores e também do cenário sóciocompetitivo, tudo considerado no tempo.

O deslocamento do eixo da responsabilidade corporativa, tributária dos interesses do proprietário-investidor, para um modelo que valoriza também a gestão baseada em valores não-financeiros e ampliativa dos interesses do capital, não significa que foi relativizada a atuação empresarial que privilegia a geração de riquezas e a maximização da rentabilidade dos investimentos. A tônica da gestão segue no trinômio propriedade-gestão-retorno e, para além da súbita sensibilidade do capital e seu ingresso numa era de deveres mais amplos, objetiva e subjetivamente considerados, sua preservação ainda é o objeto central da gestão.

Nesse contexto corporativo, o mediador de interesses é a referida instituição societária nominada Conselho de Administração, que foi chamada por Peter Drucker de a consciência da empresa[9] (apud LODI, 2000, p. 115). Tem-se, então, um espaço corporativo que permite aos agentes do autodenominado capitalismo com responsabilidade apoiarem formas de investimento socialmente responsável (ABURDENE, 2006, p. 163), o que inclui aporte de capital em empresas praticantes do capitalismo consciencioso e sustentável e também adeptas de formas modernas e potencializadas de filantropia corporativa.

Realmente, tem havido uma ampliação da área de interação entre os campos – aqui no sentido que lhe confere Pierre Bourdieu – econômico e social. A área de interface tem sido dimensionada pela inclusão, no campo econômico corporativo, de partes tradicionalmente desconsideradas no desenvolvimento das atividades empresariais. Num modelo inclusivo máximo, a governança corporativa comprometida, v.g., com investimentos socialmente responsáveis e com práticas filantropo-capitalistas, abarca (i) o público interno: empregados, fundações privadas de assistência e seguridade; (ii) o público externo: que inclui credores, entre os quais estão os investidores, fornecedores, clientes e consumidores e (iii) o entorno: comunidade, sociedade, governo e meio ambiente (ANDRADE e ROSSETTI, 2004, p. 35).

Note-se o argumento: a sensibilidade desenvolvida pela consciência da empresa se manifesta como decorrência de um sentimento próprio do ser humano, o senso de sobrevivência, visto por alguns autores como “inato, incondicionado e de natureza biológica, sendo a fonte, a causa primeira e última de todo o nosso comportamento individual e social” (MORAES, 1996, p. 104). Esse senso tem inspirado os negócios empresariais, que dependem de humanos aptos ao exercício do consumo, quando seus gestores assistem, em todas as partes do mundo, a “multidões de seres lutando, sozinhos ou em família, para não deteriorar-se, nem demais, nem muito

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depressa. Sem contar inúmeros outros [...] vivendo com o temor e o risco de cair nesse mesmo estado.” (FORRESTER, 1997, p. 10).

Diante do clamor, pacífico ou violento, que emerge nas ruas e desce dos morros, a consciência das empresas tem se apercebido de que as opções históricas do capital, que vê a miséria humana simplesmente como importante resultante do lucro, geram efeitos colaterais que não se limitam à redução do mercado consumidor por meio do achatamento do poder aquisitivo aos níveis de sobrevivência, mas passaram a colocar em dúvida a própria viabilidade de uma existência segura.

Tem-se, desse modo, uma realidade: o capital – especialmente aquele de grande expressão econômica, independentemente do (i) setor econômico em que atua, (ii) de sua configuração jurídico-societária e (iii) de sua origem geográfica – ingressou maciçamente numa era de ação social, na qual o investimento socialmente responsável é celebrado como moralmente recomendável e onde ganham destaque as atividades voltadas à filantropia e à ação social em campos historicamente marcados pela intervenção do Estado ou da Igreja.

2.2 Exercício do filantropo-capitalismo: intenções equívocas, efeitos incertos

É tentador pensar que a geometria corporativa, desenhada pelas sociedades empresariais contemporâneas, visa ao desenvolvimento da cultura organizacional ética, que se guiaria por três princípios de ética organizacional: (i) respeito pelos valores humanos essenciais, que determina o limiar moral absoluto para todas as atividades de negócios, (ii) respeito pelas tradições locais e (iii) crença em que o contexto é importante nas decisões sobre o que é certo e o que é errado (DONALDSON, 2005, p. 27).

Esse doutrinamento ético-organizacional certamente é uma resposta à “ampla expectativa de que as empresas de hoje pautem sua conduta por um mínimo de responsabilidade social” (MARTIN, 2005, p. 115), o que se traduz em esforços que estão “revolucionando a filantropia, fazendo com que as organizações sem fins lucrativos operem como negócios, e criando novos mercados para produtos e serviços que beneficiam a sociedade”, nas palavras de M. Edwards, diretor de governança e sociedade civil da Fundação Ford, que reconhece o vigor do capital para produzir riqueza como fato que o torna causa dos problemas globais e também parte essencial de sua solução (EDWARDS, 2008, p. 20).

Economistas de renome declaram não haver dúvidas “de que as políticas do Fundo Monetário Internacional e do Tesouro dos Estados Unidos contribuíram para um ambiente que intensificou a probabilidade de uma crise ao encorajar – em alguns casos, insistir – um ritmo injustificadamente veloz em direção à liberalização financeira e do mercado de capitais” (STIGLITZ, 2002, p. 141).[10] Deve-se notar que o filantropo-capitalismo é um derivativo do anarco-capitalismo, de feições hayekianas, que debilita os países envoltos nessa névoa ética do neoliberalismo e que origina a matéria-prima – a desigualdade social, os danos ao meio ambiente, a miséria humana, a mercantilizacão das relações sociais, o minimalismo estatal etc. – de que se nutrem as mais celebradas práticas filantrópicas corporativas.

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Para preparar a superfície global à atuação do capital, governos e investidores tiveram de, por meio de organismos multilaterais, imiscuir-se em questões soberanas dos respectivos países (alvo de seus interesses). Essa imiscuição foi possível pela flexibilização da soberania dos Estados e pela administração de medidas padronizadas cujos efeitos, no mais das vezes, foram nefastos para esses países, tendo sua população sido submetida a privações que esgarçaram o tecido social e criaram sociedades de risco, nas quais a natureza e a tradição – que podem simbolizar segurança – são esvaziadas de suas potencialidades ordenadoras e passam a depender de ações e decisões humanas (BECK, 2003, p. 113,114), que vêm sendo condicionadas por interesses institucionalizados nas estruturas da sociedade moderna.

Nessa mesma superfície, portanto, é que o filantropo-capitalismo opera utilizando paradigmas de gestão que são característicos de suas operações econômicas habituais, o que implica em considerar a hipótese de que a filantropia corporativa está se convertendo em mais um item produzido pelo sistema capitalista. Ao se tornar rentável, como sói acontecer com artigos produzidos em escala global, as sociedades se verão reféns de uma conduta que, para se perpetuar e manter-se rentável, precisará sonegar o tratamento que deveria ser destinado às suas próprias causas. É dizer: estamos diante de um subproduto do capitalismo que está recebendo, dos conceitos que atualmente pautam as práticas filantrópicas corporativas, valorização equivocada, que terminará por converter aquilo que é problema em solução à moda neoliberal: se é rentável e dinamiza a economia de mercado considerada em sentido lato, deve ser mantido, sem avaliações de natureza moral e sem entraves de natureza ética, pois a relativização cultural, moral e ética é parte do ideário capitalista.

É inevitável notar que o capitalismo promove a retroalimentação – em sentido semântico-figurativo: qualquer processo por intermédio do qual uma ação é controlada pelo conhecimento do efeito de suas respostas – da filantropia corporativa. Tal se dá quando o subproduto do sistema capitalista atinge níveis de alerta capazes de inspirar esforços de autopreservação nos próprios agentes do sistema, que passam a adotar medidas profiláticas com três objetivos: (i) naturalizar as circunstâncias socioeconômicas resultantes do modo de produção capitalista, em especial as decorrentes da financeirização, objetivo este perseguido por uma retórica determinista, anti-estatal e louvadora dos aspectos positivos do capitalismo; (ii) constituir imagem simbolicamente positiva do capital, que será devidamente explorada, tanto pelas ações de marketing destinadas a alavancar o valor da marca do produto ou do serviço, quanto por instituições especializadas em administrar recursos destinados à filantropia corporativa, que já se constituiu em novo negócio dentro do sistema e (iii) auxiliar outras entidades, inclusive o Estado, no combate aos efeitos colaterais historicamente conhecidos e, por isso mesmo, social e economicamente previstos, que vulneram as potenciais virtudes da vida em sociedade por meio de uma desenfreada mercantilização das relações.

A violência simbólica se manifesta em discursos e práticas que objetificam e tratam como solitário fator relevante unicamente os efeitos de algo que eles próprios, os agentes do capitalismo e do filantropo-capitalismo, não ousam dizer o nome. Evidentemente, há um diabolismo ambíguo neste cenário que projeta a atuação filantrópica do capital. O que, entretanto, não deve servir para acirrar críticas desqualificantes ou rejeitar iniciativas que podem contribuir para a construção de uma sociedade menos injusta. Trata-se, afinal de contas, de um poder economicamente

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expressivo entranhado dentro de outro ainda mais forte, e o fato de este primeiro estar sendo gestado no ventre do capitalismo, e vir se fortalecendo ao longo dos anos de maior agravamento das crises sociais com genética capitalista, aponta para a criação de um Leviatã privado e de vocação filantrópica que não pode ser desconsiderado e nem deixado livre de amarras, pois há, realmente, o risco de que, ao se tornar um negócio rentável, ele se torne uma grande fomentador de práticas retroalimentantes.

Michael Edwards considera errado ignorar um sistema ação social que deverá gerar uma quantidade de recursos filantrópicos estimada em US$ 55 trilhões nos próximos 40 anos, somente nos Estados Unidos da América. Dados assim, considerados à luz das reflexões acima, ensejam a pergunta: “Vamos usar esses imensos recursos na busca de transformações sociais ou apenas desperdiçá-los nos tratamento dos sintomas?” (EDWARDS, 2008, p. 21).

3. Estado: crises e problemática incompleta

Dentre os dogmas do liberalismo político na França setecentista estava aquele resumido no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, segundo o qual qualquer sociedade que não assegura a garantia dos direitos, nem promova a separação dos poderes, não tem Constituição. Está inserto nesta dicção liberal o princípio da legalidade, reconhecido como um dado fundamental para a construção do Estado de direito, em sua noção meramente formal (GRAU, 2002, p. 172). Concebido para frenar o exercício arbitrário do poder que vulnerava as pretensões políticas da burguesia, o modelo organizativo do Estado que inclui a tripartição do poder vive crises de diferentes configurações e origens.

A doutrina político-jurídica declara, sem titubeio, que esse modelo “representou seu papel histórico”, que se trata de “técnica em declínio” (BONAVIDES, 1996, p. 64)[11] e também que, no dizer de Louis Althusser, “não passa de um mito” (apud GRAU, 2002, p. 234). Noutro diapasão crítico, há o entendimento de que separação jamais foi proposição teórica de Montesquieu, pois a interpenetração inevitável das funções estatais em seu exercício evidenciariam equilíbrio, antes de separação de poderes (GRAU, 2002, p. 255). Essas assertivas evidenciam que as crises do Estado, no que derivam da geometria institucional do Poder, têm sido anunciadas. As funções do Estado, além de internamente terem esboroadas suas fronteiras, numa visão que incorpora fenômenos externos, têm sido objeto de processos de transferência de titularidade, o que se verifica na medida em que a organismos internacionais se têm reconhecido competência para o desempenho de certas funções anteriormente exclusivas da soberania e do poder do Estado.

É fato que a concepção do projeto iluminista de institucionalização do Poder não contemplou a capacidade de inclusão de outros poderes cujo controle não estava na esfera de interesses dos patrocinadores da limitação do poder. O problema da limitação e controle do poder, se tratado por Montesquieu sob a ótica do equilíbrio e por Locke sob a ótica da separação, foi percebida por Thomas Hobbes como um falso e perigoso problema ao argumentar que, pela divisão, uma parte poderia se tornar mais poderosa

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do que as outras, prejudicando a própria finalidade da divisão (2003, p. 233). A razão hobbesiana para a crítica a este método de limitação do poder é intrinsecamente falha porque o poder nela contemplado era aquele de natureza eminentemente política.

A grande questão a envolver o poder e seu exercício refere diretamente formas e manifestações de poder que não se situam no âmbito dos órgãos estatais, mas, antes, em expressões de força que estão na gênese do Estado e que, historicamente – exceções observadas em momentos de ruptura institucional –, lhe têm dado sustentação, nem sempre legítima quando considerado o ideário liberal-constitucional, mas, de todo modo, sustentação que o preserva e, por vezes, o perpetua.

A separação, para fins de controle, do poder está assentada, então, em pressupostos autonomistas que impedem até mesmo que a interação destes poderes possa preencher as fendas políticas por onde aquelas outras formas de poder se infiltram, corrompendo o ideário de que o poder teria, numa razão finalística, a vocação para a promoção dos interesses de caráter público. Essa constatação confirma que o obsoletismo do modelo se revela na análise do papel e respectivo desempenho de qualquer dos três poderes.

Em diversos momentos da história e por inúmeros exemplos reiterados pela prática processual oficial, que tem lugar no âmbito do Poder Judiciário, o arcaísmo do modelo se exibe aos cidadãos, estupefatos com o modo de produção normativa próprio deste poder da República. É correto, pois, afirmar que a produção normativa dos juízes não tem contribuído para a realização do Direito do modo como estabelecido nas justificativas filosóficas da constituição e manutenção do Poder Judiciário.

Não se afirma, aqui, que a produção normativa que camufla o efetivo ativismo judicial capaz de – partindo da Constituição da República e seus princípios fundantes – catalisar vontades republicanas e espíritos cidadãos, seja tímida em decorrência do fato de que os juízes ou provêm ou aspiram pertencer às camadas mais altas da sociedade, e nem que, conformados pelas suas origens ou aspirações, atuem de modo relativamente conformista (SCHNEIDER e SCHROTH, 2002, p. 513). Contudo, há um grande descompasso entre o modo de atuação do Poder Judiciário por seus pressupostos, razões teleológicas e argumentação técnica e a resultante desta atuação, a própria decisão judicial.

O problema posto pelos representantes do Poder Judiciário – atrelado à idéia de acesso à justiça – escamoteia que o iter da produção normativo-judicial, resultante de aplicação das normas jurídicas, revela opções ideológicas e corporativistas determinantes da argumentação-base da decisão formadora da norma, derivada do enunciado legal e das circunstâncias fáticas, que envolveu os interesses conflitantes do caso concreto. Essa argumentação está ancorada num viés processualístico que se traduziria no que a doutrina denomina efetividade do processo (BEDAQUE, 2006, p. 49), efeito a ser alcançado pelo desenvolvimento da técnica processual, da qual fazem parte conceitos como instrumentalidade das formas, processo civil de resultados justos e outros igualmente erigidos a dogmas da disciplina jurídica denominada direito processual civil.

Sob esse discurso formalístico e dogmático, o Poder Judiciário se exaure como um quixote que, incapaz ou não-desejoso de identificar os reais inimigos, se dedica ao

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esforço de atacar as inofensivas e aparentes estruturas viciadoras que consegue compreender. Há, portanto, um decerto não-inocente equívoco na problemática em que se debate o Poder Judiciário, equívoco este que se manifesta na determinação justificadora, na argumentação e na sua razão de ser, nas decisões produtoras de normas destinadas às partes litigantes. E ao reduzir seu problema ao interesse das partes litigantes, o único efeito obtido pelo Poder Judiciário é a potencialização da litigiosidade, que redundará na causa de grande orgulho de seus representantes: o aumento da procura pelos serviços deste Poder, o que atende pelo nome de incremento do acesso à justiça.

3.1 Corruptela teleológica do Poder Judiciário: o discurso e sua eficiência

Entre os interesses particularmente considerados numa ação individual e aqueles coletivos ou difusos, tratados em ações plurais ou de legitimação plural, há uma litigiosidade crescente que não recebe combate por nenhuma dessas vias; ao contrário, o exercício da jurisdição pelo Estado tem tido o efeito de estimulá-la. Aquele conceito de individualidade determinante de toda a teoria do Estado e do Direito que marcou os áureos tempos do juspositivismo petrificou-se na epistemologia do instrumento estatal manejado pelo Poder Judiciário para cumprir seu mister. Daí vem a clara vocação do sistema processual para individualizar a argumentação teórica e a produção normativa.

Ao pender para esse individualismo ritualístico e defender a efetividade do processo – entendida como aptidão para produzir concretamente os resultados dele esperado, como explica Bedaque (2006, p. 32) –, sem considerar o impacto das decisões na litigiosidade latente estabelecida no campo social e no campo econômico como reflexo de métodos de administração de interesses empresariais, que contam com uma específica interpretação do direito, o Poder Judiciário frustra a expectativa quanto à sua capacidade, e de seu instrumento, de “veicular aspirações da sociedade como um todo e de permitir-lhes a satisfação por meio da Justiça”, nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira (apud BEDAQUE, 2006, p. 32).

Essa frustração tem exemplo no efeito reducente da função jurisdicional quando, sublinhando em toda a teoria do processo civil a luta particular entre as partes, consolida práticas processuais que, longe de desdobrar a idéia de acesso à justiça, limitam-na como se fora um direito fundamental de acesso à Justiça, isto é: às instâncias do Poder Judiciário, numa sugestão de fundo teológico que avoca para si o caminho único para a realização do direito e da justiça. A raison d’être do Estado certamente está em que suas estruturas sirvam de vias de acesso à justiça – e não apenas de acesso formal ao Poder Judiciário. Este, como titular da jurisdição, do procedimento administrativo interno de dizer o direito, deve atuar de modo a ampliar os efeitos de suas decisões para o campo da materialidade jurídica.

A reflexão proposta pode ser extraída de Cappelletti e Garth, para quem “embora o acesso efetivo à justiça venha sendo crescentemente aceito como um direito social básico, nas modernas sociedades, o conceito de ‘efetividade’ é, por si só, algo vago” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 15). Dentre os obstáculos a serem

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superados para desobstruir o acesso efetivo à justiça, Cappelletti e Garth incluem o que denominam possibilidades das partes (1988, p. 21), o qual subdividem em (i) recursos financeiros, (ii) aptidão para reconhecer um Direito e propor uma ação ou sua defesa e (iii) litigantes ‘eventuais’ e litigantes ‘habituais’.

Essa classificação de litigantes – eventuais e habituais – foi desenvolvida pelo pesquisador Marc Galanter, da Universidade de Wisconsin, e se baseia na freqüência de encontros destes litigantes com o sistema judicial. Ou seja, no número de vezes que o litigante maneja o processo e submete seus interesses aos órgãos do Poder Judiciário. Utilizado com referencial teórico e de pesquisa por Cappelletti e Garth, o professor Galanter elenca numerosas vantagens dos litigantes habituais, cuja experiência judicial é mais extensa: (i) maior experiência com o Direito lhes possibilita melhor planejamento do litígio; (ii) uso de economia de escala, consistente no uso de uma mesma estrutura para atender a um maior número de casos; (iii) oportunidade de desenvolver relações informais com os membros da instância decisora; (iv) diluição dos riscos da demanda por maior número de casos e (v) a possibilidade de testar estratégias em casos específicos de modo a garantir expectativa mais favorável nos casos futuros (1988, p. 25). Naturalmente, que a habitualidade denota a presença daqueles outros dois aspectos: posse de recursos financeiros e aptidão para reconhecer um Direito e propor uma ação ou sua defesa.

Os autores concluem, com Galanter, que essas vantagens próprias dos litigantes organizacionais lhes conferem maior eficiência quando comparados com os litigantes individuais. Concluem, também, que “essa desigualdade relativamente ao acesso pode ser atacada com maior eficiência [...] se os indivíduos encontrarem maneiras de agregar suas causas e desenvolver estratégias de longo prazo, para fazer frente às vantagens das organizações que eles devem amiúde enfrentar.” (1988, p. 26). Aqui se vê a sugestão de assunção, pelos litigantes eventuais, de estratégias para combater a litigiosidade habitual. Ao que parece, ao Estado – que disponibiliza suas estruturas para plena ocupação por parte dos litigantes organizacionais que se habilitam como contumazes agressores de Direitos – não reconhecem, os autores, a necessidade de adotar medidas de inibição das causas do incremento do acesso à Justiça. Não, ao menos, medidas de natureza judicial.

Justamente desse tipo de enfrentamento judicial exsurge situação fática reveladora do discurso simbolicamente violento emitido por autoridades representantes do Poder Judiciário. Loas são pronunciadas alardeando os méritos das sucessivas reformas processuais, que serão capazes de dar efetividade ao processo e de ampliar o acesso à justiça; iguais discursos elogiosos são elaborados quando se anunciam as estatísticas demonstrativas do incremento do número de processos desta ou daquela categoria, fato comemorado como comprovação incontestável da capacidade do sistema de promover o tão propalado acesso à justiça.

São louváveis os esforços doutrinários para aperfeiçoar o sistema, combatendo seus nódulos que impedem o fluxo adequado do Direito material. Entretanto, ainda que se valorize o labor intelectual dos doutrinadores do processo civil, é dever notar que, além das editoras especializadas e do establishment judicial, poucos jurisdicionados recebem os benefícios das sucessivas reformas, o que torna apropriada a remissão às palavras do pesquisador Galanter, aplicadas por Cappelletti e Garth (1988, p. 68):

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O sistema tem a capacidade de mudar muito ao nível de ordenamento, sem que isso corresponda a mudanças na prática diária da distribuição de vantagens tangíveis. Na realidade, a mudança de regras pode tornar-se um substituto simbólico para a redistribuição de vantagens.

Os esforços dos doutrinadores têm, no entanto, esbarrado na própria práxis da aplicação da norma jurídica. Por razões multifacetadas, espelhando ora ideologias, ora limitações de mundividência determinadas por uma educação jurídica dogmática e redutora das possibilidades do Direito, por um lado as reformas provocam transformações tensoativas entre os exercedores das funções essenciais à Justiça, e por outro, os titulares de órgãos judiciais, tímidos no mais das vezes, limitam-se a perseguir a efetividade processual formal e deixam de contemplar a imperativa necessidade de promover, justamente por meio do processo, a efetividade material que todo Direito possui e que todo jurisdicionado espera.

A litigiosidade crescente, antes de indiciar verdadeiro acesso à justiça, verdadeiramente revela o incremento do fracasso das relações jurídicas cujas partes dependem do tour de force estatal para assegurar o acesso ao seu direito. Entretanto, esse incremento do contencioso judicial no Brasil tem seus efeitos submetidos a uma refração cognitiva, pois os intérpretes do fenômeno consideram-no como algo positivo para a cidadania uma vez que representaria a crença da população no Poder Judiciário.

Assim, exempli gratia, pensa Gilmar Mender, ministro do Supremo Tribunal Federal, que, ao comentar os efeitos da súmula vinculante e da cláusula de repercussão geral – de resto, instrumentos outorgantes de poder ao STF cujo uso pode atentar contra a democracia e o verdadeiro acesso à justiça –, após ratificar seu entendimento de que esses instrumentos serão promotores do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e do direito fundamental a um processo com duração razoável, declara que é preciso ter a visão de que o Poder Judiciário é um prestador de serviço e que a crise processual, em estatísticos, é um dado positivo, pois mostra que as pessoas estão recorrendo à Justiça. E “se elas recorrem ao Judiciário é porque acreditam nele”. A entrevista tem como título “Foco na Eficiência”.[12]

Essa exemplificativa opinião, qualificada pela fonte, ecoa no Poder Judiciário, para cujas lideranças o aumento do número de processos é sintoma de crença na Justiça e, logo, de acesso à justiça. É um pensamento da mesma qualidade referida – com Cappelletti e Garth – e que sugere àquela imensa massa de seres excluídos e destituídos de condições de organização a adoção de estratégias de longo prazo para enfrentar as vantagens dos litigantes organizacionais. São pensamentos reveladores de uma percepção descolada da realidade que constitui o pano de fundo das relações jurídicas frustradas no plano material, e cuja solução se busca por meio do uso de outras esferas do Direito, no caso o direito processual. São idéias que enviesam a lógica e sustentam um discurso facilmente posto no contexto da violência simbólica da qual se tratou linhas acima.

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Esse pensamento nos trouxe uma prática judiciária orientada pelo formalismo e pelo corporativismo que, entranhada nas estruturas estatais brasileiras, com especial ênfase nos órgãos do Poder Judiciário, inclusive como efeito da obsoleta educação jurídica praticada nas instituições de ensino superior, impede diagnósticos mais precisos que considerem as causas dos males e não apenas a sintomatologia e a prescrição de paliativos. O discurso institucional parece formulado para diagnosticar a crise, quantificar seus efeitos e apontar soluções tensoativas sem, contudo aprofundar-se em algumas de suas causas, que têm raízes no modus operandi da Justiça. Esse modo de atuar se projeta no imaginário social, todavia, muito mais pelo conteúdo simbólico do discurso das autoridades do que pela realidade mal interpretada.

Dirigido aos cidadãos reduzidos ora a administrados, ora a jurisdicionados, aquele discurso ganha tons justificadores e explicativos; soa como a voz da autoridade que demonstra quão eficiente são os serviços prestados, a voz do poder que, desnudo, tenta naturalizar circunstancialmente uma lamentável realidade que é reveladora da incapacidade de gestão de tão relevante função política. Ao mesmo tempo, as razões articuladas no discurso justificam o gigantesco orçamento e também a necessidade de incrementá-lo anualmente, pois os jurisdicionados têm demandado mais acesso ao Judiciário e isso implica em atender à necessidade de uma maior estrutura, afinal, o Poder Judiciário deve prestar um bom serviço.

Sobrepostos, o duo constituído pelo Poder Judiciário e pela dogmática do Direito Processual cria uma sedutora versão da realidade: o Estado brasileiro aprova leis processuais por meio de um Poder Legislativo sensível aos apelos da Academia jurídica, e esse mesmo Estado promove os direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e a um processo com duração razoável. Contudo, é desafinado o coro que se ouve: enquanto números são exibidos pelas autoridades, a Justiça atua de modo a sombrear, exempli gratia, descalabros promovidos por contendores que Galanter chamou de litigantes habituais, talvez os maiores, e mais impunes, tomadores dos serviços prestados pelo Poder Judiciário.

3.2 A aritmética desconstruindo o Discurso

Embora capaz de arrebanhar mentes e corações sequiosos por um Estado presente e atuante, e por isso mesmo sujeitos à ação impiedosa e arrogante do poder simbólico, a tonitruância do discurso das autoridades do Poder Judiciário sofre arrefecimento inescapável diante da aritmética aplicada ao real desempenho das atividades deste Poder.

A estatística é auxiliar na compreensão da crise: a taxa de congestionamento da Justiça brasileira – esse índice é representado pela relação numérica entre os processos julgados por ano e os processos em tramitação – alcançava 59,26% em 2003. Essa média, que tem subido, era composta por: 58,67% no STF, 31,12% no STJ, 69,10% nos Tribunais Regionais Federais, 81,37% na Justiça Federal, 57,84% nos Tribunais de Justiça e 75,45% na Justiça Estadual de primeira instância. Quando presidente do STF, o ministro Nelson Jobim comentava esses números reconhecendo-os como calamitosos

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e afirmando ser necessário analisar a eficiência do Judiciário sem, entretanto, eleger culpados[13].

Contudo, aquele discurso focado na eficiência, que apregoa o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, também chamado acesso à justiça e, do mesmo modo, o direito fundamental a um processo com duração razoável, tende a invisibilizar resultados tangíveis. Ao comentar o congestionamento de processos na máquina estatal judiciária, há quem repare que tal não se dá por falta de juízes, uma vez que o Brasil – em números de 2003 – tinha 13.474 juízes, o que gerava média de 7,6 magistrados por 100mil habitantes, superior até à média recomendada pela Organização das Nações Unidas, de 7/100mil habitantes[14].

Se, entretanto, o número de magistrados está alinhado com as boas práticas administrativas internacionalmente recomendadas, a estrutura do Poder Judiciário guarda dimensões denunciantes de circunstância que sublinha aquele modus operandi e seu caráter corporativista: em 2003, o Poder Judiciário empregava 246.632 servidores – o que resulta numa média de 139,44/100mil habitantes. A média mundial é de 50/100mil habitantes.[15] As dimensões dessa máquina burocrática só podem ser justificadas pelo discurso focado em eficiência que diagnostica uma crise, recomenda e administra tratamentos, mas não enfrenta as suas causas, num conveniente procedimento de retroalimentação da crise.

Veja-se o incremento da litigiosidade reconhecida na 4ª edição da pesquisa Justiça em Números – Indicadores Estatísticos do Poder Judiciário[16], que é espantosa: 43 milhões de processos esperam julgamento pelo Poder Judiciário brasileiro; desses, 33 milhões estão na primeira instância, sendo que 32 milhões são processos pendentes de julgamento pela Justiça Estadual de primeiro grau. A taxa média de crescimento anual das demandas submetidas ao Poder Judiciário foi de 9,6% nos últimos três anos – contra um crescimento de 12% das sentenças prolatadas. No mesmo período, a dinâmica do crescimento nos Juizados Especiais foi 14%. Esses números resultam numa taxa geral de congestionamento do Judiciário, considerando-se todas as instâncias de todos ramos da Justiça, de 69% em 2006, contra 59,26% em 2003, o que implica em que de cada 10 processos nas prateleiras do Judiciário, apenas três são julgados no ano.

Destaque-se os números relativos aos Juizados Especiais, que se tornaram protagonistas da juridicização dos conflitos surgidos aos borbotões entre o capital que investiu em setores supostamente regulamentados – como aqueles de serviços prestados por concessionárias – e os cidadãos que recebem o status de consumidores, titulares de interesses difusos e coletivos e sobre os quais Roger Perrot afirmou “o consumidor é tudo e não é nada.” (apud CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 26). Em razão da competência ratione materiae, esta Justiça termina por ser a foz em que deságuam as torrentes das lides entre produtores e prestadores de serviços e seus consumidores.

Esse crescimento diferenciado da litigiosidade que tem lugar nos Juizados Especiais está diretamente ligado ao litigante organizacional, classificado também por Galanter como litigante habitual. Nega-se validade ao entendimento de que a inflação de ações nascentes nos Juizados Especiais tenha origem em uma demanda reprimida por cidadania que encontrou espaço aberto para seu exercício após a abertura política; igualmente incredible dictu é o argumento de que os departamentos de reclamação

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consumerista em que se converteu a Justiça, nos Juizados Especiais, representem a materialização de um maior acesso à justiça.

Ao contrário, invocando o paralelismo ou simetria de gênese, é correto afirmar que aquele desmonte estatal imposto por organismos multilaterais referido por Stiglitz – cujos subprodutos têm sido tratados pelo filantropo-capitalismo como uma declaração de reconhecimento da incapacidade estatal de fazê-lo – propiciou o surgimento de deformidades no campo socioeconômico e no campo jurídico-político que têm ensejado o exercício do capitalismo irresponsável. O canal constituído pelos Juizados Especiais mostrou-se mais acessível, é vero, o que impeliu muitos cidadãos a reclamarem judicialmente contra a lesão a seus direitos, mas a explosão da litigiosidade está vinculada à omissão do Estado, no exercício do seu poder por qualquer de suas funções, na regulamentação de certas atividades.

Exempli gratia, em praticamente todos os Estados da Federação o topo do ranking de reclamações registradas nos órgãos de orientação e defesa do consumidor pertence a empresas concessionárias de serviços públicos, tais como concessionárias de serviços de telecomunicações, de fornecimento de energia e também instituições financeiras, considerando-se que instituições bancárias também são consideradas como concessionárias.

Refletindo essa contumácia de avalanche de condutas lesivas aos interesses jurídicos de expressiva parcela da população, também nos registros de alguns Tribunais o topo da lista dos fornecedores de produtos e serviços pertence àquelas empresas concessionárias. No site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro é possível conhecer os fornecedores de produtos e serviços mais ajuizados desde 1996[17].

Essa coincidência tem origem na ausência gritante de regulação e fiscalização por parte do rol de agências reguladoras federais, que constituem um modelo regulatório concebido, ao que parece, para dar aparências de regulação e controle de atividades tão relevantes economicamente. Não é por acaso que muitas das empresas que lideram o ranking dos Juizados Especiais ocupem posição símile nas listas das agências reguladoras.

Há um nivelamento ideológico das funções estatais cuja motivação é a concessão de espaços desregulamentados para a atuação do capital. Associados no que parece ser objetivo comum, capital e Estado promovem verdadeiro ataque aos direitos do cidadão, com efeitos material e processualmente percebidos nos números acima.

4 CONCLUSÃO

Do paralelismo à analogia, os dois fenômenos tratados acima guardam semelhanças cuja gênese pode ser identificada nas ranhuras que dão ao capitalismo a feição que ele tem. Há paralelismo na origem dos fenômenos quando vemos, nos efeitos da hiperlitigiosidade que debilita quantitativa e qualitativamente o Poder Judiciário, as

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mesmas causas que ensejam o exercício do capitalismo consciencioso e sustentável por meio do filantropo-capitalismo.

Tratando das mudanças econômicas a que o mundo assiste há duas décadas, Joseph Stiglitz diz que os responsáveis pelos erros do passado continuam a repetir os mantras relativos à estabilização, privatização e liberalização (2002, p. 233). Ao fazê-lo, induz-nos a lembrar: um dos efeitos deste receituário neoliberal, nas sociedades ditas em desenvolvimento, foi o que se chamou acima de judicialização ou juridicização das questões sociopolíticas.

Esquecendo-se de que a “ideologia predominante do livre mercado obscurece o pensamento claro sobre a melhor maneira de tratar os males de uma economia” (STIGLITZ, 2002, p. 242), o Brasil aplicou em sua Administração o receituário dito neoliberal e o resultado pode ser observado, num corte analítico bastante modesto, primeiro nas relações de poder que emergiram dessas mudanças no que diz respeito, verbi gratia, às relações jurídicas de perfil consumerista, e depois nos efeitos sociais daquela liberalização, com ênfase nos privilégios do capital especulativo-financeiro.

Efeitos colaterais do minimalismo estatal imposto por organismos multilaterais, e sem qualquer discussão acatado pelas autoridades brasileiras, podem ser citados abundantemente. Considere-se, exemplificativamente a estatística da litigiosidade acima demonstrada, que deve ser entendida como reflexo de uma dupla inoperância do Estado: (i) sua função legiferante, exatamente como sua função administradora, omite-se e atende ao apelo do capital por uma tripla liberdade: laissez-faire, laissez-aller e laissez-passer; (ii) refletindo aquela submissão administrativa e ecoando afinidades ideológicas, o Poder Judiciário se porta permissivamente e se debruça sobre a efetividade do processo, repetindo a tendência isolacionista do Direito, a ilha das ciências sociais. Os números acima apresentados são de uma triste eloqüência, mas ainda mais desesperançoso é o conformismo percebido nos discursos oficiais ante o quadro aterrador.

Porém, é desse quadro caótico, absolutamente atacável sob o ponto de vista dos Direitos e Garantias Fundamentais, que se apropria o Poder Judiciário para elaborar um discurso que enaltece a forma e os esforços para garantir a efetividade dos postulados normativos processuais. O Estado que se omite na regulação econômica por meio de suas funções Legislativa e Executiva, apropria-se do caos surgido na esteira de sua inoperância e emite discursos fundados no foco na eficiência e no direito fundamental à tutela jurisidicional efetiva e, seduzindo pela autoridade, convence os jurisdicionados de uma anormalidade naturalizada, pois os esforços vêm sendo feitos e exibidos para debelar os males. Enquanto o discurso ecoa no vazio das expectativas, a realidade se impõe e se traduz nos números farsescos e na justificativa para o constante crescimento da máquina pública. Trata-se de um exemplo apurado da atuação do poder simbólico que, por meio da ação pedagógica, naturaliza uma idéia, chamada por Bourdieu de arbitrário cultural, e obtém da massa de administrados senão o conformismo lógico, uma passividade que vem sendo mantida por meio daquele discurso de autoridade refletido, também, nas condenações judiciais irrisórias que, fingindo punir litigantes organizacionais cujos balanços provisionam despesas processuais, são depositados como compensação nos bolsos dos litigantes eventuais.

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Justamente aqui as paralelas se tocam e a analogia se torna admissível entre este movimento empreendido pelo Estado judicial inoperante, mas vaidoso, e aquele elaborado profissionalmente pelo capitalismo sequioso por lucro, mas autodenominado responsável. O modelo capitalista humanística e mercadologicamente funcional, ao qual se chama sustentável, responsável ou consciencioso, é aquele cuja argumentação sedutora profere o discurso segundo o qual – para além de ocupar-se dos reflexos de sua operacionalização em escala global – ele está apto a identificar, em escala local, as causas próximas do dano e do risco social, e também a atuar de modo a erradicar as práticas que os estimulam.

A dúvida que se impõe, lastreada na historicidade do capitalismo, traduz a descrença na capacidade, destes capitalistas conscienciosos, de promover um encantamento sistêmico indutor de mudanças filosóficas que constituem o próprio ser do capitalismo. O risco que eclode do balanço histórico das realizações capitalistas sugere que estamos diante de um discurso destinado a promover autêntica violência simbólica: o mundo range os dentes sob a opressão da desigualdade enquanto o capitalismo responsável segue multiplicando seus ganhos sob o discurso da responsabilidade que impõe uma ordem gnoseológica geradora de um conformismo lógico, conveniente e enganoso. E para além disso, já está em curso a mercantilização das promessas e métodos de identificação e tratamento das condições degradantes a que foi lançado o ser humano no movimento centrífugo implementado pelo capitalismo globalizado. O know-how de tratamento dos efeitos colaterais do exercício irresponsável do poder econômico foi transformado em commodity.

Esses dois movimentos – um eminentemente privado, o filantropo-capitalismo e outro estatal-judiciário, o foco na eficiência do Poder Judicial – se desenvolvem sob a mesma superfície, criada que tem sido pelo exercício desregulamentado e irresponsável do direito à livre iniciativa. Num caso, o próprio agente causador desenvolve intrinsecamente uma metodologia de empreendedorismo social que visa atenuar – esse é o verbo – os efeitos de seu afoito protagonismo. Noutro, o Estado, vítima direta das imposições do capital, que o exige minimalista, e vítima indireta da degradação sociocultural e humanística que a dissolução dos valores causa no tecido social, se omite ao não exercer eficazmente seu mister ontológico. Permitindo aquele exercício desregulamentado e irresponsável, a sociedade arqueia ante contumazes ilicitudes organizacionais e, sem alternativa, recorre ao Poder Judiciário desencadeando a referida hiperlitigiosidade. Lá, esse efeito perverso é comemorado e permite calibrar o discurso sobre foco na eficiência, que nunca se realiza, nem no aspecto processual e nem no aspecto material.

Assim, erigem discursos formatados para atingir violentamente a psique de seus destinatários quase sempre já sem a capacidade de criar seu próprio elenco de significados. A filantropia corporativa sonega a origem dos males que pretende combater; o Poder Judiciário enaltece sua suposta eficiência e escamoteia sua inapetência para também olhar para as causas da hiperlitigiosidade. Em ambos os casos, facilmente se identifica o esforço quase metafísico para a promoção do conformismo lógico que silencia as críticas e exige a nução moral. O Poder real se vale, então, do poder simbólico e o verbo reconstrói a realidade. O poder econômico, no caso, constrói um dado e o transforma pelo discurso. E a ele faz coro o Estado por meio da inoperância de seus poderes.

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É correto considerar que a superação parcial daquelas deficiências listadas ao se tratar do Poder Judiciário poderia se dar pela ampliação do arco teleológico daquela função estatal para alcançar a efetividade material a ser promovida difusa e indiretamente mesmo fazendo uso de ações individuais, o que se daria por meio da imposição de sanções desestimuladoras dos atos lesivos dos direitos do cidadão. Igualmente correto pensar, também que se Estados e capitalistas responsáveis conjugarem políticas públicas e corporativas visando ao tratamento, não apenas dos efeitos, mas das causas que alimentam o filantropo-capitalismo, uma solução poderia estar sendo ensaiada. Ler Spinosa (1994, p. 26) pode revestir de esperança a necessidade:

Um Estado cuja salvação depende da lealdade de algumas pessoas e cujos negócios, para serem bem dirigidos, exigem que aqueles que os conduzem queiram agir lealmente, não terá qualquer estabilidade. Para poder subsistir será necessário ordenar as coisas de tal modo que os administradores do Estado, quer guiados pela razão ou movidos por uma paixão, não possam ser levados a agir de maneira desleal ou contrária ao interesse geral. Pouco importa, à segurança do Estado, o motivo interior que tenham os homens para administrar os negócios, e se de fato os administrarem bem. Com efeito, a liberdade da alma, quer dizer, a coragem, é virtude privada; a virtude necessária ao Estado é a segurança.

Do Estado espera-se, então, a instituição coercitiva de condutas – suas e dos ditos administrados, inclusive organizacionais – que induzam à elisão das práticas que hoje recebem tratamento tensoativo tanto do Estado quanto dos capitalistas responsáveis. O discurso simbolicamente violador de consciências deve dar lugar a um que incorpore reflexões e ações sobre as causas, e não apenas sobre os efeitos de comportamentos nocivos à cidadania e, portanto, situados no campo das inconstitucionalidades que erodem a legitimação do Poder Político.

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[1] “A primeira e fundamental questão é se a empresa existe para atender aos seus acionistas ou para atender a seus stakeholders, um grupo de interesses mais amplo composto de empregados, fornecedores, clientes, cidadãos etc. A palavra stakeholder ainda não tem tradução para o português.” (LODI, 2000, p. 11). A expressão engloba todas as pessoas e instituições que recebam, direta ou indiretamente, os impactos das atividades necessárias ao densenvolvimento do negócio. O stakeholder está em posição distinta do shareholder. A terminologia empregada será a própria do ambiente corporativo, pois é por ela que se operam as reflexões e ações do capitalismo.

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[2] Shareholder é o titular de participação societária, o acionista investidor que tem direitos em face da investida, a sociedade empresária.

[3] Dicionário Eletrônico Houaiss. Editora Objetiva, 2002.

[4] Interessante o relato de Gilbert Dupas (2006, p. 162) sobre esse mercado emergente: “Um bom exemplo de inclusão dos miseráveis [...] é a maneira como se está incorporando [...] os miseráveis de regiões africanas, ao mercado de telefonia celular. [...] Bekowe Skhakhane, de 36 anos, foi convencida pela propaganda que precisa ter a possibilidade de falar com seu marido, que trabalha numa siderúrgica em Johanesburgo, utilizando um telefone celular. [...] Skhakhane, muito pobre, gasta 1,96 dólar por mês para comprar cinco minutos de crédito. [...] Como a grande maioria dos africanos vive com menos de dois dólares por dia, as operadoras só conseguem vender quotas irrisórias, convencendo o miserável local que ele também tem direito ao progresso, a ser feliz. [...] As empresas, que vendem o progresso e felicidade para os pobres, anunciam boas razões mercadológicas para seu produto: como eles não têm refrigerador, conservam os peixes vivos nos rios, amarrados a um barbante, e os levam quando recebem uma chamada no celular. [...] Mas como carregar as baterias, sem eletricidade? Carregadores movidos a pedal de bicicleta estão sendo desenvolvidos; o que, segundo o The New York Times, exigiria uma bicicleta, propriedade rara na África rural. A solução foi utilizar baterias de automóvel carregadas em postos de gasolina por indivíduos que se locomovem de ônibus e que nunca poderão ter um carro; mas cobram 0,80 centavos de dólar para carregar um celular. Por essas e outras, o capitalismo global mostra mais uma vez sua imensa capacidade de adaptação.”

[5] Vocábulo da língua inglesa para expressar a atividade conhecida como gestão de marca de serviço ou produto. Trata-se de atividade extremamente valorizada no meio empresarial, pois a marca – desde sempre, porém com maior intensidade após o ingresso no que se denomina era da informação – representa um dos mais importantes ativos de uma empresa. Segundo alguns teóricos da administração, é o mais importantes dos ativos intangíveis.

[6] Explícita referência à criativa obra de Milan Kundera, A insustentável leveza do Ser, no qual faz interessante releitura do pensamento desse filósofo pré-socrático considerando o universo social e político da cidade de Praga nos fins dos anos 1960.

[7] IPO – Sigla composta pelas iniciais de initial public offering, procedimento financeiro-societário de capitalização de uma sociedade empresarial por meio da abertura de seu capital no mercado mobiliário. Os humores do chamado mercado afetam diretamente, portanto, o desempenho econômico-financeiro dessas empresas.

[8] O.E. Williamson entende o conceito um sistema de valores e padrão de comportamento: “A governança corporativa trata de justiça, da transparência e da responsabilidade das empresas no trato de questões que envolvem interesses do negócio e da sociedade como um todo.” . A. Shleifer e R.W.Vishny vêem-na como sistema de direitos e relações: “[...] é o campo da administração que trata do conjuinto de relações entre a direção das empresas, seus conselhos de administração, seus acionistas e outras partes interessadas. Ela estabelece os caminhos pelos quais os supridores de capital das corporações são assegurados do retorno de seus investimentos.” (Apud ANDRADE e ROSSETI, 2004, p. 24).

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[9] Objetivo intrínseco à existência dessa consciência corporativa é dar efetividade, nas atividades organizacionais, a três valores que devem pautar os atos da administração e promover a transparência da gestão: (i) Fairness, que se traduz como senso de justiça e de eqüidade para com os acionistas minoritário contra transgressões dos majoritários e dos gestores; (ii) Disclosure, referida como transparência a ser obtida por meio da confecção tempestiva de relatórios confiáveis contendo dados financeiros, contábeis e outros; (iii) Accountability, ou responsabilidade pela prestação de contas por parte dos tomadores de decisão e (iv) Compliance, que o sentido de obediência e cumprimento da leis em vigor. A utilização das expressões no idioma inglês pode ser explicada pelo fato de que, depois de concebidos em países anglo-saxões, esses conceitos têm sido aplicados no ambiente corporativo no idioma original.

[10] Ladislau Dowbor relata eloqüente experiência a respeito dessa financeirização: “Recentemente um canal de TV pediu-me uma entrevista sobre como eu achava que as bolsas abririam depois de um fim de semana prolongado. Expliquei à entrevistadora que aplicações financeiras não eram a minha área. Reagiu surpresa: ‘Mas o senhor não é economista? Então o senhor entende de quê?’ É muito significativo um grande órgão de imprensa achar que economia se resume à análise de aplicações financeiras ou de mecanismos especulativos. O próprio termo ‘mercado’ hoje adquiriu esta conotação.” (2006, p. 12)

[11] Paulo Bonavides enfatiza sua opinião acerca do obsoletismo político-ideologico do modelo: “ Quando cuidamos dever abandona-lo no museu da Teoria do Estado queremos, com isso, evitar apenas que seja ele, em nossos dias, a contradição dos direitos sociais, a cuja concretização se opõe, de certo modo, como tecnica dificultosa e obstrucionista, autentico tropeco, de que inteligentemente se poderiam socorrer os conservadores mais perspicazes e renitentes da burguesia, aqueles que ainda supõem possivel tolher e retardar o progresso das instituições no rumo da social-democracia.” (1996, p. 64)

[12] Entrevista publicada em RT Informa Ed. Especial n. 52 – novembro 2007 a abril 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 5.

[13] Jornal Valor Econômico. São Paulo, 12 de maio de 2005, p. E1.

[14] Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 7 de maio de 2005, p. A6.

[15] Jornal Valor Econômico. São Paulo, 12 de maio de 2005, p. A10.

[16] Os dados, que se referem ao ano de 2006, podem ser encontrados no site www.cnj.jus.br, especificamente no endereço http://serpensp2.cnj.gov.br/justica_numeros_4ed/RELATORIO_JN_2006.pdf. O relatório é fruto do trabalho da Comissão de Estatística e Gestão Estratégica do Conselho Nacional de Justiça, presidida pelo Conselheiro Mairan Maia.

[17] O endereço específico é: www.tj.rj.gov.br. Acessar sucessivamente os ícones “Institucional”, “Juizados Especiais” e “Empresas mais acionadas”.

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