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    A crise social na Atenas de Slon e o estabelecimento da justia baseada no governoda lei

    Autor(es): Carvalho, S.; Neto, F. J.

    Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra

    URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/35066

    DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/2183-1718_66_4

    Accessed : 21-Feb-2017 12:14:46

    digitalis.uc.pt

  • Vol. LXVI2014

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

  • Humanitas 66 (2014) 5985

    a CrIsE soCIaL Na atENas DE sLoN E o EstaBELECImENto Da justIa BasEaDa No govErNo Da LEI

    soCIaL CrIsIs IN atHENs of soLoN aND tHE EstaBLIsHmENt of justICE BasED oN tHE Law

    s. CarvaLHo E f. j. NEtoCentro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra

    [email protected] e [email protected]

    ResumoA primeira parte deste artigo remete para a caraterizao da crise

    social que Slon buscou remediar quando arconte em 594/3, onde so feitas consideraes tericas sobre o modo como Aristteles e Plutarco, as principais fontes literrias, explicam os acontecimentos deste perodo. A partir do dilogo com as fontes e com a bibliografia especializada so explanadas algumas hipteses de trabalho sobre o que poderia estar implicado na crise a que o legislador ateniense teve que fazer frente. Na segunda parte, a ateno voltar se para o sentido geral da atuao poltica de Slon atravs dos seus prprios poemas, especialmente o fr. 36W, onde Slon mostra indcios de uma politizao das relaes econmicas entre as classes sociais, na medida em que traz, de certa maneira, a resoluo dos conflitos entre os indivduos e os grupos sociais para o mbito da cidade estado ateniense, promovendo a noo de lei escrita que deve ser cumprida e assegurada pelo coletivo como o remdio para escapar aos interesses particulares ou de classe que tm levado a stasis, ou seja, ao conflito social. O artigo, em sua concluso, destaca que o estudo destes acontecimentos relevante para a reflexo moderna sobre a relao entre fora, violncia e direito.

    Palavras chave: Aristteles; dvida; governo da lei; lei escrita; justia; Plutarco; Slon; stasis

    http://dx.doi.org/10.14195/21831718_66_4

  • S. Carvalho e F. J. Neto60

    AbstractThe first part of the article discusses the social crisis in Athens faced by Solon

    during his archonship in 594/3 BC. After focusing on theoretical considerations of Aristotle and Plutarchs accounts of the crisis, we aim to review different approaches of modern scholarship to the social and economic situation in Athens. In the second part we argue to what extent Solons poems, particularly fr. 36W, show a political response to economic relationships between social groups that somehow takes the social conflict between individuals and social groups into the realm of the polis. The written law intends to mediate the individual or class interests that, ultimately, have led to stasis, or social conflict. In conclusion we draw attention to the importance of these events to the modern debate on the relation between power, violence and law.

    Key Words: Aristotle; debt; rule of law; written law; justice; Plutarch; Solon; stasis.

    De acordo com a narrativa, feita por Aristteles e Plutarco, do conflito entre as classes sociais no incio do sculo VI1, Slon foi designado como mediador desta crise e a tradio atribui lhe um conjunto de leis escritas que teria como uma das funes principais regular os antagonismos sociais a partir da emergente cidade estado. Se as medidas de cancelamento das dvidas e de proibio da escravido por dvidas encontram paralelos no mundo mesopotmico e hebreu, a formao de instituies de participao poltica de setores de fora das classes dominantes, bem como a prpria noo de leis escritas comuns a todas as classes e indivduos que deveriam ser asseguradas por um corpo cvico e no apenas pela autoridade do rei, surgem como um trao distintivo da tradio de legisladores da Grcia arcaica, em especial Slon2.

    Outro dos traos distintivos de Slon, que enriquece muitssimo a discusso sobre este arconte de Atenas, como alis comprova a produtiva bibliografia que as duas primeiras dcadas do sculo XXI lhe reserva3, o fato de possuirmos o seu testemunho. Nos poemas em que se debrua sobre a situao da plis ateniense, Slon acentua o clima de instabilidade social, tece consideraes de carter tico sobre como certas faes da elite, acusadas de gananciosas, tm sujeitado escravido atenienses por conta de dvida. Todavia, a sua poesia no meramente contemplativa,

    1 As datas de pocas histricas referidas neste artigo so anteriores a Cristo. 2 Sobre a prtica de cancelamento de dvidas por parte dos reis da Babilnia antiga,

    cf. Westbrook (1995). Para uma sugestiva comparao da prtica dos legisladores na antiga Mesopotmia e na Grcia arcaica vide Harris (2006) e Raaflaub (2009).

    3 Sobre a impressionante bibliografia acerca de Slon nas ltimas duas dcadas, alm das referncias citadas ao longo deste artigo, vide Gonzlez de Toba (2008).

  • Humanitas 66 (2014) 5985

    A crise social na Atenas de Slon e o estabelecimento da justia baseada no governo da Lei 61

    encontramos nela tambm, sobretudo no fr. 36W, a justificao da sua prpria ao de mediador da crise na condio de arconte e os valores que a nortearam. Do ponto de vista do pensamento poltico grego, as medidas feitas por Slon, decididas sob o impacto das reivindicaes dos grupos sociais em disputa, resultaram na emergncia de critrios que participariam da configurao da noo grega de governo da lei do perodo clssico.

    ISlonecrisesocialnaticaarcaica

    Os contornos da crise econmica e social com que Slon teve que lidar quando foi nomeado arconte em 594/3 so difceis de delimitar. As fontes histricas disponveis para o investigador so significativamente problemticas: entre as fontes literrias, as evidncias so ou fragmentrias, como o prprio conjunto de poemas escrito por Slon e a poesia grega arcaica em geral; ou tardias, como os dados obtidos nas duas principais referncias sobre as aes polticas de Slon: o opsculo a Constituio dos Atenienses atribudo a Aristteles mas talvez escrito por algum dos seus pupilos4, que data entre 329 a 322, bem como a obra A Vida de Slon, do bigrafo grego Plutarco, que escreve no sculo I d.C., j em perodo romano. Tambm so posteriores aos acontecimentos as informaes acerca das leis de Slon, sobre as quais os oradores atenienses do quarto sculo constituem uma fonte indispensvel5. Para alm do hiato temporal que separa Slon dos autores mencionados, preciso ter em mente, no entanto, que existiram as fontes das nossas fontes, isto , um conjunto de textos e autores a que o escritor aristotlico e Plutarco tiveram acesso e que no chegaram at ns de forma substancial, ao contrrio dos poemas e das leis atribudas a Slon que foram conservadas6.

    4 A autoria deste texto ainda objeto de divergncia entre os especialistas. A autoria de Aristteles posta em dvida por Rhodes (1985: 61 3), mas aceite por M. Chambers (cf. o afterword feito por Rhodes do stimo captulo da coletnea de ensaios De Ste Croix 2004). Ver, ainda, a discusso metodolgica sobre a autenticidade da autoria dos textos dos autores clssicos em Keaney (1992: 12 14), que no v razes suficientes para que se rejeite a autoria da Constituio dos Atenienses a Aristteles. De todo modo, e mais significativamente para o escopo deste trabalho, consenso entre os especialistas que a obra em questo fruto do mbito intelectual do Liceu do Estagirita.

    5 Sobre os oradores atenienses como fonte de informao acerca das leis atribudas a Slon, vide Leo (2001: 103 149).

    6 Para um levantamento das hipteses sobre as fontes usadas na primeira parte da Constituio dos Atenienses (at o captulo 41) vide Rhodes (1985: 15 20), que conclui com a sua prpria viso das fontes (idem: 28 9). Sobre as fontes da Vida de Slon de Plutarco,

  • S. Carvalho e F. J. Neto62

    As informaes mais importantes sobre a crise econmica e social com que Slon teve que lidar como arconte, segundo a Constituio dos Atenienses e A Vida de Slon, podem ser assim organizadas7:

    8 9 10Assunto [Aristteles] PlutarcoA) Conflito entre

    pobres e ricos

    Aconteceu andarem em conflito

    () os nobres com a gente do povo durante muito tempo (2. 1)

    Os pobres eram servos dos ricos

    (8 ) eles mesmos, os seus filhos e as suas

    mulheres (2. 2)

    Uma vez que o desequilbrio () entre os pobres ( ) e os ricos ( ) havia atingido, por assim dizer, o clmax, a cidade

    () encontrava se num estado verdadeiramente crtico (13. 3)

    B) Terminologia

    para os pobres

    Tinham [os pobres] a designao de

    platas e hectmoros9 (2. 2)

    Pelo que eram [os pobres] chamados

    hectmoros e tetas (13. 4).C) Relao de

    trabalho entre o

    pobre e o rico

    Esta era a renda pela qual [os

    hectmoros] trabalhavam os campos dos

    ricos (2. 2)

    que ou cultivavam a terra e entregavam

    a estes [os ricos] a sexta parte do produto

    obtido pelo que eram chamados

    hectmoros e tetas ou ento contraam

    dvidas (), dando como garantia a prpria liberdade ( )10, e acabavam por ficar sujeitos escravido

    pelos credores ( ) (13. 4)

    obra que muito devedora do prprio Aristteles, ver a discusso do modo como Plutarco as usa em Leo (2012: 22 42), como tambm em De Blois (2006).

    7 As tradues portuguesas so de Leo (2011) para a Constituio dos Atenienses e Leo (2012) para a Vida de Slon. As palavras sublinhadas so destaques nossos de modo a facilitar a correspondncia destes termos com as palavras chave gregas que colocamos entre parnteses. As edies gregas utilizadas foram as estabelecidas por Ziegler (1969) para Plutarco e Chambers (1986) para Aristteles.

    8 O verbo douleuo poderia ser traduzido tambm por ser escravo de ou sujeitarse a, embora a ltima opo seja prefervel para que o leitor no pense que todos os pobres eram escravos dos ricos, ainda que isso pudesse acontecer a uma parte destes, como nos dizem as fontes sobre as consequncias do endividamento. Para mais informao e referncia bibliogrfica sobre este termo vide Ferreira (2004: 40, n. 5).

    9 Sobre este termo, como tambm tetas (thtes) na coluna ao lado, ver a discusso que segue tabela.

    10 A garantia que balizava a dvida era, ento, epi tois somasin, isto, , sobre o prprio corpo do devedor (cf. o uso da mesma expresso em Ath. Pol. 9. 1, como tambm em 6. 1 conforme mostra G) da tabela).

  • Humanitas 66 (2014) 5985

    A crise social na Atenas de Slon e o estabelecimento da justia baseada no governo da Lei 63

    D) Estrutura agrria

    / Concentrao das

    terras

    A terra toda encontrava se nas mos de

    um punhado de pessoas ( ' ) (2. 2)

    E) A questo da

    dvida e o que

    ocorria com os

    devedores

    E se faltassem [hectmoros e platas

    ou apenas hectmoros?] entrega das

    rendas, tanto eles como os filhos ficavam

    sujeitos servido ()11. Para mais, os emprstimos ( ) eram todos feitos sob hipoteca da prpria

    liberdade, at ao tempo de Slon (2. 2)

    Na verdade, todo o povo ( ) estava endividado () para com os ricos ( ) () Uns [dentre o povo] levavam ali mesmo existncia de servido (), outros eram vendidos para o estrangeiro. Muitos

    chegavam mesmo a ser forados a traficar os

    prprios filhos nenhuma lei o proibia e a

    fugir da cidade, tal a dureza dos credores ( ) (13. 4 5)12.

    F) Dos

    descontentamentos

    dos pobres e das

    queixas dos ricos

    escolha de Slon

    como mediador do

    conflito

    Uma vez que a constituio tinha esta

    estrutura e a maioria das pessoas era escrava

    de um pequeno nmero ( ), o povo sublevouse contra os poderosos ( ). A luta foi acesa e as duas faces mantiveram se frente a frente

    durante muito tempo, at que, de comum

    acordo (), escolheram Slon como rbitro () e arconte, confiando lhe a direo da cidade ( ) (5. 1 2); Havia tambm outros focos de

    descontentamento [dentre os pobres], pois

    acontecia que eles, por assim dizer, no

    tomavam parte em coisa alguma (2. 3);

    De facto, o povo pensava que ele [Slon]

    iria proceder a uma nova distribuio

    de todos os bens ( ' )13, mas os nobres esperavam regressar antiga ordem

    ou ento que poucas alteraes fossem

    introduzidas (11. 2)

    A maioria [dentre o povo endividado],

    contudo, e os mais possantes reuniram se

    e exortaram se mutuamente no sentido

    de no continuarem a suportar aquela

    situao, mas a escolherem para chefe

    um homem de confiana que libertasse os

    devedores retardatrios ( ), fizesse uma nova repartio da terra ( ) e alterasse completamente o sistema poltico ( ) (13. 6);Fnias de Lesbos relata que foi o

    prprio Slon quem, valendo se do

    dolo no confronto com ambas as partes,

    no interesse da salvao da cidade,

    prometeu em segredo aos que estavam

    em dificuldades uma redistribuio da

    terra ( ), e aos proprietrios a confirmao dos ttulos ( ) (14. 2)

    11 12 13

    11 Sujeitos servido aqui a traduo do adjectivo agogimos, cujo significado neste contexto bem indicado pelo dicionrio gregofrancs de A. Bailly no seu verbete sobre esta palavra: Athenes, avant les rformes de Solon, qui peut tre apprhend au corps, en parlant dun dbiteur insolvable que son crancier emmenait pour lemployer comme esclave ou le vendre.

    12 Cf. C) supra.13 A expresso pant anadasta poiesein sugere uma nova distribuio sobretudo da

    terra, como demonstra o captulo seguinte (12.3) da explicao do autor aristotlico, que

  • S. Carvalho e F. J. Neto64

    G) A ao poltica

    imediata de Slon

    como arconte

    Depois de se haver tornado senhor da

    situao, Slon libertou o povo () tanto no presente como para o futuro,

    ao proibir os emprstimos sob garantia

    pessoal ([] [] ). Alm disso, promulgou leis e procedeu a um cancelamento das

    dvidas, fossem privadas ou pblicas

    ( [] , []), medida que os Atenienses designam por seisachtheia, porque

    vieram a desfazer se de um fardo (6. 1)

    Esta foi, na verdade, a sua primeira

    medida: determinou que as dvidas

    () existentes fossem abolidas e que, de futuro, ningum pudesse

    emprestar dinheiro () sob cauo pessoal ( ) (15. 2)

    A leitura destas evidncias escritas sugere, primeira vista, uma situao de grave desajuste social: conflitos recorrentes entre ricos e pobres, como se apresenta em A), B) e C) na tabela, concentrao das terras nas mos de poucas pessoas D), atenienses endividados de tal modo que podiam ser convertidos em escravos e mesmo vendidos ao estrangeiro C) e E).

    Para efeito da reconstruo histrica da crise econmica e social que Slon enfrentou no incio do sculo VI, a questo decisiva que surge em que medida a interpretao de Aristteles e Plutarco oferece espao a acontecimentos genunos do perodo de Slon. Em outras palavras, a leitura do Estagirita, por exemplo, pode oferecer evidncia para o conhecimento do perodo arcaico grego ou antes uma explicao anacrnica derivada do ambiente intelectual do sculo IV?

    O cenrio poltico no qual viveu Aristteles caraterizado pelo fato de a imagem de Slon ter sido utilizada, pelos grupos polticos atenienses principalmente a partir do golpe oligrquico de 411, como um pretexto para formular suas prprias vises polticas e suas imagens da constituio ancestral (patrios politeia) que teria em Slon um momento importante, ou mesmo fundador14. Assim, o antigo arconte ateniense poderia ser o pai da democracia, o amigo do povo, o legislador justo (cf. e.g. Isoc. 7. 16;

    usa o fr. 34 W de Slon como fonte de informao ou como citao de confirmao para uma informao obtida de alguma fonte tica.

    14 Sobre a formao do conceito de patrios politeia no seio da disputa entre os grupos polticos do ltimo quarto do sculo V, os democratas radicais, os moderados e os oligarcas extremistas, e o modo como este debate sucinta o interesse, a partir de opinies conflituantes, sobre a figura de Slon, vide Leo (2001: 43 72).

  • Humanitas 66 (2014) 5985

    A crise social na Atenas de Slon e o estabelecimento da justia baseada no governo da Lei 65

    Dem. 18. 6; Aeschin. 3. 257); ou um conservador que refreou os nimos das massas garantindo os privilgios aristocratas e defendendo a oligarquia; ou ainda, como quer Aristteles, principalmente na Poltica, o promotor de uma constituio mista que reunia elementos dos trs regimes: aristocracia, oligarquia e democracia (cf. 1273b21 1274a22).

    De modo mais especfico para os objetivos deste trabalho, alguns helenistas tm acusado a viso de Aristteles de anacrnica e, por similaridade, a de Plutarco, substancialmente no que tange a dois aspectos interligados que dizem respeito ao cerne da questo da crise social que Slon buscou retificar. O primeiro refere se ao assunto de quais eram as classes sociais diretamente envolvidas na crise, como mostram A), B) e C); o segundo, relativamente aos descontentamentos e reivindicaes dos pobres baseados no cancelamento das dvidas e na redistribuio das terras: F) e G).

    Rosivach, por exemplo, sustenta que o autor da Constituio dos Atenienses identificou equivocadamente os grupos sociais dos quais Slon buscou ser um ponto de equilbrio. Segundo este comentador, Aristteles leu o conflito como uma luta entre ricos (gnorimoi) e pobres (demos), enquanto o poeta arcaico deveria referir se velha aristocracia baseada no nascimento (esthloi) em conflito com aqueles de fora do crculo desta aristocracia (kakoi), em especial, Rosivach acredita, os setores enriquecidos mas que no possuam o status social baseado no nascimento como os esthloi. Esta confuso feita por Aristteles, que leu o conflito intra elite do perodo arcaico como um conflito entre ricos e pobres, levou, consoante Rosivach, a outro equvoco: a ideia de que Slon cogitou e depois rejeitou a diviso das terras a favor dos pobres no fr. 34W15. Esta reivindicao anacrnica, segundo o estudioso, bem como o cancelamento das dvidas, que teriam sido duas reivindicaes articuladas apenas no sculo IV16.

    15 A edio grega dos versos de Slon utilizada no decorrer deste artigo a estabelecida por Martin West e impressa em Leo (2001). As tradues para portugus dos poemas de Slon neste artigo so da autoria de Leo (2001).

    16 Rosivach (1992: 154). Moss (1979) enfatiza o mesmo ponto: o cancelamento das dvidas e a redistribuio das terras seriam o programa dos revolucionrios do sculo IV. A impresso que fica deste texto de Moss que Aristteles, ou o seu pupilo que trabalhou na Constituio dos Atenienses, relativamente histria ateniense, tinha duas posturas bsicas: ou insistentemente usava, conscientemente ou no, os personagens e os acontecimentos do passado como pretextos para defender suas prprias ideias, ou ento era um escritor ingnuo ou desinformado que aceitava facilmente as invenes contemporneas advindas do debate poltico e ideolgico de seu tempo, como o conselho dos quatrocentos,

  • S. Carvalho e F. J. Neto66

    H, contudo, duas premissas que sustentam a tese deste estudioso que nos parecem questionveis. Primeiro, a sua ideia de que a reivindicao por cancelamento das dvidas s poderia acontecer aps a experincia da democracia ateniense do sculo V, j que seria an ideological agenda of economic egalitarianism17. A demanda por cancelamento da dvida no precisa ser encarada como uma ideologia bem definida de igualitarismo econmico, ela pode ter existido, ainda que de forma mais embrionria do que aquilo que Aristteles relata sob influncia da democracia desenvolvida do perodo clssico. Segundo, a sua defesa de que o conflito social na Atenas de Slon entre famlias ricas (aristocratas e ricos emergentes) era a nica espcie relevante de conflito e que um movimento de massas de pobres era quite unlikely18. A teoria regionalista dos conflitos sociais usada por Rosivach, que enaltece como elemento estruturante das lutas sociais a competio entre lderes e famlias dentro da elite19, no d conta do espectro de informaes que consta nas fontes escritas, j que estas explicam a conturbada histria social da Atenas arcaica tanto atravs de disputas dentro da prpria elite protagonizadas por cls familiares ou faces (hetairoi), como tambm em termos de conflitos entre as diferentes classes sociais, onde se verificava a participao ativa da populao no pertencente elite20.

    As trs primeiras alneas, A), B) e C), referem se aos conflitos entre ricos e pobres e s relaes de trabalho nas quais os ltimos estavam

    os tribunais populares, a classificao censitria, etc. Para uma apreciao, tambm crtica, acerca deste trabalho de Moss, cf. Rhodes (2006).

    17 Rosivach (1992: 155).18 Rosivach (1992: 157).19 Para uma sntese desta teoria aplicada ao estudo da Grcia arcaica, com a

    bibliografia fundamental sobre o tema, cf. Almeida (2003: 246 51).20 Compare se a explicao sobre a tentativa de instalao da tirania pelo ateniense

    Clon, cuja data se situa possivelmente entre 636/5 a 628/7, em Herdoto (5. 71): ele [Clon] alimentou o desejo de tornar se tirano e, depois de reunir um grupo de amigos da sua idade, tentou tomar a Acrpole; e em Tucdides (1. 126. 7 8): mas quando os Atenienses se aperceberam, acudiram em massa dos campos para lhes fazer frente e, montado o acampamento, sitiaram nos. Note se tambm a narrativa de Herdoto (5. 66 73. 1) e da Constituio dos Atenienses (20 22. 1) sobre a crise poltica que culminaria nas reformas de Clstenes em 508/7, onde os autores gregos conjugam estas duas abordagens do conflito social, colocando nfase tanto na atuao de Clstenes e Isgoras e seus familiares e amigos, como tambm na resistncia e interesses do Conselho e da multido. Para uma explicao balanceada desses acontecimentos que faz justia a estes elementos realados pelas fontes, onde se incluem as tradues usadas nesta nota, vide Ferreira; Leo (2010: 9 29; 119 145).

  • Humanitas 66 (2014) 5985

    A crise social na Atenas de Slon e o estabelecimento da justia baseada no governo da Lei 67

    subordinados aos primeiros. Aristteles e Plutarco usam expresses e vocabulrios modernizantes para falar desta relao entre pobres e ricos, credores e devedores: A terra toda encontrava se nas mos de um punhado de pessoas ( ' ) (Ath. Pol. 2. 2); de facto, o povo pensava que ele [Slon] iria proceder a uma nova distribuio de todos os bens ( ' ) (Ath. Pol. 11. 2). Alm destas expresses, um termo em especial parece advir da experincia de transaes de emprstimo com juros mais propcias ao sculo IV do que poca de Slon. Trata se de daneizein, cuja voz ativa se refere a emprestar dinheiro a algum, enquanto que a voz passiva remete para o valor emprestado. Este verbo pode significar, ainda, o prprio credor como em Plu. Sol. 13. 4 na alnea C)21.

    Este vocabulrio, embora possivelmente mais apropriado para a realidade das pocas em que escreveram estes autores, possivelmente tem (pace Rosivach) um ncleo genuno que remonta ao tempo de Slon. Sobre esta problemtica, a comparao com a discusso sobre a autenticidade das leis atribudas a Slon feita por Scafuro revela se frutfera. Esta estudiosa defende que preciso ir alm da metodologia dicotmica de atribuio de autenticidade ou falsidade para as leis, sendo necessrio pensar em termos de uma new category [that] consists of laws that may have a Solonian kernel22, ou seja, assumindo que o ncleo do seu contedo compatvel com a plausibilidade histrica da legislao arcaica, embora possa ter sofrido modificaes provenientes do contexto histrico especfico do autor grego posterior que cita uma determinada lei atribuda a Slon.

    De forma anloga, pensamos, o raciocnio modernizador e informado pelo contexto no qual escrevem Aristteles ou Plutarco, que se reflete naturalmente na linguagem, no obstrui completamente as informaes que podemos julgar plausveis para o contexto histrico do perodo arcaico. Sendo assim, nos pargrafos que seguem discutiremos possibilidades de reconstruo deste Solonian kernel que teria caraterizado os problemas sociais e econmicos enfrentados pelo legislador ateniense.

    Na alnea C), o passo de Plutarco distingue dois tipos de dependncia dos pobres em relao aos ricos: de um lado, arrendatrios que entregavam 1/6 da produo ao dono da terra ou proprietrio da mo de obra; de

    21 Ver, tambm, as ocorrncias deste termo nas alneas E) e G). Sobre o vocbulo daneiz cf. Cohen (1992: 115).

    22 Scafuro (2006: 179).

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    outro lado, indivduos que contraam emprstimos por algum motivo. Desse modo, o raciocnio apresentado pelo bigrafo delineia o debate historiogrfico contemporneo sobre o tema: os hectmoros eram um conjunto de pessoas que seriam obrigadas a entregar parte da produo aos ricos como trabalhadores dependentes ou eram devedores individuais livres que estavam sendo levados servido por dvida23?

    Uma parte significativa dos estudiosos pensa que os hectmoros eram trabalhadores dependentes que cultivavam seja a terra dos proprietrios mais ricos ou terras pblicas recm controladas pela elite. A dvida que os hectmoros possuam e que foi objeto de ao de Slon teria sido justamente a obrigao destes trabalhadores em entregarem 1/6 da produo aos proprietrios ricos, como pensa Antony Andrewes na sua verso da crise que, segundo o recente texto de Rhodes, forma a atual ortodoxia sobre o assunto24. No entanto, como dissemos, Plutarco sugere que os dois fenmenos a dependncia e a dvida poderiam ocorrer simultaneamente, o que explicaria a gravidade e a amplitude da situao25. Nesse sentido, enquanto os hectmoros podiam ser oriundos dos tetas enquanto atenienses de extrema baixa condio que se viam obrigados a trabalhar terras alheias, seja privada ou pblica, os endividados de que falam as fontes escritas podiam ser pequenos camponeses26 empobrecidos devido a colheitas sucessivamente deficitrias que se viram obrigados a recorrer a emprstimos junto aos ricos.

    23 Como sustenta o estudo antropolgico sobre o problema da dvida em sociedades no capitalistas feito por Testart (2000), o servio prestado pelo devedor ao credor pode efetivamente amortizar a dvida e ao fim de algum tempo o agora ex devedor rompe os seus laos de dependncia. Alternativamente, o trabalho do devedor pode ser vazio de valor e no contar para o pagamento da dvida, o que resulta que o devedor pode trabalhar toda a sua vida para o credor e no conseguir ser novamente livre da relao de dependncia, gerando uma situao de fato, embora no sempre de direito, similar ao escravo. Este segundo caso, segundo nossas fontes, acontecia de modo alarmante na Grcia de Slon (cf. alneas C) e E), bem como Slon fr. 36.10 4 (na segunda parte do artigo).

    24 Andrewes (1982); Rhodes (2006: 252, n. 31).25 Os dois acontecimentos teriam origens diferentes, embora relacionadas, como

    argumentam De Ste Croix (2004: 119 127) e Valds Gua (2006). Uma leitura similar feita pelo prprio Slon no fr. 36, como mostra a segunda parte do presente artigo.

    26 H uma discusso acesa sobre a conceptualizao dos lavradores gregos dos perodos arcaico e clssico que reflete o modo como os especialistas concebem a economia antiga e, mais especificamente, a maneira como definem o grupo social e a unidade produtiva ligada ao agricultor. Para o estado da arte deste assunto cf. Gallego (2003).

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    A crise social na Atenas de Slon e o estabelecimento da justia baseada no governo da Lei 69

    Numa economia sobretudo agrria em que a presena de moedas cunhadas na tica do incio do sexto sculo no atestada, expectvel que a dvida e seus possveis juros fossem pagos em gneros alimentcios ou em prestao de trabalhos. No entanto, as pesquisas de John H. Kroll sobre o significativo uso de metal no cunhado na Grcia arcaica, principalmente prata, destinado a ser pesado a cada transao, mostram que este pode ter desempenhado um papel assinalvel no empobrecimento dos setores dos pequenos proprietrios27. Isso porque esta emergente forma dinheiro, ainda que seja sem moeda cunhada, expande a possibilidade de a elite acumular o excedente econmico s custas dos setores pobres, graas ao carter duradouro e prtico do metal enquanto acmulo de valor quando comparado aos perecveis produtos agrcolas28.

    Nesse sentido, a distino feita pelos poetas arcaicos entre a aquisio justa e injusta de riqueza29, e os seus apelos contra a emergncia de uma camada social vinculada a propriedades conquistadas atravs da arrogncia ou do desejo insacivel de ganho, podem ecoar este fenmeno. Alceu, por exemplo, diz que as posses (chremata) fazem o homem, nenhum homem pobre nobre ou ilustre (fr. 360 C)30, enquanto o corpus potico atribudo a Tegnis encontra se repleto de comentrios que lamentam a condio atual, em que os efeitos da riqueza confundem o critrio do nascimento nobre como fator de hierarquia social, dado que O patrimnio (chremata) pois o que eles honram: o nobre (esthlos) casa com a filha de um homem de baixa condio (kakos), / enquanto algum de baixa condio casa com

    27 Dentre as leis de Slon, se autnticas, algumas mencionam compensaes ou pagamentos em drachmae, por exemplo: 26, 30a, 32a, 33, 65, 81 Ruschenbusch (daqui em diante R). Note, tambm, que Slon fr. 24.1 6 W pe a riqueza em metais (prata e ouro) em lugar de destaque enquanto contedo da riqueza material de um homem.

    28 Vide, especialmente, Kroll (2008), que cita o fr. 68 R das leis de Slon enquanto evidncia de que mesmo o emprstimo a juros de metal no cunhado (bullion) foi uma possibilidade na poca de Slon. Cf. Rhodes (1985: 152 3) e Leo (2001: 381 2). Mais argumentos sobre a relao do uso de metais como forma de riqueza e sua repercusso nas medidas e leis de Slon podem ser lidos em Seaford (2004: 88 101), Rose (2012: 201 230). Kim (2002) mostra evidncias da cultura material para o uso de pequenas peas de prata no cunhada que poderiam ter sido utilizadas como forma de pagamento. Para uma leitura contraposta, que minimiza a importncia do metal no cunhado nesta poca, cf. Davis (2012).

    29 Para um balano da viso da poesia arcaica sobre a aquisio de riqueza, com um levantamento exaustivo, ainda que didtico, das passagens significativas, vide Figueira (1995).

    30 Campbell (1990) para o texto grego, a traduo que apresentamos nossa.

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    a filha de um nobre: Riqueza (ploutos) perturba a boa estirpe (genos) (vv. 189 190)31.

    Assim, se em Hesodo um homem apenas perseguia ganho (kerdos) levado pelo desespero, fome ou dbito, em Slon parece que muitos homens esto investidos em adquirir propriedade ou dinheiro como modo de angariar lucros.32 Nas palavras de Slon: enriquecem [os chefes do povo?] por injustas (adikois) aes dominados () Sem que a propriedade dos santurios nem a do povo / poupem, roubam, em rapina, cada um por seu lado, / e no observam os augustos fundamentos da justia (dikes) (fr. 4. 11 14).

    Embora a economia grega do perodo arcaico, diferente da economia capitalista hodierna, no fosse orientada preponderantemente para o lucro, esta nova conjuntura social sobre a qual nos informa a literatura arcaica foi, talvez, motivada por novas possibilidades de comrcio de produtos de origem agrcola como o azeite, bem como a necessidade de manter o estilo de vida de parte da elite atravs de produtos artesanais de luxo33. A consequncia disto , dentre outras coisas, o desfazimento de relaes tradicionais de redistribuio dos bens materiais entre os membros da comunidade que so ainda visveis em Homero e Hesodo.

    Acerca da origem desta gama de devedores e arrendatrios dependentes a historiografia tem especulado muitas causas que giram em torno de alguma circunstncia calamitosa que precisaria ter precipitado esta crise agrria: eroso do solo tico, superpopulao, rpida intensificao do cultivo agrcola34 ou incorporaes de novas terras anteriormente no cultivadas por

    31 Carrire (1948) para o texto grego, a traduo que apresentamos nossa. Sobre a emergncia de uma ideologia que favorecia o ganho e a riqueza presente na literatura arcaica, vide Balot (2001: 58 98). Acerca das distintas teorias que informam as abordagens contemporneas sobre o lucro na economia antiga vide Morris (2002).

    32 Morris (2002: 32).33 Para um recente levantamento das informaes arqueolgicas, bem como das

    representaes literrias do perodo arcaico grego sobre a economia e o comrcio vide Osborne (2007), que pensa que os registos arqueolgicos da economia no perodo arcaico suportam a ideia de um significativo nvel de conhecimento e contato, alm da discriminao entre demanda e oferta, entre os comerciantes. A sntese feita sobre a economia arcaica por Van Wees (2009) tambm muito informativa, em que pese o fato que sua opo em enfatizar as evidncias de competio por riquezas tenha minimizado o papel das relaes de reciprocidade ou redistribuio no motivadas por lucros, tambm caratersticas da economia arcaica.

    34 O artigo de French (1956) um exemplo clssico desta articulao entre depreciao do solo, aumento vertiginoso da populao e intensificao do cultivo agrcola, como uma

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    A crise social na Atenas de Slon e o estabelecimento da justia baseada no governo da Lei 71

    parte da elite, pressionando os pobres a fornecerem sua mo de obra. Estas explicaes, todavia, baseadas essencialmente nas fontes escritas e/ ou em comparaes etnogrficas, no encontram grande respaldo nas evidncias arqueolgicas disponveis que no comprovam a intensificao da produo agrcola ou de extenso da rea arvel pela incorporao de novas terras na tica seno no perodo clssico, especialmente no sculo IV35.

    Forsdyke36 escreve uma persuasiva argumentao para nos movermos alm deste hiato entre a narrativa histrica suportada pela referncia literria e a explicao baseada na cultura material. A sua tese principal pode ser assim resumida: h evidncias arqueolgicas para um forte crescimento populacional entre o final do sculo VIII e o sculo V, resultando em mais oferta de mo de obra e menos interesse dos ricos em manter obrigaes tradicionais (de reciprocidade ou redistribuio) em relao aos pobres. Esse aumento da populao pode no ter sido refletido em fazendas agrcolas, ou seja, em residncias permanentes existentes na rea rural como unidades de produo, mas antes a intensificao da agricultura da poca de Slon pode ter sido feita a partir do cultivo com tcnicas de incrementao mais moderadas de terras j cultivadas, portanto nem sempre reconhecveis pelo registro arqueolgico, bem como com a incorporao de novas terras at ento no cultivadas. Se abordamos o processo de sujeio dos pobres pelos ricos em termos principalmente da oferta e controle de mo de obra37 e das formas moderadas de intensificao da terra, Forsdyke sustenta, vemos que ocorre uma relativa acelerao da produo agrcola no perodo arcaico, ainda que no seja similar ao perodo clssico.

    Como vimos, Slon compartilha a crtica acerca da aquisio injusta e da busca de lucro da literatura arcaica, todavia o poeta diferencia se de poetas como Hesodo e Tegnis na medida em que prope e realiza aes concretas que intervenham para corrigir as injustias. Essa preocupao

    explicao para um possvel esgotamento das capacidades produtivas da agricultura da tica, base da crise agrria que Slon tentaria resolver.

    35 Sobre isto, vide Osborne (2007: 299) com tabela 10. 1; Alcock (2012) com figura 4. 3 sobre a Arglida meridional.

    36 Forsdyke (2006: 334 350).37 Afinal de contas, do ponto de vista da classe dominante, mais do que propriedade

    privada das terras, um conceito dificilmente bem definido neste momento, o que interessava era o controlo, por parte desta classe, da mo de obra e do excedente da produo. Sobre a estreita ligao entre a escravizao por dvida e o fornecimento de mo de obra para os ricos e bem nascidos, cf. Finley (2008: 169 188).

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    inserida dentro de um quadro de referncia em que o legislador ateniense promove, nos dizeres de Osborne38, uma politizao da economia ateniense, na medida em que in terms of the representation of the archaic economy, what is important is that the economic relationship between the elite and the rest of the community has become a political issue, and that that issue turns on personal labor and on access to land.

    Diante deste cenrio, a ao poltica principal promovida por Slon enquanto rbitro da crise teria sido dupla: liberar as dvidas que ameaavam, atravs da marca dos horoi, a propriedade dos camponeses endividados que ainda no tinham perdido suas terras39, bem como a extino dos laos de dependncia que vinculavam os hectmoros como trabalhadores nas terras dos ricos (fr. 36. 415)40.

    O que aconteceu em seguida com os hectmoros atenienses no relatado claramente pelas fontes. Se eles fossem trabalhadores dependentes sem acesso a terra antes da interveno das leis de Slon, tentador pensarmos que, de algum modo, uma boa parte mudou de situao e logrou acesso terra, o que parece implcito tanto pelo fato da Atenas clssica possuir uma vasta gama de pequenos proprietrios rurais, como pelo incremento de escravos estrangeiros aps as reformas de Slon. No entanto, a julgar pela narrativa que o autor da Constituio dos Atenienses (11 12) formula, Slon no promoveu redistribuio de terras41. Diante do impasse, certos

    38 Osborne (2007: 299).39 Seja atravs de um mecanismo de hipoteca, seja atravs de venda com direito a

    resgate (prasis epi lypsei). Os temas inter relacionados do significado do horoi em Slon, do estatuto alienvel ou no da terra e do destino dos hectmoros aps a ao de Slon, so complexos e, dada a natureza das fontes, s podem abordados como hipteses: teremos que nos contentar com as perguntas, pois as fontes so omissas quanto a estes detalhes (Leo 2001: 288). Um bom ponto de partida para este assunto Leo (2001: 230 238, 282 290), que didaticamente diferencia as hipteses dos estudiosos consoante o estatuto alienvel ou no da terra. Almeida (2003: 1 69) particularmente til no que diz respeito aos estudos anteriores dcada de noventa. Um texto especialmente cativante, porque permite adentrar no laboratrio do historiador a raciocinar sobre este tpico, De Ste Croix (2004), recentemente publicado, mas escrito em formato de comunicao particular na dcada de sessenta.

    40 Cf. alnea G) acima e parte II abaixo.41 Na narrativa da [Arist.] Ath. Pol. sobre estes acontecimentos, o leitor percebe

    que as concluses avanadas pelo autor do tratado nem sempre encontram suporte nos fragmentos de Slon que ele prprio cita. As alegaes de Slon, como natural por se tratar de poesia, so bem mais vagas e alegricas do que as afirmaes e generalizaes por vezes contundentes de Aristteles. Disso decorre a dificuldade em saber se o autor do texto tinha contato com outras fontes de informao sobre a crise que lhe permitiam proceder a

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    A crise social na Atenas de Slon e o estabelecimento da justia baseada no governo da Lei 73

    especialistas pensam que Aristteles cometeu um erro de interpretao ao crer que Slon afirmava no ter redistribudo as terras no fr. 3442.

    De todo modo, ns no sabemos em que extenso os dois grupos que distinguimos, os endividados pequenos proprietrios e os hectmoros que trabalhariam terras de outrem, foram atingidos pela crise e, da mesma forma que nos escapa a origem exata destes hectmoros, tambm nos faltam indcios de como eles foram integrados na democracia ateniense do sculo quinto. O mais lgico a se pensar, se podemos identificar os hectemros com os tetas, que, com as reformas de Slon, eles teriam logrado acesso Assembleia (Ekklesia) e poderiam apelar contra as decises dos magistrados, ainda que no tivessem acesso s magistraturas mais importantes43. possvel que o problema da dvida na poca de Slon tivesse recado mais pesadamente sobre os pequenos proprietrios que, contudo, no perderam de forma massiva suas terras. Esta uma maneira, em certo grau imaginativa, de contornarmos a necessidade de uma redistribuio de terras que a evidncia antiga no atesta.

    Depois da proposta de interpretao sobre a crise tica, vejamos como Slon encarou a sua prpria empreitada enquanto rbitro da crise com que lidou enquanto arconte, e de que modo coloca a justia e a proeminncia da lei como elementos protagonistas das solues encontradas para remediar a anomia pela qual passava, segundo Slon, a plis ateniense.

    IISlon,fr.36:poesia,justiaegovernodalei

    Entre os poemas em que Slon discute a situao de Atenas e enumera as causas para o ambiente de agitao e conflito que temos vindo a discutir, aquele que melhor ilustra a sua ao concreta como arconte e legislador um fragmento em trmetro imbico: o fr. 36. Quanto sua estrutura, o poema apresenta duas partes diferenciadas, na primeira o poeta refere se s suas

    este gnero de generalizaes. Note a forma como Aristteles relata o estatuto de classe de Slon usando fontes alm do prprio poeta: como confirmado por outras fontes ( ) e ele mesmo [Slon] confessa, nos seus poemas, quando aconselha os ricos a no serem ambiciosos. (5. 3). Sobre a forma como a Constituio dos Atenienses usa a poesia de Slon como modo de estabelecer o passado, vide Hendrickson (2013).

    42 Vide, por exemplo, Migeotte (2007: 38). difcil saber ao certo a concepo de distribuio de terras de Aristteles. Morris (2002: 40) especula que Aristteles tinha em mente um processo de diviso das terras mais radical, como aquele que as fontes antigas atribuam, de forma mais imaginria do que real, ao legislador espartano Licurgo.

    43 Cf. [Arist.] Ath. Pol. 7. 3 4, 9. 1 2; Plu. Sol. 18. 2 4.

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    aes concretas diante da crise, baseadas sobretudo na liberao da terra e dos homens (vv. 1 15); j na segunda parte, Slon evoca os critrios ou mtodos que orientaram suas medidas, com nfase na justia e no suporte escrito (vv. 15 27)44.

    Para alm da problemtica da Justia, tambm presente noutros fragmentos (e.g. fr. 4), o fr. 36 revela as propostas e aes concretas levadas a cabo por Slon no sentido de dar solues aos problemas que nomeia na sua poesia elegaca (e.g. fr. 4). Na verdade, tanto as fontes antigas, como os comentrios modernos, tenderam a ver o fr. 36 como evidncia que atesta a autenticidade das medidas de emergncia tradicionalmente atribudas ao legislador pelo autor da Constituio dos Atenienses (e.g. Ath. Pol. 12. 4), bem como por Plutarco, conforme vimos na primeira parte. Segue o fr. 36:

    Mas eu, dos objetivos com que reuni o povo, algum h que deixei por atingir? Pode testemunh lo na justia do tempo a me suprema dos deuses Olmpicos,5 a melhor, a Terra negra, de quem eu, outrora, os horoi arranquei, por todo o lado enterrados: dantes era escrava, agora livre. Muitos a Atenas, ptria fundada pelos deuses, reconduzi, vendidos ora injustamente,10 ora com justia. Uns ao jugo das dvidas fugiam e j nem a lngua tica falavam, por tanto andarem errantes; outros, na prpria casa servido vergonhosa sofriam, trmulos aos caprichos dos senhores;15 eu os tornei livres. Isto atingi com o poder a um tempo fora e justia harmonizando e cumpri quanto havia prometido. Leis, tanto para o vilo como para o nobre, que para cada um recta justia ajustavam,20 escrevi. Mas se outro, que no eu, o aguilho tomasse, algum que fosse malvado e ambicioso, no haveria contido o povo; pois, se eu desejasse o que aos meus opositores ento agradava e ainda o que, contra eles, outros meditavam,

    44 Um estudo detalhado da estrutura do poema pode ser encontrado em Garca Novo (1979 1980).

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    25 de muitos homens ficaria viva a cidade. Por isso, ao acudir em socorro a todo o lado, Qual lobo, acossado pela matilha, me revirei.

    A ordem pela qual as medidas so descritas reveladora do projeto poltico de Slon e da sua ao. Os primeiros versos do poema so aqueles que tm gerado mais discusso pelo contedo metafrico que os constitui. Nos versos 3 7 do fr. 36, Slon invoca a divindade Terra como sua testemunha; ela que, outrora escrava, havia sido libertada pela ao do Ateniense (vv. 5 7). nestes termos metafricos que Slon parece aludir estrutura agrria ateniense anterior sua interveno, cujos contornos desenvolvemos na primeira parte, aquando da anlise das alneas C) e D) da tabela.

    No que concerne libertao da Terra, Slon escolhe comear pela libertao daqueles submetidos escravatura por falta de pagamento de dvidas (vv. 8 15). Nestes versos, Slon descreve duas situaes distintas: os que fugiram do jugo/ das dvidas (vv. 10 11) e os que na prpria casa servido vergonhosa sofriam,/ trmulos aos caprichos dos senhores (vv. 13 14)45. A gradao descendente implcita nestes versos indicia a inteno de Slon em pautar a sua ao enquanto herosmo altrusta para com aqueles em situao vergonhosa (v. 13). Verifica se tambm um propsito subjacente na ordem da descrio das medidas, sendo que as de carter poltico/econmico se destacam na composio das iniciativas legislativas, quer pelo seu detalhe, quer pelo mpeto das palavras com que se descreve a situao de servido dos atenienses (vv. 8 10). Note se que o poeta ateniense se assume como libertador da terra e das gentes (vv. 7 15)46. Aps referir as suas medidas, Slon relembra a sua ao legislativa que impe a justia, sem a qual teria sido impossvel manter a ordem. Nos vv.

    45 Estes versos parecem responder quilo que Plutarco identifica a 13. 4 5 (cf. supra E), bem como C)), conforme discutimos na primeira parte do artigo. Conforme vimos na discusso acima, a situao daqueles que, permanecendo em Atenas, no conseguiram fugir a uma situao de servido de difcil interpretao luz dos conhecimentos que hoje possumos sobre a conjuntura social de Atenas no tempo de Slon. Parece nos que o advrbio enthade transmite mais uma ideia de espao comum, como o ser a tica, do que propriamente a ideia de casa. Entendendo assim o v. 13, a oposio entre a situao dos que abandonaram Atenas (vv. 10 12) e os que permaneceram (vv. 13 14) parece nos mais consensual com o testemunho dos autores antigos.

    46 Esta imagem de Slon tambm a presente nos testemunhos da Constituio dos Atenienses 6. 1 e de Plutarco 15. 2 (alnea G) da tabela), bem como a veiculada na Poltica de Aristteles (1273b35).

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    15 16, descrita a ao concreta do arconte que diz ter cumprido o que prometera (v. 17). Estes versos dialogam claramente com os trs seguintes num constante paralelo semntico47:

    15 , , , ,20 .

    15 Isto atingi com o poder a um tempo fora e justia harmonizando e cumpri quanto havia prometido. Leis, tanto para o vilo como para o nobre, que para cada um recta justia ajustavam, 20 escrevi.

    O paralelismo mais imediato, configurando um quiasmo impossvel de manter na traduo, surge entre a conciliao de fora e justia por um lado (v. 16) e, por outro, o equitativo ajuste da justia a viles e nobres (v. 18). Como destaca Noussia Fantuzzi48, em causa est a aparente oposio entre a ao concreta, conjugando fora e justia, e a atividade intelectual do legislador. Ao reportar se sua ao poltica (isto), que antes havia nomeado (v. 15), Slon afirma ter conseguido aplicar as medidas que prometeu atravs do poder, certo, mas um poder que se pautou, no somente pela fora, como seria prprio de um tirano; antes, diz ter procurado a harmonia destes dois princpios. para este esforo de alcance da exata medida, do correto equilbrio que Slon chama a ateno do leitor/ouvinte.

    que o trabalho do legislador no est longe deste esforo de aliar justia e fora, pois a palavra grega a que Slon recorre para se referir s suas leis thesmos e no nomos. E a palavra thesmos remete para a ideia de imposio49. Esta fora das leis estabelece uma ligao curiosa com a fora

    47 Vide Noussia Fantuzzi (2010: 474).48 Noussia Fantuzzi (2010: 474).49 Thesmos associa se, em primeira instncia, ideia de imposio divina. Sobre

    a etimologia de thesmos vide Ostwald (1969: 11 19). Para uma discusso do sentido de imposio associado a este termo vide Papakonstantinou (2008: 133 135). Na obra de Slon a palavra aparece uma outra vez no fr. 31: ,/

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    A crise social na Atenas de Slon e o estabelecimento da justia baseada no governo da Lei 77

    do v. 16. Mas que fora (bie) e que imposio esta que protagonizada pelo mesmo homem que libertou a terra (v. 7) e os atenienses (v. 15)?

    No entanto, no devemos descurar que o elemento da fora/violncia (bie) assume, noutros fragmentos de Slon, uma estreita relao com a tirania compreendida pejorativamente50. Vejamos alguns exemplos: no fr. 32, Slon procura defender a sua ao poltica legitimando a como medida tomada em defesa da plis. Foi este amor cidade que o manteve afastado da tirania e do excesso de violncia: e tirania e violncia (bie) amara,/ no me agarrei vv. 2 3). Tambm no fr. 3451, o elemento da fora relacionado com a tirania como sua caraterstica indissocivel. Slon descreve a reao crtica daqueles que, tendo julgado vir a beneficiar das medidas do legislador ateniense, viram essa expetativa gorada. Se, no fragmento anterior, tirania e violncia so coisas distintas, neste fr. 34, a fora est associada tirania como caraterstica que lhe inerente: nem com a fora da tirania (v. 7). Parece, portanto, que a fora detm uma conotao negativa na obra de Slon, associada tirania ou a uma elite que possui um poder indevido, como nos mostra tambm o fr. 37. Neste mesmo exemplo, o poeta nomeia, com uma invetiva colocada em contraste com aquela endereada ao povo (demos) nos versos anteriores (vv.1 3), todos os mais fortes e poderosos (v. 4) realando que se procurasse implementar medidas que correspondessem s expectativas da elite detentora do poder, esta no lhe teceria crticas52.

    Como podemos verificar nestes exemplos, o termo fora aponta para a ideia de poder exercido indevidamente ou em demasia. A fora s vantajosa quando exercida com legitimidade poltica e na exata medida.

    . Em primeiro lugar, supliquemos a Zeus Crnida senhor,/ para que a estas leis (thesmois) bom sucesso e prestgio conceda. De notar a semelhana destes termos com o v. 9 do promio dos Trabalhos e Dias, onde o poeta invoca Zeus para que faa julgamentos (themistas) de acordo com a justia (dike): , . Sobre a tica poltica de Hesodo e sua comparao com a de Slon vide Ober (2006: 398 400).

    50 Blaise (1995); Irwin (2006: 73 4) afirma que Slon ao criticar e recusar a tirania est a defender se de futuras acusaes. curioso notar, todavia, que a linguagem de Slon nestes versos, bem como no fr. 4, mostra bastantes semelhanas com o discurso tirnico. Para uma comparao entre legisladores e tiranos vide Rihll (1989).

    51 Pensa se que este fragmento, a par dos frr. 32 e 33, configurariam um s poema dedicado a Foco, sobre o tema da tirania, dada a grande afinidade temtica que partilham (cf. Leo 2001: 448 9, com respetiva bibliografia).52 Sobre o descontentamento da elite face interveno de Slon como arconte, vide

    supra alnea F).

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    Para tal, absolutamente necessrio conjug la com a justia (dike) e num exerccio de poder (kratos) legitimado pelas instituies da plis53. na defesa do estabelecimento de funes responsveis pela regulao da aplicao da lei na plis que a poesia de Slon se destaca da dos seus contemporneos.

    Percebe se nos Trabalhos e Dias, de Hesodo, que a falta de instituies capazes de assegurar o cumprimento e a imposio de justia constituem um fosso entre os ideais normativos acerca da justia e a efetiva prtica judicial. Dada a fragilidade da administrao da justia no seio da comunidade, que no consegue conter os reis devoradores de presentes ( vv. 38 9), Hesodo avalia as decises corruptas dos governantes de acordo com a justia de Zeus, que a entidade responsvel pela aplicao da justia. O problema no a falta de julgamento, mas sim o facto de os padres de julgamento serem propositadamente ignorados por aqueles que detm o poder. No entanto, a providncia divina no julgar apenas os governantes: a sua sentena recair sobre toda a comunidade. Apesar de diagnosticar corretamente a situao em Ascra, Hesodo no prope nenhuma reforma poltica. Slon que procura concretizar a Justia de Zeus de que nos fala Hesodo atravs de dispositivos humanos como as leis, os tribunais, as magistraturas, enfim, com uma proto politeia. Mantendo a ideia de que a injustia e ganncia individual ou de um grupo um problema que afeta toda a comunidade, Slon supera o quietismo tico, como lhe chamou Ober54, de Hesodo, propondo medidas concretas no que concerne a legislao e execuo das leis.

    As palavras do poeta no fr. 4 (vv. 17 20) ilustram bem o ambiente sombrio da instabilidade que se vivia em Atenas: J por toda a cidade vagueia esta chaga inelutvel,/ e veloz avana para a miservel servido,/ que a contenda civil (stasin) e a guerra adormecida desperta,/ que de tantos a amvel juventude deitou a perder55. Longe de procurar uma revoluo social em Atenas, Slon procurou a concrdia e a paz: o fim desta situao de stasis. Para isso, Slon props se devolver a Atenas a justia.

    No fr. 36, o conceito de justia (dike) polissmico. Se, no v. 3, temos justia como a que premeia a boa conduta (uma imagem muito associada

    53 Sobre a importncia do verbo krato na legitimao do poder executivo de Slon, vide Blaise (1995: 29).

    54 Ober (2006: 398). 55 Repare se que tambm no fr. 36. 25 a discrdia entre os cidados, ou seja, a

    contenda civil, implica a perda de muitas vidas.

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    ao tribunal do Tempo); no v. 19 a mesma palavra assume o conceito de leis, sentenas, vereditos. Esta mesma imagem de endireitar a justia explanada nos mesmos termos nos fr. 4. 36 e fr. 36. 19 (a recta justia). Se no fr. 4. 36 Slon carateriza assim a ao da Eunomia (a boa lei ou a boa ordem) perante os injustos como princpio tico na governao de uma cidade fundada sob a gide da Justia56 (Dike), no fr. 36. 19, ao relembrar o fr. 4, Slon procura legitimar a sua ao legislativa como medida tico poltica de garantir a justia na cidade.

    O tipo de arbitragem do conflito social que Slon pretende mostrar nos seus poemas no surge meramente como tentativa de reestabelecer a posio social prvia dos litigantes. Como tem defendido Harris, a atuao de Slon (bem como a tradio legislativa que ele representa) revela indcios significativos da valorizao da deciso sobre os conflitos com base em argumentos legais e no apenas polticos ou sociais, germinando, desse modo, uma noo de governo da lei (rule of law). Nesse sentido, Harris57 argumenta que Slon e os antigos legisladores gregos promoviam o governo da lei ao mesmo tempo que diminuam a ameaa da tirania, atravs de quatro procedimentos bsicos: 1 estabelecendo prazos para o mandato dos magistrados; 2 impondo sanes aos magistrados que no seguissem as leis; 3 conferindo poder no apenas para um magistrado mas para um corpo de cidados; 4 adicionando clusulas extras para garantir que os oficiais no ignorassem a lei58.

    Aristteles, na sua Poltica, discute as medidas de Slon na diviso dos poderes59. O Estagirita sublinha a funo fiscalizadora que Slon atribui ao povo dando lhe voz na eleio dos magistrados, cargo que, todavia,

    56 Aqui com maiscula por se tratar de uma personificao divina na Justia, ao jeito de Hesodo. Esta ideia de justia difere daquela perpetrada no fr. 36, em que a justia o substantivo que se define o princpio de ao do legislador. Concordamos, portanto, com Vlastos (1946: 65) quando este considera que o princpio da justia encarado por Slon como algo divino.

    57 Harris (2006: 17 25).58 Estas medidas podem ser avaliadas dentro das reformas constitucionais que

    as fontes antigas atribuem a Slon, como a delimitao das quatro classes censitrias que participariam, em nvel desigual, das decises polticas; a funo concedida ao Arepago de guardio das leis; a possvel ampliao do acesso Assembleia (Ekklesia) e a criao de um Tribunal popular (Heliaia). Sobre as caratersticas e a autenticidade destas reformas vide a discusso feita por Ferreira; Leo (2010: 56 82). Cf., ainda, as leis de Slon 37a R, 37b R, 93b R, com traduo e comentrio de Leo (2001: 356 357, 398 399).

    59 Arist. Pol. 1274a10 20.

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    continuava reservado s elites60. Concedendo voz aos diversos grupos sociais em Atenas, Slon, considera Aristteles, conseguiu o equilbrio poltico e proto constitucional que cria a instncia moderadora da sociedade numa instituio pblica a que a comunidade deve obedecer, ou melhor, a partir da qual a comunidade se deve reger. Em vez de continuar a dar resposta aos conflitos sociais com a fora bie, aqui conotada com a violncia gratuita (fr. 4), o legislador prope que essa resposta seja dada com a fora da justia aqui no sentido de sentena, de norma, de lei. a fora e a legitimidade desta lei que dita o caminho que a cidade deve percorrer.

    O sentido que a forma verbal escrevi (egrapsa fr. 36. 20) possui, sendo o complemento direto deste verbo leis, o da materializao da resposta de Slon ao conflito. Neste sentido, Loraux61 argumenta que quand le graphein devient principe de relit, il advient la posie qu'elle perd son assurance de parole instituant pour mettre sa voix au service de lergon. En dautres termes: la positivit de l'crit pourrait bien avoir comme effet de dfaire l'oralit potique, qui cede place un autre mode de l'oral quelque chose comme un pur logos.

    Do mandato de Slon sai, ento, uma resoluo que aparentemente supera debates e interesses individuais; a palavra dita agora adjuvada pela escrita que fixa e pblica e qual todos devem obedecer igualmente62. O espao que a palavra dita concede escrita impe se ainda num espetro temporal de muito maior dimenso63.

    Em que medida, no entanto, esta politeia moderada proposta por Slon ou de certo modo pelo Slon de Aristteles? capaz de resolver os conflitos sociais advindos do desigual acesso aos recursos materiais e aos espaos de

    60 Arist. Pol. 1274a20.61 Loraux 1988: 124.62 Para um contraste entre a noo moderna de cdigo das leis e a prtica legislativa

    de Slon, cf. Hlkeskamp (2005), que prefere o termo monumentalizao antes que codificao, quando a norma apresentada como um monumento no espao pblico da plis por meio da escrita.

    63 Slon fala no s para os seus contemporneos, mas tambm se dirige aos cidados vindouros na esperana de que eles possam comprovar a validade das suas medidas como um passo dado no sentido de trazer mais justia a Atenas. A imagem da tribunal do Tempo (v. 3) , portanto, associada perdurao das leis escritas. Sobre a ideia de tempo, neste fragmento de Slon, como executor e lugar da manifestao da justia, cf. Fialho (1989 1990).

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    poder dentro da plis? Mais do que uma poro mgica que neutralizaria os conflitos de classe oferecida por um legislador, o que vemos em ao um duplo carter da institucionalizao do conflito pela cidade: ao mesmo tempo que permite uma maior participao poltica e regras de propriedade que favoreceram os pequenos proprietrios ou mesmo os no proprietrios, tambm torna as divises de classe no seio da sociedade duradouras e legtimas, uma vez que passam a ser escritas e reconhecidas legalmente.

    Neste sentido, importante notar que o pensamento poltico grego era bem consciente de que a fronteira entre fora e direito frgil: se, por um lado, a lei a razo liberta do desejo64, ou o justo meio65 que garante neutralidade face aos interesses dos grupos particulares, por outro lado, ela pode, tambm, ser o reflexo da distribuio do poder na sociedade, onde os grupos dominantes legislariam segundo seus prprios interesses, atravs do expediente de apresentar um governo da fora sob um discurso do governo da lei66.

    No teriam essas reflexes antigas sobre a relao entre a fora e o direito, de uma parte, e a construo da vida em comunidade, de outra parte, algo a partilhar com as preocupaes contemporneas com o fenmeno da violncia entendida no como uma antpoda da institucionalizao das funes pblicas, mas como algo que pode ser tambm institudo pela prpria lei? O prprio governo da lei talvez seja o local privilegiado por onde passa tambm a habitar a violncia estrutural, ou seja, um tipo de violncia que reiteradamente inibe uma parte da comunidade de desenvolver suas potencialidades, no atravs de violncia direta ou pessoal, mas indiretamente quando the violence is built into the structure and shows up as unequal power and consequently as unequal life chances () This unequal distribution of power then systematically disadvantages those who do not hold as much if any power at all.67

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