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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI LUCIANA MARCHETTI DA SILVA A CULINÁRIA CAIÇARA E A PRÁTICA DA HOSPITALIDADE NOS RESTAURANTES ESPECIALIZADOS EM PEIXES E FRUTOS DO MAR DA BAIXADA SANTISTA São Paulo 2016

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  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    LUCIANA MARCHETTI DA SILVA

    A CULINRIA CAIARA E A PRTICA DA

    HOSPITALIDADE NOS RESTAURANTES ESPECIALIZADOS

    EM PEIXES E FRUTOS DO MAR DA BAIXADA SANTISTA

    So Paulo

    2016

  • LUCIANA MARCHETTI DA SILVA

    A CULINRIA CAIARA E A PRTICA DA

    HOSPITALIDADE NOS RESTAURANTES ESPECIALIZADOS

    EM PEIXES E FRUTOS DO MAR DA BAIXADA SANTISTA

    Dissertao de mestrado apresentada Banca

    Examinadora como exigncia parcial para a obteno

    do ttulo de Mestre em Hospitalidade, na linha de

    pesquisa Hospitalidade: servios e organizaes, da

    Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientao do

    Prof. Dr. Hamilton Pozo.

    So Paulo

    2016

  • LUCIANA MARCHETTI DA SILVA

    A CULINRIA CAIARA E A PRTICA DA

    HOSPITALIDADE NOS RESTAURANTES ESPECIALIZADOS

    EM PEIXES E FRUTOS DO MAR DA BAIXADA SANTISTA

    Dissertao de mestrado apresentada Banca

    Examinadora como exigncia parcial para a obteno

    do ttulo de Mestre em Hospitalidade, na linha de

    pesquisa Hospitalidade: servios e organizaes, da

    Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientao do

    Prof. Dr. Hamilton Pozo.

    Aprovado em

    ________________________________________________________

    Prof. Dr. Hamilton Pozo/Universidade Anhembi Morumbi.

    ________________________________________________________

    Prof. Dra. Elizabeth Kyoko Wada /Universidade Anhembi Morumbi

    _______________________________________________________

    Prof. Dr. Marco Antonio Pinheiro da Silveira/ Universidade Municipal de So Caetano do Sul

  • s comunidades caiaras,

    em especial s do litoral paulista,

    ao Prof. Paulo Silas Ozores,

    aos meus pais, Maria Ceclia e Luiz Carlos,

    s minhas irms Claudia e Renata

    e aos meus sobrinhos, Maria Luiza, Sara e Theo.

  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente, agradeo Comisso de Aperfeioamento de Pessoal do Nvel Superior

    (CAPES) pela bolsa de estudo que me proporcionou tranquilidade financeira para dedicar-me

    a esta pesquisa.

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Hamilton Pozo, pela ateno com que recebeu meu projeto

    e pelas orientaes tranquilas, ricas em informaes. Agradeo, tambm, pelo respeito, bom

    humor, competncia, dedicao e por todas as crticas e sugestes.

    Um agradecimento especial aos Professores Elizabeth Kyoko Wada e Sergio Moretti

    pelas contribuies significativas durante o exame de qualificao, as quais facilitaram a

    finalizao desta pesquisa.

    Ao Prof. Airton Cavenaghi, que sempre demonstrou interesse pela cultura caiara e, sem

    perceber, encorajou-me num momento em que eu tinha dvidas sobre a relevncia da pesquisa.

    A todos os professores do Programa de Mestrado em Hospitalidade da Universidade

    Anhembi Morumbi que, atenciosamente, acolheram-me ao longo desses dois anos e

    contriburam para minha formao profissional. Sinto-me privilegiada pela oportunidade de

    convivncia e aprendizado com todos.

    Um agradecimento especial Alessandra, secretria do Mestrado, colaboradora

    competente e dedicada, sempre disponvel a nos atender e ajudar os alunos.

    minha me, companheira e amiga de todas as horas, que entende meus momentos de

    mau humor e impacincia. Tambm pelo seu exemplo de vida, resilincia e otimismo.

    Ao meu saudoso e querido pai, meu exemplo de fora e coragem.

    Ao Prof. Paulo Ozores, por ter me dado a oportunidade de me tornar professora e

    ministrar a disciplina Culinria Caiara no Centro Universitrio Monte Serrat (UNIMONTE).

    Aos colegas do mestrado, pelo convvio amigvel e pelas trocas de experincias. Por

    todos os momentos de alegrias, ansiedade, risadas, medos, angstias, conversas no Whatsapp,

    etc. Desejo muito sucesso a todos!

    Aos meus colegas professores, que sempre acreditaram em mim e me incentivaram a

    entrar no mestrado, e aos meus alunos, que diariamente me ensinam a ser uma pessoa melhor,

    menos preconceituosa e mais generosa.

    Aos meus sobrinhos lindos, minhas riquezas, que me abastecem com sorrisos e carinhos.

    s minhas irms batalhadoras, que sempre me incentivaram e me animaram.

    Agradeo, por fim, a todos aqueles que, de alguma forma, colaboraram para a realizao

    deste trabalho: muito obrigada!

  • De onde vens, patrcio, camarada, amigo?

    Salta da canoa, vem pousar em paz [...]

    E, no comunismo do meu pobre teto,

    A farinha tua, todo peixe teu.

    Martins Fontes (1884-1937) Cano Caiara

  • RESUMO

    Esta pesquisa tem como objetivo identificar quais fatores interferem na representatividade da

    culinria caiara e na prtica da hospitalidade nos restaurantes especializados em peixes e frutos

    do mar da Baixada Santista. A culinria regional, por meio da combinao de matrias-primas

    e hbitos locais, retrata vivncias histricas e heranas culturais. Nesse sentido, sua oferta

    propicia a interao entre pessoas e contribui para o desenvolvimento de vnculos sociais,

    concretizando o ato da hospitalidade. Os fenmenos da globalizao e industrializao

    modificaram os hbitos alimentares dos brasileiros e as ltimas dcadas do sculo XX foram

    marcadas pela padronizao dos alimentos e pelo consumo excessivo de produtos

    industrializados em detrimento de alimentos regionais com tradio cultural. Em oposio a

    este cenrio, no sculo XXI, temas como sustentabilidade, valorizao das cozinhas e dos

    ingredientes regionais e uso de alimentos orgnicos e sazonais ganharam centralidade na

    gastronomia brasileira e inspiraram diversos movimentos que visam recuperao das

    particularidades regionais. Acompanhando essa tendncia, os restaurantes buscam oferecer

    servios de hospitalidade aliados manuteno da cultura regional. Deste contexto, surge a

    questo: quais fatores interferem na representatividade da culinria caiara e na prtica da

    hospitalidade nos restaurantes especializados em peixes e frutos do mar da Baixada Santista?

    A pesquisa caracteriza-se como exploratria e descritiva, de natureza quali-quantitativa. Para a

    coleta de dados, alm da pesquisa bibliogrfica, foram realizadas entrevistas semiestruturadas

    com os gestores dos restaurantes, aplicado aos mesmos um questionrio fundamentado na

    escala Likert e realizado um levantamento dos pratos tradicionais da culinria caiara presentes

    nos cardpios. Entre os dias 28 de maro e 4 de maio de 2016, foram entrevistados 44 gestores

    de restaurantes especializados em peixes e frutos do mar dos municpios de So Vicente, Santos

    e Guaruj. Para a anlise de contedo das entrevistas, foi utilizado o mtodo proposto por

    Bardin (2011). Quanto metodologia estatstica, foram utilizados o Teste do sinal para a

    mediana, a Correlao de Person e Spearman e a Estatstica Alpha de Cronbach. Nestas anlises

    foram utilizados os softwares: SPSS V 17, Minitab 16 e Excel Office 2010. Os resultados

    demonstraram que o conceito equivocado sobre culinria caiara e o conhecimento limitado

    sobre hospitalidade, por parte dos gestores dos restaurantes, so os principais fatores que

    interferem na representatividade da culinria e na prtica da hospitalidade. Sobre a culinria

    caiara, a maior parte dos gestores pensa ser a culinria do litoral brasileiro e a relaciona a

    qualquer prato preparado com peixes e frutos do mar, citando, inclusive, pratos de outras

    nacionalidades, como paella, bacalhau portuguesa, polvo espanhola, etc. Com referncia

    aos ingredientes, citaram somente pescados, no fizeram meno a banana, farinha de

    mandioca, palmito, taioba, jabuticaba, e tantos outros que caracterizam a culinria caiara.

    Verificou-se que os pratos caiaras mais oferecidos so: marisco ao vinagrete, camaro

    paulista, fil de pescada grelhado, lula frita, camaro frito, farofa de farinha de mandioca, piro

    de peixe, farofa de banana, mandioca frita e tainha assada. Sobre as prticas de hospitalidade

    adotadas, constatou-se que os gestores se preocupam com o ritual: receber, acomodar e

    alimentar. Entretanto, esquecem-se do entretenimento como um elemento de hospitalidade,

    assim como da ambientao, da higiene, da infraestrutura e dos aspectos culturais da regio.

    Palavras-chave: Hospitalidade. Culinria Caiara. Restaurantes. Diferencial Competitivo.

    Qualidade de servios.

  • ABSTRACT

    The goal of this research is to identify which factors have some influence in the Caiara cuisine

    representativeness and in the practice of hospitality in restaurants specialized in fish and

    seafood in Baixada Santista, State of So Paulo, Brazil. Using feedstock combination and local

    habits, the regional cuisine portrays historical experiences and cultural heritages. In this sense,

    its supply provides the interaction among people, contributing to the development of social ties,

    thus realizing the act of hospitality. The globalization and industrialization phenomena have

    modified the feeding habit of Brazilian population and the last decades of the twentieth century

    were marked by the standardization of food and the overconsumption of industrialized products

    to the detriment of the regional food with its cultural tradition. In the twenty first century and

    in an opposite scenario, subjects such as sustainability, appreciation of the regional cuisine and

    its ingredients and the use of organic and seasonal foods gained centrality in Brazilian

    gastronomy, inspiring different movements that have as a goal the recovery of the regional

    particularities. Following that trend, restaurants seek to offer hospitality services allied to the

    maintenance of the regional culture. From that context comes up the issue: which factors

    influence the Caiara cuisine representativeness and the practice of hospitality in restaurants

    whose expertize are fish and seafood in Baixada Santista? This research is both exploratory and

    descriptive, being qualitative and quantitative at the same level. Besides the bibliographical

    research, data was collected using semistructured interviews with the restaurants managers;

    these managers answered a questionnaire based on Likert scale and a survey was also done

    about traditional dishes of Caiara cuisine enclosed in the menus. Between March 28 and May

    4, 2016, 44 restaurants managers specialized in fish and seafood answered the mentioned

    survey in So Vicente, Santos and Guaruj. It was used the method proposed by Bardin (2011)

    for the interview content analysis. Regarding to the statistical methodology, it was used the sign

    test for the median, the Spearman and Person correlation and the Cronbachs alpha statistics.

    The following softwares were used: SPSS V 17, Minitab 16 and Excel Office 2010. It was

    demonstrated that the mistaken concept about Caiara cuisine and the limited knowledge about

    hospitality, on the part of restaurants managers, are the main element that influence in this

    cuisine representativeness and in the practice of hospitality. About caiara cuisine, most

    managers think is the cooking of the Brazilian coast and relates to any dish prepared with fish

    and seafood, citing, including dishes of other nationalities, such as paella, codfish portuguese,

    octopus spanish, etc. With reference to the ingredients, only cited fish, did not mention the

    banana, cassava flour, palmetto, taioba, jabuticaba, and many others featuring caiara cuisine.

    It was veryfied that the following Caiara dishes are the major offer: shellfish to vinaigrette,

    Shrimp to Paulista, grilled fish fillet, fried calamari, fried shrimp, toasted manioc flour, fish

    mush, banana manioc flour, fried cassava and roasted mullet. Concerning to the hospitality

    practices adopted, it was veryfied that the managers was worried about the following ritual:

    receive, accommodate and feed the guests. However, they forget the entertainment as part of

    the hospitality, as well as the ambiance, hygiene, infrastructure and the cultural aspects of the

    region.

    Key-words: Hospitality. Caiara Cuisine. Restaurants. Competitive Edge. Quality of Service.

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Principais autores consultados para a fundamentao terica do Captulo 1........................... 20

    Quadro 2 Os tempos e espaos da hospitalidade humana......................................................................... 25

    Quadro 3 Principais autores consultados para a fundamentao terica do Captulo 2........................... 47

    Quadro 4 Tipologia dos restaurantes ....................................................................................................... 54

    Quadro 5 Principais autores consultados para a fundamentao terica do Captulo 3........................... 59

    Quadro 6 Pratos tradicionais da culinria caiara base de pescados....................................................... 73

    Quadro 7 Pratos tradicionais de Paraty..................................................................................................... 74

    Quadro 8 Pratos da culinria caiara do Litoral Sul do Estado de So Paulo............................................. 75

    Quadro 9 Pratos da culinria caiara da Baixada Santista e do Litoral Fluminense................................. 76

    Quadro 10 Sntese da caracterizao da pesquisa ...................................................................................... 88

    Quadro 11 Perguntas e questes que respondem as hipteses da pesquisa .................................................. 89

    Quadro 12 Avaliao dos instrumentos de pesquisa por profissionais das reas de Gastronomia e

    Hospitalidade ............................................................................................................................ 90

    Quadro 13 Matriz de anlise de contedo pelo mtodo Bardin (2011) ........................................................ 92

    Quadro 14 Pratos citados como caiaras pelos gestores e a frequncia que foram mencionados................. 105

    Quadro 15 Prticas de hospitalidade adotadas pelos restaurantes, segundo os gestores ............................. 110

    Quadro 16 A importncia da hospitalidade para o sucesso dos restaurantes, segundo os gestores ............. 111

    Quadro 17 Diferena entre hospitalidade e qualidade segundo os gestores ................................................ 116

    Quadro 18 Diferena entre hospitalidade e qualidade segundo os gestores II............................................... 117

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 As dimenses da hospitalidade segundo Brotherton e Wood (2004) 23

    Figura 2 Os domnios da hospitalidade 26

    Figura 3 Estratgia de aplicao do modelo de relacionamento com o cliente 35

    Figura 4 Territrio da populao caiara 61

    Figura 5 Limites territoriais da Regio Metropolitana da Baixada Santista 81

    Grfico 1 Distribuio dos restaurantes conforme os anos de atividade 98

    Grfico 2 Distribuio dos restaurantes conforme o nmero de mesas 98

    Grfico 3 Distribuio dos restaurantes conforme o nmero de funcionrios 99

    Grfico 4 Distribuio dos restaurantes conforme o servio adotado 99

    Grfico 5 Distribuio dos restaurantes conforme o ticket mdio 100

    Grfico 6 Distribuio dos restaurantes conforme o nmero de pratos oferecidos

    nos cardpios 100

    Grfico 7 Distribuio dos entrevistados conforme o sexo 101

    Grfico 8 Distribuio dos entrevistados conforme a nacionalidade 101

    Grfico 9 Distribuio dos entrevistados conforme o cargo exercido nos

    restaurantes 102

    Grfico 10 Distribuio dos entrevistados conforme a faixa etria 102

    Grfico 11 Distribuio dos entrevistados conforme a escolaridade 103

    Grfico 12 Nmero de pratos da culinria caiara citados pelos entrevistados como

    vendidos nos restaurantes 105

    Grfico 13 Distribuio dos cursos oferecidos pelos restaurantes 115

    Foto 1 Cerco para a captura do peixe 59

    Foto 2 Peixe Azul Marinho 63

    Foto 3 Caiara confeccionando uma canoa artesanalmente 64

    Foto 4 Tainha assada na telha na Festa da Tainha de Praia Grande 68

    Foto 5 Peixe seco 72

    Foto 6 Lambe-Lambe 78

    Foto 7 Barreado 78

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Sntese das informaes sobre Santos, So Vicente e Guaruj 84

    Tabela 2 Localizao dos restaurantes pesquisados 97

    Tabela 3 Frequncia absoluta e relativa das questes sobre o nvel de instruo exigido

    aos funcionrios dos restaurantes 103

    Tabela 4 Frequncia absoluta e relativa das perguntas sobre o conhecimento, aquisio

    de ingredientes e demanda da culinria caiara 109

    Tabela 5 Frequncia absoluta e relativa das perguntas sobre os treinamentos e

    qualidade versus hospitalidade 114

    Tabela 6 Descritiva completa para pratos 118

    Tabela 7 Frequncia absoluta e relativa dos pratos tradicionais da culinria caiara

    vendidos nos restaurantes 119

    Tabela 8 Distribuio dos pratos caiaras por tempo de atividade dos restaurantes 120

    Tabela 9 Distribuio dos pratos caiaras de acordo com a localizao dos

    restaurantes 120

    Tabela 10 Frequncia absoluta e relativa de cada resposta nas questes de escala Likert

    seguido da mediana de cada questo 122

    Tabela 11 Mdia, mediana e desvio padro das variveis demanda, conhecimento e

    hospitalidade e teste para mediana

  • LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    ABIA Associao Brasileira das Indstrias da Alimentao

    ABRASEL Associao Brasileira de Bares e Restaurantes

    ANVISA Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    EMPLASA Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S.A.

    FEPASA Ferrovia Paulista S.A.

    FERROBAN Ferrovia dos Bandeirantes S.A.

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    ONG Organizao No Governamental

    PIB Produto Interno Bruto

    POF Pesquisa de Oramento Familiar

    RMBS Regio Metropolitana da Baixada Santista

    SINHORES Sindicato dos Hotis, Restaurantes, Bares e Similares da Baixada Santista

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura

  • SUMRIO

    INTRODUO......................................................................................................................15

    CAPTULO 1 HOSPITALIDADE E DIFERENCIAL COMPETITIVO....................... 20

    1.1 Hospitalidade....................................................................................................................20

    1.1.1 Comensalidade e Hospitalidade nos Restaurantes..........................................................30

    1.2 Qualidade de servios como diferencial competitivo nos restaurantes.......................36

    1.3 Tendncias gastronmicas do sculo XXI .....................................................................41

    CAPTULO 2 OS RESTAURANTES..................................................................................47

    2.1 A evoluo dos restaurantes............................................................................................47

    2.1.1 O crescimento do segmento food service no Brasil ........................................................51

    2.2 Restaurantes especializados em peixes e frutos do mar................................................53

    2.3 A importncia do cardpio para os restaurantes .........................................................55

    CAPTULO 3 A CULINRIA CAIARA E A BAIXADA SANTISTA..........................59

    3.1 A Culinria Caiara..........................................................................................................59

    3.2 Caracterizao da Regio Metropolitana da Baixada Santista (RMBS) ....................79

    CAPTULO 4 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS ...............................................85

    4.1 Caracterizao da pesquisa..............................................................................................85

    4.1.1 Universo e amostra da pesquisa.......................................................................................86

    4.2 Coleta de dados ................................................................................................................88

    4.3 Tratamento e anlise dos dados.......................................................................................91

    4.3.1 Teste do sinal para mediana ............................................................................................93

    4.3.2 Coeficiente de correlao de Pearson..............................................................................93

    4.3.3 Coeficiente de correlao de Spearmam..........................................................................94

    4.3.4 Alfa de Cronbach.............................................................................................................95

    CAPTULO 5 ANLISE DOS RESULTADOS..................................................................96

    5.1 Descrio da amostra.......................................................................................................96

    5.2 Resultados Qualitativos..................................................................................................104

    5.2.1 Culinria Caiara...........................................................................................................104

    5.2.2 Hospitalidade.................................................................................................................109

    5.2.3 Qualidade de servios....................................................................................................113

    5.3 Resultados Quantitativos...............................................................................................118

    5.3.1 Anlise dos cardpios ...................................................................................................118

    5.3.2 Anlise das questes da escala Likert............................................................................121

    CONSIDERAES FINAIS ..............................................................................................126

  • REFERNCIAS....................................................................................................................132

    APNDICE A: Questionrio para identificao caracterizao dos restaurantes ................151

    APNDICE B: Roteiro da entrevista semiestruturada...........................................................153

    APNDICE C: Questionrio Likert ......................................................................................154

    APNDICE D: Relao de pratos da culinria caiara para anlise dos cardpios.................155

    APNDICE E: Termo de consentimento livre e esclarecido................................................158

    APNDICE F: Tabulao dos dados no Excel......................................................................159

  • 15

    INTRODUO

    A alimentao mais do que um fato biolgico, um ato social e cultural. A culinria

    de um pas, uma regio ou um grupo tnico determinada pelas circunstncias geogrficas,

    climticas, econmicas e sociais (BELLUZO, 2006; LODY, 2008). Desse modo, ao focaliz-

    la, deve-se levar em considerao o processo histrico-cultural de sua origem, contextualizando

    e particularizando sua existncia (CANESQUI, 2005).

    Por meio da culinria, as pessoas expressam suas preferncias e averses e a cozinha

    torna-se smbolo de uma identidade pela qual as pessoas podem se orientar e se distinguir

    (MACIEL, 2004). Toda receita tem vida e, por trs dela, uma histria que foi alterada e adaptada

    conforme as referncias e os costumes de uma poca. Portanto, deve ser guardada como

    patrimnio cultural e imaterial, preservada para geraes futuras em respeito da sua

    ancestralidade (PEANHA, 2009).

    O estudo da hospitalidade impreterivelmente passa pela abordagem da alimentao e a

    oferta do alimento delimita e concretiza o ato da hospitalidade (LASHEY, 2004; CAMARGO,

    2004). Nesse sentido, a comensalidade, entendida como uma forma de hospitalidade, propicia

    a interao entre pessoas e contribui para o desenvolvimento de vnculos sociais com uma

    dinmica de reciprocidade no mbito da convivialidade e da solidariedade (REJOWSKI;

    GIMENEZ; MARANHO, 2014).

    A culinria brasileira se formou a partir da miscigenao das culinrias indgena, ibrica

    e africana e, com o decorrer do tempo, foi adquirindo caractersticas e peculiaridades prprias.

    Devido s grandes dimenses do Brasil e s diversas correntes migratrias, suas regies

    possuem diferenas marcantes e pratos tpicos exclusivos, preparados a partir de ingredientes

    regionais e adaptados ao clima e sazonalidade dos alimentos. Essa diversidade confere

    culinria riqueza cultural, alto valor nutricional e sabores originais.

    Em decorrncia da industrializao e da globalizao, ocorreram mudanas nos hbitos

    alimentares dos brasileiros, marcadas pelo consumo excessivo de produtos industrializados em

    detrimento de produtos regionais com tradio cultural (GARCIA, 2003). Nas ltimas dcadas

    do sculo XX, observou-se a preferncia pela quantidade, a padronizao dos alimentos e dos

    sabores e a ausncia de tradies regionais ligadas gastronomia brasileira. Essas mudanas

    traduziram-se no aumento da demanda por produtos prontos para comer e da frequncia aos

    restaurantes.

  • 16

    Fortalecendo essas mudanas, o sistema agrrio, para ofertar maior variedade de

    alimentos ao longo do ano, recorreu ao uso generalizado e crescente de fertilizantes e

    agrotxicos, o que tambm contribuiu para a homogeneizao progressiva dos alimentos

    (CONTRERAS, 2011). Como consequncia desse processo, houve o desaparecimento das

    produes de carter local e a perda de identidade cultural em diversas regies brasileiras.

    Na busca de frear os efeitos nocivos desta realidade, na primeira dcada do sculo XXI,

    temas como sustentabilidade, valorizao das cozinhas e dos ingredientes regionais, uso de

    alimentos orgnicos e sazonais, comfort food (comida de conforto, comida caseira) e o resgate

    das culinrias tpicas, ganharam centralidade na gastronomia brasileira e inspiraram diversos

    movimentos organizados, na sua maioria, por chefs de cozinha. Um desses o Brasil Mesa,

    liderado pela chef de cozinha Monica Rangel, que defende o consumo de ingredientes regionais

    produzidos prximos ao local de consumo.

    Como resultado, as manifestaes sociais intangveis vm sendo recuperadas com suas

    particularidades regionais e incorporadas ao patrimnio cultural nacional. A ttulo de exemplos,

    tem-se os registros do po de queijo e do bolo de rolo como patrimnio cultural e imaterial dos

    estados de Minas Gerais e Pernambuco, respectivamente. Tambm vista desses movimentos,

    as culinrias regionais vm sendo resgatadas e valorizadas (BELLUZO, 2006).

    Paralelamente a isso, o hbito de se alimentar fora do lar intensificou-se entre os

    brasileiros e comum nas grandes cidades, onde h uma diversidade de restaurantes que agrada

    a todos os tipos de paladares. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    (IBGE, 2004), o brasileiro gasta cerca de 25% de sua renda com alimentao fora do lar. A

    Associao de Bares e Restaurantes (ABRASEL, 2015) estima que o setor represente, hoje,

    2,7% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. J a Associao Brasileira das Indstrias da

    Alimentao (ABIA) destaca que o setor tem crescido a uma mdia anual de 14,2%

    (ABRASEL, 2015).

    Para se diferenciarem num mercado concorrido, os restaurantes tendem a oferecer

    servios de hospitalidade aliados manuteno da cultura regional e preservao dos recursos

    naturais, e por consequncia garantir a continuidade local e atrair turistas. Tambm buscam

    especializarem-se em determinados produtos, preparao, mtodo de coco, pas e regio,

    visando ao aumento da qualidade daquilo que oferecem e diminuio do desperdcio.

    Este contexto, somado vivncia acadmica da pesquisadora na ministrao da

    disciplina prtica de Culinria Caiara do curso de Gastronomia de um Centro Universitrio da

    Regio Metropolitana da Baixada Santista (RMBS), com a constatao de que a maioria de seus

  • 17

    alunos, quando ingressam no curso, desconhecem os ingredientes e os pratos regionais e a

    percepo de que a oferta dessa culinria e a prtica da hospitalidade so reduzidas nos

    restaurantes da regio, despertou o interesse pelo tema deste estudo e instigou o problema da

    pesquisa:

    Quais fatores interferem na representatividade da culinria caiara e na

    prtica da hospitalidade nos restaurantes especializados em peixes e frutos

    do mar da Baixada Santista?

    Optou-se por estudar os restaurantes especializados em peixes e frutos do mar porque

    os pescados so as principais matrias-primas da culinria caiara, portanto, a incluso de pratos

    dessa culinria nos cardpios desses restaurantes justifica-se. Quanto escolha da regio, deu-

    se porque est localizada num territrio considerado caiara, que abrange cerca de 122 praias

    distribudas em 65 km contnuos de extenso litornea no Estado de So Paulo. Alm disso,

    destaca-se por sua atividade turstica e apresenta inmeros restaurantes da tipologia escolhida

    (JUNQUEIRA; CLARO; GAUDEOSO, 2010).

    A partir do problema, foi definido o objetivo geral:

    Identificar quais fatores interferem na representatividade da culinria

    caiara e na prtica da hospitalidade nos restaurantes especializados em

    peixes e frutos do mar da Baixada Santista.

    Para tanto, foram traados os seguintes objetivos especficos:

    Avaliar o nvel de conhecimento dos gestores dos restaurantes sobre culinria

    caiara e hospitalidade;

    Analisar os pratos da culinria caiara presentes nos cardpios dos restaurantes;

    Analisar a demanda por pratos tpicos da culinria caiara nos restaurantes;

    Analisar as dificuldades encontradas na aquisio dos ingredientes tpicos da

    culinria caiara.

    Analisar as prticas de hospitalidade empregadas nos restaurantes.

    As hipteses norteadoras desta pesquisa so:

  • 18

    H1. A demanda por pratos tpicos da culinria caiara um fator que interfere na

    representatividade dessa culinria nos restaurantes;

    H2. O conhecimento dos gestores sobre a culinria caiara um fator que interfere na

    representatividade dessa culinria nos restaurantes;

    H3. A prtica da hospitalidade nos restaurantes considerada um fator diferencial

    competitivo pelos gestores.

    Para a academia, a pesquisa relevante porque aborda uma culinria pouco explorada

    pela literatura, apresentando um inventrio de seus principais pratos, uma ferramenta que pode

    contribuir para futuras pesquisas em diversas reas do conhecimento. Alm disso, o retrato da

    viso de gestores de restaurantes sobre hospitalidade e suas prticas pode servir de parmetro

    para futuros estudos e abordagens sobre hospitalidade.

    No que tange relevncia social, a abordagem da culinria caiara uma maneira de

    divulg-la aos gestores dos restaurantes e consequentemente aumentar sua oferta, impactando

    na produo de alimentos regionais e na sustentabilidade de pequenos produtores caiaras.

    Tambm oferece informaes importantes aos rgos pblicos e Organizaes No

    Governamentais (ONGs) que tm como objetivo preservar as comunidades tradicionais.

    Para o mercado de alimentos e bebidas, a pesquisa apresenta um diagnstico dos

    cardpios e das prticas de hospitalidade adotadas pelos restaurantes especializados em peixes

    e frutos do mar, que pode ser til aos estabelecimentos que buscam diferenciarem-se

    competitivamente pela qualidade de servios.

    Por fim, a pesquisa evidencia o potencial turstico da culinria caiara para a Baixada

    Santista, podendo incentivar sua incluso em mais cardpios.

    Segundo os objetivos estabelecidos, esta pesquisa caracteriza-se como exploratria e

    descritiva. Quanto natureza dos dados, denominada quali-quantitativa. A coleta de dados foi

    realizada entre os dias 28 de maro e 4 de maio de 2016 por meio de pesquisa bibliogrfica e

    de campo e, para tanto, foram utilizados quatro instrumentos: um questionrio com perguntas

    fechadas para caracterizar e identificar os restaurantes e seus gestores; um roteiro com

    perguntas semiestruturadas para as entrevistas realizadas pela pesquisadora junto aos gestores

    dos restaurantes; um questionrio fundamentado na escala Likert para preenchimento pelos

    gestores; e um quadro com pratos caiaras para a pesquisadora assinalar aqueles presentes no

    cardpio de cada restaurante.

  • 19

    Diante da extenso da Regio Metropolitana da Baixada Santista (RMBS), integrada

    por nove municpios (Bertioga, Cubato, Guaruj, Itanham, Mongagu, Perube, Praia Grande,

    Santos e So Vicente), por convenincia e disponibilidade de tempo da pesquisadora, optou-se

    em estudar os restaurantes especializados em peixes e frutos do mar de So Vicente, Santos e

    Guaruj.

    Sero apresentados trs captulos conceituais que abordaro as palavras-chave

    norteadoras da pesquisa, um captulo com os procedimentos metodolgicos e um com a anlise

    dos resultados.

    O primeiro captulo, intitulado de Hospitalidade e Diferencial Competitivo, conceitua

    a hospitalidade focando-a no domnio comercial; relaciona comensalidade e hospitalidade aos

    restaurantes; discorre sobre qualidade de servios como diferencial competitivo nos

    restaurantes e contextualiza sobre as tendncias gastronmicas do XXI.

    O segundo captulo, intitulado Os Restaurantes, narra a evoluo dos restaurantes

    desde o sculo XVII at os dias atuais e apresenta os dados sobre sua posio no setor de Food

    Service na ltima dcada; define e descreve os restaurantes especializados em peixes e frutos

    do mar; destaca a importncia dos cardpios para a identidade desses estabelecimentos.

    O terceiro captulo, intitulado A Culinria Caiara e A Baixada Santista, apresenta a

    culinria caiara e caracteriza a Regio Metropolitana da Baixada Santista (RMBS), dando

    destaque aos municpios de So Vicente, Santos e Guaruj.

    O quarto captulo, intitulado de Procedimentos Metodolgicos, caracteriza a pesquisa

    quanto aos mtodos utilizados para a abordagem do problema; natureza dos objetivos; ao

    mtodo de investigao e aos procedimentos de coleta de dados. Alm disso, explica os mtodos

    utilizados para o tratamento e anlise dos resultados qualitativos e quantitativos.

    O quinto e ltimo captulo, intitulado de Anlise dos Resultados, descreve a amostra e

    apresenta os resultados, discutindo-os luz da teoria.

    Por fim, so apresentadas as Consideraes Finais da pesquisa, bem como suas

    contribuies e sugestes para trabalhos futuros, ressaltando algumas reflexes sobre o tema

    estudado.

  • 20

    1 HOSPITALIDADE E DIFERENCIAL COMPETITIVO

    Este captulo conceitua a hospitalidade focando-a no domnio comercial; relaciona

    comensalidade e hospitalidade aos restaurantes; discorre sobre qualidade de servios como

    diferencial competitivo nos restaurantes e contextualiza sobre as tendncias gastronmicas do

    XXI.

    Para o embasamento do referencial terico, foram utilizados os autores relacionados no

    Quadro 1, abaixo.

    Palavras-chave Autores, Instituies e Associaes

    Hospitalidade BATISTA, 2008; BENVENISTE, 1995; BROTHERTON; WOOD, 2004;

    CAMARGO, 2004; CAMARGO, 2006; GOTMAN, 2009; GRINOVER, 2002;

    GRINOVER, 2006; LASHEY, 2015; LASHLEY, 2004; MONTANDON, 2011;

    MORETTI; CARRER; SILVA, 2015; OMAHONY, 2015; QUADROS, 2011;

    SELWYN, 2004; SYMONS, 2013; TELFER, 2004.

    Qualidade de

    Servios

    CARPINETTI, 2011; FITZSIMMONS; FITZSIMMONS, 2000; GUMMESSON

    1998; KOTLER; ARMSTRONG, 2015; LAS CASAS, 1999; LOVELOCK;

    WRIGHT, 2001; PARASURAMA ET AL, 1988; TROSTER,1999; ZEITHAML

    E BITNER,2000.

    Diferencial

    Competitivo

    KOTLER; ARMSTRONG, 2015; KOTLER; KELLER, 2012 .

    Quadro 1: Principais autores consultados para a fundamentao terica do Captulo 1.

    Fonte: Elaborado pela autora.

    1.1 Hospitalidade

    A hospitalidade vem sendo pesquisada a partir de uma perspectiva ampla. No se

    limitando s questes de oferecimento de produtos pelas reas de Hotelaria e Alimentos e

    Bebidas (A&B), discutida por inmeros autores sob diferentes recortes das cincias sociais e

    das cincias e tecnologias aplicadas administrao, educao, comunicao, arquitetura,

    ao urbanismo, ao planejamento ambiental, aos recursos naturais etc. (GRINOVER, 2002).

    Devido a esta complexidade, a literatura no apresenta consenso em torno de um nico

    conceito.

  • 21

    Quando utilizada para identificar os servios de hospedagem e alimentao, a palavra

    hospitalidade empregada como sinnimo de hospitality industry (indstria da hospitalidade),

    que engloba hospedagem, alimentos e bebidas, eventos, viagens. Legitimando esta associao,

    Chon e Sparrowe (2003, p. 3), explicam:

    A indstria da hospitalidade compreende uma grande variedade de negcios,

    todos dedicados a prestar servios a pessoas que esto longe de suas casas.

    Hoje, como no passado, os principais componentes da indstria so aqueles

    que satisfazem a necessidade de abrigo e acomodao e aqueles que fornecem

    alimentos e bebidas a seus clientes.

    A origem etimolgica da palavra hospitalidade oferece indcios sobre o seu

    significado e amplia a discusso. De acordo com Benveniste (1995), hospitalidade provm

    do latino hospitalitate e designa o ato de hospedar; hospedagem; a qualidade de hospitaleiro;

    boa acolhida; recepo. J hospes designa hspede, forasteiro, estrangeiro, aquele que

    acolhido provisoriamente em casa alheia. Portanto, a palavra remete a um fato social, ao ato

    de acolher, alimentar e hospedar o hspede/visitante (BENVENISTE, 1995).

    Telfer (2004, p. 54) define o termo hospitalidade como sendo oferta de alimentos e

    bebidas e, ocasionalmente, acomodao para pessoas que no so membros regulares da casa.

    A ideia da autora se desdobra em vrios sentidos: Por exemplo, uma empresa proporciona

    hospitalidade se fornece alimentos e bebidas aos visitantes. Mas, a ideia central do conceito

    envolve a partilha da prpria casa a proviso de terceiros e ressalta:

    [...] a hospitalidade pode ser vista como um meio, entre outros, pelo qual

    algum pode escolher exercer diversas virtudes mais gerais: benevolncia,

    zelo pelo bem-estar pblico, compaixo, afetividade. Pode-se cham-la de

    virtude operacional: todos devem ser compassivos, benevolentes e afetuosos,

    mas nem todos precisam tentar ser hospitaleiros (TELFER, 2004, p. 54).

    Na leitura de Brotherton e Wood (2004, p. 192), h dois enfoques amplos (e no

    refinados) para definir hospitalidade: o primeiro semntico; e o segundo, comprobatrio. O

    enfoque semntico centra-se nas definies dos termos dicionarizados e tende ao

    indeterminado. Muitas dessas definies refletem sobre a perspectiva da hospitalidade privada

    e incluem os elementos virtuosos da hospitalidade, valores como generosidade, abertura,

    hospitabilidade e reciprocidade esto presentes nesses verbetes dados pelos dicionrios

    (OMAHONY, 2015). O enfoque comprobatrio procura localizar e definir a hospitalidade

    dentro do mundo real da evidncia (BROTHERTON; WOOD, 2004). Os autores, analisando

    esses enfoques, identificaram caractersticas importantes atribudas a esse tema e destacaram:

  • 22

    Interessa-se pela produo e pela oferta de determinados produtos materiais, isto , acomodao e/ou alimento e/ou bebida;

    Envolve uma relao de troca, que pode ser sobretudo econmica, social ou psicolgica por natureza;

    Compe-se de uma combinao de elementos tangveis e intangveis, cuja exata proporo varia conforme as condies especficas das diferentes

    situaes de troca de hospitalidade;

    Associa-se a formas particulares de comportamento e interao humana;

    No inevitavelmente sinnimo de comportamento hospitaleiro, que necessrio, mas no suficiente para a existncia da hospitalidade;

    uma atividade assumida voluntariamente pelas partes envolvidas;

    Pode ser provida e consumida por uma variedade de motivos diferentes;

    Pode variar em sua forma especfica, na funo e na razo motivacional ao longo do tempo e espao, mas, na essncia, permanece qualitativamente a

    mesma;

    uma atividade idealizada para gerar comensalidade e realce mtuo para as partes envolvidas;

    Envolve pessoas no processo de troca de hospitalidade;

    uma troca que ocorre dentro de uma extenso de tempo intermediria, e que reflete a ntima conexo temporal entre suas facetas de produo e de consumo

    (BROTHERTON; WOOD, 2004, p. 202).

    Na busca de sintetizar essas caractersticas numa definio, Brotheron (1999, p. 168

    apud BROTHERTON; WOOD, 2004, p. 202) props o seguinte: Uma troca humana

    contempornea, assumida voluntariamente e concebida para aumentar o bem-estar mtuo das

    partes envolvidas mediante oferta de acomodao e/ou alimento e/ou bebida.

    Nesta definio, o termo acomodao usado para se referir a qualquer acomodao,

    permanente ou temporria, usada para abrigar a troca da hospitalidade e envolve tanto locais

    domsticos quanto comerciais, postulando que a hospitalidade ocorre dentro de um lugar. Neste

    sentido, inclui lugares ao ar livre, como churrascos, piqueniques, catering etc.

    (BROTHERTON; WOOD, 2004).

    A Figura 1, na pgina seguinte, esquematiza as dimenses da hospitalidade sugeridas

    por Brotheron (2004, p. 203).

  • 23

    Figura 1: As dimenses da hospitalidade segundo Brotherton e Wood (2004).

    Fonte: Brotherton e Wood (2004, p. 203).

    O que se nota na definio de Brotherton e Wood (2004) que a hospitalidade extrapola

    um conjunto de atividades do setor de servios ligadas produo e ao fornecimento de

    alimentos, bebidas e acomodaes, envolvendo tambm os valores sociais do consumo de

    hospitalidade, atravs da noo de aprimoramento do bem-estar mtuo. Alm disso, percebe-

    se a combinao entre aspectos tangveis e intangveis, tambm citada por Lockwood e Jones

    (2004), como integradora das partes envolvidas, ou seja, receptor e provedor.

    Corroborando com esses autores, Selwyn (2004) diz que a hospitalidade deriva do ato

    de dar e receber e tambm destaca a importncia daquilo que trocado e onde ocorrem essas

    trocas. O autor completa dizendo que a hospitalidade uma maneira de consolidar

    relacionamentos com estranhos, por meio do qual a sociedade muda, cresce, renova-se e se

    reproduz.

    Associando a hospitalidade ao acolhimento, Grinover (2006, p. 32) diz o seguinte:

    A hospitalidade supe a acolhida; uma das leis superiores da humanidade,

    uma lei universal. Acolher permitir, sob certas condies, a incluso do outro

    no prprio espao. A hospitalidade, como diz Jacques Godbout (1997), um

    dom do espao; espao a ser lido, habitado, atravessado ou contemplado.

    (GRINOVER, 2006, p. 32)

    Moretti, Carrer e Silva (2015, p. 2) tambm entendem a hospitalidade como uma troca,

    um modo de viver com os outros.

  • 24

    [...] ela um signo de civilizao, um modo de viver com outros, regido por

    regras, ritos e leis. A noo de hospitalidade, portanto, empregada em

    diferentes contextos: desde a hospitalidade familiar, a esfera do Estado (por

    exemplo, a legislao sobre estrangeiros), passando pela hospitalidade

    comercial, que foge regra da gratuidade e da reciprocidade, at um novo

    modo urbano de Hospitalidade (MORETTI; CARRER; SILVA, 2015, p. 2).

    Seguindo estes argumentos, Camargo (2004, p. 52) define a hospitalidade como um ato

    humano exercido em contexto domstico, pblico e profissional, de recepcionar, hospedar,

    alimentar e entreter pessoas temporariamente deslocadas de seu hbitat natural. Com a

    finalidade de responder quais as prticas sociais se inserem dentro do processo de hospitalidade,

    o autor estabeleceu dois eixos:

    O primeiro referente aos tempos sociais da hospitalidade humana: o

    receber/acolher pessoas; hosped-las; aliment-las e entret-las;

    O segundo referente aos espaos sociais nos quais o processo se desenrola: o

    domstico, o pblico, o comercial e o virtual.

    Quanto aos tempos sociais, o receber a preocupao inicial, o primeiro contato do

    anfitrio com o visitante. O hospedar trata da oferta de abrigo ao estranho, ao que vem de fora.

    O alimentar est relacionado a esse acolhimento como forma de saciar a fome. Por fim, o

    entreter propor um momento agradvel ao visitante. O Quadro 2, na pgina seguinte, explica

    os eixos propostos pelo autor.

  • 25

    Recepcionar Hospedar Alimentar Entreter

    Domstica Receber pessoas

    em casa, de

    forma intencional

    ou casual.

    Fornecer pouso e

    abrigo em casa

    para pessoas.

    Receber em casa

    para refeies e

    banquetes.

    Receber para

    recepes e

    festas.

    Pblica A recepo em

    espaos e rgos

    pblicos de livre

    acesso.

    A hospedagem

    proporcionada

    pela cidade e pelo

    pas, incluindo

    hospitais, casas

    de sade,

    presdios...

    A gastronomia

    local.

    Espaos pblicos

    de lazer e

    eventos.

    Comercial Os servios

    profissionais de

    recepo.

    Hotis. A restaurao. Eventos e

    espetculos.

    Espaos privados

    de lazer.

    Virtual Folhetos,

    cartazes, folderes,

    internet, telefone,

    e-mail.

    Sites e

    hospedeiros de

    sites.

    Programas na

    mdia e sites de

    gastronomia.

    Jogos e

    entretenimento na

    mdia.

    Quadro 2: Os tempos e espaos da hospitalidade humana.

    Fonte: CAMARGO (2004, p. 84).

    Observa-se que a hospitalidade ultrapassa receber, hospedar e entreter, e pode ser

    entendida como uma relao social, em que o encontro de pessoas determina o ambiente

    hospitaleiro. Tambm pode ser interpretada como um comportamento que propicia a troca de

    benefcios mtuos entre o anfitrio e o visitante (ARAJO; GONALVES; MATIAS, 2014).

    Nessa direo, Lashley (2004) sugere que a hospitalidade , essencialmente, o

    relacionamento estabelecido entre o anfitrio e o hspede e que para ser eficaz necessrio que

    o hspede sinta que o anfitrio est sendo hospitaleiro por sentimentos de generosidade, pelo

    desejo de agradar e por ver o hspede como indivduo.

    O autor, assim como Camargo (2004), ressalta a importncia de um conceito amplo que

    permita a anlise das atividades desenvolvidas em espaos sociais, nomeados por ele como

    domnios social, privado e comercial.

    Colocando de modo simples, cada domnio representa um aspecto da oferta

    de hospitalidade, que tanto independente como sobreposto. O domnio social

    da hospitalidade considera os cenrios sociais em que a hospitalidade e os atos

    ligados condio de hospitalidade ocorrem junto com os impactos de foras

    sociais sobre a produo e o consumo de alimentos, bebidas e acomodao. O

    domnio privado considera o mbito das questes associadas oferta da

    trindade no lar, assim como leva em considerao o impacto do

    relacionamento entre anfitrio e hspede. O domnio comercial diz respeito

    oferta de hospitalidade enquanto atividade econmica e inclui as atividades

    dos setores tanto privado quanto pblico (LASHLEY, 2004, p. 6).

  • 26

    A Figura 2, ilustra os trs domnios e a interseco entre eles, destacando onde ocorre a

    experincia da hospitalidade.

    Figura 2: Os domnios da hospitalidade.

    Fonte: LASHEY (2015).

    As definies dos autores convergem para a ideia de que a hospitalidade uma

    relao humana concebida para promover a troca, o acolhimento e o bem-estar. Brotherton e

    Wood (2004, p. 196) acrescentam que, alm da troca, a hospitalidade envolve uma motivao

    comportamental. A esta perspectiva, soma-se a viso de Selwyn (2004, p. 26):

    A funo bsica da hospitalidade estabelecer um relacionamento ou

    promover um relacionamento j estabelecido. Os atos relacionados com a

    hospitalidade obtm este processo de produtos e servios, tanto materiais

    quanto simblicos, entre aqueles que do hospitalidade (os anfitries) e

    aqueles que a recebem (os hspedes). Uma vez que os relacionamentos

    necessariamente se desenvolvem dentro de estruturas morais, uma das

    principais funes de qualquer ato de hospitalidade (no caso de um

    relacionamento j existente) consolidar o reconhecimento de que os anfitries

    e os hspedes j partilham do mesmo universo moral ou (no caso de um novo

    relacionamento) permitir a construo de um universo moral em que tanto o

    anfitrio quanto o hspede concordam em fazer parte.

  • 27

    Essa relao humana, entendida como hospitalidade, pode assumir caractersticas

    diferentes dependendo de onde se estabelece. No domnio privado ou domstico, a

    hospitalidade ocorre em sua acepo mais ancestral, com todas as decorrncias em termos de

    dons e contra dons (CAMARGO, 2006). Neste domnio ou espao, pode-se dizer que a

    hospitalidade assimtrica, pois regida por regras, ritos e leis iniciadas no instante que o

    hspede se aproxima da casa do anfitrio at o momento de sua partida (MONTANDON, 2011).

    O hspede deve obedincia s regras e aos limites do anfitrio e este deve ao hspede acolhida

    e cortesia. Quando o hspede desobedece s regras do anfitrio ou quando o anfitrio tolhe a

    liberdade do hspede, a hospitalidade d espao para a hostilidade (MONTANDON, 2011).

    Quadros (2011, p. 50) diz que o domnio social

    [...] representa o conjunto de comportamentos da vida privada, exercida dentro

    de um limitado crculo de amizade ou relacionamento, ou seja, nasce no

    contexto da vida familiar e se expande para as outras esferas das relaes

    humanas.

    Enquanto a hospitalidade no domnio social prima pela interao fundamentada na

    experincia social, com o objetivo de estabelecer e fortalecer os vnculos, o domnio comercial

    reflete a busca da lucratividade por meio da satisfao do hspede/cliente e abole o sacrifcio e

    a assimetria ao impor um contrato e trocar servios por dinheiro (QUADROS, 2011;

    CAMARGO, 2006). Goudbout e Caill (1999, p. 18) dizem que o dinheiro um antdoto da

    ddiva: A menos que se sinta, simplesmente, certo prazer em retribuir. Diante dos riscos

    inerentes a qualquer ddiva, o dinheiro e o recurso a uma lgica mercantilista so os antdotos

    ao mesmo tempo contraddivas e contravenenos por excelncia.

    A relao comercial desliga o anfitrio e o hspede da obrigao da ddiva (GOTMAN,

    2009). Com base nesta anlise, Gotman (2009, p. 8) reflete:

    Da ddiva relao comercial, o devido substitui a ddiva. A ateno e o

    servio so contratuais e no objetos de ddiva e o cliente qualificado pelas

    exigncias relacionadas regra do preo justo que mediatiza as relaes

    sociais. As relaes no so imediatas e os conflitos, mediatizados, no opem

    diretamente os protagonistas, fazendo intervir um terceiro abstrato espcie

    de contrato que serve ao mesmo tempo como regulador mas tambm

    como escapatria.

    Portanto, na oferta da hospitalidade na dimenso comercial, tanto o anfitrio quanto o

    hspede entram em uma conjuntura de hospitalidade com reduzido senso de reciprocidade e

  • 28

    obrigao mtua (LASHLEY, 2004, p. 19). O anfitrio hospitaleiro para assegurar a

    satisfao do hspede, limitar o nmero de reclamaes e gerar uma visita de retorno. J o

    hspede tem pouco senso de obrigao mtua, e a troca financeira o isenta disto e da lealdade

    (LASHLEY, 2004).

    Para Symons (2013), a definio de hospitalidade baseia-se na distino entre famlias

    e outras organizaes sociais, denominadas de instituies. As famlias buscam a

    reciprocidade por meio da ateno s necessidades fsicas, culturais e psicolgicas. As

    instituies, por sua vez, caracterizam-se pela falta de reciprocidade e interessam-se pelas

    pessoas como clientes provedores de dinheiro.

    No obstante, Camargo (2006) pondera dizendo que o dom subsiste no corao do

    mercado. Ento, na hospitalidade comercial, a hospitalidade propriamente dita acontece aps o

    contrato, para alm do ou tudo que se faz alm do contrato (CAMARGO, 2006). OConnor

    (2005) concorda com esta colocao quando afirma que a hospitalidade uma virtude que

    pertence natureza humana.

    Retomando Telfer (2004), a autora diz que mesmo existindo um interesse final

    calculista, a hospitalidade no domnio comercial pode existir. De acordo com ela, quem oferta

    hospitalidade deve assumir o bem-estar daquele que est recebendo. Para que a hospitalidade

    seja verdadeira, o anfitrio deve se preocupar com as reais necessidades daquele a quem a

    hospitalidade ofertada, havendo um esprito de hospitalidade na relao. Nesse sentido, diz:

    Se a pessoa acolhe por dever, ser que est sendo hospitaleira ou est

    simplesmente fazendo o que deve? Acredito que ela esteja sendo hospitaleira

    desde que aquilo que chamei de esprito de hospitalidade seja generoso [...] se

    um hospedeiro comercial atende bem aos seus hspedes com um interesse

    autntico por sua felicidade, cobrando um preo razovel no extorsivo por

    aquilo que oferece, suas atividades podero ser chamadas de hospitaleiras [...]

    Esse tipo de hospedeiro presta um servio generoso, no mnimo, porque

    deseja agradar os hspedes; os hspedes pagam, no em hospitalidade, mas

    atravs de uma soma de dinheiro, considerada equivalente a um bom negcio

    e base para relaes amigveis entre o hospedeiro e o hspede. Dizer que no

    se pode considerar que um hospedeiro comercial se comporta com

    hospitalidade s pelo fato de ele ser pago por seu trabalho o mesmo que dizer

    que no se pode considerar que um mdico se comporta com compaixo

    porque ele pago pelo servio que presta (TELFER, 2004, p. 59).

    A autora tambm destaca a importncia da motivao do colaborador para o contato

    com o hspede/cliente, entendida como hospitabilidade. No h uma receita para estimular a

  • 29

    hospitabilidade, mas necessrio que o prestador de servios tenha esta caracterstica, assim

    como a empresa deve t-lo em relao ao colaborador (TELFER, 2004).

    Lashley (2004) acredita que o treinamento de funcionrios e gerentes, baseado nos

    valores de hospitalidade, pode minimizar a impresso imposta comercialmente quanto

    hospedagem calculista. A identificao, o recrutamento, o treinamento e a capacitao dos

    indivduos para serem hospitaleiros ser fundamental no estabelecimento de uma base

    consistente de clientes fiis (LASHLEY, 2004, p. 29).

    Com a expresso gente de carne e osso, Batista (2008) permite a reflexo de que

    embora o domnio comercial invista em tecnologia e treinamento, a prestao de servios ocorre

    entre duas pessoas, gente lidando com gente. Reforando este argumento, Erig e Nascimento

    (2015, p. 44) dizem:

    A hospitalidade baseada na troca e, independentemente da esfera, seja

    domstica, pblica ou comercial, esta troca realizada por pessoas. Assim,

    as pessoas passam, nessas trocas, suas tradies, seus costumes e sua cultura.

    Sendo assim, deve-se ter o mximo de cuidado quando se refere questo da

    mo-de-obra, no sentido de formar bons profissionais que atendam s

    expectativas do mercado.

    Aps uma pesquisa exploratria, Wada e Moretti (2014), baseados num levantamento

    bibliogrfico e anlise de 22 dissertaes do Programa de Ps-Graduao em Hospitalidade,

    notaram que

    [...] a hospitalidade aplicada em atividades comerciais gradativamente

    assumida como genuna, no no sentido de que seja treinada e mesmo

    transmitida em manuais de procedimentos, mas como competncia trazida

    pelos indivduos que atuam como anfitries, o que pode resultar em

    competitividade para a organizao na qual prestem servios (WADA;

    MORETTI, 2014, p. 96).

    Embora a hospitalidade na dimenso comercial inspire vrias discusses acerca da sua

    genuinidade, consenso que o acolhimento, mesmo que ensaiado, constitui-se em troca, em

    uma relao de anfitrio e hspede.

    Tem-se, ento, que os conceitos de hospitalidade vm sendo discutidos e reformulados

    na contemporaneidade, no entanto, a maioria remete ao acolhimento, ao contato humano e

    socializao. Objetivamente, relacionam a hospitalidade, a recepo de visitantes ou clientes de

    forma agradvel, demonstrando interesse, promovendo conforto e possibilitando o usufruto de

  • 30

    servios de qualidade. Neste sentido, a hospitalidade se insere como uma prtica fundamental

    nos restaurantes.

    1.1.1 Comensalidade e hospitalidade nos restaurantes

    A abordagem da temtica da hospitalidade inevitavelmente passa pelo estudo da

    alimentao. A oferta do alimento delimita e concretiza o ato da hospitalidade, ainda que este

    alimento seja simblico, sob a forma de um copo dgua ou do po que se reparte em algumas

    culturas. (CAMARGO, 2004, p. 53). Lashey (2015, p. 81) refora este argumento, dizendo:

    O fornecimento de alimentos, bebidas e hospedagem representa um ato de

    amizade: cria laos simblicos, conectando pessoas que estabelecem vnculos,

    comprometendo os envolvidos com o compartilhamento da hospitalidade (...).

    O estudo dos alimentos desempenha um papel importante na definio da identidade de

    grupos, comunidades e sociedades, assim como na definio do relacionamento entre pessoas

    (LASHEY, 2004).

    Sob o mesmo ponto de vista, Selwyn (2004) considera o alimento como principal

    ingrediente da hospitalidade. Conforme o autor, preparar, cozinhar e servir o alimento so atos

    que transformam culturalmente substncias naturais, desenvolvendo a impresso de que as

    estruturas de autoridade cultural so sustentadas no s por Deus, mas tambm pela natureza.

    Segundo os relatos bblicos, a comida esteve presente desde os primrdios da

    humanidade, inclusive para o estabelecimento de certos limites ou normas. Dois marcos

    importantes no processo de socializao humana foram o domnio do fogo e da caa. Ao us-

    los, o homem deu um passo significativo para distinguir-se de seus ancestrais homindeos e dos

    demais animais.

    O domnio do fogo libertou-nos da naturalidade estreita do mundo das coisas

    cruas. Nos alimentos modificados pelo fogo como a mandioca crua

    transformada em farinha , a natureza transforma-se em cultura. Ao abrir

    outro mundo dentro da cozinha, livre das contingncias inflexveis da

    natureza (como a toxicidade da mandioca brava), a vida civilizada coloca-

    se na dependncia da tcnica, da sensibilidade e da criatividade. A carne,

    tornada mais tenra pelo fogo, tem sua digesto facilitada e, por isso, dizem

    paleontlogos, a humanidade pde desenvolver sua prpria massa cerebral

    como um diferencial notvel em relao s demais espcies animais (ATALA;

    DRIA, 2008, p. 52-53)

  • 31

    J a predisposio humana de repartir a comida, a bebida e o espao, princpio bsico

    da hospitalidade, originou-se quando o homem desenvolveu a capacidade de caar grandes

    presas e dividi-las (FRANCO, 2001).

    Paula (2002) sugere que a reside a origem da hospitalidade em alimentao e completa:

    A ideia de compartilhar o alimento se associa ao princpio bsico da

    hospitalidade: o prazer de satisfazer as necessidades dos outros que, explicado

    por teorias psicolgicas, gera uma recompensa acima de tudo emocional e que

    faz parte da condio humana (PAULA, 2002, p. 72).

    A modificao do alimento do cru ao cozido foi interpretada por Lvi-Strauss (2004)

    como o processo de passagem do homem da condio biolgica para a social, mas a funo

    social das refeies, ou seja, a comensalidade, tambm foi determinante.

    A palavra comensalidade deriva do latim mensa, que significa conviver mesa, e isto

    abrange o padro alimentar, o que se come e, sobretudo, como se come. Desta forma, no deve

    ser considerada apenas como um fenmeno biolgico, mas tambm como um fator estruturante

    da organizao social (CARNEIRO, 2003). Por meio da alimentao, possvel entender as

    relaes sociais e econmicas mantidas entre os povos de diferentes regies; conhecer a histria

    do apetite, dos hbitos e do gosto dos indivduos; preservar a tradio e origem dos

    experimentos desenvolvidos na gastronomia, dentre outros (PAULA, 2002, p. 73).

    [...] A comensalidade ajuda a organizar as regras da identidade e da hierarquia

    social h sociedades, por exemplo, em que as mulheres ou as crianas so

    excludas da mesa comum , assim como ela serve para tecer redes de

    relaes serve tambm para impor limites e fronteiras, sociais, polticas,

    religiosas etc. Ao longo das pocas e regies, as diferentes culturas humanas

    sempre encararam a alimentao como um ato revestido de contedos

    simblicos, cujo sentido buscamos atualmente identificar e classificar como

    polticos ou religiosos. O significado desses contedos no interpretado

    pelas culturas que o praticam, mas sim cumprido como um preceito

    inquestionvel, para o qual no so necessrias explicaes (CARNEIRO,

    2005, p. 72)

    De acordo com Boutaud (2011), a comensalidade ou o compartilhar a mesa uma forma

    de hospitalidade, uma expresso de civilidade e um dos pilares de sustentao do mundo

    contemporneo, compreendida como uma dimenso da hospitalidade. Para o autor, o comer

    tem um sentido simblico de partilha, de troca e de reconhecimento que enriquece as relaes

    e fortalece os vnculos sociais. Tambm afirma que a ideia de comer e beber junto favorece a

    empatia, a compreenso mtua e a comunho dos sentimentos. Em consonncia com esta ideia,

  • 32

    Ltoublon (2011) diz que compartilhar a mesa ou a refeio com algum reconhecida como

    uma forma de hospitalidade em qualquer tempo e cultura.

    Nesta perspectiva, Flandrin e Montanari (1998) destacam o papel social das refeies

    como diferenciador entre o ser humano e outros animais e argumentam:

    [...] o homem civilizado come no somente (e menos) por fome, para satisfazer

    uma necessidade elementar do corpo, mas tambm (e sobretudo) para

    transformar essa ocasio em um momento de sociabilidade, em um ato

    carregado de forte contedo social e de grande poder de comunicao

    (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 108).

    Corroborando com essa viso, Dias (2002) diz que a mesa um espao de comunicao.

    Atualmente, este espao tem se tornado cada vez menor nos domiclios, j que as

    mudanas econmicas, sociais e demogrficas geraram demandas que obrigaram o comensal a

    reorganizar sua rotina e a alimentao fora do lar tem se tornado uma necessidade. A insero

    da mulher no mercado de trabalho, a dificuldade de mobilidade nos centros urbanos e a falta de

    tempo para o preparo dos alimentos contriburam para este panorama (RODRIGUES; SABES,

    2006).

    Na atualidade, a comensalidade caracterizada pela escassez de tempo para o preparo

    e consumo de alimentos, pela presena de produtos industrializados e importados, pela

    transferncia das refeies dos lares para os restaurantes, pelo uso de marmitas, pela

    publicidade associada aos alimentos e pela crescente individualizao dos rituais alimentares

    (GARCIA, 2003). Paula (2005, p. XVIII) faz a seguinte interpretao deste momento:

    O modus operandi da alimentao sempre esteve relacionado a estilos de vida

    e se fssemos analis-lo na contemporaneidade, certamente deveramos

    considerar, entre outros fatores, que o tempo para o lazer ainda o tempo que

    sobra na rotina: que as mulheres deixaram o tradicional trabalho domstico

    pelo trabalho remunerado fora do lar; que a expressiva participao da mdia

    na disseminao de um conhecimento anteriormente restrito a determinados

    grupos sociais aguou a curiosidade por novas experincias alimentares. Por

    estes e outros motivos, cada vez mais as pessoas realizam suas refeies fora

    de casa, na busca por prazer, lazer ou por necessidade [...].

    Neste cenrio, os restaurantes vm ganhando destaque como espaos de hospitalidade,

    pois embora os clientes estejam apressados no dia a dia, no dispensam o ritual do servio em

    uma refeio. Alm disso, so uma opo de lazer e entretenimento.

  • 33

    De fato, as razes que as levam a se alimentar fora de casa so desde o

    suprimento das simples necessidades biolgicas at o atendimento de

    complexas variveis sociais, como, por exemplo, comemorar alguma

    conquista pessoal ou profissional, comear ou fortalecer um relacionamento,

    esclarecer conflitos familiares e de amizade, e inmeros outros motivos. Alm

    disso, ainda h outros fatores que podem levar busca desses

    estabelecimentos, tais como: ambiente; cardpio; chef; clima; curiosidade;

    horrio de funcionamento; indicao; localizao; porte; preo; pblico;

    qualidade; sade e servio. (VENTURI, 2010. p. 20).

    Os restaurantes comerciais atendem ao pblico em geral, so dispostos a prepararem e

    servirem alimentos e bebidas dentro do conceito que se propem a executar do mais simples

    ao mais sofisticado (NOVAES et al., 2013). O servio desses restaurantes segue um protocolo

    de etiqueta padronizado por: cumprimentar o cliente; acomod-lo numa mesa; anotar o pedido;

    servir a comida; entret-lo, remover pratos e talheres usados; receber o pagamento; agradec-

    lo, solicitar comentrios e convid-lo para retornar (GIMENEZ, 2014; POWERS; BARROWS,

    2004). Percebe-se que este ritual se assemelha aos tempos sociais da hospitalidade humana,

    propostos por Camargo (2004): o receber/acolher pessoas; hosped-las; aliment-las e entret-

    las.

    Observando o processo de recebimento e tratamento em restaurantes, Abreu (2003, p.

    45) afirma que percebe-se que na misso empresarial se vai buscar mimetizar a antiga misso

    social da hospitalidade, regulamentando e normatizando a hospitalidade comercial da

    organizao.

    Portanto, os restaurantes no podem ser vistos unicamente como espaos de

    alimentao, mas tambm como espaos de sociabilidade e convivialidade (CASTELLI, 2005).

    Neles so representados os estilos de vida contemporneo, acompanhados de inmeros

    significados sociais, culturais e simblicos (FINKELSTEIN, 2005). Do ponto de vista

    antropolgico, reforam a ligao positiva do indivduo a um lugar, provido de identidade e

    memria (BAPTISTA, 2005). Podem ser considerados como espaos de lazer urbano e locais

    propcios para relacionamentos interpessoais, favorveis vivncia da sociabilidade nas mais

    diversas formas (GIMENES, 2004, p. 73).

    Nos restaurantes, a hospitalidade ento se origina das relaes e vnculos sociais que

    se estabelecem entre os que prestam os servios (anfitries) e os que consomem (clientes)

    (GIMENEZ, 2014, p, 4). Para Finkelstein (2005, p. 86), neles ocorrem diversas trocas humanas:

    [...] o restaurante um percursor do atual setor de entretenimento, que

    comercializa desejos e constri apetites. Durante sua histria, ele estimulou as

  • 34

    classes sociais a imitarem umas s outras e tem sido a arena onde se rompem

    com segurana as divises de classe e onde ocorrem as diversas trocas

    humanas, como negcios, sedues, disputas familiares etc. [...]

    Embora favorea a troca humana, comer em um restaurante, muitas vezes, pressupe

    uma atividade solitria. A hospitalidade pode preencher esse vazio, oferecendo proteo ao

    cliente. Meyer (2007), empresrio americano do ramo gastronmico, distingue servio e

    hospitalidade como a chave do sucesso comercial, pois servio entrega tcnica e

    hospitalidade como a entrega do produto faz seu receptor sentir-se. [...] hospitalidade exige

    estar do lado do cliente e ouvir a pessoa em todos os sentidos, dando em retorno uma resposta

    atenciosa, corts e apropriada (MEYER, 2007, p. 32).

    Tem-se aqui a necessidade de relembrar que a hospitalidade no domnio comercial

    diferente da hospitalidade social ou domstica, mas nem por isso ela deixa de existir (LEITE;

    REGO, 2007). Quadros (2011, p. 1) prope a integrao entre as caractersticas basais da

    hospitalidade e atividade comercial como premissa para o estabelecimento das relaes

    sociais, acima de qualquer interesse monetrio. Um restaurante, mesmo que se baseie em uma

    atividade comercial deve, primeiramente, se preocupar com a relao humana resultante da

    relao comercial.

    Utilizando a hotelaria como exemplo, Junqueira e Wada (2010) explicam que o cliente

    deve ser bem recebido a ponto de sentir-se em casa. As autoras sugerem uma estratgia de

    personalizao da prestao de servio que pode ser aplicada aos restaurantes, conforme a

    Figura 3, na pgina seguinte.

  • 35

    Figura 3: Estratgia de aplicao do modelo de relacionamento com o cliente.

    Fonte: Junqueira e Wada (2010).

    Observa-se que h quatro pontos-chave interligados: identificar, diferenciar, interagir e

    personalizar; e para que esta estratgia se consolide, a troca humana fundamental, pois sem

    ela o processo no se inicia, ou seja, impossvel identificar ou descobrir as expectativas do

    cliente sem que haja interao do anfitrio (funcionrios) com ele, sem que haja

    hospitalidade.

    Na concepo de Leite e Rego (2007), conhecer a concorrncia outra maneira de

    fortalecer a hospitalidade, pois permite que se oferea um diferencial.

    Para Chon e Sparrowe (2003), a interao com os funcionrios o principal fator que

    influencia a percepo de hospitalidade, que ocorre no momento do servio, quando o cliente

    interage tanto com o espao fsico do restaurante como com os funcionrios. nesse momento

    que os clientes comparam o que foi oferecido com o que foi prometido.

    Sob o mesmo ponto de vista, Paula (2002) acredita que a relao de hospitalidade em

    um restaurante deve ir alm de saciar a fome, deve propiciar uma experincia prazerosa a fim

    de conquistar o cliente. Recomenda-se que os restaurantes ajam como anfitries em ambientes

    privados e surpreendam seus clientes como se fossem convidados. Para isso, fundamental que

    saibam o que eles buscam e quais so suas necessidades reais.

    Maricato (2005) salienta a importncia de conhecer o cliente para que ocorra a

    excelncia no atendimento e explica:

  • 36

    Historicamente, os restaurantes se desenvolveram com o proprietrio sempre

    presente, recepcionando, anotando sugestes, ouvindo crticas. Essa ateno

    personalizada importantssima nos estabelecimentos de pequeno e mdio

    porte. O proprietrio transmite status, carinho, segurana, personalidade

    (MARICATO, 2005, p. 151).

    O poder da hospitalidade para o sucesso dos restaurantes tambm destacado no

    depoimento de Meyer (2007, p. 10), um bem-sucedido restaurateur americano j citado

    anteriormente:

    Valorizar o poder da hospitalidade e desejar utiliz-lo tm sido as minhas

    grandes contribuies a qualquer sucesso obtido por meus restaurantes.

    Aprendi como crucialmente importante colocar hospitalidade para funcionar

    primeiro para o pessoal que trabalha comigo, e depois para todas as outras

    pessoas que tm interesses ou de alguma forma so afetadas pelos meus

    negcios em ordem decrescente, os clientes, a comunidade, os

    fornecedores e os investidores. Chamo a esta forma de estabelecer prioridades

    de hospitalidade consciente. Ela inclui abordagens de negcios mais

    tradicionais, mas a base de toda deciso empresarial e de todo o sucesso que

    tivemos (MEYER, 2007, p. 10).

    Diante desta argumentao, percebe-se que o esprito da hospitalidade e a prtica da boa

    hospedagem podem ser diferenciais importantes nos restaurantes, alm de fundamentais na

    capacitao dos profissionais e no processo de satisfao das necessidades e desejos dos

    clientes. Quando compreendem as relaes do domnio social e privado da hospitalidade,

    estabelecendo, com isso, uma relao de reciprocidade com os clientes, os restaurantes

    adquirem um diferencial competitivo. O resgate da troca mtua e a consequente identificao

    emptica favorece um forte vnculo emocional e cultural entre o prestador de servios e

    hspede/cliente. (QUADROS, 2011, p. 55).

    1.2 Qualidade de servios como diferencial competitivo nos restaurantes

    Atualmente, as bases tradicionais da vantagem competitiva j no existem. Empresas de

    vrios setores oferecem produtos compatveis e utilizam tecnologia similar. Estratgias

    anteriores para vencer a concorrncia como vantagens geogrficas ou regulamentaes

    protecionistas foram desgastadas pela globalizao. Tecnologias so rapidamente copiadas

    e inovaes em produtos ou servios parecem cada vez mais difceis de se concretizarem

    (DAVENPORT; HARRIS, 2007). Por esta razo, a maioria das empresas vm apostando em

  • 37

    pontos de diferenciao centrados na experincia dos clientes com os servios oferecidos

    (KOTLER; ARMSTRONG, 2015).

    No setor de alimentos e bebidas, este cenrio no diferente. Hoje em dia, um tero dos

    brasileiros faz refeies fora de casa. Em uma dcada, esse percentual passou de 25% para 33%

    (MACIEL, 2015). Este crescimento tornou o consumidor mais consciente quanto aos seus

    desejos e necessidades, fazendo com que os restaurantes repensem seus diferenciais.

    A qualidade dos servios passou, ento, a caracterizar-se como um fator de

    diferenciao, uma forma de oferecer uma experincia memorvel ao consumidor e a melhor

    maneira de atingir um diferencial competitivo (KOTLER; KELLER, 2012).

    Genericamente, o conceito de qualidade subjetivo e pode ser aplicado tanto a servios

    como tambm a objetos, indivduos, etc. Envolve fatores como necessidade, expectativa e

    percepo, que vo atuar diretamente na sua definio.

    No incio dos anos 1950, a qualidade era considerada sinnimo de perfeio tcnica,

    resultado de um projeto e fabricao responsveis por conferir essa propriedade. Doravante,

    percebeu-se que tambm estava associada ao grau de adequao aos requisitos do cliente, e a

    qualidade ento passou a ser conceituada como satisfao do cliente quanto adequao do

    produto ao uso (CARPINETTI, 2011, p. 6). Este entendimento, que contempla adequao ao

    uso e conformidade com as especificaes do produto, tem sido predominante nas ltimas

    dcadas.

    Compartilhando da mesma viso, Meredith e Shafer (2002) enxergam a qualidade como

    um modo eficaz de produzir a custos e preos baixos, atendendo e satisfazendo as necessidades

    dos clientes, tornando a empresa competitiva no mercado. J Kotler e Keller (2006) so mais

    objetivos e definem qualidade como adequado para o uso, conforme as exigncias,

    uniforme, e assim por diante.

    Garvin (1992) identificou cinco formas de definir qualidade: transcendental (sensao

    de qualidade ao experimentar um produto); centrada no produto (atributos que diferenciam um

    determinado produto de outros produtos semelhantes); com base no valor (produto com alto

    desempenho a um preo aceitvel pelo mercado); considerada pela produo (atender

    otimamente as especificaes do projeto na fabricao de um produto), e do ponto de vista do

    consumidor (preferncia do consumidor por um determinado produto que satisfaa suas

    necessidades, dada a combinao precisa de seus atributos). Soltani et al (2008) sustentam a

    anlise de Garvin (1992) e concluem que qualidade um processo contnuo de melhorias.

  • 38

    Juran (1992) entende que um cliente fica satisfeito com um produto (bens e servios)

    quando este compatvel com suas caractersticas. Em contrapartida, a insatisfao advm das

    no conformidades percebidas aps sua experimentao. por essa razo que os clientes

    reclamam ou no do continuidade utilizao do produto (JURAN, 1992). Concordando com

    este autor, Carpinetti (2012) define qualidade percebida como a relao entre a expectativa e a

    percepo por parte do cliente, podendo dizer que a satisfao existe quando a percepo supera

    a expectativa e a insatisfao, quando ocorre o inverso. Gianesi e Correa (1994) sustentam esta

    definio, dizendo que a qualidade percebida a avaliao que o cliente faz do servio, durante

    ou aps o trmino do processo, baseada na comparao entre o que ele esperava e o que ele

    percebeu do servio prestado (GIANESI; CORRA, 1994).

    Aqui, v-se a importncia de conceituar qualidade de servios mas, para tal, necessrio

    definir servios. De acordo com Troster (1999), os servios so atividades que no criam

    materiais, mas destinam-se direta ou indiretamente a satisfazer necessidades humanas. Zeithaml

    e Bitner (2000) completam esta definio dizendo que o servio consumido na hora em que

    produzido e oferece valor agregado intangvel e dedicado a quem compra. Seguindo o mesmo

    raciocnio, Kotler e Armstrong (1998) definem servios como um ato ou desempenho

    essencialmente intangvel, que uma parte pode oferecer a outra e que no resulta na posse de

    nenhum bem, podendo sua execuo estar (ou no) ligada a um produto fsico.

    Las Casas (1999) afirma que a prestao de um servio pode gerar satisfao ou

    insatisfao nos clientes, arriscando dizer que o produto final de um servio um sentimento,

    que varia conforme as expectativas dos clientes e, portanto, o servio pode ser entendido como

    um ato ou desempenho intangvel, e embora possa acompanhar (ou no) um bem, o objeto de

    transao sempre uma ao, um processo.

    Ao se referir qualidade de servios, Parasurama et al (1988) tratam-na como um

    conceito altamente relativo, como um julgamento pessoal, formado por cada cliente e, portanto,

    difcil de ser mensurado. Conforme Gummesson (1998), uma resposta subjetiva do

    consumidor sobre o desempenho do prestador de servios.

    Antes de comprarem um servio, os clientes tm uma expectativa, baseada nas suas

    necessidades individuais, experincias passadas, recomendaes de terceiros e propaganda de

    um fornecedor de servios. Aps comprarem e consumirem o servio, os clientes comparam a

    qualidade esperada com aquilo que realmente receberam (LOVELOCK; WRIGHT, 2001).

    Na busca de um conceito objetivo, Parasuraman et al. (1988) definiram qualidade de

    servio em cinco dimenses: confiabilidade, presteza, cortesia, empatia e tangibilidade.

  • 39

    Presteza refere-se vontade de ajudar o consumidor e prover pronto-servio. Cortesia envolve

    o conhecimento, a maneira e a habilidade dos funcionrios para comunicar confiana e

    segurana aos clientes. Empatia definida como a proviso de cuidados e ateno individual

    aos consumidores. A ltima dimenso, tangibilidade, representa a aparncia das instalaes

    fsicas, equipamentos, funcionrios e materiais de comunicao (FITZSIMMONS;

    FITZSIMMONS, 2000).

    Nos restaurantes, o produto final, representado pela refeio, depende de uma srie de

    servios intangveis que vo desde o atendimento prestado pelo garom at a entrega da conta.

    Portanto, prevalecem as qualidades experimentveis, aquelas percebidas pelo cliente no

    momento da experincia do servio, diferentes das qualidades pesquisveis, que so objetivas

    e no dependem do julgamento pessoal, como peso, cor, tamanho etc. (KOTLER; KELLER,

    2012; ZEITHAML; BITNER; GREMLER, 2014).

    Na viso de Fonseca (2006, p. 14), so infindveis os motivos que levam as pessoas

    aos restaurantes e engana-se quem acha que s pela alimentao ou pelo servio. De acordo

    com o autor (2006, p. 14-15), as pessoas podem buscar um restaurante pelos seguintes motivos:

    Status - Ver e ser visto, restaurante que pessoas importantes ou famosas ou

    pblicas costumam frequentar.

    Ambiente - Apresenta alguma peculiaridade, um estilo de decorao, uma

    obra interessante, um estilo inovador, entre outros elementos.

    Clima - Pode ser dado por diversos aspectos, como estilo dos funcionrios,

    a composio entre ambiente e msica, os frequentadores.

    Cardpio - Apresenta preparaes interessantes, tradicionais de uma

    cultura, inovador em algum aspecto, ou at mesmo um cardpio clssico.

    O que importa que os produtos oferecidos atendem aos anseios daquele que

    procurou o restaurante.

    Curiosidade - Despertada atravs de alguma inovao, por matrias em

    jornais, revistas ou pela opinio de amigos, parentes ou conhecidos.

    Preo - A relao preo versus qualidade do restaurante; ou dentro de sua

    proposta, ou em comparao a outros concorrentes, o restaurante apresenta

    uma vantagem competitiva, oferecendo um melhor produto e/ou servio.

    Chefe de cozinha - Um nome famoso ou um chefe que esteja apresentando

    um bom trabalho.

    Estilo de servio - Alguns restaurantes se destacam pelo servio

    diferenciado, com jovens atendendo de maneira inusitada ou barmen

    executando flair (malabarismos com garrafas). O tipo de servio pode variar

    ainda em funo do tempo disponvel e at mesmo da formalidade exigida

    ou esperada para a ocasio.

    Explicando esses aspectos, Fonseca (2006) diz que todos so expectativas que o cliente

    pretende suprir, alguns so geridos pela equipe do restaurante, mas outros so incontrolveis,

    compreendem variveis diversas, subjetivas, difceis de serem gerenciadas. Segundo o autor,

  • 40

    h um comportamento de compra comum a qualquer consumidor que envolve etapas

    sequenciais sucedidas por expectativas: identificao da compra, busca de informaes,

    avaliao das expectativas, compra e avaliao da compra. A influncia direta do restaurante

    neste processo relativa, pois no h como controlar todos os meios de informao procurados

    pelo consumidor, mas a partir do momento em que o cliente decide por um restaurante, os

    aspectos controlveis devem ser planejados da melhor maneira possvel a fim de que a

    expectativa se torne uma experincia positiva (FONSECA, 2006).

    Os clientes utilizam trs tipos de caractersticas de qualidade para julgar a experincia

    do servio em restaurantes: funcional, relacionada qualidade da comida, variedade do

    cardpio, bebida, ingredientes, entre outros; mecnica, associada ao ambiente, layout,

    iluminao, decorao e instalaes fsicas; e humana, determinada pelo desempenho,

    comportamento e aparncia dos funcionrios (WALL; BERRY, 2007). Sob o mesmo ponto de

    vista, Akutsu (2015) acredita que a qualidade est associada aos aspectos intrnsecos do

    alimento (qualidade nutricional e sensorial), segurana (qualidades higinico-sanitrias), ao

    atendimento (relao cliente/fornecedor) e ao preo.

    Com o objetivo de apresentar os principais determinantes da qualidade e do preo

    percebidos por clientes de restaurantes la carte, Tino e Ribeiro (2008) identificaram os

    seguintes determinantes da qualidade: atributos da comida, atendimento, ambiente, tempo de

    espera, limpeza, segurana, instalaes de apoio, cardpio, atributos da bebida, privacidade,

    exatido, decorao e confirmao de expectativas.

    Hanefors e Mossberg (2003) pesquisaram os fatores que determinam uma experincia

    extraordinria em um restaurante e chegaram concluso que a atipicidade da experincia, no

    sentido de ser nova ou rara no dia a dia, decisiva. Os resultados da pesquisa tambm sugeriram

    cinco dimenses inter-relacionadas: motivao e expectativa, que ocorrem antes da experincia;

    interao e envolvimento, que acontecem durante a experincia; e a satisfao, que uma

    dimenso ps-experincia.

    V-se que clientes contemporneos no buscam somente produtos ou servios, mas

    sim experincias que proporcionem vivenciar emoes e experimentar sensaes e situaes

    que complementem sua vida cotidiana, conforme apontam Pine II e Gilmore (1998, p. 2). Para

    esses autores, a capacidade de criao e de oferta de experincias faz parte do novo diferencial

    econmico; portanto, deve ser considerada em qualquer atividade.

  • 41

    Em sntese, um restaurante, para obter sucesso e diferenciar-se no mercado, deve:

    atender bem e surpreender o cliente; ter uma cozinha eficiente; montar um cardpio atrativo;

    formar e conservar uma equipe; manter o negcio no caminho certo (SEBRAE, 2015).

    Observa-se que um diferencial competitivo deve ter qualidade e ser percebido pelo

    cliente. Mais vale um diferencial que conquiste a fidelidade do que diversos que no mudam a

    percepo do cliente. Deste modo, o restaurante precisa se preocupar em atender s expectativas

    do cliente e buscar na hospitalidade, no treinamento dos seus funcionrios e na ambientao,

    seu principal diferencial no mercado (ARAJO, 2012).

    1.3 Tendncias gastronmicas do sculo XXI

    O crescimento do mercado de alimentao fora do lar impactou nos clientes, tornando-

    os mais exigentes e seletivos. A globalizao foi outro fator que contribuiu para este cenrio. A

    fim de atender populao local e aos turistas, os proprietrios dos restaurantes esto mais

    atentos s tendncias gastronmicas e variedade e qualidade dos servios e dos produtos

    oferecidos.

    Em contrapartida, este fenmeno atuou como fator determinante na modificao dos

    hbitos alimentares, transformando o estilo de vida de, praticamente, toda a populao mundial.

    Produtos industrializados conquistaram um grande pblico, principalmente nos centros urbanos

    onde o fast food faz parte do cotidiano de milhes de pessoas (PINHEIRO, 2005). No Brasil, o

    crescimento de lanchonetes reflete a adeso do modelo norte-americano como referncia de

    modernidade e smbolo do primeiro mundo (GARCIA, 2003).

    Em decorrncia disso, a sade do meio ambiente foi afetada. Um estudo acadmico

    feito nos Estados Unidos (EUA) mostrou que a produo, a estocagem e a conservao de

    alimentos enlatados, embutidos e fast food todos com processamento industrial so

    responsveis por cerca de 20% da queima de combustveis fsseis (derivados do petrleo) nos

    EUA (INSTITUTO AKATU, 2006).

    Sobre os problemas ambientais que o sistema alimentar americano trouxe ao meio

    ambiente, Barber (2015, p. 18) diz o segu