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A CULTURA AFRICANA NA FORMAÇÃO DA CULTURA POPULAR NO PARANÁ Alexandra Lourenço - Unicentro/I RESUMO O tema proposto por esta pesquisa foi a análise das expressões da cultura africana e afro-brasileira no estado do Paraná a partir do estudo das comunidades quilombolas e, nesse sentido, buscou contribuir para preencher uma lacuna na produção de registros sobre o tema. Nossos objetivos foram pesquisar, estudar, refletir e discutir sobre questões relacionadas à temática étnico-racial, no passado e no presente sob a perspectiva da participação africana. Documentar e analisar as práticas culturais realizadas pelas comunidades quilombolas como parte da cultura popular no Paraná. Observar as relações de gênero na forma de organização destas comunidades. A metodologia adotada foi o estudo bibliográfico acompanhado do trabalho de campo no sentido antropológico do termo, ou seja, a etnografia. Foram realizadas entrevistas com integrantes das comunidades visitadas e analisada a documentação existente no INCRA e junto ao jornal Fatos do Iguaçu, Palavras-chave: Afro-brasileiro; Quilombolas; Paraná. INTRODUÇÃO: O Brasil vivenciou o regime de escravidão legalizado por mais de três séculos. Apesar da realidade desumana vivenciada pelos negros trazidos da África para trabalhar no Brasil esse sistema exerceu um papel fundamental na formação da nossa sociedade. Os costumes e práticas daqueles ajudaram a moldar a rica diversidade étnica e cultural do povo brasileiro. Seja por meio da música, dança, culinária, da medicina alternativa ou da própria língua, os valores africanos são passados de geração em geração e se fazem presentes em todo o país. O mesmo aconteceu no Paraná ainda que em menor intensidade se comparado a estados como Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo ou Bahia. Todavia, a presença de escravos africanos em território paranaense está longe de ser considerada insignificante. Segundo Souza e Lara (2011),

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A CULTURA AFRICANA NA FORMAÇÃO DA CULTURA POPULAR NOPARANÁ

Alexandra Lourenço - Unicentro/I

RESUMO

O tema proposto por esta pesquisa foi a análise das expressões da culturaafricana e afro-brasileira no estado do Paraná a partir do estudo dascomunidades quilombolas e, nesse sentido, buscou contribuir para preencheruma lacuna na produção de registros sobre o tema. Nossos objetivos forampesquisar, estudar, refletir e discutir sobre questões relacionadas à temáticaétnico-racial, no passado e no presente sob a perspectiva da participaçãoafricana. Documentar e analisar as práticas culturais realizadas pelascomunidades quilombolas como parte da cultura popular no Paraná. Observaras relações de gênero na forma de organização destas comunidades. Ametodologia adotada foi o estudo bibliográfico acompanhado do trabalho decampo no sentido antropológico do termo, ou seja, a etnografia. Foramrealizadas entrevistas com integrantes das comunidades visitadas e analisadaa documentação existente no INCRA e junto ao jornal Fatos do Iguaçu,

Palavras-chave: Afro-brasileiro; Quilombolas; Paraná.

INTRODUÇÃO:

O Brasil vivenciou o regime de escravidão legalizado por mais de três

séculos. Apesar da realidade desumana vivenciada pelos negros trazidos da

África para trabalhar no Brasil esse sistema exerceu um papel fundamental na

formação da nossa sociedade. Os costumes e práticas daqueles ajudaram a

moldar a rica diversidade étnica e cultural do povo brasileiro. Seja por meio da

música, dança, culinária, da medicina alternativa ou da própria língua, os

valores africanos são passados de geração em geração e se fazem presentes

em todo o país.

O mesmo aconteceu no Paraná ainda que em menor intensidade se

comparado a estados como Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo ou Bahia.

Todavia, a presença de escravos africanos em território paranaense está longe

de ser considerada insignificante. Segundo Souza e Lara (2011),

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A descoberta e a identificação dos quilombos paranaenses tiveramressonância com a investigação feita pelo Grupo de Trabalho ClóvisMoura (GTCM), criado em 2005 por secretarias do Governo doParaná para mapear as comunidades negras no Estado. O nomeescolhido homenageia Clóvis Moura, sociólogo negro, estudioso epesquisador da rebeldia negra no período escravista e domovimento negro no Brasil. Com o mapeamento e análise docontexto histórico das comunidades quilombolas no Estado, o GTCMclassificou-as da seguinte forma: comunidades negras tradicionais;indicativos de comunidades negras; e comunidades remanescentesde quilombos. Estas últimas começaram a ter direitos reconhecidosa partir da Constituição Federal de 1988. (SOUZA e LARA, p. 556)

Segundo dados apresentados pelo grupo Clóvis Moura, até 2004

acreditava-se que o Paraná tivesse poucos quilombos, entre três ou quatro. No

entanto, desde então já foram identificadas 86 comunidades tradicionais

negras, sendo 36 já reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares. A maioria

desses grupos está em lugares de difícil acesso e os próprios municípios não

sabiam da existência deles. O que quer dizer que até hoje não receberam

obras de infraestrutura. Há lugares em que os moradores ainda vivem em

casas de pau-a-pique, não há luz e água encanada. No entanto, ainda

preservam parte de suas tradições.

http://www.gtclovismoura.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=62

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Os dados organizados, no mapa acima, pelo grupo Clóvis Moura

(GTCM, 2010), responsável pelo levantamento de dados sobre comunidades

negras e remanescentes de quilombos, por meio de uma pesquisa de campo

realizada entre os anos de 2005 e 2010 comprava a existência de um grande

de comunidades quilombolas no Paraná.

Segundo Priori (2012) foram mais de 300 anos de escravidão, de

trabalho compulsório, de ausência de liberdade, que sustentaram a economia

nacional e inseriram o Brasil no mercado mundial, possibilitando o

enriquecimento da elite colonial. Fosse nas lavouras de cana e engenhos de

açúcar, na extração de minérios e nas plantações de café, ou nos centros

urbanos, a presença do escravo era uma constante.

A precariedade das condições de vida destes escravos tanto nas

lavouras como nas minas de ouro gerou diversas formas de resistência.

Segundo Fabiani: “A resistência servil surgiu como produto da contradição

social de classes, quando o produtor escravizado, consciente ou

inconscientemente inconformado com a apreensão e exploração desapiedada

de sua força de trabalho, resistiu contra ela das mais diversas formas”. (2005,

p. 22).

Constituindo-se, portanto em uma estratégia de sobrevivência, a

resistência acontecia de diversas formas,

como a paralisação do trabalho, a sabotagem de máquinas eferramentas, o aborto por parte das mulheres que não desejavamque seus filhos nascessem em cativeiro, incêndio de plantações e,até mesmo, o suicídio e o assassinato de feitores e senhores.Entretanto, a forma mais comum de resistência à escravidão eramas fugas. Na maioria das vezes, os escravos se misturavam àpopulação mestiça local ou se escondiam nas florestas e serras,locais de difícil acesso, onde acabavam desenvolvendo verdadeirascomunidades. Ali os africanos viviam da caça, pesca, artesanato euma agricultura de subsistência que propiciava determinadocomércio com as regiões vizinhas. Esses locais receberamdiferentes nomes. Os mais comuns são mocambo e quilombo,palavras de origem africana que significam lugar de pouso ouacampamento. O quilombo era um espaço de resgate e afirmaçãode identidade étnica e cultural. Nele, os quilombolas tinhamliberdade para cultuar seus deuses e manter suas crenças e

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tradições. (FABIANI, 2005, p. 22).

Como já foi apontado, no Paraná a escravidão negra aconteceu em

menor proporção, mas isso não significa a sua inexistência ou mesmo

insignificância na formação da cultura paranaense. Segundo Guilles,

O interesse em proporcionar uma identidade, idealizada, para oParaná teria sido expressa já com a emancipação da quinta comarcade São Paulo, em 1853, uma vez que fazia parte das funções deZacarias de Goes e Vasconcelos ocupar-se do aumento dapopulação livre do território de 200 mil quilômetros quadrados. Em1854, a sociedade local era formada por 60.625 habitantes, havendouma discrepância quanto à percentagem racial, sendo que algunsautores apontam 57,2% de brancos e 42,9% de negros, mulatos epardos; e outros mencionam apenas um sexto do segundocontingente. A Lei Eusébio de Queiros de 1850 que suspendeu otráfico, somada às campanhas abolicionistas, fugas e outrasestratégias em luta pela liberdade dos escravos foram razõesapresentadas para a implementação da política imigratória queatraiu milhares de imigrantes europeus para o Paraná, entre outraslocalidades. Longos debates foram travados em diversas esferaspúblicas, como no parlamento e na imprensa e não foi incomum oentusiasmo e a esperança de que logo não houvesse mais nenhumtraço etiópico na população brasileira, conforme afirmou, porexemplo, o tenente-coronel Henrique de Beaurepaire Rohan, um doshomens do imperador, que compôs a equipe vinda com Zacarias eque, em 1855, foi vice-presidente da província do Paraná (GILLES,2015 apud GILLIES, 2002, p. 6).

Estes núcleos remanescentes quilombolas ficaram “esquecidas” durante

décadas a falta de apoio e reconhecimento por parte do Estado pode conduzir

a aniquilação dessas comunidades, por isso salientamos a importância em

resgatá-las com o objeto de estudo buscando compreender e documentas sua

história, sua cultura e suas lutas atuais. Afinal o processo de esquecimento e

aniquilamento cultural é um processo nado isento de intenções. Para Guilles,

Apesar de inúmeras pesquisas evidenciarem uma composiçãoétnica bem diversificada no Paraná, incluindo significativaporcentagem de indígenas e afrobrasileiros, muitos estabelecidos,em condições de controle sobre os meios de comunicação e, maisainda, de influenciar e de selecionar os conteúdos de livros

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escolares, programas e bibliografias nos âmbitos dos ensinosfundamentais continuam com ações que buscam perpetuar umacerta identidade regional, recusando-se, inclusive, a contemplarestudos sobre as etnias excluídas, em total desconsideração às leis10.639/2003 e 11.645/2008. Naturalmente, não se pretende comeste comentário generalizar. Mas, será que esta conduta de inclusãode uns e exclusão de outros na publicação de uma auto-imagem,baseada numa representação de si cuidadosamente construída ereconstruída, só acontece no Paraná? Quais seriam as razões paraque isto ocorra na contemporaneidade, a despeito de esforços paraque os estudos e os interesses pelo saber contemplem outrosgrupos, ampliando o conhecimento sobre a formação econômica,social e cultural do Brasil? (GUILLES, 2015 p. 10)

COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO PARANÁ

Assim como no restante do país, no Paraná também se formaram vários

quilombos ou comunidades negras rurais, que existem até hoje. As terras onde

residem atualmente esses afrodescendentes possuem origens diversas. Tanto

podem ser fazendas abandonadas, doações feitas a ex-escravos, pagamento

por serviços prestados ao governo, ou, até mesmo, terras compradas por

negros forros. Houve também casos de terras que pertenciam a ordens

religiosas e foram deixadas sob a administração de ex-escravos no início da

segunda metade do século XVIII, como é o caso da fazenda Capão Alto, no

município de Castro.

O reconhecimento desses territórios no país surgiu, pela primeira vez,

com a promulgação da Constituição Federal de 1988, por meio do artigo 68.

Em 2001, pela edição de uma medida provisória, conferiu-se ao Ministério da

Cultura as funções de identificar, delimitar, demarcar e titular as terras

quilombolas e, à Fundação Palmares, a função de realizar os respectivos

registros dos títulos.

Essas comunidades estão localizadas, principalmente, em regiões que,

no passado, fizeram parte dos caminhos das tropas e próximas a garimpos e

minas de ouro. Porém, estão situadas em lugares distantes, de difícil acesso e

sem infraestrutura, o que acaba acarretando determinado êxodo por parte dos

habitantes mais jovens em busca de melhores condições de vida. De maneira

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geral, essas comunidades mantêm os padrões de produção utilizados por seus

antepassados, baseados principalmente no cooperativismo e na prática de uma

economia de subsistência. Os principais produtos cultivados são a mandioca –

da qual se extrai a farinha feita de forma artesanal em alguns quilombos –,

cana-de-açúcar, milho, feijão, arroz e vários tipos de frutas e legumes. Pratica-

se, também, a criação de animais, como porcos, galinhas, patos, cabeças de

gado, cavalos e, em alguns casos, a criação de peixes. Vale ressaltar que o

trabalho na roça é executado tanto por homens quanto por mulheres.

Em determinadas regiões do Estado os quilombolas também praticam a

coleta de frutos nativos, como em Campo Largo, no quilombo de Palmital dos

Pretos, onde boa parte da renda dos moradores está diretamente ligada à

extração de palmito. O etno-conhecimento ou sabedoria popular é outra das

fontes de renda dessas comunidades que exploram sustentavelmente o meio

ambiente. O conhecimento, principalmente dos mais velhos, em relação a

ervas e plantas medicinais mostra-se de extrema importância e constitui um

legado passado de pai pra filho há muitas gerações.

Um sério problema enfrentado por essas comunidades é a questão da

posse da terra. Como já mencionamos acima, a Fundação Cultural Palmares,

juntamente com o Ministério da Cultura, é a responsável pela legalização e

reconhecimento dessas propriedades. No entanto, no Paraná, apenas 34

desses grupos familiares foram certificados, pela Fundação, como

comunidades de remanescentes de quilombos. Número este muito inferior à

quantidade real desses agrupamentos. Pelo relatório do grupo de trabalho

Clóvis Moura, há ainda mais 20 comunidades não certificadas e pelo menos

mais 32 comunidades que carecem de visita dos órgãos oficiais, para serem

reconhecidas (GTCM, 2010).

A falta de documentação para se comprovar a posse da terra dá margem

a uma série de ilegalidades que, ao longo dos anos, vem diminuindo

consideravelmente a área das reservas quilombolas no Estado. Segundo

depoimento dos moradores, muitas terras pertencentes a eles foram griladas,

tomadas ou compradas por valores irrisórios. Essas regiões, por estarem

cercadas pelas propriedades de grandes fazendeiros, sofrem com o

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desmatamento na beira dos rios e com a contaminação da água e do solo por

agrotóxicos, situação que afeta diretamente sua principal fonte de renda, o

meio ambiente.

O relato de Jucimara, neta do senhor Domingos, um dos lideres e ícone

da resistência da comunidade quilombola Paiol de Telha do barranco, durante

os 14 anos que ocuparam a estrada como forma de resistência, nos conta

emocionada que se lembra de quando era pequenina e chegaram na terra em

que viviam com caminhões basculantes segundo ela “levaram os adultos para

longe e nos vasculharam...” Essa lembrança foi do enfrentamento corrido com

as últimas famílias quilombolas foram expulsas de suas terras nos anos 80.

Posteriormente sua mãe confirma que os pais e mães tiveram que fazer as

trouxas e aceitar partir ou não teriam seus filhos de volta. Foi depois deste

acontecimento que um grupo posteriormente se reuniu e ocupou um barranco

na beira da estrada.

Nos quilombos a cultura afro-brasileira é preservada nas inúmeras festas

desenvolvidas ao longo do ano. A romaria de São Gonçalo, romaria do Divino,

mesa dos anjos, recomendação das almas e o terço cantado são tradições

preservadas e mantidas no seio dessas comunidades há várias gerações. A

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religião, sem sombra de dúvidas, ocupa um espaço importante na vida dos

quilombolas e sua expressão consiste num aspecto marcante dessas

comunidades.

No entanto, em virtude do seu isolamento espacial, da falta de estrutura

e reconhecimento social, correm o risco de perderem seu legado histórico. De

fato, no caso do Paraná, esse processo invisibilidade não parece acidental.

Segundo Priori (2012) na maioria dos casos, a memória dos quilombolas mais

antigos é o único documento que comprova a propriedade da terra e, sem esta,

não é apenas a história que se corre o risco de perder.

A QUESTÃO QUILOMBOLA

O esforço para integrar estas comunidades é relativamente recente.

Somente há três décadas a questão quilombola voltou a fazer parte das

discussões sobre a questão social no Brasil. A questão quilombola ganhou

força na agenda política a partir da promulgação da Constituição Federal em

1988. Mas foi somente em 2003, com o Decreto 4.887 que os processos de

titulação e reconhecimento dessas comunidades evoluíram. E, é neste universo

repleto de lutas por reconhecimento de direitos territoriais, indenitários e

culturais, que se encontra a Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha,

localizada em Guarapuava, Paraná que visitamos repetidas vezes, pois,

despertou nosso interesse por causar surpresa entre o que imaginávamos e o

que encontramos, todavia, discutiremos isso mais adiante.

Segundo Priori (2012) apropriada em narrativas da memória e

transmitida de geração a geração através da oralidade, a ideia de quilombo foi

ressignificada como referência histórica fundamental, tornando-se, assim, um

símbolo no processo de construção e afirmação social, política, cultural e

indenitária do movimento negro contemporâneo no Brasil. Se antes o quilombo

era visto como resistência ao processo de escravização do negro, a partir dali

ele se converteu em símbolo, não só de resistência pretérita, como também de

luta no tempo presente.

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COMUNIDADE QUILOMBOLA INVERNADA PAIOL DE TELHA

EM 1860 a senhora Balbina proprietária da fazenda Capão Grande,

deixa em testamento a seus onze escravos libertos a área de terra denominada

Invernada Paiol de Telhas. 1868 os ex-escravos tomam posse da terra

herdada com o falecimento da proprietária.

Como se poderia imaginar, a saga que se desenvolve posteriormente é

repleta de contestações e apropriações indevidas por familiares da benfeitora,

grileiros e colonos. Também, na continuidade os herdeiros serão

desapropriados de suas terras pelo Governo do Estado, a partir da década de

1950, quando se deu início ao processo de imigração “alemã” (Suábios) em

Guarapuava.

Desta forma, as famílias quilombolas serão continuamente expulsas a

partir dos anos 70. Sob variadas ameaças as famílias foram obrigadas a deixar

suas casas, criações e plantações, se distribuindo pelos arredores de

Guarapuava e regiões mais longínquas. No ano de 1991, a Cooperativa que

representa os proprietários imigrantes suábios da região, ganhou a ação de

usucapião sobre as terras da Invernada, passando a posse das mesmas para

seus cooperados, com isso a situação dos herdeiros ficou mais difícil.

(Calábria, 2013)

Em 1995 foi criada a Associação Pró-Reintegração da Invernada Paiol

de Telhas, com a finalidade de organizar legalmente as ações comunitárias do

grupo. Em 1997, por intermédio dessa mesma Associação promoveu-se o

reencontro desses herdeiros, onde, alguns destes, se assentaram em um

“barranco”, próximo a uma rodovia, com o objetivo de reivindicar seus direitos

de retornar às suas terras de origem, vivendo de forma extremamente precária

por aproximadamente 14 anos.

Em 1998, foi criado pelo INCRA, conjuntamente com o poder público e a

Cooperativa da região, o Assentamento Paiol de Telhas, localizado na Colônia

Socorro, Distrito de Entre Rios, Guarapuava-Paraná, com o intuito de

“solucionar” o problema das terras por um determinado tempo. No ano de

2005, a Fundação Palmares reconheceu a comunidade composta por

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descendentes dos herdeiros de Balbina, como quilombo, passando esta a se

denominar Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telhas, cuja sede se

encontrava no Núcleo Assentamento, que foi reconhecido como o primeiro

quilombo no Estado do Paraná.

Foi neste contexto que essa comunidade se destacou pois vivencia

atualmente um processo singular. Resultado dos muitos anos acampados no

Barranco, a comunidade recebeu a incorporação de novos membros que se

juntaram a sua luta e após a conquista, finalmente, do pedaço de terra

localizado no “fundão” precisaram administrar os conflitos internos do grupo.

Conflitos entre os que se reconhecem como herdeiros legítimos e aqueles que

se reconhecem e são reconhecidos legalmente como legítimos através da luta

e da resistência.

No material produzido e cedido pelo jornal Fatos do Iguaçu. Podemos

observar a imagem da luta da comunidade Paiol de Telha no segundo

fechamento da PR 459 em Reserva do Iguaçu, outubro de 2011.

Foto de alguns integrantes desta resistência no barranco durante os 14

anos acampados. Agora instalados na chácara, no fundão, nos receberam com

muito carinho e desejosos por relatar suas vivências durante o período

acampados no barranco. Mas também, relataram estarem ansiosos por poder

plantar a terra e apaziguar os conflitos internos ao grupo.

Quando visitamos a comunidade do Fundão, no primeiro semestre de

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2016, os conflitos dificultavam a decisão sobre como prosseguir, a terra ainda

não havia sido plantada devida a falta de consenso sobre a melhor forma de

realizar a atividade. Internamente também havia atos de violência física de um

grupo contra o outro. Os “herdeiros de sangue” e os incorporados pela luta.

Neste contexto repleto de conflitos, é que se insere o objeto deste

estudo, que buscou por meio de reflexões teóricas e metodológicas da história

oral, por meio de entrevistas aos integrantes da Invernada Paiol de Telha do

Fundão, compreender e dar visibilidade aos processos indenitários e culturais

pelos quais esse grupo passou ao longo desse processo de reconhecimento

territorial que possibilitou ao mesmo a se constituir numa comunidade

quilombola.

A SAGA

No ano de 2015 a luta da comunidade que ficara no barranco por quase

14 anos resultou na assinatura da matrícula da fazenda que lhes seria

devolvida. O jornal Fatos do Iguaçu acompanhou os acontecimentos.

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Material produzido e cedido pelo jornal Fatos do Iguaçu.A luta da comunidade Paiol de Telha – a matrícula da fazendaCuritiba, novembro de 2015

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Material produzido e cedido pelo jornal Fatos do Iguaçu. A luta da comunidadePaiol de Telha – procissão em agradecimento. Reserva do Iguaçu, julho de2015

A luta da comunidade Paiol de Telha – Acordo selado. Pinhão/Reserva doIguaçu, outubro de 2014

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CONCLUSÃO

Para compreender melhor a cultura e processo de construção da

identidade da comunidade do Paiol de Telhas e de outras comunidades

quilombolas no Paraná ainda serão necessários muitos estudos, essa pesquisa

marca, tão somente, o início do interessa da pesquisadora sobre o tema e o

mapeamento inicial, tanto da literatura como da localização espacial e histórica

destas comunidades no Paraná. Pretende-se dar continuidade aos estudos em

um novo projeto, assim como nas reuniões e trabalhos conjuntos com os

integrantes do NEER, Núcleo de estudos étnicos e raciais. As fotos realizadas

por nós, devidamente autorizadas em conjunto com as entrevistas gravadas

resultaram em uma exposição de fotos organizada pela pesquisa e

comunicação oral (inscritas e aceitas) com futura publicação em anais da XI

Semana de história campus de Irati com o tema: História e cultura dos povos

tradicionais. A população brasileira é formada por uma grande diversidade

étnico-cultural. Estudos étnicos são importantes para que se possa conhecer o

contexto de miscigenação da sociedade brasileira e eliminar de vez, qualquer

forma de preconceito.

REFERÊNCIAS

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GILLIES, Ana Maria Rufino. Políticas Públicas e utensilagem mental: umaanálise das reformas propostas por Henrique de Beaurepaire Rohan em 1856 e1878. Dissertação de Mestrado. UFPR, Curitiba, 2002.

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PRIORI, A. Comunidades quilombolas no Paraná. In: HISTÓRIA DO PARANÁ(SÉCULOS XIX E XX), 2012

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