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performatus.net 1 Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015 ISSN 2316-8102 A DANÇA DAS INTENÇÕES Roberta Carreri Roberta Carreri. Odin Teatret & CTLS Archives. ISTA: International School of Theatre Anthropology. 14th International Session – Krzyowa & Wrocław, Polônia, 2005. Fotografia de Francesco Galli A Dança das Intenções é o segundo texto de Roberta Carreri traduzido por Patricia Furtado de Mendonça especialmente para a eRevista Performatus. O primeiro texto, A Nossa Vida Crônica, foi inicialmente publicado no programa do último espetáculo do Odin Teatret, “A Vida Crônica”, em cartaz desde setembro de 2011. Sua versão em português foi publicada pela Performatus no dia 01 de janeiro de 2014: http://performatus.net/a-nossa- vida-cronica/ . Ambos os textos passaram a integrar as versões de seu livro Rastros: Treinamento e História de uma atriz do Odin Teatret publicadas após 2013. Por isso, ainda são inéditos na versão impressa do livro no Brasil, publicado em 2010 pela Editora Perspectiva, com tradução de Bruna Longo.

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Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015

ISSN 2316-8102

A DANÇA DAS INTENÇÕES

Roberta Carreri

Roberta Carreri. Odin Teatret & CTLS Archives. ISTA: International School of Theatre

Anthropology. 14th International Session – Krzyowa & Wrocław, Polônia, 2005. Fotografia de Francesco Galli

A Dança das Intenções é o segundo texto de Roberta Carreri traduzido

por Patricia Furtado de Mendonça especialmente para a eRevista Performatus.

O primeiro texto, A Nossa Vida Crônica, foi inicialmente publicado no

programa do último espetáculo do Odin Teatret, “A Vida Crônica”, em cartaz

desde setembro de 2011. Sua versão em português foi publicada

pela Performatus no dia 01 de janeiro de 2014: http://performatus.net/a-nossa-

vida-cronica/ .

Ambos os textos passaram a integrar as versões de seu livro Rastros:

Treinamento e História de uma atriz do Odin Teatret publicadas após 2013. Por

isso, ainda são inéditos na versão impressa do livro no Brasil, publicado em 2010

pela Editora Perspectiva, com tradução de Bruna Longo.

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O texto abaixo, traduzido do italiano ao português, foi inteiramente

revisado por Roberta Carreri, que aproveitou para aportar algumas modificações

durante o processo de revisão. Por isso, possui algumas diferenças com relação

ao original em italiano.

*

Na Torá, a palavra hebraica equivalente a “conhecer”, frequentemente usada em contexto sexual, não diz respeito aos fatos, e sim às conexões. Conhecimento não como acumulação, mas como carga e descarga. Uma liberação de energia de um ponto a outro. (Jeanette Winterson, “Simetrias Viscerais” – “Gut Symmetries”, 1997, Granta Books)

Este capítulo consiste na descrição do meu workshop “A Dança das

Intenções”. É uma sequência de exercícios físicos e vocais que eu desenvolvi ao

longo de muitos anos de ensinamento. A estrutura é fixa, mas, cada vez que eu

a repito, alguma coisa muda, porque cada workshop é o resultado do meu

encontro com pessoas específicas, num dado momento da minha trajetória

pedagógica.

O treinamento, por definição, está relacionado ao início do processo de

aprendizagem. Desde que “aprendi a aprender”, dediquei-me a enriquecer meu

treinamento introduzindo variações e explorando novas técnicas. Meu

treinamento cotidiano durou quatorze anos (de 1974 a 1988), depois o foco se

deslocou: no início, eu mesma fazia o treinamento, depois passei a transmiti-lo

a outras pessoas. Ainda que eu tenha começado a conduzir workshops muito

cedo, foi só depois dos anos de 1980 que minha pesquisa sobre o treinamento

começou a se desenvolver por meio do processo pedagógico. Até então, eu tinha

me limitado a transmitir os princípios e os exercícios que faziam parte do meu

treinamento, mas, a partir daquele momento, comecei a buscar novos

princípios, trabalhando com os alunos.

Em determinados momentos do meu caminho pedagógico, encontrei

algumas “chaves” que usei com sucesso por muitos anos, até que cansei de

ouvir minha própria voz repetindo as mesmas indicações. Tive a chance de sair

desses momentos de estagnação porque não parei de trabalhar com os alunos,

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enfrentando situações sempre novas. O trabalho pedagógico pode continuar a

“funcionar”, mas, para que se mantenha vivo, para que continue a ser uma

verdadeira transmissão do saber, não pode ser reduzido a uma mera repetição

de receitas. Ele deve ser capaz de oferecer uma possibilidade de pesquisa,

inclusive para o próprio professor.

“A Dança das Intenções” teve origem em um workshop de quatro meses

que conduzi no Odin Teatret em 1989. Hoje, sua duração varia de três a cinco

dias. Se à noite vou estar em cena, limito o workshop a três horas diárias, caso

contrário, ele dura quatro horas. Em ambos os casos, faço uma pausa de dez

minutos depois das primeiras duas horas.

Para mim, é importante trabalhar de maneira contínua, sem aquelas

interrupções que fazem a energia cair. Uma parte importante do meu

treinamento consiste em manter uma determinada qualidade de presença por

um longo período. Meu treinamento não é cansativo do ponto de vista físico,

mas exige uma grande concentração.

Existe uma versão de “A Dança das Intenções” que dura duas ou três

semanas. Quando isso acontece, à tarde eu trabalho com os participantes numa

montagem coletiva a partir de cenas individuais.

Sempre começo formando uma roda com os participantes: todos de pé,

eles dizem seus próprios nomes e eu os repito. Decorar seus nomes é útil para

mim, para que eu possa corrigi-los individualmente com indicações miradas.

Depois faço um discurso de introdução.

O título desta oficina é “A Dança das Intenções”. Durante o trabalho,

nunca vou pedir que vocês façam movimentos, e sim ações. Ao contrário de um

movimento, cada ação tem a intenção de mudar alguma coisa. A intenção surge

como resposta a um estímulo que pode ser percebido pelo nosso corpo (fome,

coceira, dor) ou pela nossa mente (um pensamento repentino), ou então, ele

pode ser provocado por algo que acontece ao nosso redor (um som, um

chamado, a presença de outro corpo, um objeto que representa um obstáculo).

Por isso eu digo que cada ação verdadeira é, na realidade, uma re-ação. Em cena,

não basta saber o que fazer e como fazer, é necessário habitar plenamente a

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ação para evitar que ela se torne mecânica. É preciso manter viva “a dança das

intenções” que estão na base das ações, assim como dois bailarinos de tango

usam os passos que incorporaram para dançar aqui e agora com seus parceiros.

EXERCÍCIO COM OS PÉS

Vamos começar com um pequeno exercício para aprender a saltar

silenciosamente. Foi Torgeir Wethal que ensinou-o para mim.

Olhem para um ponto da parede que está diante de vocês e:

1. toquem o chão com a ponta do dedão do pé direito;

2. apoiem o antepé direito;

3. levantem o pé esquerdo do chão, mantendo-se em equilíbrio sobre o

antepé direito;

4. abaixem lentamente o calcanhar direito, imaginando que estão

esmagando uma laranja com ele, pressionando até chegar ao chão;

Neste momento:

1. toquem o chão com a ponta do dedão do pé esquerdo;

2. continuem apoiando o antepé esquerdo;

3. levantem o pé direito mantendo-se em equilíbrio sobre o antepé

esquerdo;

4. imaginem que estão esmagando uma laranja descendo lentamente

com o calcanhar esquerdo até chegar ao chão.

Continuem alternando os pés, como se estivessem caminhando

lentamente sem sair do lugar. Se quiserem, também podem ir um pouco para

frente ou para trás, mas sem sair do lugar.

Esse exercício é útil para desenvolver a musculatura dos pés.

Agora, pensando nas três diferentes partes do pé com as quais vocês

deram esses passos, saltem no ar sem sair do lugar. No momento da

aterrissagem, devem ter a precisa sensação de tocar o chão com “a ponta do

dedão do pé/o antepé/o calcanhar” numa rápida sucessão. As pernas vão se

dobrar, empenhando tornozelos, joelhos e quadris. Assim vocês vão aterrissar

silenciosamente. Saltem dessa maneira quando eu bater as mãos no próximo

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exercício.

O DESPERTAR

O primeiro exercício de A Dança das Intenções é aparentemente muito

simples, mas obriga todos vocês a estarem totalmente presentes.

Fiquem a um passo da parede e formem uma fila, um ao lado do outro.

Stop!

Não se enfiem na fileira de qualquer jeito, metendo-se entre duas

pessoas que estão no meio. Desde o início, acostumem-se a usar os olhos para

ver: vejam onde tem lugar e sigam naquela direção. Criem uma fileira perfeita,

todos numa mesma linha.

O espaço que veem à sua frente é uma jangada. Em ordem aleatória,

vocês vão entrar no espaço um de cada vez. Seguirão em uma direção e, depois,

sem parar, vão mudar de direção. O momento em que pararem é o sinal para que

a próxima pessoa entre. Por isso é importante parar de modo preciso, sem

nenhum tipo de hesitação. Vocês podem até se dirigir ao centro do espaço e,

depois, mudando de direção, chegar e parar perto do ponto de onde partiram. Se

a primeira pessoa parar num ponto do espaço que fica à direita, a segunda

deverá terminar em outro ponto, para manter a jangada em equilíbrio. Vocês

precisam usar os olhos para ver o espaço: a decisão de onde ir será uma

consequência dessa ação. Depois que todos já estiverem lá dentro, a jangada

deverá estar completamente ocupada.

Quando derem o primeiro passo para entrar no espaço, evitem endurecer

a nuca, como normalmente acontece nos momentos de insegurança. Sua única

tarefa será escolher o ponto onde vão parar. Isso os obriga a ver realmente o

espaço e a tomar uma decisão. Seus olhos podem estar abertos, mas se vocês

não estiverem olhando ativamente, não vão ver.

Não caminhem de maneira artificial. Cuidado para não reproduzir o ritmo

da caminhada de quem partiu pouco antes. Vocês podem começar caminhando

rápido e depois desacelerar, ou podem fazer o contrário. O importante é variar a

velocidade para não ligar o “piloto automático”.

Nos passos, eu não quero ouvir o som do peso morto de cada um, aquilo

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que eu chamo de “barulho de um saco de pele cheio de ossos, carne, gordura e

líquidos” batendo no chão.

E agora, olhem para um ponto da parede que está à sua frente. Com a

visão periférica, vocês deveriam conseguir ver todas as pessoas que estão ao

longo da fileira. Exatamente como acontece à noite, quando, com rabo de olho,

podemos ver coisas que desaparecem da nossa vista quando viramos para olhá-

las.

Agora abram a mente, os olhos, as orelhas, o coração e escutem com o

corpo todo. Parem de querer fazer. Façam silêncio dentro de vocês. Concentrem-

se apenas na ação de ver e perceber os colegas ao longo da fileira. O silêncio que

devem fazer dentro de vocês não é um silêncio passivo. E vocês não têm que

pensar: “Vou ser o último a entrar”. Vai entrar um de cada vez, sem saber qual é

a ordem. Esse é o desafio.

Basta que um de vocês abaixe o nível de atenção para que duas pessoas

entrem ao mesmo tempo. Se isso acontecer, a próxima pessoa só vai entrar

quando a última das duas já tiver parado.

Vocês não têm que pensar que estão respondendo à própria vontade,

mas devem reagir a uma situação bem precisa: o colega que para. Em outras

palavras, eu poderia dizer que vocês não têm que decidir quando entrar, mas

têm que estar decididos. Precisam manter essa forma de concentração se

quiserem tornar realidade o “milagre” de tantas pessoas entrando, sem pré-

aviso, uma de cada vez. Isso já aconteceu antes, então eu sei que é possível.

Depois que a última pessoa entrar e parar, ela irá se agachar. Em seguida,

usando a visão periférica, todos farão o mesmo.

A primeira pessoa vai entrar quando eu estalar os dedos.

Vocês estão prontos?

A essa altura, dou alguns segundos aos alunos para que minhas

informações se depositem em suas mentes e para que surja o silêncio

necessário para eles fazerem o exercício. Só depois eu estalo os dedos.

Depois que todos entraram e estiverem agachados, eu digo:

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Agora vocês estão agachados. Essa não é uma posição de repouso, é um

estado de alerta que lhes permite reagir a um impulso, saltando, a qualquer

momento.

Quando eu bater as mãos, vocês irão saltar, girar no ar e aterrissar na

mesma posição de antes, sem apoiar as mãos no chão e orientando o olhar para

uma direção diferente da que estão olhando agora.

Depois que tivermos feito esse exercício algumas vezes, não vou mais

dar o sinal para eles saltarem: um dos alunos saltará e todos saltarão, ao

mesmo tempo. É um modo de obrigá-los a estar presentes, prontos para reagir

ao impulso de um colega, mas também para decidir saltar arrastando os outros

consigo. O líder é aquele que pensa nos outros, mostrando o caminho.

Agora, escutem o silêncio desta sala e ouçam os vários sons que chegam

até nós, os que estão perto e os que estão longe.

Bato as mãos – eles saltam girando no ar e aterrissam agachados.

Agora, façam a ação de olhar e de ver o espaço onde se encontram.

Bato as mãos – uma vez ou várias vezes seguidas– eles saltam girando

no ar e aterrissam agachados.

Fechem os olhos: quantas lâmpadas estão iluminando essa sala? Esta é

uma pergunta real. Fiquem de olhos fechados e respondam.

Eles dão várias respostas.

Podem abrir os olhos.

Isso, reparem como a nuca de cada um está se comportando, agora que,

realmente, vocês estão olhando para ver. Antes, estavam fixando um ponto à

sua frente, achando que estavam vendo. Na verdade, os olhos são apenas

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janelas sobre o mundo; a ação de ver acontece no cérebro.

Bato as mãos – eles saltam girando no ar e aterrissam agachados.

Quando aterrissarem, lembrem-se de que não quero ouvir aquele som de

“um saco de pele” caindo no chão. Segurem o peso. Aterrissem silenciosamente

usando as articulações e os músculos dos pés para atenuar o impacto no chão, e

terminem agachados.

Bato as mãos duas vezes e eles saltam duas vezes girando no ar, depois

aterrissam agachados.

Vocês têm que reagir imediatamente ao som das minhas mãos, pois já

têm o sats 1 nas pernas, que estão dobradas.

Vocês só têm que “liberar” a mola. É a ponta da cabeça que conduz cada

um para o alto. Enquanto escutam os sons presentes na sala, vocês estão

fazendo a ação de observar a cor do chão, as rachaduras nas paredes e as

lâmpadas que estão penduradas. Ao mesmo tempo, têm que estar prontos para

reagir com um salto quando eu bater as mãos. Vocês têm que estar

completamente concentrados e alertas ao mesmo tempo. Isso só é possível se

conseguirem afastar todos os outros pensamentos da própria mente.

Bato as mãos – saltam girando no ar e aterrissam agachados.

Agora façam a ação de se levantar e fiquem de pé.

Eles se levantam. Bato as mãos – eles saltam girando no ar e aterrissam

de pé.

Exato. Quando eu bater as mãos, vocês saltam no ar e giram ao redor de

1 Sats é uma palavra norueguesa que significa “impulso”. Estar na posição do sats me permite reagir e mudar de direção a qualquer momento.

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si mesmos, como faziam quando estavam agachados, mas aterrissando de pé

em uma outra direção.

Bato as mãos – eles saltam.

Stop! Quando aterrissarem, seus joelhos estarão dobrados. Continuem

com eles assim, não os estendam, porque, senão, vocês vão perder o sats para

saltar.

Bato as mãos – eles saltam.

Evitem fazer barulho quando aterrissarem. Imaginem que estão parando

a dois centímetros do chão.

Bato as mãos – eles saltam.

Corram.

Stop.

Corram.

Stop.

Bato as mãos – eles saltam.

Bato as mãos – eles saltam.

Neste momento, vocês estão na posição do sats. Estão imóveis, mas

suas pernas estão prontas para saltar ou correr porque não sabem que comando

vão receber. Lembrem-se desta sensação.

A SERPENTE

Minha experiência de trabalho com mestres de teatro e dança japoneses

permitiu que eu descobrisse meu eixo interno: é o que, agora, eu chamo de

serpente.

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A serpente é um músculo invisível que, voluntariamente ou

instintivamente, todos os atores usam para ampliar sua presença no palco.

Começa com os olhos, que são a cabeça da serpente, e continua, paralelamente,

do lado interno da espinha dorsal. A serpente não é a espinha dorsal, e sim um

músculo invisível que segue paralelo a ela.

Alguns de vocês estão com os joelhos completamente estendidos. Então,

peço que todo mundo estenda os joelhos como eles e tente dançar com o rabo

da serpente. É difícil, não é? Agora dobrem um pouco os joelhos e tentem

dançar novamente com o rabo da serpente. Vocês sentem a diferença? A energia

flui livremente, dos calcanhares até a ponta da cabeça. Por isso, quando

trabalhamos com a serpente, não podemos estar com os joelhos

completamente estendidos ou bloqueados, como os de um cavalo que dorme

em pé.

Agora tentem dançar com a espinha dorsal.

Eles dançam.

A única coisa que eu vejo são várias costas movendo-se livremente.

Vocês não estão sentindo nenhuma resistência, e eu vejo apenas movimentos.

Tentem se lembrar de um dia de verão, quando entraram no mar e

ficaram com a água até as costas, o sol brilhava e a água estava clara. Aí vocês

brincaram movendo os dois braços ao mesmo tempo, para a direita e para a

esquerda, embaixo da superfície da água. Se os pés não estavam bem

enraizados no fundo da areia, é provável que tenham perdido o equilíbrio e

caído. Então se levantaram outra vez e, depois, mantendo as pernas abertas,

começaram novamente a mover os braços deixando que a água escorresse por

entre os dedos. Dessa vez, ao contrário de antes, a ação partia dos seus quadris.

Não eram somente os braços que estavam comprometidos na ação, e sim o

corpo todo.

Agora façam essa ação.

Eles fazem o que eu pedi.

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E agora, repitam a mesma ação sem usar os braços. Usem somente o

torso, a nuca e a cabeça.

Eles fazem o que eu pedi.

A força dorsal que agora estão sentindo vem daquela parte que eu

chamo de serpente.

Seu olhar é a língua da serpente. E assim como ela pode sair e entrar, o

fogo dos seus olhos também pode: quando sai, o olhar fica forte, quando volta,

torna-se doce.

Agora vou colocar uma música e pedir que dancem apenas com sua

serpente. As serpentes não têm pernas, braços ou ombros, então vocês vão

dançar sem usar essas partes do corpo. Seus pés têm que estar bem enraizados

no chão, como se fossem ventosas. Lembrem-se de dançar com o rabo, o ventre,

o torso, a nuca, a cabeça e a língua da serpente em várias direções.

Coloco uma música e eles dançam sem sair do lugar até eu aumentar o

volume e dizer: “No espaço!”. Eles se deixam levar pelo impulso da serpente,

deslocando-se no espaço e preenchendo-o.

Depois eu digo:

“No mesmo lugar”, e eles continuam a dançar com os pés bem

enraizados.

“Lentamente”, e a dança se torna muito lenta.

“Grande” ou “pequena”, e mudam sua amplitude.

Eles continuam a dançar seguindo minhas indicações, mudando de

volume, velocidade, intensidade e direção, até o final da música.

A NAJA

A serpente pode se transformar numa naja. O que caracteriza a naja é

que ela pode se levantar sobre suas espiras, ficando em posição vertical. Para

que vocês transformem suas serpentes em najas, terão que ficar com os pés

paralelos e:

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1 – dobrar levemente os joelhos e virar o quadril para dentro, movendo o

cóccix e o ventre ao mesmo tempo. Para isso, terão que usar os músculos

abdominais, como se quisessem sentar;

2 – alongar a nuca abaixando o queixo, tomando cuidado para não

inclinar a cabeça para frente. Ao invés disso, empurrem levemente a cabeça para

trás, recolhendo o queixo;

3 – intensificar o olhar, contraindo os músculos abdominais e mantendo

os olhos fixos no mesmo ponto diante de si, ainda que o queixo esteja abaixado.

O resultado disso tudo é que suas costas ficam “achatadas” como se

fossem uma tábua de passar roupa, com o baricentro que desce para o meio dos

calcanhares. O eixo de vocês fica totalmente vertical e o ponto de equilíbrio vai

para a parte posterior dos pés.

Cuidado para não usarem muita força, porque senão acabam criando

tensões negativas que bloqueiam o fluxo de energia.

Quando estão nessa posição, vocês dão vida a uma espécie de

imobilidade dinâmica. Certamente seu aspecto não resulta amigável, mas isso

não acontece porque estão pensando em algo desagradável.

A posição normal do olhar, com relação ao rosto, é de 90 graus: se vocês

olharem para cima ou para baixo, o rosto vai seguir a direção dos olhos. Agora

mantenham o olhar fixo num ponto que está diante de vocês e não o mudem,

mesmo que seu queixo se abaixe e sua nuca se alongue. Dessa maneira, a

relação rosto/olhos se altera, provocando uma pequena tensão interna e dando

a impressão de agressividade.

Perfeito. Agora fiquem na posição da naja e sigam as três fases que

acabei de explicar.

Um. Dois. Três.

Quando eu disser “agora”:

1 – transfiram o peso para o pé direito;

2 – deslizem o pé esquerdo para perto do pé direito; depois, deslize-o

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para frente;

3 – transfiram o peso para o pé esquerdo;

4 – deslizem o pé direito para frente, mantendo o peso sobre o pé

esquerdo;

5 – transfiram o peso para o pé direito.

E assim vocês avançam mantendo a posição da naja. Tomem cuidado

para não perdê-la. O quadril deve continuar meio virado, com o cóccix e o ventre

voltados para dentro. A nuca está alongada, o queixo abaixado. Seu eixo tem

que estar reto como um cabo de vassoura. Não quero ver aquele “bumbum de

pato” que aparece quando vocês relaxam os músculos abdominais.

Essa posição é o resultado de uma complexa arquitetura de pequenas

tensões internas – in-tensões – que produzem uma sensação de força e poder.

As pernas e os braços devem ficar livres de tensões.

NAJA COM RESISTÊNCIA

Formem duplas. Encontrem um colega que tenha mais ou menos a sua

altura. Fiquem um atrás do outro. Quem está na frente dá as costas para quem

está atrás. Quando eu disser: “um”, “dois”, “três”, vocês retomam a posição da

naja.

Quem está atrás deve colocar a ponta dos dedos sobre os quadris de

quem está na frente. É importante não abaixar a cabeça para olhar os pés.

Fixem o olhar na nuca do colega e usem sua visão periférica.

Quando eu disser “agora”, transfiram o peso para um dos pés e deslizem

o outro para frente. O momento em que a pessoa da frente transfere o peso é

importante para comunicar, para a pessoa de trás, com qual pé ela deve iniciar.

Comecem a caminhar enquanto quem está atrás faz uma leve pressão no

quadril de quem está à frente, criando uma pequena resistência à sua

caminhada, retendo-a levemente.

“Agora”.

É importante que as duas pessoas mantenham a própria naja ereta,

tanto quem está na frente quanto quem está atrás. A pessoa de trás deve estar

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muito perto da pessoa da frente para não se dobrar ao tentar manter a posição

das mãos no quadril do colega, e, ao mesmo tempo, para não pisar em seu

calcanhar.

Quando vocês chegarem ao outro lado da sala, parem mantendo sempre

a posição da naja. A essa altura, as mãos da pessoa que está atrás abandonam

os quadris do colega. Cruzando os pés, girem ao redor de si mesmos. Cuidado

para não levantarem na ponta dos pés. Vocês precisam manter sempre a mesma

altura (mas, com os joelhos dobrados, ficarão um pouco mais baixos de sua

altura real), quando se movem no espaço e quando giram ao redor de si

mesmos.

Agora, quem estava na frente vai para trás, é a sua vez de apoiar as mãos

no quadril do colega. Repitam a caminhada da naja em dupla, fazendo

resistência.

Depois de se alternarem quatro ou cinco vezes, deixem o colega e

movimentem-se sozinhos no espaço, mantendo a memória física da resistência

dada pelo colega.

Agora, cada um pega uma cadeira.

Coloquem as cadeiras lado a lado numa fileira e sentem-se.

Quando eu disser “agora”, retomem progressivamente a posição da naja

em três fases.

“Agora”!

Eles fazem o que eu pedi.

Quando eu disser “agora”, levantem-se e comecem a caminhar pelo

espaço.

“Agora”!

Eles fazem o que eu pedi.

IMOBILIDADE DINÂMICA

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Abandonem a posição da naja e voltem à dança da serpente.

Quando eu disser “um”, “dois”, “três”, vocês deverão reagir de acordo

com a intensidade da minha voz, voltando à posição da naja em três fases. Se

minha voz estiver forte, retomem a posição da naja de modo forte, se estiver

doce, de modo doce.

Eles fazem o que eu pedi.

Assim, mantenham a posição da naja doce, ou, como eu costumo dizer,

da “naja light”. Quando eu disser “agora”, movimentem-se rapidamente pelo

espaço, preenchendo-o totalmente. Continuem mudando de direção e girem ao

redor de si mesmos como se fossem vértices, para que sempre vejam quem está

atrás de vocês. Mantenham seu eixo vertical bem ereto. Não permitam que a

região abdominal relaxe, deixando que a barriga e o bumbum se projetem para

fora. Lembrem-se de que esta é uma posição ativa, ela não se mantém sozinha:

é preciso mantê-la em ação o tempo todo.

Olhem sempre para frente, não virem a cabeça. Para ver o que está ao

lado, usem a visão periférica.

Quando eu disser “Stop!”, congelem a ação. Vocês param com o corpo

completamente imóvel enquanto a mente vai continuar correndo na direção do

ponto para o qual estão olhando.

Quando eu disser “Já!”, vocês vão mudar de direção antes de se mover no

espaço. Terão que decidir rapidamente para onde ir. Os colegas que atravessam

seu caminho são obstáculos positivos, pois obrigam vocês a reagir, fazendo com

que mudem de direção. Estejam decididos. Não sigam por linhas retas durante

muito tempo. Atravessem o centro do espaço. Mudem de direção. Não fiquem

no centro. Usem todo o espaço.

“Já!”

“Stop”.

Repito essas ordens várias vezes.

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O objetivo desse exercício é fazer com que vocês também se acostumem

a manter a imobilidade dinâmica por momentos longos. A duração dos “stop”

varia: às vezes os intervalos entre um “stop” e outro são breves, mas, em alguns

casos, os alunos devem manter a imobilidade dinâmica por 30 segundos ou

mais. Se a concentração diminui, o corpo é o primeiro a demonstrá-lo. Aí eu

pergunto: “Quão forte é a sua vontade?”.

CÂMERA LENTA

Enquanto eles mantêm a imobilidade dinâmica, eu dou as seguintes

indicações:

Quando eu disser “Agora!”, comecem a dissolver a sua serpente saindo

do estado da naja, depois deem um grande passo em câmera lenta. Imaginem

que devem saltar obstáculos em câmera lenta. Mas, neste caso, o momento do

voo não existe, pois um dos pés sempre fica em contato com o chão. Outra

imagem que vocês também podem usar, se for de ajuda, é passar por cima de

uma cadeira que está na sua frente.

Vocês têm que pensar que o ponto de força está no centro do próprio

corpo, na região que fica entre as vértebras lombares e os músculos abdominais.

É ali que está a origem do passo, só depois ele se estende por toda a serpente:

do cóccix aos olhos. Na verdade, o passo começa muito antes de o pé sair do

chão. O corpo de vocês se move entre dois pontos fixos: o ponto para o qual

estão olhando – que fica na parede diante de cada um – e o pé sobre o qual se

apoiam. Entre esses dois pontos, seu corpo está em constante movimento.

Para dar um passo desses, vocês precisam pensá-lo de outra maneira,

diferente de como costumam fazer na vida cotidiana, quando levantam o joelho

à sua frente.

A perna que vai dar o passo começa se levantando para trás, e não para

frente, como faria instintivamente; depois, elevem o joelho para o lado, pois a

perna deverá passar por cima de uma cadeira imaginária até se alongar diante de

vocês. A essa altura, se transferirem o peso para essa perna, como fariam na

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vida cotidiana, vocês acabarão perdendo o controle do próprio peso, “caindo para

frente” e quebrando o fluxo da câmera lenta. Por isso, devem manter o peso na

perna de trás, pensando que são as duas pernas, juntas, que finalizam o passo,

já que abaixam ao mesmo tempo.

Os braços também participam do passo e ajudam a manter o equilíbrio.

Vocês precisam ter a sensação de respirar com o corpo todo, evitando

tensões inúteis. O equilíbrio é colocado em perigo e o corpo pode reagir criando

tensões, como, por exemplo, nas mãos, nos ombros, nas pernas e nos pés. Essas

tensões instintivas tornarão a manutenção do equilíbrio ainda mais difícil.

Eles fazem o que eu pedi.

Quando vocês dão seus passos, vejo que não encontram resistência.

Imaginem que estão caminhando no fundo do mar. Naquela profundidade, a

água envolve todo o seu corpo e opõe resistência, mas ela não é sólida.

Lembrem-se da sensação de quando estavam no mar com a água até os ombros

e moviam seus braços para a direita e para a esquerda, embaixo da superfície da

água e com os pés bem enraizados na areia. A água fazia resistência. É esse tipo

de resistência que queremos evocar novamente para não criar tensões: uma

resistência real, mas doce. Dando o passo, vocês devem imaginar que – com as

bochechas, a testa, os braços, as mãos, as pernas e os pés – estão empurrando

docemente a água que os envolve.

Eles fazem o que eu pedi. De vez em quando, coloco uma música lenta

para acompanhá-los.

Agora, encontrem três modos diferentes de sentar em câmera lenta sem

tocar o chão com as mãos. O momento em que o bumbum toca o chão já é o

sinal para que comecem a levantar.

Para sentar e levantar em câmera lenta, provavelmente não vão poder

usar a mesma lógica utilizada na vida cotidiana. Vocês terão que encontrar

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outros caminhos, pensando com o corpo de outras maneiras. Precisarão se

concentrar na arquitetura do próprio corpo, escutando-o. As ações de sentar e

levantar, por exemplo, acontecem quando vocês transferem o peso de uma

parte do corpo a outra. Será útil pensar em duas forças que puxam em direções

opostas.

É importante não interromper o fluxo. Agora vocês estão no planeta

câmera lenta: se precisarem tirar o cabelo do rosto ou assoar o nariz, vão ter que

fazer isso em câmera lenta.

Eles fazem o que eu pedi.

Agora vou pedir que criem uma série de “três mortes e três ressurreições”

em câmera lenta. Imaginem que um ponto do seu corpo é atingido e vocês caem

mortos no chão, deitando em câmera lenta. Depois se levantam, deixando que o

impulso parta de uma parte precisa do corpo. Mudem o ponto no qual foram

atingidos, o modo como se deitam e o ponto que os leva a ficar novamente de

pé.

Eles fazem o que eu pedi.

Agora podem fazer uma sequência de ações fixas que já criaram, mas

trabalhando com outro princípio. Ou então, podem fazer exercícios físicos, como:

cambalhotas para frente ou para trás; plantar bananeira apoiando a cabeça ou

os ombros; fazer uma ponte, partindo de pé ou de joelhos. O importante é ter

tarefas precisas que possam ser desempenhadas e que permitam continuar

pensando com o corpo todo – em câmera lenta.

Eles fazem o que eu pedi.

A ALGA

Agora, peço que fiquem simplesmente de pé, com os pés paralelos.

Mantendo o fluxo da câmera lenta dentro de vocês, pensem que são algas.

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Imaginem que um peixe bem grande está passando na sua frente. Agora, um

peixe pequenininho passa à sua direita. Quando os peixes passam, vocês

reagem “passivamente”: é a água que faz vocês se moverem.

A água pode ser muito calma, como no Mar dos Sargaços, ou pode ter

correntes que se cruzam com velocidades variadas. Imaginem peixes de

tamanhos diferentes tocando levemente a sua pele, em alturas diferentes.

Eles fazem o que eu pedi.

FLEXÃO COM OS OLHOS

Esqueçam a imagem da alga e escolham um ponto na parede diante de

vocês, a cerca de dez centímetros acima da linha dos seus olhos.

Queimem esse ponto com o olhar.

Indiquem a parte do seu corpo que tem mais energia. Exato, é o

abdômen. Agora, lentamente, deixem o ponto e voltem com o olhar para trás,

até terem a impressão de que estão observando a superfície interna de sua

pupila.

Voltem a percorrer o mesmo caminho, mas agora invertendo-o, até tocar

o ponto que está na parede. Queimem-no!

Voltem com o olhar até chegar à superfície dos seus olhos, tomando

cuidado para não abaixar as pálpebras. Agora comecem a olhar para trás, até

deixar o olhar cair dentro de vocês.

Relaxem as bochechas, a testa, o queixo, a língua, as orelhas e o nariz.

Deixem cair a máscara – a persona que mostram ao mundo.

Agora, lentamente, deixem o olhar emergir até a superfície dos seus

olhos; depois, ele vai para fora, para o espaço, até tocar o ponto que vocês

escolheram. Queimem-no! Voltem com o olhar para trás, até chegar à superfície

de seus olhos, e deixem-no cair dentro de vocês. Os músculos que sustentam os

olhos estão completamente relaxados, como todos os outros músculos do rosto.

Vocês estão dentro de uma redoma de vidro. Nada pode alcançá-los. Nada pode

feri-los. Lá dentro vocês estão seguros. O silêncio é perfeito e doce. Virem a

cabeça para a direita e, depois, para a esquerda, mantendo o olhar dentro de

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vocês.

Nossos olhos estão programados para colocar constantemente em foco

as imagens que estão à nossa frente. Para evitar os pequenos movimentos do

olho ao tentar focar, vocês precisam manter seu olhar desfocado, dentro da

redoma de vidro.

Sentem e levantem em câmera lenta, mantendo esse olhar desfocado.

Agora, deixem que o olhar emerja novamente até tocar o ponto na parede.

Queimem-no!

Esse exercício – que eu chamo de “flexão com os olhos” – deve ser

repetido várias vezes. Não é fácil educar os olhos a realizar a ação de “não ver”.

A ideia é criar, com o olhar, a impressão da ausência ou da presença numa outra

dimensão. Como nos olhos de Marlon Brando quando ele morre em “O Grande

Motim” [Mutiny on the Bountny], ou de Al Pacino em “Perfume de Mulher”

[Scent of a Woman]. Os olhos são uma parte essencial do corpo do ator. Quando

olhamos para uma pessoa (tanto em cena quanto na vida cotidiana), nós a

olhamos nos olhos. No momento em que evitamos seu olhar, damos uma

mensagem bem precisa. Por isso é importante conhecer e saber explorar todas

as possibilidades do nosso olhar.

Para ajudar os alunos a sentir concretamente a mudança do foco nos

olhos, eu também peço que façam o seguinte exercício.

Dividam-se em duas filas, uma na frente da outra, a quatro metros de

distância. Fila A e fila B. Cada participante deve ter diante de si uma pessoa de

altura parecida. A fila A levanta os dedos indicador e médio da mão direita,

juntos, até o nível dos olhos do colega que está diante dele na fila B, e este os

“queima” com seu olhar. Depois, a fila A avança, todo mundo ao mesmo tempo,

usando a visão periférica. A fila B relaxa o olhar à medida que os dedos se

aproximam, até o ponto em que os dedos do colega chegam a dois centímetros

da superfície dos seus olhos. A essa altura, a fila A abaixa o braço, enquanto a

fila B tenta manter o olhar assim como ele é, sem permitir que os olhos façam

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foco novamente. Essa é a coisa mais difícil. Em seguida, a fila A levanta

novamente os dedos até dois centímetros de distância dos olhos do colega, e,

usando a visão periférica, começa a caminhar para trás, todos ao mesmo tempo.

Quando a fila A chega ao ponto de partida, abaixa o braço direito. A essa altura,

a fila B levanta os dedos indicador e médio do braço direito até chegar ao nível

dos olhos do colega da fila A. Repitam o exercício alternando os papéis.

Eles fazem o que eu pedi várias vezes.

LEADING POINTS

Descobri esse princípio graças a uma pergunta feita por um participante

do Odin Week Festival. Depois de uma semana de oficinas, demonstrações e

espetáculos, ele me perguntou: “Eu gostaria de criar o meu treinamento

pessoal, você teria algum conselho para me dar?”. Eu queria ter respondido:

“Mas durante toda essa semana aqui no Odin, não fizemos nada mais que

oferecer indicações para que você criasse seu próprio treinamento!”. No entanto,

eu lhe disse: “O importante é dar o primeiro passo”. E fui embora. Sua pergunta

tinha me irritado, pois mostrava que ele não havia compreendido o objetivo dos

nossos esforços, que era, exatamente, dar-lhe inspiração para o próprio

trabalho. Só que minha resposta apressada tinha me deixado com remorsos.

Então, decidi colocar em prática o conselho que eu havia lhe dado como se um

mestre tivesse me dado aquele mesmo conselho. Fiquei de pé para dar o

primeiro passo. Mantendo o eixo do meu corpo bem ereto, perfeitamente

vertical, dos calcanhares até a ponta da cabeça, comecei a deslocá-lo para

frente, partindo do ponto da testa que está na raiz dos cabelos. E foi aí que eu

me dei conta de que, seguindo o peso, eu acabava dando o passo partindo da

cabeça. Depois, uma vez mais, mantendo-me completamente ereta, desloquei

os ombros para frente, e, seguindo-os, dei um passo. Seguindo essa lógica, vi

que o passo podia partir de outras partes do corpo: do coração, dos quadris, dos

joelhos, da ponta dos pés, do calcanhar, dos cotovelos, dos pulsos.

No início do passo, é importante deixar o baricentro cair exatamente

entre os pés. Para exemplificar essa posição, eu a chamei de anaconda, a

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serpente mais longa do mundo. A sensação que eu tenho é que essa serpente

parte dos calcanhares e chega ao topo da cabeça. Os joelhos não estão dobrados,

mas também não estão completamente estendidos. Outro modo de chegar a

essa posição é pensar em ficar dois centímetros mais altos do que somos.

Mesmo nesse caso, os músculos abdominais devem estar em tensão, e o queixo

deve estar levemente abaixado – é a mesma posição em que ficávamos quando

éramos crianças e nossos pais mediam nossa altura encostando-nos à moldura

da porta para, depois, desenhar uma linha horizontal com a data ao lado.

Abaixando o queixo, tínhamos crescido mais meio centímetro.

Fiquem na posição da anaconda: com os calcanhares bem enraizados no

chão e o queixo levemente abaixado, imaginem ter ficado dois centímetros mais

altos do que vocês são. Mantendo essa leve tensão interna, desloquem seu peso

partindo do ponto da testa que está na raiz dos cabelos. Imaginem que um cabo

invisível está puxando vocês por ali. Quando sentirem que estão prestes a perder

o equilíbrio, na mesma hora vocês deslocarão um pé para frente, dando então o

primeiro passo, sem aterrissar de forma pesada. O impulso (o cabo invisível que

puxa) deve ser renovado a cada passo. Mudem de direção: para frente, para o

lado, para trás. É a cabeça que começa indo numa certa direção, o corpo a segue

e os pés acabam dando um passo na mesma direção. Esse tipo de passo é

interessante, pois é o resultado de um microdrama: a cabeça quer ir para frente

enquanto os pés querem ficar onde estão, até o último momento. Nesse

pequeno conflito, tem uma hora em que vocês se veem a “ter” que dar o passo

para não cair. E aí vocês fazem uma ação de verdade. Não abandonem o próprio

peso, deixando-se cair, mas mantenham-no sempre sob controle. O passo deve

ser dado, exatamente, um segundo antes de vocês perderem o equilíbrio. O

passo pode ser dado para frente, para o lado ou para trás. Cuidado para não

levarem o queixo para frente, quebrando, assim, a linha da nuca. Se isso

acontecer, eu vou ver um corpo que está querendo me indicar que é a cabeça que

está conduzindo. Não é esse o objetivo do princípio sobre o qual estamos

trabalhando. A lógica que os leva a dar um passo é uma lógica interna que está

ligada ao modo como vocês pensam o próprio corpo. O resultado deve ser

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natural, e não artificial. A lógica deve transparecer como uma “presença

formalizada”, e não como uma ilustração do leading point.

Agora, tentem deixar o passo partir dos ombros. O cabo invisível arrasta

vocês para frente, para trás, para um lado, para o outro lado. Se um ombro é

puxado para frente e o outro para trás, vocês acabarão girando ao redor de si

mesmos. Os ombros nunca devem se levantar. Vocês precisam ter um cuidado

particular quando mudarem de direção indo da frente para trás, porque,

sobretudo nas pessoas que fizeram “exercícios plásticos”, existe a tendência a

fazer essa mudança de direção levantando os ombros num movimento

rotatório. Isso deve ser evitado, pois dá uma sensação de artificialidade.

Agora, de pé e com a anaconda bem ereta, sem sair do lugar, tentem

deixar que seu coração (o centro de seu peito) seja puxado para frente, para trás,

para a esquerda, para a direita. Em seguida, para frente e para a direita ao

mesmo tempo (girem), para frente e para a esquerda, para trás e para a direita,

para trás e para a esquerda. Façam a mesma coisa deixando que o cabo invisível

os arraste pelo espaço, obrigando-os a dar um ou mais passos, em diferentes

direções. Se vocês se moverem para a frente e para a direita, por exemplo, o

coração os fará girar naquela direção.

Agora é a vez do quadril. O cabo invisível está ligado aos quadris e os

arrasta em diferentes direções. Cuidado para não quebrarem a verticalidade de

seu eixo. Se um quadril é arrastado para frente e o outro para trás, vocês

acabarão girando ao redor de si mesmos.

Cuidado para não projetarem a barriga pra fora quando andarem para

frente. A ação de contrair os glúteos pode ajudá-los a evitar que isso aconteça.

Quando os quadris arrastam vocês para trás, evitem projetar o bumbum para

fora. Nesse caso, pode ser útil pensar que o umbigo se aproxime da espinha

dorsal.

Quando o passo parte dos joelhos, estes se dirigem para frente, e não

para o alto. Os pés se levantam do chão para dar o passo, mas não como se

fossem marchar. Quando os joelhos os arrastam para trás, vocês serão puxados

pela parte posterior do joelho. Então, nesse caso, os joelhos estarão em sua

máxima extensão. Assim como acontece com todos os outros leading points, os

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passos conduzidos pelos joelhos também podem ser dados em diversas

direções.

Os passos conduzidos pela ponta do pé são dados quando a ponta vai pra

frente, faltando muito pouco para tocar o chão. Lembra um pouco a caminhada

das bailarinas fora de cena. Quando a ponta do pé vai para trás, é a ponta do

dedão que está conduzindo, ou seja, aquela parte do pé que fica mais para trás.

Todas as pessoas têm aquele medo inato de bater a ponta do dedão do pé.

Então, instintivamente, para protegê-lo, acabam tocando o chão não com a

ponta, mas com a “barriga” do dedão, como fazemos normalmente na vida

cotidiana ao dar um passo para trás. Só que isso tira do exercício aquela pitada

de perigo que, obrigando à precisão, acende a presença, já que o calcanhar é que

acaba sendo a parte do corpo que vai mais para trás, e não o dedão. A ponta dos

pés também pode se dirigir para os lados.

Os calcanhares: quando vocês se moverem para frente, a parte que

precede o corpo não pode ser os calcanhares. No entanto, se mantiverem a

imagem mental do cabo invisível que puxa os calcanhares para frente, sua

caminhada vai adquirir uma característica particular, sem resultar artificial. Se

os calcanhares dirigem vocês para trás, o resultado é exatamente o mesmo de

quando se retrocede na vida cotidiana. Como todos os outros leading points, os

calcanhares também podem andar de lado, fazendo com que vocês mudem de

direção: por exemplo, ao cruzarem as pernas para trás.

Os cotovelos: para frente, para trás, para os lados. Quando a parte

interna dos cotovelos se dirigir para frente, tomem cuidado para não levantá-la

demais, senão ela acabará se dirigindo para o alto, e não para frente, e vocês não

conseguirão mais segui-la, a menos que caminhem sobre as paredes. O impulso

é pequeno, porém preciso; a tração do cabo invisível é leve. Cuidado para não

quebrarem a verticalidade de seu eixo. Cuidado para não caírem para frente. Os

cotovelos podem ir para trás ou para os lados. Se um cotovelo for para frente e o

outro para trás, vocês acabarão girando ao redor de si mesmos.

Os pulsos: tudo o que eu já disse para os cotovelos também vale para os

pulsos. Como fizemos com os cotovelos, a tração do cabo invisível é leve e vocês

devem tomar cuidado para não levantarem os pulsos mais do que o necessário,

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evitando que a direção aponte para o alto, ao invés de apontar diretamente para

frente. Tanto a parte exterior quanto a parte interior dos pulsos podem arrastá-

los seja para trás seja para frente. Um pulso para frente, e outro para trás, e

vocês acabarão girando ao redor de si mesmos.

Agora retomem a posição da anaconda e façam silêncio dentro de vocês.

Aguardem o movimento do primeiro leading point que os levará a dar o primeiro

passo. A partir desse momento, seus pés não estarão mais na posição inicial

(paralelos, um ao lado do outro), porque um novo leading point fará vocês

mudarem de direção, surpreendendo-os no meio de uma sucessão de passos.

Movimentem-se deixando que vários leading points se alternem, levando-os

para diferentes direções no espaço. Os passos podem ser grandes ou pequenos,

rápidos ou lentos, fortes ou doces. Lembrem-se: evitem “ligar o piloto

automático”. Decidam, variem. O grau de intensidade se revela com a

intensidade do olhar.

Depois de terem explorado esse princípio por alguns dias, podem

começar a trabalhar com dois leading points ao mesmo tempo. Por exemplo: a

cabeça quer ir para frente e os calcanhares querem ir para trás. Quem ganha? A

in-tensão que resulta desse microdrama pode ser usada para exemplificar uma

situação de indecisão. Agora, trabalhem com os leading points ampliando-os ao

máximo ou minimizando-os. Cuidado para não quebrarem a verticalidade de seu

eixo. Lembrem-se de ficar com a impressão de ser dois centímetros mais altos

do que são realmente, alongando a anaconda.

Agora digam em voz alta um texto que sabem de cor. Evitem interpretá-

lo. Deixem que o texto se adapte à dinâmica dos leading points minimizados. O

critério que estão seguindo não deve ser evidente para o espectador. É uma

lógica que sustenta o texto e o torna coerente, como a gesticulação que

acompanha nosso modo de falar no dia a dia. Só que, nesse caso, é uma lógica

consciente, formalizada.

Comecem usando um único leading point de cada vez. Não mudem de

leading point a cada palavra. Tentem transmitir às suas palavras o fluxo das

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variações de direção e de intensidade de suas ações. Imaginem que estão se

dirigindo a espectadores que estão ao seu redor.

Depois de terem explorado diferentes possibilidades, fixem a sequência

de leading points que acompanham o texto. Repitam essa sequência várias

vezes até que ela seja totalmente memorizada.

Agora escolham um companheiro e construam um diálogo. Alternem-se

dizendo uma frase cada um, usando sua partitura de leading points.

Peguem agora um objeto: um caderno, uma garrafa d’água, uma

echarpe, qualquer coisa. Criem uma série de ações conduzidas pelos leading

points, ações que justifiquem a presença do objeto que vocês têm em mãos. O

que querem fazer com ele? Querem dar o objeto para quem? Por quê?

Memorizem a sequência.

Escolham um colega e criem um diálogo de ações com o objeto.

Durante as oficinas, tive alunos que já haviam experimentado algo

bastante parecido com esse princípio, trabalhando, por sua vez, com alunos do

estúdio de Michael Chekhov. Eu não conhecia essa pesquisa do Chekhov, assim

como não conhecia o que ele tinha desenvolvido a partir das diferentes

qualidades de energia.

Com o tempo, percebi que quando alguém mergulha a fundo numa

pesquisa, acaba encontrando princípios recorrentes: exatamente como nos

Andes é possível encontrar meias de tricô com desenhos parecidos com os das

meias de tricô feitas na Noruega.

Se fizermos os leading points corretamente, mantendo a imagem da

anaconda e imaginando que somos dois centímetros mais alto do que somos na

verdade, eles chegam a tocar cordas dentro de nós que despertam sensações e

sentimentos. Quando essas cordas vibram, elas chegam a mover, por simpatia,

as cordas dos espectadores, co-movendo-os. O leading point da cabeça, por

exemplo, desperta a ameaça. O do coração para frente: abertura e otimismo. O

do coração para trás: tristeza. O dos quadris para frente: sensualidade. O dos

pulsos para frente: vulnerabilidade. E por aí vai. Não porque eu esteja pensando

em algo que desperte em mim aquelas sensações, mas porque a posição ativa

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do corpo as desperta em mim.

Posso usar os leading points como pontos de partida para criar propostas

de cenas ao diretor: fixando sua sucessão, sua amplitude e sua intensidade, ou

usando-os para ressaltar um texto.

A gesticulação faz parte da linguagem e ressalta ou contradiz o

significado semântico das palavras. Os leading points, quando usados de

maneira quase oculta, podem ser úteis para dar corpo a um texto, pois evita a

gesticulação cotidiana.

AÇÕES COM AS MÃOS E COM OS PÉS

Tive a inspiração para este princípio após ter assistido, no Odin Teatret, a

uma sessão de trabalho de Claire Heggen, do Théâtre du Mouvement.

Coloco uma música e convido os participantes a dançarem livremente no

espaço.

Continuem a se mover no espaço e simplesmente imitem as ações que

estou fazendo com os braços e as mãos:

- LANÇAR.

É importante fazer a ação de modo preciso: ela deve começar com a mão

fechada do lado de um dos quadris, e terminar com a mão aberta e o braço

estendido (mas sem tensão) de lado.

Se alguns alunos fazem um movimento ao invés de realizar uma ação

precisa, eu lhes dou uma meia ou uma echarpe e os convido a lançar esse objeto

para mim, de modo que eles se deem conta da dinâmica da ação que estão

realizando.

Depois eu lhes ensino mais três ações, uma após a outra:

- PARAR, fazendo “stop” com as mãos;

- CHAMAR, com todo o braço ou apenas com o dedo indicador;

- INDICAR.

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Explorem cada ação com diferentes dimensões, intensidades, direções e

velocidades: dirigindo-se tanto a pessoas que moram no décimo andar quanto

ao gato que está passando na sua frente. Façam esta ação com uma mão de

cada vez ou com as duas mãos ao mesmo tempo.

Eles fazem o que eu pedi.

Mostro-lhes a ação de lançar na minha frente, ou atrás do meu pé

direito. Pergunto-lhes qual é a ação mais interessante. Todo mundo sempre

responde: a segunda.

Então, por que vocês sempre fazem uma ação na sua frente? Quando

peço que façam ações em diferentes direções, não digo apenas em relação ao

espaço, mas também em relação ao corpo de vocês. Lembrem-se de chamar, de

indicar, de parar e de lançar inclusive para pessoas que estão atrás de vocês. Isso

os ajuda a vencer os automatismos da vida cotidiana, conquistando novas

possibilidades.

Explorem as ações uma após a outra, depois alternem-as, usando-as

como reações.

Cada uma dessas ações também pode ser feita em rewind. Dessa

maneira, elas mudam de significado e se transformam em outra ação: por

exemplo, a ação de LANÇAR se transforma em PEGAR.

Mudando sua dimensão, intensidade, direção e velocidade, as ações

ganham outros significados, transformam-se em outras ações. Isso é o que eu

chamo de “a metamorfose da ação”.

O mesmo processo acontece quando essas cinco ações são feitas com os

pés:

- DEIXAR PEGADAS: primeiro apoia-se o calcanhar no chão, depois, o

resto do pé, imaginando que ele seja redondo, como uma roda. A ponta do

dedão só sai do chão depois que o calcanhar do outro pé já apoiou no chão.

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Dessa maneira, o contato com o chão é contínuo. Se vocês caminharem rápido

mantendo a anaconda ereta, bastará deslocar o peso de uma parte a outra do

corpo para mudar de direção, como se faz com uma motocicleta.

- LANÇAR areia com os pés: como faríamos prazerosamente na praia,

jogando a areia pra cima com a ponta dos dedos do pé.

- TOCAR com o pé uma lesma sem concha: e reagir levantando o pé

rapidamente. A ação de levantar o pé não parte do joelho, e sim da contração

dos músculos abdominais, como quando sentimos nojo de alguma coisa.

- DIZER BASTA: deslizar um pé para o lado abrindo os braços com as

mãos paralelas ao chão. Parar a ação de modo abrupto, com determinação.

- AMASSAR uma guimba de cigarro com o antepé, fazendo um

movimento semirrotatório de dentro para fora.

Explorem cada uma dessas ações variando sua dimensão, intensidade,

direção e velocidade, como fizemos com as ações dos braços e das mãos, para

depois alterná-las, usando-as como reações.

Todas essas ações com os pés também podem ser feitas em rewind e

movendo-se para trás.

Explorem cada ação com diferentes dimensões, intensidades, direções e

velocidades.

Eles fazem o que eu pedi.

Façam todas essas ações alternando as ações das mãos com as dos pés,

ou então combinando-as. Elas podem ser muito grandes ou muito pequenas.

Essas ações podem ser usadas para acompanhar um texto. Repitam um

texto que sabem de cor acompanhando-o com as ações. Aqui também é

importante evitar que a gesticulação resulte artificial, como com os leading

points. As ações devem ser minimizadas para não tirarem a atenção do

significado do texto. Quando o texto é importante, as ações que o comentam

devem ser reduzidas. É fundamental permanecer fiel à intenção da ação. Às

vezes, enquanto se diz o texto, basta pensá-la com o corpo. O importante é não

transformar a ação em movimento, tirando dela o essencial, ou seja, a intenção

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que mora na serpente. Lembrem-se de que a serpente é a sede das intenções e

que os olhos são a cabeça da serpente. O olhar é uma parte essencial da ação.

SALTOS

Os participantes formam uma roda.

Peço que cada um invente um salto que deve ser repetido por todos na

mesma hora. Dessa maneira, em poucos minutos, eles memorizam uma

sequência de saltos que todos podem repetir. Logo depois, eu coloco uma

música rítmica, peço que formem uma fila e avancem: eles devem fazer aquela

sequência de saltos todos ao mesmo tempo, seguindo o ritmo da música. Para

manterem a fila, eles precisam usar, mais uma vez, a visão periférica. Então são

obrigados a pensar no que fazer e, ao mesmo tempo, devem colocar as próprias

ações em relação às ações dos colegas. Ou seja: devem estar presentes no que

fazem e, ao mesmo tempo, estar abertos ao que acontece ao seu redor.

OLHAR, PARTINDO DA SERPENTE

Peguem uma cadeira. Sentem-se. Fiquem eretos com sua serpente e,

partindo dela, comecem a fazer a ação de olhar ao seu redor, em várias direções.

Tentem criar um triângulo de oposições, por exemplo: rabo, peito, cabeça. O rabo

vai para a direita, o peito vai para a esquerda e a cabeça para a direita. Ou então:

o rabo vai para trás, o peito vai para frente e a cabeça para trás. Explorem

diversas combinações. Assim como aconteceu no trabalho com os leading

points, aqui vocês também podem sentir como as várias combinações

despertam diferentes estados de ânimo em cada um.

EMPURRAR E PUXAR

Após anos de trabalho, cheguei à conclusão de que cada ação é o

resultado da composição de duas ações base: empurrar e puxar. Por exemplo, se

eu quero pegar um copo d’água, meus dedos apertam o copo enquanto meu

braço o traz para a minha boca. Agora vamos explorar essas duas ações.

Dividam-se em duplas e coloquem as palmas de suas mãos contra as

palmas das mãos do seu colega. Comecem a explorar a ação de empurrar,

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fazendo-a partir da sua serpente. Cuidado para não se apoiarem, deixando que

seu peso morto caia sobre o colega. Neste último caso, sua serpente não estará

ativa e a ação não poderá se tornar uma memória física.

Movam-se no espaço e abaixem-se ou levantem-se na ponta dos pés

enquanto fazem a ação de empurrar. Não trabalhem o tempo todo reproduzindo

a ação do colega, mas trabalhem também em oposição. Por exemplo, se o colega

se levanta, você se abaixa. Evitem deitar no chão, senão o trabalho da serpente

será prejudicado.

Quão leve pode ser a ação de empurrar? Quão forte? Lembrem-se de que

esta não é uma luta greco-romana, mas uma exploração da ação de empurrar,

em dupla. Escutem o colega.

Eles fazem o que eu pedi.

Entrelacem seus dedos nos dedos do colega e explorem a ação de puxar.

Tomem cuidado, aqui também, para não se apoiarem para trás. A ação deve ser

real e vocês têm que sentir claramente a mudança do tônus na musculatura das

costas. Explorem a ação de puxar como já fizeram com a ação de empurrar.

Evitem ficar parados no mesmo lugar, movam-se no espaço enquanto fazem a

ação. Assim, para não esbarrarem nas outras duplas, vocês serão obrigados a

usar sua visão periférica. Vocês têm que estar presentes na ação que estão

fazendo, têm que escutar a intenção do colega e ver o espaço ao seu redor.

Em duplas, criem quatro sequências de três ações cada uma, por

exemplo: empurrar, puxar e empurrar – stop – puxar, empurrar, puxar – stop –

empurrar, puxar, empurrar – stop – puxar, empurrar, puxar – stop. O momento

do stop é um momento de imobilidade dinâmica, aquilo que eu chamo de

“estátua”. Alternem diferentes intensidades, direções, dimensões, velocidades.

Essas sequências de ações levarão vocês a se moverem no espaço. Fixem essa

sequência de ações e os passos que os conduzirão no espaço.

Agora que vocês memorizaram uma sequência de ações fixas, façam

essa sequência mantendo uma distância de dez centímetros entre as palmas de

suas mãos e as palmas das mãos do colega, mas continuando a fazer as ações

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de puxar e empurrar com a mesma intensidade que fixaram.

Depois de terem repetido a sequência dessa maneira algumas vezes,

deixem o colega e encontrem outro ponto do espaço onde podem repetir a

sequência de ações sozinhos.

ABSORVER AS AÇÕES

Agora que vocês já têm uma sequência fixa de ações, uma partitura,

podem começar a realizá-la de maneiras diferentes. Por exemplo, sem os braços.

Assim, vocês vão se dar conta de que a ação acontece, principalmente, na

serpente, e quando colocam os braços em outra posição, a ação muda de

significado.

Agora repitam a sequência:

- Em 50 por cento. Ou seja, todas as ações devem ser absorvidas. Se, no

início, os braços estavam ao lado do corpo e se levantavam juntos até as mãos

chegarem na frente do seu peito para encontrar as mãos do colega, agora as

mãos farão apenas a metade do percurso, parando, então, na altura do ventre e

mais próximas ao corpo, enquanto as palmas das mãos não estarão verticais,

mas inclinadas em 45°, viradas para baixo. Cada ação é absorvida, mas a

intenção se mantém intacta.

- Em 20 por cento, ou seja, menos da metade dos 50 por cento;

- Depois, em 1 por cento. Nesse caso, a sequência será pensada com o

corpo, que praticamente não se moverá.

Agora, façam a sequência de ações alternando-as em 100 por cento, 50

por cento, 20 por cento ou 1 por cento.

DIFERENTES QUALIDADES DE ENERGIA

Vocês podem repetir essa mesma sequência de ações com diferentes

qualidades de energia, aquelas que eu chamo de “estados da água”.

Nós exploramos esses estados um depois do outro, repetindo a

sequência várias vezes.

- A neblina – a serpente de vocês é neblina, seus olhos também são

neblina. A neblina é dura ou macia? Que cor ela tem?

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- A água de um córrego – que escorre do alto do monte. Ela é rápida, mas,

quando encontra zonas mais planas, de repente se torna mais lenta.

- O rio Amazonas – amplo e poderoso, avança transportando consigo

carcaças de animais e troncos de árvores mortas.

- Bolhinhas de água mineral ou de champanhe – que saem do fundo do

copo e respingam no nariz. Pequenas e leves.

- O mar em tempestade – grandes ondas que se levantam e quebram na

beira da água, revolvendo e arrastando tudo o que encontram pela frente.

- As águas de um lago durante a noite – negras e aparentemente

tranquilas, com a superfície escura, calma e lúcida.

- Iceberg – que se desloca lentamente, majestoso. Duro e frio.

Agora, improvisem alternando livremente essas diferentes qualidades de

energia enquanto repetem sua sequência. Explorem todas as possibilidades.

Cuidado para não ligarem o “piloto automático”. Decidam qual será a

próxima qualidade de energia. Essa é uma maneira para se acostumar a pensar

com o corpo, mantendo a concentração.

Agora vocês podem reduzir a sequência em 50 por cento, 20 por cento ou

1 por cento, trabalhando com as diferentes qualidades de energia. Desse modo,

vão explorar todas as possibilidades da própria sequência. Passando de uma

forma de dança à imobilidade dinâmica.

Vocês também podem usar esses diferentes tipos de energia em seu

treinamento com a voz.

Essa sequência de princípios mudou ao longo dos anos e continuará

mudando. Isso é o que eu estou ensinando hoje. O que vocês aprenderam, agora

pertence a vocês. No entanto, para que dê resultados, vocês têm que lembrar de

se conceder tempo para trabalhar. Um ingrediente essencial do treinamento é a

continuidade. É preciso confrontar-se cotidianamente, ou pelo menos

regularmente, com princípios que, no início, demandam toda a nossa

concentração para serem assimilados. Mas, em seguida, depois que foram

aprendidos e assimilados, eles demandam a nossa atenção para serem

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mantidos em vida. O treinamento nos ajuda a nos confrontarmos

cotidianamente com a nossa motivação, a reafirmar nossa necessidade de fazer

o que fazemos. Além disso, ele nos acostuma a manter em vida uma partitura.

No espetáculo, isso é exatamente o que o ator precisa para manter em vida o

seu papel, que corre o risco de se tornar mecânico após muitas representações.

Cada um de vocês interpretará minhas palavras de acordo com a própria

experiência, com sua história pessoal. O importante é ter um ponto de partida. O

modo como cada um desenvolverá o trabalho a partir desses princípios vai

depender de sua motivação pessoal.

Roberta Carreri: Atriz, professora, diretora, escritora e organizadora de

eventos teatrais. Nasce em Milão em 1953, onde se forma em “Gráfica

Publicitária” e estuda História da Arte. Passa a integrar o Odin Teatret em

1974. Desde então, participa de mais de 20 espetáculos dirigidos por Eugenio

Barba – fundador e diretor do Odin Teatret – e apresentados em dezenas de

países do Ocidente e do Oriente. Faz parte da ISTA (International School of

Theatre Anthropology) desde 1979, tendo estudado técnicas performativas

japonesas, indianas, balinesas e chinesas. Entre 1980 e 1986, estuda com

mestres japoneses como Katsuko Azuma, Natsu Nakajima e Kazuo Ohno. Dá

aulas para atores de vários países e apresenta sua “autobiografia

profissional”, Pegadas na Neve, como demonstração de seu método de trabalho.

Desde 1989, organiza e dirige anualmente a Odin Week Festival. Em 2007,

publica na Itália seu livro Rastros: treinamento e história de uma atriz do Odin

Teatret, no qual volta a percorrer os principais aspectos de sua vida teatral.

Possui inúmeros artigos publicados em revistas e jornais estrangeiros. Em 2009,

dirige o espetáculo Rumor, com Cinzia Ciaramicoli, para a companhia Masakini

Theatre (Malásia). Suas experiências profissionais estão reunidas no livro The

Actor’s Way, organizado por Erik Exe Christofferson.

Patricia Furtado de Mendonça: Atriz, professora, tradutora,

consultora e produtora de projetos teatrais. Tradutora oficial de Eugenio Barba e

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colaboradora do Odin Teatret desde 1998. Desde 2010, anualmente, produz

workshops de Roberta Carreri no Rio de Janeiro.

PARA CITAR ESTE TEXTO

CARRERI, Roberta. “A Dança das Intenções”. eRevista

Performatus, Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

Tradução de Patricia Furtado de Mendonça

Revisão da Tradução de Roberta Carreri

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e a autora