A Dança Dos Possiveis

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  • Carolina Pucu de Arajo

    A Dana dos Possveis: O Fazer de Si e o Fazer do Outro em Alguns Grupos Tupi

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, orientada pelo Prof. Dr. Carlos Fausto.

    Rio de Janeiro 2002

  • Ficha Catalogrfica

    Arajo, Carolina Pucu de. A Dana dos Possveis: O Fazer de Si e o Fazer do Outro em Alguns Grupos Tupi. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / MN, 2002.

    Dissertao Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGAS. 1. Etnologia Indgena 2. Ritual 3. Organizao Social 4. Parentesco 5. Tupi

  • A Dana dos Possveis: O Fazer de Si e o Fazer do Outro em Alguns Grupos Tupi

    Carolina Pucu de Arajo

    Dissertao submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de mestre.

    Aprovada por:

    _________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Fausto (orientador)

    _________________________________________

    Prof. Dr. Eduardo B. Viveiros de Castro

    _________________________________________

    Prof. Dr. Carlos E. A. Coimbra Jr.

    Rio de Janeiro 2002

  • primeira esquina, encontro uma cara oca, uma cara sem caraO melhor, o melhor voltar, o quanto antes, para o quarto. Com o mximo de cuidado de no olhar, acaso, para o espelho.

    O Citadino Mrio Quintana

  • AGRADECIMENTOS

    Nestas restritas pginas de agradecimentos devo dar conta de dvidas das mais variadas espcies e, espero, no cometer muitas injustias. Naturalmente, qualquer imperfeio nesta dissertao cabe exclusivamente a mim.

    Carlos Fausto, meu orientador desde a iniciao cientfica, foi sempre paciente com as minhas ansiedades. A dedicao com que leu e comentou todas as partes desta dissertao foi um grande incentivo, e suas (tantas) sugestes certamente fizeram deste um trabalho melhor.

    A Capes me concedeu uma bolsa de mestrado durante dois anos de curso. Os professores do Museu Nacional certamente reconhecero, nesta dissertao, a

    formao que me proporcionaram. Aparecida Vilaa acompanhou meus primeiros passos nas aulas introdutrias no Museu e, talvez, reconhea alguns dos fichamentos de que tanto reclamvamos e que, afinal, foram to teis. Sem as aulas (e as brigas) de Marcela Coelho de Souza e Carlos Fausto sobre parentesco eu no teria me dedicado tanto a fazer render alguns dos pontos tratados aqui. A insistncia de Yonne Leite para que fizssemos todos os exerccios de lingstica foi fundamental para que desenvolvesse algumas questes na dissertao e, eu espero ter feito jus aos seus ensinamentos. Foi em um curso de Bruna Franchetto sobre narrativas e narratividade que comecei a pensar algumas das questes desenvolvidas aqui notadamente sobre os porcos. Eduardo Viveiros de Castro talvez no tenha idia de que seu curso, que eu segui enquanto escrevia a dissertao, tenha sido to importante e sempre instigante. Suas aulas certamente esto aqui, e espero ter conseguido incorpor-las de maneira adequada.

    Luciana Storto e Denny Moore, com um voto de confiana, proporcionaram-me oportunidades nicas que se refletiram diretamente na dissertao. Os membros do Projeto Tupi Comparativo tornaram disponveis seus dados.

    Sem o interesse e a pacincia de Nelson e de Incio no teria sido possvel dispor de tantas informaes sobre os Karitiana em to pouco tempo. Agradeo a eles especialmente.

    Carlos Coimbra levou-me para uma aldeia xavante no incio da faculdade, despertou em mim a curiosidade cientfica e, com ele, aprendi a ter rigor ao fazer pesquisa.

    Ricardo Santos, talvez mal se lembre, mas foi quem me falou primeiro em antropologia (ainda para o vestibular) e, sem saber, influenciou minha escolha de vida.

  • No Museu do ndio agradeo G, que, sempre disposta a me ajudar, foi sempre uma boa amiga. Penha e Ins, da biblioteca, muito me estimularam com os elogios. Ana Paixo, ainda quando eu estagiava, contava-me suas histrias com os ndios e me sugeria leituras.

    Rosa e Anderson, da secretaria do Museu Nacional, sempre quebraram galhos; Carla e Cristina, da biblioteca, perdoaram os atrasos com os livros.

    Carlos, Bruna e Antnio acolheram-me e cuidaram de mim em Paris. Franoise, Phillipe, Gino e Fanny fizeram o mesmo em Reims. No College de France tive livre acesso a um precioso material.

    Os amigos que fazem ou no parte desta tese, mas da vida com toda certeza, ajudaram a aliviar os momentos difceis: do Museu, o apoio de quem estava no mesmo barco Fe, Gui (comeamos tudo isso juntos!), Tati, Octavio, Luiza, Paulo e Juarez foi crucial em vrios momentos. Outros amigos, contudo, mal precisavam saber a causa de qualquer ansiedade para oferecer amparo Anninha e Renata, amigas de tantos anos e outra Renata, amiga mais recente, mas igualmente querida.

    O processo de escrita desta dissertao foi limitado por uma dor, no apenas fsica, de difcil diagnstico. Agradeo aos meus mdicos, Srgio Carneiro e Carlos Loja, que, se no dispunham de um remdio novo, tinham sempre, cada qual a sua maneira, uma palavra de consolo.

    Os agradecimentos aos familiares so quase sempre indiretamente ligados ao trabalho feito, referindo-se ao carinho e, principalmente, pacincia com que as pessoas aturaram meses de incertezas e insegurana. Os meus no sero diferentes, mas, talvez, minha famlia seja um pouco mais atuante que a da maioria. J disse o Carlos que parecamos ndios por na nossa tentativa de fazer de todos nossos parentes, morarmos todos prximos uns dos outros e, vez ou outra, acreditarmos que os animais so gente.

    A Fe, que, de certa maneira, j foi feita parente, ajudou-me em tantos momentos que seria impossvel enumer-los. Das dezenas de passeios para espairecer ao enlouquecido final de tese, sua amizade foi sempre em perodo integral.

    Tio Arthur e Nvea, padrinhos adotados pela afilhada, deram-me muito mais que o computador com que escrevo a dissertao; seu afeto foi, em tantas horas, mais do que essencial.

    Tia Lelena, pediatra de gente grande, desde sempre foi uma pessoa com que contei e eu espero que saiba a admirao que tenho por ela.

    Agradecer a ajuda do meu primo Duca com os problemas eternos no computador no suficiente para tantos anos de cumplicidade e uma certa dose de deboche pela vida alheia.

  • Vov Cynthia, Vov Olmpio (v, espero no ter errado o portugus!), Tia Marta e Tia Alceste muito se preocuparam com meu estado durante a escrita. Se tive de faltar demais aos almoos de domingo, foi sempre com pena de no estar junto de vocs.

    Vov Kilda e Vov Pucu me deram tantas ajudas ao longo de todo o mestrado (do curso de francs aos livros) que at difcil descrev-las; mas agradeo principalmente o interesse com que acompanharam todo este processo.

    Eduardo, meu irmo, at que se comportou e implicou menos e, mesmo diante do meu inevitvel nervosismo, tentou entender. Valeu.

    Elisinha, minha querida irm, sempre difcil expressar em palavras o quanto voc essencial para mim, porque o que sinto transcende os limites da escrita mas acho que voc sabe disso.

    Meu pai, Adauto, participou de cada linha escrita e guardou, com carinho em seu computador, cada captulo para que nada pudesse se perder; e minha me, Amlia, contou muitas histrias dos trs porquinhos quando eu era criana. O apoio incondicional de meus pais, sem dvida, foi determinante para que tudo corresse bem. Sei que foram muitos os momentos difceis no apenas ligados a este trabalho , mas vocs sempre souberam como me ajudar. Contudo, no me suficiente agradec-los apenas nestas poucas pginas e, por isso, esta dissertao para os dois.

  • RESUMO

    Esta dissertao parte de um recorte lingstico, privilegiando as famlias no-guarani do tronco tupi, para propor a discusso de algumas questes, cujo rendimento parece ser maior entre tais povos. Para este fim, no captulo 1 faz-se uma reviso do material existente para os povos tupi, excetuando-se os tupi-guarani, para situar o leitor nesse conjunto, fornecendo informaes bsicas sobre as seguintes famlias lingsticas: Arikm, Aweti, Juruna, Maw, Munduruku, Purubor, Ramarama, Tupari e Tupi-Mond. No captulo 2, discute-se os modos diversos de construo da identidade que passam por uma via paterna. A proposta uma anlise comparativa das mltiplas formas de segmentao, assim como dos mecanismos de produo do parentesco que so apropriados de maneiras diversas, porm comparveis, pelos povos aqui analisados. J no captulo 3, analisa-se comparativamente os rituais Munduruku, Juruna e Tupi-Mond com o objetivo de tratar da construo da oposio entre Ns/Outros e de suas inverses. Alm disso, a proposta tambm a de analisar certos elementos que funcionam como elementos-chave para os rituais, quais sejam, o porco para os Cinta-Larga, o cauim para os Juruna e a cabea tomada ao inimigo para os Munduruku. Um ltimo item ser dedicado figura do porco que ocupa um lugar privilegiado no imaginrio dos tupi no-guarani.

  • ABSTRACT

    The present dissertation starts from a linguistic outline, giving special consideration to the non-guarani families of the tupi branch, to propose a discussion of certain issues which seem to be of greater relevance in relation to these specific peoples. In order to accomplish this end, chapter 1 presents a review of the existent material on the tupi peoples, except for the tupi-guarani, to situate the reader in this compilation, providing basic information about the following linguistic families: Arikm, Aweti, Juruna, Maw, Munduruku, Purubor, Ramarama, Tupari, and Tupi-Mond. In chapter 2, the various means of construction of the identity that pass on through the paternal line are discussed. What is proposed is a comparative analysis of the multiple forms of segmentation, as well as of the mechanisms of

    production of the kinship that are appropriated in different, although comparable, ways by the peoples herein analysed. In chapter 3, the Munduruku, Juruna, and Tupi-Mond rituals are comparatively analysed with a view to dealing with construction of the opposition between Us/Others and its inversions. Moreover, this dissertation also proposes to analyse certain elements that function as key elements for the rituals, knowingly, the pig for the Cinta-Larga,

    the cauim for the Juruna and the head taken from the enemy for the Munduruku. A last item will be dedicated to the figure of the pig, which occupies a privileged position in the imaginary of non-guarani tupi.

  • SUMRIO

    Introduo 01

    Captulo I: [Um]a Breve Histria dos Tupi 06 1.1 O Tronco Tupi e suas divises internas 08 1.2 Os Tupi no-Guarani 15 1.3- Consideraes Finais 27 Anexo: Localizao atual das Terras Indgenas 28

    Captulo II: Da Patriorientao Tupi: Tentativas de Segmentao e o Fazer Parentes 32

    2.1- Segmentando os grupos 33 2.2- A produo dos parentes 46

    Captulo III: De Porcos, Cauim e Cabeas: A Atualizao do Outro entre os Cinta-Larga, Juruna e Munduruku 58 3.1 O convite do outro 65 3.2 A me-guerreiro do porco, os bebedores de gente e o porco-festeiro 75 3.3 Os trs porquinhos tupi: as verses Cinta-Larga, Juruna e Munduruku nos rituais. 79

    Concluses 89

    Referncias Bibliogrficas 92

  • INTRODUO

    O propsito inicial desta dissertao era fazer uma reviso bibliogrfica do material tupi no-guarani. Embora j tivesse conhecimento da escassez bibliogrfica existente para estes povos, se comparados com os tupi-guarani, para algumas famlias a bibliografia revelou-se praticamente inexistente. Sendo assim, tornou-se difcil fazer uma sntese geral e minha opo foi privilegiar algumas questes a partir do material disponvel. Naturalmente, sempre tive em mente que se tratava de um recorte que partia da lingstica e tenho claro que nada garante que os Tupi no-Guarani sejam mais comparveis entre si do que com os Tupi-Guarani nem tampouco os lingistas o acham.

    O objeto parece se definir pela negativa e, em certo sentido, pela sua artificialidade os Tupi no-Guarani ao opor uma famlia lingstica (Tupi-Guarani) a um conjunto artificialmente formado por todas as outras nove do tronco tupi; a saber, as famlias Arikm, Aweti, Juruna, Maw, Munduruku, Purubor, Ramarama, Tupari e Tupi-Mond. Mas este um recurso utilizado aqui para que se comece a pensar alguns temas presentes no conjunto tupi, o qual freqentemente reduzido aos Tupi-Guarani; temas estes que talvez tenham maior rendimento entre os povos das demais famlias lingsticas. Contudo, tal recorte tem o propsito de tornar evidente o contraste entre a quantidade de informaes disponveis para os povos tupi-guarani e a lacuna nos dados sobre as outras famlias. Justamente pela grande quantidade de anlises sobre eles, a comparao com os tupi-guarani clara e esperada em grande parte das etnografias analisadas aqui; a oposio como forma comparativa parece ser quase inevitvel. O que parece torn-la estranha nesta dissertao que ela no se coloca entre somente um grupo tupi em oposio aos tupi-guarani; mas entre a famlia tupi-guarani e

    as outras famlias tupi. Contudo, meu objetivo outro: no se trata de tomar as famlias em conjunto e em oposio famlia tupi-guarani, mas de comparar os modos de realizao de algumas questes que me parecem ter um rendimento maior entre os tupi no-guarani, embora eu deva ressalvar, como veremos, que as maneiras desta realizao so diversas.

    Talvez tudo se torne mais claro remetendo s duas noes de limite expostas por Viveiros de Castro, a partir de Deleuze, como recurso explicativo aplicvel ao objeto desta dissertao. O recorte lingstico se define, a princpio, pela negao: os tupi que no so alguma coisa, no caso, que no so guarani. O objeto se constituiria a partir de uma idia geomtrica de limite como contorno e no vai alm dele. Circunscrevendo o objeto,

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    estabeleceramos seu limite. Contudo, o limite outro: um limite positivo que define o objeto por sua capacidade de ir alm. Proponho uma anlise sobre a maneira atravs da qual certos elementos-questes presentes nos Tupi no-Guarani se articulam ou podem se articular entre si, gerando significado procedimento cuja validade, potencialmente, ultrapassa o recorte escolhido.

    O tronco tupi formado por dez famlias lingsticas assim denominadas: Arikm, Aweti, Juruna, Maw, Mond, Munduruku, Purubor, Ramarama, Tupi-Guarani e Tupari. Todas estas famlias, com exceo da Tupi-Guarani, esto localizadas unicamente em estados brasileiros e h uma concentrao bastante significativa na regio de Rondnia, onde esto seis das dez famlias lingsticas do tronco tupi.

    No primeiro captulo, farei um sobrevo sobre o material etnogrfico existente sobre cada uma das famlias lingsticas. Primeiramente, mostrarei como se divide atualmente o tronco tupi e suas famlias lingsticas, tentando deixar claro tambm que a falta de estudos lingsticos fez com que tal classificao sofresse vrias alteraes com o advento de novas anlises. Procurarei fornecer ao leitor um quadro das famlias de que temos notcias e dos povos que as constituem, mesmo os j extintos nos dias de hoje. Ainda neste mesmo item, farei um quadro resumido sobre o contexto dos povos atuais, com sua populao, localizao e filiao lingstica.

    A ltima parte deste primeiro captulo ser dedicada exclusivamente ao material sobre as famlias tupi no-guarani. Meu objetivo o de tornar ntida a desigualdade entre os dados existentes para cada famlia, contando tanto com as informaes etnogrficas atuais como com as parcas e desiguais informaes dos viajantes. Para este fim, reuni tambm dados de reas como os da lingstica e da antropologia mdica que por ventura existam sobre os povos. No final deste captulo, incluirei um anexo com a listagem das Terras Indgenas onde habitam atualmente cada um dos povos, juntamente com informaes sobre a situao atual, o nmero aproximado de habitantes e a localizao exata, incluindo o estado e o municpio onde se encontram.

    No segundo captulo, discutirei os modos de realizao da patri-identidade tupi. Optei por privilegiar determinados povos, posto que, para dar conta das questes apresentadas, era fundamental dispor dos dados mais precisos. Sendo assim, em dois plos distantes esto os Munduruku e os Juruna; os primeiros, com cls, metades e fratrias e estes ltimos, sem qualquer evidncia emprica de segmentao. No meio esto os povos tupi-mond, que possuem diversas maneiras de classificao e segmentao em grupos. Meu propsito no poderia jamais ser o de determinar precisamente tais fenmenos, mas propor que as maneiras

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    de sua classificao sejam tomadas em conjunto. Portanto, em um primeiro momento, farei uma anlise comparativa das formas de segmentao encontradas em alguns grupos tupi que, se comparados com os tupi-guarani, parecem aqui ter um rendimento maior; embora eu deva notar, mais uma vez, que a escassez de dados impede uma comparao mais ampla. Neste item, ainda, procurarei apontar as maneiras mltiplas de classificao internas a cada um dos povos analisados e sugerir que elas sejam tomadas como princpios de classificao igualmente vlidos.

    Em um segundo momento, tratarei de outras formas de patrifocalizao no mais em processos de segmentao que se realizam de diversas maneiras para a fabricao do parentesco. A tendncia tupi para constituio da identidade pela via paterna pode se realizar em maior ou menor grau dificilmente de modo mecnico e em campos diversos, como o das normas de casamento e de residncia, do parentesco e da onomstica, e das teorias de concepo. Todas estas realizaes parecem estar subordinadas a uma patriorientao, cuja realizao parece ser no mecnica, abrindo espao para que outras formas de fabricao da identidade sejam igualmente vlidas. A anlise lingstica comparativa de alguns termos de parentesco ser utilizada para elucidar questes oriundas da onomstica e da teoria da concepo. Devo esclarecer, portanto, que o isolamento de qualquer um destes aspectos poderia se revelar pouco produtivo e minha alternativa foi tom-los em conjunto.

    No curso da escrita desta dissertao um dos problemas que me incomodavam era o uso do termo Mesmo em oposio a Outro para designar os processos de produo do que feito familiar. Fazer o Mesmo soava-me demasiado como fazer um idntico, como se se produzisse algo de exata e igual identidade. A fabricao dos parentes, por exemplo, me parecia algo que nunca poderia chegar s vias de fato da completa identidade e o termo Mesmo parecia trazer embutido nele justamente a idia do que idntico. Preferi utilizar, no ttulo e ao longo da dissertao, a expresso fazer de Si como substituta da forma fazer o Mesmo, posto que o Si, gramaticalmente, pressupe um outro falando e no implica na identidade absoluta. Esta forma, portanto, evitaria uma noo de igual identidade, substituindo-a por um recurso que poderia proporcionar tambm a idia de que a fabricao da pessoa subentende uma ao ou interferncia externa.

    No terceiro captulo, enfocarei trs rituais de conotao guerreira Munduruku, Juruna e Cinta-Larga com o objetivo especfico de mostrar formas especficas de atualizao da figura do Outro. Na verdade, tal realizao parte necessria e inalienvel do rito, opondo-se, das mais variadas maneiras, ao que se constitui como Ns. No longo ritual munduruku que segue a caa da cabea do inimigo, nas festas em que os Cinta-Larga matam o

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    porco no lugar de seu anfitrio e nas cauinagens quando os Juruna bebem gente, observa-se justamente a oposio que se engendra em torno da dade Ns/Outros e a troca de posies ao longo dos rituais. Meu objetivo aqui analisar a forma como as relaes de identidade e alteridade se atualizam em cada grupo, quais so os papis assumidos e como eles podem se inverter ao longo do rito. Veremos ainda que a produo das relaes com a atualizao da alteridade se realizar de formas diversas. No caso munduruku, a cabea de um inimigo condio para a realizao do ritual, mas a relao que ela produz atualizada em momentos outros e por atores diferentes. J com os Cinta-Larga, o papel do Outro caber aldeia convidada, mas ele se inverter ao longo do rito e, mais ainda, na ocasio da prxima festa, quando os convidados de hoje se tornaro os anfitries do prximo evento. Ainda entre os Tupi-Mond, os Suru forjam, no interior de sua prpria aldeia, uma oposio entre Ns/Outros com a diviso nas metades mato/aldeia. Os Juruna, por sua vez, produzem um Outro que nada mais do que eles mesmos: bebendo o cauim, matam uma pessoa e tornam-se canibais, Outros, enfim.

    Em seguida, optarei por enfatizar trs figuras-chave de cada ritual o cauim Juruna, a cabea Munduruku e o porco Cinta-Larga que parecem ocupar posies singulares nos ritos, pois so substitutos de pessoas. Meu intuito o de tornar evidentes os processos de predao e de familiarizao aplicados a elas e, tambm, seu potencial de agente/paciente ao longo dos rituais.

    A ltima parte deste terceiro captulo ser dedicada posio que os porcos (queixada) ocupam em diversos contextos, especialmente no dos rituais analisados. Enquanto o matador Munduruku dito Me da Queixada, o porco criado pelo anfitrio Cinta-Larga o substitui como vtima abatida quando finda a festa. J os Juruna contam que convidam os porcos para sua festa, mas, enganando-os, promovem uma grande caada.

    O trabalho aqui apresentado insere-se no contexto de um projeto comparativo das lnguas tupi, embora nesta dissertao no se possa dispor de anlises etnogrficas para todos os povos. Tal lacuna tambm evidente no caso da lingstica e, justamente, o Projeto Tupi-Comparativo tem como objetivo minimizar esta falha.

    Enfim, os possveis so muitos e no me cabe pretender abarc-los, j que a possibilidade de virar outra coisa ou um outro est permanentemente presente; no jamais possvel ser sempre um mesmo.

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    Normas

    As palavras em outras lnguas que no o portugus sero grafadas em itlico e as tradues em portugus viro entre aspas. Utilizarei o negrito quando precisar destacar alguma parte da palavra, principalmente quando fizer anlises lingsticas. A grafia das palavras segue exatamente as formas utilizadas pelos autores das etnografias originais, pois no seria seguro propor uma grafia que as uniformizasse.

    We are coming now rather into the region of guesswork, said Dr. Mortimer. Say, rather, into the region where we balance probabilities and choose the most

    likely. It is the scientific use of the imagination, but we have always some material basis on which to start our speculations.

    The Hound of the Baskervilles Sir Arthur Conan Doyle

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    CAPTULO I

    [Um]a Breve Histria dos Tupi

    O primeiro captulo de todas as dissertaes e teses costuma priorizar uma reviso histrico-bibliogrfica do material existente sobre o objeto de anlise. No ser diferente aqui; entretanto, dado que o prprio objeto fragmentado, tambm o so as informaes sobre ele. Neste sentido, preciso chamar ateno no apenas para a diversidade interna dos povos que formam o tronco tupi, como tambm para a desigualdade das informaes existentes sobre eles. Esta ressalva aplica-se principalmente aos captulos subseqentes, posto que as questes tratadas devem, necessariamente, embasar-se nos dados disponveis.

    Em um primeiro momento apresentarei a composio do tronco tupi a partir de sua diviso interna em famlias lingsticas, contemplando, brevemente, a localizao espacial atual e a composio demogrfica dos grupos. O leitor notar que o processo de depopulao sofrido pela grande maioria dos grupos provocou o desaparecimento quase total de algumas das famlias lingsticas descritas aqui. Embora a famlia tupi-guarani no seja o principal foco desta dissertao, ela ocupa aqui ainda que de maneira assumidamente artificial uma posio de contraste em relao s demais, devido, em primeiro lugar, riqueza dos dados etnogrficos disponveis para os povos que a compem. Contudo, no h sentido em refazer a reviso bibliogrfica do material tupi-guarani, posto que j dispomos da sntese de Viveiros de Castro (1986: 82-127; 1984/5). A diversidade interna dos tupi torna complicada a extenso imediata do modelo tupi-guarani proposto pelo autor para as outras famlias, embora, como veremos, haja vrios pontos anlogos1.

    Em um outro momento, procurarei fornecer um panorama das informaes de que dispomos sobre o contato, as oscilaes demogrficas e, principalmente, sobre a bibliografia que concerne os povos tupi aqui tratados. Tornar-se- explcita para o leitor a quantidade de informaes disponveis para alguns povos em contraste com a escassez quase completa de dados para outros. Por esse motivo, no proponho uma sntese geral, posto que ela seria irrealizvel com dados to desiguais, mas sim, com o conhecimento de que disponho, apresentar algumas questes de certo modo tambm provocadas pelas informaes e sugerir discusses que levem em conta a diversidade cultural dos grupos tupi.

    1 Como ressalvei na introduo desta dissertao, no pretendo forjar um contraste entre tupi-guarani e tupi-no-

    guarani como dois blocos homogneos. Na comparao interna das famlias, nada informa que sejam mais

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    Nos captulos posteriores procurarei sugerir elementos para comear a pensar tais

    questes, em dois sentidos: o da organizao social (compreendendo tambm o parentesco e a construo da pessoa) e o dos rituais com forte conotao guerreira. Sob o tema da organizao social, meu objetivo o de procurar conceitualizar os processos de patrisegmentao dos grupos, um tema importante na literatura tupi-guarani e que parece oscilar entre a fluidez e variao (caso Juruna) at a aparente delimitao em cls (casos Munduruku e Maw). Todas essas diferenas, contudo, esto subordinadas ao conhecimento de que dispomos destes povos e sua trajetria histrica, por vezes irrecupervel que, como o objetivo deste primeiro captulo mostrar, so extremamente dspares. Quanto aos rituais de conotao guerreira, veremos menos a produo da identidade e mais o jogo entre identidade/diferena que parece conservar uma srie de elementos comuns ao modelo que Viveiros de Castro props para os tupi-guarani. Mais uma vez, a escolha por tratar dos rituais guerreiros implicou na seleo de alguns poucos povos, para os quais temos descries etnogrficas suficientes para sua comparao.

    1.1- O Tronco Tupi e suas divises internas

    A concentrao de famlias lingsticas em uma mesma regio e o trabalho comparativo sugerem aos lingistas que as lnguas tupi se originaram de uma mesma lngua (que se convencionou chamar de Proto-Tupi) h alguns milnios atrs. Rodrigues (1964) prope a rea do Guapor, no alto Madeira, como a regio que, provavelmente, foi o centro de disperso dos tupi (RODRIGUES, 1964: 14); embora seja difcil saber qual a relao deste momento com o da expanso dos tupi-guarani, para os quais existem vrias hipteses.2 Urban sugere que esta ltima expanso teria ocorrido h dois ou trs mil anos, enquanto a dos povos

    comparveis entre si do que com os tupi-guarani; contudo, o montante de dados para os ltimos contrasta com a escassez dos demais tupi. 2 No faltam propostas para as rotas de disperso dos Tupi-Guarani (a partir de um centro comum para os Tupi)

    e para as datas dos movimentos e (des)encontros dos grupos. Grosso modo, pode-se dizer que h duas hipteses principais sobre a migrao dos Tupi-Guarani para o litoral brasileiro e sobre o centro de sua disperso. O modelo de Mtraux sugere que a disperso Tupi-Guarani inicia-se com um deslocamento da bacia do Guapor-Madeira na direo da bacia Paran-Paraguai. Nesta regio, os Tupinamb teriam se separado dos Guarani e rumado para o litoral e norte do Brasil. O outro modelo foi proposto por Brochado e apresenta uma hiptese inversa, colocando a migrao Tupinamb e a Guarani em rumos inteiramente diferentes, partindo de um centro comum na Amaznia central. Os Guarani teriam descido em direo sul para o rio Paraguai; j os Tupinamb, descendo at a foz do Amazonas, seguiram pelo litoral brasileiro no sentido norte-sul, at encontrarem os Guarani na regio de So Paulo. A hiptese de Brochado pressupe que os Tupinamb e os Guarani teriam se distanciado h mais tempo do que se imaginava pela proximidade lingstica e cultural que h entre os dois povos. Para mais informaes sobre as teorias migratrias dos tupi-guarani, ver o debate entre Noelli (1966), Viveiros de Castro (1996c) e Urban (1996).

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    Macro-Tupi remontaria a at cinco mil anos atrs. Urban sugere ainda que a rea de disperso tupi situar-se-ia entre os rios Madeira e Xingu, mais provavelmente em regies de cabeceiras do que nas vrzeas dos grandes rios (URBAN, 1992:92-93).

    As notveis migraes dos grupos Tupi-Guarani foram e so objeto de vrias discusses, mas no se deve pr de lado o processo de disperso das outras famlias Tupi, dispostas desde Rondnia at o Alto Xingu. Os grupos Tupi ocupam atualmente diferentes reas ecolgicas uns esto em regies interfluviais (os Tupi-Mond), outros so ribeirinhos e canoeiros (os Juruna) e ainda h os que estejam em zonas de transio entre o cerrado e a floresta tropical (os Aweti e os Munduruku). Embora em menor extenso, as migraes das famlias tupi no-guarani levaram os grupos a ocuparem tal como a famlia tupi-guarani

    territrios diferentes e a conhecerem as mais diversas experincias de contato, seja com outros grupos indgenas seja com os brancos.

    Desde muito tempo, costumou-se pensar o conjunto de lnguas tupi a partir da famlia dominante tupi-guarani, que, por estar dispersa em uma grande rea na faixa litoral do Brasil e no apenas nesta rea ficou conhecida pelos europeus desde o sculo XVI. A este motivo est aliado ao fato de que a famlia tupi-guarani no apenas est espalhada pelo Brasil e por outros pases, como tambm formada por uma quantidade maior de lnguas, se comparada com as informaes que temos das demais famlias do tronco tupi. Estas, concentram-se principalmente em Rondnia embora algumas tenham se estendido na direo leste , uma regio que apenas muito recentemente foi alvo de projetos de colonizao de seu territrio3. Tudo isso levou a um visvel contraste entre a riqueza etnogrfica tupi-guarani e a escassez das informaes sobre outras famlias. No difcil entender, por tantos motivos, por qu os grupos da famlia Tupi-Guarani tenham sido mais estudados que os demais tupi e, de certa maneira, tornaram-se uma espcie de paradigma Tupi.

    Os ensaios de classificao interna das lnguas do tronco tupi, dada a escassez de dados, mostraram-se at aqui bastante hesitantes. Em uma primeira tentativa, o lingista Aryon Rodrigues (1964, 1958, 1971) situou junto famlia Tupi-Guarani as lnguas Aweti, Maw, Munduruku e Kuruya. Aps terem incio estudos mais aprofundados sobre o Aweti e o Maw, Rodrigues (1984/5) separou-os da famlia Tupi-Guarani e afirmou que tanto uma quanto a outra possuam o estatuto de famlia lingstica, ainda que formadas por apenas uma lngua. O autor ressaltou que a formao de novas famlias tornou mais forte a homogeneidade interna das lnguas tupi-guarani, embora isso no possa excluir o fato de que

    3 Uma exceo o caso munduruku que possui no apenas uma longa histria de trabalhos etnogrficos, mas

    tambm de interao com a sociedade nacional.

  • 9

    o Maw e o Aweti parecem ser mais semelhantes s lnguas tupi-guarani que s demais lnguas do tronco tupi. Rodrigues ([1986] 1994: 46), em um artigo posterior, classifica tambm as lnguas dos Munduruku e dos Kuruya em uma mesma famlia (Munduruku).

    A classificao interna das lnguas da famlia Tupi-Mond tambm sofreu variaes, devidas tanto ao lento desenvolvimento dos estudos lingsticos como ao processo de depopulao. Um vocabulrio proposto por Hanke (1950) serviu como base para a classificao inicial, em um mesmo conjunto, das seguintes lnguas: Mond, Salami (ou Sanamaik), Aru, Aruashi, Gavio (ou Digt), Suru (ou Pater), Cinta-Larga, Zor e Arara do Guariba. Para Dal Poz (1991: 29; 1996) os Arara do Guariba seria formado por remanescentes de outros povos Tupi-Mond. Rodrigues ([1986] 1994), por sua vez, incluiu na famlia Tupi-Mond os seguintes grupos: Aru, Cinta-Larga, Gavio, Mekm, Mond, Suru e Zor, embora os Mekm, atualmente, sejam considerados parte da famlia Tupari. Os Aru ainda so raramente mencionados na literatura antropolgica como parte da famlia Tupi-Mond e os Mond freqentemente so confundidos com a famlia lingstica de que fazem parte Tupi-Mond. Moore (1981: 46) afirma que os Cinta-Larga, os Gavio e os Zor falam dialetos de uma mesma lngua, que tambm seria, de acordo com o autor, semelhante falada pelos Aru e os Aruashi4. Contudo, ainda costuma-se consider-las como lnguas distintas. Os Suru, ao contrrio, falam uma lngua irm da mesma famlia, que no mutuamente entendida pelos grupos mencionados antes.

    Atualmente, considera-se que o tronco Tupi formado por dez famlias lingsticas Arikm, Aweti, Juruna, Maw, Mond, Munduruku, Purubor, Ramarama, Tupi-Guarani e Tupari. Dentre as dez famlias lingsticas que o formam, apenas a Tupi-Guarani compreende lnguas que se estendem por outros pases da Amrica do Sul5; todas as demais se restringem exclusivamente aos limites brasileiros. Do ponto de vista lingstico-geogrfico, h uma concentrao lingstica tupi, precisamente na regio de Rondnia (fronteira com Mato-Grosso), com as famlias Arikm, Tupi-Mond, Ramarama, Purubor (esta, praticamente extinta) e Tupari, alm da prpria famlia Tupi-Guarani. Devo ressalvar que a proximidade geogrfica de algumas famlias no implica em uma necessria proximidade lingstica ou cultural. Na tabela 1, a seguir, mostro a diviso do tronco tupi em suas famlias lingsticas e

    4 Os Aruashi, extintos atualmente, so ainda mais ignorados na literatura antropolgica, mesmo aquela especfica

    para os Tupi-Mond.

    5 H representantes desta famlia no Brasil, na Guiana Francesa, na Venezuela, na Colmbia, no Peru, na

    Bolvia, no Paraguai e na Argentina. Das 41 lnguas tupi-guarani, 21 so faladas no Brasil (MONTSERRAT, 1994).

  • 10

    lnguas que o formam, acrescentando aquelas j extintas. No caso da famlia Tupi-Guarani, listo somente as lnguas faladas no Brasil atualmente.

  • 11

    TABELA 1

    TRONCO TUPI

    FAMLIA

    Lnguas DIALETOS

    Aweti

    Aweti

    Arikm

    Arikm; Karitiana; Kabixiana

    Juruna

    Juruna (Yuruna); Xipaya; Manitsw

    Maw

    Maw (Satr-Maw)

    Munduruku

    Munduruku; Kuruya

    Purubor

    Purubor

    Ramara

    ma

    Arara Karo; Itogapuk

    Tupari Tupari; Ajuru; Makurp; Mekm; Sakirabip

    Tupi-

    Mond Cinta-Larga; Suru; Zor;

    Gavio; Aru; Aruashi

    Tupi-

    Guarani

    Akwwa;

    Amanay;

    Anamb; Apiak;

    Arawet;

    Asurini do Xingu e do Tocantins; Av-Canoeiro;

    Parakan e Suru do Tocantins

  • 12

    Guaj; Guarani

    Kaapor (Urubu Kaapor) Kamayur

    Kayabi Kawahib

    Kokma

    Nheengat

    Tapirap

    Tenetehra

    Wayampi (Waipi; Oiampi) Xet

    Zo (Putur)

    Kaiow; Mby; Nhandva

    Parintintin; Diahi;

    Juma; Karipna; Tenharin;

    Uru-eu-wau-wau

    Kokma; Omgua

    (Kambeba)

    Guajajara; Temb

    Mesmo com o declnio populacional posterior ao contato e a conseqente extino de alguns povos, Rondnia continua sendo o estado com a maior concentrao de famlias tupi, representadas pelos povos Ajuru, Makurp, Mekm, Sakurabiat e Tupari (da famlia Tupari); Arara Karo (da famlia Ramarama); Aru, Cinta-Larga, Gavio, Suru, Zor (todos da famlia Mond); Karitiana (da famlia Arikm); Amondawa, Karipna, Tupi-Kawahib, Uru-Eu-Wau-Wau (da famlia Tupi-Guarani) e Purubor (da famlia de mesmo nome).

    Algumas das famlias do tronco tupi possuem apenas uma nica lngua representando-as atualmente, como o caso Arikm, Purubor, Ramarama (estas trs, como vimos, localizam-se exclusivamente em Rondnia), Aweti e Maw. A famlia Arikm era composta pelas lnguas Arikm, Kabixina e Karitiana, mas, atualmente, apenas esta ltima existe, restando apenas listas de palavras das demais (RODRIGUES 1986: 96-97). A famlia Ramarama hoje se restringe lngua falada pelos Arara (Karo), tendo sido praticamente extinta a lngua Itogapuk. Sobre a famlia Purubor as informaes so escassas e h atualmente pouqussimos falantes. A famlia Maw est localizada em Terras Indgenas nos estados do Par e Amazonas (entre o baixo Tapajs, o baixo Madeira e o Amazonas) e a famlia Aweti no Parque Indgena do Xingu. Nota-se, portanto, uma disperso tupi (no-guarani) tambm na direo leste, com as famlias Aweti, Juruna, Munduruku e Maw.

  • 13

    A famlia Juruna, alm da lngua de mesmo nome, compreende tambm o Xipaya e o Manitsaw, esta ltima j extinta, e dispersava-se pelo baixo e mdio Xingu. Karl von den Steinen, em sua primeira viagem ao Alto Xingu, coletou uma pequena lista de palavras Manitsaw, um dos raros registros da lngua. Nimuendaj, em 1920, comparou as lnguas Juruna, Xipaya e Manitsaw, filiando-as ao tronco tupi e instituindo a famlia Juruna que as contemplava6. Os representantes da famlia Juruna, assim como os Aweti, esto atualmente restritos rea do Alto Xingu. J os Munduruku esto dispersos em Terras Indgenas do Par, Mato-Grosso e Amazonas, nos afluentes dos rios Madeira e Tapajs. Desta famlia lingstica tambm faz parte os Kuruya concentrados hoje em dia em uma s Terra Indgena, no estado do Par.

    Para tornar mais clara a situao atual dos tupi, listarei, na tabela 2, cada um dos povos (com exceo dos da famlia tupi-guarani), sua famlia lingstica, o estado brasileiro em que se encontram e sua populao atual.

    6 Este trabalho, intitulado Verwandschaften der Yuruna Sprachgruppe, referido por Viveiros de Castro na

    introduo publicao de Nimuendaj (1981) como pertencente ao Tomo II do material lingstico indito do autor.

  • 14

    TABELA 2: Lista de Povos indgenas no Brasil Contemporneo: Grupos atuais do tronco Tupi, excetuando-se a famlia tupi-guarani.7

    Nome Outras grafias Famlia/lngua UF Populao Ano

    Ajuru Tupari RO 77 2001 Arara Karo Ramarama RO 184 2000

    Aru Mond RO 58 2001

    Aweti Aueti Aweti MT 106 1999

    Cinta Larga Mattame Mond MT/RO 1032 2001

    Gavio Digt Mond RO 436 2000

    Juruna Yuruna, Yudj Juruna PA/MT 201 1999 Karitiana Caritiana Arikm RO 206 2001

    Kuruya Curuaia Munduruku PA 75 1998

    Makurp Macurap Tupari RO 267 2001

    Munduruku Mundurucu Munduruku PA 7500 1997

    Sakurabiat Mekens, Sakirabiap, Sakirabiar

    Tupari RO 89 2001

    Satr-Maw Sater-Mau Maw AM/PA 7134 2000

    Suru Pater Mond RO 765 2000

    Tupari Tupari RO 338 2001

    Xipaya Shipaya Juruna PA S/I

    Zor Pageyen Mond MT 414 2001

    7 Fonte: Banco de dados do programa Povos Indgenas no Brasil Instituto Socioambiental, setembro/2001.

  • 15

    1.2- Os Tupi no-Guarani

    A bibliografia que concerne os grupos no-guarani do Tronco Tupi no forma um conjunto homogneo. A qualidade dos dados varia de grupo para grupo, mas, para vrios deles, temos um material consistente em reas como a lingstica e a antropologia mdica, embora as anlises em antropologia social sejam algo raras. Procurarei fazer aqui uma exposio abreviada do material existente sobre os grupos dando nfase s anlises antropolgicas, mas tambm me referindo interface com outras reas de estudo8 e situando o leitor no contexto atual dos grupos9. A lingstica, ademais, conta com um projeto de grande porte, o Projeto Tupi Comparativo, coordenado por Denny Moore, cujos participantes estudam concomitantemente vrias lnguas do tronco tupi10. No curso da dissertao descreverei outros aspectos sobre os grupos, pertinentes a questes especficas da dissertao e, por este motivo, no me alongarei demasiado em sua descrio. Comecemos ento pelo provvel centro de disperso Tupi: vamos aos povos de Rondnia.

    Como vimos anteriormente, em Rondnia est concentrada a maioria das famlias do Tronco Tupi, embora, devido ao difcil processo de demarcao das terras indgenas, as populaes no apenas perderam muito de seu antigo territrio como sofreram um forte declnio populacional decorrente dos conflitos e das epidemias que se seguiram. Um exemplo da depopulao sofrida por todos os povos aliada a uma penosa demarcao do territrio o que acontece na Terra Indgena Rio Guapor onde h apenas 407 habitantes e 10 etnias: Ajuru, Aikana, Aru, Uari, Kanoe, Makurp, Mequm, Jaboti, Tupari e Arikapu.

    As Linhas Telegrficas, instaladas pela Comisso Rondon entre os anos de 1912 e 1915, que ligavam Cuiab a Santo Antnio do Madeira, iniciaram um processo de ocupao daquela rea e de reconhecimento dos povos indgenas da regio, que compreendia grupos como os Kepkiriwat, Paranawat, Takwatip, Ipotewat entre tantos outros (cf. RONDON, 1946). Os Tupi-Kawahb (famlia tupi-guarani), por exemplo, foram alcunhados de os Tupi do Ji-Paran e supe-se que somavam em torno de 2000 pessoas (DAL POZ et alii, 1987)

    8 Farei meno s publicaes mais importantes para a antropologia social quando tratar de autores de outras

    reas. Ao longo da dissertao, outros artigos dos mesmos autores sero citados.

    9 Carlos Coimbra desenvolve atualmente um site que fornecer informaes bsicas e atualizadas sobre todos os

    povos de Rondnia.

    10 Os participantes do Projeto so: Carmem Rodrigues (Xipaya, famlia Juruna), Luciana Storto (Karitiana,

    famlia Arikm), Srgio Meira (Maw, famlia Maw), Sebastian Drude (Aweti, famlia Aweti), Vilacy Galcio (Mekns, famlia Tupari), Denny Moore (Gavio e Suru, famlia Tupi-Mond), Nilson Gabas Jnior (Karo, famlia Ramarama), e Gessiane Lobato Picano (Munduruku, famlia Munduruku). O Projeto Tupi-Comparativo financiado pela Wenner-Gren Foundation.

  • 16

    reduzidas a menos de 150 na ocasio da estada de Lvi-Strauss em 1938 (cf. LVI-STRAUSS, 1948). Atualmente, estes povos tupi so considerados extintos (ARNAUD E CORTEZ, 1976 apud DAL POZ et alii, 1987).

    Os povos Tupi Mond, localizados a leste de Rondnia e a noroeste do Mato-Grosso, contudo, no sofreram um impacto to grande face s mudanas provocadas pela linha telegrfica e mantiveram-se at fins da dcada de 50 em um relativo isolamento (DAL POZ, 1991; 20). Conforme se intensificava seu contato com os brancos, sofreram uma aguda perda populacional derivada tanto de epidemias como de disputas territoriais. Os Cinta-Larga, por exemplo, at o final da dcada de 60 podiam ser estimados em 1000 a 2000 pessoas, nmero reduzido em um tero (DAL POZ, 1991: 35) aps entrarem em contato com as frentes de expanso11. Para os Zor, Brunelli supe que houvesse de 1000 a 1500 pessoas no perodo imediatamente anterior ao contato, mas em 1990, a populao era cinco vezes menor (BRUNELLI, 1989: 143). A partir das dcadas de 60 e 70, cerca de 75% dos Suru pereceram em conseqncia de doenas como sarampo, gripe e tuberculose (cf. COIMBRA JR., 1989). A legalizao da rea onde esto os Tupi-Mond deu-se com a criao do Parque Indgena do Aripuan em 1969, cujos limites foram bastante modificados desde ento. Antes do contato freqente com os brancos, costumava-se atribuir indistintamente aos diferentes povos Tupi-Mond a denominao de Cinta-Larga ou Cinturo-Largo, em uma referncia ao adorno que usavam na cintura. Os Gavio, que no final da dcada de 60 participavam das expedies da FUNAI, insistiram para que se diferenciasse os povos Tupi-Mond, o que resultou em uma profuso de designaes algo estranhas ao grupo que a recebe. Os Zor, por exemplo, j receberam diversos nomes, como Monshoro, Cabea Seca, Majur, Munxar, Shoro e, mesmo o nome pelo qual so conhecidos atualmente Zor , no corresponde antiga denominao de Pangueyen, mas a derivao de uma palavra suru. Os Suru, por sua vez, receberam esta designao de seringueiros, em nada semelhante autodenominao Pater. Para os Cinta-Larga, restou o antigo rtulo (DAL POZ, 1991: 31). Tanto a denominao vinda de outro grupo indgena ou mesmo dos brancos, como a juno em um s nome de conjuntos de segmentos de grupos parecem mascarar, especialmente no caso Tupi-Mond, as variaes nos seus modos de classificao12.

    11 Lembro as propores do genocdio conhecido como Massacre do Paralelo 11, em 1963, patrocinado pela

    firma Arruda & Junqueira, no qual vrios Cinta-Larga (entre homens, mulheres e crianas) foram cruelmente assassinados. Deve-se notar que a chacina s foi tornada pblica porque um de seus participantes, furioso por no ter sido pago o combinado, fez as denncias contra seus mandantes (cf. JUNQUEIRA, 1981: 57). 12

    Veremos no captulo II como estas mltiplas classificaes podem se realizar.

  • 17

    O grupo que hoje conhecido como Cinta-Larga est localizado no noroeste de Mato Grosso e sudeste de Rondnia, nas Terras Indgenas Parque Aripuan, Roosevelt e Serra Morena. Os prprios Cinta-Larga, porm, dividem sua populao em trs agrupamentos: no sul, nas redondezas dos rios Tenente Marques e Eugnia, esto as aldeias dos Pabiey (os de cima) ou biey (os das cabeceiras). Os Pabirey (os do meio) esto prximos confluncia do rio Capito Cardoso com o rio Roosevelt. Ao norte, nos rios Vermelho, Amarelo e Branco, localizam-se os Papiey (os de baixo) (cf. DAL POZ, 1991: 32). Sua populao total no ano de 2001 era de 1032 pessoas.

    A Comisso Rondon, com a turma de explorao do rio Ananaz, estabeleceu o primeiro contato oficial com os Cinta-Larga, nas estaes telegrficas de Vilhena, Jos Bonifcio, Baro de Melgao e Pimenta Bueno, entre os anos de 1912 e 1915. Quanto s pesquisas etnogrficas, Carmen Junqueira iniciou seu trabalho de campo entre os Cinta-Larga em 1979, orientando-o para as relaes entre tal povo e o Estado (JUNQUEIRA, 1984/5; 1981). Os Cinta-Larga tambm foram estudados por Dal Poz (1991, 1993) que enfocou, em sua dissertao de mestrado, um ritual especfico do grupo e suas relaes com a mitologia e com o contexto etnogrfico. O enfoque de Priscila Ermel (1988) recai sobre a musicologia dos Cinta-Larga. Devo destacar ainda a coletnea de mitos e narrativas contados por Pichuvy Cinta-Larga (1988).

    Em 1977, os Zor contataram alguns pees de uma fazenda no rio Branco e, no mesmo ano, a FUNAI foi ao seu encontro na sede da mesma fazenda, auxiliada pelos Gavio, Cinta-Larga e Suru. Em 1978, os Zor passaram para as terras Gavio, em conseqncia de um ataque suru e, apenas dois anos depois, voltaram para sua rea. Brunelli (1989: 140) afirma que, antes do contato permanente, os Zor no poderiam ser vistos como um grupo estruturado, como so considerados atualmente, mas como um grande conjunto de pequenos agrupamentos autnomos econmica e politicamente que mantinham tanto relaes de guerra como de aliana. Atualmente, habitam um territrio compreendido entre o Rio Roosevelt, a leste e o rio Branco a oeste a Terra Indgena Zor uma regio coberta pela floresta tropical e densa, no noroeste de Mato Grosso, fronteira com Rondnia, e somavam 414 pessoas no ano de 2001.

    Brunelli (1989), em seus estudos sobre os Zor, focalizou a etnomedicina e suas relaes com a medicina ocidental, mas tambm abordou, ainda que rapidamente, algumas questes acerca do xamanismo (1988), das mudanas na conduta da caa (1985) e das migraes zor (1986). O estudo de Cloutier (1988) incide sobre a musicologia zor. H tambm vrios estudos com nfase na antropologia mdica (FREITAS 1996; SANTOS 1991;

  • 18

    SANTOS & COIMBRA 1996) e alguns estudos lingsticos (TRESSMANN 1994; MOORE 1981). Brunelli tambm escreveu sua tese de doutorado, qual no tive acesso.

    Os Gavio, tambm chamados Ikolen, vivem fora da extenso do Parque Aripuan, na Terra Indgena de Lourdes, demarcada em 1977, onde tambm vivem os Arara, falantes da lngua Karo (famlia Ramarama). Os informantes de Mindlin (2001: 241) relatam que as antigas aldeias gavio localizavam-se na regio dos afluentes do rio Ji-Paran, onde hoje a reserva do Jaru, e no rio Madeirinha. Nas primeiras dcadas do sculo XX, foram contatado e fotografados pela Comisso Rondon, fazendo parte posteriormente do lbum fotogrfico ndios do Brasil (RONDON, 1946) como os ndios Urumi. Em 1953, Harald Schultz esteve entre os Arara e os Gavio, poca em que estes dois povos comeavam a aprender a fazer borracha (SCHULTZ, 1955: 81-97). Schultz chamou os Gavio de Digt, nome de um de seus informantes, cuja traduo esconderijo de caa. No ano de 1966, os missionrios do New Tribes Missions estiveram na rea, onde estimaram em menos de 100 gavio e 50 arara, a populao restante (MOORE, 1981: 48).

    A lngua Gavio foi estudada em profundidade por Moore (1984) que elaborou sua descrio gramatical e ainda hoje trabalha tanto com os Gavio como com os outros povos Tupi-Mond. Lovold e Forseth estiveram em campo entre os anos de 1980 e 1981 e focalizaram seus trabalhos na mitologia, cosmologia e xamanismo (cf. DAL POZ, 1991: 23).13 H ainda algumas narrativas de mitos coletados por Mindlin (2001) reunidos em uma coletnea temtica.

    Os Suru esto localizados no sudeste de Rondnia e noroeste do Mato-Grosso, na Terra Indgena Sete de Setembro, com estimativa de 765 habitantes no ano 2000. Mindlin (1985: 26) relata que seus informantes lembram que no sculo XIX teriam emigrado de Mato-Grosso para Rondnia. Em junho de 1969, os Suru estiveram no posto Sete de Setembro, quando foram estimados em 800 pessoas. Moore relata (1981: 50) que a pacificao dos Suru, da qual participaram os Gavio, resultou em dezenas de mortes. Em 1976, seu territrio foi demarcado (MINDLIN, 1981: 153).

    A lngua Suru foi estudada primeiramente pelos missionrios do Summer Institute of Linguistics (SIL) W. & C. Bontkes (BONTKES, 1974, 1978 apud MOORE, 1984: 8). Mindlin esteve entre os Suru nos anos de 1979 a 1983 e desde ento produziu vrios livros cujos enfoques variam de uma descrio en passant do seu modo de vida (MINDLIN, 1985) at a reunio de mitos narrados por seus informantes (1996). Coimbra Jr. desde 1979 tem feito

    13 Infelizmente, no tive acesso aos artigos mimeografados destes autores.

  • 19

    pesquisa sobre ecologia humana entre os Suru e outros povos da regio (COIMBRA JR. 1985; 1989; SANTOS & COIMBRA JR.,1994). J o enfoque de Santos (1991) recai principalmente sobre a antropologia biolgica.

    As informaes sobre os Mond so bastante raras e no dispomos de informaes atualizadas sobre eles. A primeira meno dos Mond na literatura etnogrfica de 1938, quando Lvi-Strauss esteve em uma aldeia de 25 pessoas no alto rio Pimenta Bueno que se autodenominavam Mond (LVI-STRAUSS, [1955] 1996: 314). A missionria W. Hanke, no final da dcada de 40, visitou trs famlias Mond que haviam migrado para o alto Guapor, e coletou uma lista de palavras14 (HANKE, 1950) que serviu, como vimos antes, para classificar as lnguas dos grupos prximos aos Mond.

    Quanto aos Aru, temos algumas informaes de Snethlage quando, na dcada de 30, encontrou tanto estes ndios como os Aruashi no rio Branco do Guapor (SNETHLAGE, 1937 apud DAL POZ, 1991: 22). H ainda uma lista de palavras coletada pelo missionrio Robert Campbelle (1968). Atualmente, os Aru vivem nas terras indgenas Rio Guapor e Rio Branco junto a vrios outros grupos.

    Os Arara (de lngua Karo), da famlia Ramarama, possuem uma longa histria de contato com os povos Tupi-Mond. Contudo, no h etnografias sobre os Arara e so escassas as referncias famlia Ramarama, de modo geral. Segundo Mtraux (1948: 407) os Itogapuk viviam no alto rio Madeirinha, um dos afluentes do rio Roosevelt, e os Ramarama, nesta mesma poca, estariam quase extintos e os remanescentes viveriam no rio Machadinho. Nimuendaj (1925: 144), que esteve entre os Itogapuk (Netogapd ou Intogapid) em 1921, coletou uma pequena lista de palavras da lngua a partir de entrevistas com duas crianas. O autor compara esta lista com uma feita por Horta Barbosa da Comisso Rondon para os Rama-rama e conclui haver uma perfeita identidade lingstica entre as duas (NIMUENDAJ, 1925: 144). Os sobreviventes atuais desta famlia so apenas os Arara, para os quais h trabalhos lingsticos desenvolvidos principalmente por Moore (1981) e Gabas Jr. (1989; 1994). Segundo Gabas Jr (1994: 136), os Arara parecem ter habitado a regio que vai do rio Machado (ou Ji-Paran) ao rio Branco. Atualmente, vivem na Terra Indgena Igarap Lourdes, junto com os Gavio, e somavam 184 pessoas no ano 2000.

    Tambm em Rondnia esto os Karitiana, ltimos remanescentes de uma populao maior pertencente famlia Arikm, que, como vimos, englobava outras lnguas atualmente

  • 20

    extintas. Os Karitiana atribuem o nome pelo qual so conhecidos aos seringueiros e aos caucheiros com os quais trabalharam no incio do sculo XX (LUCIO, 1996: 37). De acordo com o mapa etno-histrico de Curt Nimuendaj ([1944] 1981), os grupos da famlia Arikm ocupavam a rea ao sul da bacia do rio Madeira. Mtraux (1948: 406), por sua vez, relata que dominavam a rea das cabeceiras dos rios Jamari, Candeias e Massangana, afluentes do rio Madeira. Na ocasio de seu encontro com a Comisso Rondon, eram cerca de sessenta pessoas distribudas entre quatro aldeias. Alguns pesquisadores sugerem um contato estreito entre os Karitiana e os povos Aymara da Bolvia, j que ambos praticavam a deformao craniana por meio de um aparato de madeira e algodo que, se usado desde cedo nas crianas, produz o achatamento da poro frontal do crnio (cf. SOUZA, 1994) e, ao contrrio de outros grupos Tupi, os Karitiana no produzem farinha de mandioca, mas sim a farinha de milho, processada em um pilo horizontal com a pedra retangular tpicos de povos vizinhos bolivianos.

    A primeira aluso aos Karitiana na literatura data de 1909 atravs do Capito Manoel Teophilo da Costa Pinheiro, da Comisso Rondon, que os localiza na altura do rio Jaciparan. Em 1910, o prprio Rondon relata os servios dos Karitiana prestados aos seringueiros naquela regio. O padre salesiano Victor Hugo esteve entre eles em 1959 e escreveu o livro Desbravadores (sobre a pacificao e a catequizao dos ndios da regio), contendo uma lista com nomes e idades dos Karitiana batizados pelos missionrios e tambm um lxico Karitiana (HUGO, [1959] 1992). David e Rachel Landin, missionrios do Summer Institute of Linguistics (SIL), viveram entre os Karitiana de 1972 a 1978, e foram os primeiros a estudar sua lngua (cf. LANDIN, 1989). Tambm a lingista Luciana Storto (cf. STORTO, 1999) tem se dedicado descrio e anlise da lngua Karitiana desde 1991 e, atualmente, desenvolve um projeto de educao e documentao da lngua. Uma etnografia recente a dissertao de mestrado de Carlos Frederico Lucio (1996) cujo objetivo fazer uma comparao entre o que o autor define como trs sistemas classificatrios, a saber: a genealogia, o sistema onomstico e o sistema de parentesco (LUCIO, 1996: 3). Tive a oportunidade de entrevistar dois Karitiana, Incio e Nlson, no perodo de uma semana15.

    14 A autora dividiu as palavras por temas que ela define como: parentesco, partes do corpo humano,

    natureza, animais e seus derivados, adjetivos, advrbios, verbos e frases. O artigo inclui ainda uma anlise de desenhos feitos por um informante. 15

    Atravs do Projeto Tupi Comparativo, passei uma semana em So Paulo, na companhia da lingista Luciana Storto e do foneticista Didier Demolin, com o intuito de coletar dados e termos do parentesco Karitiana. Estas informaes estaro no presente trabalho, embora eu tenha clareza de que se trata de informaes ainda preliminares. Agradeo aqui, mais uma vez, a oportunidade que me foi oferecida pelos integrantes do projeto.

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    Os Karitiana sofreram um declnio populacional atroz que impulsionou uma endogamia exacerbada, cujo resultado o de que praticamente toda a populao Karitiana atual descendente de um nico homem, um antigo chefe chamado Antnio Moraes (LUCIO 1991: 141). Atualmente, vivem na Terra Indgena Karitiana no Rio das Garas, entre os Rios Candeias e Jaciparan, sua aldeia fica prxima cidade de Porto Velho e, no ano de 2001, os Karitiana somavam 206 pessoas.

    Ainda em Rondnia, os Tupari vivem atualmente na Terra Indgena Rio Branco, demarcada em 1983 pela FUNAI, onde tambm se encontram remanescentes dos grupos Ajuru, Makurp e Mekns, da famlia Tupari, nas Terras Indgenas do Rio Branco e do Rio Guapor16. Em 1927, os Tupari entraram em contato com alguns seringueiros que trabalhavam com outros ndios da regio. Sete anos mais tarde, Snethlage esteve entre os Tupari por uma semana, quando os estimou em cerca de 250 pessoas. Lvi-Strauss (1948: 372), em um artigo no Handbook of South American Indians, relata que os Aru e os Makurp j viviam no rio Branco, mas os Tupari localizavam-se junto aos Kepkiriwat nas cabeceiras dos afluentes ao sul do rio Machado (Ji-Paran). Caspar (1957: 148) relata que, na ocasio de seu primeiro contato com os Tupari, em 1948, havia aproximadamente 200 pessoas, nmero reduzido para 66 em 1954, devido a uma epidemia de sarampo. preciso notar que a estimativa do mesmo autor para a poca pr-contato era de cerca de 3000 pessoas. Aps suas viagens em 1948 e 1954, Caspar produziu o material etnogrfico que at hoje constitui praticamente as nicas referncias etnolgicas sobre os Tupari. Infelizmente no me foi possvel consultar o clssico livro de Franz Caspar (1975), Die Tupar. Ein Indianerstamm in Westbrasilien, devido minha inaptido com a lngua alem e tambm dada a urgncia dos prazos ao fato de no ter podido solicitar sua traduo. Consultei, no obstante, outras obras do mesmo autor (CASPAR 1953, 1957, 1958). Mindlin (1993) reuniu as fotos de Caspar narrativas em portugus coletadas pela autora, dividindo-as por temas em uma publicao sobre os Tupari.

    Quanto famlia Purubor, dispomos de algumas informaes da segunda dcada do sculo XX de Koch-Grnberg e h ainda uma lista de palavras coletada por Bontkes (1968). Rodrigues (1986: 96) relata que os Purubor viviam no rio So Miguel, um afluente do rio Guapor. A classificao do purubor passou pelas mais variadas tentativas de comparao com outras lnguas. Lvi-Strauss (1948: 372), por exemplo, afirmou que os Massak do rio Corumbiara seriam lingisticamente ligados aos Purubor e estes no fariam parte do conjunto tupi. De acordo com Snethlage (1937 apud LVI-STRAUSS, 1948: 372), os

    16 Nestas mesmas reas h tambm remanescentes dos seguintes povos: Arikapu; Kanoe; Columbiara; Aru;

    Jaboti; Aikana e Uari.

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    Purubor seriam similares aos Kepikiriwat, aos Amniap, aos Guaratgaja e aos Tupari. Finalmente, Rodrigues (1986: 42) classificou-a como uma famlia do tronco tupi, com uma nica lngua isolada. Os pesquisadores do Projeto Tupi-Comparativo recentemente contactaram alguns remanescentes purubor em Rondnia.

    Esgotados os povos de Rondnia, concentremo-nos agora nos povos que se dispersaram. Passemos para as famlias Maw, Munduruku, Juruna e Aweti.

    A ocupao da Amaznia pelos portugueses iniciou-se efetivamente em 1616, quando foi fundada uma fortaleza no onde a cidade de Belm, no Par. A fundao da Misso Jesuta dos Tupinambaranas, em 1669, impulsionou o primeiro contato dos Maw com os brancos (NIMUENDAJ, 1948: 245) e, j em 1691, aparecem no mapa elaborado pelo padre Samuel Fritz como mabus e situados a oeste do rio Tapajs. Os Maw (ou Sater-Maw) antes habitavam um grande territrio entre os rios Madeira e Tapajs, que foi bastante reduzido aps as permanentes guerras com os vizinhos Munduruku e Parintintin e tambm depois do contato. Nimuendaj relata que os Andir e os Maragu, que aparecem na literatura, eram, provavelmente, subgrupos Maw.

    No obstante seu contato antigo, os Maw no foram objeto de muitas descries etnogrficas. Sobre eles escreve Nimuendaj (1948: 245-246) que, em 1923, esteve entre os Maw da regio do Mariaqu. Nunes Pereira, talvez o mais conhecido etnlogo dos Maw, esteve na regio do rio Andir, no ano de 1939 e, posteriormente, escreveu Os ndios Maus (NUNES PEREIRA, 1954), onde os compara com outros grupos principalmente com os Munduruku e descreve, bastante sucintamente e nos moldes do Handbook, o que chama de aspectos gerais da cultura dos ndios Maus. Entre 1956 e 1957, Leacock esteve entre os Maw do Andir e produziu um artigo sobre as relaes entre estrutura social e mudanas econmicas impulsionadas pela aquisio de bens (LEACOCK, 1964). A dissertao de mestrado de Romano (1982) versa sobre as migraes de um grupo Maw, na dcada de 70, para a cidade de Manaus, enfocando as relaes com seu novo contexto urbano. Lorenz (1992), por sua vez, escreveu um pequeno livro onde descreve o desenvolvimento do projeto Sater, do qual fazia parte, que tinha por objetivo a demarcao do territrio indgena e a organizao para produo e comercializao autnomas do guaran. Uma monografia recente e que fornece um bom nmero de novos dados, a de Giraldo Figueroa (1997), que tem por objetivo principal descrever as representaes dos Maw sobre as doenas, o mal e a morte (GIRALDO FIGUEROA, 1997: 1). Os Maw habitam atualmente a Terra Indgena Andir-Marau, no mdio rio Amazonas, entre os estados do Amazonas e Par, e somavam 7134 pessoas no ano 2000.

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    No sculo XVIII, os Munduruku iniciaram um processo de expanso de seu territrio pela rea do rio Tapajs e adjacncias, que durou at meados do sculo XIX. De acordo com Santos (1999: 126), o territrio original dos Munduruku era no alto de um pequeno monte que se elevava em meio a terra plana, no alto curso do rio Cururu, um dos rios formadores do Tapajs, que lhes forneceria uma posio privilegiada e mais segura contra os ataques inimigos. A expanso dos Munduruku para a regio do antigo Estado do Gro-Par e Rio Negro, a partir da rea do alto rio Tapajs, levou-os a um inevitvel conflito tanto com os demais povos indgenas, como com os ndios aldeados e os brancos. O embate causado fez com que as autoridades coloniais decidissem pela guerra e cativeiro contra os Munduruku; contudo, no lhes foi possvel empreender o extermnio, posto que no dispunham nem de soldados suficientes, tampouco de misses religiosas (SANTOS, 1999: 174/175)17. Por volta do ano de 1790, contudo, firmou-se um tratado de paz entre os colonizadores e os Munduruku que, por sua vez, aliaram-se aos portugueses participando do processo de captura de outros povos indgenas para realizar os descimentos. Procedimento semelhante ocorreu durante a Cabanagem, j no sculo XIX, em que os Munduruku capturavam os rebeldes cabanos enquanto os Mura lutavam junto aos ltimos (id.).

    A primeira referncia aos Munduruku data de 1768, quando o padre Jos Monteiro de Noronha, vigrio geral da capitania de so Jos do Rio Negro, listou os Maturucu entre as tribos do rio Maus (SANTOS, 1999: 134). As misses religiosas estabeleceram-se na rea do Tapajs em 1799 e na regio do rio Madeira em 1811 (HORTON, 1948: 272). O termo Munduruku o nome dado pelos Parintintin a uma espcie de formiga (STRMER 1932 apud HORTON, 1948); a autodenominao do grupo Weidyenye, que significa nosso povo de acordo com Kruse (1934: 52). Este ltimo autor (KRUSE, 1954:51) prope uma diviso dos Munduruku em 4 grupos principais: os primeiros seriam os habitantes do rio Tapajs; em seguida, haveria os moradores de uma rea do rio Madeira, que foram visitados por Martius; j os Munduruku do Xingu seriam denominados Kuruya e os que habitavam a regio do Juruena seriam chamados de Njambikwras estas duas ltimas classificaes so notadas como equivocadas por Murphy (1960:7).

    Os etngrafos Robert e Yolanda Murphy estiveram entre os Munduruku nos anos de 1952 e 1953 e produziram etnografias que se tornaram clssicas na Antropologia. Em sua primeira monografia, Mundurucu Religion (1958), Murphy descreve rituais e narra vrios fragmentos de mitos. Posteriormente, escreveu o ensaio Headhunters Heritage (1960), no

    17 Nesta mesma poca, os portugueses tambm estavam em guerra contra os Muras.

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    qual enfocava as mudanas na estrutura social e econmica dos Munduruku. Junto com sua esposa, Yolanda Murphy, publicou Women of the Forest (1974), no qual ambos os autores trataram enfocaram o papel da mulher em diferentes contextos. Os dados etnogrficos coletados por estes autores serviram desde ento para diversas anlises de outros pesquisadores. Nadelson (1981) examinou seis mitos munduruku a partir dos dados de Murphy; e Menget (1993), por sua vez, analisou as diversas etapas do ritual guerreiro dos Munduruku. Contudo, no h dados etnogrficos atuais. Nos dias de hoje, os Munduruku somavam 7500 pessoas em 1997, dispersas em oito terras indgenas nos estados do Par, Amazonas e Mato-Grosso.

    Os kuruya tambm pertencem famlia lingstica Munduruku e, atualmente, vivem nas terras indgenas Xipaya (ainda em processo de identificao) e Curu, ambas no estado do Par, onde somavam 75 pessoas em 1998. Nimuendaj (1948: 221) relata que os kuruya eram chamados Caravares, por volta dos anos de 1682 a 1685 e que consideram como seu territrio os afluentes da margem direita do rio Curu, onde foram encontrados no sculo XX. Snethlage esteve entre eles em 1909 e 1913, quando elaborou um vocabulrio comparativo Xipaya/kuruya (SNETHLAGE, 1910: 93-99), apresentou fotografias dos dois povos e fez vrias descries que incluam descries sobre o dia-a-dia, curas xamnicas e descries fsicas. Em 1934, sofreram ataques dos Kayap e uma parte do grupo migrou da foz do Riozinho do Iriri para o rio Tapajs e a outra parte passou para o mdio Iriri. No h etnografias sobre este grupo.

    As relaes dos kuruya com os grupos da famlia Juruna, seja de guerra, seja de aliana, so bastante antigas. Os kuruya eram considerados pelos Juruna como parte da civilizao do cauim (LIMA, 1995: 338) por serem canibais. Tambm os Xipaya os incluem em vrias de suas narrativas mticas e, em uma delas, contam a origem dos Kuruya (NIMUENDAJ, 1981: 44-5).

    As primeiras notcias sobre os Juruna datam do sculo XVII, quando eles ocupavam, com outros povos, um vasto territrio na bacia do rito Xingu que se estendia da foz do rio Iriri ao rio Bacaj, no Par. Quanto aos contatos dos Juruna, pode-se dizer, resumidamente, que cabe ao padre jesuta Torquato Antnio de Souza Fontes a primeira nota etnogrfica, efetuada em 1842, quando estimou a populao Juruna em 2000 pessoas distribudas entre nove aldeias. J Karl Von Den Steinen, em 1884, calculou 230 habitantes em 5 aldeias e, em 1896, Henri Coudreau estimou-os em 150 habitantes distribudos em dois grupos18. Lima (1995: 62)

    18 C.f. Lima (1995: 61-63) e Nimuendaj (1948: 218) para uma sntese mais completa dos contatos Juruna.

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    relata que os Juruna por ela estudados descendem de um destes grupos observados por Coudreau os que estavam situados na desembocadura do rio Fresco at a Cachoeira Comprida. No final do sculo XIX os Juruna migraram das ilhas do Mdio Xingu para a Cachoeira Von Martius, no alto rio Xingu, fugindo da ltima onda de homicdios do mesmo sculo (op.cit.: 6). Na dcada de 40 do sculo XX, com o processo de pacificao iniciado pelos Villas-Boas, os Juruna foram quase extintos (FRANCHETTO, 1987: 149). Atualmente h uma aldeia, chamada Tubatuba, na foz do rio Maritszw, cuja populao, em 1999, era de 201 pessoas. Na Terra Indgena Paquiamba, a jusante de Altamira, h uma outra aldeia que contava com 35 habitantes em 1998.

    Do ponto de vista etnolgico, os Xipya foram estudados por Curt Nimuendaj (1948, 1981) e os Juruna por Adlia Oliveira (1968, 1969, 1970a, 1970b) e posteriormente por Tnia Lima (1986, 1995, 1996). Esta ltima autora, em sua tese de doutorado, relata que seus informantes contaram-lhe sobre a existncia de outros grupos Juruna chamados de Arupaya,

    Peapya, Aoku e Taku)mdikat (LIMA 1995: 6), mas as informaes sobre estes grupos so bastante escassas ou mesmo nulas. H algum conhecimento sobre os Arupaya que, segundo Adalberto von Preussen (apud NIMUENDAJ 1948: 220), eram tradicionais inimigos dos Juruna. Foram tambm denominados como Urupaya ou Arupa palavra derivada do xipya arup ou aguay, de acordo com Nimuendaj no Handbook of South American Indians (op.cit.1948: 220). Coube a Brusque (1863 apud STEWARD, 1948) o ltimo relato sobre estes ndios, no qual h informaes sobre sua economia de subsistncia e as relaes com os Tucunapeuas (Takunyap), pois, quando da viagem de Von den Steinen ao Xingu em 1884, os Arupaya no mais existiam. Sobre os Peapya, h informaes de Adalberto von Preussen (1865: 685 apud SNETHLAGE, 1910) que afirma serem eles os principais inimigos dos Juruna. Nimuendaj (1981: 45-6) relata uma expedio guerreira dos Xipaya contra os Peapya.

    Os Xipaya habitavam as ilhas do Rio Iriri, na foz do rio Curu, e, com o padre jesuta Roque Klundertpfund, estabeleceram seu primeiro contato oficial. O prncipe Adalberto von Preussen faz um interessante relato sobre a covardia dos Xipaya (do qual discorda veementemente Emlia Snethlage):

    Vem depois os Axipai [Xipaya], que so pouco numerosos; elles so mansos, pouco hbeis e cobardes na guerra e por causa disto foram sempre repellidos. Ao contrrio os Peapai [Peapya] so numerosos e so elles os inimigos principaes dos Juruna e Tacanhapz. O mesmo pode-se dizer dos Curierai [Kuruaya], prximos visinhos das trs primeiras tribs s

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    quaes elles movem uma guerra contnua (PREUSSEN, 1857: 685 apud SNETHLAGE, 1910).

    Snethlage esteve entre os Xipaya e entre os Kuruya nos anos de 1909 e 1913 quando coletou uma lista de palavras da lngua (SNETHLAGE, 1910). Foi no ano de 1913 que os Xipya dividiram-se em dois grupos um no baixo Iriri e outro no Curu aps um confronto com seringueiros (NIMUENDAJ 1948: 219). Um ataque Kayap obrigou o grupo do Iriri a deslocarem-se para o Curu. H ainda uma publicao que rene mitos e narrativas Xipaya, coletados por Nimuendaj (1981). Atualmente, os Xipya esto localizados nas Terras Indgenas de Curu e Xipya.

    A aldeia Aweti est localizada no mdio curso do rio Tuatuari, no Mato-Grosso. A primeira referncia ao grupo encontra-se no mapa de Karl von den Steinen (1942: 255) desenhado por um Suy em 1884, que os localizava no Culiseu, prximos aos Arauiti, fato que o etngrafo confirmou em sua segunda viagem em 1887. Os Aweti vivem hoje na mesma regio onde Steinen os encontrou. Outros pesquisadores estiveram entre os Aweti, como H. Meyer, em expedies nos anos de 1895-1896 e 1898-1899; e M. Schmidt em uma expedio no ano de 1900-1901 (COELHO DE SOUZA 2001: 359). Em 1924, o Capito Vicente de Paulo Vasconcelos, da Comisso Rondon, encontrou o chefe Aweti Avaiat (Awajatu) que, na mesma ocasio foi fotografado pelo Major Reis. A partir desta mesma data os Aweti sofreram um declnio populacional intenso (COELHO DE SOUZA, 2001: 360) e, quando da visita de Pedro Lima em 1947, restavam apenas 27 pessoas (LIMA, 1955: 164, 169). Oberg, no ano seguinte recenseou-os em 30 pessoas (OBERG, 1953: 3-4) e Zarur (1975) em 1971 estimou-os em 45. Charlotte Emmerich e Ruth Montserrat (1972) efetuaram um trabalho sobre a fonologia da lngua aweti que auxiliou sua classificao como famlia lingstica e no mais como parte da famlia Tupi-Guarani. Atualmente, Sebastian Drude realiza pesquisas lingsticas entre os Aweti, no contexto do Projeto Tupi Comparativo.

    Embora tanto os Juruna como os Aweti vivam atualmente em uma mesma reas indgena, eles inserem-se de maneira diferente no contexto alto-xinguano. Enquanto os Juruna ocupam uma posio marginal (LIMA, 1995: 7), os Aweti fazem parte do sistema sociocultural do Alto Xingu. Por este motivo, sua comparao com os outros Tupi me parece mais complicada, posto que sua insero no contexto do Alto-Xingu implica necessariamente em um estudo deste sistema alm de maiores informaes sobre os prprios Aweti antes de qualquer tipo de avaliao. Sendo assim, preferi no incorporar os dados sobre os Aweti na dissertao.

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    1.3- Consideraes Finais

    A escassez de trabalhos consistentes que dem conta das famlias tupi reflete-se em um obscurecimento das diferenas e semelhanas entre os povos. Por este motivo, seria pretensioso fazer aqui um trabalho comparativo incluindo na anlise os Tupi-Guarani em conjuno aos outros povos, no em oposio a eles , visto que os dados so tanto escassos como discrepantes em sua qualidade. Portanto, meu intuito neste primeiro captulo foi fazer um sobrevo sobre o material tupi, tornando visveis os contrastes na qualidade e quantidade das informaes e, desta maneira, justificar a opo por privilegiar determinados povos nas anlises posteriores. Minha proposta, ento, a de concentrar a anlise em questes-chave que nos levem a pensar sobre certos temas recorrentes na literatura Tupi, apoiando-me nos dados mais precisos e cuidadosos de que dispomos.

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    ANEXO

    Localizao e situao atuais das Terras Indgenas. Fonte: Banco de dados do programa Povos Indgenas no Brasil Instituto Socioambiental, setembro/2001

    Arara Karo

    Terra Indgena Igarap Lourdes 556 habitantes (Arara e Gavio) (Funasa:1999) Registrada 185.534 ha Municpio de Ji- Paran RO

    Aru

    Terra Indgena Rio Branco 320 habitantes (Makurp, Arikapu/Kanoe, Columbiara/Aru, Jaboti/Tupari) (Funai:94) Registrada 236.137 ha Municpio de Costa Marques RO.

    Terra Indgena Rio Guapor 407 habitantes (Ajuru/ Aikana/ Aru/ Uari/ Kanoe/ makurp/ Mequm/ Jaboti/ Tupari/ Arikapu) (Funai: ADR / G. Mirim: 98) Homologada 115.788 ha Municpio de Guajar Mirim RO

    Cinta-Larga:

    Terra Indgena Parque Aripuan 360 habitantes (FUNAI:1989) Homologada 1603.246 ha Municpio de Ariquemes RO/MT

    Terra Indgena Parque Aripuan 132 habitantes (CIMI-RO: 1995) Homologada 750.649 ha Municpio Juna Aripuan MT.

    Terra Indgena Roosevelt 306 habitantes (CIMI-RO: 1995) Homologada 230.826 ha Municpios de Aripuan e Espigo dOeste MT/RO.

    Terra Indgena Serra Morena 145 habitantes (I. Hargreaves: 1993) 147.836 ha Municpio de Juna MT.

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    Gavio

    Terra Indgena Igarap Lourdes 556 habitantes (Arara e Gavio) (Funasa:1999) Registrada 185.534 ha Municpio de Ji- Paran RO

    Juruna

    Terra Indgena Paquiamba 35 habitantes (Funai-Altamira: 98) Registrada 4.348 ha Municpio de Se. Jos Porfrio PA.

    Karitiana

    Terra Indgena Karipna 20 habitantes (Karitiana e karipna) (Funai Porto Velho: 2000) Homologada 152.930 ha Porto Velho RO.

    Terra Indgena Karitiana 220 habitantes (Funai: 99) Registrada 89.682 ha Porto Velho RO.

    Kuruya

    Terra Indgena Curu 91 habitantes (Xipya/ Kuruya) (Funai-Altamira: 99) Delimitada 19.450 ha Municpio de Altamira PA

    Terra Indgena xipya - 67 habitantes (xipya/kuruya) (Funai-Altamira: 99) Em identificao Municpio de Altamira PA

    Makurp

    Terra Indgena Rio Branco 320 habitantes (makurp, Arikapu/Kanoe, Columbiara/Aru, Jaboti/Tupari) (Funai:94) Registrada 236.137 ha Municpio de Costa Marques RO.

    Terra Indgena Rio Guapor 407 habitantes (Ajuru/ Aikana/ Aru/ Uari/ Kanoe/ makurp/ Mequm/ Jaboti/ Tupari/ Arikapu) (Funai: ADR / G. Mirim: 98) Registrada 115.788 ha Municpio de Guajar Mirim RO

    Terra Indgena Rio Mequns 137 habitantes (Sakirabip/ makurp) (Funasa: 95) Registrada 107.553ha Municpio de Colorado do Oeste-Cerejeira RO

    Terra Indgena Posto Fiscal a identificar RO

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    Munduruku

    Terra Indgena Apiak-Kayabi 85 habitantes (Munduruku, Apiak, Kayabi) (Funasa: 99) Homologada 109.245 ha Municpio de Juara MT.

    Terra Indgena Alto Rio Guam 922 habitantes (Kreje, Kaapor, Guaj, Temb, Munduruku) (Funai: 99) Homologada 279.897 ha Municpio de Paragominas-W.Esperana do Piri, Santa Luzia do Par PA.

    Terra Indgena Kayabi 387 habitantes (Munduruku, Kayabi, Apiak,) (Funai: Itaituba: 00) Identificada/Aprovada/FUNAI 1.408.00 ha Municpio de Jacareacanga Apiacs, MT/PA.

    Terra Indgena Coat-Laranjal 1.768 habitantes (Munduruku, Sater-Maw) (GT/Funai:97) Declarada 1.121.300 ha Municpio de Borba AM.

    Terra Indgena Munduruku 5.075 habitantes (Parecer Funai: 95) Declarada 2.340.30 ha Municpio de Jacareacanga PA.

    Terra Indgena Praia do ndio 65 habitantes (Funai-Itaituba: 00) Reservada 28 ha Municpio de Itaituba PA.

    Terra Indgena Praia do Mangue 115 habitantes (Funai-Itaituba: 00) Reservada 30 ha Municpio de Itaituba PA

    Terra Indgena Sai Cinza 1.022 habitantes (Funai-Itaituba:00) Registrada 125.552 ha Municpio de Itaituba PA.

    Sakirabip

    Terra Indgena Rio Mequns Registrada RO

    Sater-Maw

    Terra Indgena Andir-Marau 7.134 habitantes (Funai-Parintins: 00) Homologada 788.528 ha Municpio de Itaituba, Barreirinha, Arintins, Aveiro, Maus PA, AM, AM, PA, AM.

    Terra Indgena Jacar Xipaca Em Identificao AM .

    Suru-Paiter

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    Terra Indgena Sete de Setembro 605 habitantes (CIMI-RO: 95) Registrada 247.870 ha Municpio de Aripuan-Cacoal MT/RO

    Tupari

    Terra Indgena Rio Branco 320 habitantes (Makurp, Arikapu/Kanoe, Columbiara/Aru, Jaboti/Tupari) (Funai:94) Registrada 236.137 ha Municpio de Costa Marques RO.

    Terra Indgena Rio Guapor 407 habitantes (Ajuru/ Aikana/ Aru/ Uari/ Kanoe/ makurp/ Mequm/ Jaboti/ Tupari/ Arikapu) (Funai: ADR / G. Mirim: 98) Registrada 115.788 ha Municpio de Guajar Mirim RO

    Xipaya

    Terra Indgena Curu 91 habitantes (xipya/ kuruya) (Funai-Altamira: 99) Delimitada 19.450 ha Municpio de Altamira PA

    Terra Indgena Xipaya - 67 habitantes (xipya/kuruya) (Funai-Altamira: 99) Em identificao Municpio de Altamira PA

    Zor

    Terra Indgena Zor 400 habitantes (Funai-Porto Velho: 00) Registrada 355.789 ha Municpio de Aripuan MT.

    E, naturalmente, de um absurdo pode-se inferir qualquer coisa. Ex absurdo sequitur quolibet. E dessa confuso pueril extrai a sugesto de um universo incompreensvel, uma espcie de parbola mpia. Qualquer estudante sabe e at me atreveria a conjecturar (como diria Borges) que a realizao de todos os possveis ao mesmo tempo impossvel

    Sobre Heris e Tumbas Ernesto Sbato

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    CAPTULO II

    Da Patriorientao Tupi: Tentativas de Segmentao e o Fazer Parentes.

    O objetivo deste captulo tentar reunir em conjunto os processos de produo de identidade que, embora se realizem de modos diferentes em cada grupo tupi aqui estudado, obedecem a um princpio de constituio que passa pela linha paterna. O que procurarei discutir o estatuto destas evidncias de patrifocalizao, seja em termos da constituio de grupos, seja em domnios como o da onomstica, da terminologia ou da teoria da concepo. Devo esclarecer que os tomarei em conjunto, sem estabelecer recortes pr-determinados que creio descosturar artificialmente os meandros do fazer de Si.

    interessante notar que os grupos tupi apresentam em vrios campos uma tendncia patri-identitria, mas, ao mesmo tempo, ela dificilmente se realiza de modo mecnico. Ademais, observa-se uma interferncia entre os fenmenos da residncia, de constituio dos grupos e de produo da pessoa. Discutirei estas questes privilegiando o caso dos Karitiana, dos grupos Tupi-Mond e de dois plos mais extremos, os Munduruku (que possuem cls, linhagens e metades) e os Juruna (que no possuem evidncias de segmentao)19. Concentrarei a anlise em algumas monografias mais substantivas, embora saiba que a comparao com os outros grupos tupi seria um passo importante e provavelmente revelador; infelizmente no h elementos suficientes para isso. evidente que os dados que utilizarei aqui pertencem a anlises de autores mais ou menos preocupados com tais questes, portanto, natural que, dada a especificidade das informaes, elas nem sempre tenham sido tratadas de modo extenso pelos etngrafos. Trata-se de um duplo problema: ao mesmo tempo em que os grupos atualizam a patriorientao de modo variado, os prprios etngrafos realizam suas anlises de acordo com orientaes e questes especficas de seu tempo. Se um dos problemas de Murphy para os Munduruku era a aparente inadequao da patrilinearidade dos cls e da uxorilocalidade era porque tinha em mente um problema caracterstico de sua poca (LVI-STRAUSS, 1982: 237) que os etngrafos atuais parecem dar pouca importncia. Nos dois casos, produz-se uma certa artificialidade: ou por uma tentativa de ajustar a etnografia aos pressupostos especficos da formao do autor ou pelo movimento contrrio, uma fuga radical do modelo da descendncia em nome da adoo de novos paradigmas analticos. Esta tomada de posio implica uma relativa negligncia de determinadas questes

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    por serem ao mesmo tempo pouco pronunciadas no contexto etnogrfico e alvo recente de crticas , que so deixadas de lado em benefcio de outras, as quais corresponderiam mais diretamente s preocupaes atuais da etnologia indgena.

    Entre os grupos Tupi que aqui sero analisados parece figurar o que Fausto (1991, 1995, 2001) chama, para os Parakan, de uma concepo patrilinear de transmisso de identidade, na qual se herda a identidade pela via paterna. Contudo, os modos de realizao desta patrilinearidade so distintos e parecem estar aliados a mecanismos outros de classificao. Entretanto, salta aos olhos a grande variabilidade interna dos grupos Tupi, no que toca sua organizao social e o parentesco. Observamos, como disse, desde o sistema indiferenciado dos Juruna, at as caractersticas dos Munduruku pouco comuns a grupos Tupi (diviso em metades e cls patrilineares associados a uma uxorilocalidade mecnica), passando pelos grupos Tupi Mond com seus classificadores ou subgrupos ou divises ou cls patrilineares20. Neste ltimo caso, nota-se uma dificuldade generalizada na classificao dos mecanismos de segmentao que Tupi-Mond em maior ou menor grau apresentam. As inmeras tentativas de conceitualizao variam da confirmao de existncia de cls, metades, linhagens at a afirmao de seu baixo rendimento analtico e conseqente desateno a estas questes. No posso aqui pretender determinar sua natureza; minha tentativa ser a de fazer render a questo da patrisegmentao de uma maneira outra, optando no por isol-la tornaria-a, neste movimento, pouco produtiva mas por conjug-la a problemticas que, aparentemente, so de outra ordem, como a onomstica, a terminologia de parentesco e as regras de casamento e residncia21.

    2.1- Segmentando os grupos

    Neste item pretendo tratar de formas de segmentao entre alguns grupos tupi e sua relao com a residncia e a localizao geogrfica. Certas dificuldades se apresentam

    19 Sempre que for possvel, no entanto, farei referncia aos outros grupos do tronco Tupi.

    20 No intuito de deixar clara esta dificuldade em sua conceitualizao utilizarei, ao longo do texto, as formas

    adotadas por cada autor e, quando for o caso, apresentarei suas justificativas. 21

    Deve ser notado, obviamente, que a histria do contato de todos estes grupos das mais cruis e turbulentas. Para alm da perda macia dos territrios originais e dos agrupamentos artificialmente forjados pela demarcao arbitrria de terras, todos os grupos sofreram um processo de depopulao intenso. Este ltimo fator traz uma dificuldade adicional para a anlise da questo da patri-segmentao e torna qualquer tentativa de comparao uma tarefa ingrata. Fica difcil avaliar o motivo da existncia ou no destas formas e o estatuto por elas ocupado quando o contingente populacional atual muitas vezes no permite sua manifestao emprica.

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    execuo desta tarefa, tais como a escassez de dados sobre a situao anterior ao contato, as grandes perdas demogrficas e os deslocamentos espaciais. Tais dificuldades, entretanto, no anulam as possibilidades comparativas, mesmo por que essas dinmicas geram, elas mesmas, novas possibilidades de atualizao do fazer de Si.

    Entre os Munduruku e os Maw observam-se formas mais substantivas de segmentao. Enquanto os Maw possuiriam apenas cls patrilineares (GIRALDO FIGUEROA, 1997: 269-276), para os Munduruku, relata-se a existncia de metades, cls patrilineares e linhagens (MURPHY 1958, 1960; KRUSE, 1934). J no caso dos grupos Tupi-Mond no h um consenso entre os autores e so abundantes e diversas as interpretaes acerca do modo como se dividem. Os Juruna, por sua vez, constituem um caso extremo se comparado aos Munduruku, posto serem o grupo do conjunto aqui analisado que no apresenta qualquer evidncia de segmentao. Para este enfoque especfico no temos dados sobre os Karitiana.

    Vejamos primeiramente o que acontece com os Tupi-Mond em geral. O modelo guians (cf. RIVIRE,1984) freqentemente utilizado na descrio dos povos Tupi-Mond, cuja organizao social assemelhar-se-ia quela dos caribe da Guiana: grupos locais instveis, pequenos e quase autnomos, aglutinados em torno de um homem de prestgio uma figura de sogro ou pai forte capaz de fazer valer a uxorilocalidade para seus genros e, ao mesmo tempo, reter seus filhos homens. Esse modelo parece aplicar-se, inclusive, aos Cinta-Larga, como assinala Dal Poz (1991: 38), embora, ao contrrio dos demais Tupi-Mond, a escolha residencial deste grupo seja patrilocal.

    Atualmente, as aldeias dos Cinta-Larga costumam manter-se prximas geograficamente (em mdia de 10 a 15 km). Na regio pesquisada pelo autor a rea do Aripuan havia de trs a cinco famlias nucleares compreendendo o dono da casa, suas esposas, seus filhos casados ou solteiros, suas filhas solteiras e suas noras. Poderia-se incluir, ainda, seus irmos e as respectivas famlias e, s vezes, suas filhas casadas e os genros. Todos moram juntos at a morte do dono da casa, chamado de zpiway, o homem de prestgio (DAL POZ, 1991) a quem cabe no apenas a iniciativa da construo de uma nova casa22, mas tambm a promoo de festas e a abertura de roas. O tempo de utilizao de uma aldeia cinta-larga de aproximadamente cinco anos; abandonada quando se esgotam os recursos ecolgicos da regio e tambm os recursos polticos para manter a aldeia unida.

    22 Zp o termo tanto para o local onde se far a nova casa como para sua construo.

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    Quanto situao pr-contato das aldeias Tupi-Mond, Dal Poz (op.cit.: 37) e Brunelli (1989: 139) formulam hipteses equivalentes para a sua dimenso e distribuio. Ambos consideram que pequenas unidades sociais espalhadas pelo territrio so caractersticas do tipo de sociedade estudado e, remetendo s hipteses que formulam para explicar a situao anterior ao contato, os autores buscam justificar o carter disperso destas unidades praticamente auto-suficientes, bem como sua acentuada mobilidade. Dal Poz defende ento que as aldeias ou malocas cinta-larga poderiam conter de 50 a 100 pessoas e no mais do que isso (cf. BRUNELLI,1989, para uma concluso semelhante em relao aos Zor, Arara e Gavio).

    No primeiro captulo, mencionou-se a diviso dos Cinta-Larga em trs grandes blocos territoriais (Pabiey ou biey, Pabirey e Papiey)23 definidos por um critrio geogrfico:

    Os Cinta-Larga parecem pensar sua distribuio espacial tomando como eixo a direo em que correm as guas dos rios Aripuan e Roosevelt que, neste trecho, seguem quase paralelamente do sul ao norte. Para isso, empregam as categorias alto/mdio/baixo, que regem um espao orientado em declive, distinguindo os agrupamentos, uns em relao aos outros, de acordo com a posio geogrfica que ocupam (DAL POZ, 1991: 32).

    Alm desta classificao geogrfica, os Cinta-Larga possuem recortes sociais regidos dados pela linha paterna. Dal Poz sugere o termo divises patrilineares para dar conta de um sistema de designaes que se transmitem patrilinearmente, sem contudo definir grupos de descendncia corporados (descent groups) ou semelhantes (1991: 42), j que o sistema de divises no se refletiria em nenhum tipo de ao econmica ou ritual. As trs divises Mamey, Kakney e Kabney so classificadoras de tipos de gente (DAL POZ, 1991: 43) e o pertencimento a elas d-se por via paterna. Cada uma se subdivide ainda em outras tantas: Mmderey, Mmgpey, Mndoley e Mmjipwpey, no caso dos Mamey; os Kakin se decompem em Kakindet, Kakngp, Kaknjt e Kakn waptet e os Kabn formam uma nica linha. O autor, entretanto, no explicita quais so as implicaes de tais subdivises, nem tampouco como elas se formam.

    No mito de origem das divises (DAL POZ 1991: 341; PICHUVY CINTA-LARGA 1988: 18-19), o heri cultural Gor (ou seu neto, na verso de Pichuvy Cinta-Larga) mantm relaes sexuais com a rvore Kabn, com a castanheira Man e com o cip Kakin, e desses vegetais saem os primeiros homens, formando-se assim os Mn, Kakn e kabn. Dal Poz

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    relata que os Cinta-Larga atribuiriam, a cada das divises, determinadas particularidades fsicas, lingsticas e sociais que, para o autor, funcionariam, no como elementos

    importantes de classificao, mas como caractersticas mais ou menos associadas s divises. A cor da pele, por exemplo, um tipo de classificao possvel: os Kabn e Kakn seriam brancos em oposio aos Mn, morenos, e aos Mnjipwp, pretos. Outras caractersticas, como a diversidade dialetal e uns serem mais briguentos e outros mai