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A Decisão A ansiedade era tão necessária quanto o desejo de realizar tudo o que seus instintos disseram para ele não fazer. Respirava profundamente, o coração comprimido sob o peso de mil toneladas de medo, dor e agonia. Parado ali na rua, onde transeuntes cruzavam por entre seu espectro totalmente esquecido, esbarrando em seu ombro, xingando o transtorno daquele monte de carne inútil no meio da calçada, ele se perguntava mentalmente a pergunta iminente que tinha escondido de si por tanto tempo: “e agora?” Nada fazia sentido. Ele sempre foi do tipo de pessoa que cumpre as regras, adora a normalidade, repudia as contradições e crê que as coisas procedem melhor quando são previstas de antemão. Aquela respiração intensa não condizia com sua personalidade previsível, e ele se gabava por ser um homem precavido, por ser uma pessoa que não sofria por prever os reveses das decisões impulsivas e sentimentais. Para ele não havia nada como o dom da razão para coordenar cada passo de sua vida. Mas então por que, ora, por que aquilo não saía de dentro dele? Por que a angústia insistia em criar espaço dentro de sua alma a ponto de penetrá-lo com

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conto - a decisão

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A Decisão A ansiedade era tão necessária quanto o desejo de realizar tudo o que seus instintos disseram para ele não fazer. Respirava profundamente, o coração comprimido sob o peso de mil toneladas de medo, dor e agonia. Parado ali na rua, onde transeuntes cruzavam por entre seu espectro totalmente esquecido, esbarrando em seu ombro, xingando o transtorno daquele monte de carne inútil no meio da calçada, ele se perguntava mentalmente a pergunta iminente que tinha escondido de si por tanto tempo: “e agora?” Nada fazia sentido. Ele sempre foi do tipo de pessoa que cumpre as regras, adora a normalidade, repudia as contradições e crê que as coisas procedem melhor quando são previstas de antemão. Aquela respiração intensa não condizia com sua personalidade previsível, e ele se gabava por ser um homem precavido, por ser uma pessoa que não sofria por prever os reveses das decisões impulsivas e sentimentais. Para ele não havia nada como o dom da razão para coordenar cada passo de sua vida. Mas então por que, ora, por que aquilo não saía de dentro dele? Por que a angústia insistia em criar espaço dentro de sua alma a ponto de penetrá-lo com

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suas mil lanças pontiagudas, invadindo sua mente, preenchendo-a com incertezas e dúvidas? Coisas com as quais ele nunca havia se preocupado até então. E aquela cena? Qual a razão de se manter no meio de tanta gente, olhando para o nada, ignorando os olhares curiosos e maledicentes? Aquilo não passava de um sonho. Só podia ser. Queria voltar, fechar os olhos e acreditar que aquilo não passava de uma alucinação, mas no fundo sabia que tudo era real. A respiração era real. A dor era real. Mas então o que deveria fazer? Ele não sabia. Pela primeira vez na sua vida ele não sabia a resposta para a sua pergunta: “e agora?”. Depois de tudo, depois de erguer uma divisória ao redor de si, depois de expurgar qualquer tipo de sentimento mais profundo, depois de prometer que a única coisa confiável na vida era ele mesmo, depois de decidir que seria ele apenas, e ninguém mais. Mas o destino nunca é justo com as promessas das pessoas. Todos são prepotentes a ponto de ignorar que é este evento cósmico que decide em última instância os resultados dos dados de nossas ações. Somente ele pode prometer algo sem ter medo de que a promessa não seja cumprida. Mas nos esquecemos disso, assim como ele esqueceu. E foi então que pela primeira vez em sua vida ele sentiu todo o peso de seus atos naquele instante infinito em que se encontrava.

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Ele sabia que estava prestes a fazer algo tão contraditório com sua natureza que parecia ridículo. Então, o que fazer? Seria fiel ao seu juramento de nunca se imiscuir com tudo aquilo que pare ele era motivo de asco? Consideraria a hipótese de se sujar daquela maneira? Tudo estava tão perfeito antes daquela coisa ter cruzado seu caminho. Tudo estava tão sereno e alegre e simples. Por que então aquela vontade de cruzar a linha? Qual o motivo de tamanha fraqueza perante sua tão colossal força de vontade? Seria aquela coisa tão intensa a ponto de quebrar seus paradigmas mais arraigados? Não, não era possível. Mas então, o que ainda fazia parado naquele lugar, respirando tão profundamente que como efeito algumas lágrimas ousaram cruzar a barreira de seus olhos? Ele se deu conta de que não havia mais volta. Todos os seus esforços anteriores não dariam conta de fazer com que sua vida fosse a mesma. Teria que abdicar de suas previsões, seu bom senso, da causalidade, da racionalidade, da distância. Era uma necessidade o que sentia, não havia mais dúvidas quanto a isso. E foi então que ele sua garganta se comprimiu e ele engoliu em seco, segurou as mãos frias dela e subitamente disse: - Eu amo você...