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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS MARCOS EDUARDO MELO DOS SANTOS A declamação Queixa da Pazde Erasmo de Rotterdam: estudo introdutório e tradução (Edição bilíngue) Versão corrigida São Paulo 2017

A declamação Queixa da Paz de Erasmo de Rotterdam: …...É objetivo desta dissertação apresentar a primeira tradução direta do latim para o português brasileiro da declamação

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Page 1: A declamação Queixa da Paz de Erasmo de Rotterdam: …...É objetivo desta dissertação apresentar a primeira tradução direta do latim para o português brasileiro da declamação

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLAacuteSSICAS E VERNAacuteCULAS

MARCOS EDUARDO MELO DOS SANTOS

A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdam

estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)

Versatildeo corrigida

Satildeo Paulo

2017

Marcos Eduardo Melo dos Santos

A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdam

estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)

Versatildeo corrigida

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de

Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da

Universidade de Satildeo Paulo para a

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Letras

Claacutessicas

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Letras Claacutessicas

Orientaccedilatildeo Elaine Cristine Sartorelli

Satildeo Paulo

2017

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

NOME SANTOS Marcos Eduardo Melo dos

TIacuteTULO A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdam estudo

introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da

Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Letras Claacutessicas

Aprovado em 04082017

Banca Examinadora

Prof Dr Edelcio Gonccedilalvez de Souza (Presidente)

Instituiccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Profa Dra Ana Claacuteudia Romano Ribeiro

Instituiccedilatildeo Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP)

Profa Dra Leni Ribeiro Leite

Instituiccedilatildeo Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES)

Profa Dra Charlene Martins Miotti

Instituiccedilatildeo Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar aos meus pais Emanuel e Luiza Agrave minha esposa Susana meu

filho Felipe e aos meus irmatildeos Emanuel Luiz e Hugo

Agrave Professora Doutora Elaine Cristine Sartorelli que orientou incansavelmente cada

etapa do trabalho e sempre permitiu a liberdade para adoccedilatildeo ou natildeo de suas sugestotildees Devo

reconhecer todo seu empenho Guardarei admiraccedilatildeo pela sua competecircncia e gratidatildeo por tudo

que com ela aprendi

Natildeo poderia deixar ainda de manifestar minha gratidatildeo a tudo que o Professor Doutor

Pablo Schwartz Frydman e a Doutoranda Baacuterbara Costa e Silva ambos dedicados

pesquisadores das antigas declamaccedilotildees contribuiacuteram para o aprofundamento e a correccedilatildeo do

estudo introdutoacuterio Aos professores Paulo Vasconcellos e Pablo Schwartz Frydman que

fizeram vaacuterias sugestotildees pertinentes durante o exame de qualificaccedilatildeo tanto no texto

introdutoacuterio quanto na traduccedilatildeo

Ao corpo docente da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da

Universidade de Satildeo Paulo que com muito esmero excelecircncia e solicitude me

acompanharam nessa etapa especialmente aos Professores Doutores Joseacute Eduardo Lohner

Pablo Schwartz Frydman Maacutercio Suzuki Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Luiz Antocircnio

Lindo que tambeacutem concederam indicaccedilotildees durante o trabalho de conclusatildeo da disciplina que

com eles cursei ao longo do mestrado Natildeo poderia ser omisso em agradecer agrave banca

examinadora que com gentileza e competecircncia arguiram e indicaram modificaccedilotildees no

trabalho

Agrave amiga Professora Doutora Vanessa Guimaratildees Monteiro Ferreira da Costa que

tambeacutem fez observaccedilotildees significativas no que se refere agrave traduccedilatildeo Ao Professor Doutor Marc

van der Poel que gentilmente enviou por correio seus artigos e livros sobre a declamaccedilatildeo natildeo

disponiacuteveis agrave venda a fim de contribuir com esta pesquisa Aos professores de Liacutengua

Portuguesa meus amigos que incansavelmente me auxiliaram na redaccedilatildeo revisatildeo e

discussotildees de opccedilotildees de redaccedilatildeo nomeadamente Letiacutecia Mendes Ferri Luiz Santos Susana

Aparecida da Silva Regina Berti Sarah Barbosa e Weber Suhett

RESUMO

SANTOS Marcos Eduardo Melo dos A declamaccedilatildeo Queixa da paz de Erasmo de

Rotterdam estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue) 2017 228 f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo 2017

Este trabalho propotildee a primeira traduccedilatildeo feita diretamente do latim para o portuguecircs

brasileiro de uma das obras mais importantes do humanista Erasmo de Rotterdam a Querela

Pacis undique gentium eiectae profligataeque publicada em 1517 Tal obra constitui-se ao

lado de outros escritos como uma das mais importantes declamaccedilotildees realizadas durante o

Renascimento Nossa transposiccedilatildeo para o portuguecircs consideraraacute os recursos retoacutericos escritos

em latim aleacutem de conter notas explicativas e referecircncias histoacutericas mitoloacutegicas e

bibliograacuteficas sempre que estas se fizerem necessaacuterias para melhor compreensatildeo do texto

aleacutem de referecircncias a autores da Antiguidade assim como a outras obras do proacuteprio autor No

estudo introdutoacuterio dessa obra de gecircnero declamatio renascentista procurar-se-aacute analisar o

texto erasmiano segundo a conceituaccedilatildeo da retoacuterica tradicional antiga sobretudo dos autores

do periacuteodo imperial quando a praacutetica das declamaccedilotildees escritas em grego e latim se sobrepocircs agrave

oratoacuteria sem espaccedilo em razatildeo do decliacutenio senatorial Com base nas fontes antigas e nos

estudos recentes pretendemos identificar as semelhanccedilas e diferenccedilas entre a retoacuterica dos

autores romanos e a erasmiana nela concretizada Tambeacutem seratildeo investigadas as estrateacutegias

da argumentaccedilatildeo persuasiva sejam epidiacuteticas sejam deliberativam em favor da paz e em sua

polecircmica diatribe contra a guerra

Palavras-chave retoacuterica recepccedilatildeo dos claacutessicos humanismo Erasmo de Rotterdam

declamaccedilatildeo

ABSTRACT

SANTOS Marcos Eduardo Melo dos The Complaint of Peace declamation by

Desiderius Erasmus introduction and translation (Bilingual edition) 2017 228 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo

2017

This paper proposes the first translation directly from Latin into Brazilian Portuguese

of one of the most important works by the humanist Desiderius Erasmus Querela Pacis

undique gentium eiectae profligataeque published in 1517 This work constitutes one of the

most important declamations written during the Renaissance Our transposition to Portuguese

will consider rhetorical resources as well as containing explanatory notes about historical

mythological and bibliographical references whenever these are necessary for a better

understanding of the text such as references to direct or indirect allusions to writings of

Antiquity or other works by the author himself In the introductory study of this work of the

Renaissance declamatio genre we will analyze the Erasmian text according to the ancient

traditional Greco-Roman concept of Rethoric especially in the authors of the imperial period

when the practice of declamations written in Greek and Latin overlapped the oratory without

the ancient status because of the senatorial decline Based on ancient sources and recent

studies we intend to identify the similarities and differences between the rhetoric of classic

Latin authors and the erasmian rhetoric embodied in the Complaint of Peace We will also

investigate the strategies of persuasive argumentation whether epididical or deliberative in

favor of peace and in its controversial diatribe against war

Keywords rhetoric classical reception humanism Desiderius Erasmus declamation

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 1

Estrutura do estudo introdutoacuterio 4

Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa 5

CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO

RENASCIMENTO 11

11 Origem grega 11

111 Definiccedilatildeo 11

112 Principais autores e escritos em grego 14

12 A praacutetica latina 15

13 As fontes latinas 17

131 Discussatildeo terminoloacutegica 18

132 O contexto republicano e o imperial 19

14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos 22

141 A Retoacuterica a Herecircnio 22

142 Ciacutecero 22

143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho 23

144 A suasoacuteria em Secircneca 28

145 Quintiliano 30

15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento 35

16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos 39

17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas 42

171 Lourenccedilo Valla 42

172 Thomas More 44

18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas 45

19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas 47

110 Conclusotildees do capiacutetulo 48

CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ 51

21 Definiccedilotildees erasmianas 51

22 Temas 53

23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes 56

231 Isoacutecrates 56

232 Plutarco 57

233 Luciano 57

234 Libacircnio 58

24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo 60

25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas 62

26 Declamaccedilatildeo escrita e integral 63

27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico 64

28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz 68

29 A disposiccedilatildeo retoacuterica 69

210 As sentenccedilas e os adaacutegios 73

211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes 77

212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio 78

213 Conclusotildees do capiacutetulo 81

CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ 83

31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo 83

32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas 83

33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio 85

34 Personificaccedilotildees femininas 87

35 A deusa Pax 92

36 A Paz enquanto saacutebia 95

37 A Paz enquanto teoacuteloga 97

38 A Paz enquanto viacutetima 100

39 Conclusatildeo do capiacutetulo 101

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 103

NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA

COMENTADA 111

BIbLIOGRAFIA 185

Fontes primaacuterias 185

Traduccedilotildees da Queixa da Paz em ordem cronoloacutegica 185

Outras fontes e traduccedilotildees 187

Dicionaacuterios 189

Estudos 189

1

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute objetivo desta dissertaccedilatildeo apresentar a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o

portuguecircs brasileiro da declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo (Querela Pacis) obra de autoria do

humanista holandecircs Erasmo de Rotterdam1 escrita ao longo do ano de 1516 e publicada em

novembro de 1517 Esta seraacute precedida de um estudo introdutoacuterio que procuraraacute ressaltar o

uso de recursos retoacutericos em defesa da paz e de criacutetica agrave guerra Aleacutem de identificar o modo

pelo qual se fez uso dos autores antigos na ldquoQueixa da Pazrdquo verificaremos as colaboraccedilotildees

mais relevantes de Erasmo para a retoacuterica segundo a antiga tradiccedilatildeo escrita em grego e e

latim Como objetivos especiacuteficos o presente trabalho visa aleacutem de propor uma nova

traduccedilatildeo apresentar uma introduccedilatildeo e notas atualizadas segundo os recentes estudos

acadecircmicos assinalar a ocorrecircncia de referecircncias a oradores latinos assim como daqueles

declamadores do periacuteodo imperial romano que escreveram em grego identificar os elementos

da retoacuterica deliberativa erasmiana em defesa da paz do ponto de vista do gecircnero declamaccedilatildeo

(declamatio)

Este trabalho de pesquisa justifica-se pela contribuiccedilatildeo da primeira traduccedilatildeo direta do

latim para o portuguecircs brasileiro da ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em versatildeo biliacutengue ou seja

com o texto latino em paralelo com a traduccedilatildeo e a uacutenica precedida de um estudo introdutoacuterio

especiacutefico acerca do ponto de vista do gecircnero a que o texto pertence Essa traduccedilatildeo fornece a

aos pesquisadores lusoacutefonos um texto para o entendimento da concepccedilatildeo e do uso da

declamaccedilatildeo por Erasmo que aleacutem de ser um dos mais destacados autores humanistas que

ldquodirecionaram suas obras mais importantes para a educaccedilatildeo literaacuteriardquo (Mack 1993 p 303)

escreveu quatorze obras nesse gecircnero inclusive dentre elas algumas de suas mais lidas

traduzidas e comentadas como eacute o caso do ldquoElogio da Loucurardquo Essa traduccedilatildeo

disponibilizaraacute aos pesquisadores lusoacutefonos a traduccedilatildeo de uma das mais difundidas obras de

Erasmo de Rotterdam em diversos pontos de vista tais como recepccedilatildeo dos antigos pelos

autores cristatildeos renascentistas a permanecircncia dos gecircneros antigos na prosa neolatina e sua

atualizaccedilatildeo por meio da imitatio recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga no seacuteculo XVI uso de

1 Sobre a referecircncia agrave cidade de Erasmo (Rotterdam Roterdatildeo Roterdatilde Roterdam) encontrei variantes

ortograacuteficas em textos acadecircmicos lusos e brasileiros Optei pela versatildeo ldquoRotterdamrdquo com base no ldquoManual de

Redaccedilatildeo Oficial e Diplomaacutetica do Itamaratyrdquo (Brasil Ministeacuterio das Relaccedilotildees Exteriores Manual de redaccedilatildeo

oficial e diplomaacutetica do Itamaraty 2016 p 166)

2

recursos retoacutericos no gecircnero deliberativo e finalmente trata-se de um texto fundamental para

a compreensatildeo da filosofia irecircnica de Erasmo ou seja ao conjunto de argumentos filosoacuteficos

que Erasmo alinha a favor da paz e do qual deriva a moderna concepccedilatildeo de paz em sua

dimensatildeo interestatal

O texto latino por noacutes utilizado foi o ldquoQuerela Pacis undique gentium eictae

profiligataequerdquo disponiacutevel na ediccedilatildeo criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera

omnia recognita et adnotatione critica instructa notisque illustrata Amsterdam North-

Holland 1969-2001) coleccedilatildeo cujo volume com o texto em estudo foi publicado em 1977

Como fontes de conceituaccedilatildeo da arte retoacuterica servimo-nos das obras dos autores latinos e

gregos que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo especialmente aqueles que

foram certamente conhecidos por Erasmo Conforme Chomarat (1981 p 990) devem-se

considerar alguns autores que influenciaram Erasmo na redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

especialmente os que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo Especial atenccedilatildeo

deve ser dada aos autores que aleacutem de teorizarem sobre o gecircnero tambeacutem o praticaram

Conforme a observaccedilatildeo de Franco Gaeta (1968 p 13) procurar-se-aacute a fundamentaccedilatildeo em

ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano assim como nas ldquoControveacutersiasrdquo e ldquoSuasoriasrdquo de

Secircneca o velho e no ldquoSobre a Clemecircnciardquo de Secircneca o Jovem Nesse grupo de autores

antigos devemos ainda acrescer Ciacutecero Plutarco Libacircnio e Luciano Os textos destes autores

foram citados por Erasmo que aleacutem de tradutor tambeacutem era editor e que teve uma

contribuiccedilatildeo significativa para a introduccedilatildeo dos meacutetodos criacuteticos na histoacuteria da filologia

conforme o consenso de vaacuterios autores da aacuterea (Bentley 1977 p 9 Prete 1965 p 259 Prete

1970 p 18 Payne 1974 p 54)

Segundo evidecircncias internas e externas apontadas em um estudo das epiacutestolas

erasmianas realizado por Beauduin (1991 p 35) essa obra foi escrita em Lovaina Beacutelgica

entre novembro e dezembro do ano de 1516 a pedido do grande chanceler da Borgonha Joatildeo

Sauvage e dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Nesse mesmo ano

Erasmo havia sido nomeado conselheiro do priacutencipe Carlos de Borgonha que logo se tornaria

Carlos de Espanha (Margolin 1992 p 909) Foi publicada em 1517 e reeditada em 1518

Como evento histoacuterico proacuteximo que pode ser considerado o principal motivo da redaccedilatildeo desse

manifesto em favor da paz deve-se destacar que estava em curso a guerra da Liga de

Cambrai a qual se estendeu ateacute os enfrentamentos das guerras da Liga Santa (1508-1516)

3

Que este tenha sido de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa

ldquoQueixa da Pazrdquo prova-o a menccedilatildeo a tais fatos histoacutericos em uma de suas correspondecircncias a

Joatildeo Botzheim (1523)2 Da mesma forma Erasmo alude indiretamente ao tema no final da

declamaccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo afirmava na epiacutestola a Joatildeo

Botzheim que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma declamaccedilatildeo (Chomarat 1987 p 997) pretendemos

discutir no estudo introdutoacuterio sobre as caracteriacutesticas desse gecircnero Para isto natildeo somente

verificaremos sua gecircnese atribuiacuteda aos autores gregos (como μελέηη) e sua recepccedilatildeo pelos

autores latinos (como declamatio) mas em que medida a declamaccedilatildeo erasmiana enquadra-se

nesse gecircnero antigo

Em geral seu formato antigo foi definido por Bonner (1949 p 13) Wintterboton

(1980 p 24) e Schwartz (2004 p 21) como um discurso escrito como exerciacutecio escolar

acerca de uma causa fictiacutecia com a finalidade de treino em temas da retoacuterica deliberativa ou

judiciaacuteria Dentre suas caracteriacutesticas o presente estudo ressalta a personificaccedilatildeo que nas

declamationes renascentistas especialmente em Erasmo foi praticada de uma forma

inovadora em comparaccedilatildeo com as antigas Enquanto que naquelas antigas ou seja produzidas

nos seacuteculos I a C a I d C As personagens satildeo humanas e fictiacutecias o que denota certa

modificaccedilatildeo para o gecircnero em estudo A novidadade das declamaccedilotildees renascentistas

especialmente em Erasmo seria a inserccedilatildeo da fala (prosopopeia) de personagens abstratas

como a Paz na ldquoQueixa da Pazrdquo e a Loucura em seu ldquoElogiordquo

Por outro lado destaca-se a ficccedilatildeo como estrateacutegia para expressar ideias de forma livre

em uma sociedade que natildeo prezava a liberdade de expressatildeo e a caracterizaccedilatildeo com atributos

sociais e psicoloacutegicos do universo feminino nessas personificaccedilotildees erasmianas Tal

caracterizaccedilatildeo sem o uso de voz narrativa como eacute natural na declamaccedilatildeo mas atraveacutes do

discurso direto apresenta a paz como mulher e matildee apelando agraves emoccedilotildees do leitor a fim de

cativaacute-lo para a causa irecircnica pretendida pelo autor Conveacutem portanto analisar a ldquoQueixa da

Pazrdquo sob a perspectiva da recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo de um modo semelhante ao que

era praticado pelos autores antigos e predicado nos manuais de retoacuterica latina

2 Cf Erasmo de Rotterdam A Johann von Botzheim in Correspondence of Erasmus Letters 1252 to 1355

1522 to 1523 Trad James Martin Estes Toronto University Toronto Press 1989 p 319

4

Estrutura do estudo introdutoacuterio

O estudo introdutoacuterio estaacute composto de trecircs capiacutetulos os quais procuram apresentar a

ldquoQueixa da Pazrdquo em sua relaccedilatildeo com o gecircnero literaacuterio que inspirou sua forma a declamaccedilatildeo

Assim o primeiro capiacutetulo o caracteriza entre alguns autores antigos que escreveram sobre o

ele ou utilizaram-se dele no periacuteodo compreendido entre os seacuteculos I a C e I d C Aleacutem do

recorte do periacuteodo e dos autores seraacute dada atenccedilatildeo especial agraves referecircncias agrave declamaccedilatildeo nas

obras de Ciacutecero na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo nos Prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o

Velho e na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano que ilustram as discussotildees das

caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo que presentemente consideramos

O segundo capiacutetulo discorre sobre a praacutetica deste gecircnero por Erasmo A discussatildeo se

inicia com uma descriccedilatildeo do seu uso entre os autores do Renascimento sobretudo daqueles

que podem ter influenciado o roterdamecircs na escrita das suas declamaccedilotildees Seguir-se-aacute um

elenco das declamaccedilotildees erasmianas e um estudo da questatildeo de espeacutecies de declamaccedilotildees suas

relaccedilotildees diretas com outros gecircneros e a ocorrecircncia de prosopopeias a fim de estabelecermos

comparaccedilotildees

O terceiro capiacutetulo trata da ldquoQueixa da Pazrdquo em comparaccedilatildeo com o gecircnero

declamaccedilatildeo praticado e teorizado pelos autores antigos conforme se discorreu no capiacutetulo

primeiro assim como algumas datadas do Renascimento ou de autoria do proacuteprio Erasmo

Aqui procuraremos ainda demonstrar como e em que medida esta obra pertence agrave linhagem

da declamaccedilatildeo tal como esta era prescrita e praticada pelos autores dos seacuteculos XV e XVI

Tais comparaccedilotildees visam sobretudo a dois pontos primeiro tratar a respeito do subgecircnero da

ldquoQueixa da Pazrdquo ao analisar os argumentos a favor de classificaacute-la como do epidiacutetico ou

como do deliberativo segundo uma vez que os autores do Renascimento utilizavam

intencionalmente os princiacutepios da retoacuterica antiga para a invenccedilatildeo de seus escritos

discutiremos a caracterizaccedilatildeo da Paz enquanto prosopopeia abstrata e feminina como

estrateacutegia de persuasatildeo em conformidade com as regras de retoacuterica antiga recebida no

Renascimento

5

Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa

Antes de entrar no objeto proposto conveacutem pontuar o estado dos estudos acadecircmicos

acerca do gecircnero declamaccedilatildeo e mais especificamente da sua recepccedilatildeo entre os escritores

humanistas A produccedilatildeo de artigos acadecircmicos ou dissertaccedilotildees nesse recorte temaacutetico natildeo eacute

numericamente ampla mas tem sido enriquecida por especialistas voltados para pesquisas

sobre a declamaccedilatildeo ou os autores que a ela se dedicaram Ao iniciarmos o cotejo das versotildees

da ldquoQueixa da Pazrdquo verificamos que se encontram disponiacuteveis para consulta on-line seis das

vinte e cinco ediccedilotildees desta obra datadas do seacuteculo XVI Aleacutem dessas ediccedilotildees latinas foi

possiacutevel encontrar uma traduccedilatildeo francesa do seacuteculo XVI La Complainte de la Paix

Tradution de le Chevalier de Berquin (1525) Verificou-se ademais que haacute uma ediccedilatildeo

criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera omnia recognita et adnotatione critica instructa

notisque illustrata Amsterdam North-Holland 1969-2001) e dezenas de traduccedilotildees em inglecircs

francecircs italiano alematildeo e portuguecircs cuja lista encontra-se na bibliografia e da qual

salientamos a existecircncia de doze ediccedilotildees nos uacuteltimos quinze anos em cinco vernaacuteculos

ocidentais Deve-se dizer que muitas destas natildeo parecem ser traduzidas diretamente do latim

Dessa profusatildeo de fontes e traduccedilotildees infere-se que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma obra que natildeo

somente obteve grande difusatildeo durante o seacuteculo XVI Ainda hoje eacute umas das obras de

Erasmo mais difundidas equiparavelmente ao ldquoElogio da Loucurardquo e o ldquoDe Copiardquo O

primeiro dispensa apresentaccedilatildeo no caso do segundo conveacutem lembrar que ldquoseguindo os

modelos de Ciacutecero e Quintiliano e tendo como principal objetivo a invenccedilatildeo foi

provavelmente o manual mais estudado de todo o Renascimentordquo (Mack 1993 p 305)

contando com mais de cento e cinquenta ediccedilotildees somente na centuacuteria de sua publicaccedilatildeo Esta

difusatildeo denota a relevacircncia e a influecircncia desse autor para a recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga em

seu tempo Muitos dos princiacutepios retoacutericos consignados nesse manual satildeo postos em praacutetica

na declamaccedilatildeo que pretendemos analisar Haacute tambeacutem a ediccedilatildeo das epiacutestolas de Erasmo

realizada sob a direccedilatildeo de Allen (1906) e que satildeo uacuteteis para o entendimento da compreensatildeo

do proacuteprio autor acerca da sua obra das circunstacircncias histoacutericas que inspiraram a redaccedilatildeo do

discurso da Paz e dos conceitos que potildee em praacutetica nessa declamaccedilatildeo

Embora muitas destas ediccedilotildees (Bagdat 1924 Von Balthasar 1945 Dolan 1964

Philip 1967 Gaeta 1968 Christian 1968 Radice 1968 Telle 1978 Hannermann 1985

Van Leeuwen 1986 Levi 1986 Chomarat 1991 e 1974 Margolin 1992 Carena 1995

6

Pinto 1999 Cinti 2005 Labre 2005 Jovella 2008 Bellacasa 2008 Hoffmann 2013)

apresentem introduccedilotildees agrave ldquoQueixa da Pazrdquo ou a outras obras de Erasmo (Sartorelli 2013

Saacutenchez Salor 2011 King e Rix 2007) deve-se dizer que embora estas apresentem alguns

dados que natildeo podem ser preteridos e que foram considerados no presente estudo estes textos

introdutoacuterios estatildeo muitas vezes limitados agraves regras e aos objetivos editoriais restringindo-se

a informaccedilotildees biograacuteficas ou histoacutericas sem anaacutelises aprofundadas do texto seu gecircnero ou

recepccedilatildeo

Aleacutem das introduccedilotildees das traduccedilotildees verificou-se a existecircncia de apenas um estudo

acadecircmico na aacuterea de literatura especiacutefico sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo (Bagdat 1924) assim

como o artigo de Chomarat (1974) e um dos capiacutetulos do seu livro ldquoGrammaire et Rheacutetorique

chez Erasmerdquo (1981) Foi entatildeo necessaacuterio incrementar a pesquisa com artigos acadecircmicos e

livros publicados mais recentemente por editoras universitaacuterias que tratam sobre temas

indiretamente relacionados com o objeto de pesquisa ou seja sobre o autor (Erasmo de

Rotterdam) sobre a obra em estudo sobre o gecircnero no qual foi escrita a obra (declamaccedilatildeo) e

sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga entre os humanistas Dada a falta de estudos que tratam

diretamente sobre a Queixa da Paz natildeo foi possiacutevel apresentar um estado da questatildeo no

sentido a que se estaacute habituado na academia mas apenas algumas obras que apresentam

relaccedilatildeo parcial com nosso objetivo

Tendo diante de si estes livros ou artigos eacute possiacutevel classificaacute-los nos seguintes

grupos (grupo 1) sobre a retoacuterica e a declamaccedilatildeo antiga (grupo 2) sobre a recepccedilatildeo da

retoacuterica e da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 3) sobre estas em Erasmo Dadas as

limitaccedilotildees temporais do mestrado assim como a dificuldade de acesso a alguns livros natildeo

disponiacuteveis nas bibliotecas brasileiras os livros capiacutetulos de livros e artigos abaixo

catalogados natildeo esgotam a bibliografia sobre as mateacuterias em questatildeo como eacute o caso de

muitas obras de origem francesa que natildeo foi possiacutevel acessar mas que natildeo satildeo pertinentes

para o presente estudo uma vez que tratam da recepccedilatildeo da obra de holandecircs em outros autores

a partir do seacuteculo XVI

Ainda que nossa intenccedilatildeo primeira fosse atentar para a declamaccedilatildeo latina natildeo era

possiacutevel preterir alguns estudos sobre a grega (Russell 2009) e sobre a caracterizaccedilatildeo da

mulher nesta (Gruber 2008) uma vez que se fazem pertinentes natildeo somente para a

consideraccedilatildeo da romana mas tambeacutem daquela praticada por Erasmo que as conhecia ainda

7

na forma de manuscrito Entre os estudos sobre a declamaccedilatildeo latina destacam-se o de Wolf

(2013) Van Mal-Maeder (2007) Winterbottom (1980 e 2006) Shenk (1982) Mendelson

(1994) Clarke (1996) Bonner (1949 e 1966) e Schwartz (2000 e 2004) Tambeacutem se tornam

pertinentes alguns estudos especiacuteficos sobre as declamaccedilotildees como o de Bonner (1966) sobre

Luciano o artigo de Schwartz (2000) sobre esse gecircnero sob Augusto os dois artigos de

Bayley sobre as ldquoDeclamationes maioresrdquo e ldquominoresrdquo atribuiacutedas a Quintiliano (1984 e

1989) os artigos de Clark (1957) e Dupont (1997) sobre sua praacutetica escolar e os estudos de

Marrou (1948) de Vasconcelos (2000 e 2002) de Gibson (2004) e de Manoel (2014) sobre as

progymnasmata o estudo acerca da relaccedilatildeo do contexto histoacuterico com as controveacutersias escrito

por Mendelson (1994) o artigo com o recorte sobre as ldquocrianccedilas abandonadasrdquo nas

declamaccedilotildees (Bernstein 2009) o artigo sobre a declamaccedilatildeo em Secircneca (Edward 1928

Sussman 1972 Fairweather 1981 Schwartz 2004 Bloomer 2010 Costrino 2010) ou

ainda outros autores como em Taacutecito (Pereira 2013) em Quintiliano (Reali e Turazza 2012)

e em Luciano (Thompson 1965 e 1974) Dentre este alguns natildeo somente foram lidos por

Erasmo mas tambeacutem traduzidos por ele do grego para o latim

Sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 2) destacam-se os artigos

de Kinney (1976) e Vasoli (2008) sobre a retoacuterica humanista Devem-se ressaltar ainda os

textos sobre as declamaccedilotildees de Erasmo analisados por Giazzi (2008) Tunberg (1996 2006 e

2013) os jaacute mencionados escritos de Chomarat (1974 e 1981) e Van der Poel (1987 e 1989)

Aleacutem disso Van der Poel publicou artigos sobre a declamaccedilatildeo em Agripa e Erasmo (Van der

Poel 1994 e 1997) e em Cardano (Vander Poel 2005) Entre os estudos sobre as declamaccedilotildees

de Erasmo em particular destaca-se a referecircncia de Grimal (1994) sobre a declamaccedilatildeo

ldquoSobre a morterdquo de Erasmo as introduccedilotildees ao ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo (Pigman 1977

Sartorelli 2015) ao ldquoElogio do Matrimocircniordquo de Leushuis (2004) e Sowards (1958 e 1982)

sobre o ldquoElogio da Loucurardquo (Sartorelli 2013 Moya Bedoya 1994) Sobre a influecircncia de

Valla em Erasmo haacute o artigo de Bentley (1977) assim como os estudos de Schwahn (1928) e

Ginzburg (2004) sobre a declamaccedilatildeo ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo Temos ainda os estudos de

Fox (1983) Baumann (1985) e Corral (2012) sobre o ldquoTiranicidardquo de More os de Logan

(2003) e Miller (1994) sobre a ldquoUtopiardquo e por fim sobre o ldquoElogio de Nerordquo de Cardano o

estudo de Biffino (2002)

8

Sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga em Erasmo (grupo 3) verificamos a existecircncia de

capiacutetulos de livros e artigos de Murphy (1974 1983 2005 e 2012) Bataillon (1977 e 1982)

Margolin (1973 1977 1992 1987 1993 1995 1997 e 1998) Chomarat (1974 e 1981)

Pigman (1980 e 1990) Green e Murphy (2006) Mack (1993 1996 e 2011) Sartorelli (2001

2009 2012 2013 e 2015) Rummel (1985 1990 1996 1998 1999 e 2000) Weiland (1988)

Pinto (2006) e Logan (1994) Haacute alguns estudos sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga no

Renascimento que se referem marginalmente sobre Erasmo como o de Burke (2003) e os

artigos de Kinneyy (2004) Goacutemez Cervantes (2007) Alexandre Juacutenior (2008) Hernaacutendez

Guerrero e Garciacutea Tejera (1992) e Gianotti (2008) Ainda nesse grupo destaca-se o artigo

sobre ldquodeclamaccedilatildeo e retoacutericardquo de Gunderson (2009) Tendo como recorte a obra de Erasmo

temos Sloane (1991 e 2004) e Pinto (2006) Haacute ainda sobre a saacutetira em Erasmo feita por Story

(2012) Kennedy (1980) Hoffmann (1994) e Boyle (2004) tambeacutem apresentam artigos sobre

a relaccedilatildeo da filologia e da retoacuterica erasmiana com a teologia e a filologia biacuteblica Ainda no

recorte do Renascimento destaca-se o estudo filosoacutefico sobre a paz feito por Cailes (2012)

no qual compara as teorias de Erasmo e Machiavel e os estudos filosoacuteficos acerca do

pacifismo de Erasmo realizados por Meulen (1990) Hoffmann (2000) Kinsella e Carr

(2007) Martiacuten (2007) Dungen (2008) e Christi (2009) A respeito de outras questotildees

filosoacuteficas ou literaacuterias podemos citar as dissertaccedilotildees ou teses defendidas na proacutepria

Universidade de Satildeo Paulo a de Salum (2009) a de Nassaro (2010) e a de Rodrigues (2012)

Embora natildeo seja o foco principal da pesquisa tivemos o cuidado de consultar algumas

biografias Entre estas acessamos duas por Bainton (1969) e Faludy (1970) Minnich e

Meissner (1978) Boeft (1989) Bietenholz (1985 e 2009) e Vredeveld (1993) escrevem textos

de iacutendole histoacuterico-biograacutefica Meacutenager (2000) redigiu um artigo acerca da posiccedilatildeo poliacutetica

neutra de Erasmo face agrave poliacutetica francesa e espanhola Merece especial destaque o trabalho

biograacutefico de Beauduin (1991) com base na epistolografia erasmiana Haacute tambeacutem estudos

histoacutericos sobre a influecircncia erasmiana no seacuteculo XVI (Rowland 1987)

No tocante agrave recepccedilatildeo que os escritos de Erasmo obtiveram sem pretender esgotar o

universo desse gecircnero de pesquisa e que natildeo se configura como essencial para na pesquisa

como eacute o caso da ampla produccedilatildeo francesa tivemos acesso ao artigo sobre sua influecircncia em

Joatildeo Fletcher escrito por Waith (1951) em Joatildeo Bodin conforme artigo de Remer (1994)

em Bartolomeu de las Casas segundo Torres (1993) na Alemanha do seacuteculo XVI por Tracy

9

(1969) na literatura francesa em artigo de Phillips (1971) no seacuteculo XIX por Mansfiel

(1968) e sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo romana no seacuteculo XX por Gunderson (2003)

Destacam-se alguns estudos temaacuteticos como o texto de Whers (2004) sobre a eacutetica

erasmiana sobre a recepccedilatildeo do ldquoAdversus Jovianumrdquo em Erasmo escrito por Pabel (2002)

sobre a influecircncia de Jerocircnimo no holandecircs em artigo de Sloane (2004) e sobre a influecircncia

da ldquoArte Poeacuteticardquo de Horaacutecio sobre os ldquoAdaacutegiosrdquo publicado por Magnien (2012) Como

analisaremos a caracterizaccedilatildeo da paz enquanto personagem feminina eacute necessaacuterio considerar

o livro de Rummel (1996) sobre a mulher em Erasmo e os artigos sobre a educaccedilatildeo feminina

publicado por Soward (1982) por Cousins (2004) e por Leushuis (2004) Sobre a ficccedilatildeo nas

declamaccedilotildees temos o estudo de van Mal-Maeder (2007) que inclusive foi comentada em

resenha por Bloomer (2009) Entre estes trabalhos deve-se levar em consideraccedilatildeo a questatildeo

sobre a oposiccedilatildeo dos humanistas aos escolaacutesticos (Bejczy 2001 Rummel 1998)

Esta pesquisa verificou portanto com a exceccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de Bagdat (1924) e o

artigo de Chomarat (1974) o qual tratou especificamente sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto

de vista da aacuterea de Letras a inexistecircncia de artigo acadecircmico ou livro especiacutefico sobre o tema

em questatildeo ou seja sobre a recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo Encontramos apenas seu

tratamento de modo sucinto em Chomarat (1981) e Van der Poel (1989) Por outro lado

verificou-se a necessidade e a relevacircncia acadecircmica do estudo das declamaccedilotildees de Erasmo e

de consideraccedilotildees mais especiacuteficas sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto de vista da recepccedilatildeo dos

antigos Como vaacuterios autores mencionam este gecircnero e a proacutepria declamaccedilatildeo como exemplo

deve-se considerar que devido ao caraacuteter marginal de muitos comentaacuterios sem a

especificidade de uma referecircncia direta agrave declamaccedilatildeo em comento ou ao tratar do pacifismo

erasmiano sem muitas vezes levar em consideraccedilatildeo o gecircnero literaacuterio da obra torna-se

pertinente um texto especiacutefico sobre o gecircnero literaacuterio sua personificaccedilatildeo feminina da paz

sob o enfoque da recepccedilatildeo dos autores antigos a qual ainda eacute ineacutedita no mundo acadecircmico

Ademais com exceccedilatildeo do capiacutetulo de Chomarat (1981) e apesar da importacircncia da retoacuterica

antiga para os autores do Renascimento verificamos a inexistecircncia de textos acadecircmicos

especiacuteficos sobre a retoacuterica na ldquoQueixa da Pazrdquo motivo pelo qual se verifica mais um ponto

de novidade no presente estudo

10

11

CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO

RENASCIMENTO

O presente capiacutetulo trata da definiccedilatildeo conceitual e das diferenccedilas essenciais e

terminoloacutegicas do gecircnero declamaccedilatildeo (em latim declamatio em grego μελέηη) entre alguns

autores antigos gregos e latinos especialmente nos tempos finais da Repuacuteblica e do iniacutecio do

Impeacuterio Entre esses autores antigos daremos atenccedilatildeo especial agrave forma como o assunto

aparece nas obras de Ciacutecero na passagem pertinente da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo em alguns

prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o Velho e por fim em Quintiliano em razatildeo da

influecircncia da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo sobre os humanistas a partir da redescoberta de um de

seus manuscritos na iacutentegra no iniacutecio do seacuteculo XV Apoacutes uma descriccedilatildeo do uso da

declamaccedilatildeo entre as ediccedilotildees dos autores antigos que escreveram declamaccedilotildees ou teorias sobre

a declamaccedilatildeo e foram editados ou traduzidos no Renascimento nosso enfoque recairaacute

especialmente sobre aqueles autores humanistas que precederam Erasmo na recuperaccedilatildeo do

gecircnero

11 Origem grega

111 Definiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo em carta a Joatildeo Botzheim datada de

1523 classificou a Queixa da Paz como uma declamaccedilatildeo e de que haacute consenso entre

estudiosos como Chomarat (1981 p 997) que confirmam esta classificaccedilatildeo eacute oportuno

considerar o que vem a ser exatamente uma declamaccedilatildeo segundo a conceituaccedilatildeo dos autores

antigos imitados pelos humanistas Em conferecircncia ainda natildeo publicada Sartorelli assim

define a declamaccedilatildeo in genere

Na Antiguidade as declamationes eram discursos escritos como exerciacutecio

escolar acerca de uma causa fictiacutecia apenas para aquecimento ou treino nos

cursos de oratoacuteria Tratava-se portanto de preparaccedilatildeo para a ocasiatildeo em que a

fala de fato se faria necessaacuteria (o tribunal a assembleia) e uma demonstraccedilatildeo

de habilidade O exercitar-se era o essencial para manter-se bdquoem forma‟ para

um puacuteblico cujos ouvidos estavam acostumados ao mais alto niacutevel de

eloquecircncia e que natildeo deixaria passar um deslize por parte daquele que

discursava (Sartorelli 2013 reproduccedilatildeo de conferecircncia)

12

Deve-se recordar que alguns poucos exerciacutecios similares agrave declamaccedilatildeo (a μελέηη)

ainda que tais discursos sejam duvidosos em relaccedilatildeo agrave sua finalidade escolar teriam sido

praticados pelos sofistas entre os quais podem-se citar o Elogio a Helena ou a Defesa de

Palemedes cuja autoria foi atribuiacuteda a Goacutergias e que satildeo datados do seacuteculo IV a C ou ainda

as Tetralogias de Antifonte (Winterbottom 2006 p 76 Costrino 2010 p 12 Kennedy

1980 p 28) Conservaram-se ainda alguns papiros de declamaccedilotildees gregas datadas do seacuteculo

III a C consideradas as mais antigas declamaccedilotildees conservadas (Russel 2009 p 6)

Nesse particular Kennedy (1980 p 103) ressaltou a importacircncia do manual sobre

declamaccedilotildees do gecircnero epidiacutetico Este eacute composto de oito capiacutetulos preservados entre as obras

de Dioniacutesio de Halicarnaso mas escrito por um autor anocircnimo do terceiro seacuteculo traz

orientaccedilotildees retoacutericas para a composiccedilatildeo de Elogios para os festivais casamentos aniversaacuterios

e exortaccedilotildees para os jogos oliacutempicos Entretanto ldquoos mais extensos tratados com a forma

epidiacutetica da declamaccedilatildeo se concentram em dois trabalhos atribuiacutedos a Menandro de

Laodiceia um reacutetor do terceiro seacuteculordquo (Kennedy 1980 p 103)

Apesar da heterogeneidade dos corpora declamatoacuterios gregos aquelas declamaccedilotildees

tecircm em comum o fato de simularem a defesa de uma causa fictiacutecia baseada em

acontecimentos histoacutericos ou mitoloacutegicos Contudo no que se refere agrave precisatildeo das datas dos

nomes e a situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se

ali imprecisotildees pois sua principal finalidade era como dissemos a praacutetica da oratoacuteria e a

persuasatildeo dos ouvintes (Wolf 2013 p 270) Gibson (2004 p 105-106) todavia demonstra

que ao menos no manual de Heacutelio Teatildeo havia certa preocupaccedilatildeo com a historicidade das

declamaccedilotildees (Winterbottom 1980 v) pois o discurso deveria ser adequado como um

ldquoexerciacutecio histoacutericordquo harmocircnico com a caracterizaccedilatildeo das personagens e com os dados

narrativos (Gibson 2004 p 105-106)

Usando as tradicionais categorias dos trecircs gecircneros tambeacutem presentes em Aristoacuteteles

(Retoacuterica 14) algumas dessas declamaccedilotildees foram classificadas como judiciais uma vez que

tinham como meta defender ou atacar algueacutem no ambiente forense procurando influenciar na

elaboraccedilatildeo de uma sentenccedila de culpa ou absolviccedilatildeo (Fairwethear 1981 p 545) Outras por

outro lado poderiam pertencer aos gecircneros epidiacutetico e deliberativo jaacute que tambeacutem versavam

sobre temas histoacuterico-mitoloacutegicos seja para aconselhar ou desaconselhar em uma deliberaccedilatildeo

seja para elogiar ou vituperar (Gibson 2004 p 103) Segundo o estudo de Russell (2009 p

13

4) como exemplos de declamaccedilotildees gregas do gecircnero deliberativo (suasoacuteria) podem-se

mencionar as de Polemon de Laodiceia e Adriano de Tiro Para ele (2009 p 6) as

declamaccedilotildees de Coriacutecio de Gaza teriam sido ldquoas melhores desses autoresrdquo pois apresentam

ldquoum estilo virtuoso capaz de escrever com elegacircncia e com um aacutetico claacutessico em total

observacircncia das claacuteusulas do seu proacuteprio tempordquo

Alguns pontos gerais na declamaccedilatildeo claacutessica grega merecem ser considerados em

detalhes em razatildeo da relevacircncia do uso da personificaccedilatildeo no discurso irecircnico erasmiano No

tocante agrave caracterizaccedilatildeo das personagens envolvidas nas declamaccedilotildees gregas Russell (2009

p 87-90) afirma que os elementos do ecircthos retoacuterico estavam presentes nas declamaccedilotildees pois

estas levavam em conta a adequaccedilatildeo da imagem de si mesmo as particularidades da audiecircncia

e a situaccedilatildeo psicoloacutegica e social dos oponentes O autor (Ibid p 92-93) apresenta a

declamaccedilatildeo 33 de Libacircnio como um dos exemplos de caracterizaccedilatildeo completa de uma

personagem feminina atraveacutes da narraccedilatildeo (katastasis) minuciosa dos elementos da vida

domeacutestica Aleacutem disso Russell (Ibid p 83) percebeu uma relaccedilatildeo estreita de alguns

elementos da declamaccedilatildeo grega com os da comeacutedia tendo ainda notado (Ibid p 102) que as

declamaccedilotildees gregas tambeacutem tinham um epiacutelogo harmonioso com o tema presente nos

primeiros paraacutegrafos demonstrando que esta deveria ser uma das suas virtudes Por fim

conveacutem destacar sempre segundo Russel (Ibid p 4-5) que algumas delas eram realizadas

tanto a favor de somente um dos lados da questatildeo quanto a favor dos dois lados

sucessivamente como se verificou na ldquoVida dos sofistasrdquo de Filoacutestrato

Eacute preciso considerar que os principais corpora de declamaccedilotildees gregas foram escritos

no periacuteodo histoacuterico em que Roma dominava politicamente a parte oriental do Mediterracircneo

onde predominava o grego como liacutengua franca por isso algumas coleccedilotildees natildeo foram escritas

em latim Natildeo sem razatildeo no parecer de Kennedy (1980 p 103) ldquoa declamaccedilatildeo foi o maior

fenocircmeno retoacuterico do Impeacuterio Romano escrito em latim e gregordquo Para Bloomer (2010 p

297) ldquoa declamaccedilatildeo eacute o primeiro grande movimento literaacuterio do Impeacuterio Romanordquo Embora

existam outros gecircneros literaacuterios cuja difusatildeo tambeacutem tenha sido comparaacutevel ou talvez

superior em sofisticaccedilatildeo agrave declamaccedilatildeo deve-se poreacutem destacar que a praacutetica declamatoacuteria

natildeo se limitava aos ceacutelebres ciacuterculos eruditos mas tambeacutem estava presente no ciacuterculo escolar

e filosoacutefico

14

112 Principais autores e escritos em grego

Entre os principais nomes da declamaccedilatildeo grega sobretudo na praacutetica da suasoacuteria e das

controveacutersias histoacutericas devem-se destacar Plutarco Aristides Luciano Libacircnio e Coriacutecio

Historicamente tais autores se concentram em periacuteodo posterior ao que eacute correntemente

denominado como Segunda Sofiacutestica cuja delimitaccedilatildeo apesar de controversa eacute geralmente

compreendida entre os seacuteculos I e IV d C Coriacutecio estaria situado no periacuteodo da Terceira

Sofiacutestica (Silva 2015)

Plutarco escreveu apenas seis obras morais que satildeo especificamente identificadas

como declamaccedilotildees entre as quais se destacam ldquoSe os atenienses satildeo melhores nas armas do

que nas letrasrdquo e o discurso ldquoSobre a fortuna e a virtude de Alexandrerdquo no qual consta um

elogio ao monarca (Boulet 2013 p 61)

Entre os discursos de Heacutelio Aristides destacam-se aqueles com temas histoacutericos

propostos aos estudantes tambeacutem conhecidos como declamaccedilotildees histoacutericas O mais ceacutelebre o

ldquoLeuctrianrdquo apresenta as controveacutersias de apoio e neutralidade em relaccedilatildeo a Tebas Atenas e

Esparta (Russell 1983 p 4)

Quanto a Luciano de Samosata (125-181 d C) temos nomeadamente os discursos a

favor e contra a aceitaccedilatildeo do touro Phalaris em Delfos e o discurso cocircmico ldquoTribunal das

vogaisrdquo em que o Sigma cobra o Tau pelo roubo de todas as palavras soletradas com duplo

Tau

Entre os mais profiacutecuos produtores de declamaccedilotildees Libacircnio de Antioquia (314-394 d

C) escreveu cinquenta e uma declamaccedilotildees ainda conservadas das quais poucas satildeo

questionadas quanto agrave autenticidade Entre as histoacutericas destacam-se a ldquoApologia de Soacutecratesrdquo

e alguns plasmata que satildeo casos fictiacutecios entre os quais alguns explicitamente cocircmicos

(Russel 1983 p 4)

Por fim devemos mencionar Coriacutecio de Gaza (primeira metade do seacuteculo VI) autor

que jaacute pertence ao periacuteodo denominado como Terceira Sofiacutestica Escreveu doze discursos que

tratam desde temas e locais comuns imitados de textos gregos antigos como Homero e

Heroacutedoto ateacute elogios ao Bispo Marciano e a apologia dos mimos um gecircnero popular de

15

Gaza Digno de nota eacute o discurso no qual simula a tentativa de Paacutetroclo em persuadir Aquiles

a retornar ao campo de batalha apoacutes o ultraje de Agamecircmnon (Silva 2015 p 75)

Dada a relevacircncia da caracterizaccedilatildeo de personificaccedilotildees femininas para o presente

estudo conveacutem destacar desde jaacute que no tocante ao estudo destas nas declamaccedilotildees gregas os

papeacuteis representados pela mulher eram em menor nuacutemero em comparaccedilatildeo com o de

personagens masculinas (Gruber 2008 p 138-140) Estas poderiam ser a filha a matildee a

madrasta a mulher a esposa a concubina e a meretriz Todavia natildeo costumavam receber as

variaccedilotildees de caraacuteter atribuiacutedas ao homem como ser rico pobre velho filoacutesofo entre outros

Segundo Gruber (ibid p 139) as mulheres eram caracterizadas como ldquoceacuteticas proacutedigas

extravagantes invejosas orgulhosas incocircmodas e maacutesrdquo Para exemplificar em qual tipo de

declamaccedilotildees as personificaccedilotildees femininas costumavam ocorrer Gruber (ibid p 140)

considerou que nas declamaccedilotildees de Menandro as mulheres estavam envolvidas

principalmente em casos de adulteacuterio (41 de 89 declamaccedilotildees) e rapto (13) Disto se pode

concluir que as mulheres ocupavam um papel secundaacuterio nas declamaccedilotildees gregas natildeo

somente por serem caracterizadas com menor variedade e especificidade quando comparadas

agraves masculinas mas tambeacutem por estarem na maioria das vezes em posiccedilotildees sociais

consideradas inferiores como eacute o caso de uma mulher indefesa sujeita ao rapto ou ainda de

modo a angaria a antipatia dos leitores como eacute o caso da aduacuteltera

12 A praacutetica latina

Com efeito Winterbottom (1980 p 10) observa que as personagens habituais

presentes nas declamaccedilotildees latinas tambeacutem parecem ser inspiradas no ambiente cultural

helecircnico ou ao menos recebidas do contato com as declamaccedilotildees gregas talvez pela leitura

das proacuteprias declamaccedilotildees ou atraveacutes dos manuais de retoacuterica de origem grega que circulavam

em Roma

satildeo personagens caracteriacutesticas com as quais simpatizamos (jovens

violadas filhos deserdados tiranicidas) ou com as quais natildeo se simpatiza

(piratas pais severos tiranos) [] Destarte as raiacutezes desse mundo satildeo

helecircnicas e remontam pelo menos ateacute o quarto seacuteculo antes de Cristo

(Winterbottom 1980 p 10)

16

Incontestavelmente trata-se de mais um gecircnero literaacuterio originado entre os gregos e

transmitido aos autores latinos os quais o modificaram segundo as circunstacircncias do seu

tempo

o uso de exerciacutecios retoacutericos sobre temas judiciais e deliberativos havia sido

praticado por reacutetores gregos e por seus disciacutepulos seacuteculos antes do tempo de

Secircneca o velho e haviam entrado no programa escolar latino durante a

infacircncia de Ciacutecero pelo menos (Fairweather 1981 p 543-4)

Ao se referir a Crasso e Antocircnio mencionados no ldquoSobre o Oradorrdquo Vasconcellos

(2000 p 180) afirma ldquoa educaccedilatildeo nas escolas dos reacutetores de tradiccedilatildeo sofiacutestica consistia

sobretudo em ensinar ao aluno de oratoacuteria os preceitos teacutecnicos sobre o dizer por meio de

manuais chamados de ldquoArte Retoacutericardquo ensino demasiadamente formal e pouco eficiente na

visatildeo dos dois oradores do diaacutelogordquo O objetivo primaacuterio da declamaccedilatildeo latina era sobretudo

o exerciacutecio da eloquecircncia o tirociacutenio do discurso persuasivo (Kennedy 1980 p 108) natildeo

obstante sua praacutetica fosse mais abrangente

Com efeito como indicamos acima os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eram apenas

parte integrante do programa das escolas retoacutericas situados geralmente apoacutes as

progymnaacutesmata mas tambeacutem eram praticados nas escolas filosoacuteficas por meio do que

passaram a ser chamados de ldquothesisrdquo (Winterbottom 2006 p 94 Kennedy 1980 p 37)

Uma vez que a educaccedilatildeo retoacuterica era realizada com o intuito de obter crescimento gradual da

dificuldade ou da complexidade do discurso (Costrino 2010 p 13) as teses de temaacutetica

filosoacutefica estavam localizadas sempre ao final dos manuais de retoacuterica como os de Heacutelio

Teatildeo Hermoacutegenes Nicolau e Aftocircnio (Kennedy 1994 p 16) indicando que deveriam ser os

exerciacutecios mais complexos Segundo Marrou (1975 p 439) ldquouma vez concluiacuteda a longa seacuterie

de exerciacutecios preparatoacuterios o aluno era solicitado a redigir discursos fictiacutecios sobre um tema

dado pelo mestre e segundo as prescriccedilotildees e conselhos desterdquo

Taacutecito expressa a opiniatildeo de que as controuersiae ou seja as declamaccedilotildees do gecircnero

judicial eram mais difiacuteceis ou complexas do que as do gecircnero deliberativo

Duas espeacutecies de mateacuterias satildeo tratadas entre os reacutetores as suasoacuterias e as

controveacutersias Dessas delegam-se as suasoacuterias aos meninos jaacute que satildeo

claramente mais faacuteceis e menos exigentes quanto ao conhecimento as

controveacutersias satildeo designadas para os mais maduros (Taacutecito Diaacutelogo dos

oradores 35)

17

Tambeacutem Quintiliano apresenta sua opiniatildeo a respeito do grau de dificuldade entre os

exerciacutecios escolares de retoacuterica apresentando a prosopopeia um exerciacutecio retoacuterico anterior agrave

declamaccedilatildeo presente nos manuais de retoacuterica e componente significativo da proacutepria

declamaccedilatildeo como um dos exerciacutecios mais complexos

as prosopopeias me parecem de longe as mais difiacuteceis pois nestas a todo

trabalho da suasoacuteria acrescenta-se ainda a dificuldade da personagem pois a

mesma coisa deve ser aconselhada por Ceacutesar de um modo por Ciacutecero de

outro por Catatildeo de outro (Inst Orat III 8 49)

Pode-se dizer que a dificuldade inerente da praacutetica da suasoacuteria entendida como uma

espeacutecie de declamaccedilatildeo deliberativa a que se refere Quintiliano reside justamente na

configuraccedilatildeo do ecircthos retoacuterico apropriado para as personagens contidas no discurso e na

formulaccedilatildeo deste de modo convincente Deveria ademais ser adequado segundo o decorum

exigido pela plateia que o assiste Mas em razatildeo do conhecimento profundo das

particularidades dos preceitos que as controveacutersias envolviam somados agrave aplicaccedilatildeo da

caracterizaccedilatildeo do ecircthos o gecircnero judicial deveria ser o mais complexo Pode-se entatildeo

concluir que as declamaccedilotildees se configuravam como o uacuteltimo estaacutegio da formaccedilatildeo retoacuterica de

um cidadatildeo romano Eram esta os exerciacutecios das suasoriae e por fim das controuersiae ou

vice-versa

Ademais deve-se dizer que uma vez que a precisatildeo histoacuterica das datas nomes e

situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se imprecisotildees

(Wolf 2013 p 270) pode-se dizer que o principal virtuosismo do declamador residia na

capacidade de adequar os diversos elementos da declamaccedilatildeo como o tema com o caraacuteter

(ethos) da assembleia e das personagens fictiacutecias envolvidas pois o foco da praacutetica

declamatoacuteria era o exerciacutecio da eloquecircncia segundo os ditames dos manuais de retoacuterica

13 As fontes latinas

Diversos autores latinos trataram da declamaccedilatildeo ou dos declamadores subdividos

genericamente em dois grupos aqueles do periacuteodo republicano como Ciacutecero e aqueles do

periacuteodo imperial como Oviacutedio (Arte amatoacuteria) Juvenal (Saacutetira 10 165-169) Taacutecito

(Diaacutelogo sobre os oradores 35) Calpurnio Flaco (Declamaccedilotildees) Suetocircnio (Sobre os reacutetores

e Sobre os gramaacuteticos e os reacutetores) Secircneca e Quintiliano Em Oviacutedio (Arte amatoacuteria 1 465-

469) por exemplo declamare ocorre com o sentido de falar com algueacutem em tom

18

declamatoacuterio O discurso do amante teraacute a eloquecircncia persuasiva que convence o povo (nas

assembleias) o juiz (nos tribunais) e os senadores (no senado) Mas essa eloquecircncia natildeo deve

trair afetaccedilatildeo como mero artifiacutecio Oviacutedio prega aqui a retoacuterica cuja arte se esconde (lateant

uires) O amante natildeo deve parecer estar fazendo um discurso para a amada

Entretanto a anaacutelise das ocorrecircncias do radical do substantivo declamatio ou do verbo

declamare denota que algumas obras contecircm maior nuacutemero e relevacircncia para o estudo da

evoluccedilatildeo histoacuterica da declamaccedilatildeo latina enquanto gecircnero Eacute justamente a consideraccedilatildeo do seu

conteuacutedo e do seu contexto histoacuterico que sugerem a hipoacutetese de que a declamaccedilatildeo do tempo

de Ciacutecero natildeo era idecircntica a de Quintiliano e Secircneca o Velho

131 Discussatildeo terminoloacutegica

A terminologia com a qual se denominavam os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eacute uniacutevoca

entre os escritores que trataram de exerciacutecios idecircnticos ou equiparaacuteveis agrave declamaccedilatildeo na

literatura latina entre o seacuteculo I a C e o seacuteculo I d C Mendelson (1994 p 96) discorre sobre

um desses problemas terminoloacutegicos

No tempo de Ciacutecero a declamaccedilatildeo forense ou caso legal era conhecida

simplesmente como causa enquanto que posteriormente jaacute sob o Imperium

passou a ser conhecida como scholastica ou tema-escolar a fim de indicar o

modo por assim dizer restrito nos quais surgiam tais discursos artificiais

Schwartz (2004 p 65-66) sintetiza esta controveacutersia

No que diz respeito ao periacuteodo preacute-ciceroniano cuja caracteriacutestica segundo

Secircneca eram os exerciacutecios que recebem o nome grego de thesis (tese) o

material de que dispomos para nos referir a ele eacute bem escasso e portanto

torna-se difiacutecil chegar a conclusotildees definitivas Quintiliano define as theseis

ou quaestiones infinitae (questotildees indefinidas) em oposiccedilatildeo agraves causae (causas)

ou quaestiones finitae (questotildees definidas) proacuteprias do acircmbito judicial As

questotildees indefinidas eram discussotildees dialeacuteticas em que os participantes

defendiam uma ou outra das posiccedilotildees em conflito (in utramque partem) sem

referecircncia a pessoas tempos lugares e outras circunstacircncias (cf Quint III

55) Tratava-se de temas gerais de natureza abstrata especulativa ou

filosoacutefica Tais exerciacutecios desenvolvidos com frequecircncia nas escolas dos

filoacutesofos eram adequados agrave elaboraccedilatildeo de loci communes que tambeacutem eram

utilizados na oratoacuteria forense na declamaccedilatildeo e ateacute em gecircneros poeacuteticos como

a saacutetira Quintiliano afirma que a questatildeo indefinida eacute mais ampla que a causa

que eacute derivada dela Assim a questatildeo indefinida ldquodeve o homem casarrdquo (an

uxor ducenda) eacute logicamente preacutevia agrave questatildeo definida ldquodeve Catatildeo casarrdquo (an

Catoni ducenda) (cf Quint III 5 8) Haacute na definiccedilatildeo de Quintiliano portanto

uma antecedecircncia loacutegica da tese a respeito da causa mas nada obriga a pensar

que tal deva ter sido a ordem histoacuterica em que sucederam essas classes de

19

exerciacutecios Ao contraacuterio haacute evidecircncias de que exerciacutecios de tipo judicial

devem ter existido bem antes da eacutepoca de Ciacutecero Talvez o problema seja

sobretudo terminoloacutegico Com efeito eacute possiacutevel que Secircneca ao falar em

ldquotesesrdquo estivesse pensando em outros exerciacutecios diferentes dos praticados em

escolas de filosofia

No tocante agrave comparaccedilatildeo das declamaccedilotildees latinas supeacuterstites que haviam sido

realizadas ao longo dos seacuteculos I a C e I d C com os trecircs gecircneros de discurso presentes na

tradiccedilatildeo retoacuterica greco-romana pode-se dizer que tratavam basicamente de dois tipos de

causae deliberativa (suasoria) ou juriacutedica (controuersia) (Mendelson 1994 p 93) Quanto

ao epidiacutetico ao menos em Secircneca o Velho natildeo se encontram exemplos de declamaccedilotildees

realizadas com predominacircncia deste gecircnero Como veremos Quintiliano admitiraacute o uso do

demonstrativo ou laudativo entendido como tendo por objetivo principal o elogio ou a

vituperaccedilatildeo como um recurso argumentativo nas declamaccedilotildees deliberativas ou judiciais

132 O contexto republicano e o imperial

Ao comparar a praacutetica da declamaccedilatildeo no final da repuacuteblica e no iniacutecio do Impeacuterio

identificou-se que este gecircnero sofreu algumas alteraccedilotildees no tocante agrave terminologia e agrave forma

Ela havia deixado de ser um mero exerciacutecio das escolas de retoacuterica ou um termo aplicado agrave

praacutetica privada de um exerciacutecio oratoacuterio para tornar-se nos primeiros anos de Augusto uma

performance puacuteblica atraente em todas as classes sociais inclusive nas mais elevadas

A partir de Augusto as salas de declamaccedilatildeo constituem um espaccedilo que reuacutene

oradores reconhecidos assim como personalidades da vida puacuteblica (Contr II

412-13) Conveacutem distinguir aqui entre a declamaccedilatildeo como praacutetica escolar dos

jovens na aula do reacutetor e a declamaccedilatildeo como espetaacuteculo puacuteblico Com efeito

nas proacuteprias escolas de declamaccedilatildeo se realizavam periodicamente exibiccedilotildees

puacuteblicas das declamaccedilotildees jaacute preparadas por alunos e o reacutetor Natildeo era raro que

nestas ocasiotildees participassem ativamente convidados alheios agrave escola (Contr

III praef 16 Contr X praef) Desse modo a declamaccedilatildeo comeccedila

progressivamente a se tornar independente da finalidade de preparar para a

oratoacuteria e se converte em um fim em si mesmo (Schwartz 2000 p 275)

Esta fase antecedeu o decliacutenio por assim dizer do prestiacutegio desse gecircnero na virada do

I ao II seacuteculo d C conforme as criacuteticas de Taacutecito que identificava poucos ldquoautecircnticos

oradoresrdquo (Diaacutelogo sobre os oradores 14 4) Mas essa criacutetica pode ser relativizada se

considerarmos a popularidade da declamaccedilatildeo na Roma Imperial pois embora fosse uma arte

nascida na escola Suetocircnio (Vida de Antocircnio 84 Vida de Nero 10) atesta sua presenccedila e

exerciacutecio inclusive por imperadores Por outro lado durante o I seacuteculo a C embora Pisatildeo e

20

Pompeu tivessem se exercitado na declamaccedilatildeo (Ciacutecero Brutus 309-310) seu status natildeo era

comparaacutevel ao da oratoacuteria uma vez que ao contraacuterio do que se daria um seacuteculo mais tarde a

declamaccedilatildeo no tempo de Ciacutecero era contestada por aristocratas como Messala ou Poacutelio que

a assemelhavam agraves praacuteticas do tatro cocircmico desprezadas pela alta sociedade romana (Conte

1999 p 405) Destarte identifica-se entatildeo uma ascensatildeo da declamaccedilatildeo puacuteblica que teria

chegado a um apogeu de prestiacutegio nos primeiros dececircnios do seacuteculo I d C natildeo somente pelo

proacuteprio desenvolvimento do gecircnero mas pela ldquodecadecircnciardquo da oratoacuteria apoacutes seu afastamento

dos padrotildees ciceronianos (Schwartz 2004 p 2) A teoria segundo a qual o auge da oratoacuteria se

refletiu na accedilatildeo e nos escritos de Ciacutecero sendo este o padratildeo adequado para a praacutetica

declamatoacuteria eacute encontrada nas ldquoDeclamaccedilotildeesrdquo de Secircneca o Velho e no ldquoDiaacutelogordquo de Taacutecito

A declamaccedilatildeo seria por assim dizer a herdeira e a substituta da oratoacuteria um gecircnero cujo

sentido original soacute poderia ser vivido e praticado na Repuacuteblica devido agrave falta de liberdade de

expressatildeo durante o periacuteodo imperial

Segundo Edward (1928 p xvi-xvii) essa ascensatildeo teve origem na transformaccedilatildeo do

sistema poliacutetico romano

Como eacute que aquilo que fora primeiramente um mero exerciacutecio das escolas de

retoacuterica ou um termo aplicado agrave praacutetica privada de um orador distinto tornou-

se nos primeiros anos do reinado de Augusto uma performance puacuteblica e

atraente uma coisa praticada por si mesma e de certo modo algo pelo qual

todas as classes sociais se animavam O motivo deve ser encontrado na

mudanccedila de condiccedilotildees poliacuteticas A repuacuteblica estava extinta desde Filipos uma

vez estabelecido finalmente o poder de Augusto no Aacutecio o priacutencipe

concentrou todo o poder em suas proacuteprias matildeos as assembleias do povo eram

entatildeo desorganizadas ou de relevacircncia poliacutetica insignificante as deliberaccedilotildees

do senado perderam significado e efetividade suas decisotildees poderiam ser

revogadas a qualquer momento pela intervenccedilatildeo individual do Imperador A

oratoacuteria livre sobre temas relevantes tais como aqueles que inspiraram a

eloquecircncia ciceroniana jaacute natildeo podia ser ouvida Pleitos autecircnticos em que a

decisatildeo poderia ser desenvolvida por um advogado estavam confinados agraves

cortes centuriais e a causas natildeo se prestavam agrave oratoacuteria

A mudanccedila do regime republicano para o imperial eacute comparaacutevel agrave transformaccedilatildeo

gradual da declamaccedilatildeo e da sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria Um dos reflexos dessa interferecircncia

do sistema poliacutetico sobre a oratoacuteria daacute-se justamente segundo Schwartz (2004 p 2) na

ldquoreduccedilatildeo significativa do terreno para o desenvolvimento do gecircnero deliberativo uma vez

que sob o principado o senado perde sua independecircncia efetiva e junto com ela restringem-

se consideravelmente as possibilidades tradicionais do discurso oratoacuteriordquo

21

Natildeo sem razatildeo a declamaccedilatildeo tinha por modelo supremo de eloquecircncia a proacutepria

oratoacuteria mais especificamente a ciceroniana (Secircneca Contr I praef 6) e que deveria ser

imitado Quintiliano por exemplo aleacutem de tratar das declamaccedilotildees em sua ldquoInstituiccedilatildeo

Oratoacuteriardquo cita ou menciona Ciacutecero 362 vezes Tal padratildeo de imitaccedilatildeo persistiria ao longo dos

seacuteculos entre os reacutetores latinos desde o seacuteculo I d C com Quintiliano ateacute a polecircmica do

Ciceronianismo durante o seacuteculo XVI

Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as reais

necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de temas

mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Para ele a declamaccedilatildeo era o ldquomais uacutetil de todos os

exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) Assim esta natildeo era apenas um treino

para jovens aprendizes da eloquecircncia pois

seria um erro julgar que na Antiguidade a declamaccedilatildeo estava restrita agraves

escolas de retoacuterica Os adultos inclusive os homens de accedilatildeo jaacute ceacutelebres mas

afastados provisoriamente da vida poliacutetica ou dos tribunais se exercitavam

com as declamaccedilotildees a fim de natildeo perderem o haacutebito da eloquecircncia Em 46 a

C quando Ceacutesar era ditador Ciacutecero lecionava oratoacuteria a Hiacutercio e a Dolabella

(Kennedy 1980 p 37)

A declamaccedilatildeo antiga tinha portanto um puacuteblico alvo anaacutelogo agravequele humanista que

surgiraacute depois De fato a importacircncia da oratoacuteria e por consequecircncia das teorias retoacutericas

na vida romana eacute determinante Poliacutetica jurisprudecircncia ndash e inclusive o comando militar ndash

dependiam do modo pelo qual os dirigentes articulavam a palavra O homem poliacutetico era

justamente aquele capaz de comunicar-se com o puacuteblico ao qual cabia tomar decisotildees seja no

contexto judicial seja no contexto deliberativo Eacute por essa razatildeo que o puacuteblico-alvo do

declamador era a classe dominante seja a parte que ainda estava em formaccedilatildeo no contexto

escolar seja aquela jaacute ldquoformadardquo que se exercitava ou se deleitava com o exerciacutecio em

ciacuterculos de maior intimidade Se a declamaccedilatildeo latina visava os magistrados no primeiro caso

ou se no segundo caso simulava o senado no regime republicano ou no regime imperial o

discurso visava justamente agraves pessoas que deveriam decidir pela deliberaccedilatildeo poliacutetica Sobre

os destinataacuterios da declamaccedilatildeo romana afirma Bernstein (2009 p 332)

Os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da alta

classe romana do imperador cuja presenccedila eacute mencionada por Secircneca (Contr

II412ndash13) aos estudantes que poderiam ter usado essa literatura como

material pedagoacutegico

22

14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos

141 A Retoacuterica a Herecircnio

Haacute trecircs referecircncias ao vocaacutebulo declamatio na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (III 20) Estas satildeo

as mais antigas na literatura latina pois esta obra teria sido escrita por um autor desconhecido

na primeira metade do seacuteculo I a C (Caplan1954 XVII)3 Para Bonner (1949 p 20) existe

uma conexatildeo proacutexima com o termo grego ἀναθώνηζις e o gecircnero declamaccedilatildeo De fato nesse

escrito por muito tempo equivocadamente atribuiacutedo a Ciacutecero mas cuja paternidade

ciceroniana jaacute era posta em duacutevida durante o Renascimento apresenta-se o termo declamaccedilatildeo

como um verdadeiro exerciacutecio oral justamente por tratar da pronuntiatio ou seja da forma

da locuccedilatildeo adequada a persuadir e a agradar a audiecircncia especialmente ao abordar os pontos

da firmeza (firmitudo) e da suavidade (mollitudo) da voz Caplan (ibid xvII) em sua

introduccedilatildeo agrave ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo comenta que as escolas retoacutericas latinas realizavam a

declamaccedilatildeo conforme os manuais os quais refletem a praacutetica escolar O texto apresenta os

exerciacutecios de forma enfaacutetica na forma de progymnaacutesmata estabelece as formas proacuteprias de

vaacuterios gecircneros discursivos o epidiacutetico (demonstratiuum) o deliberativo (deliberatiuum

deliberationes suαsoriae) e judiciaacuterio (iudiciale causae controuersiae) Deve-se notar que o

autor desenvolve alguns exemplos de declamaccedilotildees certamente inspiradas nas declamaccedilotildees

gregas Algumas destas discutem sobre o tema da paz e da guerra

142 Ciacutecero

Erasmo considerava Ciacutecero entre outros autores uma autoridade no que diz respeito agrave

composiccedilatildeo em prosa (Epiacutestola 20 Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31) Segundo

Chomarat (1981 p 935) Mendelson (1994 p 94) e Winterbottom (2006 p 76) na eacutepoca de

Ciacutecero havia duas noccedilotildees essenciais de declamaccedilatildeo que a caracterizam como portadora de

3 Quanto agrave data conveacutem citar tambeacutem outras opiniotildees como a do editor da obra para a Belles Lettres Achard

que palpita ldquoElle paraicirct donc se situer entre le mi de 86 et la fin de 83 Une telle datation s‟accorde parfaitement

avec l‟intention de l‟auteur et le contenu du livrerdquo (Achard 1997 p vii) E mais adiante ldquoPour toutes ces

raisons on peut consideacuterer comme assureacute que la Rheacutetorique agrave Herennius a eacuteteacute eacutecrite entre la mi-86 et le deacutebut de

82rdquo (Ibid p xii)

23

temas fictiacutecios ou como praacutetica de um exerciacutecio da elocuccedilatildeo (Kennedy 1980 p 37)

conforme o sentido escolar do termo μελέηη4

Na obra de Ciacutecero (Bonner 1949 p 27) haacute dez referecircncias agrave declamaccedilatildeo seja na

forma de substantivo seja na forma de verbo nas ldquoDisputas tusculanasrdquo (17) a palavra

ocorre como o sentido de exerciacutecio da palavra mas na oraccedilatildeo ldquoPor Placircnciordquo (47) em sentido

depreciativo eacute atribuiacuteda a um discurso banal ou proposiccedilatildeo refutaacutevel um protesto barulhento

Nota-se tambeacutem o sentido de invectivar contra ou sobre uma pessoa (Contra Verres 4 49

Epiacutestulas aos Familiares 3 11 2) Ciacutecero tambeacutem fala do declamator (Por Placircncio 83) ou

do exerciacutecio declamatorius (Orador 47) Haacute em Ciacutecero uma variante para o verbo declamar

declamitare (Epiacutestola LX a Papirio Paeto) Este uacuteltimo lido no contexto parece ter o sentido

como exerciacutecio veemente da declamaccedilatildeo ou da execuccedilatildeo reiterada de exerciacutecios de locutio

(Brutus 310 Sobre o orador 1251) Pode ser exercido para desprestigiar um contendor

(Filiacutepicas 5 19) ou para agradar os ouvintes (Disputas Tusculanas 1 7) Eacute em Ciacutecero que

ocorre a primeira distinccedilatildeo dos subgecircneros da declamaccedilatildeo quanto ao tipo de causa ou tema

deliberativa ou suasoacuteria (Por Rocio Amerino 82) juriacutedica ou causae (Disputas Tusculanas

1 7)

143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho

Manoel (2014 p 37) contudo ao tratar dos exerciacutecios de declamaccedilatildeo nos tempos de

Ciacutecero em comparaccedilatildeo com as declamaccedilotildees do periacuteodo imperial reconheceu que ldquofoi apoacutes o

fim da Repuacuteblica que teve iniacutecio a era das declamaccedilotildeesrdquo ou seja o periacuteodo no qual sua

praacutetica talvez tenha atingido uma espeacutecie de apogeu devido ao grau de difusatildeo da sua praacutetica

na sociedade romana e agrave maior quantidade e qualidade de registros escritos ainda

conservados Segundo Schwartz (2004 p 8) e Russel (2009 p 2) para a compreensatildeo das

caracteriacutesticas fundamentais desse gecircnero no periacuteodo imperial eacute fundamental considerar as

ldquoControveacutersiasrdquo (em dez livros) e as ldquoSuasoacuteriasrdquo de Secircneca o Velho Este discorreu sobre o

gecircnero declamatoacuterio nos prefaacutecios agraves controveacutersias escritos provavelmente nas deacutecadas de 20

ou 30 d C A importacircncia desse autor se verifica por ter vivido em uma eacutepoca na qual a

declamaccedilatildeo passou a ser realizada publicamente a fim de deleitar a audiecircncia e tomando o

4 Deve-se ainda acrescentar que aleacutem do sentido de exerciacutecio o termo tinha o sentido de cuidar Era usado

inclusive no contexto militar e medicinal (Cf Bailly Anatole Le Grand Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris

Hachette 2000 Voz μελέηη)

24

lugar da antiga oratoacuteria (Conte 1999 p 404) Redigidas em idade avanccedilada suas

declamaccedilotildees judiciais podem ser entendidas como escritas a pedido de seus filhos ou para a

instruccedilatildeo destes (Schwartz 2004 p 80) dadas as diversas referecircncias e locuccedilotildees direcionadas

explicitamente a estes em vaacuterios prefaacutecios (Secircneca Contr Pr 1 3 4 6 9 10 13 19 20 22)

Segundo Bloomer (1997 p 204) esta indicaccedilatildeo de destinataacuterios consanguiacuteneos natildeo deve ser

entendida senatildeo como uma estrateacutegia retoacuterica com um significado social a fim de simular

uma recomendaccedilatildeo agrave comunidade ou um ensino a disciacutepulos Sobre os destinataacuterios desta

declamaccedilatildeo conforme afirma Bernstein (2009 p 332) baseando-se em Secircneca (Contr II 4

12-13) os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da classe alta

conforme acima mecionamos

As ldquoControveacutersiasrdquo abordam setenta e quatro casos legais imaginaacuterios nos quais o

autor estabelece pareceres dos reacutetores sobre cada caso a partir de diferentes pontos de vista

(Salum 2010 p 119) Nos prefaacutecios apresentam-se as caracteriacutesticas individuais dos reacutetores

as quais satildeo discutidas de forma irocircnica eou pedagoacutegica As controveacutersias de Secircneca poreacutem

natildeo satildeo escritas de forma completa tal como foram ou teriam sido pronunciadas mas de

forma sintetizada (Schwartz 2004 p 8) Estas se diferenciam das declamaccedilotildees escritas em

grego cuja transcriccedilatildeo era integral sendo redigidas tais como haveriam de ser pronunciadas

a exemplo de Libacircnio Coriacutecio e Plutarco

A obra de Secircneca goza de eminente autoridade para a histoacuteria da oratoacuteria e da

declamaccedilatildeo Na opiniatildeo de Salum (2010 p 119) as ldquoControveacutersiasrdquo apresentam uma espeacutecie

de galeria de declamadores os quais personificam compreensotildees retoacutericas diversificadas

Aleacutem disso tambeacutem evoca uma distinccedilatildeo da declamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria e procura

estabelecer as qualidades imprescindiacuteveis do gecircnero conforme consta no prefaacutecio da terceira

controveacutersia (Contr III pr 7)

Segundo a leitura dos prefaacutecios denota-se que seu orador ldquoidealrdquo era Ciacutecero o qual eacute

apresentado inclusive como o primeiro dos declamadores latinos (Schwartz 2004 p 12)

embora essa afirmaccedilatildeo possa contrariar o que o proacuteprio Secircneca pensava a respeito da

declamaccedilatildeo no final da Repuacuteblica ldquoCiacutecero poreacutem natildeo declamava entatildeo estas a que

chamamos controveacutersias nem aquelas outras que eram pronunciadas antes de Ciacutecero e que

se chamavam thesis Noacutes dizemos controveacutersias mas Ciacutecero lhes chamava causasrdquo (Secircneca

Contr I pr 12) Aleacutem do problema de que algumas das causas ciceronianas poderiam ser

25

reais (histoacutericas) e natildeo fictiacutecias deve-se afirmar que o texto supracitado de Secircneca

problematiza a terminologia acerca da declamaccedilatildeo como ao afirmar que Cicero causas

vocabat

Secircneca cujos prefaacutecios estabelecem a declamaccedilatildeo como um gecircnero literaacuterio

autocircnomo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria apresenta alguns conceitos imprescindiacuteveis para sua

caracterizaccedilatildeo tais como a noccedilatildeo de sententia entendida como frase epigramaacutetica utilizada

para impressionar o leitor ou os ditados ou aforismos geralmente conclusivos do argumento

a diuisio que seria uma breve apresentaccedilatildeo do esquema argumentativo proposto era

fundamentada nas noccedilotildees de iustitia (justiccedila) no ius (direito) e na utilitas (interesse) e o

color entendido como ldquoo estilo com o qual o declamador apresenta a situaccedilatildeo ou seja

contava-se a acumulaccedilatildeo de figuras retoacutericas o ritmo do periacuteodo etcrdquo (Conte 1999 p 405)

Por outro lado Schwartz (2004 p 9) entende que o color seria ldquoo motivo imaginado para

justificar uma accedilatildeo de uma personagem em uma controveacutersiardquo O color concebido segundo a

conceituaccedilatildeo de Secircneca no contexto de uma controveacutersia era atribuiacutedo ao ato passado do

personagem descrito no thema (Fairweather 1981 p 32) por vezes no iniacutecio ldquoeste color foi

usado e logo atribui a ele desde o princiacutepiordquo (Contr I 1 24) ou ao longo desta ldquoAlbuacutecio

natildeo narrou mas erigiu este color desde o iniacuteio ateacute o finalrdquo (Contr I 1 24) Secircneca descreve o

color do discurso como sendo prudente temperado duro aacutespero ou severo Caracteres

anaacutelogos eram atribuiacutedos a um ou a todos os personagens da controveacutersia (Winterbottom

1980 p 171) Muitas vezes estava presente logo na narratio entendida como ldquouma descriccedilatildeo

sobre os principais atos cometidosrdquo (Van Mal-Maeder 2007 p 71) e que fornecem o cerne da

questatildeo a ser discutida na declamaccedilatildeo

Apesar do testemunho equivocado de Secircneca o Velho a respeito da origem da

declamaccedilatildeo ao mencionaacute-la como rem post me natam (Contr I 12) o estudo deste gecircnero

com base em seu escritos se faz importante natildeo somente em razatildeo das suas consideraccedilotildees

acerca das caracteriacutesticas essenciais acima mencionadas mas tambeacutem porque descreveu o

contexto histoacuterico e a praacutetica desta forma de discurso em seu tempo como uma espeacutecie de

retrocesso qualitativo (Secircneca Contr I pr 6) Conte (1999 p 404) observa que justamente a

mudanccedila de regime poliacutetico da Repuacuteblica ao Impeacuterio fez com que a declamaccedilatildeo se alterasse

pois a praacutetica oratoacuteria natildeo gozava da mesma liberdade de expressatildeo de antes com a

decadecircncia do Senado e a ausecircncia de praacutetica oratoacuteria na formaccedilatildeo do orador Os oradores

26

passaram a ser vistos com desconfianccedila por uma administraccedilatildeo que natildeo tolerava criacuteticas Natildeo

sem razatildeo os autores notam a decadecircncia da eloquentia apoacutes a morte de Ciacutecero natildeo pela falta

de gecircnios mas pela falta de liberdade de expressatildeo da opiniatildeo poliacutetica individual (Schwartz

2004 p 91) Entretanto a praacutetica das declamaccedilotildees se tornou um espetaacuteculo puacuteblico e

paulatinamente foi tomando o lugar da ldquorobusta oratoacuteria expressa pelos tempos de Ciacutecerordquo

(Sussman 1972 p 197) Schwartz sintetiza o papel e as incongruecircncias da praacutetica da

declamaccedilatildeo no periacuteodo republicano e sua heranccedila para a literatura latina

[as declamaccedilotildees] pelo fato de natildeo fazerem parte do campo tradicionalmente

mais livre da poesia nem de serem tampouco redutiacuteveis agrave simples funccedilatildeo

ancilar de exerciacutecio escolar colocava-as em um ldquonatildeo-lugarrdquo Essa orfandade

no entanto resultou em um vazamento da retoacuterica escolar sobre os outros

gecircneros discursivos Nesse processo eacute todo o campo da eloquecircncia que se

torna ldquodeclamatoacuteriordquo (Schwartz 2004 p 10)

Nos prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo Secircneca desaprovava as tendecircncias floridas da

oratoacuteria de seu tempo ou conforme supotildee Salum (2010 p 119) apresenta personagens como

portadores de defeitos e virtudes da declamaccedilatildeo a fim de teorizar sobre caracteriacutesticas

essenciais desta Para citar um exemplo uma passagem do prefaacutecio da segunda controuersia

expressa uma criacutetica ao estilo asiaacutetico de um aluno de Areacutellio Fusco que tinha certa propensatildeo

agrave filosofia Fabiano Papiacuterio ldquoseu arranjo de palavras efeminado demais para que um espiacuterito

que se prepara com preceitos tatildeo santos e rigorosos pudesse suportaacute-lardquo (Contr II 1) Secircneca

criticou a atividade de alguns declamadores aos quais atribuiacutea o anseio impreteriacutevel de

impressionar o puacuteblico atraveacutes de vazias frases de efeito pelo uso inapropriado das sententiae

marca essencial do gecircnero declamatoacuterio A sentenccedila eacute um silogismo incompleto mas natildeo

iloacutegico que prestigia as informaccedilotildees de interesse do declamador e que visa a impressionar o

ouvinte natildeo tanto pelo silogismo mas pela beleza ou forccedila da expressatildeo Nessa estrutura a

noccedilatildeo de sententia era fundamental pois ldquoesta procurava produzir o efeito mais do que a

loacutegica do periacuteodordquo (Salum 2010 p 119) ainda que natildeo abstraiacuteda a dimensatildeo retoacuterica do

logos Utilizava no entanto o entimema que segundo a conceituaccedilatildeo aristoteacutelica natildeo era

iloacutegico mas apenas apresentava o raciociacutenio de um modo incompleto e essencial a fim de ser

compreendido de forma mais direta pelo ouvinte ou mesmo enganaacute-lo e tornar o argumento

irresistivelmente persuasivo em contraponto com o raciociacutenio dialeacutetico desenvolvido em

todas as suas premissas poreacutem menos convincente

Entre as provas fornecidas pelo discurso distinguem-se trecircs espeacutecies umas

residem no caraacuteter moral do orador outras nas disposiccedilotildees que se criaram no

27

ouvinte outras no proacuteprio discurso pelo que ele demonstra ou parece

demonstrar Obteacutem-se a persuasatildeo por efeito do caraacuteter moral quando o

discurso procede de maneira que deixa a impressatildeo de o orador ser digno de

confianccedila [] Obteacutem-se a persuasatildeo nos ouvintes quando o discurso os leva a

sentir uma paixatildeo [] Enfim eacute pelo discurso que persuadimos sempre que

demonstramos a verdade ou o que parece ser a verdade de acordo com o que

sobre cada assunto eacute suscetiacutevel de persuadir (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 3-8

traduccedilatildeo Antocircnio de Carvalho 1999 p 33-34)

Silogismo significa basicamente calcular ou raciocinar em conexatildeo Uma das

caracteriacutesticas desse tipo de discurso eacute a formaccedilatildeo completa da sentenccedila loacutegica que atraveacutes de

proposiccedilotildees compostas atribuem verdade ou falsidade ao conceito exposto No discurso

dialeacutetico essas proposiccedilotildees compostas satildeo muitas vezes interligadas por conectivos

conformando assim oraccedilotildees coordenadas ou subordinadas Por isso Aristoacuteteles atribuiacutea ao

discurso retoacuterico a necessidade do conhecimento adequado das emoccedilotildees e das paixotildees

humanas O homem natildeo eacute persuadido pelo mero raciociacutenio Eacute necessaacuterio apelar agraves emoccedilotildees

Tal propoacutesito foi perseguido pela oratoacuteria sobretudo no ambiente republicano e sua

ldquoherdeirardquo nos tempos imperiais a declamaccedilatildeo

Por outro lado segundo Conte (1999 p 405)

Dado o caraacuteter fictiacutecio das situaccedilotildees e as muitas premissas o anseio do orator

natildeo eacute tanto persuadir mas sim deixar a audiecircncia atocircnita e ele para isso

recorre aos mais engenhosos truques da linguagem e da imaginaccedilatildeo O

maneirismo das formas torna exagerado o uso dos colores o termo teacutecnico

que indica a manipulaccedilatildeo inteligente de uma situaccedilatildeo ou de um conceito e

capaz de apresentar a mateacuteria em matildeos sob o aspecto mais surpreendente Na

busca do efeito e dos aplausos do auditoacuterio o orator tambeacutem faz uso de um

estilo precioso brilhante aquele que recorre a todos os artifiacutecios de asianismo

do acuacutemulo de figuras retoacutericas a uma expressatildeo densamente epigramaacutetica a

fim de cuidar do ritmo do periacuteodo

Secircneca tambeacutem caracteriza a declamaccedilatildeo com dois traccedilos distintivos em primeiro

lugar ao tratar da puacuteblica afirmava que esta visava a dar impressatildeo de improviso por meio da

velocidade (Contr IV 7) Em segundo lugar aleacutem da aparecircncia de algo natildeo preparado

deveria ter especial cuidado com o tom de voz tal como os manuais como a ldquoRetoacuterica a

Herecircniordquo preceituavam Um orator ou um ou um rhetor era desprestigiado caso seu trabalho

fosse assemelhado ao teatro cocircmico (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 7-8) uma vez que em

Roma os costumes dos artistas que atuavam na comeacutedia eram extremamente mal vistos E de

fato a comeacutedia era exercida por profissionais desprezados na alta sociedade romana Desse

modo muitas vezes atribuiacutea-se agravequele que atuava uma depravaccedilatildeo moral contra os costumes e

28

o mos maiorum A sua accedilatildeo (actio) se caracterizava exagerada e a modulaccedilatildeo no volume da

voz a fim de se fazer ouvir e entender adequadamente pela assembleia eram desagradaacuteveis em

comparaccedilatildeo agrave oratoacuteria ldquoprofissionalrdquo dos oradores do Foacuterum e do Senado Como a recitaccedilatildeo

da declamaccedilatildeo implicava no uso de uma locutio por vezes enfaacutetica somada ao uso da

prosopopeia os declamadores procuravam fugir do perigo de serem considerados meros

comediantes Disso resulta a grave criacutetica ao perigo de incorrer no ridiacuteculo como Secircneca

impunha agravequeles que natildeo regulavam bem a tonalidade da voz (Contr IV 10)

144 A suasoacuteria em Secircneca

Como dissemos as declamaccedilotildees de Secircneca estavam subdivididas em dois tipos as

controuersiae e as suasoriae As controveacutersias pertencem ao gecircnero judicial e consistiam no

julgamento de um caso fictiacutecio que se baseava na legislaccedilatildeo romana ou em leis fictiacutecias

(Bonner 1949 p 258) Jaacute as suasoacuterias fazem parte do gecircnero deliberativo e versavam sobre

temas mitoloacutegicos e histoacutericos Nelas o aluno tinha a finalidade de simular adequadamente o

discurso de uma personagem convencer a assembleia fictiacutecia segundo o propoacutesito de sua

causa e deleitar o puacuteblico real por meio de uma simulaccedilatildeo de discurso estruturado com uma

prosopopeia Esta personificaccedilatildeo deveria simultaneamente se adaptar ao objeto (res) ao

puacuteblico e agrave personagem que representa Daiacute se conclui a relaccedilatildeo da personificaccedilatildeo com a

noccedilatildeo aristoteacutelica de ecircthos mencionada acima e a sermocinatio tal como comenta Schenk

(1982 p 115-116)

A suasoria uma declamaccedilatildeo ensinada nas escolas de retoacuterica mais do que um

exerciacutecio elementar lecionado na escola de gramaacutetica exigia um auditoacuterio e

sua finalidade era preponderantemente a persuasatildeo Toda suasoacuteria era em

parte uma interpretaccedilatildeo pois o disciacutepulo ao compocirc-la tinha de assumir um

papel de preceptor ou conselheiro e portanto tinha de adaptar seus

ldquoargumentos seu modo sua tonalidade ao tipo de ouvinte quem quer que

fosse seja um cidadatildeo comum um soldado um senador um membro do

conselho militar um mensageiro em conformidade com as circunstacircncias do

debaterdquo (Bonner 1949 p 285) Mas o disciacutepulo tambeacutem tinha de convencer a

figura histoacuterica ou mitoloacutegica especiacutefica que eles estavam aconselhando ao

modo de actio O jovem aluno deveria aconselhar por assim dizer os

espartanos a resistir nas Termoacutepilas ou Agamenon a sacrificar sua filha

Ifigecircnia ou natildeo

Merecem especial destaque as suasoacuterias I II IV que tratam sobre a deliberaccedilatildeo da

conquista dos mares e da guerra com argumentos a favor e contra A primeira ldquoSuasoacuteriardquo

mencionada na Controuersia (VII 7 19) trata sobre Alexandre o Grande rei da Macedocircnia

29

O declamador coloca-se no lugar de um dos membros do conselho e discute se apoacutes a

conquista da Aacutesia e da Iacutendia o monarca deve atravessar o oceano Jaacute na segunda ldquoSuasoacuteriardquo

que eacute intitulada ldquoOs trezentos espartanos enviados contra Xerxes uma vez que os grupos de

trezentos enviados de toda a Greacutecia fugiram deliberam se tambeacutem eles proacuteprios fugiratildeordquo

trata sobre o episoacutedio dos 300 espartanos que haviam enfrentado os persas comandados por

Xerxes por ocasiatildeo da segunda invasatildeo (480 a C) em Termoacutepilas (Cf Heroacutedoto Histoacuteria

VII) Nesta suasoacuteria vaacuterios declamadores apresentam argumentos a favor e contra a fuga dos

espartanos Destaca-se o discurso de Fusco segundo Secircneca

Nesta suasoacuteria Fusco usou aquela divisatildeo popular dizendo que natildeo era

honroso fugir mesmo que fosse seguro em seguida que era igualmente

perigoso fugir ou lutar e por uacuteltimo que era mais perigoso fugir Os inimigos

deviam ser temidos por aqueles que lutam tanto os inimigos quanto os aliados

deviam ser temidos por aqueles que fogem (Suas II 11 Traduccedilatildeo de

Costrino p 2010 p 58)

A segunda ldquoSuasoacuteriardquo traz como tema tipicamente deliberativo questotildees que evocam a

guerra e o ofiacutecio do combatente como algo digno vendo-a como algo positivo honesto

Alguns declamadores vituperam aqueles que fogem da guerra apresentando o fato como algo

desonroso para os antepassados e que diminui a fama dos gregos

Na quarta ldquoSuasoacuteriardquo cujo tiacutetulo ldquoAlexandre o grande delibera sobre se invadiraacute a

Babilocircnia uma vez que lhe fora anunciado o perigo pela previsatildeo do aacuteugurerdquo encontramos o

episoacutedio da vitoacuteria de Alexandre sobre Daacuterio na batalha de Galgamela ocorrida no ano de

331 a C Com esta conquista o comandante grego vislumbrou a oportunidade de apoderar-

se da cidade mesopotacircmica Nesta suasoacuteria mais uma vez a guerra eacute tratada como algo

beneacutefico sobretudo para a imagem do comandante O auguacuterio natildeo quer senatildeo incutir o medo

no combate pois tanto a vida de cada homem quanto o destino dos conquistadores ldquosatildeo

forjadas para cada um por causa do engenho natildeo a partir da feacuterdquo (Suas IV 3) Por essas duas

passagens percebe-se natildeo somente que a questatildeo da guerra e por oposiccedilatildeo da paz eacute proacutepria

do gecircnero da declamaccedilatildeo suasoacuteria mas que a guerra pode ser tratada como uma causa

honesta no sentido de que eacute admiraacutevel e justa que predica a virilidade a legiacutetima defesa da

pessoa e da naccedilatildeo e que argumentos baseados na mitologia natildeo poderiam tornaacute-la uma causa

torpe Em outras palavras a guerra seria uma deliberaccedilatildeo necessaacuteria justa e admiraacutevel em

certos casos

30

145 Quintiliano

Erasmo qualificava a ldquoInstituiccedilotildees Oratoacuteriasrdquo de Quintiliano como escritos de

autoridade no que diz respeito agrave composiccedilatildeo em prosa (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p

31) Dentre as sessenta e quatro ocorrecircncias de substantivos e verbos com o radical declama-

(declamator declamare declamatio)5 foi oportuno selecionar quatro aspectos significativos

da declamaccedilatildeo primeiro sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 49)

segundo sua praacutetica escolar (Ibid II 1 1) terceiro a presenccedila nela de aspectos teoacutericos do

gecircnero deliberativo (Ibid III 4 7) e por uacuteltimo a ocorrecircncia nela do vitupeacuterio e do elogio

(Ibid II 4 22) Natildeo sem propoacutesito a prolixidade de Quintiliano a respeito fez com que lhe

fossem atribuiacutedas agraves coleccedilotildees de declamaccedilotildees maiores hoje comprovadamente espuacuterias dada

a presenccedila nelas do asianismo ausente dos demais escritos dele As declamaccedilotildees minores

entretanto poderiam ser atribuiacutedas a ele sem maiores dificuldades (Reali e Turazza 2012 p

7)

Do ponto de vista histoacuterico Quintiliano compartilha a supracitada ideia de Taacutecito

(Dialogo de Oratoribus 351) segundo a qual a declamaccedilatildeo seria uma pobre e mera imitaccedilatildeo

da antiga e ceacutelebre oratoacuteria romana em razatildeo de sua natureza fictiacutecia

De fato o que tomamos como exemplo possui uma natureza e forccedila reais ao

contraacuterio toda imitaccedilatildeo eacute construiacuteda e se acomoda a um propoacutesito alheio De

onde sucede que as declamaccedilotildees tenham muito menos sangue e forccedila que os

discursos pois a mateacuteria que eacute verdadeira nestes eacute imitada naquelas Acrescente-se

que o que eacute oacutetimo na oratoacuteria satildeo as coisas imitaacuteveis natildeo satildeo o engenho a invenccedilatildeo a

forccedila a desenvoltura e o que quer que seja concedido pela arte (Quintiliano

Instituiccedilatildeo Oratoacuteria X 2 11-12)

Quintiliano comenta que a ascensatildeo do gecircnero declamatoacuterio significou a decadecircncia

da oratoacuteria romana segundo os elevados moldes ciceronianos em uma relaccedilatildeo causal

(Schwartz 2004 p 2) pelas seguintes razotildees o caraacuteter fantasioso dos temas selecionados

que ele rejeitava veementemente e o estilo exagerado dos declamadores (Quintiliano

Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-15) que segundo ele quanto menos preocupados com a causa

que discutiam mais pensavam ldquoem deleitar os ouvidos da audiecircncia mesmo agrave custa das mais

iacutenfimas distraccedilotildeesrdquo (Ibid II 12 6) Natildeo devemos contudo ver nessas afirmaccedilotildees algo como

o estado histoacuterico das declamaccedilotildees em seu tempo pois muitas dessas declaraccedilotildees tecircm

5 As ocorrecircncias do radical escolhido (declama-) foram contadas numa versatildeo digitalizada da ediccedilatildeo da Institutio

Oratoria publicada pela Harvard University Press em 2006

31

finalidade pedagoacutegica dada a natureza da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria podendo ser tambeacutem

interpretadas como uma apresentaccedilatildeo de um modelo ou exemplum negativo e que natildeo deve

ser seguido ou imitado

De fato Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as

reais necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de

temas mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Sua preocupaccedilatildeo se explica pois pela proacutepria

finalidade didaacutetica de seus escritos Como considerava a declamaccedilatildeo o ldquomais uacutetil de todos os

exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) forneceu um bom retrato de como

estes exerciacutecios eram realizados em sua eacutepoca (Ibid II 10 1-15) Por fim deve-se dizer

tambeacutem que menciona a praacutetica de prover seus alunos com subsiacutedios escritos a fim de que

estes auxiliassem seus disciacutepulos em suas declamaccedilotildees (Ibid II 6 2) e chega a afirmar que

ldquoo exerciacutecio da escrita facilitava a locuccedilatildeo e o exerciacutecio da locuccedilatildeo incrementava a escritardquo

(Ibid X 7 29) Assim se era um exerciacutecio essencialmente oral cuja finalidade era a praacutetica

da locutio eacute justamente em Quintiliano (Ibid X 3 10) que surgem alguns indiacutecios de uma

declamaccedilatildeo escrita no contexto escolar (Murphy 2012 p 69) Esse processo corresponde agrave

tendecircncia de transcriccedilatildeo dos discursos forenses que tambeacutem passaram a ser concebidos para a

leitura e natildeo somente para a audiccedilatildeo em decorrecircncia talvez da decadecircncia da oratoacuteria entatildeo

mal vista pelo regime imperial (Williams 2009) Esse fenocircmeno denominado literalizaccedilatildeo

foi um processo que transparece numa praacutetica que se estabeleceu naquela tempo e que se

assemelha agrave praacutetica declamatoacuteria as recitationes (Conte 1999 p 405) Estas costumavam

anteceder a publicaccedilatildeo das obras natildeo se restringindo aos gecircneros poeacuteticos como os

epigramas de Marcial e as saacutetiras de Juvenal mas abrangiam tambeacutem prosas de historiadores

e epiacutestolas como as de Pliacutenio o Jovem entre outros gecircneros discursivos (Dupont1997 p 45)

As declamationes e as recitationes implicavam em um contexto oral de emissatildeo e recepccedilatildeo

pois embora minuciosamente preparadas e escritas natildeo visavam a convencer mas

sobretudo a deleitar (Schwartz 2004 p 15)

Quintiliano informa que em seu tempo a declamaccedilatildeo tambeacutem poderia versar sobre

temas deliberativos ou suasoacuterios (Insituticcedilatildeo Oratoacuteria III 8 61) ou sobre as causas judiciais

(Ibid II 1 9) Eacute ele tambeacutem quem trata do lugar do elogio e da censura dentro da

declamaccedilatildeo e relaciona esses elementos tiacutepicos do gecircnero epidiacutetico como lugar comum

32

Lugares-comuns (falo daqueles em que natildeo se especificam pessoas e eacute usual

declamar contra viacutecios como contra aqueles do aduacuteltero do jogador do

licencioso) satildeo da proacutepria natureza dos discursos em exerciacutecios e se tu

acrescentas o nome da parte acusada satildeo autecircnticas acusaccedilotildees Estes no

entanto geralmente satildeo tratados a partir de temas gerais para algo especiacutefico

como quando o assunto de uma declamaccedilatildeo eacute um aduacuteltero cego um jogador

pobre ou um velho licencioso Agraves vezes tambeacutem tecircm a sua utilizaccedilatildeo na

defesa quando ocasionalmente falamos em favor do luxo ou da licenciosidade

ou de um degenerado ou parasita eacute por vezes defendido da forma que

defendemos natildeo a pessoa mas o viacutecio (Ibid II 4 22)

Aleacutem de tratar da inadequaccedilatildeo da declamaccedilatildeo com a comeacutedia ao exemplicar com as

figuras antiteacuteticas do aduacuteltero cego do jogador pobre e do velho licencioso Quintiliano

discute sobre algumas formas de distinguir os tradicionais trecircs gecircneros de discurso

(deliberativo judicial e epidiacutetico) e afirma a interpenetraccedilatildeo que pode haver entre estes

Haacute entatildeo como eu disse um gecircnero que conteacutem o louvor e o vitupeacuterio mas

que eacute chamado pelos melhores de laudativum outros no entanto chamam-

no de demonstrativo Acredita-se que ambos os nomes sejam derivados do

grego respectivamente ἐγκωμιαζηικόν e ἐπιδεκηικόν Entretanto me parece

que a palavra ἐπιδεκηικόν tem o significado natildeo tanto de demonstraccedilatildeo mas

sim de ostentaccedilatildeo a fim de distinguir do termo ἐγκωμιαζηικόν pois embora

ela inclua em si o gecircnero laudativum natildeo consiste somente nesse tipo

Algueacutem pode negar que os discursos panegiacutericos satildeo ἐπιδεκηικόν No entanto

eles tomam a forma suasoacuteria e geralmente tratam dos interesses da Greacutecia De

modo que haacute de fato trecircs gecircneros mas em cada um deles haacute uma parte

dedicada ao objeto e outra parte agrave ostentaccedilatildeo Mas quando natildeo traduzindo do

grego chamam de demonstrativo satildeo simplesmente levados pela

consideraccedilatildeo de que o elogio e a censura demonstram o que eacute a coisa O

segundo tipo eacute o deliberativo e o terceiro o judicial Outras espeacutecies

incorreratildeo nestes gecircneros sem haver encontrado uma espeacutecie qualquer em que

natildeo deve elogiar ou censurar persuadir ou dissuadir para impor uma carga ou

repeli-la Nelas eacute comum conciliar narrar ensinar aumentar diminuir a fim

de influenciar o julgamento do puacuteblico excitando ou dissipando as paixotildees

Eu natildeo poderia concordar mesmo com aqueles que ao adotar segundo meu

parecer uma divisatildeo mais faacutecil e ilusoacuteria do que verdadeira consideram que o

laudativo diz respeito ao que eacute honesto (honroso) o deliberativo ao que eacute

conveniente (uacutetil) e o judicial ao que eacute justo todos satildeo em certo ponto

auxiliados uns pelos outros uma vez que no elogio satildeo consideradas a justiccedila

e a oportunidade e nas deliberaccedilotildees a honra e raramente encontraraacutes uma

peccedila processual judicial na qual natildeo ocorra em alguma parte algo do que

mencionei acima (Ibid III 4 12-16)

Para Quintiliano os trecircs gecircneros natildeo satildeo categorias estanques completamente

separadas mas um auxilia o outro na medida em que compartilham elementos e recursos de

argumentaccedilatildeo como eacute o caso da utilidade da justiccedila e da honra atribuiacuteda ao ato ou agrave pessoa

de um determinado personagem que se ataca ou defende em uma causa Ao gecircnero epidiacutetico

embora esteja inserido na tradicional triparticcedilatildeo geneacuterica estaacute reservado ldquoum papel residual

33

na organizaccedilatildeo do sistemardquo (Schwartz 2004 p 147) Quanto ao lugar do demonstrativo

trata-se de um dos assuntos mais controversos da retoacuterica antiga mas prevalece que estaacute

inserido como lugares comuns dentro dos demais gecircneros de modo que caso fosse assumida

a definiccedilatildeo a partir de uma orientaccedilatildeo discursiva (laudare ou vituperare) seria loacutegico que

tambeacutem fossem acrescentados outros gecircneros segundo este criteacuterio como a repreensatildeo

(obiurgatio) a exortaccedilatildeo (cohortatio) a consolaccedilatildeo (consolatio) entre outros (Ciacutecero Sobre

o Orador II 47 50) Quintiliano (Ibid III 4 9-14) antepotildee uma caracteriacutestica do gecircnero

epidiacutetico em relaccedilatildeo aos gecircneros deliberativo e forense O primeiro visa ao deleite e natildeo exige

de seus ouvintes a tomada de uma decisatildeo como o realizar ou natildeo um ato ou estabelecer a

culpabilidade ou a inocecircncia em um caso mas sim o assentimento O demonstrativo visa a

deleitar a fim de persuadir Segundo Schwartz (2004 p 149) ldquoa caracteriacutestica universalmente

aceita do gecircnero [eacute] o caraacuteter passivo do puacuteblico que soacute conta como apreciador esteacutetico dos

discursosrdquo

Eacute de Quintiliano por fim a referecircncia teoacuterica escrita em latim mais antiga da figura

prosopopeia aplicada ao gecircnero declamaccedilatildeo para ele os discursos suasoacuterios que envolvem a

prosopopeia satildeo ldquoos mais difiacuteceis de pronunciarrdquo (Ibid II 1 2) Segundo Van Mal-Maeder

(2007 p 53) uma vez que a principal finalidade da caracterizaccedilatildeo das personagens era ldquode

despertar a simpatia ou ao contraacuterio de suscitar a indignaccedilatildeo elas tecircm uma capacidade

ilustrativa que os declamadores se compraziam em usar na demonstraccedilatildeordquo Autores como

Clark (1957 p 218) e Bonner (1949 p 285) identificaram essa figura de linguagem que

tambeacutem eram progymnaacutesmata (Heacutelio Teatildeo Progymnaacutesmata 60) com uma caracteriacutestica

essencial da declamaccedilatildeo conforme acima citamos (Ibid III 8 49)

Segundo Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco I 3) os jovens por carecerem de experiecircncia

de vida natildeo eram aptos agrave poliacutetica Justamente em razatildeo deste particular Clark (1957 p 218)

observa que os disciacutepulos eram exercitados em declamaccedilotildees de temas histoacuterico-mitoloacutegicos

fictiacutecios e que deveriam simular um diaacutelogo em proximidade com personagens importantes da

histoacuteria e da mitologia greco-romana tais como fatos biograacuteficos de Sula Soacutecrates

Alexandre Ceacutesar ou Ciacutecero (Mendelson 1994 p 94) Note-se que a utilizaccedilatildeo de temas

mitoloacutegicos e histoacutericos natildeo tem a finalidade de distinguir entre o caraacuteter histoacuterico e

mitoloacutegico mas sim simular adequadamente o discurso segundo o estereoacutetipo corrente

formado a respeito dessas personagens Desse modo os estudantes eram estimulados a

34

compor prosopopeias no sentido em que uma personagem ausente geralmente inspirada na

histoacuteria ou na mitologia greco-romana toma a palavra para fazer um discurso Shenk (1982

p 116-118) tambeacutem observa a ocorrecircncia relevante do uso da prosopopeia nas declamaccedilotildees

deliberativas ou suasoriae ldquomuitas controveacutersias assim como todas as suasoacuterias foram

compostas como prosopopeias nas escolas de declamaccedilatildeordquo Segundo Winterbottom (1974 p

52) estas no sentido de um discurso do personagem simulado seriam uma espeacutecie de

suasoacuteria Dessa forma averigua como no gecircnero declamatoacuterio deliberativo ou suasoacuterio a

prosopopeia era um elemento essencial da declamaccedilatildeo Isso ocorre talvez devido ao poder

persuasivo dessa figura Quintiliano identifica a prosopopeia das causas fictiacutecias com os

diaacutelogos tatildeo utilizados pelos autores greco-romanos em temas filosoacuteficos

Entre aquelas coisas que satildeo ainda mais audaciosas e como pensa Ciacutecero que

exigem maior empenho estaacute a personificaccedilatildeo ou προζωποποιΐα Este recurso

fornece agrave oratoacuteria maravilhosa variedade e animaccedilatildeo Por esse meio exibimos

os pensamentos mais iacutentimos dos nossos adversaacuterios como se estivessem

falando com eles mesmos (mas ela soacute convenceraacute se os representarmos no que

eacute verossiacutemil presumir que ocorra em suas mentes) ou ainda sem sacrifiacutecio de

credibilidade pode introduzir conversas entre noacutes e os outros ou de outras

pessoas entre si e colocar palavras de conselho reprovaccedilatildeo reclamaccedilatildeo

elogio ou pena na boca de pessoas apropriadas ademais por meio destas

prosopopeias eacute possiacutevel trazer dos ceacuteus os deuses evocar a morte e dar vozes

a cidades e Estados Haacute autores que datildeo o nome de prosopopeia soacute agravequelas em

que haacute ficccedilatildeo de personagens e de discursos Quanto agraves outras em que haacute

homens a falar datildeo-lhe o nome de diaacutelogos preferindo o termo grego ao

latino utilizado por muitos que quer dizer conversaccedilatildeo (sermocinatio) Eu

poreacutem seguindo o uso dei o mesmo nome a uma coisa e a outra pois natildeo eacute

possiacutevel imaginar locuccedilotildees sem imaginar as pessoas que falam (Ibid IX 2

29-32)

Dessa forma segundo o argumento de Quintiliano os limites entre a declamaccedilatildeo

suasoacuteria ou epidiacutetica natildeo estariam definidos de modo suficiente em razatildeo da ocorrecircncia de

personagens com discursos diretos cujo conteuacutedo e estilo estatildeo adequados com o ethos de

cada personagem Natildeo se poderia entatildeo falar de declamaccedilatildeo latina epidiacutetica mas de

contextos epidiacuteticos

Por outro lado para Mendelson (1994 94) Quintiliano recomendava que a actio

considerasse natildeo somente o caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava mas tambeacutem aquele de seu

auditoacuterio como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade especificidade partido e

acima de tudo seu caraacuteter moral (Ibid III 8 37-38) Quintiliano o exemplifica com as

35

Catilinaacuterias na qual Ciacutecero daacute voz agrave Paacutetria e agrave Repuacuteblica (Catilinaacuterias 718 11 27) entes

figurados seres abstratos que tambeacutem tomam a voz na declamaccedilatildeo Embora Quintiliano

apenas pareccedila apresentar a prosopopeia como um fator de dificuldade e por consequecircncia

algo que atribui maior meacuterito para aquele que soubesse adaptar de modo adequado os

caracteres das personagens evocadas agrave temaacutetica em causa e aos gostos do auditoacuterio parece-

nos ponderado afirmar que ela eacute uma caracteriacutestica essencial da declamaccedilatildeo suasoacuteria pois

adaptar a figura fictiacutecia com o tema e a assembleia seria a finalidade mais especiacutefica do

exerciacutecio declamatoacuterio (Bonner 1949 p 285) Parece ser incoerente pensar em uma

declamaccedilatildeo sem a prosopopeia ou mesmo sem uma personificaccedilatildeo

15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento

Segundo Mack (2004 p 261) ldquoo renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser

caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo A recuperaccedilatildeo pode ser

entendida entre outros sentidos como a retomada de um corpus de textos greco-romanos

antigos muitos desaparecidos e desconhecidos pelos autores cristatildeos medievais e que

constituem basicamente o corpo de escritos com os quais ainda hoje se toma contato com a

Antiguidade greco-romana A adiccedilatildeo teria sido o acreacutescimo de novos recursos literaacuterios

oriundos do acuacutemulo cultural ao longo dos seacuteculos Trata-se de uma espeacutecie de simbiose entre

a cultura greco-romana e a cristatilde com seus diversos contatos com o oriente A renovaccedilatildeo seria

justamente esse adaptar-se aos novos tempos agraves novas aptidotildees e sensibilidades artiacutesticas

com a conformaccedilatildeo de um movimento cultural ampliacutessimo capaz de penetrar em

praticamente todas as artes e ciecircncias o Renascimento

Como se verificaraacute na recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo enquanto gecircnero literaacuterio e

pedagoacutegico faz-se necessaacuterio pontuar que o Renascimento surge basicamente a partir de dois

fenocircmenos de iacutendole literaacuteria primeiro com a recuperaccedilatildeo de textos antigos que natildeo tinham

sido conhecidos ou difundidos ao longo da chamada Idade Meacutedia e em segundo lugar com o

surgimento da imprensa que permitiu a difusatildeo desses textos nos ciacuterculos letrados em escala

ateacute entatildeo impensaacutevel (Sartorelli 2009 p 3) Para Murphy (2003 p 227) Se de um lado

havia o acreacutescimo de fontes agravequelas chamadas ldquocristatildesrdquo verifica-se uma mudanccedila de visatildeo de

mundo que natildeo tratava das coisas segundo uma visatildeo teocecircntrica mas que colocava o

homem no centro de tudo

36

O Renascimento conteve duas tendecircncias histoacutericas o Humanismo e o cientificismo

aspectos marcantes do periacuteodo histoacuterico que passava a chamar-se ldquomodernordquo O primeiro

movimento atribuiacutedo a uma classe de pessoas denominadas como humanistas consolidou-se

na peniacutensula itaacutelica e caracterizava-se por um conjunto de ideais ou princiacutepios que

valorizavam a razatildeo e as accedilotildees humanas segundo determinados valores morais como o

respeito a justiccedila a honra o amor a liberdade entre outros O movimento se se afirmava em

contraposiccedilatildeo ao ldquoteocentrismordquo da ldquoIdade das Trevasrdquo atribuiacuteda ao medievo em uma visatildeo

que embora se assemelhe ao iluminismo eacute contrariada pela historiografia contemporacircnea

Como decorrecircncia desse antropocentrismo o desenvolvimento das artes tambeacutem foi uma

caracteriacutestica desse movimento que no acircmbito das Letras a partir da recuperaccedilatildeo dos gecircneros

antigos se pautou no interesse crescente pelos princiacutepios da antiga retoacuterica entendida como

um conjunto de princiacutepios explicitados pelos autores gregos e latinos especialmente da

Antiguidade que abordavam a arte da eloquecircncia ou da argumentaccedilatildeo tendo em vista a

persuasatildeo e o deleite de um auditoacuterio

Dois dados apresentados por Murphy (2003 p 231) exemplificam esse interesse

crescente em relaccedilatildeo agrave Retoacuterica entre a ediccedilatildeo da primeira obra de Ciacutecero (o Sobre o

Orador) datada de 1465 e o ano de 1500 contabilizaram-se 332 publicaccedilotildees impressas ao

passo que houve apenas 154 ediccedilotildees das obras de Aristoacuteteles cujo predomiacutenio de temaacuteticas

filosoacuteficas eacute notoacuterio (Murphy 2003 p 231) Tendo em conta que muitas das obras

ciceronianas abordavam principalmente temas tiacutepicos da retoacuterica e que ao final de 1485 estas

jaacute tinham sido editadas e impressas (Revard Raumldle e Di Cesare 1988 p 522) sua figura

cresceu em importacircncia de modo que muitos elementos retoacutericos geralmente atribuiacutedos a

outros autores antigos foram recebidos pelos humanistas por intermeacutedio da leitura de seus

escritos (Sartorelli 2015 p 7)

Por outro lado a invenccedilatildeo da imprensa fez necessaacuteria a entrada de um nuacutemero ainda

maior de leigos para os trabalhos tipograacuteficos

Uma das principais consequecircncias da invenccedilatildeo da prensa tipograacutefica foi

ampliar as oportunidades de carreira abertas aos letrados Alguns deles se

tornaram letrados-impressores como Aldo Manutius em Veneza Outros

trabalhavam para impressores por exemplo corrigindo provas fazendo

iacutendices traduzindo ou mesmo escrevendo por encomenda de editores-

impressores Ficou mais faacutecil embora ainda fosse difiacutecil seguir a carreira de

ldquohomem de letrasrdquo (Burke 2003 p 28-29)

37

Nem mesmo apoacutes as controveacutersias teoloacutegicas acentuadas pela Reforma Protestante

que teve seu marco inicial com as teses de Lutero afixadas nas portas da catedral de

Winterberg em 1517 ndash mesmo ano de publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo ndash e a crescente

oposiccedilatildeo entre os vaacuterios credos cristatildeos as trocas epistolares se restringiram entre as

confissotildees religiosas (Vasoli 2008 p 6 Hernaacutendez Guerrero e Garciacutea Tejera 1994 p 102-

105) Sartorelli (2009 p 4) observa que este ciacuterculo de literatos manteve o latim como liacutengua

veicular utilizando-a como uma liacutengua internacional de comunicaccedilatildeo

eacute preciso ter em conta que esse movimento foi em uma medida de que

talvez natildeo nos apercebamos hoje um movimento essencialmente latino ou

seja em liacutengua latina Humanistas mesmo os helenistas escreviam sobretudo

em latim e foi em latim que Pico della Mirandola por exemplo divulgou

Platatildeo Assim sendo quando falamos aqui em imitatio elocutio etc estamos

sempre falando da liacutengua latina

Em contraste com os seacuteculos anteriores nos quais as letras estavam majoritariamente

restritas ao conhecimento dos cleacuterigos e embora o volgarizzamento com a literatura

ldquoficcionalrdquo como a de Dante ou Bocaccio entre outros escritos natildeo estritamente considerados

filosoacuteficos e teoloacutegicos essa nova classe de intelectuais chamados na Itaacutelia de humanistae

situava sua atenccedilatildeo em questotildees linguiacutesticas poeacuteticas e estiliacutesticas ao privilegiar a arte a

beleza e a persuasatildeo do discurso mais do que a abstraccedilatildeo e a pretensa precisatildeo e uso dos

termos muitas vezes repetitivos do texto filosoacutefico (Murphy 2003 p 241) Contudo a

maioria dos autores mais eminentes eram membros de ordens religiosas muito embora os

leigos ocupassem um espaccedilo cada vez maior nas escolas ou nas universidades atuando como

professores privados ou ainda como dependentes da liberalidade de patronos ou mecenas

especialmente durante o Renascimento (Vasoli 2008 p 6) Esses intelectuais trocavam

correspondecircncias e estabeleciam ciacuterculos de relaccedilotildees ou centros eruditos com a finalidade de

compartilhamento das suas atividades literaacuterias que posteriormente passaram a chamar-se de

academias e se espalharam por toda a Europa Ocidental a ponto de no final do seacuteculo XV

para designar essa corrente cunhou-se a expressatildeo Repuacuteblica das Letras (Moya Bedoya

2008 p 192)

A inserccedilatildeo de outros autores fontes para a inventio ndash aleacutem da Biacuteblia e dos Padres da

Igreja os autores antigos ndash fez com que a arte de ldquoencontrarrdquo argumentos a favor de uma

causa fosse praticada com a leitura de textos de autoridade largamente difundidos pela

imprensa e neste sentido satildeo os autores greco-latinos antigos que erasm privilegiados Estes

38

deveriam ser lidos para deles se extrair por meio do sistema de lugares e toacutepicos os criteacuterios

que podem ajudar a argumentar com um discurso agradaacutevel harmonioso e realmente

persuasivo tal como predicava a retoacuterica Assim o sistema de lugares (loci) se converte em

um meio primordial para ler e ao mesmo tempo para produzir o discurso (Mack 1993 p

130)

Aleacutem da invenccedilatildeo havia o fenocircmeno da imitaccedilatildeo (imitatio) dos antigos modelos

greco-romanos a qual contemplava principalmente preceitos de estilo ou seja as

habilidades verificadas em determinado texto a fim de efetivar a finalidade para a qual foi

escrito Estas habilidades seriam adquiridas atraveacutes de exerciacutecios baseados em textos latinos e

gregos antigos (Cobett e Connors 1999 p 411) A polecircmica em torno da imitaccedilatildeo procurava

discutir se esta teacutecnica se restringia somente ao reproduzir foacutermulas frasais opccedilotildees lexicais e

lugares comuns proacuteprios dos antigos modelos greco-romanos nos escritos dos humanistas As

discussotildees a respeito ocuparam um lugar central ao longo do final do seacuteculo XIV e no iniacutecio

do seacuteculo XV Os autores antigos eram considerados e inclusive venerados como os

possuidores do latim por excelecircncia e deveriam servir de modelo para que os humanistas

praticassem o ldquoverdadeirordquo latim (Sloane 2004 p 112) muito diverso do latim praticado

pelos autores medievais mais ocupados em questotildees dialeacuteticas filosoacuteficas do que com as

questotildees de estilo

Embora houvesse um certo consenso geral acerca da imitaccedilatildeo dos antigos no

Renascimento esse fenocircmeno natildeo foi de modo algum paciacutefico ao considerar as

particularidades desta imitaccedilatildeo Uma das querelas mais encarniccediladas foi o debate em torno do

ciceronianismo Os intelectuais europeus antagonizavam-se em uma tendecircncia de imitaccedilatildeo

estrita agraves obras de Ciacutecero e outra forma mais ecleacutetica que tambeacutem consideravam outros

autores antigos (Sartorelli 2015 p 13) Erasmo foi protagonista nessa polecircmica sobretudo

ao publicar o seu ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo no ano de 15286 Nesse escrito o holandecircs

antagonizou a imitaccedilatildeo estrita e exclusiva de Ciacutecero realizada por autores que se

denominavam como ciceronianos e que visavam imitar com exclusividade o leacutexico a

meacutetrica as declinaccedilotildees e as foacutermulas presentes nos textos ciceronianos a despeito da

qualidade dos demais latinos antigos e do contexto histoacuterico e cultural do seacuteculo XV Os

6 Recentemente traduzido diretamente do latim para o portuguecircs pela orientadora do presente estudo (Sartorelli

2014 e 2015)

39

ciceronianos antagonizavam com os humanistas ldquoecleacuteticosrdquo que defendiam a imitaccedilatildeo de

outros autores e que embora reconhecessem o valor das obras ciceronianas tambeacutem

procuravam imitar os demais reconhecendo inclusive a necessidade de incorporar novas

palavras e foacutermulas ao leacutexico latino Erasmo defendeu publicamente uma imitaccedilatildeo ecleacutetica ou

composta isto eacute que considerasse os autores antigos em peacute de igualdade e inclusive definiu a

imitaccedilatildeo a partir do ecletismo necessaacuterio para atender agraves diferenccedilas entre oradores por meio

da locuccedilatildeo de uma das personagens do ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo

Eu abraccedilo a imitaccedilatildeo mas aquela que ajudar a natureza natildeo a que a violar a

que corrigir os dotes naturais natildeo a que os destruir aprovo a imitaccedilatildeo mas a

que conforme o exemplo estaacute de acordo com o teu talento ou que ao menos

natildeo te opotildees a ele para que natildeo pareccedila um theomachein contra os gigantes

De novo aprovo a imitaccedilatildeo mas natildeo a dedicada a uma soacute prescriccedilatildeo de cujos

traccedilos natildeo se atreve a separar-se mas aquela que de todos os autores ou ao

menos dos mais importantes toma aquele que mais se destaca e o que mais

conveacutem a teu proacuteprio talento colhendo e natildeo acrescentando imediatamente ao

discurso tudo de belo que se lhe apresente mas fazendo-o passar a teu proacuteprio

coraccedilatildeo como se fosse ao estocircmago para quem uma vez transfundido agraves

veias pareccedila nascido do teu proacuteprio talento e natildeo mendigado de outra parte

Inspiraraacute assim o vigor e a iacutendole de tua mente e de tua natureza para que

quem lecirc natildeo reconheccedila o emblema tirado de Ciacutecero mas sim um feto nascido

de teu ceacuterebro da mesma forma que dizem Palas saiu do ceacuterebro de Juacutepiter

refletindo a imagem viva de seu pai e teu discurso natildeo pareccedila a ningueacutem um

mosaico mas a imagem viva de teu peito ou um rio emanado da fonte do teu

coraccedilatildeo Mas seja tua primeira e principal preocupaccedilatildeo a de conhecer a

mateacuteria que te propotildees tratar Ela prover-se-aacute copiosidade oratoacuteria prover-te-aacute

afetos verdadeiros e genuiacutenos Assim enfim dar-se-aacute que teu discurso viva

respire aja comova e arrebate e reflita todo teu ser (Erasmo Diaacutelogo

Ciceroniano Traduccedilatildeo por Sartorelli 2015 p 16)

Veremos como a ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem se apresenta como um discurso que recebe

e imita expressotildees lugares comuns e metaacuteforas correntes em autores antigos natildeo se limitando

a Ciacutecero mas colocando em praacutetica esta imitaccedilatildeo ecleacutetica defendida por Erasmo

16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos

Conveacutem considerar as mais importantes ediccedilotildees realizadas pelos humanistas

diretamente relacionadas ao gecircnero declamaccedilatildeo Por outro lado dado o nuacutemero inabordaacutevel

de ediccedilotildees obras e tiacutetulos do periacuteodo a ponto de Murphy (1983 p 20-36) enumerar quase

dois mil nomes que estatildeo contidos dentro do epiacuteteto de humanista ou renascentista deve-se

considerar a dificuldade de catalogar a praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo

40

Ao selecionar portanto algumas declamaccedilotildees entre os humanistas elegemos aquelas

que (grupo 1) os estudiosos de Erasmo consideram que foram conhecidas por ele e portanto

o teriam influenciado de modo direto e inconteste ou aquelas que foram inequivocamente

influenciadas por ele (grupo 2) Aleacutem desse criteacuterio deve-se considerar evidentemente certo

prestiacutegio desses autores em relaccedilatildeo a outros menos conhecidos a ponto de serem mais

habitualmente levados em conta pela academia7

A declamaccedilatildeo apoacutes seu esquecimento quase completo durante o periacuteodo bizantino

(Kennedy 1980 p 166) e apoacutes uma tiacutemida praacutetica das controveacutersias por alguns eruditos do

seacuteculo XI entre os quais destaca-se Anselmo de Cantuaacuteria (Kennedy 1980 p 185) passou a

ser praticada especialmente pelos humanistas do norte da Itaacutelia muito em razatildeo da

redescoberta dos mencionados manuscritos de Secircneca Quintiliano e Ciacutecero A retomada da

praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista tem seu iniacutecio delimitado na Itaacutelia do seacuteculo

XIV e coincide segundo o estudo de Giazzi (2008 p 315-317) com a existecircncia de

manuscritos de declamaccedilotildees sob os moldes antigos realizados e encontrados em Milatildeo e

anexados ao exempla epistolarum de Visconti datados nos anos da virada do seacuteculo XIV para

o XV Segundo Boulet (2013 p 9)

Um grande nuacutemero destas declamaccedilotildees foi pronunciado em situaccedilatildeo de

aprendizagem em contexto escolar como indica o imponente trabalho

pioneiro realizado por Van der Poel (1987) sob a orientaccedilatildeo de Jean-Claude

Margolin Os textos destas declamaccedilotildees pedagoacutegicas foram perdidos ou satildeo

lacunares ou de um interesse mediacuteocre

Mas estes autores natildeo gozavam de vaacuterios escritos fundamentais para a teorizaccedilatildeo e

exemplificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo antiga por exemplo a redescoberta de um dos manuscritos

integrais da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo no mosteiro suiacuteccedilo de Saint Gall pelo humanista italiano

Poggio Braccioloni deu-se apenas em setembro de 1416 (Enos 1990 p 177 Goacutemez

Cervantes 2007 p 424) Este manuscrito ateacute entatildeo soacute era conhecido parcialmente por

intermeacutedio do texto chamado de mutilatus Jaacute as declamaccedilotildees mais antigas consideradas como

pertencentes ao humanismo satildeo as quatro declamaccedilotildees de Coluccio Salutati (1331-1406)

intituladas em latim ldquoDeclamaccedilatildeo de Lucreacuteciardquo ldquoDeclamaccedilatildeo de Priacuteamordquo ldquoQuestatildeo contra

os decemvirirdquo e ldquoSobre o reinordquo (Enos 1990 p 177) A redescoberta do diaacutelogo ldquoSobre o

7 A segunda ediccedilatildeo do cataacutelogo de Murphy e Green apresentou 1717 autores 3842 tiacutetulos de retoacuterica em 12325

impressotildees publicadas em 310 cidades por 3340 editores da Finlacircndia ao Meacutexico (Green e Murphy 2006 p

IX)

41

oradorrdquo por Landriani veio alguns anos depois em 1421 (Strayer 1989 p 24) Data do

mesmo periacuteodo ademais o acesso agraves ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca pelos humanistas uma vez

que alguns excertos teriam sido publicados em Naacutepoles em 1475 e o texto integral que

incluiu as ldquoSuasoacuteriasrdquo foi editado em Veneza em 1490 (Grafton Most e Settis 2010 p

872) O proacuteprio Erasmo foi o responsaacutevel por duas ediccedilotildees da obra de Secircneca datadas de

1515 e 1529 sendo que a primeira ediccedilatildeo eacute anterior ao ano de redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

(1516) (Grafton Most e Settis 2010 p 872) Desta forma o conhecimento de Erasmo acerca

da declamaccedilatildeo natildeo se restringia mais ao manual da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e ao ldquoSobre a

invenccedilatildeordquo como nos tempos de Salutati mas tambeacutem passaria a contar com a influecircncia dos

demais textos ciceronianos assim como outros escritos retoacutericos de Secircneca o Velho

Isoacutecrates Platatildeo entre outros que ou natildeo eram conhecidos pelos autores cristatildeos no iniacutecio do

seacuteculo XV ou natildeo eram largamente valorizados ou difundidos antes da entrada em cena da

imprensa que sem duacutevida potencializou a difusatildeo dos escritos dos autores antigos da Greacutecia

e de Roma (Murphy 2005 p 3)

A redescoberta das declamaccedilotildees e dos textos que teorizam sobre ela aleacutem das

traduccedilotildees de Erasmo de algumas delas escritas em grego especialmente as de Libacircnio e

Luciano certamente influenciaram a praacutetica desse gecircnero pelo holandecircs uma vez que a

declamaccedilatildeo preconizada na retoacuterica ciceroniana na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e no ldquoSobre a

invenccedilatildeordquo que eram consideradas durante os seacuteculos como os escritos retoacutericos por

antonomaacutesia (Kennedy 1980 p 195) Aleacutem dessas obras Knott (1988 p 8-9) percebe a

influecircncia no ldquoSobre a abundacircnciardquo (De copia) de parte do livro I e d o II livro da ldquoInstituiccedilatildeo

Oratoacuteriardquo de Quintiliano justamente as partes que trazem vaacuterias referecircncias teoacutericas sobre o

gecircnero aleacutem das proacuteprias declamaccedilotildees atribuiacutedas a ele talvez atraveacutes da leitura de Valla

Aleacutem da produccedilatildeo de diversos manuais em que constava a praacutetica da declamaccedilatildeo em

ambiente escolar com finalidade explicitamente pedagoacutegica Van der Poel (1987 p 984)

salienta a produccedilatildeo desse gecircnero exterior ao ambiente e ao processo educacional em forma

escrita e literaacuteria tal como praticada por vaacuterios autores entre os quais se destaca a atividade

do ldquopriacutencipe dos humanistasrdquo Em seu ldquoPlano de estudosrdquo (De ratione Studii) por exemplo

Erasmo citava algumas obras fundamentais para a formaccedilatildeo de um humanista na qual se nota

a presenccedila expliacutecita das declamaccedilotildees traduzidas por ele dos temas proacuteprios a tais exerciacutecios e

dos escritos que tratavam sobre a declamaccedilatildeo como os de Secircneca (Kennedy 1980 p 196)

42

Apoacutes ser introduzida no norte da Europa a declamaccedilatildeo foi produzida pelos autores

renascentistas exclusivamente na forma escrita (Murphy 2012 p 69) com entusiasmo natildeo

menor do que a recepccedilatildeo do puacuteblico conforme se denota pelo alcance editorial que

obtiveram pois algumas das mais relevantes obras literaacuterias do Renascimento foram escritas

no formato declamatoacuterio tais como o ldquoElogio da Loucurardquo (1511) de Erasmo e as

declamaccedilotildees de Thomas More A declamaccedilatildeo chamada ldquoliteraacuteriardquo entendida aquela que era

exclusivamente escrita e visava o deleite dos eruditos e natildeo somente a escolar-pedagoacutegica

estava por assim dizer ldquona modardquo entre os autores do seacuteculo XVI

17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas

Entre os autores do Renascimento Van der Poel (2007 p 128-129) e Tunberg (2006

p 9) destacam as seguintes obras algumas das quais anteriores outras contemporacircneas agraves de

Erasmo e outras por fim posteriores agrave Querela como exemplos de declamaccedilotildees

paradigmaacuteticas segundo os preceitos herdados da retoacuterica antiga Apresentamos uma siacutentese

dessas declamaccedilotildees ressaltando os elementos particulares que satildeo pertinentes para uma

comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo antiga consideradas no primeiro capiacutetulo e

a ldquoQueixa da Pazrdquo objeto principal do presente estudo Dentre estas se destacam a

declamaccedilatildeo de Valla (Constatini donatione) e a de More que foram certamente conhecidas

por Erasmo dada a admiraccedilatildeo de Erasmo pelo primeiro e sua amizade pessoal para com o

segundo

171 Lourenccedilo Valla

Em uma de suas epiacutestolas a Cornelis Gerard (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31)

Erasmo afirma que a ldquoElegacircncias da liacutengua latinardquo (Elegantiae linguae latinae) escrito por

Valla o influenciou significativamente Para Gianotti (2008 p 65) os autores humanistas

tomavam o italiano como guia ldquona escolha lexical e estiliacutesticardquo Nessa mesma epiacutestola apoacutes

enumerar Ciacutecero Quintiliano Saluacutestio e Terecircncio como autoridades no tocante agrave prosa

Erasmo tambeacutem admitia a superioridade de Valla

Com efeito quanto agraves observaccedilotildees das elegacircncias em ningueacutem eu tenho tanta

confianccedila quanto em Lourenccedilo Valla pois natildeo temos nenhum outro a atribuir

tanta pertinaacutecia de engenho e tenacidade de memoacuteria Natildeo ousarei pois em

qualquer mateacuteria contrariar o que nas letras aconselhou

43

Conforme explicam Bentley (1977 p 11) e Weiler (1997 p 9) a influecircncia de Valla

sobre Erasmo tem um papel especial em sua formaccedilatildeo intelectual pois jaacute em 1489 o

holandecircs o louvava por restaurar a eloquecircncia em forma escrita e em latim Como veremos o

italiano tambeacutem foi um autor profiacutecuo de declamaccedilotildees que foram conhecidas e emuladas por

Erasmo Bentley (1977 p 28) inclusive afirma a insistecircncia de Valla na submissatildeo da

filosofia agrave retoacuterica e agrave filologia sendo que o holandecircs o seguiu pelo mesmo caminho ldquocom o

objetivo de renovar a moral e a religiosidade da cristandaderdquo (Bentley 1977 p 28) de um

modo muito semelhante e que seraacute explorado ao longo da presente dissertaccedilatildeo nas

declamaccedilotildees erasmianas

Entre as declamaccedilotildees de Valla conta-se a ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo (De falso credita

et ementita Constantini donatione) escrita em 1440 e publicada em 1517 Nesta declamaccedilatildeo

muito provavelmente conhecida por Erasmo o autor com argumentaccedilatildeo histoacuterica e

filoloacutegica demonstrou a falsidade da Doaccedilatildeo de Constantino um documento apoacutecrifo com o

qual a igreja justifica seu poder temporal Constantino e o Papa satildeo as personagens histoacutericas

que atuam no discurso ficcional tal como ocorria em diversas declamaccedilotildees latinas

De fato a palavra declamaccedilatildeo natildeo teria sido inserida por Valla no tiacutetulo mas pelo

editor Uacuterico Von Huten de forma que o autor parece natildeo ter tido a intenccedilatildeo clara de escrever

uma ldquodeclamaccedilatildeordquo (Ginzburg 2004 p xv) pois se pode dizer que a ldquoDoaccedilatildeo de

Constantinordquo se assemelha ao gecircnero diaacutelogo com tema histoacuterico natildeo filosoacutefico Esta

semelhanccedila remonta ao jaacute citado texto de Quintiliano jaacute considerado no capiacutetulo primeiro

que dirimia uma sinoniacutemia corrente entre os a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo devido ao caraacuteter

fictiacutecio e a presenccedila comum de personificaccedilotildees Aleacutem disso segundo o argumento de

Bowersock (2008 p ix) a declamaccedilatildeo de Valla natildeo poderia ser considerada uma declamaccedilatildeo

por natildeo apresentar os dois lados da questatildeo Como vimos no entanto nem todas as

declamaccedilotildees antigas tinham esse formato Ao comparar-se a ldquoQueixa da Pazrdquo com a ldquoDoaccedilatildeo

de Constantinordquo verificou-se que a primeira ao contraacuterio da segunda apresenta uma

descriccedilatildeo narrativa no exordium e apresenta em algumas partes caracteres semelhantes da

sermocinatio conforme consideramos no capiacutetulo primeiro a fim de desenvolver digressotildees e

amplificaccedilotildees de caraacuteter filosoacutefico ou teoloacutegico Ademais segundo Colemann e Perry (2001

p 3-4) tal como a Querela a ldquodeclamaccedilatildeordquo de Valla tem uma finalidade poliacutetica ao influir na

disputa territorial entre o papa Eugecircnio IV e o rei Afonso de Aragatildeo Siciacutelia e Naacutepoles para o

44

qual Valla trabalhava como conselheiro (Bowersock 2008 p vii) Deve-se salientar por fim

que Erasmo concede a voz agrave Paz ao passo o proacuteprio Valla toma a voz do discurso

172 Thomas More

A declamaccedilatildeo ldquoTiranicidardquo (Declamatione qua Luciani Tyrannicidae respondetur) foi

escrita por Thomas More (1478-1535) provavelmente em 1506 em emulaccedilatildeo a uma

declamaccedilatildeo erasmiana que tambeacutem refutava os argumentos do ldquoTiranicidardquo de Luciano

(Rummel 1985 p 50) Como eacute caracteriacutestico do humanismo a obra entra pois em diaacutelogo

extemporacircneo e fictiacutecio com uma ceacutelebre declamaccedilatildeo antiga (Baumann 1985 p 113) Na

obra antiga Luciano defende a causa do tiranicida em uma controveacutersia com argumentos do

gecircnero forense ou judicial (Thompson 1974 xviii) More que tambeacutem traduziu para o latim

a declamaccedilatildeo de Luciano (Logan e Adams 2003 xv) tal como o proacuteprio Erasmo (Chomarat

1981) natildeo quis apenas respondecirc-la como tambeacutem Erasmo o fizera mas expocircs suas proacuteprias

ideias de modo que os dois textos se relacionam formalmente e divergem em alguns pontos

de vista (Fox 1983 p 44) O autor inglecircs defende o argumento de que o tirano seraacute aceitaacutevel

se permitir que a cidade recupere a paz e a ordem de Direito Assim enquanto Luciano

satirizava com ironia a causa do tiranicida More a vitupera seguindo a praacutetica da declamaccedilatildeo

que selecionava apenas um lado da contenda

Erasmo relata a amizade com More e a praacutetica da declamaccedilatildeo realizada juntamente

com o autor inglecircs

Proponho-me agora a falar sobre o assunto daqueles estudos que foram o

principal meio de unir-nos a More e a mim Na sua primeira juventude seus

principais exerciacutecios literaacuterios foram em verso Depois disso More lutou para

tornar a sua prosa mais suave praticando todo tipo de escrita para formar um

estilo o caraacuteter do qual seraacute desnecessaacuterio lembrar especialmente a ti que

estaacute sempre com os seus livros nas matildeos Tinha o maior prazer em participar

de declamaccedilotildees escolhendo sempre algum tema polecircmico por envolver um

exerciacutecio mental importante Enquanto ainda jovem tentou redigir um

diaacutelogo em que desenvolvia a defesa da comunidade de Platatildeo ateacute mesmo na

questatildeo do tratamento das esposas Escreveu uma resposta ao Tiranicida de

Luciano em cuja argumentaccedilatildeo quis ter-me como rival para testar sua

proficiecircncia nesse tipo de escrita More publicou sua Utopia para mostrar o

que provoca o mal na vida das comunidades tendo em vista particularmente a

constituiccedilatildeo inglesa que conhece e entende muito bem Escreveu o Livro II

aos poucos e depois quando viu que um outro era necessaacuterio acrescentou o

Livro I de improviso daiacute uma certa desigualdade que se nota no estilo

(Clarissimo Equiti Ulricho Hutteno Epistolae Allen [ed] Vol 4 1922

Epiacutestola 999 traduccedilatildeo de Ana de Melo Franco)

45

A partir deste texto erasmiano distingue-se a praacutetica da declamaccedilatildeo renascentista

como um exerciacutecio escrito em prosa e um meio de obtenccedilatildeo de um estilo proacuteprio Verifica-se

ademais neste trecho conforme consideramos anteriormente um exemplo tiacutepico das relaccedilotildees

entre os humanistas e o compartilhamento de prosas em gecircneros recebidos da Antiguidade

entre os quais a declamaccedilatildeo com seu espaccedilo significativo praticado simultaneamente como

exerciacutecio e divertimento

Em epiacutestola a Erasmo (26 de maio de 1520) cerca de trecircs anos apoacutes a publicaccedilatildeo da

ldquoQueixa da Pazrdquo More se reporta agraves declamaccedilotildees de Luiacutes de Vives (Thomas More Corr

9335) Destaca o modo como o discurso que versava sobre temas de primeira ordem

utilizava-se do apelo agrave emoccedilatildeo a fim de que o leitor pudesse como que ldquoverrdquo e ldquosentirrdquo

aspectos do que era tratado A declamaccedilatildeo entatildeo tambeacutem eacute entendida como um modo de

expressar e transmitir sentimento em relaccedilatildeo a determinada causa situando-se como um

discurso retoacuterico que sem desprezar as dimensotildees do loacutegos e do ecircthos se dirige

especialmente ao paacutethos ao tocar as emoccedilotildees do leitor Tal troca epistolar entre More e

Erasmo denota a clareza com a qual esses autores entendiam o papeis retoacutericos do ethos e do

pathos e sua respectiva relevacircncia na declamaccedilatildeo

18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas

Van der Poel (2007 p 128-129) depois de apresentar duas formas nas quais as

declamaccedilotildees escritas eram apresentadas durante o Renascimento (ou seja as declamaccedilotildees

destinadas agrave circulaccedilatildeo em manuscrito para um ciacuterculo restrito de amigos mas ainda assim

escritas como os ldquoTiranicidasrdquo de More e Erasmo e as demais destinadas agrave publicaccedilatildeo

editorial) afirma que natildeo haacute uma distinccedilatildeo essencial entre elas mas que se pode observar

que no primeiro tipo predominam os temas histoacutericos enquanto que no segundo daacute-se uma

renovaccedilatildeo da antiga praacutetica oratoacuteria com escritos de gecircnero deliberativo

Um primeiro grupo constitui-se de declamaccedilotildees sobre temas histoacutericos da

Antiguidade ou sobre personagens ceacutelebres que acima de tudo eram vistas

como meros exerciacutecios retoacutericos mas pela escolha do tema e do tratamento

devem ser interpretadas como discussotildees dissimuladas sobre temas

contemporacircneos especialmente da natureza poliacutetica Entatildeo como alguns

discursos cerimoniais certas declamaccedilotildees podem ser categorizadas como

parcialmente ldquoclaacutessicasrdquo e parcialmente ldquomodernasrdquo Exemplos satildeo as

declamaccedilotildees sobre o tiranicida de Tomas More (1478-1535) escrita em

resposta agrave declamaccedilatildeo de Luciano em defesa do tiranicida (Tyrannicida) ou as

46

cinco declamaccedilotildees de Vives as Declamationes Syllanae (1520) na qual os

poliacuteticos romanos argumentam a favor e contra a retenccedilatildeo do poder pelo

ditador de Roma enquanto Sula apresenta seu discurso de abdicaccedilatildeo

Finalmente haacute um grupo de oraccedilotildees ou declamaccedilotildees entre a categoria de

discursos natildeo escritos para a performance mas para a publicaccedilatildeo exclusiva em

forma impressa que a meu ver pode ser considerada completamente como

ldquomodernardquo [hellip] Seus autores claramente tem a ambiccedilatildeo da praacutetica da

verdadeira retoacuterica de Ciacutecero e Quintiliano a quem atribuem um papel

importante para o orador na praacutetica do discurso puacuteblico na esfera civil [hellip]

Quando algum humanista toma a pena para escrever um discurso anunciado

explicitamente como retoacuterico (oraccedilatildeo declamaccedilatildeo elogio ou outro tipo de

denominaccedilatildeo retoacuterica) eacute provaacutevel que ele esteja apresentando sua opiniatildeo

sobre um tema que ele considera relevante para a sociedade como um todo e

apresentando seu ponto de vista com especial assentimento e convicccedilatildeo (Van

der Poel 2007 p 128-129)

Segundo o argumento de Connolly (2009 p 139) as fontes das antigas declamaccedilotildees

inclusive das gregas eram segundo o jaacute citado elenco de temas proposto por Aristoacuteteles as

causas poliacuteticas as quais discutiam a paz e a guerra a guerra civil os impostos as relaccedilotildees

internacionais e outros temas poliacuteticos todos do gecircnero deliberativo e que natildeo deixaram de

estar em voga no Renascimento Quando um reacutetor ou um declamador argumentava a favor da

paz discutiam-se alguns princiacutepios que poderiam confrontar os tiranos de todos os tempos

como a liberdade a virtude da lei e a paz (Ibid p 140) Estas faziam com que a declamaccedilatildeo

natildeo fosse antiga ou moderna mas em um sentido ainda mais amplo e menos restritivo quase

atemporal na medida em que eram valores que perpassavam vaacuterias eacutepocas histoacutericas mas

tambeacutem se mantinha em comum uma espeacutecie de tradiccedilatildeo dada a invenccedilatildeo e a imitaccedilatildeo

ambas baseadas em padrotildees estabelecidos por autores antigos

De fato tanto o locutor de um exerciacutecio declamatoacuterio nos tempos do Impeacuterio quanto

um humanista que escrevia sua ldquodeclamaccedilatildeordquo em que tocava pontos de interesse para a

sociedade tinham em vista assuntos que chamariam a atenccedilatildeo dos seus ouvintes e que se

mostrariam uacuteteis (utilitas) conforme os princiacutepios basilares do deliberativo

Nesse sentido verifica-se que agrave semelhanccedila das declamaccedilotildees romanas que inseridas

nas tiacutepicas atividades dos reacutetores foram entendidas como ofensivas ao despotismo imperial

as declamaccedilotildees renascentistas abordavam temas uacuteteis e muitas vezes polecircmicos diante das

autoridades Jaacute citamos acima a afirmaccedilatildeo de Mack (2004 p 261) segundo a qual ldquoo

renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo

adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo Se a recuperaccedilatildeo eacute evidente com a retomada da antiga declamaccedilatildeo a

adiccedilatildeo (additon) e a renovaccedilatildeo (change) datildeo-se justamente na atualizaccedilatildeo deste gecircnero em

47

relaccedilatildeo ao contexto histoacuterico social no qual estaacute inserido Esta adaptaccedilatildeo ao contexto era

exigida tanto na chamada declamaccedilatildeo que o autor denomina como ldquoclaacutessicardquo como na dita

ldquomodernardquo uma vez que a audiecircncia ou os leitores precisam ser convencidos segundo as

paixotildees que lhes satildeo sensiacuteveis conforme os argumentos que lhes satildeo verossiacutemeis e em

concordacircncia com sua compreensatildeo da moral e dos costumes A mudanccedila se alinha agrave eacutepoca

mas ela proacutepria jaacute era prevista pelos claacutessicos de modo que eacute uma das caracteriacutesticas

imprescindiacuteveis para um discurso efetivamente persuasivo

19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas

Consideramos anteriormente que a imitaccedilatildeo do gecircnero da declamaccedilatildeo nos primoacuterdios

do seacuteculo XIV entre os humanistas do norte da Itaacutelia das declamaccedilotildees de autores antigos que

escreveram em grego e latim e a redescoberta do texto completo da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria de

Quintiliano foram passos determinantes para a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo feita por Erasmo

Chomarat (1981 p 934) observa que os princiacutepios teoacutericos claacutessicos da declamaccedilatildeo

chegaram ao Renascimento por meio dos escritos desse autor romano Sobretudo com

Lourenccedilo Valla o orator era denominado como ldquoaquele que fala diante de uma tribuna ou

assembleiardquo e o rhetor ldquoeacute o professor de retoacutericardquo Jaacute o declamador eacute

aquele que estudando com o reacutetor executa uma causa fictiacutecia diante dos

alunos reunidos a fim de poder em seguida exercitar-se nas causas reais O

reacutetor que mesmo fora da escola pratica esse gecircnero seja para exercitar outras

pessoas seja para exercitar-se a si mesmo eacute denominado declamador (Valla

Elegacircncias da liacutengua latina IV 81)

Um contemporacircneo de Erasmo Henricus Cornelius Agrippa (1486-1535) que

tambeacutem produziu diversas declamaccedilotildees com temas semelhantes agraves erasmianas assim

conceitua a declamaccedilatildeo

por conseguinte a declamaccedilatildeo natildeo julga natildeo dogmatiza mas () fala por

vezes como brincadeira por vezes seriamente agraves vezes com falsidade agraves

vezes com rigor ela fala agraves vezes segundo meu proacuteprio pensamento agraves vezes

segundo o pensamento de outrem ela propotildee verdades falsidades afirmaccedilotildees

duacutebias () ela aduz a muitos argumentos sem valor (Cornelius Agrippa

Apologia adversus calumnias propter declamationem de Vanitate scientiarum

1533) (apud Chomarat 1981 p 941)

Como vimos tanto na definiccedilatildeo de Valla como na de Agripa permanecem duas

caracteriacutesticas principais da declamaccedilatildeo tal como fora entendida e praticada pelos autores

antigos especialmente Quintiliano ou seja trata-se de um exerciacutecio de elocutio e de um

48

discurso fictiacutecio Van der Poel (1997 p 128-129) comenta que a definiccedilatildeo de Agripa e dos

humanistas em geral inclusive de Erasmo era a de um discurso de uma personagem fictiacutecia

Mas devido ao fato de que a declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista natildeo tem mais a finalidade

de ser meramente um exerciacutecio escolar e eacute praticada de forma escrita Surtz (1957 p 9)

propotildee que esta seja ldquouma composiccedilatildeo escrita para o divertimento e para o prazer a fim de

exercitar o talento nativo do autor e desenvolver seu poder literaacuteriordquo

110 Conclusotildees do capiacutetulo

O presente capiacutetulo teve a finalidade de expor alguns elementos sobre a recepccedilatildeo do

gecircnero da declamaccedilatildeo entre os humanistas As declamaccedilotildees antigas se classificam de dois

modos eram privadas ou puacuteblicas (Kennedy 1980 p 103) isto eacute natildeo podem ser reduzidas

somente a exerciacutecios escolares executados para a educaccedilatildeo dos jovens oradores mas tinham

tambeacutem um caraacuteter performaacutetico uma vez que costumavam ser praticadas por adultos com a

finalidade de produzir deleite em reuniotildees sociais ou como tirociacutenios privados da eloquecircncia

(Schwartz 2004 p 68-69 Edward 1928 p xiv Fairweather 1981 p 544) Contudo

Winterbottom (1980 p 13) baseado em um texto de Quintiliano que trata do panegiacuterico e do

demosntrativo no contexto das declamaccedilotildees escolares (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 11)

afirma que algumas das declamaccedilotildees puacuteblicas eram por assim dizer do epidiacutetico uma vez

que visavam muitas vezes a estabelecer um elogio ou um vitupeacuterio ao contraacuterio das demais

declamaccedilotildees ldquodidaacuteticasrdquo Baseado em Quintiliano Winterbottom (1980 p 26-27) reconhece

o gecircnero judiciaacuterio como a principal finalidade da declamaccedilatildeo mas distingue na

Controuersiae 276-9 de Secircneca o Reacutetor elementos caracteriacutesticos do gecircnero epidiacutetico

demonstrando que o elogio e o vitupeacuterio tambeacutem eram recursos retoacutericos correntes nas

declamaccedilotildees de gecircnero judicial pois muitas vezes era necessaacuterio qualificar a viacutetima ou uma

testemunha atraveacutes do elogio e desqualificar o reacuteu ou uma testemunha atraveacutes do vitupeacuterio

Como vimos o proacuteprio Ciacutecero afirmou declamar entre os seus amigos e familiares

justamente para exercitar-se para os momentos mais importantes de sua accedilatildeo poliacutetica Na

Roma Imperial difundiu-se na alta sociedade o costume de fazecirc-lo de modo que a

historiografia romana registrou na vida de alguns imperadores ao longo do periacuteodo

contemplado o costume de executar declamaccedilotildees (Schwartz 2004 p 68-69) Embora se

possa discutir acerca da real historicidade desses relatos pode-se dizer que a atribuiccedilatildeo da

49

praacutetica declamatoacuteria pelos textos historiograacuteficos a respeito da vida dos imperadores denota

que essa praacutetica gozava de certo prestiacutegio ao menos no periacuteodo imperial muito embora

alguns textos critiquem os declamadores e suas performances O proacuteprio fato de dedicar

espaccedilo para criacutetica escrita numa eacutepoca em que a produccedilatildeo de texto natildeo era tatildeo simples atesta

o alcance que a declamaccedilatildeo teve na sociedade romana

Verificou-se que a recepccedilatildeo e a praacutetica do gecircnero no Renascimento teve seu iniacutecio no

norte da Itaacutelia e coincidiram ndash ou foram causadas ndash com a redescoberta de manuscritos suas

traduccedilotildees e reediccedilotildees impressas de algumas das obras retoacutericas mais importantes e que

tratavam sobre a declamaccedilatildeo de autores como Ciacutecero Quintiliano e Secircneca Vaacuterios

humanistas como Salutati e Valla (situados no seacuteculo XV) e Erasmo de Rotterdam Thomas

More Corneacutelio Agrippa entre outros cuja atividade puacuteblica data da primeira metade do

seacuteculo XVI produziram declamaccedilotildees escritas como exerciacutecio o que eacute caracteriacutestico desse

tempo e o que as diferencia da Antiguidade vimos ainda que as definiccedilotildees das caracteriacutesticas

essenciais da declamaccedilatildeo propostas por Valla e Agripa satildeo concordes com as antigas no

sentido de afirmaacute-la como exerciacutecio retoacuterico escrito de um discurso fictiacutecio sobre temas

suasoacuterios ou epidiacuteticos com ao menos duas finalidades expliacutecitas divertir atraveacutes de formas

e referecircncias que provocam o riso e instruir atraveacutes da persuasatildeo e da defesa de valores

eacuteticos abandonados ou marginalizados pela sociedade

50

51

CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ

O presente capiacutetulo tem como finalidade apresentar agumas caracteriacutesticas gerais da

declamaccedilatildeo erasmiana tais como suas definiccedilotildees temas classificaccedilotildees e o contato de Erasmo

com outras declamaccedilotildees de seu tempo Aleacutem disso procura salientar os argumentos a favor e

contra a classificaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo enquanto pertencente a esse gecircnero em uma

comparaccedilatildeo com algumas das declamaccedilotildees do final do periacuteodo republicano e do iniacutecio do

impeacuterio

21 Definiccedilotildees erasmianas

A definiccedilatildeo de declamaccedilatildeo proposta por Erasmo abrange a proposiccedilatildeo principal das

definiccedilotildees de Valla e Agripa ou seja do exerciacutecio-fictiacutecio O holandecircs distingue entre

declamador reacutetor e orador na sua paraacutefrase ao Elegantias de Valla ldquodeclamador eacute aquele

que a soacutes ou na escola de retoacuterica defende uma causa fictiacutecia a fim de melhor executar uma

causa verdadeira Declamar eacute exercitar-se em um discurso sobre um tema fictiacuteciordquo (Opera

Omnia Erasmi I-4 ll 313923) Erasmo parecia estar bem ciente dos limites e das

caracteriacutesticas essenciais do gecircnero como se depreende por exemplo de uma citaccedilatildeo extraiacuteda

de seus Adaacutegios a qual natildeo deixa de ser tambeacutem uma autocriacutetica feita a partir da

classificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo presente em um escrito de Jerocircnimo (Erasmo Adagia 2500 III

V 100 Nec aures habeo nec tango) Tal comentaacuterio aparece na explicaccedilatildeo do adaacutegio 100

cujo significado pode ser entendido como ldquonatildeo tenho ouvidos nem tocordquo e se insere no

contexto de algueacutem que pegou algo de outro e diante do protesto deste dissimula a posse Ao

explicar o proveacuterbio o holandecircs cita uma epiacutestola que Jerocircnimo qualifica como declamaccedilatildeo

(Epiacutestola 117 12) cujo tema seria sobre a reconciliaccedilatildeo de uma matildee com sua filha

Justamente ao denominar como tal esse escrito e talvez percebendo que a causa natildeo eacute

deliberativa nem judicial nem mesmo um elogio ou sequer um caso fictiacutecio mas tendo

permanecido o caraacuteter de exerciacutecio Erasmo manteacutem a denominaccedilatildeo de declamaccedilatildeo talvez

por respeito agrave autoridade do Padre da Igreja que tambeacutem era reacutetor muito embora esta

classificaccedilatildeo possa ser facilmente contestada Erasmo portanto estaria consciente de que a

declamaccedilatildeo tem seus limites proacuteprios e que Jerocircnimo poderia ser criticado ao extrapolaacute-los

ao denominar assim neste texto em particular

52

Com base na definiccedilatildeo erasmiana Akkerman (1995 p 53-54) procura diferenciar a

declamaccedilatildeo da oraccedilatildeo ldquoEm um sentido mais restrito oratio eacute um discurso que eacute na verdade

realizado em resposta a um evento social ou cerimonial e declamaccedilatildeo um exerciacutecio fictiacutecio

que se executa na escola ou a soacutesrdquo Erasmo tambeacutem entendia como declamaccedilatildeo ldquoum tema

imaginaacuterio que se trata a favor e contra a fim de exercitar a eloquecircnciardquo Essa definiccedilatildeo

segundo Chomarat (1981 p 937) seria ldquoa que mais distingue a declamaccedilatildeo da

bdquodeterminaccedilatildeo‟ dos teoacutelogos escolaacutesticosrdquo conforme consta em vaacuterias passagens do ldquoSobre a

liacutenguardquo (De liacutengua) o primeiro equiacutevoco estiliacutestico mencionado por ele seria o fato de atribuir

palavras ou expressotildees que inflam a importacircncia das coisas de modo que o tom do discurso

solene inclusive na declamaccedilatildeo natildeo condiz com o assunto tratado Assim este torna-se

tedioso falso e inclusive ridiacuteculo Tal modo de proceder o holandecircs o entende como uma

ldquotagarelice declamatoacuteriardquo que corrompe a verdadeira finalidade da eloquecircncia Embora

afirmasse que para julgar as declamaccedilotildees ldquonatildeo se deve considerar a verdade objetiva das

mateacuterias mas o talento natural e o poder persuasivo do escritorrdquo (Apologia Adversus

Monachos Quosdam Hispanos Opera IX 1089) estava ciente do poder persuasivo deste

gecircnero e dos incocircmodos que seu uso para fins poliacuteticos poderia gerar Por isso Erasmo

utilizou-se dele ao tratar sobre assuntos poliacuteticos nem um pouco unacircnimes como eacute o caso da

querela da paz e da guerra

Por fim haacute referecircncias agrave declamaccedilatildeo tambeacutem no Diaacutelogo Ciceroniano Nosoacutepono o

ciceroniano inveterado que defendia a imitaccedilatildeo restrita dos escritos de Marco Tuacutelio afirmava

praticar com alegria (feliciter) a declamaccedilatildeo (Erasmo Ciceroniano 644[21]) mas recusava a

sugestatildeo de Buleacuteforo de receber as contribuiccedilotildees de Quintiliano a esse gecircnero (Erasmo

Ciceroniano 657[35]) Deste trecho em contraste com o que defendiam os chamados

ciceronianos se percebe que a declamaccedilatildeo erasmiana natildeo se restringe agrave imitaccedilatildeo de Ciacutecero

mas era um gecircnero que se fundamentava essencialmente na recepccedilatildeo de outros autores que

praticaram ou teorizaram acerca deste gecircnero com maior ecircnfase do que ele tais como os

declamadores latinos e gregos do periacuteodo imperial Secircneca Quintiliano Plutarco Luciano

Libacircnio entre outros Erasmo aliaacutes sem distinguir a autenticidade da atribuiccedilatildeo de autoria

das ldquoDeclamaccedilotildees Maioresrdquo e ldquoMenoresrdquo a Quintiliano elogiava no ldquoSobre a abundacircnciardquo

(De copia 204-205 [246-247]) ldquoas descriccedilotildees das coisasrdquo apontando este elemento localizado

geralmente logo apoacutes o proecircmio da declamaccedilatildeo como um artifiacutecio para a captaccedilatildeo da

benevolecircncia e da atenccedilatildeo do leitor Por outro lado no Cap 12 [504-507] analisa o uso que

53

Ciacutecero fazia do termo declamare em passagem que evoca o livro II da ldquoRetoacutericardquo aristoteacutelica

ao relacionaacute-lo com a caracterizaccedilatildeo adequada ou apropriada de cada personagem de acordo

com a sua idade Entre os vaacuterios elementos a serem exercitados com a praacutetica declamatoacuteria

Erasmo apresenta em seu ldquoPlano de Estudosrdquo o ecircthos representado nas prosopopeias como um

dos pontos fundamentais as descriccedilotildees dos lugares do tempo e das coisas assim como a

dequaccedilatildeo das personificaccedilotildees agrave idade (jovens ou idosos) ou agrave profissatildeo (prostitutas soldados)

entre outros (Opera Omnia I-II 143[1-9] 1971 p 143)

22 Temas

Erasmo eacute muito expliacutecito ao tratar da declamaccedilatildeo e dos exerciacutecios (note-se o uso de

progymnasmata) em seu De ratione Para ele haacute necessidade de tratar de temas atuais uacuteteis

para a sociedade (respublica) que natildeo tenham somente a simples finalidade de exerciacutecio

retoacuterico ou de rememoraccedilatildeo de dados mitoloacutegicos e histoacutericos nem mesmo meras

elucubraccedilotildees inuacuteteis da dialeacutetica atribuiacuteda pelos humanistas aos escolaacutesticos Neste sentido a

declamaccedilatildeo erasmiana eacute praacutetica visa influenciar o leitor educaacute-lo natildeo somente no sentido de

aplicar na vida cotidiana os ditames da retoacuterica antiga mas tambeacutem de instruiacute-lo em valores

como a justiccedila a paz a coerecircncia dos costumes e o combate aos haacutebitos considerados

ridiacuteculos e que se fundamentavam numa tradiccedilatildeo cristatilde teologicamente mal entendida Se por

um lado algumas partes do discurso provocam reflexotildees seacuterias outras partes poreacutem apesar

da gravidade do assunto (por exemplo quando se fala de paz e guerra) deleitam o leitor sem

deixar de ser uacutetil por ser pertencente ao gecircnero deliberativo

Desse modo era necessaacuterio que este jogo [elocutoacuterio] fosse apresentado de

modo elegante para que o jovem se exercitasse nas escolas atraveacutes das

declamaccedilotildees muito embora Quintiliano tivesse com razatildeo preceituado que a

simulaccedilatildeo da declamaccedilatildeo acontecesse de uma forma mais proacutexima possiacutevel

com as verdadeiras accedilotildees pois os temas a se declamar costumavam ser

escolhidos entre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeis Com

efeito aqueles exerciacutecios satildeo importantes para os jovens porque tem o

objetivo de instrui-los sobretudo quando o argumento eacute tirado da Histoacuteria e eacute

adaptado agraves palavras e agraves sentenccedilas daqueles tempos contudo seraacute ainda mais

instrutivo atuar sobre as causas verdadeiras que tratam de questotildees envoltas

em circunstacircncias do tempo presente como se algueacutem as desenvolvesse para

que se aperfeiccediloe a repuacuteblica (Erasmo De ratione Studii Desiderii Erasmi

Opera Omnia I-II 1971 p 695[28-33] ndash p 696[1-2])

Quando Erasmo menciona que os ldquotemas a se declamar costumavam ser escolhidos

dentre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeisrdquo podemos entender que o autor

54

visava um discurso que natildeo fosse somente uma espeacutecie de reproduccedilatildeo saudosa dos antigos

gecircneros discursivos gregos e romanos mas uma discussatildeo incisiva sobre os costumes das

pessoas de seu tempo Quando pertencente ao deliberativo abordaria temas que seriam

pertinentes para a sociedade como aliaacutes o era a polecircmica a respeito dos benefiacutecios da paz e

dos malefiacutecios da guerra inclusive sob o aspecto individual A Paz apresenta argumentos

praacuteticos contra a guerra como as dificuldades para o comeacutercio os gastos com mercenaacuterios e

armamentos e inclusive a inseguranccedila provocada pelo acuacutemulo destes em relaccedilatildeo ao

patrimocircnio dos cidadatildeos e possiacuteveis abusos contra a honra das mulheres

Neste sentido se as declamaccedilotildees erasmianas tratavam dos temas mais diversos tais

como a guerra a paz a infacircncia a loucura o matrimocircnio a vida monaacutestica e a medicina

entre outros Nelas era corrente o elogio e o vitupeacuterio seja nos escritos em que predominava

o Encomium seja nos deliberativos abordavam-se posiccedilotildees consideradas absolutas ou

irrefutaacuteveis por parte de teoacutelogos e filoacutesofos No lugar de privilegiar a loacutegica e o exaurimento

dos argumentos como eacute proacuteprio da dialeacutetica considerava esse temas poreacutem de modo a

privilegiar o que era uacutetil ao ser humano e afrontava os argumentos contraacuterios aos seus ideais

atraveacutes da retoacuterica Erasmo natildeo negava a verdade mas valorizava o que favorecia a

humanidade ulizando-se da retoacuterica para uma finalidade que considerava justa Erasmo estava

ciente de que ldquonatildeo existe nada tatildeo bom por natureza que natildeo possa ser distorcido por um

declamador astutordquo (Liber utilissimus de Conscribendis Epistolis 1670 p 267) mas estava

certo tambeacutem de que o declamador competente deveria primiar pela justiccedila e pela utilidade

mais do que pela mera busca da verdade abstrata e muitas vezes inuacutetil para o bem comum

muito embora fosse conveniente para os propugnadores da guerra

O caso concreto das discussotildees sobre a guerra justa ndash tatildeo defendida e inclusive

promovida por teoacutelogos alinhados aos interesses temporais de conquistas feudais ou mesmo

das guerras contra o islatilde ndash era um tema polecircmico uma vez que nem sempre a paz era do

convinha aos priacutencipes inclusive neste contubardo iniacutecio do seacuteculo XVI Em outras palavras

segundo esse trecho do texto supracitado o declamador astuto tem o poder de reunir a favor

do seu argumento uma apresentaccedilatildeo da realidade afim agrave sua causa Os argumentos eram

alinhavados em vista da finalidade prevista e poderiam distorcer ldquoverdadesrdquo incontestes

Trata-se natildeo somente da possibilidade de selecionar e dispor de argumentos mas de um modo

de apresentar que rompe ou desconstroacutei paradigmas a fim de construir outros talvez

55

esquecidos ou postos de lado como o eacute no caso em questatildeo a causa da paz e oposiccedilatildeo agrave

doutrina da guerra justa

Erasmo advoga pela paz e o faz como cristatildeo mas natildeo se apresenta ao menos no texto

da ldquoQueixa da Pazrdquo como um filoacutesofo ou um teoacutelogo compromissado com o que chama de

verdade a ponto de apresentar os dois lados da questatildeo ou seja os argumentos a favor e

contra a paz e a guerra mas defendia aquela sem considerar as objeccedilotildees contra o irenismo

dispondo sua razotildees com a finalidade de fazer bem ao auditoacuterio no sentido de instruiacute-lo com

valores eacuteticos como eacute o caso daqueles que fundamentam a opccedilotildees pela paz Neste sentido

Erasmo natildeo seria um sofista que alinha argumentos contra a guerra mas um ceacutetico em relaccedilatildeo

agrave sua eficaacutecia na resoluccedilatildeo dos problemas Acreditava que a concoacuterdia era mais adequada e

duradoura para a resoluccedilatildeo de qualquer espeacutecie de conflito em contraste com a guerra uma

espeacutecie de multiplicadora dos males

Conveacutem entatildeo demonstrar as incoerecircncias dos propugnadores da guerra apontando

os malefiacutecios desconsiderados pelos que defendiam o princiacutepio da guerra justa conforme

estudaremos ao caracterizar a Paz como saacutebia e teoacuteloga no uacuteltimo capiacutetulo da presente

dissertaccedilatildeo Essa afirmativa natildeo nega poreacutem uma espeacutecie de outra finalidade pedagoacutegica da

declamaccedilatildeo erasmiana natildeo menos relevante que a primeira como consta em uma passagem

da epiacutestola a Ulrico de Hutten Nesta ao comentar a declamaccedilatildeo sobre o ldquoTiranicidardquo de

Luciano e a ldquoUtopiardquo de More Erasmo estava ciente da finalidade de deleitar ou comprazer

proacutepria ao gecircnero conforme o texto supracitado no qual mencionada o percurso da formaccedilatildeo

retoacuterica do seu amigo More

Conveacutem notar que as declamaccedilotildees humanistas de modo anaacutelogo ao que se verificou

naquelas praticadas em ciacuterculos de adultos e amigos no periacuteodo republicano e imperial

tambeacutem visavam ao deleite situando-se entatildeo como uma autecircntica produccedilatildeo artiacutestica Desse

modo natildeo parece absurdo afirmar que a declamaccedilatildeo segundo a concepccedilatildeo erasmiana tem

um a dupla finalidade formativa (eacutetica situada nos valores e retoacuterica como aplicaccedilatildeo praacutetica

de princiacutepios em um discurso concreto) com toda a seriedade imposta pela gravidade dos

temas mas com o intuito de natildeo menosprezar a finalidade propriamente artiacutestica de deleitar

ou divertir o leitor Nesse ponto verifica-se a qualidade das declamaccedilotildees erasmianas que

sabem ser seacuterias jogando com temas graves sem deixar de formar os valores considerados

56

humanos justos e uacuteteis Desse modo o roterdamecircs parece evocar o ceacutelebre preceito

horaciano unir o uacutetil ao agradaacutevel (utile dulci)

23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes

Erasmo teve contato direto com as declamaccedilotildees e teorizaccedilotildees sobre este gecircnero

escritas em grego ou em latim por Isoacutecrates Plutarco Luciano e Libacircnio O proacuteprio holandecircs

atuou como editor e tradutor de algumas delas em um periacuteodo imediatamente anterior agrave

publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 entre as quais se destacam aquelas elencadas por

Rummel (1985 p 171-172) e cujos fac-siacutemiles estatildeo disponiacuteveis para consulta on-line no site

oficial8 da Biblioteca Nacional da Franccedila e que tambeacutem foram reeditadas na ediccedilatildeo criacutetica da

obra de Erasmo

231 Isoacutecrates

De fato Erasmo durante sua juventude traduziu alguns panegiacutericos de Isoacutecrates os

pertencentes ao gecircnero demonstrativo sobretudo no tocante agrave vituperaccedilatildeo e ao elogio a ponto

de publicar o Ad Nicolem juntamente com a ldquoInstituiccedilatildeo do Priacutencipe Cristatildeordquo em Basileia no

ano de 15169 Um princiacutepio pedagoacutegico atribuiacutedo por Erasmo a Isoacutecrates citado no ldquoSobre os

meninosrdquo (De pueris) e que parece se coadunar com as duas finalidades pedagoacutegicas da

declamaccedilatildeo (eacutetica e retoacuterica) eacute justamente o princiacutepio segundo o qual o recurso ao paacutethos

proacuteprio do exerciacutecio retoacuterico predispotildee o aluno a aprender quando seu afeto eacute movido ao

conteuacutedo proposto Trata-se do aprendizado atraveacutes do delectare ou seja do prazer que eacute

inerente agrave declamaccedilatildeo de alto niacutevel Os discursos escritos entatildeo neste gecircnero teriam o poder

de fazer com que o leitor amasse os valores eacuteticos e os recursos retoacutericos apresentados durante

o discurso A vituperaccedilatildeo tambeacutem age sobre a vontade do aluno uma vez que produz a

repulsa agraves atitudes e aos princiacutepios natildeo considerados eacuteticos pelo retoacuterico e a ridicularizaccedilatildeo

destes no interior do discurso visa entatildeo desconstruir a pretensa legitimidade de tais accedilotildees

que muitas vezes se atribuiacuteam agrave tradiccedilatildeo ou agrave justiccedila como eacute o caso da guerra

8 Disponiacutevel em httpwwwbnffrfraccxaccueilhtml Acesso 17 nov 2015

9 Aleacutem do panegiacuterico de Isoacutecrates e das declamaccedilotildees de Luciano e Libacircnio diretamente relacionadas com as

declamaccedilotildees erasmianas Erasmo tambeacutem editou outras obras no mesmo dececircnio que a Queixa da Paz tal como

a Institutiones grammaticae uma gramaacutetica grega escrita no seacuteculo XV escrita por Teodoro de Gaza e publicada

em dois volumes em Lovaina (1516 e 1518) e as traduccedilotildees de Rodolfo Agriacutecola de Isoacutecrates (Ad Demonicum)

publicada na mesma cidade em 1517

57

232 Plutarco

A influecircncia de Isoacutecrates eacute reduzida ao comparar-se com aquela de Plutarco Na

epiacutestola a Thomas Grey (Epiacutestola 64 Paris agosto de 1497 l 81 Allen 1974 p 137)

Erasmo jaacute mencionava a personagem Gryllard o que denota seu acesso agrave Moralia (985D-

992A) e a alguns discursos em grego entre os quais aqueles que satildeo explicitamente

classificados como declamaccedilotildees O mais significativo deles eacute sem duacutevida o ldquoSobre a

educaccedilatildeo dos meninosrdquo que influenciou diretamente o ldquoSobre os meninosrdquo do roterdamecircs

Natildeo sem razatildeo discursos de Plutarco foram vertidos por ele ao latim e editados em 1515

cerca de dois anos antes da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517)

233 Luciano

Segundo Boulet (2015 p 69) em recente estudo sobre as declamaccedilotildees renascentistas

Ao lado de Plutarco Luciano parece um autor particularmente interessante no

movimento que leva de Aristoacuteteles a Ciacutecero e de Erasmo a Boeacutecio Ambos os

autores satildeo constantemente mencionados direta ou indiretamente nas

declamaccedilotildees que nos interessam eles eram constantemente traduzidos e

comentados Eles satildeo exemplos para os autores que noacutes estudaremos

considerados como guias e modelos Certo nuacutemero de tratados de Luciano foi

traduzido para o latim por More e quatro por Erasmo

O roterdamecircs natildeo se debruccedilou em escritos de temas poliacuteticos ou naqueles atribuiacutedos

ao gecircnero judiciaacuterio mas aleacutem dos escritos no gecircnero demonstrativo dedicou-se ao estudo e

agrave traduccedilatildeo de vaacuterias declamaccedilotildees como as de Luciano (Rummel1985 p 21)

Erasmo dedicou-se de modo especial ao esforccedilo de traduzir do grego para o latim

diversas obras de Luciano (125-180 d C) reacutetor que se destacou por suas obras satiacutericas

conforme o proacuteprio holandecircs afirma na ldquoEpiacutestola a Joatildeo Botzheimrdquo10

Luciano foi ainda um

dos autores explicitamente prestigiado no ldquoPlano de Estudosrdquo erasmiano muito embora

alguns autores quinhentistas criticassem o valor de suas obras conforme se lecirc na introduccedilatildeo agrave

traduccedilatildeo ao ldquoTimeurdquo de Platatildeo realizada por Erasmo (Robinson 1969 p 365) Dentre as

traduccedilotildees das declamaccedilotildees de Luciano realizadas e publicadas em dois volumes ao longo do

10

Erasmo enumera As saturnais Cronosolon Algumas epiacutestolas saturnais Sobre o luto Icaromenipo

Toxaris O pseudomante O sonho ou o galo Tiacutemon O abdicante o Tiranicida Sobre aqueles que satildeo

conduzidos aos palaacutecios dos poderosos por mercecirc

58

ano de 1506 algumas foram publicadas sob o tiacutetulo de Luciani compluria opuscula (Toxaris

Tyrannicida Timon Gallus De mercede conductis e Longaevi) e outra parte foi dada a

conhecer com o tiacutetulo de Opuscula (Dialogi Mortuorum Dialogi Deorum Dialogi naturam

Hercules Eunuchus De Sacrificiis e Convivium) Erasmo retornou entre os anos de 1511 e

1512 agrave traduccedilatildeo e ediccedilatildeo de um terceiro grupo de escritos de Luciano (Icaromenippus

Saturnalia Astrologia Cronosolon Espistolae Saturnale De luctu e Abdicatus) publicados

com as traduccedilotildees anteriores sob o tiacutetulo de ldquoLuciani Erasmo interprete dialogirdquo em Paris

no ano de 1514 Essas obras jaacute foram republicadas pela ediccedilatildeo criacutetica de Amsterdam (1969-

atual) Thompson (1974 p 92) reafirma o consenso dos pesquisadores acerca da influecircncia do

estilo das declamaccedilotildees de Luciano sobre as erasmianas entre outros fatores pelo recurso agrave

ironia o sarcasmo elegante e a forma de ridicularizar costumes sociais incoerentes ou

supersticiosos conforme escreveu More que atribuiu ao holandecircs seu contato com as

declamaccedilotildees lucianescas Aliaacutes um dos toacutepos da primeira parte da ldquoQueixa da Pazrdquo reafirma

justamente alguns dos princiacutepios atribuiacutedos por Erasmo a Luciano na epiacutestola introdutoacuteria ao

ldquoSobre a Liacutenguardquo como eacute o caso da comparaccedilatildeo dos animais com o homem em tom de

superioridade justamente pelo fato de que embora sejam tidos como irracionais natildeo se

inferiorizam ao homem subjugado pelas paixotildees e pelos vis interesses pois a troca de lugar

entre homem e animal para desnudar a sociedade eacute um lugar comum da saacutetira lucianesca

(Erasmo Epiacutestola a Cristoacutevatildeo de Schiidlovietz p 19 ll 9-13) Para Erasmo o grande meacuterito

dos diaacutelogos de Luciano era fazer com que os mais jovens se deleitassem com o estilo e a

liacutengua (De conscribendis epistolis I 353B) Tal afirmativa ainda se verifica no ldquoSobre a

abundacircnciardquo no qual natildeo se absteacutem de elogiar a capacidade descritiva do caraacuteter viril

realizada por Luciano em Hamocircnidas (De copia II 198 ll 51-54-70-75)

234 Libacircnio

Quanto a Libacircnio (314-394 d C) filoacutesofo e professor de retoacuterica que escreveu em

grego Erasmo prefaciou a traduccedilatildeo da Declamatiuncula versa e graeco Libanio cum

thematis aliquot versis que foi publicada sob o tiacutetulo de Libanii aliquot declamatiuncula em

1503 Essas declamaccedilotildees merecem destaque dentro da obra de Erasmo e do Projeto

Humanista (Rummel1985 p 21) por assim dizer de recuperaccedilatildeo dos autores greco-

romanos uma vez que o proacuteprio Libacircnio teve inclusive parte de sua formaccedilatildeo realizada na

59

Greacutecia tendo facilitado acesso a autores gregos antigos apesar da dificuldade de transmissatildeo e

leitura de textos inclusive na atiguidade tardia

Sua atividade como reacutetor inclusive participando de competiccedilotildees puacuteblicas foi

realizada junto aos imperadores que visavam a uma recuperaccedilatildeo da antiga religiatildeo romana

Estes estavam em franco antagonismo com os cristatildeos que por sua vez tentavam suprimir a

antiga religiatildeo e a proacutepria mitologia contida nas tradiccedilotildees de escritos greco-romanos

consideradas meros rituais maacutegicos que prejudicavam a feacute cristatilde (Williams 2009 p 420)

Embora as declamaccedilotildees de Libacircnio fossem datadas da era cristatilde tinham talvez a preferecircncia

de Erasmo por portarem relevantes elementos da retoacuterica claacutessica segundo Kennedy

(1983162-163) tais discursos se diferenciavam dos antigos entre os quais predominavam os

temas judiciais e deliberativos ao apresentarem principalmente temas mitoloacutegicos ou

histoacutericos gregos com a finalidade de discutir assuntos pertinentes para o seu tempo

Libacircnio escreveu cerca de sessenta e quatro oraccedilotildees dentre as quais muitas (cf

oraccedilotildees 48 49 e 50) possuem temas deliberativos em razatildeo de sua proacutepria atividade no

acircmbito poliacutetico Outro atributo de suas declamaccedilotildees eacute o fato de iniciar algumas delas com

narrativas (katastasis) o que foi adotado por Erasmo em muitas de suas declamaccedilotildees Em

Erasmo a Loucura e a Paz por exemplo natildeo estabelecem uma narrativa em terceira pessoa

mas se caracterizam na abertura dos seus discursos atraveacutes de uma locuccedilatildeo direta Libacircnio

contudo se mostrava coerente com os manuais antigos de retoacuterica que apresentavam a

declamaccedilatildeo enquanto exerciacutecio que defendia os dois lados de uma questatildeo pois muitas das

suas declamaccedilotildees eram seguidas de uma ou vaacuterias antitheses finalizadas por um epilogo

(Williams 2009 p 424) Tal princiacutepio natildeo era seguido por Erasmo que apresentava somente

um lado da questatildeo

Conveacutem salientar o fato de que uma das declamaccedilotildees de Libacircnio traduzidas por

Erasmo tem justamente uma personagem feminina como sujeito ou remetente do discurso

Medeia Eacute bastante problemaacutetico comparar a Paz de Erasmo agrave Medeia dos claacutessicos mas

ainda assim verifica-se alguns traccedilos de semelhanccedila entre aquela matildee indignada pela morte

dos filhos e que se apresenta como viacutetima Haacute algumas passagens das declamaccedilotildees

erasmianas nas quais a Paz demonstra sua indignaccedilatildeo para os propugnadores da guerra que

maltratavam os mortais a quem esta dedicou seus cuidados maternais Note-se que a Paz

como veremos mais detidamente nos uacuteltimo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo invoca em seu

60

caraacuteter feminino e maternal as injusticcedilas feitas contra as viacutetimas da guerra a quem trata como

verdadeiros filhos

24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo

Segundo Chomarat as obras do gecircnero declamaccedilatildeo na obra de Erasmo podem ser

classificadas em duas categorias primeiro as declamaccedilotildees em sentido restrito que listaremos

abaixo e em seguida as obras que conteacutem elementos essenciais do gecircnero sem no entanto

receberem esta denominaccedilatildeo Muito embora Erasmo tivesse afirmado a dificuldade de

delinear os limites entre a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo nota-se que possuiacutea noccedilotildees claras a

respeito dos gecircneros retoacutericos e suas subespeacutecies como descreve no Brevissima

Confidendarum Epistolarum Formula acerca do deliberatiuum genus no contexto epistolar

mas que por analogia tambeacutem se aplica a uma declamaccedilatildeo de espeacutecie deliberativa e agraves

declamaccedilotildees de elogio e vitupeacuterio pertencentes ao gecircnero demonstrativo

Entatildeo passemos ao gecircnero deliberativo ocorrente em muitas espeacutecies de

epiacutestolas haacute epiacutestolas suasoacuterias e dissuasoacuterias exortatoacuterias peticcedilotildees

monitoacuterias as quais depois seratildeo consideradas em sua ordem Em primeiro

lugar deve-se definir no gecircnero deliberativo que pode ser chamado de

suasoacuterio a utilidade e a honestidade Quando chamamos algo de uacutetil tambeacutem

queremos denominar como honesto quando natildeo se pode dizer que eacute uacutetil

igualmente natildeo pode ser honesto Porque nesse gecircnero deve-se maximamente

esperar por essa utilidade que estaacute conjugada com a honestidade sem as quais

natildeo podemos suadir persuadir dissuadir exortar desencorajar pedir

aconselhar nem direcionar (como assim disseram) todas as flechas do estilo

ao alvo (Erasmo Brevissima maximaque compendiaria confidendarum

epistolarum formula Paris Apud Christianum Wechelum 1551 p 13)

De modo anaacutelogo nos textos jaacute citados de Quintiliano e Erasmo acerca da semelhanccedila

da declamaccedilatildeo com o diaacutelogo Chomarat (1981 p 932) reconhece a dificuldade em

diferenciar uma declamaccedilatildeo de uma oratio como eacute o caso do ldquoManual do soldado cristatildeordquo

(Enchiridion militis christiani) ou mesmo com uma diatribe segundo a denominaccedilatildeo do

proacuteprio Erasmo (Rummel 1995 p 60) como se verifica no ldquoSobre olivre arbiacutetriordquo (De libero

arbiacutetrio) a ponto de Chomarat (1981 p 932) denominaacute-los ldquoquasi-deacuteclamationsrdquo ou seja

obras que conteacutem um dos elementos essenciais da declamaccedilatildeo a prosopopeia Outra obra

erasmiana natildeo citada pelo estudioso francecircs constituiacuteda em estrutura de diaacutelogo merece

destaque especial uma vez que no caso do ldquoSobre o livre arbiacutetriordquo aleacutem de outras

personagens Erasmo entra no diaacutelogo ao atribuir discursos ao seu proacuteprio nome Mas a

61

grande objeccedilatildeo para sua inserccedilatildeo no gecircnero eacute o fato de natildeo cumprir o quesito de que o texto

deve simular uma causa fictiacutecia

Baseando-se na epiacutestola de Erasmo a Botzheim eacute possiacutevel estabelecer o elencode onze

declamaccedilotildees escritas e publicadas pelo holandecircs e que se conservaram

1 Elogio da vida monaacutestica

2 Resposta ao bispo

3 Louvor e vituperaccedilatildeo do matrimocircnio

4 Elogio da medicina

5 Contra o tiranicida

6 Antibaacuterbaros

7 Sobre o desprezo do mundo11

8 Sobre a prematura morte do filho

9 Sobre os meninos

10 Elogio da Loucura

11 Queixa da Paz

Chomarat (1981 p 932) apresenta dois possiacuteveis tiacutetulos de declamaccedilotildees compostas

por Erasmo cujos textos foram perdidos primeiro ldquoVitupeacuterio agrave vida dos mongesrdquo que teria

sido escrita em Bolonha entre 1506 e 1507 e duas declamaccedilotildees com argumentaccedilotildees

mutuamente opostas sobre a guerra do Papado contra Veneza presumivelmente escrita em

Bolonha em 1508 Dada a temaacutetica os argumentos descritos neste texto provavelmente estatildeo

presentes na ldquoQueixa da Pazrdquo e no ldquoA guerra eacute doce para os inexperientesrdquo Erasmo tambeacutem

mencionou em epiacutestola datada de 1509 e enviada de Paris a intenccedilatildeo de escrever duas

declamaccedilotildees (Encomium naturae e Encomium gratiae) que foram sugeridas por ocasiatildeo da

redaccedilatildeo do ldquoElogio da Loucurardquo12

11

Essa obra foi curiosamente classificada pelo proacuteprio Erasmo como uma epiacutestola declamatoacuteria suasoacuteria

12 Ainda segundo Chomarat (1981 p 934) grande parte das declamaccedilotildees de Erasmo foram escritas por pedido

ldquoformalrdquo de algueacutem que lhe era proacuteximo (Laus vitae monasticae Encomium artis medicae Contra tyrannidam

as duas declamaccedilotildees perdidas escritas em Roma De pueris e Querela Pacis) ou para seus alunos (Episcopi

Responsio Laus ac vituperatio matrimonii e De morte filii praemature praerepti) como modelos praacuteticos dos

conselhos teoacutericos do De Copia (Chomarat 1981 p 935) Esse uacuteltimo grupo pode caber na definiccedilatildeo de

declamaccedilatildeo como exerciacutecio escolar Quanto agravequelas feitas a pedidos com evidente finalidade poliacutetica (como a

Queixa da Paz) ou laudatoacuteria ou ainda como publicaccedilotildees que visavam debater assuntos literaacuterios e que

ilustravam os conselhos contidos no De Copia (Chomarat 1981 p 934)

62

25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas

Van der Poel (2007 p 129) classifica as declamaccedilotildees erasmianas em trecircs espeacutecies

pedagoacutegicas moralizantes e poliacuteticas

Nas numerosas declamaccedilotildees de Erasmo sobre mateacuterias morais e pedagoacutegicas

como tambeacutem nas de assunto poliacutetico como o Encomium moriae De pueris

instituendis Querela Pacis e tambeacutem o Encomium matrimonii tambeacutem

encontramos referecircncias tiacutepicas do vir bonus dicendi peritus Suas

declamaccedilotildees satildeo manifestamente discursos escritos nos quais natildeo somente

critica as condiccedilotildees da sociedade e do interior da Igreja que ele acha

repreensiacutevel mas nas quais tambeacutem defende suas proacuteprias ideias de sociedade

cristatilde civilizada ideal que prova ser na verdade bastante controverso Na sua

carta a Joatildeo Botzheim de 1523 Erasmo assume que o propoacutesito de muitas de

suas declamaccedilotildees pertinent ad institutionem vitae (visam a prover a instruccedilatildeo

do modo de viver)

Desse modo cabe agraves declamaccedilotildees deliberativas e inclusive algumas laudatoacuterias a

finalidade de mouere mas em Erasmo haacute uma especificidade pois o movimento da vontade

do seu interlocutor eacute impulsionado pela tomada de atitudes em conformidade com valores

humanos considerados bons Nesse sentido apresenta uma finalidade pedagoacutegica atraveacutes da

defesa de princiacutepios eacuteticos edificantes O que tambeacutem eacute uma forma de suadere uma vez que a

declamaccedilatildeo erasmiana entendida como um discurso que natildeo defende as duas partes de uma

causa mas opta por uma delas considerada melhor leva a escolher uma entre as opccedilotildees

disponiacuteveis Desse modo o discurso tem um objetivo bem determinado e o mouere e o

suadere estatildeo agrave disposiccedilatildeo do declamador para sugerir accedilotildees consideradas uacuteteis (conveniente)

e honrosas (honestum)

De fato segundo Tunberg (2006 p 9) as obras de Erasmo especialmente o ldquoElogio a

Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo visam a indicar um caminho eacutetico e se ocupam do modo de

agir humano Para Chomarat (1981 p 937) o humanista visava a uma accedilatildeo poliacutetica marginal

ldquoconstituir-se propagandista de uma escolha poliacutetica feita por outros a fim de exercer uma

influecircncia moral sobre a opiniatildeo ou sobre os governantes que o honram mais do que o

escutamrdquo O proacuteprio Erasmo apontou essa intenccedilatildeo explicitamente ao inserir vaacuterias de suas

declamaccedilotildees inclusive a que estudamos no quarto volume da ediccedilatildeo de suas obras

completas publicadas em sua vida com o sugestivo tiacutetulo ldquoObras que visam agrave instruccedilatildeo dos

costumesrdquo (Cantos 2006 p 285) Tal propoacutesito eacute verificado por Tunberg (2006 p 17) ao

comentar a prosopopeia erasmiana da Paz

63

Nas declamaccedilotildees de Erasmo natildeo somente no que se refere ao Elogio da

Loucura mas tambeacutem agrave Queixa da Paz ambas apresentam uma noccedilatildeo vaga

ou abstrata de uma espeacutecie de mulher divina na qual se vecirc a capacidade de

falar e apontar com o dedo de que maneiras certos costumes humanos devem

ser emendados

Corrigir os costumes eacute tambeacutem tarefa do riso No ldquoElogio da Loucurardquo o lado satiacuterico

eacute evidente Na ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo parece querer moralizar a sociedade natildeo por meio da

saacutetira mas sobretudo da ironia da comparaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude entre o belo e o feio

Trata-se do uso do elogio e do vitupeacuterio como instrumentos de moralizaccedilatildeo Este recurso se

insere em uma concepccedilatildeo estrateacutegica ainda mais ampla de Erasmo segundo a qual a educaccedilatildeo

nos claacutessicos seria um instrumento para a moralizaccedilatildeo da sociedade de caraacuteter catequeacutetico

natildeo para sua paganizaccedilatildeo Para Sloane (2004 p 112) predominavam no Renascimento duas

formas de recepccedilatildeo dos claacutessicos a primeira prezava os autores antigos como fontes do prazer

da elocutio e a segunda como fonte de inspiraccedilatildeo para a imitatio Como vimos

anteriormente as declamaccedilotildees de Luciano aos olhos de Erasmo e More realizavam tal

propoacutesito com excelecircncia No caso do ldquoElogio da Loucurardquo o recurso agrave saacutetira eacute evidente mas

natildeo se deve deixar de observar tal aspecto nas demais declamaccedilotildees erasmianas nas quais

Margolin (1992 p 911) ao comentar a ldquoQueixa da Pazrdquo notou diversos recursos retoacutericos

como ldquoa ironia mas com mais coacutelera emoccedilatildeo e piedade em defesa do povo atingido pelos

reveses da guerrardquo Dessa forma pretende mostrar em quatro seccedilotildees de argumentos a

incoerecircncia dos humanos que defendem a guerra dos cristatildeos que guerreiam e dos priacutencipes

que governam com base na guerra e sobretudo a incongruecircncia da missatildeo clerical com o

ofiacutecio das armas

26 Declamaccedilatildeo escrita e integral

A ldquoQueixa da Pazrdquo foi concebida em forma escrita para ser publicada e natildeo haacute

evidecircncias de que existisse alguma espeacutecie de actio das declamaccedilotildees de Erasmo ou de outro

humanista ou seja de que elas fossem lidas em voz alta e na presenccedila de uma audiecircncia

ainda que em contexto familiar Nesse aspecto nota-se uma diferenccedila fundamental entre esta

declamaccedilatildeo e muitas das declamaccedilotildees antigas pois os humanistas natildeo visavam mais ao

deleite e agrave persuasatildeo do seu puacuteblico-alvo atraveacutes da modulaccedilatildeo da voz mas concentravam sua

atenccedilatildeo ao efeito agradaacutevel que a ordenaccedilatildeo e a escolha adequada das palavras e aos diversos

64

recursos retoacutericos poderiam causar em algueacutem que lia a obra na solidatildeo em pronunciar em voz

alta

Contudo o deleite produzido por um discurso no leitor solitaacuterio ou no ouvinte da

assembleia puacuteblica ou de um contexto iacutentimo ou familiar natildeo estaacute localizado apenas na

finalidade formal de que este teria sido escrito ldquopara ser pronunciadordquo ou ldquopara ser lido

individualmenterdquo mas sim na riqueza de figuras nos jogos de palavras e imagens e nos

diversos recursos que a retoacuterica disponibiliza de modo que a mera forma de veiculaccedilatildeo no

sentido de que ele deve ser lido individualmente ou em puacuteblico natildeo seria um fator suficiente

para descaracterizar um gecircnero Deve-se considerar que primeiro ainda que escrita a

declamaccedilatildeo imitava a forma dos textos falados Segundo porque ainda se praticava muito a

leitura puacuteblica Talvez Erasmo natildeo tenha ele mesmo lido seu texto em voz alta mas eacute bem

provaacutevel que ciacuterculos de amigos ou seguidores se reunissem para que um lesse para os outros

os ldquolanccedilamentosrdquo do mestre

27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico

Assim como ocorria na declamaccedilatildeo antiga a humanista tinha por audiecircncia a elite

letrada capaz de ler latim com naturalidade a ponto de compreender as ironias os sacarmos e

as entrelinhas contidas nos textos erasmianos Era esse puacuteblico que se deleitava com os jogos

e os exerciacutecios declamatoacuterios

Tais recursos retoacutericos estavam inseridos tambeacutem em um contexto poliacutetico de modo

anaacutelogo agrave praacutetica da declamaccedilatildeo imperial conforme jaacute analisamos Segundo evidecircncias

internas e externas apontadas por Beauduin (1991 Introduccedilatildeo) essa obra foi escrita em

Lovaina Beacutelgica em uma data e ocasiatildeo incerta natildeo posterior a novembro de 1516 quando

Erasmo ldquovisitou a corte por ocasiatildeo de uma assembleia dos maiores priacutencipes da eacutepocardquo

(Cantos 2006 p 23 Herding 1977 p 7) e estabeleceu contatos com pessoas influentes

como o Chanceler Montjoy (Erasmo Ep 516 Linhas 17-18 Carta a Pierre Gilles de 20 de

janeiro de 1517 1977 p 187) A ldquoQueixa da Pazrdquo foi publicada no decorrer do ano de 1517

tendo sido dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Note-se que Erasmo entre

os anos de 1515 e 1521 (Rummel 1996 p 243) era Conselheiro do Rei Carlos V (Herding

1977 p 8) da dinastia dos Habsburgos Rei dos Paiacuteses Baixos terra de Erasmo da Espanha

de Naacutepoles Siciacutelia e Jerusaleacutem e Duque da Borgonha cujo ducado haveria de ser anexado

65

pela Espanha no dia 23 de janeiro de 1517 (Bataillon 2007 p 81) A partir de 1519 o Rei

Carlos seria tambeacutem o Imperador dos Romanos (1519-1558) A famiacutelia dos Habsburgos cujo

centro de atividades era a Espanha jaacute era a mais poderosa dinastia europeia por volta da

publicaccedilatildeo da Queixa da Paz (1517) Bataillon (2007 p 81) com base nas cartas de Erasmo

informa que em virtude do cargo de conselheiro este chegou a receber rendimentos

espanhoacuteis mas natildeo aceitou o bispado de Zaragoza nem mudar-se para a corte espanhola a

fim de evitar o ambiente dividido em facccedilotildees e contaminado por posiccedilotildees poliacuteticas contraacuterias

a seus proacuteprios valores Erasmo desculpou-se de aceitar a prebenda episcopal e passou a

frequentar a Universidade de Lovaina onde esteve mais assiduamente entre os anos de 1515 e

1521 (Rummel 1996 p 243) dedicando-se ao estudo dos escritos biacuteblicos natildeo sem

aproveitar os recursos da ceacutelebre biblioteca (Bataillon 2007 p 82) Essa foi a fase de sua

vida que precedeu agraves mais acirradas controveacutersias teoloacutegicas que aos poucos foram minando

seu prestiacutegio de preceptor da Europa No ano de 1516 natildeo seria exagero afirma que o

holandecircs era o epicentro intelectual desse mundo fluente no latim A situaccedilatildeo duacutebia em que se

posicionou em relaccedilatildeo ao cargo de conselheiro oferecido pelo rei natildeo somente demonstra o

prestiacutegio e a influecircncia dos seus escritos mas tambeacutem uma espeacutecie de autonomia com a qual

o escritor pretendia apresentar suas ideias inclusive a despeito de prebendas e posiccedilotildees

poliacuteticas

Segundo Herding (1977 p 13) como evento histoacuterico proacuteximo que se pode

considerar o principal motivo da redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz deve-se destacar que

estavam em curso as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e

por fim da alianccedila franco-veneziana (1513-1516) Como alguns desses paiacuteses ou seus

soberanos satildeo explicitamente mencionados na Queixa da Paz13

uma tabela pode esclarecer o

intrincado jogo poliacutetico de interesses de naccedilotildees que essas ligas envolviam

13

Erasmo menciona os reis de modo respeitoso de modo a natildeo contrariaacute-los Sua menccedilatildeo poreacutem para os

conhecedores dos fatos poderiam soar como ironia ldquoPriacutencipe Carlos adolescente de iacutendole incorrupta E natildeo

descuida de mim o Imperador Maximiliano Nem a isso se recusa Henrique o iacutenclito rei da Inglaterrardquo (Erasmo

de Rotterdam Queixa da Paz) Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano

Alematildeo com apenas 17 anos de idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo do Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio

Habsburgo em 1519 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela

morreria dois anos depois Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia

a catolicidade do rei inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536

66

Alianccedilas durante as guerras posteriores agrave Liga de Cambrai

Liga de Cambrai (1508ndash10)

Estados Pontifiacutecios

Franccedila

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Coroa de Aragatildeo

Ducado de Ferrara

Repuacuteblica de Veneza

Alianccedila veneziana-papal (1510ndash11)

Estados Pontifiacutecios

Repuacuteblica de Veneza

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Franccedila

Ducado de Ferrara

Santa Liga contra Franccedila (1511ndash13)

Estados Pontifiacutecios

Repuacuteblica de Veneza

Espanha

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Inglaterra

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Franccedila

Ducado de Ferrara

Repuacuteblica de Florenccedila

Alianccedila franco-veneziana (1513ndash16)

Estados Pontifiacutecios

Espanha

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Inglaterra

Ducado de Milatildeo

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Repuacuteblica de Veneza

Franccedila

Escoacutecia

Ducado de Ferrara

67

Erasmo em sua Querela critica nominalmente o jaacute falecido Papa Juacutelio II que no

governo dos Estados Pontifiacutecios e por causa de suas alianccedilas militares passou para a Histoacuteria

como o ldquoPapa Guerreirordquo e que ele havia chamado de Julius Exclusus (1968 p 27)

expulsando-o do paraiacuteso por intermeacutedio de um Pedro que via no papa acompanhado de

soldados ldquoum espetaacuteculo nunca visto antes para natildeo dizer um monstrordquo Que este tenha sido

de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa ldquoQueixa da Pazrdquo prova-

o natildeo somente a alusatildeo aos paiacuteses ao final deste escrito mas o proacuteprio autor informou acerca

das circunstacircncias da redaccedilatildeo desse texto em uma carta endereccedilada a Joatildeo Botzheim

Escrevi a Queixa da paz haacute cerca de sete anos quando fui convidado pela

primeira vez para a corte do priacutencipe Faziam-se entatildeo grandes preparativos

em Cambrai para uma conferecircncia que reuniria os maiores priacutencipes do mundo

ndash o imperador o rei da Franccedila o rei de Inglaterra o nosso Carlos ndash a fim de

selarem entre si a paz com laccedilos de accedilo como eacute costume dizer-se Agrave frente

desta accedilatildeo diplomaacutetica achavam-se o ilustre Guilherme de Chiegravevres e Joatildeo

Sauvage grande chanceler vocacionado para o serviccedilo do Estado Opunham-

se a este projeto aqueles que natildeo viam nenhuma vantagem em que reinasse a

tranquilidade aqueles que segundo a expressatildeo de Filoacutexeno () preferem de

longe uma paz que natildeo seja uma paz uma guerra que natildeo seja uma guerra Foi

assim que a pedido de Joatildeo Sauvage escrevi a Queixa da Paz As coisas de

fato encaminharam-se de tal sorte que teria sido mais acertado escrever

Epitaacutefio da paz pois natildeo restam quaisquer esperanccedilas de que ela possa

escapar com vida (Erasmo de Rotterdam Epistola a Joatildeo Botzheim 1523

Correspondence of Eramus Toronto University Toronto Press 1989 p 319)

Nesta carta Erasmo poderia estar se referindo aos diversos conflitos ocorridos entre

1517 e 1523 como a Sexta Guerra da Itaacutelia (1521-1526) tambeacutem conhecida pela disputa

entre Valois e Habsburgos as duas mais importantes dinastias da Europa

Na epiacutestola introdutoacuteria publicada juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo

concebe o escrito como em defesa da Franccedila (Carta ao Bispo Felipe de Utrecht 1917 ll 23-

35) Contudo para Rodrigues Erasmo visava diretamente os interesses holandeses

a Queixa da Paz escrita jaacute tendo em vista Carlos de Gent como soberano dos

reinos espanhoacuteis enfatizava a necessidade de natildeo insistir na poliacutetica

antifrancesa da qual os Paiacuteses Baixos eram viacutetimas tradicionais Assim a

poliacutetica erasmiana assumia de acordo com Mesnarde os anseios dos corpos

sociais neerlandeses (Rodrigues 2012 p 154-155)

De fato alguns dos argumentos contidos no texto em estudo abordam as dificuldades

impostas agrave circulaccedilatildeo de mercadorias que era o motor econocircmico dos paiacuteses baixos e da

regiatildeo renana Entretanto pode-se dizer que natildeo seria correto afirmar Erasmo como defensor

dos interesses particulares da Franccedila dos Paiacuteses Baixos ou de qualquer dos contendores das

68

Guerras da Liga de Cambrai uma vez que seus argumentos a favor da paz satildeo aplicaacuteveis a

qualquer naccedilatildeo visam o bem da humanidade como eacute proacuteprio do irenismo defendido por ele

28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz

Erasmo seraacute o autor cujas obras foram mais difundidas comentadas e a partir de certo

momento tambeacutem contestadas como se pode averiguar pelas diversas reediccedilotildees traduccedilotildees e

referecircncias a estas em outros autores do periacuteodo Por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da

Pazrdquo o roterdamecircs recebeu algumas cartas de elogio conforme se denota do seu epistolaacuterio

(Allen Ep 95 n 1 II) ateacute o final da segunda deacutecada de 1500 nessa fase anterior agrave Reforma

em que o prestiacutegio de Erasmo o entatildeo ldquopreceptor da Europardquo era intocaacutevel Impressionam

ademais as inuacutemeras ediccedilotildees em latim e as diversas traduccedilotildees para os vernaacuteculos Margolin

(1992 p 911) informa a existecircncia de pelo menos vinte seis ediccedilotildees nos dozes anos

subsequentes agrave primeira ediccedilatildeo perfazendo a soma de mais de trinta ediccedilotildees tendo como

recorte o seacuteculo XVI (Rummel 1990 p 288) Contam-se ademais diversas traduccedilotildees para as

principais liacutenguas europeias ocidentais por exemplo duas traduccedilotildees para o alematildeo em 1521

uma para o francecircs e para outros vernaacuteculos incluindo o holandecircs cuja primeira apariccedilatildeo se

deu em 1567 (Augustijn 1995 p 73) Radice (1968 p 290) observa que embora Erasmo jaacute

houvesse falado contra a guerra em obras como ldquoPanegiacutericordquo (1504) e nos ldquoAdaacutegiosrdquo (1515)

deve-se considerar a Queixa da Paz ldquocomo o mais citado e celebrado apelo pela paz

universalrdquo Natildeo eacute de se admirar que seus principais trabalhos ateacute entatildeo publicados

especialmente sua traduccedilatildeo do ldquoNovo Testamentordquo e suas declamaccedilotildees ldquoElogio da Loucurardquo e

ldquoQueixa da Pazrdquo tenham-no tornado um pensador do norte prestigiado em toda a Europa

cujo centro cultural era a Itaacutelia a ponto de em 1522 Vives afirmar ldquoeacute de pasmar a admiraccedilatildeo

inspirada por Erasmo a todos os espanhoacuteis saacutebios ignorantes homens de igreja e secularesrdquo

(Epiacutestola de 6 de setembro de 1522 apud Bataillon 2007 p 156) Este testemunho pode ser

entendido como beneacutevolo e parcial uma vez que desconsidera os inuacutemeros ataques sofridos

por Erasmo na peniacutensula ibeacuterica sobretudo apoacutes as traduccedilotildees biacuteblicas e os acontecimentos da

Reforma Na verdade o proacuteprio ataque direto e polecircmico efetuado contra as traduccedilotildees soacute

atesta o alcance de sua influecircncia

69

29 A disposiccedilatildeo retoacuterica

Chomarat (1981 p 931) ao longo do capiacutetulo III de seu Grammaire et Rheacutetorique

chez Eacuterasme denominado La Declamation fornece uma lista de declamaccedilotildees e analisa esse

gecircnero tal como exercido pelo humanista holandecircs especialmente no ldquoElogio da Loucurardquo

No entanto o pesquisador dedicou apenas alguns paraacutegrafos agrave ldquoQueixa da Pazrdquo sem se

estender na explicaccedilatildeo de sua forma da sua disposiccedilatildeo segundo os ditames da retoacuterica e da

natureza dos seus argumentos limitando-se a estruturaacute-la em trecircs partes principais

A argumentaccedilatildeo desenvolve trecircs ideias sucessivas a natureza constituiu o

homem para a benevolecircncia e para a concoacuterdia a doutrina de Cristo consiste

na paz concorda com o amor muacutetuo a guerra eacute uma fonte de calamidades na

segunda parte bem mais longa apoacutes ter demonstrado a discoacuterdia que reina em

toda parte ateacute mesmo entre os monges e entre os esposos apesar do

ensinamento de Cristo a Paz descreve a presenccedila da guerra sobretudo nos

uacuteltimos dez anos com o aumento das agruras e do escacircndalo guerra entre os

cristatildeos guerra das quais participam os padres e mesmo os papas enfim oacute

dor guerras travadas em nome de Cristo a religiatildeo da paz foi pervertida ao

serviccedilo da guerra nos dois campos se recita o Pater Noster esta progressatildeo eacute

seguida de uma confutatio do argumento invocado por certos cristatildeos

segundo o qual os beligenrates obedecem a uma certa necessidade coagidos agrave

guerra apesar da sua proacutepria vontade Esta confutatio analisa as fontes reais

da guerra (as paixotildees) e afirma que a condiccedilatildeo primeira da paz eacute a vontade da

paz entre certos priacutencipes mas tambeacutem no clero e no povo Na terceira parte

salienta entre as consequecircncias dos conflitos armados natildeo somente as ruiacutenas

e a miseacuteria dos povos mas as liccedilotildees de infraccedilatildeo agraves leis o viacutecio e a impiedade

que daacute agrave guerra ldquoa desonra do nome cristatildeordquo [] A indignaccedilatildeo a dor a

piedade inspiram Erasmo a belas passagens os conselhos praacuteticos o apelo agrave

regularizaccedilatildeo dos conflitos atraveacutes de negociaccedilotildees a insistecircncia sobre a

responsabilidade destes diretores de opiniatildeo que satildeo os pregadores e os

conjuramentos aos priacutencipes cristatildeos que fazem perceber que esta declamaccedilatildeo

natildeo seria somente um exerciacutecio somente o artifiacutecio da prosopopeia manteacutem

ainda a Querela Pacis ao gecircnero que ilustraram obras precedentes [as demais

declamaccedilotildees] (Chomarat 1981 p 999-1000)

No ldquoSobre a abundacircnciardquo de 1512 Erasmo havia afirmado que ldquona ordem ou

disposiccedilatildeo eacute sumamente necessaacuterio o meacutetodordquo ou seja a loacutegica e a clareza da argumentaccedilatildeo

devem evitar uma sensaccedilatildeo de perturbaccedilatildeo ou confusatildeo (De Copia Liber II p 280 ll 95-99)

Deve-se distinguir nisso que o roterdamecircs tambeacutem chama de ordo ou constructio a sequecircncia

das palavras dentro de uma frase (De Copia Liber I p 75 ll 47-49) Para ele eacute necessaacuterio

selecionar as proposiccedilotildees de modo adequado justamente pelo criteacuterio do que se acha

conveniente ou agradaacutevel Deve-se pois hierarquizaacute-las e transitar entre elas tomando por

regra aquelas que satildeo mais proacuteximas umas das outras de modo que se evitem saltos temaacuteticos

natildeo adequados (De Copia Liber II p 228 ll 781-787) Erasmo preceituava no ldquoSobre

70

abundacircnciardquo assim como no subtiacutetulo ldquoSobre a ordemrdquo do seu ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo

(De conscribendi epistolis p 301 ll 2-15) que a ordem ou disposiccedilatildeo devem partir do

criteacuterio do que eacute ldquonaturalrdquo e do que eacute ldquoartiacutesticordquo aconselhando que deve ser menos frequente

o caraacuteter artiacutestico uma vez que os leitores natildeo satildeo do vulgo mas eruditos e que tais epiacutestolas

natildeo satildeo ouvidas mas lidas Ademais embora a disposiccedilatildeo seja necessaacuteria para a clareza em

alguns gecircneros como eacute o caso do epistolar essa disposiccedilatildeo deve ser dissimulada e natildeo

ostensiva Contudo o que Erasmo mais recomenda evitar eacute um texto confuso por falta de

disposiccedilatildeo adequada Ainda nesse escrito encontram-se no subtiacutetulo ldquoSobre o gecircnero

dissuasoacuteriordquo algumas afirmaccedilotildees pertinentes a respeito da suasoacuteria como eacute o caso da ldquoQueixa

da Pazrdquo no sentido de que recomenda a paz e desaconselha a guerra Para ele o ato de

desaconselhar algo a algueacutem implica na seleccedilatildeo de argumentos que satildeo desagradaacuteveis para

aquele que pretendemos dissuadir As proposiccedilotildees devem ser dispostas de modo que sua

compreensatildeo seja simplificada atraveacutes de exemplos e comparaccedilotildees sem deixar evidente a

disposiccedilatildeo (De conscribendi epistolis p 429 ll 5-20)

Do ponto de vista da disposiccedilatildeo a ldquoQueixa da Pazrdquo parece seguir uma subdivisatildeo

concorde com a tradiccedilatildeo retoacuterica (Silva 2015 p 60) que o proacuteprio Erasmo propunha que

fosse ensinada aos alunos em seu ldquoPlano de estudosrdquo (p 134 l 10-135 ll 1-5) Basicamente

ela se subdivide em

- Proecircmio (προοίμιονexordium)

- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio)

- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)

- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio)

No caso especiacutefico da declamaccedilatildeo irecircnica as ediccedilotildees inclusive aquelas revisadas por

Erasmo apresentam uma epiacutestola a Felipe Bispo de Utrecht (Carta ao Bispo Felipe de

Utrecht 1917 ll 23-35) que se assemelha agravequilo a que hoje correntemente se intitula como

dedicatoacuteria na qual o autor sauacuteda o bispo pelo novo cargo desejando-lhe o mesmo sucesso de

seus antepassados Em certo trecho desta epiacutestola menciona ainda a situaccedilatildeo de seu tempo

como motivaccedilatildeo para a redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

71

Jaacute no tiacutetulo da declamaccedilatildeo Erasmo explicita o tema ldquoQueixa da Paz perseguida e

rejeitada em toda parte pelas naccedilotildeesrdquo (Querela Pacis undique gentium eiectae

profligataeque) assim como ocorria nas controveacutersias senequianas que apresentavam a

temaacutetica de forma clara logo na primeira frase ou em um breve texto que introduzia a causa

em discussatildeo (Schwartz 2004 p 71) O tiacutetulo apresenta o tema principal do discurso (a Paz)

cuja causa eacute tiacutepica do gecircnero deliberativo e das antigas suasoriae a Paz eacute tratada tambeacutem

como uma personificaccedilatildeo ofendida a personagem principal e remetente do discurso tal como

ocorre na sexta suasoacuteria de Secircneca na qual Ciacutecero eacute o interlocutor fictiacutecio (Schwartz 2004 p

110) Esta apresenta sua queixa Trata-se do lamento da injuacuteria e da tentativa de destruiccedilatildeo

contra a Paz As declamaccedilotildees costumavam antepor suas personagens geralmente fictiacutecias em

uma disputa No caso da Querela jaacute no tiacutetulo da obra haacute personagens expliacutecitas (a Paz como

protagonista com voz ativa e as naccedilotildees sem voz ativa) e uma indicaccedilatildeo geneacuterica de lugar

(em toda parte) Todo o universo em todo lugar conspira contra a paz e esta apresenta sua

queixa com argumentos jaacute explorados pelo roterdamecircs no ldquoA guerra eacute doce para os

inexperientesrdquo (1515) e na ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo (1516) Contudo natildeo satildeo os

argumentos que diferenciam esta declamaccedilatildeo dos demais escritos em favor da paz ou

contraacuterios agrave guerra mas sim sua forma ou seja seu gecircnero assim como os recursos retoacutericos

presentes no texto

Aplicando a tradiccedilatildeo de disposiccedilatildeo retoacuterica agraves declamaccedilotildees podemos dividi-la nas

seguintes partes

- Proecircmio (προοίμιονexordium) (4- 29)14

- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio) (30-112)

- a primeira parte trata da paz entre os animais (30-112)

- a segunda parte trata da destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202)

- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)

- a primeira parte trata de Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido pelos que se

dizem cristatildeos (203-401)

14

Os nuacutemeros araacutebicos se referem agraves linhas da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi

Roterodami Opera Omnia Amsterdam 1978)

72

- a segunda parte trata do exemplo dos pagatildeos (402-435)

- a terceira parte trata de como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados

pela guerra (436-594)

- a quarta parte trata de sugestotildees para o priacutencipe evitar a guerra (595-871)

- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio) (872-918)

Em algumas ediccedilotildees a indicaccedilatildeo pax loquitur excluiacuteda da ediccedilatildeo criacutetica daacute iniacutecio ao

proecircmio (προοίμιονexordium) este localizado logo apoacutes a epiacutestola ao bispo Felipe e ao tiacutetulo

(1-3) Vem a seguir uma espeacutecie de auto-apresentaccedilatildeo da Paz (4-29) a qual fala na primeira

pessoa do singular descreve a si mesma e aos males que os homens injustamente cometem

contra ela e contra si mesmos

A narratio (διήγηζις) (30-202) pode ser dividida em duas partes a primeira trata da

paz entre os animais (30-112) cujo objetivo talvez seja mostrar que esta eacute conforme a

natureza ao passo que a guerra contraacuteria Esta eacute peacutessima justamente porque se opotildee agrave

natureza das coisas (rerum natura) e nisso os proacuteprios animais apesar de seres irracionais e

natildeo dotados da palavra serviriam de exemplo a ser seguido pelo homem Quando este se faz

guerreiro torna-se abjeto pois contraria sua natureza racional Jaacute a segunda parte trata da

destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) entre as linhas 113-130 Erasmo indica os

cristatildeos e a cidade como adversaacuterios dela que natildeo pode obter uma ldquomoradardquo entre eles Em

seguida volta-se contra os priacutencipes (131-142) os eruditos (143-157) e os religiosos (158-

189) Inclusive se refere agrave famiacutelia como lugar no qual ela eacute maltratada (190-194) O proacuteprio

homem eacute um ser dividido pois a razatildeo luta contra as paixotildees e estas entre si (195-200)

A confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio) pode ser subdividida em pelo menos quatro grandes

blocos a primeira parte trata do Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido por todos aqueles que

se dizem cristatildeos (203-401) Erasmo recusa aqui que o epiacuteteto ldquoDeus dos exeacutercitosrdquo presente

em trechos do Antigo Testamento possa servir de argumento a favor da guerra (223-230)

Verifica-se que a fala dirigida ao priacutencipe cristatildeo (249) se assemelha em certas partes do

discurso ao gecircnero speculum principum15

tatildeo em voga no Renascimento a ponto de Erasmo

ter dedicado vaacuterios de seus escritos a esse objeto nos quais inclusive incorrem argumentos

73

irecircnicos comuns agrave ldquoQueixa da Pazrdquo e que seratildeo considerados em pormenor abaixo O gecircnero

ldquoEspelho dos priacutencipesrdquo eacute uma espeacutecie de manual eacutetico e poliacutetico em que se detalham as

virtudes e os deveres de um priacutencipe ideal Tratava-se de uma tentativa de promover um

priacutencipe justo e um governo anaacutelogo Acreditava-se desde a antiguidade ateacute no periacuteodo

medieval que a formaccedilatildeo moral do governante determinaria a felicidade dos suacuteditos Se

Cristo eacute o priacutencipe da Paz natildeo cabe aos priacutencipes que se dizem cristatildeos promover a guerra

Homens reais satildeo entatildeo retratados como mais crueacuteis que personagens da histoacuteria ou da

antiga mitologia como Dioniacutesio e Mezecircncio (428-429) Uma terceira parte aborda como o

Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados pela guerra (436-594) Note-se o trecho

elogioso agrave Franccedila (436-450) que justifica o tom francoacutefilo do discurso cofnroem o pedido do

chanceler Joatildeo Sauvage que teria encomendado a redaccedilatildeo desta declamaccedilatildeo Entre 451e 473

Erasmo retorna ao argumento de que os homens satildeo mais crueacuteis que as feras O bloco mais

extenso do discurso a quarta parte da confirmaccedilatildeo dirige-se diretamente ao priacutencipe

apresentando sugestotildees para que este evite a guerra (595-871) O epiacutelogo (επίλογοςperoratio)

(872-918) apresenta-se sob uma forma de apelo a todas as pessoas a comeccedilar pelos

poderosos para que promovam a paz Segue-se o princiacutepio da rememoratio sugerido pelas

tradiccedilotildees dos manuais de retoacuterica com a finalidade de retomar rapidamente os argumentos

desenvolvidos anteriormente Finalmente o proacuteprio autor resume o conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida por todo o texto

Tudo nos convida a isso Em primeiro lugar o proacuteprio instinto da natureza e

se assim posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo lugar o proacuteprio

Cristo Priacutencipe e Autor de toda felicidade humana Depois as incontaacuteveis

vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero imenso das calamidades da

guerra Convidam agrave paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que como

que inspirados por Deus jaacute estatildeo propensos agrave concoacuterdia (Queixa da Paz 889-

892)

210 As sentenccedilas e os adaacutegios

Sentenccedilas e adaacutegios satildeo recursos recorrentes nas declamaccedilotildees erasmianas assim como

o foram na obra senequiana segundo as tradiccedilotildees retoacutericas antigas transmitidas por

Quintiliano (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria XII 10 48) Em epiacutestola a Willian Blount embora natildeo se

refira expressamente ao uso delas no gecircnero que estudamos afirma Erasmo sobre o uso de

sentenccedilas em geral

74

O proveacuterbio melhora com a idade exatamente como os vinhos Eles natildeo se

limitam a ornamentar o seu estilo Eles satildeo igualmente uacuteteis para tambeacutem lhe

dar forccedila Por esta razatildeo Quintiliano natildeo soacute os incluiu entre os meios de

aliviar o teacutedio judicial entre as figuras de oratoacuteria mas considera que o

exemplo proverbial eacute um dos meacutetodos mais eficazes de prova se o seu

propoacutesito eacute convencer ou para refutar o seu adversaacuterio por meio de um ditado

espirituoso ou para defender a sua proacutepria posiccedilatildeo (Epiacutestola 125 ll 56-65

Steyn junho de 1500 I The Correspondence of Erasmus I 1974 p 255

traduccedilatildeo do inglecircs para o portuguecircs)

Logo no iniacutecio do ldquoSobre a abundacircnciardquo Erasmo pontua como as sententiae satildeo

recursos basilares da sua retoacuterica que tecircm o poder de conferir qualidade e elegacircncia ao

discurso ainda que tambeacutem tragam em si ldquoo perigo natildeo reduzido de deixaacute-lo afetadordquo (De

Copia I 9 p 26) Um dos erros apontados pelo holandecircs eacute a inadequaccedilatildeo com o tema ou

com o argumento proposto ou seja um adaacutegio que contrariasse o que a antiga tradiccedilatildeo

retoacuterica nomeava como decoro ou entatildeo o uso exagerado qualificado como ldquosententiarum

turbardquo que natildeo eacute capaz de reduzir a pobreza inerente ao discurso (Ibid)

Deve-se salientar a diferenccedila entre sententia no sentido de proveacuterbio e a sentenccedila no

sentido frase ou oraccedilatildeo que tambeacutem foi objeto de consideraccedilatildeo do roterdamecircs Relembrando

a ceacutelebre disputa entre Ciacutecero e Roacutescio sobre qual dos dois seria capaz de repetir uma mesma

ideia com o maior nuacutemero de formas sinoniacutemicas concebe a proposiccedilatildeo fundamental segundo

a qual a variaccedilatildeo das sentenccedilas enriquece o discurso (De Copia I 40-45 p 28) Erasmo ousa

ainda afirmar que natildeo eacute somente a variaccedilatildeo copiosa das sentenccedilas que eacute capaz de tornar um

discurso eloquente mas tambeacutem a concisatildeo de modo que a parcimocircnia eacute um fator relevante

para um discurso retoricamente constituiacutedo

Natildeo raro temos de dizer a mesma coisa vaacuterias vezes mas nesse caso se faltar

variaccedilatildeo ou perderemos ou faremos como o cuco de modo que repitamos as

mesmas palavras repetidas vezes sendo incapaz de dar diferente forma ou

color para a sentenccedila de maneira que nossa falta de eloquecircncia pareceraacute

ridiacutecula a noacutes mesmos e esgotaraacute totalmente o nosso puacuteblico de miseraacutevel

cansaccedilo (De Copia I 130-134 p 32)

Nota-se o uso da expressatildeo color com um sentido semelhante agravequele utilizado por

Secircneca o Velho em suas declamaccedilotildees as quais haviam sido editadas por Erasmo um ano

antes da publicaccedilatildeo da Querela e que segundo Knott (1988 p 12) tiveram influecircncia direta

sobre a declamaccedilatildeo e a coleccedilatildeo de adaacutegios erasmiana Embora natildeo trate exatamente da

sentenccedila senequiana enquanto proveacuterbio ao longo do capiacutetulo XVII do De copia Erasmo

aborda um tema que possui certa analogia com o criteacuterio para a seleccedilatildeo das sentenccedilas Ao

75

discorrer sobre a importacircncia da metaacutefora ou das similitudines como recurso retoacuterico capaz de

conferir ao discurso ornamento gravidade sublimidade e humor (De Copia I 801-803 p

64) apresenta a coleccedilatildeo de adaacutegios (De conscribendis epistolis p 240 ll 15-16) que

enriquecem o texto mas que devem ser selecionados com criteacuterio ldquoa metaacutefora natildeo ser dura

ou baixa ou mais exagerada do que eacute adequado ou dessemelhante ou demasiado frequente

especialmente a que eacute da mesma espeacutecierdquo (De Copia I 817-818 p 64) Ao que parece

Erasmo se refere ao uso moderado natildeo repetitivo no tocante agrave forma e ao conteuacutedo da

sentenccedila

O proacuteprio roterdamecircs colecionou centenas de adaacutegios na ediccedilatildeo expandida publicada

em 1508 e que satildeo utilizados (De Copia I 812-814 p 64) segundo Knott (1988 p 12) natildeo

somente como meras traduccedilotildees para o latim quando advindos do grego ou meras citaccedilotildees

literais quando originaacuterios do latim mas em alguns casos satildeo parafraseadas ou ao menos

demonstram certa semelhanccedila justamente para dar variedade e elegacircncia agraves diversas

sentenccedilas muito embora a maioria delas seja apenas recolhida dos escritos antigos com a

finalidade de ornamentar o discurso como eacute o caso da ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo natildeo se

absteacutem do uso de adaacutegios com finalidade retoacuterica Nesse particular podemos constatar que

tais adaacutegios possuem trecircs fontes especiacuteficas e em muitos casos grafadas na ediccedilatildeo criacutetica da

Queixa da Paz e que de certo modo coincidem com a lista supracitada de Knott (1988 p

12) ao serem classificadas em quatro fontes as antigas as biacuteblicas as patriacutesticas e os

proacuteprios adaacutegios de Erasmo

Algumas destas referecircncias se configuram apenas como citaccedilotildees diretas ou indiretas

dos autores Algumas podem ser expliacutecitas como eacute o caso de Platatildeo (linhas 9 da epiacutestola-

prefaacutecio e (551) enquanto outras satildeo alusotildees como Liacutevio (1-3)16

de Homero (7517

) de

Oviacutedio (16218

) de Siacutelio Itaacutelico (21019

) de Ciacutecero (21820

e 75821

) de Virgiacutelio (46722

e 67023

) e

16

ldquoundique se suosque profligante fortunardquo (Livio 3319)

17 ldquoCirces pharmacisrdquo (Homero Odisseia X 235ss)

18 ldquovestes candidae meo colorerdquo (Ovidio Arte Amatoacuteria 3 502)

19 ldquopax optima rerumrdquo (Silio Puacutenicas XI 592ss)

20 ldquoa viro laudatordquo (Ciacutecero Disputas Tusculanas IV 31 67)

21 ldquosilent leges inter armardquo (Cicero Mil 4 10)

22 ldquoignobile vulgusrdquo (Virgiacutelio Aeneida I 149)

23 ldquoquae maacutexima turba estrdquo (Virgiacutelio Aeneida VI 611)

76

de Plauto (76424

) Haacute citaccedilotildees de adaacutegios recolhidos e selecionados por Erasmo em sua

proacutepria coletacircnea (linhas 1825

2226

6227

7728

9129

15530

50531

553-55632

803-80433

86634

e 90635

) Alguns satildeo inspirados em fontes antigas como o de Pliacutenio (5736

) de Horaacutecio (15237

)

ou de Aristoacuteteles (391)38

Erasmo de modo algum aconselha a seleccedilatildeo de sentenccedilas de um

uacutenico autor mas a imitaccedilatildeo e a coleccedilatildeo destas retiradas das mais variadas fontes inclusive as

de origem ou inspiraccedilatildeo biacuteblica e patriacutestica chegando inclusive a ridicularizar no ldquoDiaacutelogo

Ciceronianordquo (p 617 ll 9-12) mais especificamente no diaacutelogo entre as personagens

Nosoacutepono e Buleacuteforo os autores que se aferravam unicamente agrave coleccedilatildeo das sentenccedilas e

adaacutegios oriundos ou inspirados na obra atribuiacuteda a Ciacutecero Erasmo eacute ecleacutetico no elenco das

fontes mas foi constantemente acusado de falta de cuidado no uso das sentenccedilas

Conforme lecirc-se no ldquoPlano de estudosrdquo o estiacutemulo aos estudantes de retoacuterica para o

cultivo da coleccedilatildeo e o conhecimento de adaacutegios e sentenccedilas dos antigos eacute imprescindiacutevel para

o enriquecimento do discurso em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica antiga pois satildeo fontes

da invenccedilatildeo da abundacircncia e da variaccedilatildeo das sentenccedilas (De ratione studii p 149 ll 18-27)

Por fim Erasmo chega a afirmar explicitamente no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo a

necessaacuteria imitaccedilatildeo das sentenccedilas colecionadas entre os autores citando inclusive as

declamaccedilotildees de Luciano a Aulo Geacutelio (De conscribendis epistolis p 532 ll 8-12)

24

ldquoparietum perfossorrdquo (Plauto Pseud 9 8 6)

25 ldquoPax omnium bonarum rerum et parens est et nutrixrdquo (Erasmo Adagia 3001)

26 ldquoigens malorum pelagusrdquo (Erasmo Adagia 3001)

27 ldquoFuremque fur cognoscitrdquo (Erasmo Adagia 1263)

28 ldquouni lachrymas clementiar et misericordiae symbolumrdquo (Erasmo Adagia 3001)

29 ldquosolum hominem nundum produxitrdquo (Erasmo Adagia 3001)

30 ldquodentata chartardquo (Erasmo Adagia 87)

31 ldquoe suggesto sacrordquo (Erasmo Adagia 3001)

32 ldquordquoEthnicorum leges parriciacutediordquo (Erasmo Adagia 3918)

33 ldquoad Cares viliacutessimosrdquo (Erasmo Adagia 514)

34 ldquoActa est fabulardquo (Erasmo Adagia 239)

35 ldquoBellum e bello seriturrdquo (Erasmo Adagia 3001)

36 ldquoLeonum feritas inter se non dimicat serpentium morsus non petit serpentes ne maris quidem beluae ac pisces

nisi in diversar genera sacuiuntrdquo (Plinio Histoacuteria VII 5)

37 ldquode lana caprinardquo (Erasmo Adag 253 Horaacutecio Espiacutestulas I 1815)

38 ldquoConciliant homines malardquo ou ldquomala conciliant et malosrdquo (Erasmo Adagia 1071)

77

211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes

Se a declamaccedilatildeo desde o iniacutecio possuiu uma relaccedilatildeo estreita com outros gecircneros

como a oraccedilatildeo (oratio) e o diaacutelogo (sermocinatio) identificamos outro correlato o espelho

dos priacutencipes Ora natildeo somente o tema aproxima a ldquoQueixa da Pazrdquo da ldquoInstituiccedilatildeo do

priacutencipe cristatildeordquo mas tambeacutem sobretudo em algumas de suas partes que aconselham o

suserano Herding (1974 p 6) aponta que ainda o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInsituiccedilatildeo do

priniacutencipe cristatildeordquo se caracterizam como obras erasmianas pertencentes a esse gecircnero

literaacuterio Por outro lado os argumentos utilizados na ldquoQueixa da Pazrdquo ao parecer de Herding

(1974 p 9) configuram a proacutepria ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo como um tratado de iacutendole

irecircnica O autor (1975 p 98) tambeacutem observou que Plutarco cuja obra moral tinha sido

editada e publicada por Erasmo em 1514 pode ter influenciado o roterdamecircs na redaccedilatildeo de

seus escritos suasoacuterios e pedagoacutegicos dirigidos especificamente aos priacutencipes O proacuteprio

Erasmo jaacute na carta a Felipe aquela que introduz a ldquoQueixa da Pazrdquo dirige-se a membros da

nobreza e em epiacutestola a Joatildeo Botzheim datada do ano de 1523 afirma sua declamaccedilatildeo como

um escrito cujos destinataacuterios satildeo justamente membros governantes Herding (1974 p 100)

levanta a hipoacutetese de que tal como esta tambeacutem seu mais ceacutelebre espelho do priacutencipe tenha

sido encomendada pelo chanceler Joatildeo Sauvage Esse escrito entatildeo seria de suasoacuterio e

pedagoacutegico no sentido de sugerir atitudes moralizadoras das relaccedilotildees entre os priacutencipes e os

seus congecircneres entre estes e o povo

Em todo o texto da ldquoQueixa da Pazrdquo haacute cinquenta e seis repeticcedilotildees da palavra

ldquopriacutenciperdquo muitas vezes em uma funccedilatildeo apelativa atraveacutes do uso do vocativo Para Erasmo o

gecircnero speculum segue um modelo Cristo que eacute o ldquoPriacutencipe da pazrdquo (Queixa da Paz 205-

214) Erasmo trata do regente bom (614 e 770) ou pio (770) e se propotildee aconselhaacute-los a

deliberar em favor da Paz em nome de princiacutepios eacuteticos tal como eacute tiacutepico das suasoacuterias

(Queixa da Paz 205-214) Ateacute mesmo na peroraccedilatildeo a Paz novamente volta-se a eles (Queixa

da Paz 872-876) As dezenas de refecircncias ao governante e a semelhanccedila de alguns trechos

com o gecircnero espelho de priacutencipes natildeo desautorizam a classificar a ldquoQueixa da Pazrdquo como

declamaccedilatildeo pois o tema sobre a paz tiacutepico do gecircnero deliberativo e o objetivo de aconselhar

proacuteprio das suasoacuterias satildeo elementos correntes nas antigas declamaccedilotildees

Por fim deve-se considerar que Gaeta (1969) notou semelhanccedilas evidentes entre o

diaacutelogo filosoacutefico presente no exoacuterdio do ldquoSobre a Clemecircnciardquo do Jovem Secircneca com o da

78

ldquoQueixa da Pazrdquo Notei que grande semelhanccedila da Queixa da Paz com o exoacuterdio de Secircneca

(Sobre a clemecircncia 1-4) Aquele foi um escrito filosoacutefico-moral destinado ao jovem

imperador Nero de modo a contribuir com a formaccedilatildeo deste (Manjarreacutes 2001 p 85) e que

de modo fictiacutecio simula discursos diretos de Nero (ver I2) ao passo que na declamaccedilatildeo em

estudo a locuccedilatildeo direta eacute proferida pela proacutepria Paz Secircneca o Jovem inicia sua

argumentaccedilatildeo apresentando o proacuteprio Nero como fonte dos dons virtudes e bens e o contrasta

com a humanidade ldquobriguenta intriguenta e apaixonadardquo capaz de causar ldquoa ruiacutena para si

mesmardquo Secircneca instrui o imperador a se auto-apresentar como aquele que cumpre o ofiacutecio de

Deus sobre a terra como o aacuterbitro da vida e da morte Cabe ao governante decidir as posses

do homem pois a fortuna de cada um proveacutem da sua boca Ele deve decidir sobre qual

inimigo deve ser tratado com rigor ou clemecircncia pois cidades e civilizaccedilotildees florescem pelas

suas palavras Mas Nero prefere promover a paz para benefiacutecio dos povos que lhe satildeo

submetidos Jaacute consideramos e ainda aprofundaremos como a paz se apresenta de modo

anaacutelogo e com argumentos semelhantes Em ambos os discursos elaborados em primeira

pessoa usam-se as imagens da prosperidade para a paz e da destruiccedilatildeo para a guerra em

ambos embora a paz seja apresentada como agradaacutevel aos ceacuteus ou seja aos deuses e aos

homens esta natildeo eacute aceita e perde seu lugar para a guerra

212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio

Ao estudar a ldquoQueixa da Pazrdquo sob a perspectiva dos trecircs gecircneros notamos novamente

a ocorrecircncia especial de traccedilos destes gecircneros o deliberativo ou suasoacuterio e o demonstrativo

ou epidiacutetico O primeiro ocorre sobretudo nos trechos em que a Paz se configura como

beneacutevola conselheira (Queixa da Paz 595-597) A Paz volta-se ao suserano a fim de

aconselhaacute-lo referindo-se na forma da terceira pessoa do singular

A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os afetos privados e estimar todas as coisas

segundo o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe evite viagens a terras

longiacutenquas ou antes que nunca cruze os limites territoriais do seu reino

(Queixa da Paz 646-647)

A Paz tambeacutem utiliza a segunda pessoa do singular ao dirigir-se diretamente ao

cristatildeo a fim de defender sua causa tal como se verificou em jaacute citada parte da peroraccedilatildeo

(Queixa da Paz 872-876) Entretanto esta natildeo se dirige como conselheira apenas do poder

laico mas tenta persuadir o proacuteprio Sumo Pontiacutefice

79

Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice Romano Entretanto no momento em que os

povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras perversas ndash e isto por longos

anos ndash onde estaacute a autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde estaacute o seu

poder proacuteximo ao de Cristo Era nesse ponto e entatildeo que a autoridade papal

certamente deveria ser exercida a natildeo ser que os papas tambeacutem compartilhem

as mesmas ambiccedilotildees (Queixa da Paz 583-586)

Os conselhos deliberativos assumem a construccedilatildeo do futuro mas tambeacutem o

subjuntivo como por exemplo nesse trecho no qual a Paz sugere regras com finalidade

paciacutefica no tocante ao direito de sucessatildeo de territoacuterios

Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas possibilidades para governar sua

regiatildeo da melhor forma possiacutevel Pois quando estiver totalmente concentrado

no cuidado de um soacute reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus filhos

enriquecido por melhorias E desta forma como eacute evidente tudo floresceraacute

Que sejam aliados natildeo apenas por viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas

contratuais mas sim unidos por amizade sincera e pura e acima de tudo por

um idecircntico e comum amor por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei

seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais proacuteximo por consanguinidade quer

agravequele que pelos votos do povo for considerado o mais capaz Quanto aos

demais que lhes baste estar entre o nuacutemero dos nobres mais honrados (Queixa

da Paz 639-645)

Ao comentar o ldquoElogio ao matrimocircniordquo (1518) publicado um ano apoacutes a publicaccedilatildeo

da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517) Leushuis (2004 p 1287) estabelece uma definiccedilatildeo que parece

adequada agrave declamaccedilatildeo que estudamos

Primeiramente publicada em marccedilo de 1518 sob o tiacutetulo de Declamatio in

genere suasorio de laude matrimonii o texto combina elementos da

declamaccedilatildeo (declamatio) e do elogio (laus) Ao considerar a natureza geral da

declamaccedilatildeo pode-se dizer que o objetivo deste texto eacute discutir os argumentos

a favor e contra (in utramque partem) a tese (thesis) em um modo suasoacuterio

(genus suasorium) Na linha da tradiccedilatildeo claacutessica ciceroniana na qual o gecircnero

era usado para discutir uma questatildeo abstrata ou filosoacutefica [] as declamaccedilotildees

do iniacutecio do seacuteculo XVI expressam o valor dos julgamentos dos seus autores

sobre problemas morais ou eacuteticos por meio da retoacuterica do louvor ou do

vitupeacuterio (laus e vituperatio) (Leushuis 2004 p 1287)

Aleacutem disso Querela pode ser traduzido por queixa lamento ou queixume mas

tambeacutem possui um sentido muito proacuteximo a vitupeacuterio ou reclamaccedilatildeo pois quem se queixa

vitupera reclama ou lamenta algo39

Verificou-se alguns trechos da declamaccedilatildeo que

apresentam traccedilos do gecircnero epidiacutetico como quando Erasmo empresta a voz para a Paz fazer

sua proacutepria exaltaccedilatildeo na primeira pessoa do singular (Queixa da Paz 18-21) Em outra parte

a Paz exalta-se a si mesma com o uso da terceira pessoa do singular ldquoCom tatildeo grande nuacutemero

39

Cf Gaffiot F Latin Dictionnaire Latin-Franccedilais Paris Hachette 2000 Voz Querela

80

de argumentos a natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela nos convida com tatildeo grande

nuacutemero de seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com tantos laccedilos e razotildeesrdquo (Queixa da

Paz 103-104) Erasmo tambeacutem utiliza o arqueacutetipo de Cristo como argumento para exaltaacute-la

(Queixa da Paz 203-222)

Em vaacuterios trechos a Paz se auto-elogia por meio de uma comparaccedilatildeo com Cristo a

fim de exaltar seu proacuteprio ecircthos e de associar-se a sua autoridade assim como agravequela de Davi

e Salomatildeo monarcas biacuteblicos que favoreceram Israel com a prosperidade gerada pela paz

Erasmo estabelece um contraste tiacutepico do gecircnero epidiacutetico que satildeo as vituperaccedilotildees agrave causa

contraacuteria sucessivas aos elogios agrave causa que se estaacute defendendo (Queixa da Paz 237-248)

Em outro excerto o paralelismo entre vituperaccedilatildeo e elogio eacute alternado Comeccedila-se

pela censura e passa-se ao encocircmio e vice-versa

Que os mortais desculpem com sua fraqueza o que quiserem mas se de fato

natildeo amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo entre si com batalhas

contiacutenuas Olhai para o Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que outra

coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o

cumprimento da paz ldquoa paz esteja convoscordquo e lhes prescreveu essa forma de

saudaccedilatildeo como a uacutenica digna dos cristatildeos Os Apoacutestolos natildeo se esqueceram

desses preceitos e recomendavam a paz em suas cartas e desejavam paz

agravequeles a que amavam de forma especial Escolhe coisa importante quem faz

votos pela sauacutede mas estaacute desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha

recomentado durante toda a sua vida nunca deixou de a recomendar Vede

com quatildeo grande solicitude a recomenda quando estava prestes a morrer

ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos tenho amadordquo E novamente ldquoeu vos

deixo a paz eu vos dou a minha pazrdquo (Queixa da Paz 259-268)

A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem pode ser vista como pertencente agrave espeacutecie do epidiacutetico

chamada lamentaccedilatildeo Tal fenocircmeno corre logo no exordium (Queixa da Paz 4-17)

Destacam-se no trecho supracitado alguns verbos que denotam a lamentaccedilatildeo deplorare e

deflendi sunt assim como a expressatildeo mea iniuria Esse formato de lamento ocorre em

vaacuterios trechos esparsos pela obra como o iniacutecio do primeiro argumento no qual Erasmo

defende que a guerra contraria a natureza humana (Queixa da Paz 30-31) Em um longo

periacuteodo a personificaccedilatildeo da Paz lamenta ou vitupera o fato de ter sido destruiacuteda pelos

homens inclusive pelos cristatildeos pois foi de fato destruiacuteda ldquoem toda parterdquo como se declara

no tiacutetulo da declamaccedilatildeo (Queixa da Paz 122-123) O lamento da Paz se volta contra os

governantes

81

Entretanto oacute coisa indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar sequer a

sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute fingido e simulado natildeo haacute nada que

natildeo seja corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por divergecircncias e

rivalidades ocultas No final natildeo encontro o trono da paz entre eles mas antes

eacute aiacute que mais estatildeo as fontes e origens de todas as guerras (Queixa da Paz

136-140 )40

A personificaccedilatildeo da Paz amplifica a lamentaccedilatildeo ao descrever suas decepccedilotildees junto a

diversas classes da sociedade os eruditos o clero secular e mesmo entre aqueles que mais

deveriam primar pela ldquoperfeiccedilatildeo da caridaderdquo ou seja que deveriam se destacar pela virtude e

pelo exemplo aos demais atraveacutes da vida humilde no interior de um convento (Queixa da

Paz 184-189)

A Paz natildeo encontrou seu lugar junto aos governantes nem junto agrave hierarquia

eclesiaacutestica dos altos graus ateacute os mais iacutenfimos Nota-se a decepccedilatildeo para com a estrutura

institucional da igreja Essa lamentaccedilatildeo ocupa consideraacutevel espaccedilo dentro da declamaccedilatildeo e

parece ser o objeto principal da queixa uma vez que outros setores da sociedade satildeo

mencionados em trechos comparativamente reduzidos como eacute o caso da destruiccedilatildeo da paz na

famiacutelia Esta vitupera com veemecircncia sobretudo contra os cleacuterigos bispos e papas como eacute o

caso de Juacutelio II os quais apesar do ofiacutecio eclesiaacutestico passaram para a histoacuteria como

guerreiros (Shaw 1993 p 15) Esse Papa havia inclusive conferido o estandarte da cruz aos

suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute (Queixa da Paz 520-540)

Tal recurso ocorre na peroratio construiacuteda por Erasmo na qual se evoca natildeo somente

o principado ou o sacerdoacutecio mas tambeacutem o povo (Queixa da Paz 867-888) Deve-se

pontuar contudo que sendo um texto escrito em latim em uma eacutepoca na qual grassava o

analfabetismo significaria uma exclusatildeo do povo Potanto a restriccedilatildeo do puacuteblico-alvo agravequeles

que sabiam ler natildeo exclui o apelo universal que a Paz se julga no direito de proferir Esta eacute

chamada a habitar em toda parte muito embora tenha sido injuriada e perseguida

213 Conclusotildees do capiacutetulo

No capiacutetulo segundo caracterizamos o gecircnero declamaccedilatildeo segundo Erasmo

definindo-o como um discurso fictiacutecio escrito em prosa com caraacuteter de exerciacutecio da

40

At o rem indignam apud hos nec umbram verae concordiae licuit cernere Fucata fictaque omniafactionibus

apertis clanculariis dissidiis ac simultatibus corrupta sunt universa Denique adeo apud hos non esse sedem paci

comperio ut hinc potius omnium bellorum fontes ac seminaria (Erasmo Queixa da Paz 136-140)

82

eloquecircncia cuja finalidade eacute simultaneamente educativa no sentido de ser formativa do ponto

de vista eacutetico ao aconselhar valores humanos condizentes com os ideais irecircnicos e literaacuteria

ao apresentar-se como um divertimento na medida em que procura comprazer o leitor atraveacutes

de formas elegantes e metaacuteforas que visam provocar o riso

Verificou-se que restaram ao menos onze declamaccedilotildees de autoria de Erasmo e que

algumas se assemelham ao diaacutelogo por apresentarem mais de uma personagem que emitem

discursos diretos reciprocamente direcionados As declamaccedilotildees erasmianas divergem das

senequianas e equiparam-se agraves gregas no sentido de que eram escritas integralmente ou seja

tal como haveriam de ser pronunciadas Em oposiccedilatildeo a estas estatildeo as controveacutersias de

Secircneca que eram redigidas de modo fragmentaacuterio e que possivelmente natildeo eram lidas em voz

alta da mesma forma que eram escritas muito embora tivessem a finalidade de exercitar a

actio entendida como o exerciacutecio da modulaccedilatildeo da voz tal como a declamaccedilatildeo mencionada

em Ciacutecero ou na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo

A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem apresentou traccedilos caracteriacutesticos de outros gecircneros antigos

retomados pelos humanistas tais como a oratoacuteria o espelho dos priacutencipes o panegiacuterico o

tratado moral a epiacutestola suasoacuteria e o diaacutelogo Aleacutem disso verificou-se que de modo

semelhante ao praticado nas declamaccedilotildees gregas os humanistas apresentavam elementos do

gecircnero epidiacutetico e deliberativo no primeiro caso haacute elogios agrave paz tanto em suas

autodescriccedilotildees como na enumeraccedilatildeo dos benefiacutecios que esta concede aos mortais mas

tambeacutem haacute trechos nos quais ela vitupera contra a guerra seus propugnadores e os vaacuterios

malefiacutecios desta sobre os homens em particular e sobre a sociedade Elogiar e vituperar

configuram-se entatildeo como traccedilos do gecircnero epidiacutetico no discurso irecircnico da Paz Contudo o

tema da paz eacute tiacutepico do deliberativo e alguns trechos apresentam uma forma de deliberaccedilatildeo a

favor de sua proacutepria causa apresentando os argumentos a favor da guerra somente na medida

em que satildeo imprescindiacuteveis para a confutaccedilatildeo ou o desaconselhamento

83

CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ

O presente capiacutetulo tem o objetivo de tratar da caracterizaccedilatildeo da prosopopeia realizada

na ldquoQueixa da Pazrdquo A partir da anaacutelise sobretudo do exordium da declamaccedilatildeo (1-29) e de

outras partes que se fizerem pertinentes o estudo visa a apresentar os traccedilos da personificaccedilatildeo

por meio de seu proacuteprio discurso uma vez que esta declamaccedilatildeo se caracteriza como um uacutenico

discurso o da Paz e natildeo apresenta qualquer narrativa introdutoacuteria em terceira pessoa

31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo

Para Erasmo a prosopopeia eacute o discurso de um ente humanizado uma personificaccedilatildeo

que estando longe ausente ou morta estabelece uma fala um discurso direto (De copia II

389-397) Sua definiccedilatildeo recupera a antiga tradiccedilatildeo retoacuterica presente em manuais e autores

renomados entre outros possiacuteveis exemplos como na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (IV 53 66) O

exemplo de Platatildeo como prosopopeia tambeacutem estaacute presente em Ciacutecero (Fin IV 22 61) Para

Erasmo uma prosopopeia deve parecer verossiacutemil aos leitores (De copia II 388-389)

Permite ademais tratar de assuntos seacuterios ou graves sobretudo quando simula o discurso da

paacutetria da natureza da repuacuteblica ou da proviacutencia Erasmo chega a citar as proacuteprias

ldquoCatilinaacuteriasrdquo e a locuccedilatildeo de Soacutecrates no diaacutelogo ldquoCriacutetonrdquo de Platatildeo para fundamentar seu

ponto de vista (De Copia II 389-405) Para ele a prosopopeia permite dar voz ldquomuitas vezes

aos proacuteprios deuses aos locais e a muitas coisas mudas com as quais ornamos o discursordquo (De

copia II 406-407) Conveacutem contudo consignar que Erasmo natildeo distingue entre uma

prosopopeia no sentido de uma pessoa ausente que toma a voz e uma personificaccedilatildeo

entendida como uma abstraccedilatildeo ndash como eacute o caso da paz ndash ou um objeto ou animal que

usualmente natildeo tem a habilidade da fala

32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas

Erasmo aleacutem de leitor tradutor e editor de escritos antigos tambeacutem era exegeta e

teoacutelogo e portanto dispunha para a invenccedilatildeo do corpus biacuteblico escrito em grego em pleno

periacuteodo heleniacutestico ou da sua versatildeo latina a ldquoVulgatardquo revisada por Jerocircnimo datada do

seacuteculo IV d C Sem duacutevida estas fontes contribuiacuteram para a forma de alguns trechos da

ldquoQueixa da Pazrdquo Em 1517 fazia cerca de um ano que ele havia publicado sua traduccedilatildeo para o

84

latim do Novo Testamento grego apoacutes um amplo trabalho de criacutetica dos manuscritos e

seleccedilatildeo das variantes possivelmente mais originais estabelecendo criteacuterios ainda hoje

utilizados nas ediccedilotildees criacuteticas de escritos antigos

No texto biacuteblico entre outras significativas personificaccedilotildees abstratas femininas tem-

se a ἀγάπη a caridade (Ad Corinthios I 134-13) e a Γσνὴ ἄθρων a mulher louca ou senhora

loucura (Proverbia 913-18) Destaca-se no ldquoLivro da Sabedoriardquo escrito por volta do seacuteculo

II a C no Egito o qual conteacutem a personificaccedilatildeo da sabedoria como uma mulher bela uma

matildee rica fonte de ciecircncia e ldquocriadorardquo de todas as coisas de uma forma semelhante agrave paz Ela

seria a antiacutetese da Loucura que seria a matildee de todas as maldades e contradiccedilotildees humanas O

autor biacuteblico imagina-se inclusive em desponsoacuterio com a sabedoria a qual se enamorou de

modo anaacutelogo a uma ninfa

A sabedoria eacute radiante e imarcesciacutevel Aqueles que a amam a contemplam

com facilidade e os que a procuram a encontram Ela se antecipa e se faz

conhecer aos que a desejam quem madruga por ela natildeo se cansaraacute pois a

encontraraacute sentada agrave sua porta Meditar nela eacute a perfeiccedilatildeo da prudecircncia e o

que vigia por sua causa logo se encontraraacute sem perigo Com efeito ela vai agrave

procura dos que a merecem nos caminhos mostra-se benigna e os precede em

cada pensamento Seu verdadeiro princiacutepio eacute o desejo da instruccedilatildeo empenho

da instruccedilatildeo eacute o amor e o amor a observaccedilatildeo das leis mas a guarda das leis eacute

a confirmaccedilatildeo da incorruptibilidade a incorruptibilidade verdadeiramente faz

estar proacuteximo de Deus Portanto o desejo de sabedoria conduz agrave realeza Oacute

tiranos dos povos se vos deleitais com tronos e cetros honrai pois a

sabedoria a fim de que reineis eternamente Anunciarei-vos o que eacute a

sabedoria e como ela se originou e natildeo vos esconderei os misteacuterios poreacutem

desde o iniacutecio de sua origem investigarei e farei manifesto o seu

conhecimento e natildeo me apartarei da verdade nem farei caminho com inveja

corruptora porque ela jamais comungaraacute com a sabedoria (Sapientia 6 12-

23)

Outra personificaccedilatildeo biacuteblica que certamente influenciou o caraacuteter amaacutevel da Paz seria

a caridade usada por Paulo autor explicitamente citado na ldquoQueixa da Pazrdquo em seis trechos

(169 215 710 712 735 835) Esta estaacute presente em uma de suas cartas redigidas

originariamente em grego koineacute Nota-se que a antiacutetese loucura-sabedoria utilizada por

Erasmo no ldquoElogio da Loucurardquo pode ter muito provavelmente sua origem ou inspiraccedilatildeo nos

escritos sapienciais biacuteblicos sejam veterotestamentaacuterios sejam paulinos A grande diferenccedila

contudo das ficccedilotildees de Erasmo para com aqueles textos consiste no uso da primeira pessoa

do singular numa estrutura de monoacutelogo no qual a personagem fala de si mesma e discorre

85

longamente sobre o tema em questatildeo abrangendo inclusive a totalidade do discurso e natildeo

somente alguns trechos

Na literatura biacuteblica aleacutem da primeira pessoa do singular verificam-se descriccedilotildees

dessas prosopopeias abstratas na terceira pessoa do singular o que eacute evitado no ldquoElogio da

Loucurardquo e na ldquoQueixa da Pazrdquo Esta seria a grande novidade que Erasmo proporcionou agrave

declamaccedilatildeo enquanto gecircnero antigo recebido no Renascimento (Chomarat 1981 p 940

Kennedy 1978 p 85) Ao comentar genericamente as personificaccedilotildees da Loucura e da Paz

Kennedy (1978 p 79) afirma que Erasmo ldquoincorporou usos da voz e intensidade que

romperam os limites da locuccedilatildeo e as proacuteprias barreiras linguiacutesticas transcendendo as

convenccedilotildees ciceronianas ou aacuteticas que no periacuteodo se procuravam associarrdquo Nesse sentido

rompeu os paradigmas biacuteblicos ao conceder a suas personificaccedilotildees simulaccedilatildeo de um discurso

direto de um monoacutelogo na integralidade do opuacutesculo Diferenciam-se inclusive dos diaacutelogos

presentes em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo com as personificaccedilotildees do amado e da amada embora

sejam apresentados em discursos diretos Estas tambeacutem se distinguem das declamaccedilotildees

erasmianas pois entatildeo em forma de diaacutelogo inclusive com a presenccedila de outros personagens

natildeo protagonistas e tais discursos diretos do casal natildeo ocupam a integralidade do livro

33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio

Se quanto agrave personificaccedilatildeo simulada a ldquoQueixa da Pazrdquo muito se assemelha a alguns

trechos biacuteblicos a forma de um monoacutelogo inteiramente atribuiacutedo a uma prosopopeia feminina

eacute encontrada poreacutem nos poemas elegiacuteacos das epiacutestolas que Oviacutedio escreveu e denominou

posteriormente como ldquoHeroidesrdquo Embora esta natildeo contenha personificaccedilotildees conveacutem aqui

consideraacute-la Trata-se de uma coleccedilatildeo de vinte e uma cartas de amor escritas e dirigidas a seus

amados por personagens femininas da mitologia e da literatura com exceccedilatildeo de trecircs cartas

que satildeo dirigidas por homens agraves suas amantes A ausecircncia o esquecimento a distacircncia o

abandono ou a perda funcionam como pontos de partida para que as heroiacutenas dediquem cartas

e se lamentem dos seus amores insatisfeitos por diversas causas As heroiacutenas procedem de

diferentes mitos e gecircneros literaacuterios como os poemas homeacutericos a trageacutedia a liacuterica a eacutepica

entre outros Oviacutedio adapta as personagens femininas agrave sua sensibilidade elegiacuteaca com a qual

desenvolve o tema do amor por exemplo na epiacutestola de Peneacutelope a qual expressa em sua

carta a Ulisses sentimentos amorosos (Heroides 1) apenas esboccedilados na ldquoOdisseiardquo Soto

86

(2012 p 52) nota que Oviacutedio caracterizou as amantes e concubinas de forma mais atraente e

beneacutevola que a empregada para descrever as esposas que muitas vezes causavam problemas

aos seus esposos Esta ideia contrariava frontalmente a moral de Augusto que visava por

meio de decretos a proteger os ldquobons costumesrdquo na sociedade romana Soto (2012 p 51)

tambeacutem nota que as personagens mitoloacutegicas caracterizadas por Oviacutedio correspondem mais agraves

mulheres do seu tempo do que agraves proacuteprias narrativas mitoloacutegicas Ao comentar as ldquoHeroidesrdquo

observa Margolin (1971 p 224 nota 8) os discursos diretos ldquoaplicam as liccedilotildees de retoacuterica

que ele [Oviacutedio] teria recebido junto aos mestres Aureacutelio Fusco e Porcio Latro Oviacutedio natildeo

procura nelas a verossimilhanccedila histoacuterica Elas pertencem agrave tradiccedilatildeo das suasoriaerdquo

Verificaram-se referecircncias de Erasmo agraves ldquoHeroidesrdquo nos ldquoAdaacutegiosrdquo no ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo

(p 42 ll 538-543) e no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo eacute justamente no trecho desta terceira

obra cujo subtiacutetulo Peculiaris epistolae character em que Erasmo trata da caracterizaccedilatildeo das

personificaccedilotildees que se deu a referecircncia agraves ldquoHeroidesrdquo agraves quais natildeo hesitou em chamar de

ldquopequenas declamaccedilotildeesrdquo (declamatiuncula) (De conscribendis epistolis p 224 ll 5-10)41

Em algumas das ediccedilotildees revisadas pelo autor o exordium da declamaccedilatildeo irecircnica de

Erasmo eacute precedido pela indicaccedilatildeo da pessoa que fala no monoacutelogo declamatoacuterio pax

loquitur Esse subtiacutetulo visa a salientar que a declamaccedilatildeo seraacute feita pela proacutepria Paz que

personificada se queixa lamenta ou manifesta sua inconformidade com a injusta perseguiccedilatildeo

que os homens fazem contra ela embora ela por sua natureza beneacutevola seja capaz de

comunicar aos homens todos os bens naturais e sobrenaturais individuais e coletivos Eis

assim que a ldquoQueixa da pazrdquo se tornaraacute como o proacuteprio Erasmo mais tarde afirmou o

ldquoEpitaacutefio da Pazrdquo tatildeo rejeitada ao longo da Histoacuteria e sobretudo naquele iniacutecio do seacuteculo

XVI (na Epiacutestola a Joatildeo Botzheim) Trata-se de um traccedilo de ligaccedilatildeo com a elegia que teve

iniacutecio como canto fuacutenebre O uso da personificaccedilatildeo se baseava no princiacutepio defendido pelo

roterdamecircs ldquoa personificaccedilatildeo eacute variaacutevel de diversas formas o escritor pode selecionar a que

deseja que se deve fazer Assim como eacute o homem assim deve ser sua accedilatildeordquo (De Copia I

13) Esta teoria remonta agrave construccedilatildeo de caracteres (ἦθος) jaacute presente nas poeacuteticas de

Aristoacuteteles (Poeacutetica 6 12-15) e Horaacutecio (Ars Poetica 153-178)

41

Margolin (1971 p 253 nota 6) tambeacutem visualizou uma referecircncia indireta agraves heroidas no seguinte trecho ldquoIn

hoc argumenta poterit et illud admoneri blandiorem oportere flngi epistolam quam adolescens adolescenti

congerro congerroni amans scrihit amantirdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 253 ll 5-7) como tambeacutem

no seguinte trecho ao se falar do retorno de Ulisses agrave proximidade de Peneacutelope descrita nas Heroidas de Oviacutedio

ldquoQuum ad vxores ventum est tum jiunt seneserdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 269 l 17)

87

34 Personificaccedilotildees femininas

Chomarat (1981 p 1000) afirma que a personificaccedilatildeo da Paz possui duas

caracteriacutesticas essenciais eacute feminina e abstrata Isso natildeo somente porque pax em latim eacute um

substantivo feminino mas por sua proacutepria caracterizaccedilatildeo por Erasmo Aristoacuteteles apontou que

haacute caracteres adequados e distintos agrave personificaccedilatildeo masculina e agrave feminina ldquosem duacutevida

existem caracteres viris entretanto a coragem desta espeacutecie de caracteres natildeo conveacutem agrave

natureza femininardquo (Poeacutetica 15 4) Se o Estagirita aponta a coragem como um elemento

proacuteprio ao homem para Mendelson (1994 p 94) Quintiliano recomendava que a actio

considerasse no caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava e em seu auditoacuterio alguns fatores

relevantes como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade sexo idade partido e

acima de tudo seu caraacuteter moral (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 37-38) Tambeacutem no ldquoDe copiardquo

(II 384-389) ele se refere agrave consideraccedilatildeo do gecircnero da pessoa que emite o discurso Deste

modo verifica-se que o recurso agrave caracterizaccedilatildeo do feminino eacute um fator relevante dentre as

estrateacutegias de persuasatildeo exploradas por Erasmo ao personificar a Paz como uma saacutebia e

compassiva mulher (Spierling 2008 p 119) que se dirige a todos os mortais para convencecirc-

los das vantagens individuais e sociais da paz apresentando razotildees naturais tais como a

incompatibilidade entre a natureza e a guerra e as consequecircncias inconvenientes da guerra no

plano poliacutetico e soacutecio-econocircmico Do ponto de vista religioso a guerra natildeo corresponde ao

ideal da cavalaria medieval e da propagaccedilatildeo da feacute Erasmo denuncia a incoerecircncia com a

doutrina cristatilde por parte de bispos e pregadores agentes da guerra ainda que por motivos

ldquojustosrdquo ou ldquosantosrdquo mas muitas vezes insignificantes

Embora a personificaccedilatildeo erasmiana natildeo seja uma prosopopeia feminina isto eacute

representasse a ficccedilatildeo de uma mulher ldquoem concretordquo ndash como encontramos nas ldquoHeroidesrdquo ndash

mas sim de uma abstraccedilatildeo ou alegoria como no caso da paz ou da loucura ou por exemplo

como encontramos em Ciacutecero ao atribuir uma voz agrave paacutetria e agrave repuacuteblica no iniacutecio das

ldquoPrimeiras Catilinaacuteriasrdquo (718 11 27) eacute justamente nesse ponto entre outros que

encontramos mais uma inovaccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana

Erasmo escreveu vaacuterias de suas obras tendo a figura da mulher dentro do contexto do

matrimocircnio seja na fase anterior (virgens) durante este (casadas) ou posterior (viuvez) tais

como o ldquoElogio do matrimocircniordquo (1518) o ldquoPretendentes e meninasrdquo (1523) o ldquoVirgem

misoacutegamardquo (1523) o ldquoVirgem penitenterdquo (1523) o ldquoEsposa mempsigama ou casamentordquo

88

(1523) e alguma trechos do ldquoInstituiccedilatildeo do matrimocircnio cristatildeordquo (1526) Sua declamaccedilatildeo

ldquoElogio do matrimocircniordquo e o seu tratado sobre a viuvez assim como vaacuterios de seus coloacutequios

lidam com a virgindade o namoro o casamento a criaccedilatildeo de filhos e a viuvez (Chomarat

1981 p 894) assuntos que tocam diretamente em questotildees da relaccedilatildeo entre os gecircneros

masculino e feminino Sowards (1982 p 88) apresenta alguns pontos especiacuteficos na

concepccedilatildeo erasmiana acerca da mulher a necessidade de lhes prestar a educaccedilatildeo em

conformidade com os humanistas italianos que julgavam ser esta essencial para uma formaccedilatildeo

moral que preserve a virgindade preacute-matrimonial aleacutem disso compreendia a liberdade da

mulher na escolha do cocircnjuge Este enfoque em questotildees de castidade deve-se agraves discussotildees

acerca da exaltaccedilatildeo do celibato sobre ao matrimocircnio que Erasmo confuta promovendo um

elogio e uma suasoacuteria do matrimocircnio (Leushuis 2004 p 1287-1307) Se de um lado a Paz

se reveste dos caracteres femininos Erasmo tambeacutem cita uma frase paulina afirmando que

natildeo se pode fazer distinccedilatildeo ldquoentre grego e baacuterbaro entre homem e mulherrdquo onde se nota

abertura para a consideraccedilatildeo de certa igualdade entre os gecircneros ldquoA partir daiacute natildeo haacute mais

servos e homens livres baacuterbaros e gregos homens e mulheres mas todos satildeo o mesmo em

Cristo que tudo conduziu agrave concoacuterdiardquo (Queixa da Paz 369-370)

Em alguns trechos escritos por Erasmo haacute a transcriccedilatildeo de alguns estereoacutetipos do sexo

feminino

O sexo feminino eacute afligido por dois viacutecios Elas vivem para agradar na

aparecircncia Este desejo eacute originaacuterio na vangloacuteria Segundo elas natildeo podem

tolerar injuacuterias e satildeo propensas agrave vinganccedila Isso se deve agrave fraqueza dos seus

intelectos e agrave sua ignoracircncia para com a verdadeira nobreza Uma mente

realmente nobre releva a injuacuteria Ademais como a mulher eacute levada pelas

emoccedilotildees elas medem a honra pelos padrotildees exteriores e natildeo podem tolerar ser

superadas nessas mateacuterias (Epistola V p 704 F-5A)

Se Erasmo afirma a ldquopeculiar inconstacircncia da mulherrdquo (De Copia II 758)

reconheceo mesmo em relaccedilatildeo agrave crianccedila ao povo e inclusive ao proacuteprio homem Para

Rummel (1996 p 4) o holandecircs reproduz em seus escritos os defeitos dos estereoacutetipos

masculino e o feminino Os homens satildeo como feras mas como estatildeo no controle patriarcal

satildeo mimados facilmente enganados A mulher eacute rancorosa vatilde ignoacutebil atrasada

intelectualmente e manhosa mas tal leitura do texto conforme a proacutepria autora claramente se

propotildee a explicar deve ser entendida no gecircnero proacuteprio dos textos erasmianos sobre o

matrimocircnio que abordam os dois lados da questatildeo embora tais estereoacutetipos sejam por vezes

refutados logo em seguida por ele Leushuis (2004 p 1288) tambeacutem constata que as

89

declamaccedilotildees erasmianas que tratam do casamento apresentam probatio e confutatio a favor da

instituiccedilatildeo Entretanto apesar do comprometimento de Erasmo para a defesa do matrimocircnio

o autor submetido agrave forma do gecircnero natildeo deixa de apresentar por exemplo em uma carta de

genere dissuasorio uma lista de argumentos teoloacutegicos contra o matrimocircnio como a

virgindade e o celibato como meios de felicidade e o desejo sexual como pecado assim como

alguns prejuiacutezos do contato entre os gecircneros Se o matrimocircnio eacute uma armadilha a mulher

seria um ser trapaceiro que envolve o noivo em seus laccedilos (2004 p 1288) mas conveacutem

entender tais afirmaccedilotildees como os argumentos que Erasmo pretende refutar a ponto de aleacutem

do elogio agrave beleza agrave gentileza das francesas e a Margareth More nos proacuteprios escritos sobre o

matrimocircnio a mulher tambeacutem ser apresentada como mais do que uma companheira

agradaacutevel

O que eacute pois mais doce do que viver com uma mulher com quem tu estaacutes

mais intimamente ligado natildeo apenas pelos laccedilos de afeto mas tambeacutem pela

uniatildeo fiacutesica Se tirar o grande deleite espiritual da bondade dos outros

parentes proacuteximos e conhecidos como eacute muito mais agradaacutevel ter algueacutem com

quem compartilhar os sentimentos secretos do coraccedilatildeo com quem tu podes

falar como consigo mesmo Com essa lealdade obtens seguranccedila com quem

conduz as tuas fortunas como proacuteprias Que felicidade existe na uniatildeo de

marido e mulher Em comparaccedilatildeo com isto naotilde existe nada maior nem mais

duradouro em toda a natureza Enquanto estamos ligados com os nossos

outros amigos pela benevolecircncia do espiacuterito com uma esposa estamos unidos

pelo maior carinho pela uniatildeo fiacutesica pelo viacutenculo do sacramento e pela

partilha comum de todas as fortunas (De conscribendis epistolis Collected

Works Erasmus 25 p 139)

Basta ler o exordium da ldquoQueixa da Pazrdquo para a clara percepccedilatildeo de que o feminino

caracterizado pelo roterdamecircs se coaduna com uma visatildeo positiva da mulher e natildeo com o

estereoacutetipo negativo utilizado por ele nas confutaccedilotildees retoacutericas de alguns trechos de seus

escritos Dificilmente se podem esperar demonstraccedilotildees inequiacutevocas sobre questotildees

complexas como o papel da mulher de um homem que afirma que ldquoassuntos humanos

podem tomar tantas formas que respostas definitivas natildeo podem ser fornecidas para todos

elesrdquo (Rummel 1996 p 12 Terpstra 1997 p 696) Margolin (2000 p 10) com argumentos

anaacutelogos demonstra como os elogios e as criacuteticas agrave mulher presentes nos escritos de Erasmo

natildeo podem ser inferidos como seu ldquopensamento expliacutecitordquo devido agrave transposiccedilatildeo do eu

discursivo para uma personificaccedilatildeo diversa do autor e que era proacutepria do gecircnero literaacuterio por

ele utilizado

90

Entretanto estas afirmaccedilotildees ao levarem em conta apenas os escritos sobre o

matrimocircnio e a personificaccedilatildeo da Loucura podem natildeo ter explicitado a caracterizaccedilatildeo do

feminino presente na ldquoQueixa da Pazrdquo que apresenta exatamente as qualidades contraacuterias ao

estereoacutetipo dos defeitos da mulher a Paz eacute amorosa saacutebia sublime intelectualmente superior

aos homens e delicada Eacute a mulher perfeita que oferece a si mesma para o benefiacutecio da

humanidade Ela eacute imortal face aos homens mortales Representa a mulher em seu esplendor

conforme os criteacuterios do que era considerado belo naquele contexto histoacuterico Veremos

ademais que aleacutem de mulher a Paz figura de um modo tatildeo elevado que mais se assemelha a

uma ninfa ou a uma deusa embora mantenha seus caracteres femininos segundo os moldes

predominantes no seacuteculo XVI adaptando seu ecircthos ao que o puacuteblico espera de quem

argumente sobre ela Sloane (2004 p 113) ao comentar os antigos fundamentos retoacutericos

para os autores do Renascimento escreveu

Em termos retoacutericos a questatildeo gira em torno do ecircthos ou seja os meios pelos

quais um falante ou escritor projeta uma autoimagem Eacute bem sabido que a

absorccedilatildeo com a retoacuterica ndash uma arte sobre a qual os pagatildeos como Ciacutecero

tinham muito a dizer ndash eacute uma das marcas do humanismo renascentista Ecircthos

identidade ou individualidade eacute um princiacutepio fundamental da retoacuterica E

caraacuteter por sua vez foi um dos principais temas do proacuteprio Renascimento um

periacuteodo em que personalidades altamente individualizadas colocaram seu selo

sobre as maravilhas artiacutesticas e intelectuais da eacutepoca O Renascimento foi um

tempo por outro lado em que a autoconstruccedilatildeo tornou-se possiacutevel em que o

passado e a linhagem se tornaram um pouco menos funcional ou louvaacutevel do

que a identidade que cada um era capaz de forjar para si mesmo

Autoconstruccedilatildeo bem como o ethos capturou a imaginaccedilatildeo dos leitores ndash por

meio de peccedilas de prosa curtas chamadas ldquocaraacuteteresrdquo atraveacutes das ldquoCaraacuteteresrdquo

receacutem-impressas de Teofrasto atraveacutes da retoacuterica revivida de Aristoacuteteles com

sua descriccedilatildeo de vaacuterias personagens que o orador pode encontrar em sua

audiecircncia Como estes uacuteltimos exemplos indicam ecircthos em particular teve

uma aplicaccedilatildeo praacutetica e comunicativa (Sloane 2004 p 113)

O discurso de uma personagem feminina natildeo ocupa somente algumas partes do

discurso como em algumas das antigas declamaccedilotildees mas de modo semelhante agraves ldquoHeroidesrdquo

ocupam a totalidade do discurso O discurso inteiro ao menos no ldquoElogio da Loucurardquo e na

ldquoQueixa da Pazrdquo satildeo caracteriacutesticos de uma personificaccedilatildeo feminina Vejamos agora por

meio de alguns trechos do discurso como a Paz se caracteriza como ela delineia seu proacuteprio

ecircthos retoacuterico

Jaacute no exordium (Queixa da Paz 18-21) percebe-se natildeo somente a divindade e o

feminino mas tambeacutem o exerciacutecio das tiacutepicas funccedilotildees maternas ldquofonte progenitora

91

aleitadora fomentadorardquo Note-se que natildeo somente substantivos e adjetivos deste gecircnero satildeo

utilizados para a caracterizaccedilatildeo da paz O discurso estaacute coerente com o caraacuteter feminino

sobretudo pela atribuiccedilatildeo da maternidade mais especificamente com o ato de amamentar ou

nutrir assim como o ato de tutelar ou cuidar que naquele tempo era praticado quase

exclusivamente pela figura feminina dentro da estrutura familiar tiacutepica da Antiguidade Se o

uso de substantivos com a terminaccedilatildeo trix pertence ao gecircnero feminino nos substantivos

utilizados por Erasmo nota-se ademais o campo semacircntico da maternidade Essa Paz se volta

ao homem suplicante pelo dom da concoacuterdia demonstrando como ela nutre alimenta protege

e enriquece o homem que eacute tratado como uma espeacutecie de filho pequeno lactente e

dependente A Paz de Erasmo eacute pois uma verdadeira matildee Esta tambeacutem eacute sedutora

perspicaz argumentiva o que se coaduna exatamente com a finalidade da retoacuterica persuadir

Os trechos que elevam o feminino contrastam com oque vitupera o masculino Se este

eacute honrado lento forte reflete o antigo ideal medieval de cavalaria ou mesmo da

combatividade masculina dos antigos heroacuteis da Greacutecia e de Roma Erasmo poreacutem ironiza

essa espeacutecie de honradez que defende ideal da guerra Afronta demonstrando que a

masculinidade atrelada ao heroiacutesmo agravada pelo fato de ser praticada por homens jaacute

maduros estaacute ligada a um caraacuteter sanguinaacuterio contraacuterio agrave proacutepria natureza humana

essencialmente paciacutefica

Ateacute aquilo que outrora era consenso entre os pagatildeos de que natildeo se devia

cobrir os cabelos brancos com um elmo como diz o poeta esse costume hoje

entre os cristatildeos tornou-se motivo de louvor Para Nasatildeo eacute coisa infame um

soldado velho enquanto para estes ser um guerreiro septuagenaacuterio eacute algo

magniacutefico (Queixa da Paz 474-476)

Eacute justamente o contraacuterio do ideal de cavalaria das ldquoChansonsrdquo ou mesmo da ldquoMorte

do Lidadorrdquo de Alexandre Herculano entre outras manifestaccedilotildees ideoloacutegicas presentes na

literatura do Romantismo o idoso ldquohonradordquo pelo fato de ir agrave guerra apesar da idade O

combatente idoso eacute aqui uma figura indigna merecedora de saacutetira ou vitupeacuterio Jaacute a Paz eacute

caracterizada como matildee procura proteger seus filhos os mortais pois ldquonatildeo haacute nada mais

infeliz para os homens do que ela [a guerra]rdquo (Queixa da Paz 25) Na terceira parte da obra

em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica grega (Retoacuterica 1360a) Erasmo desenvolve

argumentos de conveniecircncia econocircmica ou de honra para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia A

maternidade desta se exerce ao garantir o bom desenvolvimento da sociedade Voltaremos a

esse ponto ao tratarmos da Paz enquanto saacutebia e proficiente em assuntos praacuteticos como

92

economia poliacutetica e diplomacia Se de um lado esta eacute caracterizada como mulher deve-se

observar que a declamaccedilatildeo de Erasmo tambeacutem a caracteriza como uma divindade uma deusa

35 A deusa Pax

Para Ciacutecero (De natura deorum II 70) os deuses e deusas estavam caracterizados de

modo a representar as paixotildees e os temperamentos humanos Afrodite por exemplo era a

mais bela das deusas aquela que se deixa levar pelo amor pelo poder da beleza e pelos

impulsos da sexualidade (Ibid II 69) Perseacutefone eacute aquela atraiacuteda pelo mundo espiritual

misteriosa miacutestica que vivia dividida entre o mundo sensiacutevel e o superior e capaz de ser

macabra e ter pensamentos sombrios (Ibid II 66) Ceres eacute a deusa matildee que se deleita com as

crianccedilas exalta a geraccedilatildeo da vida de sentimentos emoccedilotildees e experiecircncias Eacute a deusa do

cereal a nutriz e a matildee (Ibid I 40) Juno seria a mulher do poder a irmatilde e esposa de Zeus

Ciumenta vinga-se em filhos de outras mulheres ou nos espectadores Embora estabeleccedila

relaccedilotildees de fidelidade e lealdade reage agrave frustaccedilotildees com ira e natildeo com depressatildeo (Ibid II

66) Vesta permanecendo virgem revela a mulher em um espiacuterito de integridade Atena

deusa da sabedoria e da vitoacuteria eacute praacutetica desinibida e segura (Ibid II 67) Diana a deusa

atleacutetica ama e protege a natureza (Ibid II 68-69) Nesse sentido a mitologia seria uma

espeacutecie de cataacutelogo de caracteres Essas paixotildees estavam em harmonia com os seus atos de

modo que muitas vezes imitavam as paixotildees humanas fossem as boas chamadas virtudes

fossem as maacutes chamadas viacutecios Assim as deusas possuiacuteam seu proacuteprio ἦθος (caraacuteter) Seu

ἦθος admitia as paixotildees e as accedilotildees harmocircnicas como preceituavam as normas das antigas

poeacuteticas (Aristoacuteteles Poeacutetica VI 12-15 Horaacutecio Arte Poetica 153-178) Van der Poel

(1987) concebe que os criteacuterios horacianos sobre a caracterizaccedilatildeo das personagens foram

influentes e determinantes nas declamaccedilotildees renascentistas

Observe-se entatildeo a deusa Pax correspondente agrave deusa grega Εἰρήνη Esta foi

reconhecida oficialmente como deusa no governo de Otaacutevio Augusto que edificou no

Campus Martius o templo chamado de Ara Pacis e outro chamado de Forum Pacis Desse

modo natildeo havia sido objeto de culto oficial no periacuteodo republicano Filha de Juacutepiter e da

Iustitia era representada com um ramo de oliveiras um cetro e uma cornucoacutepia siacutembolos

associados agrave primavera eacutepoca da florescecircncia da harmonia e da abundacircncia Nota-se que

Erasmo ao caracterizaacute-la em seu exoacuterdio parece ter claramente a figura dessa deusa greco-

93

romana em sua imaginaccedilatildeo sobretudo ao afirmar que nada floresce no mundo sem a proteccedilatildeo

da paz (Queixa da Paz 1-29) A imagem da cornucoacutepia torna-se evidente no seguinte trecho

ldquosem mim natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro

ou santo e nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20) Nos

antigos seu caraacuteter era descrito como gentil (Epigrama atribuiacutedo a Homero 15) doce (Greek

Lyric V Anonymous Fragmento 1021) administradora das riquezas da humanidade (Piacutendaro

Odes oliacutempicas 13 6ss) por fim a deusa da prosperidade (Virgiacutelio Georgicae 2 425ss) Agrave

Paz juntamente com a Justiccedila e a Lei cabe ldquovigiar as obras dos mortaisrdquo (Hesiacuteodo Teogonia

901-903) Como veremos mais detidamente Erasmo caracteriza a Paz ldquolouvada a uma soacute voacutes

pelos deuses e pelos homensrdquo (Queixa da Paz 17) ora como uma deusa ora como uma musa

ao modo antigo pois a pax fala se si mesma como necessaacuteria em relaccedilatildeo ao humano-

contigente (Queixa da Paz 20-21)

Aleacutem da relaccedilatildeo da deusa latina Pax com a grega Εἰρήνη a Paz conclama sua

audiecircncia como mortales entendido basicamente como uma forma de denominar a raccedila

humana mas que no contexto insinua uma oposiccedilatildeo a sua proacutepria imortalidade (Queixa da

Paz 259-260) Se os homens satildeo mortais a Paz os trata como tal afirmando-se como imortal

pois tal como na concepccedilatildeo antiga somente os deuses podem ser imortais (Ciacutecero De natura

deorum II 153) Outro exemplo desse lugar comum eacute encontrado em Saluacutestio que

costumava usar este vocaacutebulo para a diferenciaccedilatildeo dos homens em relaccedilatildeo agraves bestas e aos

deuses (Saluacutestio Bellum catilinae 1 5) Por outro lado haacute a concepccedilatildeo cristatilde predominante

no seacuteculo XVI de que somente as criaturas espirituais podem ser imortais tais como a alma

humana o ser angeacutelico e a essecircncia divina em conformidade com o cristianismo atraveacutes de

numerosas passagens do Novo Testamento (Cf Matheus 1028 Acta Apostolorum 227)

Quando Erasmo utiliza esta expressatildeo no contexto cristatildeo parece querer exaltar a

figura do que fala no caso da Paz uma vez que ao chamar aos homens ldquomortaisrdquo ela se

exclui desse conjunto e como a imortalidade eacute uma caracteriacutestica divina sugere os termos de

sua superioridade conferindo-lhe autoridade para invectivar de quem quer que seja ainda que

sejam altos dignitaacuterios eclesiaacutesticos ou mundanos Chamar de mortais seria entatildeo uma

maneira muito suave de entendecirc-la como dotada de uma autoridade divina A Paz toma o

papel da origem da benevolecircncia como ser divino que infunde sentimentos misericordiosos de

uns para com os outros tal como a divindade cristatilde Para isso utiliza a anaacutefora ldquosem mim

94

natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro ou santo e

nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20)

Desprende-se aleacutem disso em outro trecho a dependecircncia do homem apontada pela

pax A noccedilatildeo de contingente e necessaacuterio no cristianismo eacute anaacuteloga agrave do homem para com

Deus Se aquele depende da Paz ela eacute uma deusa Esta eacute quem faz florescer quem torna tudo

puro e santo quem torna qualquer coisa que ja agradaacutevel aos ceacuteus Natildeo sem razatildeo logo no

exordium esta atribui a si mesma a honra de ser louvada pelos deuses e pelos homens como

administradora dos bens celestiais e terrenos (Queixa da Paz 18-21)

A deusa Paz ousa tratar o proacuteprio Cristo como seu arauto ou mensageiro ldquoCristo fora

enviado por minha causa e tomava conta de mimrdquo (Queixa da Paz 240-241) Nesse ponto a

Paz afirma ter sido anunciada por Cristo Ao tomar a natureza divina usa a autoridade dele

para se dignificar pois os cristatildeos sobretudo em uma sociedade que ainda natildeo havia se

cindido com as variantes confessionais da Reforma acredita que Jesus era um ser

misteriosamente idecircntico e distinto de Deus Pai Este teria encarnado para anunciar o Pai mas

a Paz se afirma como anunciada por ele Esta se identifica entatildeo com o proacuteprio ser que

deveria ser anunciado Esta tambeacutem se apresenta com a missatildeo dele enquanto pacificadora e

mediadora pois o proacuteprio sacrifiacutecio da missa para ser bem aceito pela divindade deve ser

oferecido em seu nome

Quando ordena que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo seja

oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com o irmatildeo porventura natildeo ensina

abertamente que a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e que nenhuma

oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo for recomendada por mim (Queixa da

Paz 318-322)

Nota-se a insinuaccedilatildeo de referir-se ao sacrifiacutecio da missa e comparar o papel da Pax ao

de Cristo Justifica-se esse artifiacutecio no lugar da explicitaccedilatildeo clara e direta devido agrave

interpretaccedilatildeo que alguns cristatildeos costumavam ter em comparaccedilotildees com a pessoa de Cristo

considerada pela teologia catoacutelica como intocaacutevel e incomparaacutevel Insinuar sem afirmar era

necessaacuterio para proteger-se contra possiacuteveis invectivas de teoacutelogos aacutevidos de inuacuteteis e

rancorosas controveacutersias teoloacutegicas lamentadas pela Paz Em oposiccedilatildeo agrave supracitada

referecircncia a duas suasoacuterias senequianas (Suasoacuteria I II e IV) nas quais encontram as questotildees

da guerra e dos combatentes como sujeitos de uma causa honesta Diante da honorabilidade

da guerra natildeo eacute dimimnuiacuteda nem pelo poder do auguacuterio ou pela verdade de feacute Entretanto

95

Erasmo procura tratar a paz como uma causa honesta respandando-se na Biacuteblia contra

aqueles que querem a guerra Desse modo enfraque o argumento juriacutedico filosoacutefico e

teoloacutegico da ldquoguerra justardquo com o poder da retoacuterica

36 A Paz enquanto saacutebia

Natildeo eacute de se estranhar que em sua caracterizaccedilatildeo a Paz aleacutem de feminina e ldquodivinardquo

seja delineada como saacutebia De fato esta desenvolve os seus argumentos poliacuteticos em seu

proacuteprio favor Nota-se a amplitude de aspectos abordados por ela a fim de reforccedilar o

argumento tal como recomendava Aristoacuteteles na defesa de uma causa nos discursos

deliberativos

Quanto agrave paz e agrave guerra eacute preciso conhecer o poder da cidade quanta forccedila jaacute

tem e a quanta pode chegar a natureza das forccedilas que tem agrave sua disposiccedilatildeo e

as que pode acrescentar e aleacutem disso que guerras travou e como planejou Eacute

necessaacuterio saber estas coisas natildeo soacute sobre a proacutepria cidade mas tambeacutem sobre

as cidades vizinhas Eacute necessaacuterio ainda saber com que povos se pode esperar

fazer a guerra a fim de manter a paz com as mais fortes e fazer a guerra contra

as mais fracas Eacute tambeacutem necessaacuterio saber se os recursos militares da cidade

satildeo iguais ou desiguais aos dos vizinhos pois nisto tambeacutem pode ser superior

ou inferior Aleacutem disso eacute necessaacuterio ter estudado natildeo soacute as guerras da proacutepria

cidade mas tambeacutem as das outras em funccedilatildeo dos seus resultados pois de

causas semelhantes resultam efeitos semelhantes (Retoacuterica I 4 9)

Tais lugares comuns sugeridos por Aristoacuteteles e recorrentes em diversos autores

antigos satildeo utilizados pela Paz entre os quais destaca-se logo de iniacutecio o argumento que

ocupa a primeira sessatildeo segundo o qual os animais devem ser imitados como exemplo uma

vez que os homens providos de razatildeo natildeo se comportam como tal mas sim como se presume

dos irracionais (Queixa da Paz 45-50)

Se na Antiguidade a piedade para com os deuses era um lugar-comum uacutetil para defesa

de uma causa (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 8) Erasmo aplica tal recurso retoacuterico agrave cultura cristatilde

utilizando-se de referecircncias dos Evangelhos a Cristo como modelo a ser emulado (Queixa da

Paz 261-268) A Paz natildeo somente o relembra como exemplum mas traz elementos da histoacuteria

greco-romana a serem admirados pelos seus leitores a fim de evitar-se os conflitos armados

(Queixa da Paz 618-621) Partindo dos argumentos de natureza religiosa para os praacuteticos

esta ousa apresentar motivaccedilotildees econocircmicas a favor do irenismo completando assim sua

oniciecircncia acerca de vaacuterias aacutereas do conhecimento (Queixa da Paz 782-797)

96

A segunda estrateacutegia de Erasmo para caracterizar a pax como apta a aconselhar os

homens em seus negoacutecios poliacuteticos sobretudo em defesa de si mesmo seria que este eacute

violento contra sua proacutepria raccedila A sabedoria desta se demonstra tambeacutem pelos argumentos

deliberativos que estimulam accedilotildees concretas para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia e para evitar a

guerra Deve-se salientar ademais a proposta de um esquema jurisdicional entre os priacutencipes

europeus a fim de resolver conflitos dinaacutesticos territoriais e poliacuteticos (Rodrigues 2012 p

275-276)

Segundo Mack (1993 p 307-308) ao comentar o De Copia a analogia que eacute possiacutevel

identificar nos argumentos apresentados pela Paz em seu favor estaacute presente em alguns dos

paradigmas que Erasmo propocircs Colocaremos em paralelo esses meacutetodos com alguns dos

argumentos retoacutericos apresentados

Princiacutepio do De Copia 1 6 Ocorrecircncia na Querela

Apoacutes afirmar sumariamente

prosseguir com uma

explicaccedilatildeo mais ampla

(75A)

O tema do livro estaacute expliacutecito em seu tiacutetulo quando se fala

que a Paz foi rejeitada e perseguida em toda parte pelas

naccedilotildees Demonstra-se cada parte dessa proposiccedilatildeo ao longo

da Queixa da Paz

Enumerar singularmente as

causas do argumento (77A)

A Paz enumera as consequecircncias maleacuteficas da guerra e as

suas proacuteprias benesses como por exemplo ao confrontar o

incremento da cultura e da economia proporcionados por sua

influecircncia e o decliacutenio das duas durante a guerra

Perseguir as causas mais

elevadas (77C)

A Paz acredita que a guerra nasce nos coraccedilotildees humanos

atraveacutes da discoacuterdia dos interesses egosiacutesticos sobretudo de

certas classes mais influentes mas tambeacutem eacute sustentada com

argumentos incoerentes com a pietas cristatilde e o ensinamento

paciacutefico de Cristo

Enumerar as causas que

corroboram com o

argumento (77D)

A Paz enumera as diversas consequecircncias da guerra como o

estupro a peste a decadecircncia moral e econocircmica entre

outros mas tambeacutem enumera as benesses de sua lavra como

a ordem a tranquilidade a prosperidade e a concoacuterdia

universal

Propor e colorir com ricas Erasmo descreve coisas lugares pessoas e periacuteodos

97

descriccedilotildees a favor do

argumento (77E)

histoacutericos a fim de convencer seu leitor como por exemplo

ao descrever a Paz entre os animais ou na repuacuteblica romana

ou ainda entre os anjos ao passo que apresenta a guerra

entre os democircnios os eruditos e os religiosos assim como

se refere aos tempos de Roma ao passado proacuteximo da

guerra dos uacuteltimos doze anos entre outros

Incluir digressotildees quando

conveniente (77F)

Eacute possiacutevel identificar diversas digressotildees na declamaccedilatildeo

tais como sobre a natureza dos animais a legislaccedilatildeo de

sucessatildeo as consequecircncias econocircmicas entre outras

Amplificar argumentos

(77G)

A amplificaccedilatildeo tambeacutem eacute um recurso utilizado pela Paz

como no caso de citar os diversos animais que satildeo capazes

de viver em harmonia Erasmo tambeacutem amplifica o assunto

de Cristo Paciacutefico ao trazer agrave tona diversas passagens

irecircnicas atribuiacutedas a Cristo

A sabedoria da deusa Paz tambeacutem compreende a arte retoacuterica que atraveacutes da sua

declamaccedilatildeo tal como os antigos reacutetores apresenta seu discurso como um modelo de suasoacuteria

a favor da paz e vitupeacuterio contra a guerra

37 A Paz enquanto teoacuteloga

Erasmo utiliza argumentos teoloacutegicos na ldquoQueixa da Pazrdquo de forma separada e

complementar dedicando uma sessatildeo deles aos de origem biacuteblica e outra aos de inspiraccedilatildeo

antiga Hoffman (1994 p 227) defende a hipoacutetese de que ele tratava desses assuntos cristatildeos

inclusive com as antigas teacutecnicas retoacutericas

Nosso estudo sobre a hermenecircutica biacuteblica demonstrou como ele introduzia a

retoacuterica a serviccedilo da teologia Utilizava o meacutetodo alegoacuterico e tropoloacutegico de

forma a coordenar cristologia eclesiologia e eacutetica em um uacutenico caminho

humanista Seu meacutetodo exegeacutetico natildeo somente revela seus princiacutepios

hermenecircuticos mas tambeacutem sua teologia retoacuterica

Ele por exemplo coloca o ldquoCristo paciacuteficordquo como exemplo a ser seguido pelos

leitores Se este se diz cristatildeo deve zelar pela paz da mesma forma como Jesus o havia

recomendado aos seus disciacutepulos Nota-se poreacutem que no caso da Queixa da Paz o holandecircs

98

natildeo usa as passagens da Biacuteblia de modo a fazer uma verdadeira exegese como o realizou nas

diversas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos escritos antigos e biacuteblicos mas delimita alguns trechos para

defender o ponto de vista irecircnico refutando alguns passos sobretudo do Antigo Testamento

que servem de fundamento para seus opositores e de incocircmodo para seu argumento Eacute

justamente nesses pontos que a Paz estabelece uma confutaccedilatildeo (Queixa da Paz 253-259)

A Paz antepotildee o Deus dos judeus com o Deus dos cristatildeos como forma de refutar o

Antigo Testamento com passos do Novo comportamento que se insere no contexto mais

amplo como ponto inequiacutevoco da teologia cristocecircntrica de Erasmo de que natildeo trataremos na

presente dissertaccedilatildeo por tema e pertinecircncia Ele parte de uma expressatildeo tiacutepica das canccedilotildees

medievais de exortaccedilatildeo agrave ldquoguerra santardquo inspiradas em excertos do Antigo Testamento como a

referecircncia ao Deus dos Exeacutercitos (Queixa da Paz 224-236)

Erasmo natildeo discute diretamente a natureza da expressatildeo ldquoDeus dos Exeacutercitosrdquo Prefere

passar pela questatildeo sem aprofundaacute-la com longas digressotildees filoloacutegicas e teoloacutegicas como os

teoacutelogos costumavam fazer nas questotildees sobre a guerra justa ao discutir as passagens a favor

e contra a guerra presentes na Biacuteblia (Cf Isaiacuteas 3218 Salmo 1245 Salmo 1276 Gaacutelatas

616 Isaiacuteas 527) Chomarat (1981 p 938) aponta a necessidade de sobrevivecircncia no meio

poliacutetico e eclesiaacutestico no qual Erasmo atuava como erudito como motivo significativo para a

escolha de um gecircnero que poderia dar liberdade para falar sem ser censurado ou punido

embora as reaccedilotildees contraacuterias ao ldquoElogio da Loucurardquo mostrem que ele natildeo estava totalmente

imune Ao comentar a caracterizaccedilatildeo da personagem emissora do discurso Sloane (2004 p

116) afirma ldquotratava-se de algo como uma maacutescara para o autorrdquo

A personificaccedilatildeo da Paz tambeacutem seria uma espeacutecie de camuflagem para Erasmo pois

embora natildeo se saiba se Erasmo previa que os teoacutelogos se voltariam contra seu irenismo eacute

certo que apoacutes a publicaccedilatildeo desse escrito somado sem duacutevida aos acontecimentos e

polecircmicas posteriores contextualizados na Reforma ocorreram reaccedilotildees contra a ldquoQueixa da

Pazrdquo especialmente na Espanha e na Franccedila

No primeiro paiacutes Zuntildeiga teria encontrado trechos ldquoluteranosrdquo (Bataillon 2007 p

124) No que se refere ao segundo Telle (1978 p 35) aponta que esta declamaccedilatildeo irecircnica

reacendeu justamente a ceacutelebre controveacutersia teoloacutegica ldquoacerca de guerra justardquo atacada por

Erasmo e por outros teoacutelogos catoacutelicos (Ibid p 33) inclusive protestantes como Calvino

99

(Ibid p 36) e defendida pelos teoacutelogos e juristas da Universidade de Paris A polecircmica

chegou a tal ponto que a traduccedilatildeo francesa da Querela publicada por Chevalier de Berquin foi

censurada pela Faculdade de Teologia da Sorbonne em 1ordm de junho de 1525 (Ibid p 32) e

renovada em 1527 (Phillips 1971 p 247)

Natildeo era a primeira polecircmica de Berquin Antes de traduzir para o francecircs as obras de

Erasmo ele havia se dedicado agraves obras de Lutero (Bataillon 2007 p 153) Tambeacutem natildeo era a

primeira polecircmica de Erasmo com os teoacutelogos da Sorbonne pois jaacute havia disputado com estes

por ocasiatildeo das suas traduccedilotildees biacuteblicas (Rodrigues 2012 p 338) Natildeo se deve desconsiderar

ademais os inconvenientes poliacuteticos que a defesa da paz poderia fazer surgir com os priacutencipes

cristatildeos tais como Henrique VIII e Francisco I ciosos das incursotildees militares e ceacutelebres pelos

seus feitos guerreiros (Telle 1978 p 35)

Erasmo com sua ldquoQueixa da Pazrdquo entrava em conflito direto e em plena polecircmica

com teoacutelogos escolaacutesticos e com poliacuteticos influentes e beligerantes a ponto de se verificar a

condenaccedilatildeo sistemaacutetica da Universidade de Lovaina contra toda sua obra literaacuteria e a

mudanccedila de Erasmo para Basileia Suiacuteccedila (Moya Bedoya 2008 p 203) Se natildeo se pode

conceber que o roterdamecircs teria previsto as controveacutersias suscitadas pelos seus escritos

inclusive por uma de suas traduccedilotildees natildeo seria exagero afirmar que este expunha os priacutencipes

e sua hipocrisia de um modo incisivo convincente e em certos trechos satiacuterico

Deve-se por fim considerar que na Queixa da Paz Erasmo natildeo eacute um pacifista a

ponto de negar qualquer forma de conflito armado (Kinsella e Carr 2007 p 55-56) Sua

praacutetica de expor em seus escritos ldquoutramque partemrdquo ou seja os dois lados da questatildeo

(Remer 1994 p 313) como correu no caso da guerra entre os cristatildeos considerada cruel e a

guerra dos cristatildeos contra os turcos considerada justa aleacutem de muitos fatores sobretudo

quando este assume posiccedilotildees ldquohumanistas-cristatildesrdquo contribuiu para que sustentasse a fama de

vir duplex tal como o alcunhou Lutero (Weiler 1997 p 11)

Em termos teoloacutegicos pouca diferenccedila se verifica entre os teoacutelogos pregadores das

cruzadas contra o islatilde nos seacuteculos XII e XIII e alguns trechos do escrito de Erasmo que

argumenta acerca da oportunidade da guerra contra os turcos e da sua inconveniecircncia entre os

cristatildeos (Queixa da Paz 681-685)

100

38 A Paz enquanto viacutetima

Essa matildee zelosa saacutebia divina apresenta-se tambeacutem como viacutetima da guerra e do

instinto sanguinaacuterios dos homens Nota-se assim outra estrateacutegia de persuasatildeo sugerida pela

tradiccedilatildeo dos manuais de retoacuterica pois falar em primeira pessoa de seus proacuteprios males atrai a

compaixatildeo ou o amor dos ouvintes (Retoacuterica a Herecircnio I 8 2) Dessa forma o paacutethos

movido pela Pax no leitor eacute a piedade tal como Aristoacuteteles o explicava em sua ldquoRetoacutericardquo (II

8 2) ldquoa piedade consiste numa certa pena causada pela apariccedilatildeo de um mal destruidor e

aflitivo que afeta quem natildeo merece ser prejudicado que pode prejudicar-nos as noacutes mesmos

ou a algum dos nossos principalmente quando esse mal nos ameaccedila de pertordquo Eacute o que

transparece no exordium sobretudo no seguinte trecho ao estabelecer a antiacutetese entre o seu

amor e a maldade dos homens

E embora eu preferisse somente irar-me contra eles sou antes compelida a me

condoer deles a ter misericoacuterdia deles Eacute decerto desumano afastar de si

aquele que de alguma forma nos ama eacute ingrato hostilizar aquele que merece o

bem eacute iacutempio afligir a progenitora e servidora de todos (Queixa da Paz 8-11)

Aristoacuteteles (Retoacuterica I 12 1) tambeacutem afirmava que convinha que se caracterizassem

os injusticcedilados em primeiro lugar pelo fato de serem necessitados A paz eacute extremamente

necessaacuteria ao homem logo persegui-la se configura como injusto e digno de censura A

intenccedilatildeo seria natildeo somente produzir a piedade para com ela mas a indignaccedilatildeo contra quem

persegue e destroacutei aquela que a tantos beneficia Aristoacuteteles apresenta a indignaccedilatildeo como o

contraacuterio da piedade A primeira muitas vezes nasce da segunda pois quem se indigna contra

os reveses imerecidos tem piedade de quem imerecidamente foi prejudicado (Ibid II 9 2)

Logo no iniacutecio da primeira parte que trata do homem guerreiro como inferior agraves feras a Paz

retoma a estrateacutegia de apresentar-se como viacutetima a fim de mover o pathos da compaixatildeo dos

leitores e acrescenta em seu caraacuteter a capacidade de perdoar ldquoSe feras me desprezassem desse

modo eu o suportaria mais facilmente e atribuiria essa ofensa agrave natureza que inserira nelas

uma iacutendole selvagemrdquo (Queixa da Paz 31-32)

Apoacutes descrever longamente a onipresenccedila dos litiacutegios clericais inclusive entre os

religiosos que deveriam primar pela perfeiccedilatildeo dos conselhos evangeacutelicos a Paz chega ao

cuacutemulo de mostrar-se sem lugar para morar entre os homens como uma desabrigada e

desamparada em razatildeo da onipresenccedila da guerra

101

Mas pobre de mim Tambeacutem aqui verifico que a cidade estaacute totalmente

maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a tal ponto que quase natildeo se

pode achar uma uacutenica casa na qual exista um lugar para mim por alguns dias

Entretanto deixo de lado o povo que tal como o mar eacute arrebatado por seus

ardores e me recolho (Queixa da Paz 127-130)

Apela pois agrave clemecircncia do coraccedilatildeo humano Como viacutetima exige compaixatildeo e

procura convencer o homem atraveacutes de um discurso que move agraves emoccedilotildees sobretudo agrave

comiseraccedilatildeo ao atrair a simpatia expondo os proacuteprios males

39 Conclusatildeo do capiacutetulo

Erasmo inovou ao trazer para a declamaccedilatildeo uma personificaccedilatildeo feminina A Paz

poreacutem natildeo eacute somente caracterizada como uma mulher com as qualidades e defeitos

estereotipados nos escritos retoacutericos erasmianos que uma visatildeo simplista poderia taxar como

preconceituosa uma vez que reproduz uma valorizaccedilatildeo negativa da mulher Se eacute verdede que

Erasmo tambeacutem reproduz estereoacutetipos masculino com tons natildeo menos severos eacute certo de que

para ele o declamador deve estabelecer o caraacuteter da personagem que fala de um modo

adequado agraves expectativas da audiecircncia fictiacutecia e dos leitores reais a fim de que o discurso

cumpra a finalidade persuasiva que eacute proacutepria do gecircnero Sem a caracterizaccedilatildeo adequada

simultaneamente agrave audiecircncia e agrave personificaccedilatildeo a declamaccedilatildeo natildeo seria persuasiva pois iria

contrariar o princiacutepio retoacuterico da verossimilhanccedila

A Paz eacute abstrata feminina mais precisamente maternal mas tambeacutem eacute uma espeacutecie de

divindade Deve-se poreacutem considerar que sua caracterizaccedilatildeo como deusa natildeo contemplaria

as paixotildees tiacutepicas da mitologia greco-romana mas uma deusa sem defeitos como o Deus

cristatildeo Esta natildeo eacute somente anunciada por Cristo mas eacute capaz de disputar pela sua proacutepria

causa com todos os argumentos possiacuteveis e sugeridos pela antiga tradiccedilatildeo retoacuterica

Parafraseando Quintiliano a Paz entatildeo segue aquele ditame de ser uma ldquomulier divina bona

dicendi peritardquo Esta argumenta baseada em lugares comuns extraiacutedos da natureza (rerum

natura) da teologia biacuteblica e patriacutestica da economia da poliacutetica e de questotildees diplomaacuteticas

pertinentes no seacuteculo XVI como uma ldquoseguidorardquo daquele conselho de Ciacutecero segundo o

qual o orador deve ser proficiente tambeacutem nas leis na histoacuteria e na filosofia para bem

argumentar Aleacutem de saacutebia a paz eacute bondosa como uma deusa ao modo cristatildeo Configurada

como uma abstraccedilatildeo feminina a paz se dirige ao clero e aos priacutencipes com a autoridade de

uma deusa com a estrateacutegia feminina com a bondade de uma matildee com argumentos de uma

102

saacutebia com a piedade de uma teoacuteloga a fim de persuadir com autoridade suficiente a favor de

sua proacutepria causa Esta seria natildeo a doutrina escolaacutestica da ldquoguerra justardquo mas retoacuterica

humanista (erasmiana) da ldquopaz justardquo

103

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A presente dissertaccedilatildeo de mestrado teve por objeto de pesquisa o estudo da

declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em 1517 por Erasmo de Rotterdam Como resultado

foram apresentados um estudo introdutoacuterio sobre o gecircnero antigo declamaccedilatildeo sua recepccedilatildeo

no Renascimento e a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o portuguecircs brasileiro O texto

fonte utilizado foi extraiacutedo da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi Roterodami

Opera Omnia Amsterdam 1978)

Ao longo do estudo introdutoacuterio discorremos sobre a definiccedilatildeo e as principais

propriedades da declamaccedilatildeo Delineamos esse gecircnero discursivo como originaacuterio na Greacutecia

onde se chamava meleteacute recebido pelos latinos com o nome de declamaccedilatildeo Distinguimos

dois ambientes nos quais era praticada primeiro nas escolas de retoacuterica quando nos

manuais estava situada entre os uacuteltimos exerciacutecios das progymnaacutesmata caracterizado como

um treinamento da performance ou da pronuacutencia e a simulaccedilatildeo do discurso de uma

personagem histoacuterica ou mitoloacutegica segundo em reuniotildees sociais ou seja a praacutetica de

discursos fictiacutecios tambeacutem atribuiacutedos a personagens histoacutericas ou mitoloacutegicas em um

ambiente restrito e de niacutevel cultural e econocircmico elevado praticado por pessoas que jaacute tinham

o haacutebito da oratoacuteria puacuteblica seja judicial seja deliberativa a fim de exercitar-se ou mesmo

deleitar os convivas Tal praacutetica assemelhava-se ao haacutebito da recitatio na qual os antigos

divulgavam em leituras puacuteblicas a uma audiecircncia seleta novos escritos em prosa ou em

versos

Verificamos que nos dois ambientes nos quais se praticava a declamaccedilatildeo o principal

objetivo e desafio do gecircnero seria a caracterizaccedilatildeo adequada da personagem fictiacutecia

selecionada onde a representaccedilatildeo do ecircthos discursivo deveria adequar-se agrave personalidade agrave

ocasiatildeo ao tema agrave audiecircncia de modo que o discurso fosse maximamente persuasivo e

verossiacutemil Desse modo a principal figura de linguagem contemplada na declamaccedilatildeo seria a

prosopopeia

Quanto agraves personagens correntemente utilizadas nas antigas declamaccedilotildees

predominavam as masculinas muito embora tambeacutem se utilizassem as femininas conquanto

em posiccedilotildees inferiores ou subalternas Embora natildeo fosse usual a utilizaccedilatildeo de personificaccedilotildees

104

no sentido de abstraccedilotildees ou coisas que tomam a voz nota-se o uso de personagens femininas

em posiccedilatildeo de protagonista em discursos que ocupavam a integridade da obra nas ldquoHeroidesrdquo

de Oviacutedio muito embora estas natildeo pertencessem ao gecircnero declamaccedilatildeo mas ao epistolar

Tais dados foram significativos ao constatar esta adiccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana ao

apresentar uma personificaccedilatildeo feminina como remetente do discurso

Quanto ao uso de personagens histoacutericas como eacute habitual em vaacuterios gecircneros

discursivos natildeo era preocupaccedilatildeo primordial da declamaccedilatildeo a exposiccedilatildeo histoacuterica exata dos

eventos ou das pessoas mas sim a caracterizaccedilatildeo adequada e verossiacutemil das personagens

atraveacutes do discurso direto pois o objetivo natildeo era narrar a histoacuteria mas apresentar o discurso

adequado de determinado personagem para determinada audiecircncia segundo as sensibilidades

desta para com os estereoacutetipos jaacute consignados a respeito das prosopopeias selecionadas

Atestamos que a defesa dos dois lados contraacuterios da causa ou a escolha de apenas um

dos lados variou de acordo com a ocasiatildeo mas era costume apresentar os dois lados da causa

nas escolas de retoacuterica a fim de exercitar o aluno o que natildeo era predominante na declamaccedilatildeo

praticada pelos oradores mais experientes ou em algumas declamaccedilotildees escritas

Quanto agraves espeacutecies da declamaccedilatildeo constatamos a existecircncia de escritos em gecircnero

demonstrativo como elegias e panegiacutericos sobretudo em grego filosoacutefico praticados nas

escolas de retoacuterica deliberativo tambeacutem chamados de suasoacuterias e nos ambientes de discussatildeo

puacuteblica e na simulaccedilatildeo de temas tiacutepicos do gecircnero deliberativo por ocasiatildeo de temas

histoacutericos com a finalidade de suadir os cidadatildeos a optarem entre outros assuntos pela paz

ou pela guerra pelo aumento ou diminuiccedilatildeo de impostos e outras decisotildees de interesse

puacuteblico judicial tambeacutem chamados de causae ou controuersiae por simularem temas e

ocasiotildees proacuteprias dos tribunais

Ainda sobre a declamaccedilatildeo antiga percebemos que essa durante a transiccedilatildeo de regime

poliacutetico da repuacuteblica para o impeacuterio tomou paulatinamente o lugar da antiga oratoacuteria

tornando-se o gecircnero apropriado para a praacutetica da emissatildeo dos discursos em forma oral e

escrita

Os atuais corpora das declamaccedilotildees gregas e latinas mais amplos datam justamente do

periacuteodo imperial e foram escritos em latim e grego dependendo da localizaccedilatildeo dos seus

produtores assim Quintiliano Secircneca que viveram na parte latina escreveram sobre a

105

declamaccedilatildeo ou declamaccedilotildees nessa liacutengua ao passo que Plutarco Heacutelio Aristides Luciano de

Samosata Libacircnio de Antioquia e Coriacutecio de Gaza as escreveram em grego Portanto

embora as origens do termo e das referecircncias agrave declamaccedilatildeo contidas nos manuais de retoacuterica

remontem a periacuteodos anteriores as principais fontes da declamaccedilatildeo grega e a latina que

chegaram ateacute noacutes datam da eacutepoca imperial

A renovaccedilatildeo deste gecircnero durante o Renascimento estaacute diretamente relacionada agrave

recuperaccedilatildeo e reediccedilatildeo nos seacuteculos XV e XVI dos corpora antigos que continham

declamaccedilotildees ou que tratavam do gecircnero como eacute o caso da reediccedilatildeo do texto completo da

ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano em 1416 Tal recuperaccedilatildeo partiu do norte da Itaacutelia

primeiramente com Salutati e posteriormente com Lourenccedilo Valla A partir deste chegou ao

norte da Europa sendo praticada nos dois primeiros dececircnios do seacuteculo XVI por Erasmo e

More A partir desses dois humanistas sobretudo pela influecircncia do roterdamecircs foi utilizada

por outros contemporacircneos como Vives Cardano e Agrippa

O contato com as declamaccedilotildees antigas por Erasmo deu-se basicamente sob quatro

formas que classificamos natildeo necessariamente em ordem cronoloacutegica primeiro como leitor

no periacuteodo em que ainda era estudante de teologia ao ter conhecimento das obras que

tratavam a respeito como eacute as de Quintiliano e Ciacutecero (Chomarat 1981) segundo como

editor ao publicar em forma impressa as declamaccedilotildees de Secircneca o Velho terceiro como

tradutor ao transpor do grego para o latim algumas das declamaccedilotildees de Luciano Libacircnio e

Plutarco quarto como escritor ao publicar onze declamaccedilotildees tratadas explicitamente por ele

jaacute no tiacutetulo das obras ou classificadas por ele como tal em epiacutestola a Joatildeo Botzheim (1523)

entre as quais as mais ceacutelebres satildeo o ldquoElogio da Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo

A escrita desta natildeo foi posterior a novembro de 1516 e foi publicada em 1517 quando

Erasmo era conselheiro de Carlos V e residia em Lovaina Beacutelgica A obra foi dedicada ao

Abade Antocircnio van Bergen e foi possivelmente redigida a pedido do chanceler Joatildeo Sauvage

O evento histoacuterico proacuteximo que teria motivado a redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz

foram as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e por fim da

alianccedila franco-veneziana (1513-1516) cujos conflitos dispersos pela Europa tambeacutem

atingiam os locais de residecircncia ou frequentados pelo roterdamecircs

106

A caracteriacutestica mais marcante desta declamaccedilatildeo de Erasmo eacute que natildeo apresenta

qualquer introduccedilatildeo ou conclusatildeo narrativa como por exemplo costuma ocorrer em algumas

das declamaccedilotildees senequianas mas transcrevia o discurso direto emitido por uma

personificaccedilatildeo abstrata Trata-se de uma repeticcedilatildeo da praacutetica registrada no ldquoElogio da

Loucurardquo Natildeo haacute diaacutelogos no texto como aliaacutes eacute proacuteprio de uma declamaccedilatildeo entendida

geralmente como um monoacutelogo muito embora o roterdamecircs classificasse na epiacutestola a Joatildeo

Botzheim (1523) o diaacutelogo ldquoAntibaacuterbarosrdquo como uma declamaccedilatildeo ainda que este apresente

mais de uma personagem cada qual com vaacuterios discursos diretos reciprocamente

direcionados

A disposiccedilatildeo retoacuterica da obra segue a tradiccedilatildeo antiga quanto agrave estrutura baacutesica

proecircmio narratio confirmaccedilatildeo e epiacutelogo Mais especificamente podemos dividir a Queixa

da Paz nas seguintes partes com a numeraccedilatildeo correspondente (os nuacutemeros se referem agraves

linhas da jaacute mencionada ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo) proecircmio (προοίμιονexordium) (4-

29) Narratio (διήγηζις narratio) (30-112) a primeira parte trata da paz entre os animais (30-

112) a segunda parte descreve a destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) a confirmaccedilatildeo

(πίζηις probatio) cuja primeira parte apresenta o exemplo de Cristo paciacutefico modelo a ser

seguido pelos que se dizem cristatildeos (203-401) a segunda parte apresenta o exemplo dos

pagatildeos (402-435) a terceira parte argumenta como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo

prejudicados pela guerra (436-594) a quarta parte sugere accedilotildees para que o priacutencipe evite a

guerra (595-871) e por fim finaliza-se com o epiacutelogo constituiacutedo de vaacuterios vocativos

(επίλογοςperoratio) (872-918)

Em conformidade com a tradiccedilatildeo antiga das declamaccedilotildees senequianas notou-se a

utilizaccedilatildeo por Erasmo de sentenccedilas ao longo do discurso com o objetivo de tornar o texto

mais expressivo Quanto agraves fontes das sentenccedilas podemos classificaacute-las em trecircs grupos

primeiro as antigas como Platatildeo (9 e 551) Liacutevio (1-3) Homero (75) Oviacutedio (162) Siacutelio

Itaacutelico (210) Ciacutecero (218 e 758) Virgiacutelio (467 e 670) Plauto (764) Pliacutenio (57) Horaacutecio

(152) e Aristoacuteteles (391) segundo as citaccedilotildees de adaacutegios selecionados e remodelados pelo

roterdamecircs em sua proacutepria coletacircnea de ldquoAdaacutegiosrdquo (linhas 18 22 62 77 91 155 505 553-

556 803-804 866 e 906) terceiro as de origem biacuteblica e patriacutestica especialmente ao tratar de

Cristo Paciacutefico A versatildeo latina da biacuteblia citada ao longo da declamaccedilatildeo eacute a Vulgata de

Jerocircnimo

107

Em harmonia com Herding (1974 p 6) nota-se em algumas partes da obra

semelhanccedilas com o gecircnero espelho do priacutencipe e a repeticcedilatildeo de alguns argumentos irecircnicos jaacute

apresentados por Erasmo em escritos como o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInstituiccedilatildeo do

priacutencipe cristatildeordquo A semelhanccedila averiguada aleacutem da dimensatildeo temaacutetica (paz e guerra)

tambeacutem contempla o objetivo suasoacuterio de certas partes do discurso da paz ao dirigir-se ao

governante como quem pretende ensinar ou aconselhar baseado em valores eacuteticos tiacutepicos dos

humanistas colocando os interesses humanos acima de quaisquer outros princiacutepios Em

Erasmo mais especificamente satildeo evocados os princiacutepios cristatildeos tratados como perfeitos

muito embora ao longo do discurso a praacutetica apontada para os seguidores de Cristo natildeo seja

concorde com os valores cristatildeos elogiados pela Paz Ao que parece os proacuteprios argumentos

teoloacutegicos seguem esta finalidade ao omitir os argumentos biacuteblicos e filosoacuteficos favoraacuteveis agrave

guerra justa O texto sobrepotildee a vida humana acima de qualquer outro princiacutepio seja a honra

seja a proteccedilatildeo dos interesses dinaacutesticos ou estatais Inclusive os argumentos econocircmicos satildeo

alinhavados segundo esta finalidade de proteccedilatildeo do indiviacuteduo sobretudo o indefeso ao

mencionar explicitamente as possiacuteveis ofensas contra a mulher e os camponeses (povo)

Conveacutem ainda ressaltar que o humanismo erasmiano eacute essencialmente cristatildeo pois

fundamenta seus argumentos harmonicamente com as fontes biacuteblicas e patriacutesticas mas eacute

tenazmente contraacuterio agraves incoerecircncias para com a feacute e a eacutetica cristatilde por parte daqueles que mais

especialmente deveriam propagaacute-la ou praticaacute-la o clero e os governantes

A obra em estudo apresentou ainda traccedilos do gecircnero deliberativo o aconselhar

(suadere) o auditoacuterio (os priacutencipes e os cleacuterigos) a favor da paz e a evitar a guerra mas

tambeacutem algumas carateriacutesticas do gecircnero demonstrativo ou epidiacutetico ao elogiar a paz e

vituperar contra a guerra Tal constataccedilatildeo aproxima simultaneamente este escrito aos

panegiacutericos e algumas declamaccedilotildees escritas em grego pertences ao gecircnero demonstrativo e

agraves suasoacuterias senequianas especialmente as que tratam da paz e da guerra (Suasoacuterias I II e

IV) A mescla dos trecircs gecircneros discursivos (demonstrativo deliberativo e judicial) natildeo era

novidade e era mesmo reconhecida na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo uma vez que ateacute no gecircnero

judicial como se lecirc na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo era comum o orador vituperar contra os defeitos

morais do oponente ou elogiar as virtudes do seu cliente a fim de angariar a simpatia ou a

antipatia do juiz ou do juacuteri conforme o seu interesse

108

Quanto agrave personificaccedilatildeo da paz aleacutem de sua jaacute mencionada semelhanccedila com as

prosopoeias femininas das ldquoHeroidesrdquo verificamos ainda certa semelhanccedila com as

personagens femininas abstratas biacuteblicas da Sabedoria e da Loucura Poreacutem a Paz

caracterizada por Erasmo se diferencia destas por apresentar um discurso direto que ocupa a

integralidade do livro e natildeo somente uma parte diminuta Ademais a Paz se assemelha agrave

prosopopeiaa da amada presente em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo pelo fato de tambeacutem emitir

discursos diretos e ser protagonista do gecircnero feminino mas por outro lado se diferencia na

medida em que a amada dialoga com outras personagens ao longo do livro

Em relaccedilatildeo agrave Antiguidade a adiccedilatildeo verificada da declamaccedilatildeo erasmiana tanto no

ldquoElogio da Loucurardquo como na ldquoQueixa da Pazrdquo eacute a atribuiccedilatildeo da integralidade do discurso

direto a uma personificaccedilatildeo feminina Esta eacute caracterizada como matildee por nutrir os homens

como filhos como viacutetima de uma atroz perseguiccedilatildeo em toda parte como saacutebia que aconselha

os priacutencipes ao modo do gecircnero Espelho dos Priacutencipes a que conservem a paz e evitem de

todos os modos a guerra O discurso utiliza-se de argumentos filosoacuteficos como eacute o caso do

lugar comum segundo o qual se o homem eacute racional deve ser tatildeo ou mais paciacutefico do que os

animais os quais natildeo satildeo dotados de razatildeo e por consequecircncia de palavra Por outro lado

utiliza-se de argumentos teoloacutegicos biacuteblicos ao apresentar os exemplos de Davi Salomatildeo e

de Cristo Paciacutefico como modelos da opccedilatildeo pela paz proacutepria aos seguidores da religiatildeo cristatilde

A paz utiliza-se ainda de argumentos de ordem poliacutetica social e econocircmica primeiro no que

tange agrave poliacutetica eacute mantenedora da estabilidade do reino e da sucessatildeo hereditaacuteria monaacuterquica

assim como do livre tracircnsito entre as fronteiras dos paiacuteses europeus segundo no que diz

respeito aos aspectos sociais aponta a desestruturaccedilatildeo da vida da cidade por causa da

manutenccedilatildeo de um corpo de mercenaacuterios habituados agrave violecircncia junto a uma populaccedilatildeo

indefesa terceiro com argumentos de dimensatildeo econocircmica indica os diminutos gastos da

resoluccedilatildeo paciacutefica das controveacutersias interestatais em comparaccedilatildeo com o modo beacutelico e os

empecilhos naturais ao comeacutercio em situaccedilotildees de guerra ou siacutetio

A paz mostra-se assim como portadora do ideal da tradiccedilatildeo retoacuterica antiga recebida e

imitada no Renascimento ao caracterizar-se como aquilo a que poderiacuteamos chamar mulier

bona dicendi perita Ela utiliza-se dos diversos recursos retoacutericos proporcionados pela

declamaccedilatildeo especialmente a simulaccedilatildeo de um discurso fictiacutecio em formato de prosopopeia

para mover seus leitores a sentimentos e atitudes paciacuteficas Utiliza-se da comiseratio ao

109

colocar-se como viacutetima e evoca a injusta reaccedilatildeo dos homens para com seus inumeraacuteveis e

incontestes benefiacutecios O homem guerreiro contraria a razatildeo mostra-se sem compaixatildeo para

com seus semelhantes e contradiz a proacutepria essecircncia do cristianismo que apresenta o Priacutencipe

da Paz como ideal a ser seguido e imitado No caso dos detentores de influecircncia social como

cleacuterigos e eruditos a paz estimula que propaguem o ideal da paz Por fim ao dirigir-se aos

governantes propotildee a si mesma como o esteio mestre de uma poliacutetica proacutespera e humana

110

111

NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA

COMENTADA

Quinhentos anos depois da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 suas palavras

ecoam em pleno seacuteculo XXI com surpreendente atualidade Esta declamaccedilatildeo natildeo somente se

apresenta como um primor da recepccedilatildeo e da imitaccedilatildeo dos antigos claacutessicos Nela a

personificaccedilatildeo da paz lamenta contra a guerra e argumenta a favor de si mesma com aquele

estilo elegante irocircnico e incisivo de Erasmo Suas argumentaccedilotildees contemplam praticamente

todas as dimensotildees de relacionamento humano no interior do coraccedilatildeo humano na famiacutelia

nas relaccedilotildees interpessoais e entre os estados Se de um lado muitos pensadores jaacute discorreram

sobre a paz que tal a ouvirmos falar de si mesma Eacute exatamente este o grande presente que

Erasmo proporcionou aos seus leitores naquele iniacutecio do seacuteculo XVI e cuja primeira traduccedilatildeo

para o portuguecircs brasileiro o leitor tem em matildeos

Esta traduccedilatildeo estaacute precedida da carta-proecircmio de Erasmo a Felipe que foi publicada

juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo As notas parcas em extensatildeo e quantidade tecircm o objetivo

de esclarecer algumas variantes entre as ediccedilotildees expressotildees que remetem aos antigos

dificuldades de traduccedilatildeo e informaccedilotildees pertinentes sobre lugares adaacutegios e personagens

citados no texto natildeo evidentes para muitos leitores modernos Algumas destas referecircncias

foram baseadas nas notas da ediccedilatildeo criacutetica propostas por Herding (1977) nas notas das

traduccedilotildees publicadas por Margolin (1992) e Pinto (1999) e no estudo de Tunberg (1996) Os

comentaacuterios em nota estatildeo redigidos de forma que sejam explicativos para pessoas natildeo

especializadas nos estudos claacutessicos ou nas referecircncias histoacutericas ou eclesiaacutesticas utilizadas

por Erasmo em uma possiacutevel publicaccedilatildeo desta traduccedilatildeo O texto latino e a numeraccedilatildeo entre

colchetes das linhas contidas seguem a ediccedilatildeo criacutetica da presente na Desiderii Erasmi Opera

Omnia (IV-2 1977 p 59-101) Utilizamo-nos do dicionaacuterio de Gaffiot como material de

consulta aleacutem de outras traduccedilotildees da obra para outras liacutenguas conforme listamos na

bibliografia Esta traduccedilatildeo natildeo visa simplificar o texto de Erasmo a fim de adaptaacute-lo ao

mercado livresco O puacuteblico-alvo de nossa traduccedilatildeo assemelha-se agravequele do roterdamecircs ou

seja o leitor erudito em geral e ao acadecircmico em particular Nossa traduccedilatildeo visa ser o mais

fiel possiacutevel agrave declamaccedilatildeo Essa fidelidade ao gecircnero exige entatildeo o cuidado em relaccedilatildeo ao

niacutevel de linguagem utilizado a fim de manter natildeo somente a extensatildeo dos paraacutegrafos os

112

quiasmos e as anaacuteforas utilizadas mas tambeacutem as imagens retiradas da cultura claacutessica e

biacuteblica

113

Texto latino da ediccedilatildeo criacutetica

[1] Clarissimo praesuli traiectensi

Philippo Erasmo Roteramus S D

[3] Gratularer tibi Philippe

praesul non minus vitae ornamentis

quam summorum ducum imaginibus

clarassime quod tanti muneris honore sis

auctus ni compertum [5] haberem quam

invitus susceperis quamque gravate

optimi maximique principis Caroli

autoritate fueris adactus cuius alioqui

charitati nihil non eras daturus

[7] Atque haec ipsa res spem

nobis certissimam facit fore ut cum laude

perfungaris suscepto quandoquidem

Plato vir exquisitissimi planeque divini

iudicii non alios existimat ad

rempublicam gerendam idoneos quam

eos qui [10] huc nolentes pertrahuntur

[10] Auget autem nostram de te

fiduciam quoties in mentem venit et cui

tu succedas fratri et quo patre sitis ambo

profecti

[11] Nam David vir eruditus iuxta

ac prudens permultis annis sic locum

istum tenuit ut suis ornamentis

Traduccedilatildeo

Erasmo de Roterdam a Felipe Bispo de

Utrecht saudaccedilotildees43

Distinto como tu eacutes bispo Felipe natildeo

menos pelo esplendor da vossa vida do que pela

grande e principesca linhagem eu me

congratularia contigo o acreacutescimo do seu novo e

mais honroso cargo se eu natildeo soubesse com que

relutacircncia o assumiste e com que dificuldade

foste impelido (a isso) pela autoridade do melhor

e maior dos priacutencipes Carlos pelo qual sentes

tal afeiccedilatildeo que concordarias com qualquer coisa

Eacute justamente isso que nos deu a segura

esperanccedila de que tu desempenhes teu encargo

com louvor Platatildeo44

varatildeo de excelente e

preciso juiacutezo quase divino julgou que ningueacutem

eacute mais apto a governar um corpo poliacutetico do que

aqueles que satildeo chamados a atuar contra a sua

vontade

Ora aumenta nossa confianccedila em ti toda

vez que temos em mente as qualidades do irmatildeo

que sucedeste e o pai do qual ambos voacutes

procedestes

Pois Davi45

varatildeo igualmente erudito e

saacutebio pelos muitos anos manteve essa posiccedilatildeo

43

Felipe de Borgonha eacute um filho bastardo de Felipe o Bom (1396-1467)

44 Platatildeo Repuacuteblica 7520D Erasmo Institutio Principis Christiani ASD IV-1 p 152 I 514ss

45 Como o destinataacuterio um filho bastardo de Felipe o Bom duque da Borgonha que foi bispo de Utrecht de

1455 ateacute sua morte em 1496 Segundo a ediccedilatildeo criacutetica em algumas ediccedilotildees encontramos a seguinte variante

Nam David germanus tuus vir eruditus Tal lectio foi considerada menos original no aparato criacutetico

114

plurimum splendoris ac dignitatis

addiderit ipsi muneri per se licet

amplissimo multis modis magnus ac

suspiciendus sed in hoc praecipue [15]

salutaris reipublicae quod nihil ducebat

antiquius sibi pace publica hac quoque in

parte patrem Philippum Burguindiae

ducem referens virum nulla non re

maximum sed tamen pacis artibus cum

primis insigem et aeternae hominum

memoriae commendatum

[18] Qui tibi hoc etiam impesius

erit exprimendus non tantum ut filius

patri sed ut Philippus Philippo

respondeas

[20] Intelligit iam dudum tua

prudentia quid abs te populus universus

expectet [21] Triplex onus humeris

sustines patris exemplum ac fratris tum

horum temporum fata (quid enim aliud

dicam) nescio quomodo ad bellum

pertrahentia [23] Vidimus ipsi nuper ut

quidam amicis quam hostibus graviores

nihil intentatum reliquerint ne bellorum

aliquando finis esset rursus ut vix

expresserint alii qui [25] reipublicae

principique ex animo bene volunt ut

pacem cum Francis semper optanda

de tal modo que acrescentou por seus proacuteprios

meacuteritos a dignidade e o esplendor ao proacuteprio

ofiacutecio por mais prestigioso que ele fosse em si

mesmo que a si como grande e admiraacutevel

homem convinha com grande e largueza e

variedade mais salutar agrave Repuacuteblica sobretudo

por isto pelo fato de que pensou nada ser mais

importante do que a paz puacuteblica tal como

evocou o teu pai Felipe duque da Borgonha um

grande homem em todas as mateacuterias mas insigne

sobretudo pelas artes da paz e confiado agrave eterna

memoacuteria dos homens46

Deveraacutes tomaacute-lo como modelo de modo

que satildeo sejas [para ele] somente o que um filho eacute

para o pai mas que respondas a Felipe como

[outro] Felipe

Entende haacute muito tempo a tua prudecircncia

o que todo o povo espera de ti Carregas um

triplo peso nos ombros o exemplo do teu pai do

teu irmatildeo e os destinos destes tempos (o que

mais poderia eu dizer) natildeo sei como atraiacutedos

para a guerra Noacutes mesmos vimos ultimamente47

como alguns nada deixaram de tentar embora

sendo mais severos aos seus amigos do que aos

seus inimigos a fim de assegurar que a guerra

jamais tenha fim a dificuldade encontrada pelos

outros que sinceramente desejam o bem para a

sociedade e ao priacutencipe que deve perseguir a paz

46

O reinado de Felipe de Borgonha foi paciacutefico em certo grau mas acima de tudo por obter uma reconciliaccedilatildeo

com a Franccedila ao final da guerra dos cem anos

47 A composiccedilatildeo da Queixa da Paz estaacute relacionada agrave poliacutetica de aproximaccedilatildeo com a Franccedila e de paz universal

promovida por Chiegravevres e Joatildeo Sauvage que emanaram os tratados de Noyon (augusto de 1516) e Cambrai

(marccedilo de 1517)

115

hisce vero temporibus etiam necessariam

amplecteremur

[26] Cuius sane rei indignitas

movit animum meum ut tum Pacis

undique profligatae Querimoniam

scriberem quo nimirum hac ratione

iustissimum animi mei dolorem vel

ulciscerer vel lenirem

[29] Libellum ad te ceu

primitiolas novo episcopo debitas [30]

mitto quo diligentius tueatur tua

celsitudo pacem utcunque partam si non

patiar eam obliuisci quanto negocio nobis

costiterit Bene Vale

[1] QUERELA PACIS UNDIQUE

GENTIUM EIECTAE

PROFLIGATAEQUE

AVTORE DESIDERIO ERASMO

ROTERODAMO

[4] Si me licet immerentem suo

tamen commodo sic aversarentur

eiicerent profligarentque [5] mortales

meam modo iniuriam et illorum

iniquitatem deplorarem Nunc cum me

profligatam protinus fontem omnis

humanae felicitatis ipsi a semet arceant

para com a Franccedila a qual sempre deve ser por

noacutes abraccedilada especialmente nesses dias

A indignaccedilatildeo com essas coisas moveu

completamente o meu espiacuterito a fim de escrever

a queixa da paz perseguida em toda parte de

modo que por este meio poderia vingar ou

pacificar a justiacutessima dor do meu espiacuterito

Envio entatildeo esta pequena obra como

uma espeacutecie de primiacutecia devida ao nosso bispo a

fim de que Vossa Alteza possa ser mais diligente

para preservar a paz se natildeo permito esquececirc-la

quanto trabalho nos custou

Passe bem

Queixa da paz perseguida e rejeitada em toda

parte pelas naccedilotildees

De autoria de Desideacuterio Erasmo de Rotterdam

Se mesmo que natildeo merecendo48

os

mortais ainda assim de tal modo me

hostilizassem perseguissem e rejeitassem tendo

em vista sua proacutepria vantagem eu deploraria

apenas a minha injuacuteria e a iniquidade deles Mas

uma vez que eles tendo me rejeitado impedem a

si mesmos de saciar-se na fonte de toda

felicidade humana e se precipitam no mar de

48

Cf Terecircncio Hec 5 1 14 ldquoinscitum afferre iniuriam tibi immerentirdquo

116

omniumque calamitatum pelagus sibi

accersant magis illorum mihi deflenda

est infelicitas quam mea iniuria et quibus

irasci tantum maluissem horum dolere

vicem hos commiserari compellor Nam

utcumque amantem [10] ab se propellere

inhumanum est bene merentem aversari

ingratum parentem ac servatricem

omnium affligere impium Caeterum tot

egregias commoditates quas mecum

adfero sibimetipsis invidere proque his

ultro tam tetram malorum omnium

lernam accersere an non hoc extremae

cuiusdam dementiae videtur Sceleratis

irasci par est at sic furiis actos quid aliud

quam deflere possumus [15] Qui non

alio sane nomine magis deflendi sunt

quam quod ipsi sese non deflent nec alio

magis infelices quam quod infelicitatem

suam non sentiunt quando nonnullus

gradus est ad sanitatem morbi sui

magnitudinem agnoscere Etenim si ego

sum Pax illa divorum simul et hominum

voce laudata fons parens altrix

ampliatrix tutatrix rerum bonarum

omnium quas vel caelum habet ve (sic)

[20] terra si sine me nihil usquam

florens nihil tutum nihil purum aut

sanctum nihil aut iucundum hominibus

aut gratum superis si contra haec omnia

bellum semel omnium malorum quicquid

usquam est in rerum natura oceanus

todas as calamidades entatildeo devo lamentar mais

a infelicidade deles do que a injuacuteria contra mim

E embora eu preferisse somente irar-me contra

eles sou antes compelida a me condoer deles a

ter misericoacuterdia deles Eacute certamente desumano

afastar de si o que de algum modo nos ama eacute

ingrato hostilizar o que merece o bem eacute iacutempio

afligir a progenitora e servidora de todos

Ademais acaso natildeo parece ser de uma demecircncia

extrema isso de recusar para si mesmos as

vantagens tatildeo grandes que comigo trago e no

lugar delas invocar a tatildeo terriacutevel Lerna de todos

males Eacute justo irar-se contra os criminosos mas

que mais podemos fazer senatildeo lamentar aqueles

que agiram assim por causa das Fuacuterias Estes

certamente devem ser lamentados natildeo por outro

motivo senatildeo justamente porque natildeo lamentam a

si mesmos nem por outro lado haacute homens mais

infelizes do que aqueles que natildeo percebem sua

proacutepria infelicidade uma vez que reconhecer o

tamanho da proacutepria doenccedila eacute um passo para a

cura Se eu pois sou aquela Paz louvada a uma

soacute voz pelos deuses e pelos homens fonte

progenitora aleitadora fomentadora tutora de

todas as coisas boas que existem quer no ceacuteu

quer na terra se sem mim natildeo haacute nada que

floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute

seguro nada eacute puro ou santo e nada eacute alegre

para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteus se em

contrapartida a tudo isto uma uacutenica guerra onde

quer que esteja na natureza das coisas eacute uma

espeacutecie de oceano de todos os males ao mesmo

117

quidam si huius vitio subito marcescunt

florentia dilabuntur aucta labascunt

fulta pereunt bene condita amarescunt

dulcia denique si res est adeo non sancta

ut omnis [25] pietatis ac religionis sit

maxime praesentanea pestis si nihil hoc

uno infelicius hominibus nihil invisius

superis quaeso per deum immortalem

quis credat istos homines esse quis

credat ullam sanae mentis micam inesse

qui me talem tantis impendiis tantis

studiis tanto molimine tot technis tot

curis tot periculis student eiicere

tantumque malorum velint tam chare

emere

[30] Si me ad istum modum

spernerent ferae levius ferrem et in me

admissam contumeliam naturae

imputarem quae ingenium immite

insevisset si mutis pecudibus essem

invisa condonarem inscitiae propterea

quod his ea vis animi negata sit quae sola

dotes meas queat perspicere At o rem

indignam ac plus quam prodigiosam

unum animal aedidit natura ratione

praeditum ac divinae [35] mentis capax

unum benevolentiae concordiaeque

genuit et tamen apud quantumlibet

efferas feras apud quantumvis brutas

pecudes mihi citius locus sit quam apud

homines Iam tot orbium coelestium licet

tempo se por influecircncia dela as coisas que

estavam florescendo subitamente murcham as

grandes se dissolvem os fundamentos ruem as

bem construiacutedas perecem as doces amargam em

suma se eacute algo a tal ponto sacriacutelego que eacute como

a peste venenosa de toda a piedade e religiatildeo se

natildeo haacute nada mais infeliz para os homens do que

ela se nada eacute mais odioso para os ceacuteus por

favor pelo Deus imortal quem acreditaraacute que

tais homens existam quem acreditaraacute que haacute

uma uacutenica migalha de bom senso em seres que

com tantos esforccedilos tantos trabalhos com tanto

peso com tantas teacutecnicas com tantos cuidados

tantos perigos empenhem-se em me lanccedilar fora

a mim que sou assim e prefiram pagar tatildeo caro

por uma quantidade tatildeo grande de males

Se feras me desprezassem desse modo eu

o suportaria mais facilmente e atribuiria essa

ofensa agrave natureza que inserira nelas uma iacutendole

selvagem Se eu fosse odiada pelo gado mudo

eu o perdoaria por sua ignoracircncia porque lhe foi

negada a faculdade do entendimento que eacute a

uacutenica capaz de perceber os meus dons Mas oacute

coisa indigna e mais que monstruosa a natureza

soacute produziu um animal dotado de razatildeo e capaz

da mente divina soacute gerou um ser capaz de

benevolecircncia e de concoacuterdia e no entanto eacute

mais faacutecil haver um lugar para mim junto agraves

feras por mais ferozes que sejam e agraves bestas

por mais brutas que sejam do que junto aos

homens Jaacute dentre os corpos celestes que satildeo

tantos embora seus movimentos natildeo sejam

118

nec motus sit idem nec vis eadem tamen

iis tot iam seculis constant vigentque

foedera Elementorum pugnantes inter se

vires aequabili libramine pacem aeternam

tuentur et in tanta [40] discordia consensu

commercioque mutuo concordiam alunt

In animantium corporibus quam fidus

membrorum inter ipsa consensus quam

parata defensio mutua Quid tam

dissimile quam corpus et anima Et

tamen quam arcta necessitudine

connexuerit haec duo natura nimirum

declarat ipsa divulsio Proinde ut vita

nihil aliud est quam corporis et animae

societas ita sanitas omnium [45] corporis

qualitatum concentus est Animantia

rationis expertia in suo quaeque genere

civiliter concorditerque degunt

Armentatim vivunt elephanti gregatim

pascuntur sues et oves turmatim volant

grues et graculi habent sua comitia

ciconiae pietatis etiam magistrae mutuis

officiis sese tuentur delphini Nota est

formicarum et apum inter ipsas concors

politia Sed quid de his loqui pergo [50]

quae tametsi ratione vacant sensu non

vacant

[51] In arboribus in herbis

amicitiam possis agnoscere Steriles sunt

quaedam nisi marem adiungas vitis

ulmum amplectitur vitem amat persica

iguais nem sua energia seja a mesma contudo

desde haacute muitos seacuteculos existem e vigoram entre

eles pactos As forccedilas dos elementos que lutam

entre si mantecircm a paz eterna atraveacutes de um

equiliacutebrio constante e em meio a tatildeo grande

discoacuterdia fomentam a concoacuterdia por meio do

consenso e do trato reciacuteproco Nos corpos dos

seres animados como eacute soacutelido o consenso dos

membros entre si e quatildeo preparado para a defesa

muacutetua Que existe de mais diferente do que o

corpo e a alma E contudo a proacutepria separaccedilatildeo

evidencia com quatildeo estreito laccedilo a natureza uniu

essas duas coisas De forma que assim como a

vida nada mais eacute que a associaccedilatildeo do corpo e da

alma assim tambeacutem a sauacutede do corpo eacute a

harmonia de todas as suas propriedades Os

animais desprovidos de razatildeo qualquer que seja

a espeacutecie convivem em harmonia e em

concoacuterdia Os elefantes vivem em manada

porcos e ovelhas satildeo apascentados em rebanhos

os grous e os estorninhos voam em bando as

cegonhas mestras de fidelidade tecircm seus

grupos os golfinhos ajudam-se uns aos outros

com cuidados muacutetuos e notoacuterio eacute o regime

cordial das formigas e das abelhas entre si Mas

para que continuo a falar dessas criaturas que

embora desprovidas de razatildeo natildeo satildeo

desprovidas de sentimento

Entre as aacutervores e as plantas poderias

reconhecer a amizade Algumas delas satildeo

esteacutereis a menos que lhes acrescentes o macho

o olmeiro eacute abraccedilado pela videira o pessegueiro

119

Usque adeo quae nihil sentiunt tamen

pacis beneficium sentire videntur Sed

haec rursum ut sentiendi vim non habent

ita quod vitam habeant iis quae sentiunt

finitima [55] sunt Quid aeque brutum

atque saxorum genus Dicas tamen his

quoque pacis et concordiae sensum

inesse Ita Magnes ferrum ad sese trahit

attractum tenet Quid quod inter

immanissimas etiam feras conuenit

Leonum inter ipsos feritas non dimicat

Aper in aprum non vibrat dentem

fulmineum Lynci cum lynce pax est

Draco non saevit in draconem Luporum

concordiam etiam proverbia nobilitarunt

[60] Addam quod magis etiam mirum

videatur impii spiritus per quos caelitum

atque hominum concordia primum

dirupta est et hodie rumpitur tamen inter

se foedus habent suamque illam

qualemcumque tyrannidem consensu

tuentur

[64] Solos homines quos omnium

maxime decebat unanimitas quibusque

cum [65] primis opus est ea neque natura

tam aliis in rebus potens et efficax

conciliat nec institutio coniungit nec tot

ex consensu profecturae commoditates

conglutinant nec tantorum denique

malorum sensus et experientia in mutuum

ama a videira Ateacute mesmo aqueles que nada

sentem parecem no entanto sentir o benefiacutecio

da paz Mais ainda se esses seres natildeo tecircm a

capacidade de sentir satildeo na medida em que tecircm

vida proacuteximos daqueles que sentem O que haacute

de tatildeo bruto quanto agrave raccedila das pedras Dizes

contudo que tambeacutem nestas estaacute contido o senso

da paz e da concoacuterdia Assim o imatilde atrai o ferro

para si e tendo-o atraiacutedo o reteacutem O que eacute isso

que congrega ateacute as feras mais selvagens entre

si A ferocidade dos leotildees entre eles natildeo

aparece49

Um javali natildeo vibra seu dente afiado

contra outro javali haacute paz de lince com lince a

serpente natildeo se enfurece com outra serpente e

ateacute os proveacuterbios elogiaram a concoacuterdia que

existe entre lobos Acrescentarei ainda algo que

parece mais espantoso os espiacuteritos iacutempios (por

meio dos quais a concoacuterdia entre os ceacuteus e os

homens se rompeu no comeccedilo e ainda hoje se

rompe) tecircm contudo um pacto entre si e

manteacutem aquela sua tirania atraveacutes do consenso

De todos os seres satildeo os homens aqueles

a quem mais convinha a uniatildeo e a que de longe

ela eacute mais necessaacuteria poreacutem de todos satildeo os

uacutenicos que nem a natureza tatildeo potente e eficaz

em outras coisas concilia nem a instruccedilatildeo une

nem associam as facilidades advindas de um

acordo a ser firmado nem enfim a percepccedilatildeo e

a experiecircncia de tatildeo grandes males reconduz ao

49

Margolin (1992 p 914) identifica uma recepccedilatildeo de Pliacutenio (Histoacuteria natural VII 5)

120

amorem redigit Figura communis

omnium vox eadem et cum caetera

animantium genera corporum formis

potissimum inter se differant uni homini

indita vis [70] rationis quae ita sit illis

inter ipsos communis ut cum nullo sit

reliquorum animantium communis uni

huic animanti sermo datus praecipuus

necessitudinum conciliator Insita sunt

communiter disciplinarum ac virtutum

semina ingenium mite placidumque et ad

mutuam benevolentiam propensum ut

per se iuvet amari et iucundum sit de aliis

benemereri nisi quis pravis cupiditatibus

[75] ceu Circes pharmacis corruptus ex

homine degenerarit in belluam Hinc est

videlicet quod vulgus quicquid ad

mutuam benevolentiam pertinet

humanum appellat Addidit lacrymas

exorabilis ingenii documentum quo si

quid forte inciderit offensae et amicitiae

serenitatem nubecula aliqua obfuscarit

facile redeant in gratiam

En quot rationibus natura

amor muacutetuo A aparecircncia eacute comum a todos a

voz eacute a mesma e embora as demais espeacutecies dos

animais se diferenciem umas das outras

sobretudo pelas formas dos corpos soacute ao homem

foi infundida a razatildeo que assim como eacute comum

entre eles mesmos natildeo eacute comum entre eles e os

demais animais50

Soacute a este ser animado foi

concedida a fala que eacute o principal conciliador

dos laccedilos sociais foram-lhe inseridas as

sementes dos saberes e das virtudes de um

temperamento doce plaacutecido e propenso a uma

muacutetua benevolecircncia de tal forma que lhe agrada

ser amado pelo que eacute e sente-se alegre em fazer

gratuitamente o bem a quem o merece a natildeo ser

que algueacutem corrompido por perversos desejos

como que pelos alucinoacutegenos de Circe51

se

degenere de homem em fera52

Eacute por isso que

natildeo sem razatildeo o vulgo chama humano a tudo

aquilo que diz respeito agrave benevolecircncia muacutetua53

Acrescentou-lhe as laacutegrimas comprovaccedilatildeo de

um espiacuterito sensiacutevel a pedidos de desculpas para

que facilmente se faccedilam as pazes caso ocorra

talvez um incidente ofensivo ou alguma

nuvenzinha ofusque a serenidade da amizade

Eis com quatildeo grande nuacutemero de

50

Cf Quintiliano Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 16 17-18 Segundo Margolin (1992 p 914) ldquotema banal da

superioridade do homem dotado de linguagem e de razatildeordquo

51 Herding (1978 p 65 nota 75) percebe a recepccedilatildeo de Homero (Odisseia X 235ss) ldquoCirces pharmacisrdquo

52 Alusatildeo ao trecho da Odisseia (X 310) segundo o qual a deusa feiticeira Circe filha do deus Heacutelio com a

feiticeira Heacutecate especialista em venenos acolhe primeiramente depois furiosamente Ulisses e seus

companheiros Segundo Margolin (1992 p 915) ldquotrata-se de um tema claacutessico da degenerescecircncia moral ou

fiacutesica dos homens metamorfoseados em bestas ferozes para a liberaccedilatildeo dos seus instintos brutaisrdquo

53 Noccedilatildeo capital entre os humanistas Erasmo natildeo pensa ser a humanitas um dom natural do homem pois ele se

torna humano A razatildeo bem formada deve fazer redescobrir a verdadeira natureza do homem que lhe permite

comandar e superar sua natureza instintiva

121

concordiam docuit Nec his tamen [80]

contenta pacis lenociniis amicitiam

homini non solam iucundam esse voluit

verum etiam necessariam Eoque tum

corporum tum animorum dotes ita partita

est ut nemo sit omnium tam instructus

quin infimorum etiam officio

nonnumquam adiuvetur nec eadem

attribuit omnibus nec paria ut haec

inaequalitas mutuis amicitiis aequaretur

Aliis in regionibus alia proveniunt quo

vel usus [85] ipse mutua doceret

commercia

[86] Caeteris animantibus sua

tribuit arma praesidiaque quibus sese

tuerentur unum hominem produxit

inermem atque imbecillum nec prorsus

aliter tutum quam foedere mutuaque

necessitudine Civitates repperit

necessitas et ipsarum inter se societatem

docuit necessitas quo ferarum ac

praedonum vim cunctis [90] viribus

propellerent Adeo nihil est in rebus

humanis quod ipsum sibi sufficiat In

ipsis statim vitae primordiis perisset

hominum genus nisi conditum

propagasset coniugalis concordia nec

enim nasceretur homo et mox natus

argumentos a natureza nos ensinou a concoacuterdia

Natildeo satisfeita contudo com esses encantos que

resultam da paz quis que a amizade fosse natildeo

somente agradaacutevel mas tambeacutem necessaacuteria para

o homem Por essa razatildeo repartiu de tal forma

os dotes tanto os dos corpos quanto os dos

espiacuteritos que natildeo haacute ningueacutem que seja tatildeo

dotado de todos eles que jamais necessite ser

socorrido pelo auxiacutelio dos subalternos tampouco

atribuiu a todos caracteriacutesticas idecircnticas e iguais

a fim de que essa desigualdade fosse equilibrada

atraveacutes de amizades muacutetuas As diferentes

regiotildees produzem coisas diferentes de modo que

a proacutepria utilidade ensinasse os muacutetuos

comeacutercios

Aos outros animais a natureza concedeu

armas e recursos a fim de se defenderem soacute o

homem ela produziu indefeso e fraco

dependente para sua seguranccedila inteiramente de

alianccedila muacutetua e dos laccedilos de solidariedade54

A

necessidade inventou as cidades e a necessidade

ensinou a sociedade entre elas a fim de unindo

forccedilas repelir o ataque das feras e dos ladrotildees

Mais ainda natildeo haacute nada nas coisas humanas que

baste a si mesma O gecircnero humano teria

perecido logo nos primeiros estaacutegios da vida se

uma vez criado a concoacuterdia conjugal natildeo o

tivesse propagado pois o homem nem nasceria

ou morreria logo ao nascer e expiraria no limiar

mesmo da vida se a matildeo amiga das parteiras e

54

Eacute o mito de Epimeteu que ao criar os animais com seus respectivos atributos concedeu ao homem o fogo dos

deuses ensinando-lhe tambeacutem como trabalhar com ele (Cf Platatildeo Protaacutegoras 320C-322C)

122

interiret atque in ipso vitae limine vitam

amitteret nisi obstetricum amica manus

nisi nutricum amica pietas succurreret

infantulo Atque in hunc usum

vehementissimos [95] illos pietatis

igniculos insevit ut parentes etiam illud

ament quod nondum viderunt Adiecit

mutuam liberorum erga parentes

pietatem ut illorum imbecillitas horum

praesidiis vicissim sublevaretur fieretque

illa cunctis quidem ex aequo plausibilis

sed Graecis aptissime dicta

ἀμηιπελάργωζις Accedunt huc

cognationum et affinitatum vincula

accedit in nonnullis ingeniorum

studiorum [100] formaeque similitudo

certissima benevolentiae conciliatrix in

multis arcanus quidam animorum sensus

ac mirus ad mutuum amorem stimulus

quem veteres admirati numini

adscribebant

[103] Tot argumentis natura

docuit pacem concordiamque tot

illecebris ad eam invitat tot laqueis

trahit tot rebus compellit Et post haec

quaenam ista tam ad [105] nocendum

efficax Erinnys his omnibus disruptis

disiectis discussis insatiabilem pugnandi

furiam insevit humanis pectoribus Nisi

se a piedade amiga das amas de leite natildeo

socorresse o bebezinho Mas tendo em vista sua

utilidade a natureza inseriu nos homens

fortiacutessimos estiacutemulos de piedade a fim de que os

pais amem ateacute aquilo que ainda nem sequer

viram Acrescentou a piedade muacutetua dos filhos

para com os pais para que a fraqueza destes seja

por sua vez amparada pelos cuidados daqueles e

a que se decirc aquele sentimento certamente vaacutelido

para todos mas a que os gregos chamaram mais

apropriadamente ἀμηιπελάργωζις55

Somam-se a

estes os viacuteculos das consanguinidades e das

afinidades Acrescente-se em alguns a

semelhanccedila de temperamento de feiccedilotildees e de

interesses a qual eacute a mais certa conciliadora da

benevolecircncia havendo tambeacutem em muitos

homens uma espeacutecie de sentido misterioso das

almas e uma maravilhosa tendecircncia para o amor

muacutetuo que os antigos admirados atribuiacuteam a

uma divindade

Com tatildeo grande nuacutemero de argumentos a

natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela

nos convida com tatildeo grande nuacutemero de

seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com

tantos laccedilos e razotildees E no entanto que Eriacutenia

foi essa tatildeo eficaz em prejudicar que tendo

todas aquelas coisas sido destruiacutedas destroccediladas

e arrasadas infundiu nos coraccedilotildees humanos a

55

O termo deriva de πελαργoacuteς e se refere agrave piedade da cegonha conforme a literatura grega Margolin (1992 p

916) sugere a traduccedilatildeo como ldquoreconhecimento filialrdquo ou de ldquopiedade filialrdquo com a ideia de uma piedade que

ldquoretornardquo

123

primum admirationem deinde sensum

etiam mali adimeret assuetudo quis

crederet humana mente praeditos istos

qui sic iugibus dissidiis litibus bellis

inter sese certant rixantur tumultuantur

Postremo rapinis sanguine cladibus

ruinis sacra profanaque [110] miscent

omnia nec ulla tam sancta foedera quae

illos in mutuam perniciem debacchantes

queant dirimere Ut nihil etiam accesserit

satis erat commune hominis vocabulum

ut inter homines conveniret

[113] Sed esto nihil apud

homines profecerit natura quae

plurimum valet ut in beluis Itane nihil et

apud Christianos valuit Christus Parum

efficax sit doctrina [115] naturae quae

maximam vim habet in his quoque quae

sensu vacant Caeterum cum hac multo

praestantior sit doctrina Christi cur ea se

profitentibus non persuadet id quod unum

omnium maxime suadet nempe pacem

mutuamque benevolentiam Aut saltem

hanc tam impiam efferamque belligerandi

insaniam dedocet Cum hominis

vocabulum audio mox accurro velut ad

animal mihi [120] proprie natum

confidens fore ut illic liceat acquiescere

cum Christianorum audio titulum magis

etiam advolo apud hos certe regnaturam

insaciaacutevel fuacuteria de fazer a guerra Se o costume

natildeo tivesse feito desaparecer primeiro o espanto

depois ateacute a emoccedilatildeo diante do mal quem

acreditaria que satildeo providos de razatildeo humana

esses que lutam entre si se confrontam e se

combatem com constantes dissensotildees litiacutegios e

guerras Finalmente com pilhagens sangue

assassinatos e destruiccedilotildees misturam todas as

coisas sagradas e profanas nem haacute alianccedilas por

mais sagradas que eles natildeo sejam capazes de

romper inebriados para sua muacutetua destruiccedilatildeo

Para que nada disso uma vez mais ocorresse

seria suficiente a simples palavra ldquohomemrdquo para

que os homens se unissem

Mas que seja A natureza que tem tatildeo

grande poder entre os animais nada pode junto

aos homens mas seraacute que Cristo tambeacutem natildeo

pocircde nada entre os cristatildeos Que seja pouco

eficaz a doutrina da natureza a qual tem maacutexima

forccedila ateacute para os seres privados de sentidos mas

sendo a doutrina de Cristo muito superior por

que esta natildeo eacute capaz de persuadir os que a

professam aquilo que ela ensina sobre todas as

coisas a saber a paz e a muacutetua benevolecircncia

Ou pelo menos natildeo os dissuade de tatildeo iacutempia e

selvagem insacircnia de guerrear Quando ouccedilo a

palavra homem logo acudo como a um animal

nascido de mim confiante de que nele

encontrarei o lugar do meu repouso quando

ouccedilo a designaccedilatildeo de cristatildeos voo mais ainda

na esperanccedila de que entre eles certamente hei de

reinar Entretanto aqui tambeacutem me envergonha e

124

etiam me sperans Sed hic quoque pudet

ac piget dicere fora basilicae curiae

templa sic undique litibus perstrepunt ut

nusquam apud ethnicos aeque adeo ut

cum bona pars humanae calamitatis sit

advocatorum turba tamen haec etiam ad

litigantium [125] undas paucitas sit ac

solitudo Civitatem adspicio spes illico

oboritur inter hos saltem convenire quos

eadem cingunt moenia eaedem

moderantur leges et velut una vectos

navi commune continet periculum Sed o

me miseram quae hic quoque dissidiis

omnia vitiata comperio adeo ut vix

domum ullam reperire liceat in qua mihi

sit vel dies aliquot locus Sed plebem

omitto quae maris ritu [130] suis aestibus

rapitur

[131] In principum aulas velut in

portum quemdam me recipio Erit

inquam certe apud hos locus paci plus hi

sapiunt quam vulgus ut qui sint plebis

animus atque oculus populi tum eius

vices gerunt qui doctor est et princeps

concordiae a quo quidem cum omnibus

tum his praecipue sum commendata Et

[135] omnia bene pollicentur Video

blandas consalutationes amicos

angustia dizer os foacuteruns as basiacutelicas os

tribunais e as igrejas ressoam por todos os lados

com tal violecircncia como nunca houve igual entre

os gentios A tal ponto que embora boa parte da

calamidade humana esteja na turba dos

advogados esta no entanto em relaccedilatildeo agraves ondas

dos litigantes eacute um nada um deserto Olho para

a cidade e imediatamente renasce minha

esperanccedila de que exista uniatildeo ao menos entre

aqueles que as mesmas muralhas circundam e

satildeo regidos pelas mesmas leis e que como que

navegam num mesmo navio unidas por um

perigo em comum Mas pobre de mim Tambeacutem

aqui verifico que a cidade estaacute totalmente

maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a

tal ponto que quase natildeo se pode achar uma uacutenica

casa na qual exista um lugar para mim por

alguns dias Entretanto deixo de lado o povo

que tal como o mar eacute arrebatado por sua proacutepria

agitaccedilatildeo56

Voltei-me agraves cortes dos priacutencipes como a

uma espeacutecie de porto Digo que certamente

existiraacute junto a estes um lugar para a paz pois

eles sabem mais que o vulgo de forma que satildeo a

alma e os olhos do povo Eles fazem pois agraves

vezes deste que eacute o doutor e o priacutencipe da

concoacuterdia natildeo soacute por este fui recomendada mas

tambeacutem por eles E tudo isso eles prometem

Vejo saudaccedilotildees suaves abraccedilos amigaacuteveis

alegres banquetes assim como todos os demais

56

A ldquoagitaccedilatildeordquo como traduccedilatildeo de aestibus referencia agraves aacuteguas agitadas agrave agitaccedilatildeo do mar sentido registrado nos

dicionaacuterios (Agradeccedilo ao Prof Paulo Vasconcellos essa sugestatildeo por ocasiatildeo do exame de qualificaccedilatildeo)

125

complexus hilares compotationes

caeteraque officia humanitatis At o rem

indignam apud hos nec umbram verae

concordiae licuit cernere Fucata fictaque

omnia factionibus apertis clanculariis

dissidiis ac simultatibus corrupta sunt

universa Denique adeo apud hos non

esse sedem paci comperio ut hinc potius

omnium bellorum [140] fontes ac

seminaria Quo me posthac conferam

infelix posteaquam toties fefellit spes

At principes magni sunt potius quam

eruditi magisque ducuntur cupiditatibus

quam recto animi iudicio

[143] Ad eruditorum greges

confugiam Bonae litterae reddunt

homines philosophia plusquam homines

theologia reddit divos Apud hos certe

dabitur conquiescere [145] tot actae

ambagibus Verum proh dolor en hic

quoque bellorum aliud genus minus

quidem cruentum sed tamen non minus

insanum Schola cum schola dissidet et

ceu rerum veritas loco commutetur ita

quaedam scita non traiiciunt mare

quaedam non superant Alpes quaedam

non tranant Rhenum immo in eadem

academia cum rhetore bellum est

dialectico cum iureconsulto [150]

deveres da civilidade Entretanto oacute coisa

indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar

sequer a sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute

fingido e simulado natildeo haacute nada que natildeo seja

corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por

divergecircncias e rivalidades ocultas No final natildeo

encontro o trono da paz entre eles mas antes eacute aiacute

que mais estatildeo as fontes e origens de todas as

guerras Depois de tantas vezes ver perdida a

esperanccedila para onde eu infeliz devo acorrer

Mas os priacutencipes talvez satildeo mais importantes

que eruditos e mais se deixam conduzir pelas

paixotildees do que pelo reto juiacutezo da alma

Refugiar-me-ei na grei dos eruditos as

boas letras formam os homens a filosofia os

torna mais do que homens e a teologia torna-os

santos Junto a eles certamente ser-me-aacute dado

repousar depois de me ter enredado em tantas

digressotildees Entretanto oacute dor Aqui tambeacutem haacute

outro tipo de guerra de fato menos cruenta

contudo natildeo menos insana Escolas se digladiam

com escolas e como se a verdade mudasse com

os lugares certos conceitos natildeo atravessam o

mar outros natildeo transpotildeem os Alpes outros

enfim natildeo cruzam o Reno e ateacute na mesma

Academia o retoacuterico disputa com o dialeacutetico ou

o jurista discorda do teoacutelogo Chega-se ao ponto

de que no mesmo gecircnero de profissatildeo o tomista

luta contra o escotista 57

o realista contra o

57

Cf ldquoOs traccedilos do labirinto satildeo menos complicados do que as tortuosas voltas dos realistas nominalistas

tomistas albertistas occamistas escotistasrdquo (Elogio da Loucura 53) Erasmo buscou o fundamento de sua

doutrina nas fontes do cristianismo natildeo nas ldquosutilezasrdquo dos comentaacuterios variados e contraditoacuterios dos filoacutesofos

medievais (cf Margolin1992 p 918)

126

dissidet theologus Atque adeo in eodem

professionis genere cum Thomista pugnat

Scotista cum Reali Nominalis cum

Peripatetico Platonicus adeo ut ne in

minutissimis quidem rebus inter hos

conveniat ac saepenumero de lana

caprina atrocissime digladientur donec

disputationis calor ab argumentis ad

convitia a convitiis ad pugnos

incrudescat et si res pugionibus aut

lanceis non [155] agitur stilis veneno

tinctis sese confodiunt dentata charta

dilacerant invicem alter in alterius

famam letalia linguarum vibrant spicula

Quo me vertam toties experta mihi data

verba

[158] Quid superest nisi una

veluti sacra ancora religio Huius

professio licet sit Christianorum omnium

communis tamen eam isti peculiariter

profitentur titulo [160] cultu cerimoniis

qui vulgo Sacerdotum cognomento

commendantur Hos itaque procul

intuenti cuncta spem faciunt portum mihi

paratum esse Arrident vestes candidae

meoque colore insignes video cruces

pacis symbola audio dulcissimum illud

fratris cognomen eximiae caritatis

nominalista o platocircnico contra o peripateacutetico

de tal forma que nem sequer concordam em

ninharias e muitas vezes se digladiam

violentamente por latilde de caprina58

ateacute que o calor

do debate recrudesce e dos argumentos se passa

agraves ofensas das ofensas aos safanotildees59

e se o

assunto natildeo se resolver com adagas e lanccedilas

trespassam-se com penas envenenadas

dilaceram-se com papeacuteis que mordem e um vibra

o dardo mortal da liacutengua contra o renome do

outro 60

Para onde me voltarei depois de tantas

palavras enganosas que me foram dirigidas

Que me resta senatildeo a religiatildeo uacutenica

acircncora sagrada Embora todos os cristatildeos em

geral a professem contudo alguns a professam

de um modo peculiar tanto pelo nome como

pelo tipo de vida e cerimocircnias que praticam e

que satildeo aqueles a que vulgarmente se daacute o nome

de sacerdotes Estes observados assim agrave

distacircncia tudo daacute a esperanccedila de que seja ali o

porto preparado para mim Suas vestes brancas

sorriem famosas pela minha cor 61

vejo as

cruzes siacutembolos da paz ouccedilo aquele dulciacutessimo

cognome de irmatildeos demonstraccedilatildeo de um amor

58

Herding (1978 p 67 nota 152-153) nota-se referecircncia a Horaacutecio (Epiacutestola I 18 15)

59 Nota-se a referecircncia a Ciacutecero (Ad Quintum fratem 2 15 6)

60 A expressatildeo ldquocharta dentatardquo eacute um expressatildeo ciceroniana (cf Cicero Ad Quintum fratem 2141)

61 Cf Oviacutedio Ars amatoria 3502

127

argumentum audio salutationes pacis

laeto omine felices cerno rerum omnium

communionem [165] coniunctum

collegium templum idem leges easdem

conventus quotidianos Quis hic non

confidat paci locum fore Sed o rem

indignam nusquam fere collegio

convenit cum episcopo parum hoc nisi

et ipsi inter sese factionibus scinderentur

Quotusquisque sacerdos est cui non sit

cum aliquo sacerdote lis Paulus rem non

ferendam censet quod Christianus litiget

adversus Christianum [170] Et sacerdos

cum sacerdote episcopus cum episcopo

certat Verum his quoque forsitan

ignoscat aliquis quod longo iam usu

propemodum in prophanorum consortium

abierunt posteaquam eadem cum illis

coeperunt possidere Age fruantur hii

sane suo iure quod ceu praescriptione

sibi vindicant Unum hominum genus

superest qui sic adstricti sunt religioni ut

etiam si cupiant [175] nullo pacto queant

excutere non magis profecto quam

testudo domum Sperarem apud hos mihi

fore locum nisi toties frustrata spes me

prorsus desperare docuisset Et tamen ne

quid intentatum relinquam experiar

Quaeris exitum A nullis resilii magis

exiacutemio ouccedilo as saudaccedilotildees de paz cheias de

votos de felicidade vejo a comunhatildeo de todos os

bens um colegiado unido o mesmo templo as

mesmas leis e as reuniotildees diaacuterias Quem natildeo

acreditaria ser este o lugar da paz Mas oacute coisa

indigna Quase natildeo haacute uma ordem que concorde

com o bispo e pior cindem-se em facccedilotildees Quatildeo

poucos satildeo os sacerdotes que natildeo estejam em

litiacutegio com ao menos outro sacerdote Paulo62

natildeo concorda que um cristatildeo tenha disputas

contra outro cristatildeo 63

e o sacerdote discute com

o sacerdote o bispo com o bispo Mas haacute talvez

quem os desculpe jaacute que desde haacute muito tempo

quase se aproximaram do consoacutercio com o

profano depois de comeccedilarem a possuir as

mesmas coisas que eles Pois seja Que

usufruam como se fosse direito seu aquilo que

reivindicam como privileacutegio Haacute ainda uma

espeacutecie de homems que estatildeo de tal forma

ligados a uma religiatildeo que ainda que o

quisessem natildeo conseguiriam deixaacute-la por nada

exatamente como ocorre com a tartaruga e seu

casco Esperaria encontrar junto a eles um lugar

se tantas esperanccedilas frustadas natildeo tivessem me

ensinado a desesperar completamente Mas

enfim para natildeo deixe algo a tentar

experimentarei Queres saber o resultado De

ningueacutem tive de fugir mais raacutepido Pois o que se

poderia esperar de um lugar onde uma ordem

62

Cf II Ad Corinthum 67

63 Cf II Ad Corinthum 67

128

Nam quid sperem ubi religio cum

religione dissidet Tot factiones sunt

quot sunt sodalitia Dominicales dissident

cum Minoritis [180] Benedictini cum

Bernardinis tot nomina tot cultus tot

cerimoniae studio diversae ne quid

omnino conveniret sua cuique placent

aliena damnat et oditque quisque Quin

idem sodalitium factionibus scinditur

Observantes insectantur Coletas utrique

tertium genus quod a conventu

cognomen habet cum nihil inter istos

conveniat

Iam ut par est omnibus rebus

diffisa optabam vel [185] in uno

quopiam monasteriolo latitare quod vere

tranquillum esset Invita dicam quod

utinam non esset verissimum nullum

adhuc reperi quod non intestinis odiis ac

religiosa64

discorda da outra Tantas satildeo as

facccedilotildees quantas satildeo as irmandades os

dominicanos65

disputam com os minoritas66

os

beneditinos67

com os bernardinos68

tantos

nomes tantos cultos tantas cerimocircnias

diferentes de modo que natildeo concordam em coisa

alguma cada um satisfeito com o que eacute seu cada

um condenando e odiando o que eacute dos outros

Aleacutem disso a mesma irmandade estaacute dividida

em facccedilotildees69

os observantes70

perseguem os

recoletas71

e uma terceira ordem deles que tem

o nome de conventual72

quando nada entre eles

conveacutem

Jaacute que eacute assim desconfiada de todas as

coisas dispunha-me a ocultar-me em um

mosteirozinho qualquer que fosse

verdadeiramente tranquilo Direi relutante aquilo

que quem dera natildeo fosse muito verdadeiro ateacute

hoje ainda natildeo encontrei nenhum que natildeo

64

No original religio Natildeo se pode traduzir nesse caso religio por religiatildeo No tempo de Erasmo chamava-se

religiatildeo uma ordem religiosa especiacutefica diferentemente do sentido moderno que usa esse termo para outras

religiotildees acatoacutelicas Erasmo chamava de religio o que hoje os teoacutelogos chamam de carisma Carisma eacute o

vocaacutebulo que se refere agraves caracteriacutesticas especiacuteficas dos indiviacuteduos ou das ordens religiosas Ademais na

teologia catoacutelica do seacuteculo XVI soacute existia uma religiatildeo a catoacutelica Eacute preciso lembrar que natildeo havia acontecido

ainda o simboacutelico feito de Lutero que desencadeou a ruptura das igrejas reformadas com Roma

65 Margolin (1992920) comenta que neste trecho ldquoErasmo logo aproveita a ocasiatildeo de se queixar dos

dominicanos sobretudo os espanhoacuteis cuja estrita ortodoxia natildeo se acomoda ao seu espiacuterito reformistardquo

66 Menores ou freis menores cuja ordem foi fundada em 1223 por Satildeo Francisco de Assis

67 Ordem religiosa fundada por Satildeo Bento por volta do ano 528 sobre o Monte Cassino Itaacutelia

68 Religiosos cistercienses cuja ordem foi fundada em 1098 por Roberto de Citeaux posteriormente reforma em

1119 pelo seu sucessor Satildeo Bernardo de Claraval

69 Dissensatildeo da ordem franciscana instituiacuteda pelo Papa Leatildeo X atraveacutes da bula Ite vos in vineam meam (1517)

70 Ordem fundada durante o Conciacutelio de Constanccedila (1415) e confirmada pelo Papa Martinho V (1420) A regra eacute

mais restrita do que dos conventuais

71 Ordem fundada por Nicollete Boylet ao norte da Franccedila

72 Ordem dos Frades Menores Conventuais surgida entre os anos de 1249 e 1250 que predicava uma vida

mendicante dentro dos conventos em oposiccedilatildeo ao modo de vida itinerante

129

iurgiis esset infectum Pudor sit

recensere quam nihili de nugis tricisque

quantas cieant pugnas viri senes barba

pallioque verendi postremo ut sibi

videntur impense tum eruditi tum sancti

Arridebat spes nonnulla [190] fore ut

alicubi inter tot coniugia qualiscumque

daretur locus

Quid enim non pollicetur domus

communis fortuna communis lectus

communis liberi communes Denique

corporum ipsorum ius mutuum ut unum

potius hominem credas e duobus

conflatum quam duos Huc quoque

sceleratissima illa Eris irrepsit totque

vinculis copulatos dirimit dissidiis

animorum Et tamen inter [195] hos citius

contingat locus quam inter eos qui tot

titulis tot insignibus tot cerimoniis

absolutam caritatem profitentur Tandem

illud in votis esse coepit ut saltem in

unius hominis pectore daretur locus Ne

id quidem contigit idem homo secum

pugnat Ratio belligeratur cum affectibus

et insuper affectus cum affectu

conflictatur dum alio vocat pietas alio

trahit cupiditas Rursum aliud [200]

suadet libido aliud ira aliud ambitio

aliud avaritia Et huiusmodi cum sint non

pudet tamen illos appellari Christianos

cum modis omnibus dissideant ab eo

estivesse contaminado por essas discoacuterdias e

oacutedios intestinos Eacute uma vergonha contar quantas

lutas por causa de bagatelas e futilidades

totalmente insignificantes satildeo causadas por

anciatildeos venerandos em suas barbas e haacutebitos e

que persistem em se ver a si mesmos tatildeo

eruditos tatildeo santos Sorria-me a esperanccedila de

que haveria de encontrar um abrigo em algum

lugar entre tantos casais

Que outra coisa poderia prometer-me um

lar comum de uma sorte comum de um leito

comum e de filhos comuns Enfim do direito

muacutetuo aos proacuteprios corpos a tal ponto que nos eacute

permitido crer que em lugar de dois seres se

trata mais propriamente de um formado a partir

de dois Tambeacutem aqui penetrou aquela tatildeo

perversa Eacuteris e separou com dissensotildees pessoas

que estavam ligadas por muitos viacutenculos E

contudo com mais rapidez se consegue um lugar

entre estes do que entre aqueles outros que com

tantos tiacutetulos tantas insiacutegnias tantas cerimocircnias

professam uma caridade absoluta Finalmente

comecei a ter o desejo de que ao menos fosse

dado um lugar no coraccedilatildeo de um uacutenico homem

Mas tambeacutem aiacute natildeo fui bem sucedida pois o

mesmo homem luta contra si mesmo A razatildeo

luta contra os sentimentos e ademais os

sentimentos lutam entre si se a piedade impele

numa direccedilatildeo o desejo arrasta para outra

ademais a libido aconselha uma coisa a ira

outra a ambiccedilatildeo outra a avareza outra Mas

mesmo assim natildeo se envergonham de chamar-se

130

quod Christo praecipuum est ac

peculiare

[203] Universam eius vitam

contemplare quid aliud est quam

concordiae mutuique amoris doctrina

Quid aliud inculcant eius praecepta quid

parabolae nisi [205] pacem nisi

caritatem mutuam Egregius ille vates

Esaias cum coelesti afflatus spiritu

Christum illum rerum omnium

conciliatorem venturum annunciaret num

satrapam pollicetur num urbium

eversorem num bellatorem num

triumphatorem Nequaquam Quid

igitur Principem Pacis siquidem cura

omnium optimum principem intelligi

vellet ab ea re denotavit quam omnium

[210] optimam iudicasset Neque mirum

ita visum Esaiae cum Silius Ethnicus

Poeta hunc in modum de me scripserit

Pax optima rerum quas homini natura

dedit Concinit huic mysticus ille

citharoedus et factus est inquiens in

pace locus eius In pace dixit non in

tentoriis non in castris princeps est

pacis pacem amat offenditur dissidio

Rursum Esaias opus iustitiae pacem

cristatildeos embora se afastem daquilo que eacute

principal e peculiar em Cristo

Contempla toda a vida dele que outra

coisa eacute ela senatildeo um ensinamento de concoacuterdia

e de amor muacutetuo Que outra coisa inculcam os

seus preceitos e suas paraacutebolas a natildeo ser a paz a

natildeo ser a muacutetua caridade O grande profeta

Isaiacuteas ao anunciar inspirado pelo Espiacuterito

Celeste que Cristo haveria de vir como

conciliador de todas as criaturas teria por acaso

prometido um saacutetrapa ou um agitador de cidades

ou um guerreiro ou um triunfador De modo

algum O quecirc entatildeo O priacutencipe da Paz Pois

como tinha a intenccedilatildeo de referir-se ao priacutencipe

por excelecircncia descreveu-o por aquela coisa que

eacute a mais excelente de todas Natildeo admira que tal

tenha sido a opiniatildeo de Isaiacuteas porque ateacute um

poeta pagatildeo Siacutelio escreveu deste modo sobre

mim ldquoa paz eacute o dom mais excelente que a

natureza concedeu ao homemrdquo73

Aquele famoso

miacutestico citarista cantou a meu respeito ao dizer

ldquoE fez seu assento na pazrdquo 74

ldquoNa pazrdquo disse ele

natildeo em tendas natildeo em acampamentos Eacute o

Priacutencipe da paz Ele ama a paz ofende-se com a

discoacuterdia E novamente Isaiacuteas ldquoagrave justiccedila chama-

se obra da pazrdquo 75

pensando se eacute que natildeo me

engano o mesmo que pensou Paulo que outrora

74 Erasmo cita o texto biacuteblico do Psalmo 753 da Vulgata (seacutec IV) atribuiacutedo a Eusebius Sophronius Hieronymus

(347-420) mais conhecido como Satildeo Jerocircnimo ldquoEt factus est in pace locus eiusrdquo Para os textos citados do Novo

Testamento Erasmo cita sua proacutepria traduccedilatildeo latina

75 Erasmo parafraseia a traduccedilatildeo de Jerocircnimo ldquoOpus iustitiae paxrdquo de um trecho de Isaiah 3217

131

appellat idem sentiens [215] ni fallor

quod sensit Paulus ille et ipse e Saulo

turbulento redditus tranquillus et pacis

doctor Cum caritatem caeteris omnibus

arcani spiritus dotibus anteponens quo

pectore qua facundia meum encomium

detonuit Corinthiis Cur enim non glorier

sic laudari a viro tam laudato Is alias

deum pacis appellat alias pacem dei

vocat palam indicans haec duo sic inter

sese cohaerere ut ibi pax esse non possit

ubi deus non adsit nec illic esse deus

possit ubi pax non [220] adsit Itidem et

pacis angelos in divinis libris vocatos

legimus pios ac dei ministros ut per se

liqueat quos belli Angelos oporteat

accipi

[223] Audite strenui bellatores

Videte sub cuius signis militetis nimirum

illius qui primus dissidium sevit inter

deum et hominem Quicquid calamitatum

sentit mortalitas huic dissidio debet

violento Saulo76

converteu-se em paciacutefico e

mestre da paz sobrepondo a caridade acima de

todos os outros dons do Espiacuterito Santo com que

coraccedilatildeo com que eloquecircncia entoou meu elogio

aos coriacutentios77

Por que eu natildeo me gloriaria de

ser elogiada por um varatildeo tatildeo louvado Ora me

chama ldquoo Deus da pazrdquo 78

ora invoca ldquoa paz de

Deusrdquo 79

indicando claramente que esses dois

conceitos estatildeo interligados de tal forma que

onde haacute paz Deus se faz presente e Deus natildeo se

faz presente onde natildeo existe paz Do mesmo

modo podemos ler nas Escrituras Sagradas que

os homens piedosos e os ministros de Deus satildeo

chamados mensageiros da paz80

a fim de que por

si mesmo fique evidente quais satildeo aqueles que

devemos entender como mensageiros da guerra

Ouvi isto poderosos guerreiros Vede

sob que estandarte militais Sem duacutevida daquele

que primeiro semeou a discoacuterdia entre Deus e o

homem81

A este primeiro conflito devem ser

atribuiacutedas todas as calamidades que a

humanidade sofre Eacute ridiacuteculo o que alguns

argumentam de que nas Sagradas Escrituras se

76

Paulo entatildeo chamado de Saulo ldquorespirava ameaccedilas e oacutedio contra os cristatildeosrdquo (Acta apostolorum 91)

77 ldquoNon enim est dissensionis Deus sed pacis sicut in omnibus ecclesiis sanctorumrdquo (Prima ad Corinthians

1433) ldquoin pace autem vocavit nos Deusrdquo (Prima ad Corinthians 715) ldquosapite pacem habete et Deus dilectionis

et pacis erit vobiscumrdquo (Secunda ad Corinthians 13 11)

78 Deus Pacis Erasmo recorre mais uma vez agrave traduccedilatildeo de Jerocircnimo para Prima ad Thessalonicenses 523 e Ad

Philipenses 49 Segundo Margolin (1992 p 922) Paulo utilizada a expressatildeo Deus pacis em vaacuterias passagens

(Ad Romanos 1533 1620 Ad Corinthios I 1433 Ad Corinthios II 1311 Ad Philipenses 49 Ad

Tessalonicenses I 523 Ad Hebraeos 1320)

79 ldquoPax Deirdquo (Ad Philipenses 47)

80 ldquoEcce praecones clamabunt foris angeli pacis amare flebuntrdquo (Isaiah 337)

81 Erasmo parece evocar a metaacutefora da serpente do paraiacuteso descrita nos capiacutetulos iniciais do Genesis

132

acceptum ferre Frivolum est enim quod

argutantur quidam in arcanis litteris

deum exercituum et deum ultionum dici

Permultum enim interest inter Iudaeorum

deum et Christianorum deum etiamsi

suapte natura unus et idem deus est Aut

si nobis quoque placent tituli veteres age

sit exercituum deus modo acies intelligas

virtutum concentum quarum [230]

praesidio vitia demoliuntur homines pii

Sit ultionum Deus modo vindictam

accipias vitiorum correctionem ut

cruentas strages quibus Hebraeorum libri

referti sunt non ad laniandos homines

sed ad impios affectus e pectore

profligandos referas Sed ut quod

institutum erat persequamur quoties

absolutam felicitatem significant arcanae

litterae pacis nomine id faciunt velut

Esaias [235] Sedebit inquit populus

meus in pulcritudine pacis Et alius Pax

inquit super Israel Rursum Esaias

admiratur pedes annunciantium pacem

annunciantium bona

Quisquis Christum annunciat

pacem annunciat Quisquis bellum

fala do Deus dos exeacutercitos82

ou do Deus das

vinganccedilas 83

Grande diferenccedila haacute entre o Deus

dos judeus e o Deus dos cristatildeos embora pela

natureza seja um uacutenico e mesmo Deus Se

poreacutem os epiacutetetos antigos nos agradam que seja

o Deus dos exeacutercitos contanto que se entenda

por exeacutercito a uniatildeo das virtudes com cuja forccedila

os homens piedosos demolem os viacutecios Que seja

o Deus das vinganccedilas desde que aceites como

vinganccedila a correccedilatildeo dos viacutecios e queiras dizer

que as matanccedilas sangrentas de que os livros dos

hebreus estatildeo repletos visavam natildeo a dilacerar

os homens mas a expulsar-lhes do peito as

paixotildees iacutempias Mas prossigamos naquilo que

haviacuteamos decidido Todas as vezes que as

Sagradas Escrituras querem dizer felicidade

absoluta elas o expressam pelo nome de paz

Por exemplo como disse Isaiacuteas ldquosentar-se-aacute o

meu povo na beleza da pazrdquo 84

E em outro

lugar que diz ldquoHaja Paz sobre Israelrdquo 85

E o

mesmo Isaiacuteas se admira com os peacutes dos que

anunciam a paz dos que anunciam as coisas

boas86

Quem quer que anuncie a Cristo anuncia

a paz Quem quer que pregue a guerra prega

aquele que eacute o que mais se diferencia de Cristo

Pois vejamos Que outra coisa buscou o Filho de

82

Na Vulgata de Jerocircnimo a expressatildeo Deus exercituum consta sessenta e cinco vezes todas no Antigo

Testamento

83 Na Vulgata a expressatildeo Deus ultionum soacute eacute usada uma vez no Salmo 931

84 ldquoSedebit inquit populus meus in pulcritudine pacisrdquo (Isaiah 3218)

85 ldquoPax super Israelrdquo (Psalmus 1245 Psalmus 1276 Ad Galatas 616)

86 ldquoQuam pulchri super montes pedes adnuntiantis et praedicantis pacem bonum praedicantisrdquo (Isaiah 527)

133

praedicat illum praedicat qui Christi

dissimillimus est Age iam quae res dei

filium pellexit in terras nisi ut mundum

patri reconciliaret ut homines inter se

mutua et [240] indissolubili caritate

conglutinaret postremo ut ipsum

hominem sibi faceret amicum Mea igitur

gratia legatus erat meum agebat

negotium Atque ob id Solomonem sui

typum ferre voluit qui nobis εἰρηνοποιός

id est pacificus dicitur Quantumuis

magnus erat David tamen quia bellator

erat quia sanguine fuerat impiatus non

sinitur exstruere domum domini Non

meretur hac [240] parte gerere typum

Christi pacifici Iam illud interim

perpende bellator si profanant bella

numinis iussu suscepta gestaque quid

facient quae suasit ambitio quae ira quae

furor Si pium regem polluit effusus

sanguis ethnicorum quid faciet tam

ingens effusio sanguinis Christiani

[249] Obsecro te Christiane

Deus nesta terra senatildeo que o mundo se

reconciliasse com o Pai Que os homens se

unissem entre si por uma muacutetua e indissoluacutevel

caridade Em suma para fazer-se amigo do

proacuteprio homem Assim portanto Cristo fora

enviado por minha causa e tomava conta de

mim Por isso constituiu como sua imagem o rei

Salomatildeo87

chamado de εἰρηνοποιός88

ou seja ldquoο

paciacuteficordquo Grandioso e ilustre era Davi89

mas

porque era guerreiro porque tinha sido maculado

pelo sangue natildeo lhe foi autorizado construir a

casa do Senhor nem foi merecedor por isso de

ser a imagem do Cristo Paciacutefico Presta bem

atenccedilatildeo oacute homem guerreiro Se as guerras que

foram feitas e perpretadas por ordem da

divindade profanam que faratildeo aquelas que a

ambiccedilatildeo a ira e a loucura aconselharam Se o

sangue dos pagatildeos que derramou foi capaz de

macular um rei tatildeo piedoso o que poderaacute fazer

este enorme derramamento de sangue cristatildeo 90

Imploro-te oacute Priacutencipe Cristatildeo se

verdadeiramente eacutes cristatildeo que contemples o

exemplo do priacutencipe por excelecircncia observa

87

Erasmo evoca a etimologia do nome Solomon paciacutefico que de acordo com o livro dos Reis e das Crocircnicas

seria filho do rei Davi Reinou sobre Israel entre 970 e 931 a C Construiu o primeiro templo de Jerusaleacutem teria

sido o autor de alguns livros biacuteblicos e ceacutelebre pelo dom de sabedoria

88 ldquoFilius qui nascetur tibi et erit vir quietissimus faciam enim eum requiescere ab omnibus inimicis suis per

circuitum et ob hanc causam pacificus vocabitur et pacem et otium dabo in Israhel cunctis diebus eiusrdquo (Primus

Paralipomenon 22 9)

89 David reinou sobre Judaacute entre 1010 e 1002 a C e sobre o reino unido de Israel entre 1002 e 970 a C Tronou-

se ceacutelebre como guerreiro comandante muacutesico e poeta se lhe atribui a autoria da maioria dos salmos Teria sido

castigado pelo adulteacuterio com Bersabeia seguido do assassinato do esposo dela Urias

90 Percebe-se que Erasmo fala de uma guerra inserida em seu presente ou em passado muito proacuteximo Segundo

evidecircncias histoacutericas ele se refere agrave guerra da Liga de Cambrai ou Liga Santa que envolveu os principais estados

europeus durante os anos de 1508 a 1516

134

Princeps si modo vere Christianus es

contemplare [250] tui principis

imaginem observa quomodo regnum

suum inierit quomodo progressus sit

quomodo hinc decesserit et mox

intelliges quomodo abs te geri velit

nimirum ut summa curarum tuarum pax

sit et concordia Nato iam Christo num

bellicis tubis insonant angeli Clangorem

tubarum audiere Iudaei quibus bellare

permissum est Haec congruebant

auspicia quibus fas erat odisse [255]

inimicos At genti pacificae longe aliam

cantionem canunt pacis angeli Num

classicum canunt num victorias

triumphos trophaeaque pollicentur

Minime Quid tandem Pacem

annunciant congruentes cum prophetarum

oraculis et annunciant non iis qui caedes

spirant ac bella qui feroces ad arma

gestiunt sed qui bona voluntate propensi

sint ad concordiam Praetexant quae

velint suo [260] morbo mortales ni

bellum amarent non sic iugibus bellis

inter se conflictarentur Age Christus ipse

iam adultus quid aliud docuit quid aliud

expressit quam pacem Pacis omine suos

subinde salutat Pax vobis eamque

salutandi formam suis praescribit veluti

unice dignam Christianis Atque huius

como ele iniciou e desenvolveu o seu reinado

como ele daqui partiu e imediatamente

aprenderaacutes como eacute necessaacuterio que o administres

de forma que sem duacutevida alguma a paz e a

concoacuterdia sejam o principal objeto de tuas

preocupaccedilotildees Assim que o Cristo nasceu os

Anjos por acaso tocaram as trombetas de

guerra Somente os judeus a quem era

permitido guerrear ouviam os sons das

trombetas Estes auspiacutecios eram compreenssiacuteveis

na eacutepoca em que a lei mosaica legitimava o oacutedio

aos inimigos mas os anjos da paz devem entoar

um canto totalmente diferente para os povos

paciacuteficos Por acaso tocam o clarim Por acaso

prometem vitoacuterias triunfos e trofeacuteus Jamais O

quecirc entatildeo Anunciam a paz conforme os

oraacuteculos dos profetas e a anunciam natildeo agravequeles

que aspiram a assassinatos e guerras e que

anseiam ferozmente pelas armas mas agravequeles

que com boa vontade satildeo propensos agrave

concoacuterdia Que os mortais desculpem com sua

fraqueza o que quiserem mas se de fato natildeo

amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo

entre si com batalhas contiacutenuas Olhai para o

Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que

outra coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso

ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o cumprimento

da paz ldquoa paz esteja convoscordquo91

e lhes

prescreveu essa forma de saudaccedilatildeo como a uacutenica

digna dos cristatildeos Os apoacutestolos natildeo se

91

ldquoPax vobisrdquo (Ioannes20192126 Lucas 2436)

135

praecepti non immemores apostoli pacem

praefantur in suis epistolis pacem optant

iis quos [265] unice diligunt Rem

praeclaram optat qui salutem optat sed

felicitatis summam precatur Hanc ille

toties in omni vita commendatam vide

quanta sollicitudine commendet

moriturus Diligatis inquit invicem sicut

dilexi vos Ac rursum Pacem meam do

vobis pacem relinquo vobis

[269] Auditis quid relinquat suis

Num equos num satellitium num

imperium num opes Nihil horum Quid

igitur Pacem dat pacem relinquit

pacem cum amicis pacem cum inimicis

Iam illud mihi consyderes velim quid a

coena mystica iam imminente mortis

tempore supremis illis precibus flagitarit

a patre Rem opinor haud vulgarem

poposcit qui se sciebat impetraturum

quicquid peteret Pater inquit sancte

serva eos in nomine tuo ut sint unum

sicut et nos Vide quaeso quam

insignem concordiam exigat in suis

Christus Non dixit ut sint unanimes sed

ut sint unum neque id quocumque modo

esqueceram desses preceitos e recomendavam a

paz em suas cartas e desejavam paz agravequeles a

que amavam de forma especial Escolhe coisa

importante quem faz votos pela sauacutede mas estaacute

desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha

recomendado durante toda a sua vida nunca

deixou de a recomendar Veja com quatildeo grande

solicitude a recomenda quando estava prestes a

morrer ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos

tenho amadordquo 92

E novamente ldquoeu vos deixo

a paz eu vos dou a minha pazrdquo93

Ouvis o que Cristo deixou para os seus

Cavalos Escoltas Poder Riquezas Nada

disso O quecirc entatildeo Cristo lhes daacute a paz lhes

deixa a paz Paz com os amigos paz com os

inimigos Gostaria tambeacutem que considerasses

comigo o que jaacute no tempo em que a sua morte

era iminente ele suplicou ao Pai com aquelas

suas uacuteltimas preces na miacutestica ceia Suponho

que natildeo pediu algo usual pois sabia que haveria

de obter qualquer coisa que pedisse Disse ldquoPai

santo guarda-os em teu nome para que sejam

um como noacutesrdquo Veja por favor quatildeo insiacutegne eacute a

concoacuterdia que Cristo solicita para seus

disciacutepulos ele natildeo disse ldquopara que eles sejam

unacircnimesrdquo mas ldquoque sejam um soacuterdquo e isso natildeo

de qualquer forma mas ldquocomo noacutes somos um

noacutes que de maneira perfeita e inefaacutevel somos o

mesmordquo94

indicando assim que soacute alimentando

92

ldquoSicut dilexit me Pater et ego dilexi vos manete in dilectione meardquo (Ioannes 159)

93 ldquoPacem relinquo vobis pacem meam do vobisrdquo (Ioannes 1427)

94 ldquoPater sancte serva eos in nomine tuo quos dedisti mihi ut sint unum sicut et nosrdquo (Ioannes 1711)

136

sed sicuti nos inquit unum sumus qui

perfectissima et ineffabili ratione sumus

idem et illud obiter indicans hac una via

servandos esse mortales si mutuam inter

sese pacem aluerint Porro quod huius

mundi principes insigni quopiam suos

notant [280] quo possint a caeteris

dignosci praesertim in bello vide qua

tandem nota Christus insignierit suos

non alia videlicet quam mutuae caritatis

Hoc inquiens argumento cognoscent

homines vos esse meos discipulos non si

sic aut sic vestiamini non si his aut his

vescamini cibis non si tantum ieiunetis

non si tantum psalmorum exhauseritis

sed si dilexeritis invicem neque id sane

vulgari [285] modo sed quemadmodum

ego dilexi vos Innumera sunt

philosophorum praecepta varia sunt

Moysi plurima regum edicta unicum est

inquit praceptum meum ut ametis

invicem Idem orandi formam suis

praescribens nonne in ipso statim initio

mire admonet concordiae Christianae

Pater inquit noster Unius est precatio

una communis omnium est postulatio

una domus eademque [290] familia sunt

omnes ab uno patre pendent omnes Et

qui convenit eos iugibus bellis inter sese

entre si uma paz reciacuteproca eacute que os mortais

poderatildeo se salvar Da mesma forma que os

priacutencipes deste mundo assinalam seus suacuteditos

com uma marca a fim de que possam reconhececirc-

los de imediato entre os demais sobretudo na

guerra vecirc com que sinal Cristo distinguiu os

seus com o da muacutetua caridade ldquoPor este sinalrdquo

disse ldquoos homens reconheceratildeo que sois meus

disciacutepulos natildeo se vos vestirdes deste ou daquele

modo natildeo se comerdes deste ou daquele

alimento natildeo se jejuardes muito natildeo se

recitardes grande nuacutemero de salmos mas se vos

amardes uns aos outros e natildeo de uma forma

usual mas assim como eu vos ameirdquo95

Incontaacuteveis satildeo os preceitos dos filoacutesofos

numerosos satildeo os de Moiseacutes muitos os eacuteditos

dos reis mas diz ele ldquoo meu preceito eacute um soacute

amai-vos uns aos outrosrdquo96

Por isso ao ensinar a

seus disciacutepulos a foacutermula da oraccedilatildeo Cristo jaacute

natildeo quis logo de iniacutecioadvogar para a concoacuterdia

cristatilde Diz ldquoPai Nossordquo 97

A oraccedilatildeo eacute de um soacute

um uacutenico pedido comum de todos um soacute lar e

todos satildeo uma mesma famiacutelia todos dependem

de um soacute Pai Como eacute possiacutevel que em guerras

perpeacutetuas se combatam entre si Como eacute

possiacutevel que interpeles o Pai comum se

atravessas com a espada as viacutesceras do teu

irmatildeo Por que quis arraigar nas mentes dos seus

disciacutepulos sobretudo isso Com quantos

95

Cf Ioannes 1512

96 ldquoHoc est praeceptum meum ut diligatis invicem sicut dilexi vosrdquo (Ioannes 1512)

97 ldquoPater Nosterrdquo (Matheus 69)

137

conflictari Quo ore compellas

communem patrem si in fratris tui

viscera ferrum stringis Iam quoniam

unum hoc voluit altissime insidere

suorum animis quot symbolis quot

parabolis quot praeceptis concordiae

studium inculcavit Se pastorem vocat

suos oves Et obsecro quis umquam

[295] vidit oves pugnantes cum ovibus

Aut quid faciunt lupi si grex ipse semet

invicem lacerat Cum se vitis stirpem

vocat suos vero palmites quid aliud

quam expressit unanimitatem Portentum

videatur piaculis procurandum si in

eadem vite palmes cum palmite bellet et

ostentum non est si Christianus pugnet

cum Christiano Postremo si quid

omnino Christianis sacrosanctum est

[300] certe sacrosanctum esse debet ac

penitus animis illorum insidere quae

Christus extremis illis mandatis tradidit

veluti testamentum condens ac filiis ea

commendans quae cuperet illis

numquam venire in oblivionem Aut quid

aliud in his docet mandat praecipit orat

nisi mutuum inter ipsos amorem Quid

illa sacrosancti panis et calicis philotesii

communio nisi novam quamdam et

indissolubilem [305] concordiam sanxit

Caeterum quando sciebat non posse

constare pacem ubi de magistratu de

gloria de opibus de vindicta certamen

siacutembolos com quantas paraacutebolas com quantos

preceitos instruiu o amor da concoacuterdia Cristo

chama-se a si mesmo pastor e aos seus ovelhas

Ora eu pergunto algueacutem porventura jaacute viu

ovelhas lutando com ovelhas O que fariam os

lobos se o rebanho comeccedilasse a lutar entre si

Quando se chama a si mesmo a Videira e aos

seus ramos natildeo quis dizer unidade Se na

mesma videira um ramo guerreasse contra outro

ramo natildeo pareceria isso espantoso que deveria

ser conjurado com sacrifiacutecios expiatoacuterios e por

acaso natildeo se trata de um prodiacutegio que um cristatildeo

lute com cristatildeo Por fim haacute algo de mais

sagrado para os cristatildeos certamente deve ser

sagrado e penetrar no interior das almas o que

Cristo lhes transmitiu atraveacutes daqueles uacuteltimos

mandamentos como que fazendo um testamento

aquilo que recomendou como a filhos e desejou

que jamais caiacutesse no esquecimento Que outra

coisa Cristo ensina ordena preceitua e roga ao

Pai senatildeo que exista o amor muacutetuo entre os

homens Que outra coisa aquela comunhatildeo do

patildeo consagrado e do caacutelice do amor sancionou

senatildeo uma nova concoacuterdia indissoluacutevel

Ademais uma vez que sabia natildeo ser possiacutevel

contar com a paz onde haacute lutas por causa de

cargos de gloacuteria de riquezas de litiacutegios e de

processos arranca paixotildees dessa espeacutecie

completamente das almas dos seus proiacutebe que

eles sobretudo resistam ao mal ordena que eles

faccedilam o bem agravequeles que lhes fazem o mal e

ainda que desejem o bem daqueles que lhes

138

est ut penitus affectus eiusmodi revellit

ex animis suorum vetat in totum ne

malo resistant iubet ut de male

merentibus bene mereantur si possint

bene precentur male precantibus Et

Christiani sibi videntur qui ob

quantumuis levem iniuriolam [310]

magnam orbis partem in bellum

pertrahunt Praecipit ut qui in suo

populo sit princeps is ministrum agat nec

alia re praecellat aliis nisi quod melior

sit et pluribus prosit Et non pudet

quosdam ob pusillam accessiunculam

regni pomoeriis addendam tantos ciere

tumultus Docet avium et liliorum ritu in

diem vivere Vetat sollicitudinem in

posterum diem extendere vult totos e

caelo [315] pendere divites omnes

excludit a regno caelorum et non

verentur quidam ob pecuniolam non

exsolutam fortasse nec debitam tantum

humani sanguinis effundere Atque his

temporibus hae vel iustissimae

suscipiendi belli causae videntur

Profecto haud aliud agit Christus iubens

ut unum quiddam a se discant miti esse

animo minimeque feroci cum iubet

relinqui donarium ad aram nec [320]

prius offerri quam cum fratre reditum sit

desejam o mal E veem-se como cristatildeos aqueles

que por causa de uma leve injuriazinha levam agrave

guerra uma grande parte do mundo Ordena que

o priacutencipe se comporte como um servo e que em

nada supere os outros a natildeo ser por ser o melhor

e o mais uacutetil para a maioria E os priacutencipes deste

mundo por pequeninas aquisiccedilotildees territoriais ou

para acrescentar ao reino alguns pomeacuterios natildeo

se envergonham de criar tamanha turbaccedilatildeo

Ensina a viver o dia como as aves e os liacuterios

Proiacutebe-nos de preocupar-nos de forma

demasiada com o dia de amanhatilde98

quer que

todos dependamos apenas do ceacuteu exclui todos

os ricos do reino dos ceacuteus e haacute quem por uma

pequena diacutevida natildeo saldada talvez nem mesmo

devida derrame tanto sangue humano Ora

estes talvez pareccedilam hoje em dia motivos

justiacutessimos para se fazer a guerra Mas acaso

Cristo natildeo age de forma contraacuteria ordenando

que cada qual aprenda dele uma soacute coisa a ter

um espiacuterito manso nada feroz Quando ordena

que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo

seja oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com

o irmatildeo porventura natildeo ensina abertamente que

a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e

que nenhuma oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo

for recomendada por mim Deus rejeitava as

oferendas judaicas que eram bodes ou ovelhas

porque eram oferecidas por homens que viviam

98

A paz relembra o capiacutetulo sexto do Evangelho de Marcos no qual Cristo teria enviado os Doze dois a dois

ordenando-lhes que natildeo levassem coisa alguma para o caminho nem patildeo nem mochila nem dinheiro no cinto

mas somente um bordatildeo como calccedilado unicamente sandaacutelias e que se natildeo revestissem de duas tuacutenicas

139

in gratiam nonne palam docet rebus

omnibus anteponendam esse concordiam

nec ullam victimam esse deo gratam nisi

commendante me Respuebat deus

Iudaicum munus fortassis haedum aut

ovem quod a dissidentibus offerretur et

Christiani sic inter sese belligerantes

sacrosanctam illam victimam audent

offerre Iam cum se gallinae pullos sub

[325] alas aggreganti facit adsimilem

quam apto symbolo depinxit concordiam

Ille congregator est et qui convertit

Christianos esse milvios Eodem pertinet

quod lapis dictus est angularis utrumque

parietem committens et continens et qui

convenit ut huius vicarii totum orbem ad

arma commoveant regnaque regnis

committant Summum illum

conciliatorem habent principem ut

iactant et [330] nullis rationibus ipsi sibi

possunt reconciliari Conciliavit ille

Pilatum et Herodem et suos in

concordiam redigere non potest Petrum

adhuc semiiudaeum qui in praesentis

capitis discrimine dominum ac

praeceptorem tueri parabat obiurgat ipse

qui defendebatur gladiumque iubet

recondere et Christianis ob levissimas

causas numquam non expromptus

districtusque est gladius idque in [335]

em discoacuterdia e como ousam os cristatildeos que

guerreiam entre si ofertar aquele sacrifiacutecio

sagrado Quatildeo apropriada eacute a imagem com que

ele retratou a concoacuterdia ao fazer uma

comparaccedilatildeo entre si mesmo e a galinha que junta

os pintinhos sob as asas Ele eacute o congregador e

os cristatildeos seratildeo aves de rapina Pelo mesmo

motivo eacute chamado pedra angular que ao mesmo

tempo une e manteacutem duas paredes e seratildeo

aqueles que ocupam o lugar dele na terra os que

movem todo orbe agraves armas e incitam reinos

contra reinos Jactam-se de que tecircm como

Priacutencipe aquele sumo conciliador mas se

mostram incapazes de ser por ele reconciliados

Ele conciliou Pilatos e Herodes e natildeo pode

conduzir os seus agrave concoacuterdia E ainda a Pedro

(um meio judeu que diante de um perigo

mortal quis defender o seu Senhor e Mestre)

Cristo repreendeu e ordenou agravequele que o

defendia que a espada fosse guardada99

E os

cristatildeos por causa de questotildees ligeiriacutessimas tecircm

sempre a espada desembainhada e pronta contra

os proacuteprios cristatildeos Por acaso desejaria ser

defendido pela proteccedilatildeo da espada aquele que ao

morrer pediu perdatildeo pelos autores do crime

Todos os livros sagrados do cristianismo

99

Erasmo se refere ao episoacutedio no qual Pedro atacou com uma espada um dos soldados que prendiam Jesus (Cf

Matheus 2651 Marcus 1447 Lucas 2250-51 Ioannes 1810)

140

Christianos An ille se gladii praesidio

defensum velit qui moriens deprecatur

pro necis auctoribus

[337] Omnes Christianorum

litterae sive vetus legas testamentum

sive novum nihil aliud quam pacem et

unanimitatem crepant et omnis

Christianorum vita nihil aliud quam bella

tractat Quaenam est haec plusquam

ferina feritas [340] quae tot rebus nec

vinci potest nec leniri Quin potius aut

Christianorum titulo gloriari desinant aut

Christi doctrinam exprimant concordia

Quousque vita pugnabit cum nomine

Insignite quantumlibet aedes vestesque

crucis imagine non agnoscet Christus

symbolum nisi quod ipse praescripsit

videlicet concordiae Congregati vident

euntem in caelum congregati iubentur

operiri spiritum [345] caelestem Et inter

congregatos se semper versaturum

promiserat ne quis speraret usquam in

bellis adesse Christum Iam igneus ille

spiritus quid aliud est quam caritas

Nihil igne communius citra dispendium

ullum ignis igni accenditur Vis autem

cognoscere spiritum illum concordiae

parentem esse Exitum vide Erat inquit

cunctis cor unum et anima una

[350] Tolle spiritum e corpore

se lecircs o Antigo Testamento ou o Novo clamam

nada mais do que a paz e a unidade e a vida toda

dos cristatildeos nada mais eacute do que ocupar-se da

guerra Que ferocidade mais que bestial eacute esta

que nem pode ser vencida nem ser amenizada

com tatildeo grande nuacutemero de antiacutedotos Eacute melhor

que optem ou desistem de se gloriar do tiacutetulo de

cristatildeos ou imitam vivendo em concoacuterdia a

doutrina de Cristo Ateacute quando a vida contradiraacute

o nome Ainda que ornamenteis e assinaleis com

a imagem da cruz os templos e as vestes Cristo

natildeo reconheceraacute como seu sinal senatildeo aquele

que ele mesmo prescreveu ou seja o sinal da

concoacuterdia Congregados viram-no subir ao Ceacuteu

congregados foram chamados a receber o

Espiacuterito Santo E havia prometido que sempre

haveria de encontrar-se no meio daqueles que

estivessem congregados para ningueacutem esperar

que Cristo esteja presente nas guerras Jaacute aquele

espiacuterito iacutegneo que outra coisa eacute senatildeo amor

Nada eacute mais comum do que o fogo pois sem

demora fogo eacute aceso pelo fogo Queres saber

como aquele espiacuterito gerava a concoacuterdia Vecirc o

resultado Ele diz ldquoeram todos um soacute coraccedilatildeo e

uma soacute almardquo 100

Tira o espiacuterito do corpo e imediatamente

dissolve-se toda aquela ligaccedilatildeo dos membros

Tira a paz e pereceraacute toda a sociedade cristatilde Os

teoacutelogos afirmam que hoje o Espiacuterito Celeste se

100

ldquoMultitudinis autem credentium erat cor et anima unardquo (Acta Apostolorum 4 32)

141

continuo dilabitur omnis illa membrorum

compago tolle pacem et perit omnis

Christianae vitae societas Tot hodie

sacramentis infundi caelestem spiritum

affirmant theologi Si verum praedicant

ubi peculiaris spiritus illius effectus cor

unum et anima una Sin fabulae sunt cur

tantam honoris hisce rebus defertur

Atque haec sane dixerim quo magis

Christianos [355] suorum morum pudeat

non quo sacramentis aliquid detraham

Nam quod populum Christianum

ecclesiam vocari placuit quid aliud quam

unanimitatis admonet Qui convenit

castris et ecclesiae Haec aggregationem

sonat illa dissidium Si pars Ecclesiae

gloriaris esse quid tibi cum bellis Si ab

Ecclesia semotus es quid tibi cum

Christo Si eadem omnes habet domus si

communem [360] habetis principem si

eidem militatis omneis (sic) si

sacramentis iisdem estis initiati si iisdem

gaudetis donativis si iisdem alimini

stipendiis si commune petitur praemium

quid ita inter vos tumultuamini Videmus

inter impios istos commilitones qui

mercede ad caedis peragendae

ministerium conducti veniunt tantam esse

concordiam non ob aliud nisi quod sub

iisdem militant signis et [365] pietatem

profitentes tot res non conglutinant Itane

nihil agitur tot sacramentis Baptismus

infunde em noacutes por um grande nuacutemero de

sacramentos Se de fato pregam a verdade onde

estaacute o efeito particular daquele espiacuterito a saber

um soacute coraccedilatildeo e uma soacute alma Se os

sacramentos natildeo passam de faacutebulas por que se

lhes confere tanta honra Se o disse assim dessa

maneira natildeo foi para depreciar em coisa alguma

os sacramentos mas a fim de que os cristatildeos

mais possam envergonhar-se de seus maus

costumes Aquilo que o povo cristatildeo agradou-se

em chamar Igreja natildeo foi para aconselhar a

unidade Como conciliar exeacutercito e Igreja Esta

soa uniatildeo aquele divisatildeo se te glorias de ser

parte da Igreja que tens tu a ver com as guerras

Se te afastaste da Igreja que tens tu com Cristo

Se todos possuiacutes o mesmo lar se tendes um

Priacutencipe comum se militais todos sob o mesmo

estandarte se fostes iniciados nos mesmos

sacramentos se vos alegrais com os mesmos

dons se sois alimentados graccedilas aos mesmos

recursos se buscais o mesmo precircmio por que

vos enfrentais assim entre voacutes Vemos enorme

concoacuterdia entre os iacutempios mercenaacuterios que satildeo

levados pela esperanccedila de precircmio ao serviccedilo de

perpetrar assassinatos isso ocorre natildeo por outra

coisa senatildeo porque lutam sob os mesmos

estandartes por que entatildeo tatildeo grande nuacutemero

de benefiacutecios natildeo une aqueles que professam a

piedade Seratildeo tatildeo ineficazes tantos

sacramentos O batismo comum a todos atraveacutes

do qual renascemos com Cristo e libertados do

mundo somos inseridos como membros de

142

communis omnium per hunc Christo

renascimur et exsecti mundo Christi

membris inserimur Quid autem tam idem

esse potest quam eiusdem corporis

membra Ab hoc igitur neque servus est

quisquam neque liber neque barbarus

neque Graecus neque vir neque foemina

sed omnes idem in Christo [370] sunt qui

omnia redigit in concordiam

[371] Scythas ita iungit paululum

sanguinis utrimque gustati e calice ut pro

amico nihil cunctentur et mortem

oppetere Ethnicis etiam sancta est

amicitia quam mensa communis

conciliavit et Christianos caelestis ille

panis ac mysticus ille calix non continet

in amicitia quam ipse sanxit Christus

quam illi quotidie [375] renovant ac

repraesentant sacrificiis Si nihil illic egit

Christus quorsum opus hodie tot

cerimoniis Si rem seriam egit cur sic a

vobis negligitur quasi rem ludicram ac

scenicam egerit Audet quisquam ad

sacram illam mensam amicitiae

symbolum audet ad pacis convivium

accedere qui bellum destinat in

Christianos et eos parat perdere pro

quibus servandis mortuus est Christus

Cristo Ora que comunhatildeo maior pode haver que

a dos membros do mesmo corpo A partir daiacute

natildeo haacute mais servos e homens livres baacuterbaros e

gregos homens e mulheres mas todos satildeo o

mesmo em Cristo 101

que tudo conduziu agrave

concoacuterdia102

Um pouco de sangue bebido de um

mesmo caacutelice une de tal modo os citas que pelo

amigo natildeo vacilam perante nenhum sacrifiacutecio

ainda enfrentar a morte 103

tambeacutem entre os

pagatildeos existe uma amizade sagrada que nasceu

de uma mesa em comum e aquele patildeo do ceacuteu

aquele caacutelice consagrado que o proacuteprio Cristo

santificou e que eles mesmos renovam

diariamente nas missas natildeo mantecircm na amizade

os cristatildeos Se Cristo natildeo tinha nenhuma

intenccedilatildeo com isso para que servem hoje em dia

tantas cerimocircnias Mas se tinha uma finalidade

seacuteria por que voacutes o negligenciais tanto como se

fosse uma brincadeira e uma encenaccedilatildeo Algueacutem

ousa aproximar-se daquela mesa sagrada

siacutembolo da amizade ousa aceder ao banquete da

paz quem trama a guerra contra cristatildeos e

prepara para destruir aqueles que Cristo morreu

para salvar e se apressa a beber o sangue

daqueles em favor dos quais o Cristo derramou o

seu sangue Oacute coraccedilotildees mais duros que

diamantes Haacute harmonia em negoacutecios tatildeo

101

ldquonon est Iudaeus neque Graecus non est servus neque liber non est masculus et femina omnes enim vos

unus estis in Christo Iesurdquo (Ad Galatas 328)

102 ldquoInstaurare omnia in Christordquo (Ad Ephesios 110)

103 Cf Isoacutecrates Panegiacuterico 21 ll 12-16 Erasmo compocircs o adaacutegio 2494 ldquoScytharum solitudordquo (LB II 849 B-

C) Na epiacutestola 809 (5 de abril de 1518) mencionou a solitudo Scytha

143

[380] eorum haurire sanguinem pro

quibus suum sanguinem fudit Christus O

pectora plus quam adamantina in rebus

tam multis consortium est et in vita tam

inexplicabile dissidium Eadem nascendi

lex omnibus eadem senescendi

moriendique necessitas Eumdem generis

Principem habent omnes eumdem

religionis auctorem eodem omnes

redempti sanguine iisdem omnes initiati

sacris iisdem [385] aluntur sacramentis

Quicquid ex his redit muneris ab eodem

proficiscitur fonte et ex aequo commune

est omnibus Eadem omnium Ecclesia

denique praemium idem omnium Quin

caelestis illa Hierusalem ad quam

suspirant vere Christiani a pacis visione

nomen habet cuius interim ecclesia

typum sustinet Et qui fit ut haec

tantopere discrepet ab exemplari Adeo

nihil promovit tot [390] viis solers natura

nihil ipse Christus perfecit tot praeceptis

tot mysteriis tot symbolis Vel ipsa mala

conciliant et malos iuxta proverbium

Christianos inter se nec bona nec mala

ulla conciliant Quid humana vita

fragilius quid brevius Quot ea morbis

quot casibus obnoxia Et tamen cum plus

habeat ex sese malorum quam ut ferri

variados e na vida uma tatildeo inexplicaacutevel divisatildeo

Se a lei de nascer eacute a mesma para todos eacute a

mesma para todos a necessidade de envelhecer e

morrer Todos tecircm o mesmo antepassado da

espeacutecie todos tecircm o mesmo mestre de religiatildeo

todos foram redimidos com o mesmo sangue

todos foram iniciados nos mesmos ritos todos

satildeo alimentados com os mesmos sacramentos e

quaisquer que sejam os benefiacutecios que destes

procedem satildeo obtidos da mesma fonte e por

direito satildeo comuns a todos Todos tecircm a mesma

Igreja e no fim o precircmio seraacute igual para todos

Mais ainda aquela Jerusaleacutem Celeste pela qual

os cristatildeos verdadeiros suspiram possui o nome

de ldquovisatildeo da pazrdquo e durante esta vida terrena a

Igreja se apresenta como uma figura sua O que

se passou para que esta se discrepe de tal

maneira do modelo Ateacute que ponto eles nada

conseguem nem a natureza tatildeo industriosa por

tantos caminhos nem o poacuteprio Cristo com tantos

preceitos tantos misteacuterios tantos siacutembolos

Segundo o proveacuterbio ateacute as maldades unem os

maus 104

soacute para os cristatildeos eacute que natildeo haacute coisas

boas nem maacutes capazes de uni-los uns aos outros

O que pode haver de mais fraacutegil do que a vida

humana O que haacute de mais breve A quantas

doenccedilas e acidentes fatais se expotildee E no

entanto ainda que por sua natureza jaacute tenha

uma cota de males mais pesada do que se pode

104

O proveacuterbio citado por Erasmo seria de sua proacutepria autoria conciliant homines mala (Erasmo Adagia 1071)

mas tem origem aristoteacutelica ldquoo criminoso se une ao criminoso por prazerrdquo (Aristoacuteteles Retoacuterica I e Eacutetica a

Eudemo 1238a e 1239b)

144

possit tamen maximam malorum partem

ipsi sibi accersunt [395] dementes Tanta

caecitas humanos animos occupat ut

nihil horum perspiciant sic praecipites

aguntur ut omnia naturae Christique

vincula omnia foedera rumpant

dissecent diffringant Pugnant passim

atque assidue nec modus nec finis

Colliditur gens cum gente civitas cum

civitate factio cum factione princeps

cum principe et ob duorum

homuncionum qui mox velut ephemera

sint [400] interituri seu stulticiam seu

ambitionem res humanae sursum

deorsum miscentur

[402] Missas faciam veterum

bellorum tragoedias Repetamus decem

ab hinc annis acta ubi non gentium

crudelissime pugnatum est terra marique

Quae regio non Christiano sanguine

commaduit Quod flumen quod mare

non humano [405] cruore tinctum est

Et o pudor pugnant immanius quam

Iudaei quam ethnici quam ferae

Quicquid bellorum Iudaeis gestum est

suportar mesmo assim os homens dementes

produzem para si mesmos a maior parte dos

males A cegueira das mentes humanas eacute tatildeo

grande que natildeo percebem nada Agem de modo

tatildeo precipitado que rompem rasgam e infrinjem

todos os viacutenculos da natureza e de Cristo

esquecendo todas as alianccedilas Combatem

assiduamente e em toda parte a ponto de

tumultuar sem medida nem fim Um povo

combate outro povo uma cidade com outra

cidade uma facccedilatildeo com outra facccedilatildeo um

priacutencipe com outro priacutencipe e por causa da

burrice ou da ambiccedilatildeo de dois homenzinhos que

hatildeo de perecer como coisas efecircmeras

subvertem-se de cima a baixo as coisas humanas

Natildeo contarei as trageacutedias das guerras

antigas Contemos somente as dos uacuteltimos dez

anos105

Onde natildeo encontraremos a crudeliacutessima

luta das naccedilotildees por terra e mar Que regiatildeo natildeo

derramou sangue cristatildeo Que rio e que mar natildeo

estatildeo tingidos com sangue humano106

Oacute

vergonha lutam de modo mais feroz do que os

judeus do que os pagatildeos e do que as feras

Todas as guerras que os judeus moveram contra

os estrangeiros (ἀλλόθσλος) os cristatildeos

deveriam direcionar contra os viacutecios mas com

estes os homens encontram-se de bem eacute contra

os homens que se faz a guerra Os judeus

poreacutem se faziam guerra era porque uma ordem

105

Erasmo poderia estar se referindo agrave guerra franco-espanhola A batalha de Cerignoles e a de Garigliano por

exemplo datam respectivamente de 2804 e 2712 de 1503

106 Herding (1978 p 79 nota 404) percebe a recepccedilatildeo de Horaacutecio (Carm II I 29-36)

145

adversus Allophylos (ἀλλόθσλος) id

Christianis gerendum adversus vitia

quibus nunc cum vitiis convenit cum

hominibus bellum est Et tamen Iudaeos

divina iussio ducebat ad pugnam

Christianos si praetextibus detractis rem

vere aestimes transversos rapit ambitio

agit ira [410] pessimus consultor

pertrahit habendi numquam satiata

cupiditas Atque his fere cum exteris res

erat Christianis cum Turcis foedus est

inter ipsos bellum Iam ethnicos tyrannos

fere gloriae sitis ad bellum exstimulabat

atque hi tamen sic barbaras atque efferas

nationes subigebant ut vinci expediret et

victor de victis bene mereri studeret

Dabant operam ut quam fieri posset

incruenta esset victoria [415] quo simul

et victori honesta fama praemium esset et

victis solatium victoris benignitas

[417] At pudet meminisse quam

pudendis quam frivolis de causis

Christiani Principes orbem ad arma

concitent Hic obsoletum ac putrem

aliquem titulum aut reperit aut

commentus est quasi vero ita magni

referat quis regnum administret [420]

modo publicis commodis reste

consulatur Ille causatur omissum nescio

divina os levava agrave batalha Os cristatildeos se

deixarmos de lado os pretextos e pensarmos as

coisas com retidatildeo a ambiccedilatildeo eacute que os empurra

para o mal a ira o pior dos conselheiros age

arrasta-os o desejo insaciaacutevel de possuir No

mais aqueles em geral tinham litiacutegios com os

estrangeiros enquanto que os cristatildeos fazem

alianccedila com os turcos e guerra entre eles

mesmos Jaacute os tiranos pagatildeos sede de gloacuteria era

o que em geral os estimulava agrave guerra e seja

como for subjugavam assim naccedilotildees baacuterbaras e

selvagens de tal forma que ser vencido era

proveitoso e o vencedor esforccedilava-se para cuidar

bem dos vencidos107

Tomavam providecircncias

para que a vitoacuteria fosse o menos cruenta

possiacutevel de forma que a fama honrada fosse o

precircmio para o vencedor e a benignidade do

vencedor consolo dos vencidos

Mas envergonha lembrar quatildeo

vergonhosos e quatildeo friacutevolos satildeo os motivos

pelos quais os priacutencipes cristatildeos levam o mundo

agraves armas108

Este ou encontra ou inventa algum

tiacutetulo qualquer obsoleto ou esquecido como se

realmente importasse muito quem eacute que

administra o reino desde que vele inteiramente

pelos interesses puacuteblicos Aquele alega natildeo sei

que claacuteusula foi omitida em um contrato de cem

107

Segundo Margolin (1992 p 931) Erasmo se refere a um tratado de paz entre o sultatildeo e Veneza datado de

1503 renovado em 1514 e em setembro de 1517

108 Cf Horaacutecio Carm I 35 15

146

quid in foedere centum capitum Hic illi

privatim infensus est ob sponsam

interceptam aut scomma liberius dictum

Et quod est omnium sceleratissimum

sunt qui tyrannica arte quod populi

concordia potestatem suam labefactari

sentiant dissidio stabiliri subornent qui

data opera bellum excitent quo simul et

coniunctos dirimant et infelicem populum

licentius expilent scelestissimi quidam

qui populi malis aluntur et quibus pacis

tempore non multum est quod agant in

republica Quae tartarea furia venenum

hoc in pectus Christianum potuit

immittere Quis hanc tyrannidem docuit

Christicolas quam nec Dionysius ullus

nec Mezentius ullus novit Belluae verius

quam homines et sola tyrannide nobiles

[430] nec usquam cordati nisi ad

nocendum nec umquam concordes nisi

ad opprimendam rempublicam Et haec

qui gerunt pro Christianis habentur

audent humano sanguine undique polluti

ad sacras aedes ad sacras aras accedere

O pestes in extremas insulas deportandas

capiacutetulos Este eacute inimigo pessoal daquele por

causa de uma esposa que natildeo lhe foi entregue ou

por algum sarcasmo mais licencioso E o que eacute

mais criminoso de tudo eacute que haacute aqueles que por

meio de uma artimanha tiracircnica porque os povos

em concoacuterdia arruinam sua autoridade enquanto

que as divisotildees a solidificam subornam outros

para que excitem a guerra a fim de que ao

mesmo tempo e em acordo muacutetuo possam

desunir e pilhar mais livremente o povo infeliz

Isso eacute o que procuram os priacutencipes mais

criminosos que se alimentam com males do

povo e que em tempo de paz natildeo haacute muito que

faccedilam por suas repuacuteblicas Que fuacuteria infernal foi

capaz de infundir este veneno nos peitos

cristatildeos Quem ensinou aos seguidores de Cristo

essa tirania que nem Dioniacutesio109

nem

Mezecircncio110

conheceram jamais Satildeo

verdadeiramente mais feras do que homens

nobres somente pela tirania sagazes apenas para

matar e concordes apenas para oprimir a

repuacuteblica E os dessa laia satildeo tidos por cristatildeos e

contaminados por sangue humano ousam

aproximar-se dos edifiacutecios e altares sagrados Oacute

flagelos Que sejam deportados para as ilhas

109

Erasmo natildeo se refere ao Deus do Vinho mas aos reis de Siracusa Dioniacutesio I o Antigo (430-367 a C)

tirano de Siracusa por trinta e oito anos ateacute a sua morte Segundo Deodoro Siacuteculo (90-30 a C) Dioniacutesio era de

origem humilde mas tomou conta do poder por ocasiatildeo da guerra de Cartago em 405 a C Apoacutes lutas e alianccedilas

militares foi derrotado pelos cartagineses em 383 a C (Cf Diodoro Siacuteculo Histoacuteria XIII 96 4)

110 Mezecircncio foi um rei de origem etrusca que governou a cidade de Cere Destacado personagem da Eneida de

Virgiacutelio (70-19 a C) toma parte da guerra contra os troianos Virgiacutelio em discordacircncia com os autores mais

antigos transmitiu a figura de Mezecircncio como um terriacutevel tirano Narra que entre outras torturas hediondas

Mezecircncio permitia que seus prisioneiros fossem amarrados face a face com outros criminosos vivos ou mortos

os quais teriam cometido tantos excessos que os proacuteprios habitantes de Cere o expulsaram (Virgiacutelio Eneida XI

7-16) Catatildeo registrou a prepotecircncia do tirano Mezecircncio ao exigir para si as primiacutecias do vinho destinadas a

Juacutepiter(Origines I 12)

147

Si Christiani corporis unius membra sunt

cur non gratulatur quisque alienae

felicitati Nunc prope iusta movendi

[435] belli causa videtur regnum

finitimum rebus omnibus paulo

florentius

[436] Etenim si verum fateri

volumus quid aliud commovit et hodie

commovet tam multos ad armis

lacessendum Franciae regnum nisi quod

est unum omnium florentissimum

Nullum latius patet nusquam senatus

augustior nusquam academia celebrior

nusquam concordia maior et ob hoc

ipsum potestas summa

[440] Nusquam aeque florent

leges nusquam illibatior religio nec

Iudaeorum commercio corrupta velut

apud Italos nec Turcarum aut

Maranorum vicinia infecta

quemadmodum apud Hispanos et

Hungaros Germania ne quid dicam de

Bohoemis in tot regulos dissecta est ac

regni ne species quidem ulla Sola

Francia ceu flos illibatus Christianae

ditionis et velut arx quaedam tutissima si

qua fors [445] tempestas ingruat tot

modis impetitur tot artibus incessitur

nec ob aliud nisi cuius gratia conveniebat

gratulari si qua vena Christianae mentis

mais remotas Se satildeo membros de um soacute corpo

cristatildeo por que cada um natildeo se congratula com a

felicidade alheia Hoje em dia quase parece que

eacute uma justa causa para mover a guerra que o

reino vizinho seja um pouco mais florescente em

todas os aspectos

E de fato se queremos reconhecer a

verdade que outra coisa impeliu e impele hoje

em dia tantos povos agraves armas contra o Reino da

Franccedila senatildeo o fato de este ser o mais proacutespero

de todos Nenhum eacute tatildeo grande em nenhum

lugar o senado eacute mais respeitaacutevel em nenhum

lugar a universidade eacute mais ceacutelebre em nenhum

paiacutes a concoacuterdia eacute maior e por isso mesmo o

poder tatildeo supremo111

Em nenhum lugar as leis florescem como

ali em nenhum lugar a religiatildeo eacute mais pura jaacute

que natildeo estaacute corrompida pelo comeacutercio com os

judeus como entre os italianos nem as fronteiras

estatildeo repletas de turcos e marranos como entre

os espanhoacuteis e os huacutengaros A Alemanha para

natildeo mencionar os Boecircmios foi dividida em

pedaccedilos por tantos reizinhos e natildeo tem sequer a

aparecircncia de um reino Soacute a Franccedila eacute como uma

flor intacta da cristandade como sua mais segura

cidadela mas se por acaso surge alguma

tempestade ela eacute de tantos modos atacada eacute

combatida com tantas artes pelo uacutenico motivo

pelo qual deveria ser celebrada se nos seus

inimigos houvesse um pouco de espiacuterito cristatildeo

111

Segundo Margolin (1992 p 933) ldquoErasmo idealiza a ambiccedilatildeo do imperialismo francecircs por motivaccedilotildees de

ordem poliacutetica sobretudo pela francofilia da poliacutetica borgonhesardquo

148

esset in istis Atque his tam impiis factis

praetexitur titulus pius sic sternunt viam

ad propagandum imperium Christi O

rem monstrosam parum consultum

putant reipublicae Christianae nisi

pulcerrimam ac felicissimam ditionis

christianae partem [450] subverterint

[451] Quid quod in his tractandis

feras etiam ipsas feritate praecedunt Non

omnes pugnant belluae nec ferarum nisi

in diversum genus conflictatio est

quemadmodum et ante diximus saepius

inculcandum quo magis inhaereat

animis Vipera non mordet viperam nec

lynx lyncem discerpit Ac rursum illae

cum [455] pugnant suis pugnant armis

Illas armavit natura Homines inermes

natos o Deum immortalem qualibus

armis armat ira Tartareis machinis

impetunt Christiani Christianos Quis

enim credat bombardas hominis

inventum esse Nec ille tam densis

agminibus in mutuum exitium ruunt

Quis unquam vidit decem leones cum

decem tauris congredi At quoties viginti

millia Christianorum cum [460] totidem

Christianis ferro decertant Tanti est

laedere tanti est haurire sanguinem

fratrum Nec illis fere bellum est nisi

cum fames aut cura sobolis in rabiem

agit At Christianis quae tam levis iniuria

est ut non videatur idonea bellandi

E estes atos tatildeo perversos satildeo justificados por

alegaccedilotildees tatildeo pias Eacute assim que se abre o

caminho para propagar o impeacuterio de Cristo Oacute

ato monstruoso Acham que cuidam pouco dos

interesses da repuacuteblica cristatilde a natildeo ser que

ponham a perder a parte mais bela e mais feacutertil

da cristandade

Que nos resta dizer senatildeo que os homens

com esses seus empreendimentos superam em

selvageria as proacuteprias feras Nem todos os

animais selvagens satildeo agressivos e aqueles que

satildeo ferozes o satildeo apenas contra espeacutecies

diferentes como jaacute dissemos anteriormente e

conveacutem repetir vaacuterias vezes para inculcaacute-lo e

fixaacute-lo nas mentes A viacutebora natildeo morde a viacutebora

e lince natildeo devora o lince E repito quando

lutam lutam com as suas armas aquelas com

que a natureza os armou mas aos homens que

nasceram desarmados oacute Deus imortal com que

armas a ira os arma Cristatildeos atacam cristatildeos

com maacutequinas infernais Quem acreditaria que o

canhatildeo eacute uma invenccedilatildeo do homem Tampouco

aquelas buscando destruiccedilatildeo muacutetua se atiram

umas contra as outras em fileiras cerradas Ou

algueacutem jaacute viu dez leotildees formados em pelotatildeo

contra dez touros Mas quantas vezes vinte mil

cristatildeos desembainharam a espada contra outros

tantos cristatildeos Tatildeo importante eacute ferir e derramar

o sangue dos irmatildeos E mais as feras impelem

ao furor a natildeo ser quando haacute fome ou por

cuidado da prole Para os cristatildeos contudo

quase natildeo existe uma injuacuteria por mais leve que

149

occasio Si faceret ista plebes utcumque

praetexi poterat inscitia si iuvenes

excusari poterat aetatis imperitia si

prophani nonnihil elevaret atrocitatem

facti [465] personae qualitas Nunc ab iis

potissimum videmus oriri bellorum

semina quorum consilio moderationeque

populi motus componi conveniebat

Contentum illud et ignobile vulgus condit

egregias urbes conditas civiliter

administrat administrando locupletat In

has irrepunt satrapae et ceu fuci quod

aliena partum est industria surripiunt et

quod a plurimis bene congestum est a

paucis [470] male dissipatur quod recte

conditum crudelissime diruitur Quod si

prisca non meminerunt repetat qui volet

secum hisce duodecim annis gesta bella

Causas expendat comperiet omnia

principum gratia suscepta magno populi

malo gesta cum ne tantillum quidem ad

populum attineret

[474] Iam quod olim foedum

habebatur apud ethnicos caniciem galea

premere ut [475] inquit ille id apud

Christianos laudi ducitur Turpe senex

seja que natildeo lhes pareccedila ocasiatildeo para guerrear

Se fosse a plebe a fazer isso poder-se-ia de uma

forma ou de outra pretender ignoracircncia Se os

jovens podia excusaacute-los a imperiacutecia da idade Se

os leigos a condiccedilatildeo da pessoa em certa medida

relevaria a atrocidade do feito Mas hoje vemos

que as sementes da guerra satildeo lanccediladas

exatamente por aqueles cujo conselho e

moderaccedilatildeo conviria que as agitaccedilotildees fossem

contidas Aquele vulgo ignoacutebil desprezado e

sem nobreza edifica cidades egreacutegias uma vez

edificadas administra-as civilizadamente e ao

administraacute-las as enriquece Irrompem nelas os

saacutetrapas e como se fossem zangotildees roubam o

que eacute produto do trabalho alheio e o que foi

poupado por muitos eacute dissipado por poucos e o

que havia sido construiacutedo retamente eacute destruiacutedo

com crueldade A esse respeito se natildeo haacute

recordaccedilatildeo dos tempos antigos que aquele que o

desejar repasse consigo mesmo a memoacuteria das

guerras feitas nos uacuteltimos dozes anos pondere

suas causas e descobriraacute que todas se deram por

culpa dos priacutencipes realizadas para grande

prejuiacutezo do povo uma vez que suas motivaccedilotildees

nem um tantinho sequer se aproveitassem ao

povo

Ateacute aquilo que outrora era consenso entre

os pagatildeos de que natildeo se devia cobrir os cabelos

brancos com um elmo como diz o poeta112

esse

costume hoje entre os cristatildeos tornou-se motivo

112

Cf Virgiacutelio Aeneida IX 612 Oviacutedio Trist IV 1 74

150

miles Nasoni et istis magnifica res est

bellator septuagenarius Imo ne

sacerdotes quidem ipsos pudet quos olim

deus nec in sanguinaria illa et inclementi

lege Moysi voluit ullo sanguine pollui

non pudet theologos Christianae vitae

magistros non pudet absolutae religionis

professores non pudet episcopos non

pudet cardinales et [480] Christi vicarios

eius rei auctores ac faces esse quam

Christus tantopere detestatus est Qui

convenit mitrae et galeae Quid pedo

cum gladio Quid evangelico codici cum

clypeo Qui convenit pacis omine

salutare populum et orbem ad

turbulentissimas pugnas concitare pacem

dare lingua re bellum immittere Tun

eodem ore quo Christum pacificum

praedicas bellum laudas eademque

[485] tuba Deum canis et Satanam Tun

apud concionem sacram cuculla tectus ad

caedem incitas simplicem populum qui

ex ore tuo doctrinam exspectabat

evangelicam Tun apostolorum occupans

locum pugnantia doces cum apostolorum

praeceptis An non vereris ne quod de

Christi praeconibus dictum est Quam

speciosi pedes nunciantium pacem

nunciantium bona nunciantium salutem

in diversum [490] vertatur Quam foeda

lingua sacerdotum adhortantium ad

de louvor Para Nasatildeo

eacute coisa infame um

soldado velho enquanto para estes ser um

guerreiro septuagenaacuterio eacute algo magniacutefico

Ademais nem os proacuteprios sacerdotes se

envergonham justamente eles aos quais outrora

Deus natildeo permitiu nenhuma contaminaccedilatildeo pelo

sangue nem naquela sanguinaacuteria e inclemente

lei de Moiseacutes113

natildeo se envergonham os

teoacutelogos mestres da vida cristatilde natildeo se

envergonham os professores de uma religiatildeo

perfeita natildeo se envergonham os bispos natildeo se

envergonham os cardeais e os vigaacuterios de Cristo

de serem os autores e incitadores de algo que

Cristo detestou tanto Que relaccedilatildeo existe entre a

mitra e o elmo Entre a docecircncia e a espada

Entre Evangelho e o escudo Que relaccedilatildeo haacute

entre saudar o povo com o sinal da paz e incitar

o mundo a lutas turbulentiacutessimas Desejar a paz

com a liacutengua mas na realidade provocar a

guerra Eacute possiacutevel que pregues o Cristo paciacutefico

com a mesma boca com que louvas a guerra e

que cantes Deus e Satanaacutes com o mesmo

instrumento Eacute possiacutevel que coberto com o

capuz do haacutebito incites no sagrado puacutelpito o

povo simples que esperava da tua boca a

doutrina evangeacutelica ao assassinato Eacute possiacutevel

que tu ocupando o lugar dos Apoacutestolos ensines

a violecircncia em contradiccedilatildeo com os preceitos dos

Apoacutestolos Acaso natildeo temes aquilo que eacute dito

sobre os arautos de Cristo ldquocomo satildeo belos os

peacutes dos que anunciam a paz dos que anunciam o

113

Erasmo provavelmente se refere agraves leis do Pentateuco que se assemelham agrave Lei de Taliatildeo

151

bellum incitantium ad mala

provocantium ad perniciem Apud

Romanos adhuc impie pios qui

pontificium maximum iniret ex more

confirmabat iureiurando se manus ab

omni sanguine puras servaturum adeo ut

ne laesus quidam ulcisceretur Atque

huius sacramenti fidem constanter

praestitit Titus Vespasianus imperator

ethnicus [495] idque laudi datur a

scriptore ethnico At o prorsus sublatam

e rebus humanis frontem apud

Christianos Deo dicati Sacerdotes et qui

his quoque sanctius aliquid prae se ferunt

monachi ad caedes ad strages

inflammant et Evangelii tubam Martis

tubam faciunt obliti dignitatis suae

sursum ac deorsum cursitant nihil non

tum faciunt tum patiuntur dum bellum

excitent et per hos Principes [500]

alioqui fortassis quieturi ad pugnam

inflammantur quorum auctoritate

tumultuantes sedari conveniebat Imo

quod est prodigiosius belligerantur ipsi

idque earum rerum gratia quas et apud

impios contempsere philosophi

bem dos que anunciam a salvaccedilatildeordquo 114

se mude

em seu contraacuterio ldquocomo eacute destestaacutevel a liacutengua

dos sacerdotes que exortam agrave guerra que incitam

ao mal que provocam a agressatildeordquo Entre os

romanos ateacute entatildeo impiamente pios aquele que

tomava posse como pontiacutefice maacuteximo era

obrigado por juramento a conservar suas matildeos

limpas de todo sangue de tal forma que mesmo

que fosse ferido por algueacutem natildeo se vingaria

Tito Vespasiano115

imperador pagatildeo manteve a

fidelidade a este sacramento com zelo fiel e por

isso foi louvado por um escritor pagatildeo116

Entre

os cristatildeos poreacutem oacute vergonha inteiramente

removida das accedilotildees humanas Os sacerdotes

cristatildeos consagrados a Deus e os monges que

se gabam de superar aqueles em santidade

inflamam os acircnimos dos priacutencipes e da plebe aos

assassinatos e ao massacre Transformam o

clarim do Evangelho em trombeta de Marte e

esquecidos de sua dignidade correm para cima e

para baixo tudo fazendo e tudo suportando ateacute

que consigam incitar agrave guerra e por causa desses

priacutencipes que satildeo inflamados agrave luta sem sua

intervenccedilatildeo talvez se inclinassem para a paz

precisamente deles a quem convinha acalmar

com sua autoridade E ateacute o que eacute ainda mais

114

ldquoQuam pulchri super montes pedes annuntiantis praedicantis pacem annuntiantis bonum praedicantis

salutemrdquo (Isaiah 521)

115 Tito Vespasiano imperador romano entre 79 e 81 d C fez um juramento de guardar suas matildeos puras da

efusatildeo de sangue humano Com a pacificaccedilatildeo das revoltas judaicas culminada com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem

(70 d C) obteve durante seu governo grande popularidade ao assumir o Impeacuterio a ponto de ser louvado pelo

historiador Suetocircnio e outros historiadores contemporacircneos especialmente pela benignidade para com as viacutetimas

da erupccedilatildeo do Vesuacutevio em 79 d C e o incecircndio de Roma em 80 d C

116 Erasmo se refere agraves palavras de Suetocircnio (As vidas dos doze ceacutesares Vida de Tito 91)

152

quarumque contemptus proprius ac

peculiaris est viris apostolicis

[504] Ante paucos annos cum

fatali quodam morbo mundus ad arma

raperetur [505] evangelici praecones

hoc est Minores ac Praedicatores e

suggesto sacro classicum canebant et

ultro ad furiam propensos magis

accendebant Apud Britannos animabant

in Gallos apud Gallos animabant in

Britannos omnes ad bellum instigabant

Ad pacem nemo provocabat praeter unum

aut alterum quibus pene capitale fuit me

vel nominasse Cursitabant ultro citroque

sacrosancti praesules [510] et dignitatis et

professionis suae obliti publicum orbis

morbum opera sua exacerbantes tum hinc

Iulium pontificem Romanum hinc Reges

ad maturandum bellum instigantes

perinde quasi non satis ipsi sua sponte

insanirent et tamen hanc manifestariam

insaniam magnificis titulis praeteximus

Huc patrum leges huc piorum hominum

scripta huc arcanae scripturae verba

prodigioso eles mesmos guerreiam por causa de

coisas que ateacute entre pagatildeos os filoacutesofos votaram

ao desprezo os quais devem ser objeto do

desprezo mais rpoacuterpio e peculiar dos varotildees

apostoacutelicos

Haacute alguns anos quando certa febre fatal

fez com que o mundo inteiro acorresse agraves armas

os pregadores evangeacutelicos isto eacute alguns

minoritas e dominicanos cantavam o claacutessico

toque de guerra do alto do puacutelpito sagrado117

e

acendiam ainda mais aqueles jaacute propensos agrave

fuacuteria Entre os ingleses inflamavam contra os

franceses entre os franceses inflamavam contra

os ingleses Instigavam todos agrave guerra Agrave paz

ningueacutem incitava a natildeo ser um ou outro que

pouco faltou para que fossem condenados agrave pena

capital por terem mencionado meu nome Os

santiacutessimos prelados corriam de um lado para o

outro e esquecidos de sua dignidade e de sua

profissatildeo exarcebavam com seus atos a miseacuteria

do mundo instigando ora de um lado o proacuteprio

Juacutelio 118

Pontiacutefice Romano ora do outro esses

tantos reis a preparar a guerra como se eles por

si mesmos e por sua proacutepria vontade jaacute natildeo

estivessem suficientemente loucos Mas

adornamos esta loucura manifesta com tiacutetulos

pomposos Com essa finalidade deturpamos de

117

Suggestus sacro era um lugar alto ou tribuna no qual os oradores romanos falavam ao povo Cf Erasmo

Dulce bellum LB II 956 F

118 O papa Juacutelio II (1443- 1513) foi conhecido como Il Papa Terribile ou Il Papa Guerriero Chamava-

se Giuliano della Rovere e foi Papa entre 1503 e 1513 Seu papado foi marcado por atividades poliacuteticas projetos

arquitetocircnicos e cultivo das artes Entre 1509 e 1513 inclsuive com a convocaccedilatildeo de um conciacutelio em Latratildeo deu

apoio agrave Liga Santa ou Liga de Cambrai com Luiacutes XII da Franccedila Maximiliano I Imperador Alematildeo Fernando II

Rei de Aragatildeo e Henrique VIII da Inglaterra contra a Repuacuteblica de Veneza a fim de conquistar a Romagna

153

impudentissime [515] detorquemus ne

dicam impie Imo iam eo prope rediit res

ut stultum et impium sit adversus bellum

hiscere et id laudare quod sole ore

Christi laudatum est Parum consulere

populo parum favere Principi videtur

qui suaserit rem omnium saluberrimam et

ab omnium pestilentissima dehortetur

Iam ipsa castra sequuntur sacrifici

praesunt in castris episcopi et relictis

ecclesiis suis [520] Bellonae rem agunt

Imo gignit iam bellum sacerdotes gignit

episcopos gignit cardinales quibus

campi legatus honorificus titulus et

apostolorum successoribus dignus

habetur Quo minus mirum si Martem

spirant quos Mars genuit Et quo malum

sit insanabilius tantam impietatem

pietatis specie praetexunt Vexilla crucem

habent Miles impius et nummis aliquot

ad lanienam ac caedem [525] conductus

crucis insigne praefert et belli symbolum

est quod solum dedocere bellum poterat

Quid tibi cum cruce scelerate miles Istis

animis istis factis dracones tigrides ac

lupi conveniebant Istud signum eius est

qui non pugnando sed moriendo vicit

forma desavergonhada para natildeo dizer iacutempia as

leis dos nossos antepassados119

os escritos dos

homens piedosos e as palavras da Sagrada

Escritura E mais chegou-se ao ponto em que ser

contra a guerra e louvar aquilo que Cristo

valorizou e louvou acima de tudo eacute considerado

prova de loucura e de impiedade Parece que

aquele que aconselhar a mais salutar e dissuadir

da mais pestilenta de todas as coisas este zela

pouco pelos interesses do povo e favorece pouco

ao priacutencipe Os sacerdotes acompanham os

locais da guerra os bispos tomam a frente nos

acampamentos militares e abandonadas suas

igrejas fazem sacrifiacutecios a Belona120

E jaacute se

chegou ao ponto de a guerra gerar sacerdotes

gerar bispos gerar Cardeais em relaccedilatildeo aos

quais se considera digno dos sucessores dos

apoacutestolos e sumamente honoriacutefico o tiacutetulo de

embaixador da guerra Natildeo eacute de se admirar

aqueles a quem Marte gerou respiram Marte E

para que o mal seja mais incuraacutevel revestem tatildeo

grande impiedade com aparecircncia de piedade Os

estandartes ostentam a cruz 121

O soldado iacutempio

contratado por algumas moedas para esquartejar

e matar porta diante de si o siacutembolo da cruz e

torna-se estandarte de guerra a uacutenica coisa que

poderia dissuadir da guerra O que tu soldado

119

A expressatildeo tem um sentido duplo primeiro pode-se referir aos Padres da Igreja ou seja aqueles padres

antigos que na Histoacuteria da Igreja que se tornaram ceacutelebres segundo a Tradiccedilatildeo catoacutelica pela vida virtuosa

ortodoxia e antiguidade (viveram entre os seacuteculos I e VIII d C) e segundo aos Patriarcas hebreus cujas

histoacuterias se encontram no livro do Gecircnesis

120 Bellona foi uma antiga deusa romana da Guerra correspondente agrave deusa grega Enyo

121 O papa Juacutelio II havia dado o estandarte da cruz aos suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute

154

qui servavit non perdidit quodque cum

primis admonere te poterat cum quibus

hostibus tibi res sit si modo Christianus

es et qua [530] ratione vincendum sit Tu

salutis insigne gestas ad fratris perniciem

properans et cruce perdis eum qui cruce

servatus est Quid quod ab arcanis illis et

adorandis sacris nam haec quoque

pertrahuntur in castra in quibus inprimis

summa Christianorum concordia

repraesentatur curritur in aciem dirum

ferrum in fratris viscera stringitur et

facinoris omnium sceleratissimi quo non

aliud esse [535] potest impiis spiritibus

gratius Christum faciunt spectatorem si

tamen illic dignatur adesse Christus

Denique quod est omnium

absurdissimum in utrisque castris in

utraque acie crucis signum relucet in

utrisque sacra Quid hoc monstri est

pugnat crux cum cruce Christus adversus

Christum belligeratur Hoc signum

Christiani nominis hostes terrere solet

Cur nunc oppugnant quod adorant [540]

Homines non una digni cruce sed vera

Quaeso quid in hisce sacris orat miles

pater noster Os durum audes eum

appellare patrem qui fratris tui iugulum

petis Sanctificetur nomen tuum qui

magis dehonestari poterat nomen dei

quam istiusmodi inter vos tumultibus

Adveniat regnum tuum sic oras qui tanto

celerado fazes com a cruz Esse modo de pensar

e de agir conveacutem mais a serpentes tigres e lobos

Esta insiacutegnia eacute daquele que natildeo venceu ao lutar

mas ao morrer que salvou natildeo fez perecer Ele

veio te ensinar se eacutes cristatildeo contra que inimigos

tu deverias lutar e como deverias fazer para

vencer Tu portas contigo o emblema da salvaccedilatildeo

e ao mesmo tempo te precipitas ao assassinato

do teu irmatildeo e destroacuteis com a cruz aquele que

foi salvo pela cruz E que dizer dos sacramentos

misteriosos e solenes Eacute fato que eles tambeacutem

levam para os acampamentos militares aquelas

cerimocircnias nas quais se representa sobretudo a

suma concoacuterdia dos cristatildeos Corre-se para a

linha de batalha e com crueacuteis espadas rasgam-

se as viacutesceras do irmatildeo Isso obriga Cristo a se

tornar espectador do mais celerado de todos os

crimes ndash que eacute ao mesmo tempo o mais grato

aos espiacuteritos mais iacutempios ndash se eacute que Cristo

consente em estar presente num acampamento

Por fim o mais absurdo de tudo eacute que em ambos

os acampamentos e em ambas linhas de batalha

se ergue e brilha o sinal da cruz e em ambos os

ritos sagrados satildeo celebrados Pode haver algo

mais monstruoso A cruz luta contra a cruz e

Cristo guerreia contra Cristo Este sinal costuma

aterrorizar os inimigos do nome cristatildeo Por que

os cristatildeos atacam aquilo que adoram Os

homens natildeo satildeo dignos de somente portar o

siacutembolo da cruz mas sim uma cruz verdadeira

Por favor por que durante a missa o soldado

recita o Pai Nosso Como te atreves boca

155

sanguine tyrannidem tuam moliris Fiat

voluntas tua quemadmodum in coelo ita

[545] et in terra pacem vult ille et tu

bellum paras Panem quotidianum a

communi Patre petis qui fraternas exuris

segetes et tibi quoque mavis perire quam

illi prodesse Iam quonam ore dices illud

et dimitte nobis debita nostra sicut et nos

dimittimus debitoribus nostris qui ad

parricidium festinas Deprecaris

periculum tentationis qui tuo periculo

fratrem in periculum pertrahis A malo

liberari postulas [550] cuius instinctu

summum malum fratri machinaris

[551] Plato negat appellandum

bellum quod Graeci moveant adversus

Graecos Seditio est inquit Et istis

sanctum etiam bellum est quod ob

quamlibet causam tali milite talibus

armis cum Christiano gerit Christianus

Ethnicorum leges culeo insutum in

profluentem abiiciunt qui ferrum fraterno

desavergonhada a chamar de Pai agravequele a quem

pedes auxiacutelio para cortares a garganta do teu

irmatildeo ldquoSantificado seja o teu nomerdquo o que

poderia macular de forma mais completa o nome

de Deus senatildeo esse tipo de disputa entre voacutes

ldquoVenha a noacutes o vosso reinordquo fazes este pedido

tu que com tatildeo grande derramamento de sangue

te empenhas em tua tirania ldquoSeja feita a vossa

vontade assim na terra como no ceacuteurdquo Cristo

quer a paz e tu preparas guerra ldquoO patildeo de cada

diardquo pedes ao Pai comum tu que queimas as

plantaccedilotildees do teu irmatildeo e preferes morrer a

beneficiar o proacuteximo Pois como eacute possiacutevel que

rezeis aquilo ldquoE perdoai as nossas diacutevidas

assim como noacutes perdoamos os nossos

devedoresrdquo tu que te apressas para o fratriciacutedio

Oras que Ele te proteja no ldquoperigo da tentaccedilatildeordquo

tu que com perigo para ti mesmo conduzes o

teu irmatildeo para o perigo Tu pedes para seres

livrado do mal e instigado por ele maquinas

contra teu irmatildeo o pior dos males

Ao ver gregos moverem guerra contra

outros gregos Platatildeo afirmou que natildeo se deve

chamar essa luta de ldquoguerrardquo denominando-a

antes ldquosediccedilatildeordquo122

Enquanto para os cristatildeos eacute

ldquosantardquo a guerra em que com tal tipo de

soldados e com tais armas uns cristatildeos brandem

armas contra outros cristatildeos por qualquer

pretexto insignificante Segundo as leis dos

pagatildeos quem manchasse sua espada com sangue

122

Cf Platatildeo Repuacuteblica V 470

156

sanguine imbuerit [555] An minus

fratres sunt quos Christus copulavit

quam quos sanguinis propinquitas Et

tamen hic praemium est parricidio O

miseram bellantium sortem Qui vincit

parricida est qui vincitur perit nihilo

secius parricidio obnoxius quod

parricidium conatus est Et post haec

exsecrantur Turcas velut impios et a

Christo alienos quasi vero cum haec

agunt ipsi Christiani sint aut quasi

Turcis [560] ullum spectaculum exhiberi

possit iucundius quam si conspiciant

illos mutuis telis sese confodientes

Immolant ut aiunt Turcae daemonibus

At cum his nulla victima sit acceptior

quam si Christianus mactet Christianum

quaeso quid aliud facis quam illi Tum

enim gemina fruuntur hostia spiritus

impii cum pariter et qui mactat et qui

mactatur fit victima Si quis Turcis favet

si quis amicus est [565] daemonibus

hostias huiusmodi frequenter offerat Sed

audio iamdudum quid excusent homines

in suum ipsorum malum ingeniosi Cogi

se queruntur et invitos ad bellum

pertrahi Detrahe personam istam abiice

fucos tuum ipsius pectus consule

reperies iram ambitionem stultitiam huc

fraterno deveria ser fechado em um saco e

jogado no rio da cidade123

Seratildeo menos irmatildeos

aqueles que Cristo uniu do que aqueles unidos

pela consanguinidade E contudo entre voacutes daacute-

se precircmio ao fratriciacutedio Oacute triste sorte dos

beligerantes Quem vence eacute fratricida mas quem

eacute vencido morre igualmente culpado de

fratriciacutedio pois tentou praticaacute-lo Aleacutem disso os

turcos satildeo execrados como iacutempios e alheios a

Cristo como se na verdade fossem cristatildeos

aqueles que agem desse modo e se proclamam

cristatildeos ou como se houvesse um espetaacuteculo

mais agradaacutevel aos turcos do que verem os

cristatildeos se ferirem uns aos outros com lanccedilas Os

cristatildeos dizem que os turcos oferecem imolaccedilotildees

aos democircnios mas como para esses nenhuma

oferenda sacrificial lhes eacute mais agradaacutevel do que

um cristatildeo imolado por outro pergunto e voacutes

Em que sois diferentes dos turcos De fato os

espiacuteritos iacutempios apoderam-se de duas oferendas

sacrificiais pois tanto aquele que imola quanto

aquele que eacute imolado tornam-se viacutetimas suas do

mesmo jeito Se algueacutem visa a favorecer os

turcos se algueacutem eacute amigo dos democircnios que

ofereccedila com frequecircncia semelhante hoacutestia Haacute

muito tempo ouvi o que dizem alguns homens

engenhosos em se excusar de suas maldades

Estes se queixam de serem constrangidos

arrastados agrave guerra a contragosto Arranca essa

123

A expressatildeo culleo insutus (costurado em um saco) foi recebido no Adaacutegio 3978 Agostinho (Contra

Faustum XXII 22) jaacute tratava dessa pena imposta aos parricidas ocorrente tambeacutem em Secircneca (Dial 3165)

Quintiliano (Inst 786) e Justiniano (Institutiones 1816)

157

pertraxisse non necessitatem nisi forte

hac fini necessitatem metiris si non per

omnia satisfiat [570] animo Ad populum

phaleras deus fucis non deluditur Atque

interea solennes aguntur supplicationes

magnis clamoribus petitur pax

vociferantur immani boatu ut pacem

nobis dones te rogamus audi nos

Nonne iure optimo Deus istis responderit

quid me ridetis Rogatis ut depellam

quod ipsi vobis accersitis volentes

Deprecamini cuius ipsi vobis estis

auctores Si quaelibet offensa [575]

bellum parit cui tandem non est quod

queratur Inter uxorem et maritum

incidunt ad quae sit connivendum nisi

malis dirimi benevolentiam Quod si quid

eiusmodi sit ortum inter principes quid

opus erat mox ad arma rapi

[578] Sunt leges sunt hommes

eruditi sunt venerandi abbates sunt

reverendi episcopi quorum salubri

maacutescara joga fora esses disfarces e consulta o

teu proacuteprio coraccedilatildeo E encontraraacutes que foram a

ira a ambiccedilatildeo e a loucura que te arrastaram para

a guerra e natildeo a necessidade A natildeo ser que

chames de necessidade aquele insaciaacutevel desejo

da avareza Guarda os adornos para o povo Deus

natildeo se ilude com disfarces124

E enquanto isso

realizam-se suacuteplicas solenes pedem paz com

grande clamor gritam com ruiacutedo gigantesco

ldquorogamos-te que nos decircs a paz noacutes te

suplicamos ouve-nosrdquo125

Com todo direito natildeo

poderia Deus responder-lhes ldquopor que vos rides

de mim Rogais que eu afaste de voacutes aquilo que

voacutes mesmos procurastes de livre vontade

Suplicais-me que vos livre daquilo de que voacutes

mesmos sois os autoresrdquo Se uma ofensa

qualquer provoca uma guerra quem natildeo teria

motivos para se queixar Entre marido e mulher

surgem agraves vezes alguns conflitos para os quais

conveacutem fechar os olhos a menos que a

gravidade dos males impeccedila a benevolecircncia Ora

se atritos desse tipo surgirem entre priacutencipes por

que motivo recorrer sem demora agraves armas

Existem leis existem homens eruditos

existem abades venerandos e existem bispos

reverendos com cujo conselho salutar poder-se-

ia remediar o conflito Por que natildeo tornar

124

Cf Peacutersio Saacutetiras 330

125 Erasmo se refere a uma das invocaccedilotildees da Litania Sanctorum uma antiga oraccedilatildeo de formato litacircnico cujo

texto latino foi estabelecido em 590 pelo Papa Gregoacuterio I o Magno Sua versatildeo grega eacute ainda mais antiga e

remonta a Gregoacuterio Taumaturgo (213-270) ldquoUt regibus et principibus christianis pacem et veram concordiam

donare digneris Te rogamus audi nos Ut cuncto populo christiano pacem et unitatem largiri digneris Te

rogamus audi nosrdquo (Vauchez 1994 p 27)

158

consilio tumultus rerum componi poterat

Cur non hos [580] potius arbitros faciunt

quos haud possint tam iniquos nancisci

quin minore malo discessuri sint quam si

armis experiantur Vix ulla tam iniqua

pax quin bello vel aequissimo sit potior

Prius expende singula quae bellum vel

postulat vel adducit et quantum lucri

feceris intelliges Summa Romani

pontificis auctoritas Ast cum gentes cum

principes impiis bellis tumultuantur

idque annos [585] aliquot ubi tum

pontificum auctoritas ubi potestas

Christo proxima Hic certe erat

expromenda nisi ipsi similibus tenerentur

cupiditatibus Vocat Pontifex ad bellum

paretur Vocat idem ad pacem cur non

obtemperatur itidem Si pacem malunt

cur Iulio bellandi auctori tam alacriter

obeditum est Leoni ad pacem et

concordiam provocanti vix quisquam

obtemperat Si vere sacrosancta est

Romani [590] pontificis auctoritas certe

maxime valere par est quoties ad id

provocat quod unice docuit Christus

Caeterum quos Iulius ad bellum exitiale

potuit excitare cum Leo sanctissimus

aacuterbitros homens que de modo algum possa ser

tatildeo perversos que natildeo estejam a desertar por um

mal menor do que experimentar armas

Dificilmente uma paz eacute tatildeo iniacutequa que natildeo seja

preferiacutevel agrave mais justa das guerras Faz bem os

caacutelculos de cada artigo que a guerra exige e por

outro lado acarreta e teraacutes previsto quanto lucro

te renderaacute Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice

Romano Entretanto no momento em que os

povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras

perversas ndash e isto por longos anos ndash onde estaacute a

autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde

estaacute o seu poder proacuteximo ao de Cristo Era

nesse ponto que a autoridade papal certamente

deveria ser exercida se tambeacutem os papas natildeo

compartilhassem as mesmas ambiccedilotildees Se o

pontiacutefice conclama para a guerra logo eacute

obedecido Se ele mesmo apela agrave paz por que

natildeo se lhe obedece da mesma forma Se

preferem a paz entatildeo por que a ordem para

guerrear de Juacutelio126

foi obedecida com

entusiasmo mas quando Leatildeo127

apelou para a

paz e a concoacuterdia quase ningueacutem obedeceu Se

a autoridade do Pontiacutefice Romano eacute

verdadeiramente sagrada e santa deveria valer

de modo certo e absoluto todas as vezes que

visasse ao que Cristo quis ensinar de modo

126

Referecircncia ao Papa Juacutelio II

127 Papa Leatildeo X (1475-1521) cujo nome de batismo era Giovanni di Lorenzo de Medici que sucedeu Juacutelio II em

11031513 e presidiu a Seacute de Pedro tinha concluiacutedo um tratado de paz com os franceses vitoriosos na Batalha

de Marignan (Viterbo 13101515) Margolin (1992 p 940) informa que ldquoapoacutes a guerra de Urbino o Papa havia

defendido uma treacutegua na Europa em vista de uma eventual cruzadardquo Erasmo por diplomacia mitifica a figura

do Papa Leatildeo como conciliador Os registros histoacutericos poreacutem natildeo escusam esse pontiacutefice de atividades e

alianccedilas guerreiras

159

pontifex non idem possit tot modis ad

Christianam concordiam provocans

declarant sese ecclesiae praetextu suis

servisse cupiditatibus ne quid dicam

acerbius

[595] Si ex animo taedet

bellorum dabo consilium quo

concordiam tueri possitis Solida pax

haud constat affinitatibus haud

foederibus hominum ex quibus

frequenter exoriri bella videmus

Repurgandi fontes ipsi unde malum hoc

scatet pravae cupiditates tumultus istos

pariunt Et dum quisque suis inservit

adfectibus interim affligitur respublica

nec tamen adsequitur hoc ipsum quisque

[600] quod malis rationibus adfectat

Sapiant principes et populo sapiant non

sibi ac vere sapiant ut maiestatem suam

ut felicitatem ut opes ut splendorem his

rebus metiantur quae vere magnos et

excellentes faciunt Sint eo animo erga

rempublicam quo pater erga familiam

Ita se magnum existimet rex si quam

optimis imperet ita felicem si suos

felices reddiderit ita sublimem si quam

[605] maxime liberis imperet ita

opulentum si populum habeat

opulentum ita florentem si civitates

muito especial A partir disso eacute justo concluir

que os mesmos que foram incitados pelo apelo agrave

guerra de Juacutelio natildeo foram igualmente obedientes

aos numerosos argumentos baseados na

concoacuterdia cristatilde do Santiacutessimo Papa Leatildeo assim

agiram com o pretexto de servir agrave Igreja mas ndash

para natildeo dizer algo mais duro ndash buscaram isto

sim suas proacuteprias ambiccedilotildees

Se estais sinceramente cansados da

guerra darei um conselho com o qual podeis

cultivar a paz Uma paz soacutelida natildeo nasce de laccedilos

de parentesco nem de alianccedilas entre os homens

dos quais muitas vezes vemos nascer a guerra

Eacute preciso purificar as fontes de onde nascem

esses males e que datildeo agrave luz esses conflitos as

suas perversas ambiccedilotildees Entatildeo enquanto o

priacutencipe submete-se a suas paixotildees natildeo apenas

aflige-se a repuacuteblica como ele tampouco

consegue aquilo a que visava obter em seus vis

propoacutesitos Que os priacutencipes sejam saacutebios e que

sejam saacutebios em prol do povo e natildeo somente

para si e que sejam verdadeiramente saacutebios de

tal forma que a sua majestade a sua felicidade a

sua riqueza e o seu esplendor sejam avaliados

por aquelas coisas que os fazem verdadeiramente

poderosos e superiores na sociedade Que

tenham para com a repuacuteblica a mesma

disposiccedilatildeo do pai para com a famiacutelia Que o Rei

soacute se considere grande se governar sobre os

melhores homens que seja feliz se tornar seus

suacuteditos felizes glorioso se bem governar

homens livres opulento se o povo for opulento

160

perpetua pace florentes habeat Atque

hunc Principes animum imitentur

proceres ac magistratus omnia

reipublicae commodis metiantur et hac

via rectius suis consuluerint commodis

Rex qui hoc sit animo num is facile

commovebitur ut pecuniam a suis

extorqueat quam barbaro militi numeret

[610] Suos ad famem adiget ut impios

aliquot Duces ditet Num is suorum

vitam tot periculis obiiciet Non opinor

Hactenus exerceat imperium ut

meminerit se hominem imperare

hominibus liberum liberis postremo

Christianum Christianis Huic vicissim

tantum deferat populus quatenus ad

publicam utilitatem conducit Non aliud

exiget bonus princeps mali vero

cupiditates retundet civium [615]

consensus absit utrimque privati

commodi ratio Plurimum honoris

habeatur iis qui bellum excluserint qui

concordiam restituerint ingenio

consiliove suo denique qui hoc modis

omnibus moliatur non ut maximam

militum ac machinarum vim comparet

sed ut iis non sit opus Quod pulcerrimum

facinus tot imperatorum unus

Diocletianus animo concepisse legitur

Quod si bellum [620] vitari non potest

ita geratur ut summa malorum in eorum

capita recidat qui belli dedere causas

e proacutespero se por uma paz perpeacutetua reinar

sobre cidades proacutesperas E que essa disposiccedilatildeo

dos priacutencipes seja imitada pelos seus proacuteceres

assim como pelos magistrados Que avaliem

tudo segundo a medida do bem-estar da

repuacuteblica e dessa maneira teratildeo assegurado com

mais seguranccedila seu proacuteprio bem-estar Se o rei

tiver essa disposiccedilatildeo acaso se sentiraacute levado a

extorquir o dinheiro dos suacuteditos para contratar

mercenaacuterios baacuterbaros Acaso levaraacute os seus agrave

fome para que enriqueccedila alguns generais iacutempios

Acaso exporaacute a vida dos seus a tatildeo grandes

perigos Natildeo o creio Que o priacutencipe impere de

tal modo que se lembre sempre de que eacute um

homem que governa homens um homem livre

que governa homens livres e em uacuteltima anaacutelise

um cristatildeo que governa cristatildeos O povo por sua

vez que o aceite somente na medida em que seja

em benefiacutecio da utilidade puacuteblica O bom

priacutencipe natildeo exige nada mais que isso As

ambiccedilotildees do mau satildeo derrubadas pelo consenso

dos cidadatildeos Que a loacutegica do interesse privado

esteja ausente em ambas as partes Maior honra

tenham aqueles que evitaram a guerra e cujo

engenho e conselho restituiacuteram a concoacuterdia Em

suma aqueles que por todos os meios se

esforccedilaram natildeo para obter o maior nuacutemero

possiacutevel de soldados e maacutequinas de guerra mas

em tornar tudo isso desnecessaacuterio Dentre tatildeo

grande nuacutemero de imperadores que existiram

Diocleciano segundo se lecirc foi o uacutenico que

concebeu em seu coraccedilatildeo esta accedilatildeo a mais nobre

161

Nunc Principes tuti belligerantur

ductores hinc crescunt maxima malorum

pars in agricolas ac plebem effunditur ad

quos nec attinet bellum nec ipsi belli

causam ullam dederunt Ubi principis

sapientia si haec non perpendit ubi

principis animus si haec levia ducit

Invenienda ratio qua [625] fiat ne toties

mutentur ac velut obambulent imperia

quod omnis rerum novatio tumultum

gignat tumultus bellum Id facile fiet si

Regum liberi intra ditionis fines

elocentur aut si quem libeat finitimis

adiungere spes omnibus successionis

praecisa esto Nec fas sit Principi ditionis

portionem ullam vendere aut alienare

perinde quasi privata sint praedia liberae

civitates Nam liberae sunt quibus rex

[630] imperat serviunt quos tyrannus

premit Nunc huiusmodi matrimoniorum

vicibus fit ut apud Hybernos natus

repente imperet Indis aut qui modo Syris

imperabat subito Rex sit Britanniae

Fitque ut neutra regio Principem habeat

dum priorem relinquit et a posteriore non

agnoscitur nimirum ignotus alioque

mundo natus Atque interim dum illud

parit dum evincit dum stabilit alterum

[635] exhaurit proteritque nonnumquam

amittit utrumque dum utrumque

complecti studet vix alteri administrando

idoneus Semel inter principes conveniat

dentre todas Agora se natildeo se pode evitar uma

guerra que seja travada de tal forma que ao

menos a maior parte dos males caia sobre as

cabeccedilas daqueles que causaram a guerra Hoje

em dia poreacutem os priacutencipes combatem

esmerando em sua seguranccedila e por isso o

aumento de poder de seus generais enquanto

isso a maior parte dos males atinge os

camponeses e o povo justamente aqueles que

natildeo tiraram qualquer proveito da guerra nem

deram qualquer motivo para que ela se

realizasse Onde estaacute a sabedoria do priacutencipe se

natildeo considera essas coisas Onde estaacute o coraccedilatildeo

do priacutencipe se pensa que isso eacute algo sem

importacircncia Deve-se encontrar um modo de

evitar que um reino mude de dinastia e como que

passe de matildeo em matildeo pois inovaccedilotildees desse tipo

sempre geram confusatildeo e confusatildeo gera guerras

Isso pode ser realizado de forma simples se os

filhos do rei tiverem seu poder dentro dos limites

de seu feudo Se houver algum que se interessar

em acrescentar territoacuterio aos seus domiacutenios que

este seja excluiacutedo dos direitos de sucessatildeo Que

natildeo lhe seja liacutecito vender ou alienar nem a menor

porccedilatildeo de seu feudo como se as cidades livres

fossem propriedades privadas Daacute-se pois o

nome de cidades livres agravequelas governadas por

um rei enquanto que aquelas que um tirano

oprime vivem sob servidatildeo Hoje em dia pelos

acasos de casamentos desse tipo acontece de um

irlandecircs passar de repente a reinar sobre os

indianos ou de algueacutem haacute pouco governante dos

162

quid quisque debeat administrare ac

ditionis fines semel datos nulla proferat

aut contrahat affinitas nulla convellant

foedera ita suam quisque portionem

enitetur quam potest ornatissimam

reddere dum in unam omne studium

intendet [640] hanc conabitur rebus

optimis locupletatam suis liberis

relinquere Atque hoc sane pacto futurum

est ut ubique floreant omnia Caeterum

inter sese non affinitatibus aut factitiis

sodalitatibus sed syncera puraque

amicitia copulentur maximeque simili

communique studio bene merendi de

rebus humanis Principi vero succedat vel

qui genere proximus vel qui populi

suffragiis maxime iudicabitur [645]

idoneus Caeteris sat sit inter honestos

haberi proceres

siacuterios tornar-se rei da Inglaterra128

E enquanto

isso as duas regiotildees ficam sem priacutencipe o

primeiro porque ele a abandonou o segundo

porque natildeo passa de um estrangeiro vindo de

outro lugar e natildeo o reconhece como soberano

Enquanto o priacutencipe se preocupa em obter esse

reconhecimento conquistaacute-lo e consolidaacute-lo

empobrece e drena o outro reino e por vezes

perde os dois quando tenta abraccedilar a ambos pois

dificilmente eacute capaz de governar um soacute Que de

uma vez por todas os priacutencipes estejam de

acordo sobre o territoacuterio que cada um deve

governar e que nenhum laccedilo de parentesco

aumente ou diminua essas fronteiras que foram

estabelecidas que nenhuma alianccedila as destrua

Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas

possibilidades para governar sua regiatildeo da

melhor forma possiacutevel Pois quando estiver

totalmente concentrado no cuidado de um soacute

reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus

filhos enriquecido por melhorias E desta

forma como eacute evidente tudo em toda parte

floresceraacute Que sejam aliados natildeo apenas por

viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas contratuais

mas sim unidos por amizade sincera e pura e

acima de tudo por um idecircntico e comum amor

por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei

seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais

proacuteximo por consanguinidade quer agravequele que

128

Margolin (1992 p 942) afirma que essa frase de Erasmo ldquopoderia invocar ainda Maximiliano que declarou

guerra a Hungria (em 1490) pois a viuacuteva de Matias Corvin rei da Hungria havia desposado Ladislau da

Boecircmia ferindo seus pretenciosos direitos de sucessatildeordquo

163

[646] Regium est nescire privatos

adfectus et omnia publicis commodis

aestimare Ad haec longinquas

peregrinationes vitet Princeps imo

pomoeria regni numquam transire velit

memineritque dicti longo seculorum

consensu probati Frons occipitio prior

est Locupletatum se existimet non si

quid aliis ademerit [650] sed si sua

reddiderit meliora Cum de bello agitur

ne adhibeat in consilium iuvenes quibus

ideo bellum placet quod experti non sunt

quantum habeat malorum neve eos

quibus expedit turbari publicam

tranquillitatem quique populi

calamitatibus aluntur ac saginantur Senes

cordatos et integros accersat et quorum

pietas patriae spectata sit Nec temere ad

unius aut alterius libidinem [655] bellum

moveatur quod semel coeptum haud

facile finitur Res omnium

periculosissima non nisi totius populi

consensu suscipiatur Belli causae statim

praecidendae sunt Ad quaedam

connivendum comitas comitatem

invitabit Nonnumquam emenda pax Ea

si ratione subduxeris quid bellum fuerit

exhausturum et quot cives ab exitio

serves parvo empta videbitur etiamsi

magno [660] emeris quando praeter

pelos votos do povo for considerado o mais

capaz Quanto aos demais que lhes baste estar

entre o nuacutemero dos nobres mais honrados

A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os

afetos privados e estimar todas as coisas segundo

o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe

evite viagens a terras longiacutenquas ou antes que

nunca cruze os limites territoriais do seu reino

Que se recorde do ditado comprovado pelo longo

consenso dos seacuteculos ldquoeacute preciso que o mestre

tenha os olhos sobre seu ofiacuteciordquo Que o priacutencipe

considere que enriqueceu natildeo se tirar algo dos

outros mas aperfeiccediloando o que lhe pertence Se

haacute uma questatildeo de guerra que natildeo convoque a

conselho os jovens aos quais a guerra sempre

agrada pois natildeo experimentaram os muitos

males que ela causa nem consulte aqueles a

quem interessa perturbar a tranquilidade puacuteblica

e que satildeo alimentados e engordados pela

calamidade do povo Que convoque um conselho

de anciatildeos sensatos e iacutentegros cuja piedade para

com a paacutetria eacute comprovada E que natildeo inicie a

guerra temerariamente movido pelo desejo deste

ou daquele porque uma vez iniciada ela natildeo se

extingue com facilidade E uma vez que a guerra

eacute o assunto mais perigoso de todos que natildeo seja

decidida sem o consenso de todo o povo As

causas da guerra devem ser imediatamente

extirpadas Conveacutem deixar passar certas coisas a

cortesia convidaraacute agrave cortesia Haacute ocasiotildees em

que a paz deveraacute ser comprada Se fizeres os

caacutelculos pesando quanto a guerra haveria de ser

164

civium tuorum sanguinem plus erat bello

impendendum Ineas rationem quantum

malorum vitaris quantum bonorum

tuearis et impendii non poenitebit

Fungantur interim suo officio praesules

sacerdotes vere sint sacerdotes monachi

professionis suae meminerint theologi

quod Christo dignum est doceant

Conspirent omnes adversus bellum in

hoc latrent [665] omnes Pacem publice

privatimque praedicent efferant

inculcent Tum si minus possint efficere

ne ferro decernatur certe ne probent ne

intersint ne rei vel tam sceleratae vel

certe tam suspectae ipsis auctoribus

honos habeatur Satis sit in bello caesis

in prophano sepulcrum dari Si qui boni

sunt in hoc genere qui certe paucissimi

sunt non ob haec fraudabuntur suo

praemio caeterum impii [670] quae

maxima turba est minus sibi placebunt

honore detracto

[671] De his bellis loquor quae

vulgo Christiani cum Christianis

commitunt Nec enim idem sentio de his

custosa e o grande nuacutemero de cidadatildeos que

salvas seu preccedilo seraacute considerado iacutenfimo

mesmo que pagues um valor alto visto que natildeo

era soacute o sangue dos teus suacuteditos que haveria de

perder-se com a guerra Calcula quanto dos

males evitaste e quanto dos bens protegeste e

natildeo te arrependeraacutes do gasto Que nesse iacutenterim

os prelados cumpram sua tarefa que os

sacerdotes sejam verdadeiramente sacerdotes

que os monges se lembrem da sua profissatildeo e

que os teoacutelogos ensinem aquilo que eacute digno de

Cristo Que todos conspirem contra a guerra e

contra ela todos declamem Que preguem

promovam e inculquem a paz quer em puacuteblico

quer em privado E se porventura natildeo

conseguirem fazer com que as disputas natildeo se

resolvam pela espada que ao menos demonstrem

sua desaprovaccedilatildeo e natildeo compareccedilam para evitar

que por sua presenccedila se considere honrosa uma

coisa tatildeo odiosa ou pelo menos tatildeo duvidosa

Que aos que tombaram na guerra seja suficiente

que lhes seja dada sepultura em solo profano Se

haacute algumas pessoas boas entre os guerreiros ndash e

certamente satildeo pouquiacutessimas ndash natildeo por isso

seratildeo defraudadas em seu precircmio Por outro

lado os iacutempios que satildeo a maioria129

estes se

sentiratildeo menos contentes nas armas com a

retirada da honraria do sepulcro cristatildeo

Refiro-me agraves guerras que os cristatildeos

fazem contra os cristatildeos Natildeo tenho poreacutem

129

Virgiacutelio Aeneis VI 6 I 1

165

qui simplici pioque studio vim

incursantium barbarorum depellunt et

suo periculo publicam tranquillitatem

tuentur Nunc trophaea sanguine tincta

eorum pro quorum salute Christus suum

fudit sanguinem [675] reponuntur in

templis inter apostolorum ac martyrum

statuas quasi posthac pium sit futurum

non fieri martyres sed facere Abunde

magnum erat haec in foro aut armario

quopiam reposita servari In sacras aedes

quas purissimas esse decet nihil recipi

convenit quod sanguine sit inquinatum

Sacerdotes deo sacri nusquam adsint nisi

ad dirimenda bella In haec si

consentiant [680] si eadem ubique

inculcent plurimum habitura momenti

est Quod si hic fatalis est humani ingenii

morbus ut prorsus absque bellis durare

nequeat quin potius malum hoc in Turcas

effunditur tametsi praestabat et hos

doctrina bene factis vitaeque innocentia

ad Christi religionem allicere quam

armis adoriri Attamen si bellum ut

diximus omnino vitari non potest illud

certe levius [685] sit malum quam sic

impie Christianos inter se committi

collidique Si mutua caritas illos non

adglutinat certe coniunget utcumque

communis hostis et qualiscumque

syncretismus erit ut absit vera concordia

igual julgamento sobre aquelas com as quais

tomados por um sentimento puro e piedoso

enfrentam as incursotildees dos baacuterbaros e com

perigo da proacutepria vida protegem a tranquilidade

puacuteblica Hoje nas igrejas colocam-se trofeacuteus de

guerra tingidos com o sangue daqueles por cuja

salvaccedilatildeo Cristo derramou o seu sangue por entre

as estaacutetuas dos apoacutestolos e dos maacutertires como se

depois disso fosse considerado piedoso natildeo

tornar-se maacutertires mas fazecirc-los Jaacute seria o

bastante que esses troacutefeus fossem exibidos no

foacuterum ou em um armaacuterio qualquer mas natildeo

devem expocirc-los os templos sagrados que devem

ser os mais puros e de forma alguma conveacutem que

recebam qualquer objeto manchado de sangue

Que os sacerdotes natildeo se apresentem pelo Deus

sagrado a natildeo ser para dirimir as guerras Se

nisso concordarem se em todos os lugares

inculcarem o mesmo enorme influecircncia hatildeo de

ter Ora se a guerra eacute uma fatal e doentia

propensatildeo do engenho humano de modo que

natildeo lhe eacute possiacutevel viver absolutamente sem ela

por que natildeo se dirige esse mal inevitaacutevel contra

os turcos embora fosse preferiacutevel atraiacute-los para a

religiatildeo de Cristo por meio da doutrina dos bons

costumes e de uma vida de inocecircncia do que

atacaacute-los com armas Se contudo como

dissemos a guerra natildeo pode ser completamente

evitada de todo modo atacar os turcos eacute um mal

menor do que os cristatildeos se enfrentarem e se

colidirem mutuamente de maneira tatildeo perversa

Se o amor muacutetuo natildeo os une pelo menos de

166

[688] Postremo magna pars pacis

est ex animo velle pacem Quibus enim

pax vere cordi est hi omnes pacis

occasiones arripiunt quae obstant aut

negligunt aut [690] amoliuntur permulta

ferunt dum tantum bonum sit incolume

Nunc ipsi bellorum seminaria quaerunt

quod ad concordiam facit elevant aut

dissimulant etiam quod ad bellum tendit

ultro exaggerant exulcerantque Pudet

referre ex cuiusmodi nugis quantas

excitent tragoedias et ex quam minuta

scintillula quae rerum tempestates

exoriantur Tunc illud iniuriarum agmen

venit in mentem [695] et suum quisque

malum sibi exaggerat at benefactorum

interim profunda oblivio ut iures

adfectari bellum Et saepe principum

privatum quiddam est quod orbem ad

arma compellit at plus quam publicum

esse debet ob quod bellum suscipiatur

Quin ubi nihil subest causae ipsi

dissidiorum causas sibi fingunt regionum

vocabulis ad odiorum alimoniam

abutentes et hunc stultae plebis [700]

errorem alunt magnates et in suum

abutuntur compendium alunt sacerdotes

quidam Anglus hostis est Gallo nec ob

aliud nisi quod Gallus est Scoto

alguma forma um inimigo comum poderia uni-

los e haveria ao menos uma espeacutecie de

harmonia ainda que longe de ser a verdadeira

concoacuterdia

Finalmente o primeiro e primordial

passo para a paz se realiza ao desejar

sinceramente a paz De fato quem tem o coraccedilatildeo

realmente repleto do desejo de paz aproveita

todas as oportunidades para estabelececirc-la diante

dos obstaacuteculos negligencia-os ou elimina-os

resigna-se a suportar muita coisa contanto que

se consiga manter incoacutelume um tatildeo grande bem

Atualmente entretanto satildeo os proacuteprios priacutencipes

que buscam disseminar as guerras enfraquecem

e ateacute dissimulam tudo o que promove a

concoacuterdia por iniciativa proacutepria exageram e

instigam tudo o que leva agrave guerra Envergonho-

me de mencionar com que tipo de ninharia

instigam tatildeo grandes trageacutedias e de quatildeo

diminutas centelhazinhas nascem tatildeo grandes

tempestades Entatildeo ressurge-lhes na mente

aquela ruptura provocada por uma tropa de

injuacuterias e cada qual exagera para si mesmo o

mal anteriormente sofrido mas esquece de todos

os benefiacutecios recebidos de forma a que endosses

o direito a fazer a guerra Muitas vezes um

interesse particular qualquer dos priacutencipes eacute

capaz de levar o mundo inteiro agraves armas Ora

aquilo que ocasiona a guerra deve ser mais do

que eacute puacuteblico Mais ainda onde natildeo haacute uma

causa real para o conflito eles mesmos inventam

motivos para divisotildees pronunciando os nomes

167

Britannus infensus est nec aliam ob rem

nisi quod Scotus est Germanus cum

Franco dissidet Hispanus cum utroque O

pravitatem disiungit inane loci

vocabulum Cur non potius tot res

conciliant Male vis Britannus Gallo cur

non potius [705] bene vis homo homini

Christianus Christiano Cur res frivola

plus apud istos potest quam tot naturae

nexus tot Christi vincula Locus corpora

dirimit non animos Separabat olim

Rhenus Gallum a Germano at Rhenus

non separat Christianum a Christiano

Pyrenaei montes Hispanos a Gallis

seiungunt at iidem non dirimunt

Ecclesiae communionem Mare dirimit

Anglos a Gallis at non dirimit [710]

religionis societatem Paulus Apostolus

indignatur audire inter Christianos has

voces Ego sum Apollo ego sum Cephae

ego sum Pauli nec impia cognomina sinit

secare Christum omnia conciliantem et

nos commune patriae vocabulum gravem

causam iudicamus cur gens in gentis

internecionem tendat Ne id quidem satis

nonnullorum animis bellorum avidis

prave dataque opera dissidiorum [715]

ansas quaerunt ipsam dividunt Galliam

et ea vocabulis distrahunt quae nec maria

nec montes nec vera regionum nomina

da regiatildeo inimiga de tal forma que alimentem os

oacutedios e natildeo apenas os magnatas como tambeacutem

alguns sacerdotes nutrem esse engodo da plebe

estulta para seu proveito pessoal Dizem que o

inglecircs eacute inimigo do francecircs sem qualquer outra

razatildeo exceto pelo simples fato de ser francecircs O

escocecircs eacute odioso para o bretatildeo natildeo por outro

motivo senatildeo por ser escocecircs O alematildeo discorda

do francecircs e o espanhol dos dois Oacute

perversidade O vatildeo vocaacutebulo de lugar desune

Por que natildeo podem antes tantas coisas unir Tu

bretatildeo queres mal ao francecircs Por que natildeo

podes como ser humano querer bem a outro ser

humano como cristatildeo a um outro cristatildeo Por

que uma tolice como essa tem mais poder sobre

os homens do que tatildeo grande nuacutemero de elos da

natureza de tantos viacutenculos instituiacutedos por

Cristo A geografia eacute capaz de separar os corpos

natildeo as almas O Reno separava antigamente o

territoacuterio gaulecircs do germacircnico mas o Reno natildeo

separa o cristatildeo do cristatildeo Os Pirineus separam

os espanhoacuteis dos franceses mas natildeo os separam

da comunhatildeo da Igreja Se o mar separa os

ingleses dos franceses natildeo rompe a unidade da

religiatildeo O apoacutestolo Paulo indigna-se ao ouvir

entre os cristatildeos as seguintes palavras Eu sou

de Apolos eu sou de Cefas eu sou de Paulordquo 130

e natildeo tolera que cognomes iacutempios dissolvam a

conciliaccedilatildeo universal realizada por Cristo Como

podemos julgar que o nome da paacutetria de cada um

130

ldquoEgo quidem sum Pauli ego autem Apollo ego vero Cephae ego autem Christi divisus est Christusrdquo (Prima ad

Corinthios 112-13)

168

distrahunt E Gallis Germanos faciunt ne

vel nominis consortio coalescat amicitia

Si in actionibus odiosis velut divortii

nec litem facile recipit iudex nec

quamlibet admittit probationem cur isti

in re omnium odiosissima quamlibet

frivolam causam admittunt [720]

Quinpotius id quod res est cogitant

mundum hunc communem esse patriam

omnium si patriae titulus conciliat ab

iisdem maioribus ortos omneis si facit

amicos sanguinis affinitas Ecclesiam

unam esse familiam ex aequo communem

omnibus Si domus eadem copulat

necessitudines in hanc partem ingeniosos

esse par est Toleras quaedam in socero

non ob aliud nisi quod socer est et nihil

toleras [725] in eo qui religionis

consortio frater est Multa condonas

generis propinquitati et nihil condonas

affinitati religionis Certe nullum

vinculum arctius alligat quam Christi

sodalitas Cur id solum ob oculos

obversatur quod animum exulcerat Si

paci faves sic cogita potius in hoc

laesit sed saepe alias profuit aut alieno

impulsu laesit

seja justificativa para que um povo se esforce por

exterminar outro povo Mas nem isso basta para

alguns espiacuteritos aacutevidos de guerras que de forma

perversa e acintosa se empenham em achar

pretextos para dissensotildees Procuram inclusive

dividir a Franccedila e a desagregam atraveacutes de

palavras que nem os mares nem os montes nem

as diferentes proviacutencias tecircm poder para desunir

Chamam a franceses ldquoalematildeesrdquo para impedir

que a amizade se fortaleccedila ainda que seja pela

comunhatildeo de nome Se nos processos litigiosos

como por exemplo o divoacutercio o juiz natildeo aceita

facilmente a causa nem admite irrestritamente

qualquer prova por que os homens admitem

qualquer causa friacutevola para a guerra que eacute a

mais litigiosa de todas as coisas Por que natildeo

pensam antes no seguinte Se a mera designaccedilatildeo

a paacutetria eacute capaz de unir os concidadatildeos este

mundo eacute a paacutetria comum de todos se a afinidade

de sangue eacute capaz de estabelecer relaccedilotildees de

amizade todos nascemos dos mesmos

antepassados se o lar em comum forma laccedilos de

parentesco a Igreja eacute uma soacute famiacutelia comum a

todos por igual Eacute justo que se mostrem

engenhosos tambeacutem nesse sentido Toleras algo

desagradaacutevel em teu sogro pelo simples fato de

ele ser teu sogro e natildeo toleras o quer for naquele

que pela comunidade de religiatildeo eacute teu irmatildeo

Se perdoas muitas coisas pelo parentesco

consanguiacuteneo natildeo perdoas os que satildeo teus

parentes pela religiatildeo Ora o fato eacute que nenhum

viacutenculo liga com maior forccedila do que a

169

[730] Postremo quemadmodum

apud Homerum dissidii causas quod

inter Agamemnonem et Achillem

intercesserat in Aten Deam reiiciunt qui

vocant ad concordiam ita quae excusari

non possunt aliquando fatis imputentur

aut malo cuipiam si libet genio et in

haec odium ab ipsis hominibus

transferatur Cur magis ad perniciem

suam sapiunt quam ad tuendam

felicitatem Cur ad [735] malum quam

ad bonum sunt oculatiores Qui paulo

cordatiores sunt expendunt consyderant

circumspiciunt priusquam privatum

quoque negotium aggrediantur Et clausis

oculis praecipites in bellum ipsi sese

coniiciunt praesertim cum semel

admissum excludi non possit quin e

pusillo fit maximum ex uno plura ex

incruento cruentum maxime cum haec

procella non unum aut alterum [740]

affligat sed universos pariter involvat

Quod si vulgus haec parum expendit

certe principis et optimatum partes sunt

fraternidade em Cristo Por que soacute se apresenta

aos olhos aquilo que a mente abomina Se tu

procuras a paz eacute melhor que tu cogites contigo

mesmo ldquose nisso ele me magoou talvez incitado

por algueacutem em outros casos poreacutem ele me tem

sido uacutetilrdquo

Finalmente assim como em Homero131

aqueles que aconselham a concoacuterdia lanccedilaram

toda culpa do atrito entre Agamenon e Aquiles

em Ates deusa da vinganccedila da mesma forma se

imponha aos fados ou talvez a algum mau

gecircnio a culpa daquelas ofensas que satildeo

indesculpaacuteveis transferindo para esses seres

imaginaacuterios o oacutedio contra os homens Por que os

homens satildeo mais inteligentes para sua proacutepria

destruiccedilatildeo do que para a preservaccedilatildeo do seu bem

estar Por que satildeo mais cuidadosos com o mal

do que com o bem Aqueles que tecircm um pouco

de sensatez preferem pesar considerar e

observar antes de se lanccedilarem a qualquer

negoacutecio privado Mas ainda assim eles se

lanccedilam de cabeccedila na guerra com os olhos

fechados apesar de a guerra ser um tipo de mal

que uma vez criado natildeo pode ser extirpado

facilmente Antes a partir de um pequeno

conflito faz-se um enorme de uma soacute batalha

muitas de um ataque incruento uma carnificina

chega-se ao cuacutemulo com esta procela que natildeo

abate apenas um ou dois mas atinge a todos por

igual Se o povo natildeo compreende essas coisas

131

Cf Homero Iliacuteada IX 505 XIX 91

170

haec secum reputare Sacerdotum est ista

rationibus omnibus infulcire volentibus

ac nolentibus ingerere Haerebunt tandem

si nusquam non audiantur

[744] Ad bellum gestis Primum

inspice cuiusmodi res sit pax cuiusmodi

bellum [745] quid illa bonorum quid

hoc malorum secum vehat atque ita

rationem ineas num expediat pacem

bello permutare Si res quaedam

admirabilis est regnum undique rebus

optimis florens bene conditis urbibus

bene cultis agris optimis legibus

honestissimis disciplinis sanctissimis

moribus cogita tecum haec felicitas mihi

perturbanda est si bello Contra si

quando conspexisti ruinas urbium [750]

dirutos vicos exusta fana desolatos

agros et id spectaculum miserandum ut

est visum est cogita hunc esse belli

fructum Si grave iudicas sceleratam

conductitiorum militum colluviem in

tuam regionem inducere hos civium

tuorum malo alere his inservire his

blandiri immo horum arbitrio te ipsum ac

tuam incolumitatem committere fac

cogites hanc esse belli conditionem Si

abominaris [755] latrocinia haec docet

bellum Si exsecraris parricidium hoc in

cabe aos priacutencipes e aos liacutederes refletir sobre

tudo isso consigo mesmos Com maior razatildeo

ainda cabe aos sacerdotes querendo ou natildeo

defender com todos os argumentos a causa

paciacutefica Obteratildeo o seu precircmio no final mesmo

que em nenhuma parte sejam ouvidos

Anseias pela guerra Primeiro observa

bem que eacute a paz e que eacute a guerra que bens traz

consigo a primeira e que males porta consigo a

segunda e assim ponderaraacutes se vale a pena

trocar a paz pela guerra Se um reino florescente

em toda parte com tudo o que haacute de melhor com

cidades bem construiacutedas com campos bem

cultivados com oacutetimas leis com o ensino mais

honesto e com os costumes mais santos eacute algo

admiraacutevel considera contigo mesmo se faccedilo a

guerra essa minha felicidade deve ser

perturbada Por outro lado se ao contemplares

as ruiacutenas das cidades as aldeias destruiacutedas os

templos em chamas e os campos desolados isso

te pareceu tal como de fato eacute um espetaacuteculo

lastimaacutevel pensa que satildeo estes os frutos da

guerra Se julgas perigoso a turba criminosa dos

mercenaacuterios ser conduzida para teu paiacutes com a

desgraccedila dos teus suacuteditos tu os alimentares ao

servi-los e bajulaacute-los e mais entregares a ti

mesmo e a tua seguranccedila ao arbiacutetrio desses

homens dedica-te a pensar que essa eacute a condiccedilatildeo

da guerra Se abominas os latrociacutenios a guerra eacute

que os ensina se execras os parriciacutedios na

guerra eacute que se aprendem De fato que hesitaccedilatildeo

vai sentir quando levado por forte emoccedilatildeo a

171

bello discitur Nam qui vereatur unum

occidere commotus qui levi

auctoramento conductus tot homines

iugulat Si praesentissima Reipublicae

pestis est legum neglectus silent leges

inter arma Si foedum existimas stuprum

incestum et his turpiora horum omnium

bellum magister est Si fons omnium

malorum est impietas [760] et religionis

neglectus haec belli procellis prorsus

obruitur Si iudicas pessimum esse

reipublicae statum cum plurimum

possunt qui pessimi sunt in bello

regnant sceleratissimi et quos in pace

suffigas in crucem horum in bellis

primaria est opera Quis enim melius per

devia ducet copias quam latro

exercitatus Quis fortius diripiet aedes

aut spoliabit templa quam parietum

perfossor aut sacrilegus [765] Quis

animosius feriet hostem et hauriet ferro

vitalia quam gladiator aut parricida

Quis aeque idoneus ad iniiciendum ignem

urbibus aut machinis quam incendiarius

Quis aeque contemnet fluctus marisque

discrimina ac pirata diutinis

praedationibus exercitus Vis palam

cernere quam res sit impia bellum

matar um soacute homem quem em troca de um

pequeno soldo degola tatildeo grande nuacutemero de

homens Se a praga se abate sobre a repuacuteblica

haacute indeferenccedila pela justiccedila porque as leis

silenciam132

em meio agraves armas

133 Se o estupro a

violecircncia e coisas ainda mais nefandas que estas

te parecem torpes lembra-te de que eacute justamente

a guerra a mestra de todas as accedilotildees mais

horrendas Se a impiedade e a negligecircncia para

com a religiatildeo satildeo a fonte de todos os males

considera que ela eacute totalmente destruiacuteda pelas

procelas da guerra Se julgas que a pior situaccedilatildeo

da repuacuteblica eacute quando muito podem os que satildeo

peacutessimos na guerra reinam os mais criminosos e

tecircm proeminecircncia aqueles que em tempos de

paz condenas agrave cruz Pois quem pode guiar as

tropas por caminhos tortuosos melhor do que um

experiente assaltante de estradas Quem estaacute

mais seguro em roubar casas ou pilhar templos

do que o arrombador ou o sacriacutelego 134

Quem eacute

mais valente em debelar o inimigo e furar-lhe as

entranhas com a espada do que o gladiador e o

parricida Quem eacute mais haacutebil em tocar fogo nas

cidades ou nas maacutequinas de guerra do que o

incendiaacuterio Quem poderia suportar melhor as

ondas e os perigos do mar do que o pirata

exercitado dia e noite nos saques Queres ver

com clareza quanto eacute iacutempia uma guerra

132

Cicero Mil 4 10

133 A expressatildeo ldquosilent leges inter armardquo remonta a Ciacutecero (Pro Milone 410) e Luciano (Pharsade 1277)

ldquoleges bello siluere coactaerdquo

134 Plauto Pseud 9 8 6

172

animadverte per quos geritur

[770] Si pio principi nihil

antiquius esse debet quam suorum

incolumitas huic bellum in primis

invisum sit oportet Si principis felicitas

est imperare felici pacem potissimum

amplecti debet Si praecipue optandum

bono principi ut imperet quam optimis

bellum detestetur oportet unde scatet

omnis impietatis sentina Si suas opes

esse putat quidquid cives possident

bellum omnibus rationibus [775] vitet

Quod ut felicissime cadat certe facultates

omnium atterit et quod honestis artibus

partum est in immanes quosdam

carnifices erogandum Iam illud etiam

atque etiam perpendant suam cuique

blandiri causam et suam cuique spem

arridere cum illa saepenumero pessima

sit quae commoto videatur aequissima

Et haec non raro fallit Sed finge causam

iustissimam finge exitum [780] belli

prosperrimum rationem fac ineas

omnium incommodorum quibus gestum

est bellum et commoditatum quas peperit

victoria et vide num tanti fuerit vincere

Vix umquam victoria contingit incruenta

Iam habes tuos humano sanguine

pollutos Ad haec supputa morum

publicaeque disciplinae iacturam nullo

compendio sarciendam Exhauris tuum

fiscum expilas populum oneras bonos

Observa quem as faz

Se para um priacutencipe piedoso nada deve

ser mais precioso do que a seguranccedila dos seus

suacuteditos eacute necessaacuterio que a guerra lhe seja

detestaacutevel acima de todas as coisas Se a

felicidade do priacutencipe consiste em governar para

a felicidade do seu povo ele deve optar

preferencialmente pela paz Se o principal

objetivo do bom priacutencipe consiste em governar

sobre os melhores eacute necessaacuterio que odeie a

guerra da qual jorra o esgoto de todo tipo de

impiedade Se o priacutencipe pensa que satildeo riquezas

suas os bens que seus suacuteditos possuam entatildeo

que evite a guerra por todas as razotildees pois eacute

certo que esta ainda que venha a ser vencida

arruiacutena os recursos de todos e as riquezas

conquistadas pelo trabalho honesto tecircm de ser

gastas com o sustento de certos carrascos

selvagens Eacute necessaacuterio ainda que considerem

mais e mais que todo homem lisonjeia-se com

sua proacutepria causa e a proacutepria esperanccedila que

acalenta lhe parece mais risonha a qual ainda

que muitas vezes se torne a pior das realidades

induz ao erro e parece justiacutessima a quem estaacute

perturbado Supotildee a mais legiacutetima das causas

considera o mais feliz desfecho para uma guerra

calcula todos os prejuiacutezos inerentes ao estado de

guerra e o lucro gerado pela vitoacuteria E vecirc se a

vitoacuteria compensou o investimento Quase nunca

ocorre uma vitoacuteria sem sanguinolecircncia o que

conquistaste estaraacute contaminado de sangue

humano Soma a isso que para obter a vitoacuteria os

173

[785] ad facinus excitas iacutemprobos neque

vero confecto bello protinus et belli

reliquiae sopitae sunt Obsolescunt artes

includuntur negociatorum commercia Ut

hostem includas prius temet ipsum a tot

regionibus cogeris excludere Ante

bellum omnes finitimae regiones tuae

erant pax enim rerum commerciis facit

omnia communia Vide quantam rem

egeris nunc vix tua est quae maxime tua

[790] est ditio Ut oppidulum excindas

quot machinis quot tentoriis opus est

Imitatitiam urbem facias oportet ut

veram evertas at minoris aliud verum

oppidum exstrui poterat Ne liceat hosti

prodire ex oppido tu exsul a patria sub

dio dormis Minoris constaturum erat

aedificare nova moenia quam aedificata

machinis demoliri Ut ne computem hic

quod pecuniarum effluit inter exigentium

[795] recipientium ac ducum digitos

quae sane pars est non minima Quod si

horum singula ad verum calculum

revoces ni compereris decima

impendiorum parte pacem redimi

potuisse patiar aequo animo me

profligari undique Sed parum excelsi

animi tibi videare si quid remittas

iniuriarum Immo nullum est certius

argumentum humilis animi minimeque

regii quam ulcisci Maiestati tuae [800]

non nihil decedere putas si cum finitimo

costumes e a ordem puacuteblica satildeo devastados e

isso estaacute perdido sem possibilidade de reparo

Exaures o teu tesouro expolias o povo oneras os

bons incitas os iacutemprobos para o crime E

acabada a guerra natildeo creias que as suas

consequecircncias se esvairiam imediatamente As

artes fragilizam-se os tratos comerciais cessam

Para sitiares o inimigo eacutes forccedilado a abandonar

primeiro muitas regiotildees Antes da guerra todos

os territoacuterios vizinhos eram teus pois com as

trocas comerciais a paz torna todos os bens

comuns Presta atenccedilatildeo no que fizeste Com a

guerra mal se pode dizer agora que te pertence o

teu proacuteprio territoacuterio Quantas maacutequinas de

guerra e quantas tendas satildeo necessaacuterias para

destruir uma cidadezinha Eacute preciso que

construas quase uma cidade falsa para

conquistares uma verdadeira quando seria

possiacutevel por preccedilo menor construir outra cidade

verdadeira Para impedir que o inimigo saia da

cidade sitiada dormes ao ar livre exilado da tua

paacutetria Sairia muito mais barato levantar novas

muralhas do que demolir as jaacute construiacutedas com

maacutequinas de guerra Isso sem contar a

quantidade de dinheiro que deve ser repassado agraves

matildeos dos cobradores dos recebedores e dos

generais que aliaacutes natildeo eacute de modo algum a

menor parte de teus gastos Se depois de

calculares um orccedilamento exato de cada um

desses itens natildeo chegares agrave conclusatildeo de que a

paz poderia ter sido comprada pela deacutecima parte

do que a guerra custou darei de bom grado

174

principe agens et fortasse cognato aut

affini fortassis alias bene de te merito de

tuo iure decedas aliquantulum At quanto

humilius deiicis maiestatem tuam dum

barbaris cohortibus et infimae

sceleratorum feci numquam explendae

auro subinde litare cogeris dum ad Cares

vilissimos simul ac nocentissimos

blandus ac supplex mittis legatos dum

[805] tuum ipsius caput dum tuorum

fortunas illorum credis fidei quibus nihil

est neque pensi neque sancti Quod siquid

iniquitatis videbitur habere pax cave sic

cogites hoc perdo sed tanti pacem emo

[808] At dixerit argutior aliquis

Facile donarim si res ad me privatim

pertineat Princeps sum negotium

publicum velim nolim ago Non facile

permissatildeo para que me expulsem de toda parte

Contudo a ti pareccedila pouca grandeza de espiacuterito

se retribuiacuteres alguma das ofensas Na verdade

eu te asseguro que natildeo haacute prova mais certa de

um espiacuterito mesquinho e nada reacutegio do que o

desejo de vinganccedila Julgas rebaixar tua

majestade se de modo magnacircnimo renuncias a

um pouquinho de teu direito quando tens uma

pendecircncia com um priacutencipe vizinho que aliaacutes

bem pode ser teu parente ou chegado por

afinidade e que talvez em outra ocasiatildeo te

tenha feito o bem Mas como humilhas a tua

majestade muito mais quando eacutes forccedilado a

aplacar com ouro os insaciaacuteveis esquadrotildees de

baacuterbaros ou ainda pior a mais vil raleacute dos

criminosos quando numa posiccedilatildeo de lisonja e

suacuteplica envias embaixadores para contratar os

mais vis e perversos mercenaacuterios135

quando

fazes a tua proacutepria cabeccedila e a sorte dos teus

suacuteditos depender da lealdadade desses teus

aliados para quem natildeo existe nada de sagrado ou

respeitaacutevel Quanto a isso se parecer que a paz

tem algo de iniacutequo evita pensar assim ldquoEu

perco istordquo mas pensa antes ldquopor tanto compro

a pazrdquo

Mas algum priacutencipe mais arguto poderia

objetar ldquose dependesse soacute de mim perdoaria

com facilidade Como sou priacutencipe queira ou

natildeo queira devo cuidar de um interesse

135

Segundo Diodoro Siacuteculo Careacutes teria sido um general ateniense que viveu no seacuteculo IV a C Careacutes passou

para a histoacuteria como traidor porque estando os gregos em guerra contra os argivos Careacutes evitou atacar os

inimigos e feriu os aliados de Atenas promoveu uma guerra civil e desacreditou seu povo diante de seus aliados

(Diodoro Siacuteculo Biblioteca Histoacuterica Livro XV 73)

175

bellum suscipiet [810] qui nihil nisi

publicum spectat atqui contra videmus

omneis belli causas ex his rebus nasci

quae nihil ad populum pertineant Vis

hanc aut illam ditionis partem vindicare

quid istud ad populi negotium Vis

ulcisci qui filiae renunciavit quid hoc ad

rempublicam Haec expendere haec

perspicere vere sapientis vereque magni

est principis Quis umquam aut latius

imperavit aut splendidius [815] Octavio

Augusto42

At is cupiebat etiam deponere

imperium si quem vidisset reipublicae

magis salutarem principem Merito

laudata est ab egregiis auctoribus vox illa

cuiusdam imperatoris Pereant inquit

filii mei si quis alius melius sit

reipublicae consulturus Hos animos

reipublicae praestiterunt homines impii

quod ad Christi religionem attinet et

Christiani principes usque [820] adeo

vilem ducunt populum Christianum ut

gravissimo orbis incendio privatas suas

cupiditates vel ulcisci velint vel explere

puacuteblicordquo Ora quem atende exclusivamente ao

interesse puacuteblico natildeo aceitaraacute a guerra com

facilidade A verdade eacute que tambeacutem aqui vemos

que quase todas as causas da guerra nascem de

interesses que em nada concernem ao povo

Queres reivindicar teu domiacutenio sobre este ou

aquele feudo Pois que proveito tira o povo

desse projeto Queres tirar a desforra do priacutencipe

que necusou desposar a tua filha136

Mas o que

isto tem a ver com os interesses da repuacuteblica

Refletir sobre essas questotildees e observar todas

essas circunstacircncias eacute proacuteprio de um priacutencipe

saacutebio e grande Quem eacute que reinou de modo

mais esplecircndido e por tanto tempo do que Otaacutevio

Augusto Mas ele proacuteprio desejava vivamente

renunciar ao impeacuterio caso encontrasse algueacutem

que pudesse vir a ser um priacutencipe mais capaz de

promover a repuacuteblica137

Com meacuterito foi louvado

pelos autores egreacutegios aquela fala do imperador

ldquoPereccedilam os meus filhos se houver algueacutem que

cuide melhor da repuacuteblicardquo138

Homens iacutempios

do ponto de vista da religiatildeo de Cristo foram

capazes de cultivar esses pensamentos acerca da

repuacuteblica e agora priacutencipes cristatildeos desprezam

42

deponere imperium (cf Suet Aug 28)

136 Segundo Margolin (1992 p 950) alusatildeo agrave filha do Imperador Maximiliano Margarida da Aacuteustria noiva de

Carlos VIII mas rejeitada por seu pai em 1492

137 Como tradutor tenho convicccedilatildeo de que Erasmo utiliza a palavra repuacuteblica em um sentido muito proacuteximo ao

que hoje denominamos estado O priacutencipe natildeo protege a repuacuteblica entendida como sistema de governo oposto agrave

monarquia mas o estado como um aparato que visa o bem comum Conforme Suetocircnio (Iulius 83) Ceacutesar

Augusto foi o fundador do Impeacuterio Romano e primeiro Imperador que administrou o impeacuterio por mais de 40

anos Augusto iniciou o periacuteodo de paz relativa chamado de Pax Romana Embora tenha expandido o impeacuterio

estabeleceu relaccedilotildees paciacuteficas com outros reinos e reformou o sistema tributaacuterio desenvolveu as vias romanas

com um sistema oficial de correio e outras obras arquitetocircnicas em Roma obtendo grande popularidade

138 Cf Hist Aug Auid Cast 2 8

176

[822] Iam audio quosdam ita

tergiversantes ut negent se tutos esse

posse nisi vim improborum acriter

propellant Cur igitur inter innumeros

imperatores Romanos soli Antonini pius

et philosophus petiti non sunt Nisi quod

nemo tutius [825] regnat quam qui

paratus est et deponere utpote quod

reipublicae gerat non sibi Quod si nihil

vos movet neque naturae sensus neque

pietatis respectus neque tanta calamitas

certe Christiani nominis probrum animos

vestros in concordiam redigat Quota

mundi portio tenetur a Christianis Atque

haec tamen est illa civitas in aedito monte

sita spectaculum facta deo et hominibus

[830] At quid sentire putandum est quid

loqui quae probra in Christum evomere

Christiani nominis hostes ubi vident

Christianos sic inter sese concertare

levioribus de causis quam ethnici

crudelius quam impii machinis

tetrioribus quam ipsi Quorum inventum

est bombarda Nonne Christianorum Et

quo res sit indignior his induuntur

apostolorum nomina insculpuntur

o povo cristatildeo a tal ponto que incendeiam o

mundo inteiro para saciar sua sede de cobiccedila ou

seu desejo de vinganccedila

Jaacute ouccedilo o argumento de alguns que me

criticam Negam que se possa conservar sua

seguranccedila se natildeo lutarem de forma acerba contra

o iacutempeto dos iacutemprobos Por que entatildeo dentre os

inuacutemeros imperadores romanos somente os

Antoninos139

o Pio e o Filoacutesofo natildeo foram

atacados Natildeo seraacute porque ningueacutem reina com

maior seguranccedila do que aquele que estaacute

preparado para renunciar sabendo que serve aos

interesses da repuacuteblica e natildeo a seus proacuteprios

caprichos Se nada disso vos comove nem o

bom senso da natureza nem o respeito oriundo

da piedade nem a visatildeo de tantas calamidades

que ao menos o oproacutebrio que recai sobre o nome

cristatildeo conduza as vossas mentes agrave concoacuterdia

Qual eacute a porccedilatildeo do mundo pertencente aos

cristatildeos Esta eacute no entanto aquela cidade

edificada sobre um monte elevado espetaacuteculo

para Deus e para os homens Mas que se deve

julgar que pensam O que dizem Que espeacutecie

de ofensas se espera que vomitem contra Cristo

os inimigos do nome cristatildeo ao verem o modo

como os cristatildeos lutam entre si movidos por

causas mais insignificantes do que as dos

pagatildeos de modo mais cruel do que os iacutempios e

com maacutequinas mais terriacuteveis do que aquelas que

139

O Antonino Pio mencionado por Erasmo seria o imperador romano da dinastia Nerva-Antonina que governou

entre os anos de 138 e 161 e Marcus Antonius philosophus que foi imperador conhecido sob o nome de Marcus

Aurelius Antoninus (161-180) (Historia Augusta Ant Pius 133 Marc Ant Philos 185)

177

imagines O crudelis [835] irrisio Paulus

ille pacis hortator perpetuus tartaream

machinam torquet in Christianum Si

cupimus Turcas ad Christi religionem

adducere prius ipsi simus Christiani

Numquam hoc illi credent si quod est

perspiciant nusquam magis saevire quam

apud Christianos id quod Christus unum

omnium maxime detestatus est Et quod

Homerus ethnicus demiratur in ethnicis

cum suavium [840] etiam rerum satietas

sit somni cibi potus choreae musices

belli infelicis nullam esse satietatem id

apud eos verissimum est quibus ipsum

etiam belli vocabulum abominandum

esse oportuit Roma furiosa quondam illa

bellatrix tamen Iani sui templum

aliquoties vidit clausum Et qui convenit

apud vos nullas esse bellandi ferias

Quonam ore praedicabitis eis Christum

pacis auctorem ipsi [845] perpetuis

dissidiis inter vos tumultuantes Iam quos

putatis animos addit Turcis vestra

discordia Nihil enim facilius quam

vincere dissidentes Vultis illis esse

formidabiles Concordes estote Cur ultro

vobis et praesentis vitae iucunditatem

invidetis et a futura felicitate vultis

excidere Multis malis per se obnoxia est

vita mortalium magnam molestiae

eles mesmos usam Quem inventou os canhotildees

Acaso natildeo foram os cristatildeos E para tornar isso

ainda mais indigno revestem as armas de

destruiccedilatildeo com os nomes dos Apoacutestolos e

esculpem sobre elas imagens de santos Oacute cruel

escaacuternio Que o nome de Paulo o perpeacutetuo

arauto da paz seja dado a uma maacutequina infernal

apontada contra os cristatildeos Se desejamos

converter os turcos agrave religiatildeo de Cristo eacute

necessaacuterio que primeiro noacutes mesmos sejamos

cristatildeos Nunca eles acreditaratildeo se constatarem

em toda parte ndash e isto eacute inegaacutevel ndash que grassa em

nenhum lugar mais que entre os cristatildeos aquilo

que Cristo destestou acima de todas as coisas E

aquilo que um poeta pagatildeo como Homero140

espanta a pagatildeos quando constata que haacute

saciedade ateacute para as coisas agradaacuteveis da vida

como o sono a comida a bebida as danccedilas e a

muacutesica mas natildeo para a infeliz guerra antes

deveria tecirc-lo espantado ver que era a coisa mais

verdadeira do mundo para homens que deveriam

abominar ateacute o vocaacutebulo guerra Ateacute mesmo a

outrora impetuosa Roma aquela cidade

guerreira viu muitas vezes fechado o seu templo

de Jano141

E natildeo haacute entre voacutes algueacutem que

concorde que se faccedila uma treacutegua na guerra

Como podereis abrir a boca para pregar aos

turcos sobre Cristo o autor da paz se voacutes

mesmos vos confrontais em perpeacutetuas divisotildees

internas Jaacute pensastes que reaccedilatildeo vossa discoacuterdia

140

Cf Hom Il XIII 636-639

141 Cf Suet Aug 22

178

partem adimet concordia [850] dum

mutuis officiis alius alium aut consolatur

aut iuvat Si quid boni obtinget id tum

suavius tum communius reddet

concordia dum amicus impertit amico et

benevolus benevolo gratulatur Quam

frivola sunt quamque mox peritura pro

quibus inter vos tumultus est Mors

omnibus imminet non minus Regibus

quam plebeiis Quos tumultus ciet

animalculum mox fumi in morem

evaniturum [855] In foribus adest

aeternitas Quorsum attinet pro rebus

istis umbraticis perinde moliri quasi vita

haec esset immortalis O miseros qui

felicem illam piorum vitam non credunt

aut non sperant impudentes qui sibi

pollicentur e bellis ad eam iter esse cum

illa nihil sit aliud quam ineffabilis

quaedam felicium animorum communio

cum iam ad plenum continget quod

Christus tam enixe [860] rogaverat

patrem coelestem ut sic inter se

iungerentur illi quemadmodum ipse patri

iunctus esset Ad hanc summam

concordiam qui possitis esse idonei nisi

eam interim pro virili meditemini Ut

non subito ex spurco helluone fit angelus

ita non subito ex bellatore sanguinario

martyrum et divorum socius Eia satis

iam superque fusum est Christiani si

parum est humani sanguinis satis in

produz nos turcos Pois nada mais faacutecil do que

vencer aqueles que natildeo se entendem Quereis

tornar-vos temiacuteveis para eles Ponde-vos de

acordo Por que recusais deliberadamente os

prazeres da vida presente e quereis perder os da

felicidade futura Por si soacute a vida dos mortais

estaacute repleta de muitos males mas grande parte

desse incocircmodo seria aliviada pela concoacuterdia que

faz que uns aos outros se ajudem ou ao menos

consolem-se com serviccedilos muacutetuos Se algum

benefiacutecio for dado a algueacutem a concoacuterdia faraacute tal

bem tanto mais agradaacutevel quanto mais for

extensivo aos demais o amigo partilhando-o

com o amigo e sentindo alegria com a alegria do

outro Como as guerras satildeo friacutevolas e por quatildeo

levianas questotildees se promove o conflito entre

voacutes A morte ameaccedila a todos e natildeo menos aos

reis que aos plebeus Quantas discoacuterdias produz

um animalzinho despreziacutevel que logo

desapareceraacute como fumaccedila ao vento Ao sair da

vida a eternidade estaacute agraves portas Que proveito haacute

em construir suas aspiraccedilotildees em coisas tatildeo vatildes

como se a vida presente fosse imortal Oacute

miseraacuteveis que natildeo acreditam ou natildeo esperam

aquela vida feliz dos homens piedosos Homens

impudicos que se persuadem de que existe um

caminho que leva das guerras agravequela vida

quando ela natildeo eacute senatildeo a inefaacutevel comunhatildeo de

todas as almas bem-aventuradas quando se

realizar finalmente em toda a plenitude aquilo

que Cristo havia pedido tatildeo assiduamente ao Pai

Celeste que todos se unissem como o Filho estaacute

179

[865] mutua debacchatum exitia satis

hactenus Furiis Orcoque litatum satis diu

quae Turcarum pascat oculos Acta est

fabula Saltem aliquando post nimium diu

toleratas bellorum miserias resipiscite

Quicquid hactenus insanitum est fatis

imputetur Placeat Christianis quae

quondam profanis placuit superiorum

malorum oblivio Posthac communibus

consiliis in pacis studium incumbite

[870] Et sic incumbite ut non stupeis sed

solidis atque adamantinis vinculis coeat

numquam dirumpenda

[872] Vos appello principes de

quorum nutu potissimum pendent res

mortalium qui Christi principis

imaginem inter mortales geritis

Agnoscite regis vestri vocem ad pacem

vocantis existimate totum orbem diutinis

fessum malis hoc a vobis [875] flagitare

unido ao Pai Natildeo podeis ser dignos de gozar

essa suma concoacuterdia a natildeo ser que a prepareis o

mais possiacutevel Assim como eacute impossiacutevel que

subitamente um glutatildeo sujo se transforme em um

anjo assim tambeacutem natildeo eacute de repente que de um

guerreiro sanguinaacuterio surge um amigo dos

maacutertires e dos divinos Eia Basta Jaacute se

derramou muito sangue cristatildeo como se fosse

pouco dizer sangue humano Basta de os homens

se deixarem tomar por essa loucura de

destruiccedilotildees muacutetuas Decirc-se agora um basta de

fazer oferendas agraves fuacuterias e ao Orco Basta o que

haacute muito divirte os olhos dos turcos Depois de

tolerar as miseacuterias das guerras por tanto tempo

arrependei-vos ao menos uma vez Que sejam

imputados aos fados as insanidades todas

praticadas ateacute hoje Que os cristatildeos natildeo se

envergonhem em fazer como outrora os pagatildeos

esquecer os males passados Depois por

deliberaccedilotildees comuns aplicai-vos agrave preservaccedilatildeo

da paz E aplicai-vos de tal forma que ela se

firme com laccedilos natildeo de tecido mas soacutelidos e

mais inquebraacuteveis que o diamante que jamais

romper-se-atildeo

Apelo a voacutes priacutencipes que com um

miacutenimo gesto alteram a sorte dos mortais voacutes

que representais entre os homens o exemplo do

Cristo Priacutencipe Reconhecei a voz do vosso

Mestre que vos chama agrave paz Convencei-vos de

que o mundo todo fatigado de demasiados

males suplica isso de voacutes Se haacute algueacutem a quem

uma ofensa ainda machuque parece justo que a

180

Si quid cui dolet etiam aequum est hoc

publicae omnium felicitati donare Maius

est negotium quam ut levibus causis

debeat retardari Appello vos sacerdotes

deo sacri hoc studiis omnibus exprimite

quod deo gratissimum esse scitis Hoc

depellite quod illi maxime invisum

Appello vos theologi pacis evangelium

praedicate hanc semper popularibus

auribus occinite [880] Appello vos

episcopi aliique dignitate Ecclesiastica

praeminentes ad pacem aeternis vinculis

adstringendam vestra valeat auctoritas

Appello vos primates et magistratus ut

sapientiae regum ut pietati pontificum

vestra voluntas sit adiutrix Vos appello

promiscue quicumque Christiano nomine

censemini consentientibus animis in hoc

conspirate Hic ostendite quantum valeat

adversus potentum [885] tyrannidem

multitudinis concordia Huc pariter

omnes omnia sua consilia conferant

Iungat aeterna concordia quos tam multis

rebus coniunxit natura pluribus Christus

Communibus studiis agant omnes quod

ad omnium ex aequo felicitatem pertinet

[889] Huc invitant omnia primum

ipse naturae sensus atque ipsa ut ita

dicam humanitas [890] Deinde totius

humanae felicitatis Princeps et Auctor

Christus Ad haec tam multa pacis

perdoe em nome da felicidade puacuteblica de todos

Este assunto eacute da maior prioridade para ser

protelado por motivos insignificantes Apelo a

voacutes sacerdotes consagrados para Deus

Empenhai-vos zelosamente em pregar aquilo que

sabeis que eacute a coisa mais grata a Deus e em

dissuadir daquilo que Ele mais detesta Apelo a

voacutes teoacutelogos Pregai o Evangelho da paz

trombeteai sempre isto nos ouvidos do povo

Apelo a voacutes bispos e demais dignataacuterios

eclesiaacutesticos que a vossa autoridade sirva para

atar a paz com viacutenculos eternos Apelo a voacutes

nobres e magistrados para que auxilies com a

vossa vontade a sabedoria dos reis e a piedade do

pontiacutefice Apelo a todos voacutes quem quer que

sejais que vos designeis com o nome de cristatildeo

para que vos coloqueis de acordo e sejais

unacircnimes no projeto da paz Mostrai aqui que a

concoacuterdia dos povos vale mais que tirania dos

poderosos Que todos ofereccedilam por igual todos

os seus conselhos para essa finalidade Que a

concoacuterdia eterna una aqueles a quem a natureza

uniu por muitos viacutenculos mas que Cristo uniu

por muitos mais Que todos em suas atividades

cotidianas procurem o que por igual interessa agrave

felicidade de todos

Tudo nos convida a isso Em primeiro

lugar o proacuteprio instinto da natureza e se assim

posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo

lugar o proacuteprio Cristo priacutencipe e autor de toda

felicidade humana Depois as incontaacuteveis

vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero

181

commoda tot belli calamitates Vocant

huc ipsi principum animi iam velut

adflante deo ad concordiam propensi En

pacificus ille placidusque Leo signum

omnibus extulit ad pacem invitans

vereque Christi vicarium agens Si vere

oves estis sequimini pastorem Si filii

audite patrem Vocat huc [895] ille non

titulo tantum Christianissimus Galliarum

rex Franciscus qui pacem nec emere

gravatur nec usquam suae maiestatis

habet rationem modo publicae paci

consulat hoc denique vere splendidum ac

regium esse docens de genere humano

quam optime mereri Vocat huc

clarissimus princeps Carolus incorruptae

indolis adolescens Nec abhorret Caesar

Maximilianus nec detractat [900]

inclytus Angliae rex Henricus Tantorum

principum exemplum caeteros libenter

imitari par est Maxima plebis pars

bellum detestatur pacem orat Pauculi

quidam modo quorum impia felicitas a

publica pendet infelicitate bellum optant

Quorum improbitas ut plus valeat quam

imenso das calamidades da guerra Convidam agrave

paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que

como que inspirados por Deus jaacute estatildeo

propensos agrave concoacuterdia Eis aquele paciacutefico e

tranquilo Leatildeo142

que diante de todos ergueu o

estandarte a fim de convidar agrave paz e agiu como

autecircntico Vigaacuterio de Cristo Se verdadeiramente

sois ovelhas segui o pastor Se sois filhos

escutai o pai Convida agrave paz o celebrado

Francisco143

rei da Franccedila cristianiacutessimo natildeo

apenas de tiacutetulo o qual natildeo soacute natildeo se

envergonha de comprar a paz como tambeacutem natildeo

se mostra demasiadamente zeloso de sua

majestade contanto que seja para cuidar da paz

puacuteblica ensinando enfim que eacute proacuteprio de um

espiacuterito realmente esplecircndido e reacutegio ser

merecedor da maior gratidatildeo do gecircnero humano

Convida agrave paz o preclariacutessimo Priacutencipe

Carlos144

jovem de iacutendole incorruptiacutevel E natildeo

descuida de mim o Imperador Maximiliano145

assim como natildeo deprecia Henrique o iacutenclito rei

da Inglaterra146

Eacute justo que os demais imitem

com toda alegria o exemplo de tatildeo grandes

priacutencipes O povo em sua maioria detesta a

guerra e faz votos pela paz Reduzido eacute o nuacutemero

142

Papa Leatildeo X

143 Francisco I (1494-1547) Rei da Franccedila de 1515 ateacute a sua morte Queixa da Paz foi publicada em 1517 dois

anos apoacutes Francisco herdar o governo

144 Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano Alematildeo com apenas 17 anos de

idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio Habsburgo em 1519

145 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela morreria dois anos

depois

146 Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia a catolicidade do rei

inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536

182

bonorum omnium voluntas aequum sit

nec ne vos ipsi expendite Videtis

hactenus nihil actum foederibus nihil

[905] promotum affinitatibus nihil vi

nihil ulciscendo Nunc contra periculum

facite quid possit placabilitas quid

beneficentia Bellum e bello seritur ultio

trahit ultionem Nunc gratia gratiam

pariat et beneficium beneficio invitetur

isque regalior videatur qui plus de suo

iure concesserit Non successit quod

humanis studiis gestum est At fortunabit

ipse Christus pia consilia quae se [910]

autore et auspice viderit suscipi Aderit

dexter adspirabit favebitque faventibus

ei rei cui favit ipse plurimum privatos

adfectus publica vincat utilitas

Quamquam dum huic consulitur et sua

cuique fortuna melior reddetur

principibus regnum erit augustius si piis

ac felicibus imperent ut legibus regnent

magis quam armis proceribus maior

veriorque dignitas sacerdotibus otium

tranquillius [915] populo quies uberior

et ubertas quietior nomen Christianum

formidabilius crucis hostibus Denique

singuli singulis et omnes omnibus cari

simul [917] et iucundi eritis super omnia

Christo grati cui placuisse summa

felicitas est [918] Dixi

daqueles que optam pela guerra porque sua

felicidade iacutempia depende da infelicidade puacuteblica

Ponderai voacutes mesmos se eacute justo que a maldade

destes tenha mais forccedila do que a vontade de

todos os homens bons Vedes que ateacute o presente

momento nada se conseguiu com tratados nada

foi feito com a promoccedilatildeo de matrimocircnios

poliacuteticos nada se obteve pela forccedila nada se

construiu com a vinganccedila Fazei entatildeo a

experiecircncia do poder da clemecircncia e da boa

vontade Guerra semeia guerra vinganccedila atrai

vinganccedila Que agora a indulgecircncia decirc agrave luz a

indulgecircncia e um favor feito a algueacutem convide a

outro favor Que se avalie como possuidor de

realeza aquele que mais conceder os seus

proacuteprios direitos em benefiacutecio da paz Natildeo se

realizou aquilo que foi tentado apenas com as

providecircncias humanas mas o proacuteprio Cristo traraacute

ecircxito agraves decisotildees piedosas que vir que satildeo

concebidas tendo-o como autor e guia supremo

Estaraacute presente de forma propiacutecia inspiraraacute e

favoreceraacute aqueles que favorecem aquilo a que

ele favoreceu sobremaneira Que a utilidade

puacuteblica supere as paixotildees privadas Ateacute porque

enquanto cada um se ocupa desta torna melhor

sua proacutepria sorte os priacutencipes seratildeo mais

augustos se governarem suacuteditos piedosos e

felizes reinando sob a eacutegide das leis mais do que

pelas armas Os nobres gozaratildeo de maior e mais

autecircntica dignidade os sacerdotes usufruiratildeo de

um repouso mais tranquilo o povo teraacute uma

tranquilidade mais proacutespera ou uma

183

prosperidade mais tranquila O nome cristatildeo seraacute

mais temido pelos inimigos da cruz Em suma

todos e cada um de voacutes sereis em tudo mais

amados e agradaacuteveis uns para os outros e cada

um de todos e sobretudo sereis mais gratos a

Cristo a quem agradar consiste a suma

felicidade dessa vida Tenho dito

184

185

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  • A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdamestudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • SUMAacuteRIO
  • INTRODUCcedilAtildeO
    • Estrutura do estudo introdutoacuterio
    • Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa
      • CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO RENASCIMENTO
        • 11 Origem grega
          • 111 Definiccedilatildeo
          • 112 Principais autores e escritos em grego
            • 12 A praacutetica latina
            • 13 As fontes latinas
              • 131 Discussatildeo terminoloacutegica
              • 132 O contexto republicano e o imperial
                • 14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos
                  • 141 A Retoacuterica a Herecircnio
                  • 142 Ciacutecero
                  • 143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho
                  • 144 A suasoacuteria em Secircneca
                  • 145 Quintiliano
                    • 15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento
                    • 16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos
                    • 17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas
                      • 171 Lourenccedilo Valla
                      • 172 Thomas More
                        • 18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas
                        • 19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas
                        • 110 Conclusotildees do capiacutetulo
                          • CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ
                            • 21 Definiccedilotildees erasmianas
                            • 22 Temas
                            • 23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes
                              • 231 Isoacutecrates
                              • 232 Plutarco
                              • 233 Luciano
                                • 24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo
                                • 25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas
                                • 26 Declamaccedilatildeo escrita e integral
                                • 27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico
                                • 28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz
                                • 29 A disposiccedilatildeo retoacuterica
                                • 210 As sentenccedilas e os adaacutegios
                                • 211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes
                                • 213 Conclusotildees do capiacutetulo
                                  • CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ
                                    • 31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo
                                    • 32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas
                                    • 33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio
                                    • 34 Personificaccedilotildees femininas
                                    • 35 A deusa Pax
                                    • 36 A Paz enquanto saacutebia
                                    • 37 A Paz enquanto teoacuteloga
                                    • 38 A Paz enquanto viacutetima
                                    • 39 Conclusatildeo do capiacutetulo
                                      • CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                      • NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA COMENTADA
                                      • BIBLIOGRAFIA
                                        • Fontes primaacuterias
                                        • Traduccedilotildees da Queixa da Paz em ordem cronoloacutegica
                                        • Outras fontes e traduccedilotildees
                                        • Dicionaacuterios
                                        • Estudos
Page 2: A declamação Queixa da Paz de Erasmo de Rotterdam: …...É objetivo desta dissertação apresentar a primeira tradução direta do latim para o português brasileiro da declamação

Marcos Eduardo Melo dos Santos

A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdam

estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)

Versatildeo corrigida

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de

Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da

Universidade de Satildeo Paulo para a

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Letras

Claacutessicas

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Letras Claacutessicas

Orientaccedilatildeo Elaine Cristine Sartorelli

Satildeo Paulo

2017

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

NOME SANTOS Marcos Eduardo Melo dos

TIacuteTULO A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdam estudo

introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da

Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Letras Claacutessicas

Aprovado em 04082017

Banca Examinadora

Prof Dr Edelcio Gonccedilalvez de Souza (Presidente)

Instituiccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Profa Dra Ana Claacuteudia Romano Ribeiro

Instituiccedilatildeo Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP)

Profa Dra Leni Ribeiro Leite

Instituiccedilatildeo Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES)

Profa Dra Charlene Martins Miotti

Instituiccedilatildeo Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar aos meus pais Emanuel e Luiza Agrave minha esposa Susana meu

filho Felipe e aos meus irmatildeos Emanuel Luiz e Hugo

Agrave Professora Doutora Elaine Cristine Sartorelli que orientou incansavelmente cada

etapa do trabalho e sempre permitiu a liberdade para adoccedilatildeo ou natildeo de suas sugestotildees Devo

reconhecer todo seu empenho Guardarei admiraccedilatildeo pela sua competecircncia e gratidatildeo por tudo

que com ela aprendi

Natildeo poderia deixar ainda de manifestar minha gratidatildeo a tudo que o Professor Doutor

Pablo Schwartz Frydman e a Doutoranda Baacuterbara Costa e Silva ambos dedicados

pesquisadores das antigas declamaccedilotildees contribuiacuteram para o aprofundamento e a correccedilatildeo do

estudo introdutoacuterio Aos professores Paulo Vasconcellos e Pablo Schwartz Frydman que

fizeram vaacuterias sugestotildees pertinentes durante o exame de qualificaccedilatildeo tanto no texto

introdutoacuterio quanto na traduccedilatildeo

Ao corpo docente da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da

Universidade de Satildeo Paulo que com muito esmero excelecircncia e solicitude me

acompanharam nessa etapa especialmente aos Professores Doutores Joseacute Eduardo Lohner

Pablo Schwartz Frydman Maacutercio Suzuki Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Luiz Antocircnio

Lindo que tambeacutem concederam indicaccedilotildees durante o trabalho de conclusatildeo da disciplina que

com eles cursei ao longo do mestrado Natildeo poderia ser omisso em agradecer agrave banca

examinadora que com gentileza e competecircncia arguiram e indicaram modificaccedilotildees no

trabalho

Agrave amiga Professora Doutora Vanessa Guimaratildees Monteiro Ferreira da Costa que

tambeacutem fez observaccedilotildees significativas no que se refere agrave traduccedilatildeo Ao Professor Doutor Marc

van der Poel que gentilmente enviou por correio seus artigos e livros sobre a declamaccedilatildeo natildeo

disponiacuteveis agrave venda a fim de contribuir com esta pesquisa Aos professores de Liacutengua

Portuguesa meus amigos que incansavelmente me auxiliaram na redaccedilatildeo revisatildeo e

discussotildees de opccedilotildees de redaccedilatildeo nomeadamente Letiacutecia Mendes Ferri Luiz Santos Susana

Aparecida da Silva Regina Berti Sarah Barbosa e Weber Suhett

RESUMO

SANTOS Marcos Eduardo Melo dos A declamaccedilatildeo Queixa da paz de Erasmo de

Rotterdam estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue) 2017 228 f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo 2017

Este trabalho propotildee a primeira traduccedilatildeo feita diretamente do latim para o portuguecircs

brasileiro de uma das obras mais importantes do humanista Erasmo de Rotterdam a Querela

Pacis undique gentium eiectae profligataeque publicada em 1517 Tal obra constitui-se ao

lado de outros escritos como uma das mais importantes declamaccedilotildees realizadas durante o

Renascimento Nossa transposiccedilatildeo para o portuguecircs consideraraacute os recursos retoacutericos escritos

em latim aleacutem de conter notas explicativas e referecircncias histoacutericas mitoloacutegicas e

bibliograacuteficas sempre que estas se fizerem necessaacuterias para melhor compreensatildeo do texto

aleacutem de referecircncias a autores da Antiguidade assim como a outras obras do proacuteprio autor No

estudo introdutoacuterio dessa obra de gecircnero declamatio renascentista procurar-se-aacute analisar o

texto erasmiano segundo a conceituaccedilatildeo da retoacuterica tradicional antiga sobretudo dos autores

do periacuteodo imperial quando a praacutetica das declamaccedilotildees escritas em grego e latim se sobrepocircs agrave

oratoacuteria sem espaccedilo em razatildeo do decliacutenio senatorial Com base nas fontes antigas e nos

estudos recentes pretendemos identificar as semelhanccedilas e diferenccedilas entre a retoacuterica dos

autores romanos e a erasmiana nela concretizada Tambeacutem seratildeo investigadas as estrateacutegias

da argumentaccedilatildeo persuasiva sejam epidiacuteticas sejam deliberativam em favor da paz e em sua

polecircmica diatribe contra a guerra

Palavras-chave retoacuterica recepccedilatildeo dos claacutessicos humanismo Erasmo de Rotterdam

declamaccedilatildeo

ABSTRACT

SANTOS Marcos Eduardo Melo dos The Complaint of Peace declamation by

Desiderius Erasmus introduction and translation (Bilingual edition) 2017 228 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo

2017

This paper proposes the first translation directly from Latin into Brazilian Portuguese

of one of the most important works by the humanist Desiderius Erasmus Querela Pacis

undique gentium eiectae profligataeque published in 1517 This work constitutes one of the

most important declamations written during the Renaissance Our transposition to Portuguese

will consider rhetorical resources as well as containing explanatory notes about historical

mythological and bibliographical references whenever these are necessary for a better

understanding of the text such as references to direct or indirect allusions to writings of

Antiquity or other works by the author himself In the introductory study of this work of the

Renaissance declamatio genre we will analyze the Erasmian text according to the ancient

traditional Greco-Roman concept of Rethoric especially in the authors of the imperial period

when the practice of declamations written in Greek and Latin overlapped the oratory without

the ancient status because of the senatorial decline Based on ancient sources and recent

studies we intend to identify the similarities and differences between the rhetoric of classic

Latin authors and the erasmian rhetoric embodied in the Complaint of Peace We will also

investigate the strategies of persuasive argumentation whether epididical or deliberative in

favor of peace and in its controversial diatribe against war

Keywords rhetoric classical reception humanism Desiderius Erasmus declamation

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 1

Estrutura do estudo introdutoacuterio 4

Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa 5

CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO

RENASCIMENTO 11

11 Origem grega 11

111 Definiccedilatildeo 11

112 Principais autores e escritos em grego 14

12 A praacutetica latina 15

13 As fontes latinas 17

131 Discussatildeo terminoloacutegica 18

132 O contexto republicano e o imperial 19

14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos 22

141 A Retoacuterica a Herecircnio 22

142 Ciacutecero 22

143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho 23

144 A suasoacuteria em Secircneca 28

145 Quintiliano 30

15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento 35

16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos 39

17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas 42

171 Lourenccedilo Valla 42

172 Thomas More 44

18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas 45

19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas 47

110 Conclusotildees do capiacutetulo 48

CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ 51

21 Definiccedilotildees erasmianas 51

22 Temas 53

23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes 56

231 Isoacutecrates 56

232 Plutarco 57

233 Luciano 57

234 Libacircnio 58

24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo 60

25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas 62

26 Declamaccedilatildeo escrita e integral 63

27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico 64

28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz 68

29 A disposiccedilatildeo retoacuterica 69

210 As sentenccedilas e os adaacutegios 73

211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes 77

212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio 78

213 Conclusotildees do capiacutetulo 81

CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ 83

31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo 83

32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas 83

33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio 85

34 Personificaccedilotildees femininas 87

35 A deusa Pax 92

36 A Paz enquanto saacutebia 95

37 A Paz enquanto teoacuteloga 97

38 A Paz enquanto viacutetima 100

39 Conclusatildeo do capiacutetulo 101

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 103

NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA

COMENTADA 111

BIbLIOGRAFIA 185

Fontes primaacuterias 185

Traduccedilotildees da Queixa da Paz em ordem cronoloacutegica 185

Outras fontes e traduccedilotildees 187

Dicionaacuterios 189

Estudos 189

1

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute objetivo desta dissertaccedilatildeo apresentar a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o

portuguecircs brasileiro da declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo (Querela Pacis) obra de autoria do

humanista holandecircs Erasmo de Rotterdam1 escrita ao longo do ano de 1516 e publicada em

novembro de 1517 Esta seraacute precedida de um estudo introdutoacuterio que procuraraacute ressaltar o

uso de recursos retoacutericos em defesa da paz e de criacutetica agrave guerra Aleacutem de identificar o modo

pelo qual se fez uso dos autores antigos na ldquoQueixa da Pazrdquo verificaremos as colaboraccedilotildees

mais relevantes de Erasmo para a retoacuterica segundo a antiga tradiccedilatildeo escrita em grego e e

latim Como objetivos especiacuteficos o presente trabalho visa aleacutem de propor uma nova

traduccedilatildeo apresentar uma introduccedilatildeo e notas atualizadas segundo os recentes estudos

acadecircmicos assinalar a ocorrecircncia de referecircncias a oradores latinos assim como daqueles

declamadores do periacuteodo imperial romano que escreveram em grego identificar os elementos

da retoacuterica deliberativa erasmiana em defesa da paz do ponto de vista do gecircnero declamaccedilatildeo

(declamatio)

Este trabalho de pesquisa justifica-se pela contribuiccedilatildeo da primeira traduccedilatildeo direta do

latim para o portuguecircs brasileiro da ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em versatildeo biliacutengue ou seja

com o texto latino em paralelo com a traduccedilatildeo e a uacutenica precedida de um estudo introdutoacuterio

especiacutefico acerca do ponto de vista do gecircnero a que o texto pertence Essa traduccedilatildeo fornece a

aos pesquisadores lusoacutefonos um texto para o entendimento da concepccedilatildeo e do uso da

declamaccedilatildeo por Erasmo que aleacutem de ser um dos mais destacados autores humanistas que

ldquodirecionaram suas obras mais importantes para a educaccedilatildeo literaacuteriardquo (Mack 1993 p 303)

escreveu quatorze obras nesse gecircnero inclusive dentre elas algumas de suas mais lidas

traduzidas e comentadas como eacute o caso do ldquoElogio da Loucurardquo Essa traduccedilatildeo

disponibilizaraacute aos pesquisadores lusoacutefonos a traduccedilatildeo de uma das mais difundidas obras de

Erasmo de Rotterdam em diversos pontos de vista tais como recepccedilatildeo dos antigos pelos

autores cristatildeos renascentistas a permanecircncia dos gecircneros antigos na prosa neolatina e sua

atualizaccedilatildeo por meio da imitatio recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga no seacuteculo XVI uso de

1 Sobre a referecircncia agrave cidade de Erasmo (Rotterdam Roterdatildeo Roterdatilde Roterdam) encontrei variantes

ortograacuteficas em textos acadecircmicos lusos e brasileiros Optei pela versatildeo ldquoRotterdamrdquo com base no ldquoManual de

Redaccedilatildeo Oficial e Diplomaacutetica do Itamaratyrdquo (Brasil Ministeacuterio das Relaccedilotildees Exteriores Manual de redaccedilatildeo

oficial e diplomaacutetica do Itamaraty 2016 p 166)

2

recursos retoacutericos no gecircnero deliberativo e finalmente trata-se de um texto fundamental para

a compreensatildeo da filosofia irecircnica de Erasmo ou seja ao conjunto de argumentos filosoacuteficos

que Erasmo alinha a favor da paz e do qual deriva a moderna concepccedilatildeo de paz em sua

dimensatildeo interestatal

O texto latino por noacutes utilizado foi o ldquoQuerela Pacis undique gentium eictae

profiligataequerdquo disponiacutevel na ediccedilatildeo criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera

omnia recognita et adnotatione critica instructa notisque illustrata Amsterdam North-

Holland 1969-2001) coleccedilatildeo cujo volume com o texto em estudo foi publicado em 1977

Como fontes de conceituaccedilatildeo da arte retoacuterica servimo-nos das obras dos autores latinos e

gregos que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo especialmente aqueles que

foram certamente conhecidos por Erasmo Conforme Chomarat (1981 p 990) devem-se

considerar alguns autores que influenciaram Erasmo na redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

especialmente os que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo Especial atenccedilatildeo

deve ser dada aos autores que aleacutem de teorizarem sobre o gecircnero tambeacutem o praticaram

Conforme a observaccedilatildeo de Franco Gaeta (1968 p 13) procurar-se-aacute a fundamentaccedilatildeo em

ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano assim como nas ldquoControveacutersiasrdquo e ldquoSuasoriasrdquo de

Secircneca o velho e no ldquoSobre a Clemecircnciardquo de Secircneca o Jovem Nesse grupo de autores

antigos devemos ainda acrescer Ciacutecero Plutarco Libacircnio e Luciano Os textos destes autores

foram citados por Erasmo que aleacutem de tradutor tambeacutem era editor e que teve uma

contribuiccedilatildeo significativa para a introduccedilatildeo dos meacutetodos criacuteticos na histoacuteria da filologia

conforme o consenso de vaacuterios autores da aacuterea (Bentley 1977 p 9 Prete 1965 p 259 Prete

1970 p 18 Payne 1974 p 54)

Segundo evidecircncias internas e externas apontadas em um estudo das epiacutestolas

erasmianas realizado por Beauduin (1991 p 35) essa obra foi escrita em Lovaina Beacutelgica

entre novembro e dezembro do ano de 1516 a pedido do grande chanceler da Borgonha Joatildeo

Sauvage e dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Nesse mesmo ano

Erasmo havia sido nomeado conselheiro do priacutencipe Carlos de Borgonha que logo se tornaria

Carlos de Espanha (Margolin 1992 p 909) Foi publicada em 1517 e reeditada em 1518

Como evento histoacuterico proacuteximo que pode ser considerado o principal motivo da redaccedilatildeo desse

manifesto em favor da paz deve-se destacar que estava em curso a guerra da Liga de

Cambrai a qual se estendeu ateacute os enfrentamentos das guerras da Liga Santa (1508-1516)

3

Que este tenha sido de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa

ldquoQueixa da Pazrdquo prova-o a menccedilatildeo a tais fatos histoacutericos em uma de suas correspondecircncias a

Joatildeo Botzheim (1523)2 Da mesma forma Erasmo alude indiretamente ao tema no final da

declamaccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo afirmava na epiacutestola a Joatildeo

Botzheim que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma declamaccedilatildeo (Chomarat 1987 p 997) pretendemos

discutir no estudo introdutoacuterio sobre as caracteriacutesticas desse gecircnero Para isto natildeo somente

verificaremos sua gecircnese atribuiacuteda aos autores gregos (como μελέηη) e sua recepccedilatildeo pelos

autores latinos (como declamatio) mas em que medida a declamaccedilatildeo erasmiana enquadra-se

nesse gecircnero antigo

Em geral seu formato antigo foi definido por Bonner (1949 p 13) Wintterboton

(1980 p 24) e Schwartz (2004 p 21) como um discurso escrito como exerciacutecio escolar

acerca de uma causa fictiacutecia com a finalidade de treino em temas da retoacuterica deliberativa ou

judiciaacuteria Dentre suas caracteriacutesticas o presente estudo ressalta a personificaccedilatildeo que nas

declamationes renascentistas especialmente em Erasmo foi praticada de uma forma

inovadora em comparaccedilatildeo com as antigas Enquanto que naquelas antigas ou seja produzidas

nos seacuteculos I a C a I d C As personagens satildeo humanas e fictiacutecias o que denota certa

modificaccedilatildeo para o gecircnero em estudo A novidadade das declamaccedilotildees renascentistas

especialmente em Erasmo seria a inserccedilatildeo da fala (prosopopeia) de personagens abstratas

como a Paz na ldquoQueixa da Pazrdquo e a Loucura em seu ldquoElogiordquo

Por outro lado destaca-se a ficccedilatildeo como estrateacutegia para expressar ideias de forma livre

em uma sociedade que natildeo prezava a liberdade de expressatildeo e a caracterizaccedilatildeo com atributos

sociais e psicoloacutegicos do universo feminino nessas personificaccedilotildees erasmianas Tal

caracterizaccedilatildeo sem o uso de voz narrativa como eacute natural na declamaccedilatildeo mas atraveacutes do

discurso direto apresenta a paz como mulher e matildee apelando agraves emoccedilotildees do leitor a fim de

cativaacute-lo para a causa irecircnica pretendida pelo autor Conveacutem portanto analisar a ldquoQueixa da

Pazrdquo sob a perspectiva da recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo de um modo semelhante ao que

era praticado pelos autores antigos e predicado nos manuais de retoacuterica latina

2 Cf Erasmo de Rotterdam A Johann von Botzheim in Correspondence of Erasmus Letters 1252 to 1355

1522 to 1523 Trad James Martin Estes Toronto University Toronto Press 1989 p 319

4

Estrutura do estudo introdutoacuterio

O estudo introdutoacuterio estaacute composto de trecircs capiacutetulos os quais procuram apresentar a

ldquoQueixa da Pazrdquo em sua relaccedilatildeo com o gecircnero literaacuterio que inspirou sua forma a declamaccedilatildeo

Assim o primeiro capiacutetulo o caracteriza entre alguns autores antigos que escreveram sobre o

ele ou utilizaram-se dele no periacuteodo compreendido entre os seacuteculos I a C e I d C Aleacutem do

recorte do periacuteodo e dos autores seraacute dada atenccedilatildeo especial agraves referecircncias agrave declamaccedilatildeo nas

obras de Ciacutecero na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo nos Prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o

Velho e na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano que ilustram as discussotildees das

caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo que presentemente consideramos

O segundo capiacutetulo discorre sobre a praacutetica deste gecircnero por Erasmo A discussatildeo se

inicia com uma descriccedilatildeo do seu uso entre os autores do Renascimento sobretudo daqueles

que podem ter influenciado o roterdamecircs na escrita das suas declamaccedilotildees Seguir-se-aacute um

elenco das declamaccedilotildees erasmianas e um estudo da questatildeo de espeacutecies de declamaccedilotildees suas

relaccedilotildees diretas com outros gecircneros e a ocorrecircncia de prosopopeias a fim de estabelecermos

comparaccedilotildees

O terceiro capiacutetulo trata da ldquoQueixa da Pazrdquo em comparaccedilatildeo com o gecircnero

declamaccedilatildeo praticado e teorizado pelos autores antigos conforme se discorreu no capiacutetulo

primeiro assim como algumas datadas do Renascimento ou de autoria do proacuteprio Erasmo

Aqui procuraremos ainda demonstrar como e em que medida esta obra pertence agrave linhagem

da declamaccedilatildeo tal como esta era prescrita e praticada pelos autores dos seacuteculos XV e XVI

Tais comparaccedilotildees visam sobretudo a dois pontos primeiro tratar a respeito do subgecircnero da

ldquoQueixa da Pazrdquo ao analisar os argumentos a favor de classificaacute-la como do epidiacutetico ou

como do deliberativo segundo uma vez que os autores do Renascimento utilizavam

intencionalmente os princiacutepios da retoacuterica antiga para a invenccedilatildeo de seus escritos

discutiremos a caracterizaccedilatildeo da Paz enquanto prosopopeia abstrata e feminina como

estrateacutegia de persuasatildeo em conformidade com as regras de retoacuterica antiga recebida no

Renascimento

5

Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa

Antes de entrar no objeto proposto conveacutem pontuar o estado dos estudos acadecircmicos

acerca do gecircnero declamaccedilatildeo e mais especificamente da sua recepccedilatildeo entre os escritores

humanistas A produccedilatildeo de artigos acadecircmicos ou dissertaccedilotildees nesse recorte temaacutetico natildeo eacute

numericamente ampla mas tem sido enriquecida por especialistas voltados para pesquisas

sobre a declamaccedilatildeo ou os autores que a ela se dedicaram Ao iniciarmos o cotejo das versotildees

da ldquoQueixa da Pazrdquo verificamos que se encontram disponiacuteveis para consulta on-line seis das

vinte e cinco ediccedilotildees desta obra datadas do seacuteculo XVI Aleacutem dessas ediccedilotildees latinas foi

possiacutevel encontrar uma traduccedilatildeo francesa do seacuteculo XVI La Complainte de la Paix

Tradution de le Chevalier de Berquin (1525) Verificou-se ademais que haacute uma ediccedilatildeo

criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera omnia recognita et adnotatione critica instructa

notisque illustrata Amsterdam North-Holland 1969-2001) e dezenas de traduccedilotildees em inglecircs

francecircs italiano alematildeo e portuguecircs cuja lista encontra-se na bibliografia e da qual

salientamos a existecircncia de doze ediccedilotildees nos uacuteltimos quinze anos em cinco vernaacuteculos

ocidentais Deve-se dizer que muitas destas natildeo parecem ser traduzidas diretamente do latim

Dessa profusatildeo de fontes e traduccedilotildees infere-se que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma obra que natildeo

somente obteve grande difusatildeo durante o seacuteculo XVI Ainda hoje eacute umas das obras de

Erasmo mais difundidas equiparavelmente ao ldquoElogio da Loucurardquo e o ldquoDe Copiardquo O

primeiro dispensa apresentaccedilatildeo no caso do segundo conveacutem lembrar que ldquoseguindo os

modelos de Ciacutecero e Quintiliano e tendo como principal objetivo a invenccedilatildeo foi

provavelmente o manual mais estudado de todo o Renascimentordquo (Mack 1993 p 305)

contando com mais de cento e cinquenta ediccedilotildees somente na centuacuteria de sua publicaccedilatildeo Esta

difusatildeo denota a relevacircncia e a influecircncia desse autor para a recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga em

seu tempo Muitos dos princiacutepios retoacutericos consignados nesse manual satildeo postos em praacutetica

na declamaccedilatildeo que pretendemos analisar Haacute tambeacutem a ediccedilatildeo das epiacutestolas de Erasmo

realizada sob a direccedilatildeo de Allen (1906) e que satildeo uacuteteis para o entendimento da compreensatildeo

do proacuteprio autor acerca da sua obra das circunstacircncias histoacutericas que inspiraram a redaccedilatildeo do

discurso da Paz e dos conceitos que potildee em praacutetica nessa declamaccedilatildeo

Embora muitas destas ediccedilotildees (Bagdat 1924 Von Balthasar 1945 Dolan 1964

Philip 1967 Gaeta 1968 Christian 1968 Radice 1968 Telle 1978 Hannermann 1985

Van Leeuwen 1986 Levi 1986 Chomarat 1991 e 1974 Margolin 1992 Carena 1995

6

Pinto 1999 Cinti 2005 Labre 2005 Jovella 2008 Bellacasa 2008 Hoffmann 2013)

apresentem introduccedilotildees agrave ldquoQueixa da Pazrdquo ou a outras obras de Erasmo (Sartorelli 2013

Saacutenchez Salor 2011 King e Rix 2007) deve-se dizer que embora estas apresentem alguns

dados que natildeo podem ser preteridos e que foram considerados no presente estudo estes textos

introdutoacuterios estatildeo muitas vezes limitados agraves regras e aos objetivos editoriais restringindo-se

a informaccedilotildees biograacuteficas ou histoacutericas sem anaacutelises aprofundadas do texto seu gecircnero ou

recepccedilatildeo

Aleacutem das introduccedilotildees das traduccedilotildees verificou-se a existecircncia de apenas um estudo

acadecircmico na aacuterea de literatura especiacutefico sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo (Bagdat 1924) assim

como o artigo de Chomarat (1974) e um dos capiacutetulos do seu livro ldquoGrammaire et Rheacutetorique

chez Erasmerdquo (1981) Foi entatildeo necessaacuterio incrementar a pesquisa com artigos acadecircmicos e

livros publicados mais recentemente por editoras universitaacuterias que tratam sobre temas

indiretamente relacionados com o objeto de pesquisa ou seja sobre o autor (Erasmo de

Rotterdam) sobre a obra em estudo sobre o gecircnero no qual foi escrita a obra (declamaccedilatildeo) e

sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga entre os humanistas Dada a falta de estudos que tratam

diretamente sobre a Queixa da Paz natildeo foi possiacutevel apresentar um estado da questatildeo no

sentido a que se estaacute habituado na academia mas apenas algumas obras que apresentam

relaccedilatildeo parcial com nosso objetivo

Tendo diante de si estes livros ou artigos eacute possiacutevel classificaacute-los nos seguintes

grupos (grupo 1) sobre a retoacuterica e a declamaccedilatildeo antiga (grupo 2) sobre a recepccedilatildeo da

retoacuterica e da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 3) sobre estas em Erasmo Dadas as

limitaccedilotildees temporais do mestrado assim como a dificuldade de acesso a alguns livros natildeo

disponiacuteveis nas bibliotecas brasileiras os livros capiacutetulos de livros e artigos abaixo

catalogados natildeo esgotam a bibliografia sobre as mateacuterias em questatildeo como eacute o caso de

muitas obras de origem francesa que natildeo foi possiacutevel acessar mas que natildeo satildeo pertinentes

para o presente estudo uma vez que tratam da recepccedilatildeo da obra de holandecircs em outros autores

a partir do seacuteculo XVI

Ainda que nossa intenccedilatildeo primeira fosse atentar para a declamaccedilatildeo latina natildeo era

possiacutevel preterir alguns estudos sobre a grega (Russell 2009) e sobre a caracterizaccedilatildeo da

mulher nesta (Gruber 2008) uma vez que se fazem pertinentes natildeo somente para a

consideraccedilatildeo da romana mas tambeacutem daquela praticada por Erasmo que as conhecia ainda

7

na forma de manuscrito Entre os estudos sobre a declamaccedilatildeo latina destacam-se o de Wolf

(2013) Van Mal-Maeder (2007) Winterbottom (1980 e 2006) Shenk (1982) Mendelson

(1994) Clarke (1996) Bonner (1949 e 1966) e Schwartz (2000 e 2004) Tambeacutem se tornam

pertinentes alguns estudos especiacuteficos sobre as declamaccedilotildees como o de Bonner (1966) sobre

Luciano o artigo de Schwartz (2000) sobre esse gecircnero sob Augusto os dois artigos de

Bayley sobre as ldquoDeclamationes maioresrdquo e ldquominoresrdquo atribuiacutedas a Quintiliano (1984 e

1989) os artigos de Clark (1957) e Dupont (1997) sobre sua praacutetica escolar e os estudos de

Marrou (1948) de Vasconcelos (2000 e 2002) de Gibson (2004) e de Manoel (2014) sobre as

progymnasmata o estudo acerca da relaccedilatildeo do contexto histoacuterico com as controveacutersias escrito

por Mendelson (1994) o artigo com o recorte sobre as ldquocrianccedilas abandonadasrdquo nas

declamaccedilotildees (Bernstein 2009) o artigo sobre a declamaccedilatildeo em Secircneca (Edward 1928

Sussman 1972 Fairweather 1981 Schwartz 2004 Bloomer 2010 Costrino 2010) ou

ainda outros autores como em Taacutecito (Pereira 2013) em Quintiliano (Reali e Turazza 2012)

e em Luciano (Thompson 1965 e 1974) Dentre este alguns natildeo somente foram lidos por

Erasmo mas tambeacutem traduzidos por ele do grego para o latim

Sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 2) destacam-se os artigos

de Kinney (1976) e Vasoli (2008) sobre a retoacuterica humanista Devem-se ressaltar ainda os

textos sobre as declamaccedilotildees de Erasmo analisados por Giazzi (2008) Tunberg (1996 2006 e

2013) os jaacute mencionados escritos de Chomarat (1974 e 1981) e Van der Poel (1987 e 1989)

Aleacutem disso Van der Poel publicou artigos sobre a declamaccedilatildeo em Agripa e Erasmo (Van der

Poel 1994 e 1997) e em Cardano (Vander Poel 2005) Entre os estudos sobre as declamaccedilotildees

de Erasmo em particular destaca-se a referecircncia de Grimal (1994) sobre a declamaccedilatildeo

ldquoSobre a morterdquo de Erasmo as introduccedilotildees ao ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo (Pigman 1977

Sartorelli 2015) ao ldquoElogio do Matrimocircniordquo de Leushuis (2004) e Sowards (1958 e 1982)

sobre o ldquoElogio da Loucurardquo (Sartorelli 2013 Moya Bedoya 1994) Sobre a influecircncia de

Valla em Erasmo haacute o artigo de Bentley (1977) assim como os estudos de Schwahn (1928) e

Ginzburg (2004) sobre a declamaccedilatildeo ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo Temos ainda os estudos de

Fox (1983) Baumann (1985) e Corral (2012) sobre o ldquoTiranicidardquo de More os de Logan

(2003) e Miller (1994) sobre a ldquoUtopiardquo e por fim sobre o ldquoElogio de Nerordquo de Cardano o

estudo de Biffino (2002)

8

Sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga em Erasmo (grupo 3) verificamos a existecircncia de

capiacutetulos de livros e artigos de Murphy (1974 1983 2005 e 2012) Bataillon (1977 e 1982)

Margolin (1973 1977 1992 1987 1993 1995 1997 e 1998) Chomarat (1974 e 1981)

Pigman (1980 e 1990) Green e Murphy (2006) Mack (1993 1996 e 2011) Sartorelli (2001

2009 2012 2013 e 2015) Rummel (1985 1990 1996 1998 1999 e 2000) Weiland (1988)

Pinto (2006) e Logan (1994) Haacute alguns estudos sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga no

Renascimento que se referem marginalmente sobre Erasmo como o de Burke (2003) e os

artigos de Kinneyy (2004) Goacutemez Cervantes (2007) Alexandre Juacutenior (2008) Hernaacutendez

Guerrero e Garciacutea Tejera (1992) e Gianotti (2008) Ainda nesse grupo destaca-se o artigo

sobre ldquodeclamaccedilatildeo e retoacutericardquo de Gunderson (2009) Tendo como recorte a obra de Erasmo

temos Sloane (1991 e 2004) e Pinto (2006) Haacute ainda sobre a saacutetira em Erasmo feita por Story

(2012) Kennedy (1980) Hoffmann (1994) e Boyle (2004) tambeacutem apresentam artigos sobre

a relaccedilatildeo da filologia e da retoacuterica erasmiana com a teologia e a filologia biacuteblica Ainda no

recorte do Renascimento destaca-se o estudo filosoacutefico sobre a paz feito por Cailes (2012)

no qual compara as teorias de Erasmo e Machiavel e os estudos filosoacuteficos acerca do

pacifismo de Erasmo realizados por Meulen (1990) Hoffmann (2000) Kinsella e Carr

(2007) Martiacuten (2007) Dungen (2008) e Christi (2009) A respeito de outras questotildees

filosoacuteficas ou literaacuterias podemos citar as dissertaccedilotildees ou teses defendidas na proacutepria

Universidade de Satildeo Paulo a de Salum (2009) a de Nassaro (2010) e a de Rodrigues (2012)

Embora natildeo seja o foco principal da pesquisa tivemos o cuidado de consultar algumas

biografias Entre estas acessamos duas por Bainton (1969) e Faludy (1970) Minnich e

Meissner (1978) Boeft (1989) Bietenholz (1985 e 2009) e Vredeveld (1993) escrevem textos

de iacutendole histoacuterico-biograacutefica Meacutenager (2000) redigiu um artigo acerca da posiccedilatildeo poliacutetica

neutra de Erasmo face agrave poliacutetica francesa e espanhola Merece especial destaque o trabalho

biograacutefico de Beauduin (1991) com base na epistolografia erasmiana Haacute tambeacutem estudos

histoacutericos sobre a influecircncia erasmiana no seacuteculo XVI (Rowland 1987)

No tocante agrave recepccedilatildeo que os escritos de Erasmo obtiveram sem pretender esgotar o

universo desse gecircnero de pesquisa e que natildeo se configura como essencial para na pesquisa

como eacute o caso da ampla produccedilatildeo francesa tivemos acesso ao artigo sobre sua influecircncia em

Joatildeo Fletcher escrito por Waith (1951) em Joatildeo Bodin conforme artigo de Remer (1994)

em Bartolomeu de las Casas segundo Torres (1993) na Alemanha do seacuteculo XVI por Tracy

9

(1969) na literatura francesa em artigo de Phillips (1971) no seacuteculo XIX por Mansfiel

(1968) e sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo romana no seacuteculo XX por Gunderson (2003)

Destacam-se alguns estudos temaacuteticos como o texto de Whers (2004) sobre a eacutetica

erasmiana sobre a recepccedilatildeo do ldquoAdversus Jovianumrdquo em Erasmo escrito por Pabel (2002)

sobre a influecircncia de Jerocircnimo no holandecircs em artigo de Sloane (2004) e sobre a influecircncia

da ldquoArte Poeacuteticardquo de Horaacutecio sobre os ldquoAdaacutegiosrdquo publicado por Magnien (2012) Como

analisaremos a caracterizaccedilatildeo da paz enquanto personagem feminina eacute necessaacuterio considerar

o livro de Rummel (1996) sobre a mulher em Erasmo e os artigos sobre a educaccedilatildeo feminina

publicado por Soward (1982) por Cousins (2004) e por Leushuis (2004) Sobre a ficccedilatildeo nas

declamaccedilotildees temos o estudo de van Mal-Maeder (2007) que inclusive foi comentada em

resenha por Bloomer (2009) Entre estes trabalhos deve-se levar em consideraccedilatildeo a questatildeo

sobre a oposiccedilatildeo dos humanistas aos escolaacutesticos (Bejczy 2001 Rummel 1998)

Esta pesquisa verificou portanto com a exceccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de Bagdat (1924) e o

artigo de Chomarat (1974) o qual tratou especificamente sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto

de vista da aacuterea de Letras a inexistecircncia de artigo acadecircmico ou livro especiacutefico sobre o tema

em questatildeo ou seja sobre a recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo Encontramos apenas seu

tratamento de modo sucinto em Chomarat (1981) e Van der Poel (1989) Por outro lado

verificou-se a necessidade e a relevacircncia acadecircmica do estudo das declamaccedilotildees de Erasmo e

de consideraccedilotildees mais especiacuteficas sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto de vista da recepccedilatildeo dos

antigos Como vaacuterios autores mencionam este gecircnero e a proacutepria declamaccedilatildeo como exemplo

deve-se considerar que devido ao caraacuteter marginal de muitos comentaacuterios sem a

especificidade de uma referecircncia direta agrave declamaccedilatildeo em comento ou ao tratar do pacifismo

erasmiano sem muitas vezes levar em consideraccedilatildeo o gecircnero literaacuterio da obra torna-se

pertinente um texto especiacutefico sobre o gecircnero literaacuterio sua personificaccedilatildeo feminina da paz

sob o enfoque da recepccedilatildeo dos autores antigos a qual ainda eacute ineacutedita no mundo acadecircmico

Ademais com exceccedilatildeo do capiacutetulo de Chomarat (1981) e apesar da importacircncia da retoacuterica

antiga para os autores do Renascimento verificamos a inexistecircncia de textos acadecircmicos

especiacuteficos sobre a retoacuterica na ldquoQueixa da Pazrdquo motivo pelo qual se verifica mais um ponto

de novidade no presente estudo

10

11

CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO

RENASCIMENTO

O presente capiacutetulo trata da definiccedilatildeo conceitual e das diferenccedilas essenciais e

terminoloacutegicas do gecircnero declamaccedilatildeo (em latim declamatio em grego μελέηη) entre alguns

autores antigos gregos e latinos especialmente nos tempos finais da Repuacuteblica e do iniacutecio do

Impeacuterio Entre esses autores antigos daremos atenccedilatildeo especial agrave forma como o assunto

aparece nas obras de Ciacutecero na passagem pertinente da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo em alguns

prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o Velho e por fim em Quintiliano em razatildeo da

influecircncia da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo sobre os humanistas a partir da redescoberta de um de

seus manuscritos na iacutentegra no iniacutecio do seacuteculo XV Apoacutes uma descriccedilatildeo do uso da

declamaccedilatildeo entre as ediccedilotildees dos autores antigos que escreveram declamaccedilotildees ou teorias sobre

a declamaccedilatildeo e foram editados ou traduzidos no Renascimento nosso enfoque recairaacute

especialmente sobre aqueles autores humanistas que precederam Erasmo na recuperaccedilatildeo do

gecircnero

11 Origem grega

111 Definiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo em carta a Joatildeo Botzheim datada de

1523 classificou a Queixa da Paz como uma declamaccedilatildeo e de que haacute consenso entre

estudiosos como Chomarat (1981 p 997) que confirmam esta classificaccedilatildeo eacute oportuno

considerar o que vem a ser exatamente uma declamaccedilatildeo segundo a conceituaccedilatildeo dos autores

antigos imitados pelos humanistas Em conferecircncia ainda natildeo publicada Sartorelli assim

define a declamaccedilatildeo in genere

Na Antiguidade as declamationes eram discursos escritos como exerciacutecio

escolar acerca de uma causa fictiacutecia apenas para aquecimento ou treino nos

cursos de oratoacuteria Tratava-se portanto de preparaccedilatildeo para a ocasiatildeo em que a

fala de fato se faria necessaacuteria (o tribunal a assembleia) e uma demonstraccedilatildeo

de habilidade O exercitar-se era o essencial para manter-se bdquoem forma‟ para

um puacuteblico cujos ouvidos estavam acostumados ao mais alto niacutevel de

eloquecircncia e que natildeo deixaria passar um deslize por parte daquele que

discursava (Sartorelli 2013 reproduccedilatildeo de conferecircncia)

12

Deve-se recordar que alguns poucos exerciacutecios similares agrave declamaccedilatildeo (a μελέηη)

ainda que tais discursos sejam duvidosos em relaccedilatildeo agrave sua finalidade escolar teriam sido

praticados pelos sofistas entre os quais podem-se citar o Elogio a Helena ou a Defesa de

Palemedes cuja autoria foi atribuiacuteda a Goacutergias e que satildeo datados do seacuteculo IV a C ou ainda

as Tetralogias de Antifonte (Winterbottom 2006 p 76 Costrino 2010 p 12 Kennedy

1980 p 28) Conservaram-se ainda alguns papiros de declamaccedilotildees gregas datadas do seacuteculo

III a C consideradas as mais antigas declamaccedilotildees conservadas (Russel 2009 p 6)

Nesse particular Kennedy (1980 p 103) ressaltou a importacircncia do manual sobre

declamaccedilotildees do gecircnero epidiacutetico Este eacute composto de oito capiacutetulos preservados entre as obras

de Dioniacutesio de Halicarnaso mas escrito por um autor anocircnimo do terceiro seacuteculo traz

orientaccedilotildees retoacutericas para a composiccedilatildeo de Elogios para os festivais casamentos aniversaacuterios

e exortaccedilotildees para os jogos oliacutempicos Entretanto ldquoos mais extensos tratados com a forma

epidiacutetica da declamaccedilatildeo se concentram em dois trabalhos atribuiacutedos a Menandro de

Laodiceia um reacutetor do terceiro seacuteculordquo (Kennedy 1980 p 103)

Apesar da heterogeneidade dos corpora declamatoacuterios gregos aquelas declamaccedilotildees

tecircm em comum o fato de simularem a defesa de uma causa fictiacutecia baseada em

acontecimentos histoacutericos ou mitoloacutegicos Contudo no que se refere agrave precisatildeo das datas dos

nomes e a situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se

ali imprecisotildees pois sua principal finalidade era como dissemos a praacutetica da oratoacuteria e a

persuasatildeo dos ouvintes (Wolf 2013 p 270) Gibson (2004 p 105-106) todavia demonstra

que ao menos no manual de Heacutelio Teatildeo havia certa preocupaccedilatildeo com a historicidade das

declamaccedilotildees (Winterbottom 1980 v) pois o discurso deveria ser adequado como um

ldquoexerciacutecio histoacutericordquo harmocircnico com a caracterizaccedilatildeo das personagens e com os dados

narrativos (Gibson 2004 p 105-106)

Usando as tradicionais categorias dos trecircs gecircneros tambeacutem presentes em Aristoacuteteles

(Retoacuterica 14) algumas dessas declamaccedilotildees foram classificadas como judiciais uma vez que

tinham como meta defender ou atacar algueacutem no ambiente forense procurando influenciar na

elaboraccedilatildeo de uma sentenccedila de culpa ou absolviccedilatildeo (Fairwethear 1981 p 545) Outras por

outro lado poderiam pertencer aos gecircneros epidiacutetico e deliberativo jaacute que tambeacutem versavam

sobre temas histoacuterico-mitoloacutegicos seja para aconselhar ou desaconselhar em uma deliberaccedilatildeo

seja para elogiar ou vituperar (Gibson 2004 p 103) Segundo o estudo de Russell (2009 p

13

4) como exemplos de declamaccedilotildees gregas do gecircnero deliberativo (suasoacuteria) podem-se

mencionar as de Polemon de Laodiceia e Adriano de Tiro Para ele (2009 p 6) as

declamaccedilotildees de Coriacutecio de Gaza teriam sido ldquoas melhores desses autoresrdquo pois apresentam

ldquoum estilo virtuoso capaz de escrever com elegacircncia e com um aacutetico claacutessico em total

observacircncia das claacuteusulas do seu proacuteprio tempordquo

Alguns pontos gerais na declamaccedilatildeo claacutessica grega merecem ser considerados em

detalhes em razatildeo da relevacircncia do uso da personificaccedilatildeo no discurso irecircnico erasmiano No

tocante agrave caracterizaccedilatildeo das personagens envolvidas nas declamaccedilotildees gregas Russell (2009

p 87-90) afirma que os elementos do ecircthos retoacuterico estavam presentes nas declamaccedilotildees pois

estas levavam em conta a adequaccedilatildeo da imagem de si mesmo as particularidades da audiecircncia

e a situaccedilatildeo psicoloacutegica e social dos oponentes O autor (Ibid p 92-93) apresenta a

declamaccedilatildeo 33 de Libacircnio como um dos exemplos de caracterizaccedilatildeo completa de uma

personagem feminina atraveacutes da narraccedilatildeo (katastasis) minuciosa dos elementos da vida

domeacutestica Aleacutem disso Russell (Ibid p 83) percebeu uma relaccedilatildeo estreita de alguns

elementos da declamaccedilatildeo grega com os da comeacutedia tendo ainda notado (Ibid p 102) que as

declamaccedilotildees gregas tambeacutem tinham um epiacutelogo harmonioso com o tema presente nos

primeiros paraacutegrafos demonstrando que esta deveria ser uma das suas virtudes Por fim

conveacutem destacar sempre segundo Russel (Ibid p 4-5) que algumas delas eram realizadas

tanto a favor de somente um dos lados da questatildeo quanto a favor dos dois lados

sucessivamente como se verificou na ldquoVida dos sofistasrdquo de Filoacutestrato

Eacute preciso considerar que os principais corpora de declamaccedilotildees gregas foram escritos

no periacuteodo histoacuterico em que Roma dominava politicamente a parte oriental do Mediterracircneo

onde predominava o grego como liacutengua franca por isso algumas coleccedilotildees natildeo foram escritas

em latim Natildeo sem razatildeo no parecer de Kennedy (1980 p 103) ldquoa declamaccedilatildeo foi o maior

fenocircmeno retoacuterico do Impeacuterio Romano escrito em latim e gregordquo Para Bloomer (2010 p

297) ldquoa declamaccedilatildeo eacute o primeiro grande movimento literaacuterio do Impeacuterio Romanordquo Embora

existam outros gecircneros literaacuterios cuja difusatildeo tambeacutem tenha sido comparaacutevel ou talvez

superior em sofisticaccedilatildeo agrave declamaccedilatildeo deve-se poreacutem destacar que a praacutetica declamatoacuteria

natildeo se limitava aos ceacutelebres ciacuterculos eruditos mas tambeacutem estava presente no ciacuterculo escolar

e filosoacutefico

14

112 Principais autores e escritos em grego

Entre os principais nomes da declamaccedilatildeo grega sobretudo na praacutetica da suasoacuteria e das

controveacutersias histoacutericas devem-se destacar Plutarco Aristides Luciano Libacircnio e Coriacutecio

Historicamente tais autores se concentram em periacuteodo posterior ao que eacute correntemente

denominado como Segunda Sofiacutestica cuja delimitaccedilatildeo apesar de controversa eacute geralmente

compreendida entre os seacuteculos I e IV d C Coriacutecio estaria situado no periacuteodo da Terceira

Sofiacutestica (Silva 2015)

Plutarco escreveu apenas seis obras morais que satildeo especificamente identificadas

como declamaccedilotildees entre as quais se destacam ldquoSe os atenienses satildeo melhores nas armas do

que nas letrasrdquo e o discurso ldquoSobre a fortuna e a virtude de Alexandrerdquo no qual consta um

elogio ao monarca (Boulet 2013 p 61)

Entre os discursos de Heacutelio Aristides destacam-se aqueles com temas histoacutericos

propostos aos estudantes tambeacutem conhecidos como declamaccedilotildees histoacutericas O mais ceacutelebre o

ldquoLeuctrianrdquo apresenta as controveacutersias de apoio e neutralidade em relaccedilatildeo a Tebas Atenas e

Esparta (Russell 1983 p 4)

Quanto a Luciano de Samosata (125-181 d C) temos nomeadamente os discursos a

favor e contra a aceitaccedilatildeo do touro Phalaris em Delfos e o discurso cocircmico ldquoTribunal das

vogaisrdquo em que o Sigma cobra o Tau pelo roubo de todas as palavras soletradas com duplo

Tau

Entre os mais profiacutecuos produtores de declamaccedilotildees Libacircnio de Antioquia (314-394 d

C) escreveu cinquenta e uma declamaccedilotildees ainda conservadas das quais poucas satildeo

questionadas quanto agrave autenticidade Entre as histoacutericas destacam-se a ldquoApologia de Soacutecratesrdquo

e alguns plasmata que satildeo casos fictiacutecios entre os quais alguns explicitamente cocircmicos

(Russel 1983 p 4)

Por fim devemos mencionar Coriacutecio de Gaza (primeira metade do seacuteculo VI) autor

que jaacute pertence ao periacuteodo denominado como Terceira Sofiacutestica Escreveu doze discursos que

tratam desde temas e locais comuns imitados de textos gregos antigos como Homero e

Heroacutedoto ateacute elogios ao Bispo Marciano e a apologia dos mimos um gecircnero popular de

15

Gaza Digno de nota eacute o discurso no qual simula a tentativa de Paacutetroclo em persuadir Aquiles

a retornar ao campo de batalha apoacutes o ultraje de Agamecircmnon (Silva 2015 p 75)

Dada a relevacircncia da caracterizaccedilatildeo de personificaccedilotildees femininas para o presente

estudo conveacutem destacar desde jaacute que no tocante ao estudo destas nas declamaccedilotildees gregas os

papeacuteis representados pela mulher eram em menor nuacutemero em comparaccedilatildeo com o de

personagens masculinas (Gruber 2008 p 138-140) Estas poderiam ser a filha a matildee a

madrasta a mulher a esposa a concubina e a meretriz Todavia natildeo costumavam receber as

variaccedilotildees de caraacuteter atribuiacutedas ao homem como ser rico pobre velho filoacutesofo entre outros

Segundo Gruber (ibid p 139) as mulheres eram caracterizadas como ldquoceacuteticas proacutedigas

extravagantes invejosas orgulhosas incocircmodas e maacutesrdquo Para exemplificar em qual tipo de

declamaccedilotildees as personificaccedilotildees femininas costumavam ocorrer Gruber (ibid p 140)

considerou que nas declamaccedilotildees de Menandro as mulheres estavam envolvidas

principalmente em casos de adulteacuterio (41 de 89 declamaccedilotildees) e rapto (13) Disto se pode

concluir que as mulheres ocupavam um papel secundaacuterio nas declamaccedilotildees gregas natildeo

somente por serem caracterizadas com menor variedade e especificidade quando comparadas

agraves masculinas mas tambeacutem por estarem na maioria das vezes em posiccedilotildees sociais

consideradas inferiores como eacute o caso de uma mulher indefesa sujeita ao rapto ou ainda de

modo a angaria a antipatia dos leitores como eacute o caso da aduacuteltera

12 A praacutetica latina

Com efeito Winterbottom (1980 p 10) observa que as personagens habituais

presentes nas declamaccedilotildees latinas tambeacutem parecem ser inspiradas no ambiente cultural

helecircnico ou ao menos recebidas do contato com as declamaccedilotildees gregas talvez pela leitura

das proacuteprias declamaccedilotildees ou atraveacutes dos manuais de retoacuterica de origem grega que circulavam

em Roma

satildeo personagens caracteriacutesticas com as quais simpatizamos (jovens

violadas filhos deserdados tiranicidas) ou com as quais natildeo se simpatiza

(piratas pais severos tiranos) [] Destarte as raiacutezes desse mundo satildeo

helecircnicas e remontam pelo menos ateacute o quarto seacuteculo antes de Cristo

(Winterbottom 1980 p 10)

16

Incontestavelmente trata-se de mais um gecircnero literaacuterio originado entre os gregos e

transmitido aos autores latinos os quais o modificaram segundo as circunstacircncias do seu

tempo

o uso de exerciacutecios retoacutericos sobre temas judiciais e deliberativos havia sido

praticado por reacutetores gregos e por seus disciacutepulos seacuteculos antes do tempo de

Secircneca o velho e haviam entrado no programa escolar latino durante a

infacircncia de Ciacutecero pelo menos (Fairweather 1981 p 543-4)

Ao se referir a Crasso e Antocircnio mencionados no ldquoSobre o Oradorrdquo Vasconcellos

(2000 p 180) afirma ldquoa educaccedilatildeo nas escolas dos reacutetores de tradiccedilatildeo sofiacutestica consistia

sobretudo em ensinar ao aluno de oratoacuteria os preceitos teacutecnicos sobre o dizer por meio de

manuais chamados de ldquoArte Retoacutericardquo ensino demasiadamente formal e pouco eficiente na

visatildeo dos dois oradores do diaacutelogordquo O objetivo primaacuterio da declamaccedilatildeo latina era sobretudo

o exerciacutecio da eloquecircncia o tirociacutenio do discurso persuasivo (Kennedy 1980 p 108) natildeo

obstante sua praacutetica fosse mais abrangente

Com efeito como indicamos acima os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eram apenas

parte integrante do programa das escolas retoacutericas situados geralmente apoacutes as

progymnaacutesmata mas tambeacutem eram praticados nas escolas filosoacuteficas por meio do que

passaram a ser chamados de ldquothesisrdquo (Winterbottom 2006 p 94 Kennedy 1980 p 37)

Uma vez que a educaccedilatildeo retoacuterica era realizada com o intuito de obter crescimento gradual da

dificuldade ou da complexidade do discurso (Costrino 2010 p 13) as teses de temaacutetica

filosoacutefica estavam localizadas sempre ao final dos manuais de retoacuterica como os de Heacutelio

Teatildeo Hermoacutegenes Nicolau e Aftocircnio (Kennedy 1994 p 16) indicando que deveriam ser os

exerciacutecios mais complexos Segundo Marrou (1975 p 439) ldquouma vez concluiacuteda a longa seacuterie

de exerciacutecios preparatoacuterios o aluno era solicitado a redigir discursos fictiacutecios sobre um tema

dado pelo mestre e segundo as prescriccedilotildees e conselhos desterdquo

Taacutecito expressa a opiniatildeo de que as controuersiae ou seja as declamaccedilotildees do gecircnero

judicial eram mais difiacuteceis ou complexas do que as do gecircnero deliberativo

Duas espeacutecies de mateacuterias satildeo tratadas entre os reacutetores as suasoacuterias e as

controveacutersias Dessas delegam-se as suasoacuterias aos meninos jaacute que satildeo

claramente mais faacuteceis e menos exigentes quanto ao conhecimento as

controveacutersias satildeo designadas para os mais maduros (Taacutecito Diaacutelogo dos

oradores 35)

17

Tambeacutem Quintiliano apresenta sua opiniatildeo a respeito do grau de dificuldade entre os

exerciacutecios escolares de retoacuterica apresentando a prosopopeia um exerciacutecio retoacuterico anterior agrave

declamaccedilatildeo presente nos manuais de retoacuterica e componente significativo da proacutepria

declamaccedilatildeo como um dos exerciacutecios mais complexos

as prosopopeias me parecem de longe as mais difiacuteceis pois nestas a todo

trabalho da suasoacuteria acrescenta-se ainda a dificuldade da personagem pois a

mesma coisa deve ser aconselhada por Ceacutesar de um modo por Ciacutecero de

outro por Catatildeo de outro (Inst Orat III 8 49)

Pode-se dizer que a dificuldade inerente da praacutetica da suasoacuteria entendida como uma

espeacutecie de declamaccedilatildeo deliberativa a que se refere Quintiliano reside justamente na

configuraccedilatildeo do ecircthos retoacuterico apropriado para as personagens contidas no discurso e na

formulaccedilatildeo deste de modo convincente Deveria ademais ser adequado segundo o decorum

exigido pela plateia que o assiste Mas em razatildeo do conhecimento profundo das

particularidades dos preceitos que as controveacutersias envolviam somados agrave aplicaccedilatildeo da

caracterizaccedilatildeo do ecircthos o gecircnero judicial deveria ser o mais complexo Pode-se entatildeo

concluir que as declamaccedilotildees se configuravam como o uacuteltimo estaacutegio da formaccedilatildeo retoacuterica de

um cidadatildeo romano Eram esta os exerciacutecios das suasoriae e por fim das controuersiae ou

vice-versa

Ademais deve-se dizer que uma vez que a precisatildeo histoacuterica das datas nomes e

situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se imprecisotildees

(Wolf 2013 p 270) pode-se dizer que o principal virtuosismo do declamador residia na

capacidade de adequar os diversos elementos da declamaccedilatildeo como o tema com o caraacuteter

(ethos) da assembleia e das personagens fictiacutecias envolvidas pois o foco da praacutetica

declamatoacuteria era o exerciacutecio da eloquecircncia segundo os ditames dos manuais de retoacuterica

13 As fontes latinas

Diversos autores latinos trataram da declamaccedilatildeo ou dos declamadores subdividos

genericamente em dois grupos aqueles do periacuteodo republicano como Ciacutecero e aqueles do

periacuteodo imperial como Oviacutedio (Arte amatoacuteria) Juvenal (Saacutetira 10 165-169) Taacutecito

(Diaacutelogo sobre os oradores 35) Calpurnio Flaco (Declamaccedilotildees) Suetocircnio (Sobre os reacutetores

e Sobre os gramaacuteticos e os reacutetores) Secircneca e Quintiliano Em Oviacutedio (Arte amatoacuteria 1 465-

469) por exemplo declamare ocorre com o sentido de falar com algueacutem em tom

18

declamatoacuterio O discurso do amante teraacute a eloquecircncia persuasiva que convence o povo (nas

assembleias) o juiz (nos tribunais) e os senadores (no senado) Mas essa eloquecircncia natildeo deve

trair afetaccedilatildeo como mero artifiacutecio Oviacutedio prega aqui a retoacuterica cuja arte se esconde (lateant

uires) O amante natildeo deve parecer estar fazendo um discurso para a amada

Entretanto a anaacutelise das ocorrecircncias do radical do substantivo declamatio ou do verbo

declamare denota que algumas obras contecircm maior nuacutemero e relevacircncia para o estudo da

evoluccedilatildeo histoacuterica da declamaccedilatildeo latina enquanto gecircnero Eacute justamente a consideraccedilatildeo do seu

conteuacutedo e do seu contexto histoacuterico que sugerem a hipoacutetese de que a declamaccedilatildeo do tempo

de Ciacutecero natildeo era idecircntica a de Quintiliano e Secircneca o Velho

131 Discussatildeo terminoloacutegica

A terminologia com a qual se denominavam os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eacute uniacutevoca

entre os escritores que trataram de exerciacutecios idecircnticos ou equiparaacuteveis agrave declamaccedilatildeo na

literatura latina entre o seacuteculo I a C e o seacuteculo I d C Mendelson (1994 p 96) discorre sobre

um desses problemas terminoloacutegicos

No tempo de Ciacutecero a declamaccedilatildeo forense ou caso legal era conhecida

simplesmente como causa enquanto que posteriormente jaacute sob o Imperium

passou a ser conhecida como scholastica ou tema-escolar a fim de indicar o

modo por assim dizer restrito nos quais surgiam tais discursos artificiais

Schwartz (2004 p 65-66) sintetiza esta controveacutersia

No que diz respeito ao periacuteodo preacute-ciceroniano cuja caracteriacutestica segundo

Secircneca eram os exerciacutecios que recebem o nome grego de thesis (tese) o

material de que dispomos para nos referir a ele eacute bem escasso e portanto

torna-se difiacutecil chegar a conclusotildees definitivas Quintiliano define as theseis

ou quaestiones infinitae (questotildees indefinidas) em oposiccedilatildeo agraves causae (causas)

ou quaestiones finitae (questotildees definidas) proacuteprias do acircmbito judicial As

questotildees indefinidas eram discussotildees dialeacuteticas em que os participantes

defendiam uma ou outra das posiccedilotildees em conflito (in utramque partem) sem

referecircncia a pessoas tempos lugares e outras circunstacircncias (cf Quint III

55) Tratava-se de temas gerais de natureza abstrata especulativa ou

filosoacutefica Tais exerciacutecios desenvolvidos com frequecircncia nas escolas dos

filoacutesofos eram adequados agrave elaboraccedilatildeo de loci communes que tambeacutem eram

utilizados na oratoacuteria forense na declamaccedilatildeo e ateacute em gecircneros poeacuteticos como

a saacutetira Quintiliano afirma que a questatildeo indefinida eacute mais ampla que a causa

que eacute derivada dela Assim a questatildeo indefinida ldquodeve o homem casarrdquo (an

uxor ducenda) eacute logicamente preacutevia agrave questatildeo definida ldquodeve Catatildeo casarrdquo (an

Catoni ducenda) (cf Quint III 5 8) Haacute na definiccedilatildeo de Quintiliano portanto

uma antecedecircncia loacutegica da tese a respeito da causa mas nada obriga a pensar

que tal deva ter sido a ordem histoacuterica em que sucederam essas classes de

19

exerciacutecios Ao contraacuterio haacute evidecircncias de que exerciacutecios de tipo judicial

devem ter existido bem antes da eacutepoca de Ciacutecero Talvez o problema seja

sobretudo terminoloacutegico Com efeito eacute possiacutevel que Secircneca ao falar em

ldquotesesrdquo estivesse pensando em outros exerciacutecios diferentes dos praticados em

escolas de filosofia

No tocante agrave comparaccedilatildeo das declamaccedilotildees latinas supeacuterstites que haviam sido

realizadas ao longo dos seacuteculos I a C e I d C com os trecircs gecircneros de discurso presentes na

tradiccedilatildeo retoacuterica greco-romana pode-se dizer que tratavam basicamente de dois tipos de

causae deliberativa (suasoria) ou juriacutedica (controuersia) (Mendelson 1994 p 93) Quanto

ao epidiacutetico ao menos em Secircneca o Velho natildeo se encontram exemplos de declamaccedilotildees

realizadas com predominacircncia deste gecircnero Como veremos Quintiliano admitiraacute o uso do

demonstrativo ou laudativo entendido como tendo por objetivo principal o elogio ou a

vituperaccedilatildeo como um recurso argumentativo nas declamaccedilotildees deliberativas ou judiciais

132 O contexto republicano e o imperial

Ao comparar a praacutetica da declamaccedilatildeo no final da repuacuteblica e no iniacutecio do Impeacuterio

identificou-se que este gecircnero sofreu algumas alteraccedilotildees no tocante agrave terminologia e agrave forma

Ela havia deixado de ser um mero exerciacutecio das escolas de retoacuterica ou um termo aplicado agrave

praacutetica privada de um exerciacutecio oratoacuterio para tornar-se nos primeiros anos de Augusto uma

performance puacuteblica atraente em todas as classes sociais inclusive nas mais elevadas

A partir de Augusto as salas de declamaccedilatildeo constituem um espaccedilo que reuacutene

oradores reconhecidos assim como personalidades da vida puacuteblica (Contr II

412-13) Conveacutem distinguir aqui entre a declamaccedilatildeo como praacutetica escolar dos

jovens na aula do reacutetor e a declamaccedilatildeo como espetaacuteculo puacuteblico Com efeito

nas proacuteprias escolas de declamaccedilatildeo se realizavam periodicamente exibiccedilotildees

puacuteblicas das declamaccedilotildees jaacute preparadas por alunos e o reacutetor Natildeo era raro que

nestas ocasiotildees participassem ativamente convidados alheios agrave escola (Contr

III praef 16 Contr X praef) Desse modo a declamaccedilatildeo comeccedila

progressivamente a se tornar independente da finalidade de preparar para a

oratoacuteria e se converte em um fim em si mesmo (Schwartz 2000 p 275)

Esta fase antecedeu o decliacutenio por assim dizer do prestiacutegio desse gecircnero na virada do

I ao II seacuteculo d C conforme as criacuteticas de Taacutecito que identificava poucos ldquoautecircnticos

oradoresrdquo (Diaacutelogo sobre os oradores 14 4) Mas essa criacutetica pode ser relativizada se

considerarmos a popularidade da declamaccedilatildeo na Roma Imperial pois embora fosse uma arte

nascida na escola Suetocircnio (Vida de Antocircnio 84 Vida de Nero 10) atesta sua presenccedila e

exerciacutecio inclusive por imperadores Por outro lado durante o I seacuteculo a C embora Pisatildeo e

20

Pompeu tivessem se exercitado na declamaccedilatildeo (Ciacutecero Brutus 309-310) seu status natildeo era

comparaacutevel ao da oratoacuteria uma vez que ao contraacuterio do que se daria um seacuteculo mais tarde a

declamaccedilatildeo no tempo de Ciacutecero era contestada por aristocratas como Messala ou Poacutelio que

a assemelhavam agraves praacuteticas do tatro cocircmico desprezadas pela alta sociedade romana (Conte

1999 p 405) Destarte identifica-se entatildeo uma ascensatildeo da declamaccedilatildeo puacuteblica que teria

chegado a um apogeu de prestiacutegio nos primeiros dececircnios do seacuteculo I d C natildeo somente pelo

proacuteprio desenvolvimento do gecircnero mas pela ldquodecadecircnciardquo da oratoacuteria apoacutes seu afastamento

dos padrotildees ciceronianos (Schwartz 2004 p 2) A teoria segundo a qual o auge da oratoacuteria se

refletiu na accedilatildeo e nos escritos de Ciacutecero sendo este o padratildeo adequado para a praacutetica

declamatoacuteria eacute encontrada nas ldquoDeclamaccedilotildeesrdquo de Secircneca o Velho e no ldquoDiaacutelogordquo de Taacutecito

A declamaccedilatildeo seria por assim dizer a herdeira e a substituta da oratoacuteria um gecircnero cujo

sentido original soacute poderia ser vivido e praticado na Repuacuteblica devido agrave falta de liberdade de

expressatildeo durante o periacuteodo imperial

Segundo Edward (1928 p xvi-xvii) essa ascensatildeo teve origem na transformaccedilatildeo do

sistema poliacutetico romano

Como eacute que aquilo que fora primeiramente um mero exerciacutecio das escolas de

retoacuterica ou um termo aplicado agrave praacutetica privada de um orador distinto tornou-

se nos primeiros anos do reinado de Augusto uma performance puacuteblica e

atraente uma coisa praticada por si mesma e de certo modo algo pelo qual

todas as classes sociais se animavam O motivo deve ser encontrado na

mudanccedila de condiccedilotildees poliacuteticas A repuacuteblica estava extinta desde Filipos uma

vez estabelecido finalmente o poder de Augusto no Aacutecio o priacutencipe

concentrou todo o poder em suas proacuteprias matildeos as assembleias do povo eram

entatildeo desorganizadas ou de relevacircncia poliacutetica insignificante as deliberaccedilotildees

do senado perderam significado e efetividade suas decisotildees poderiam ser

revogadas a qualquer momento pela intervenccedilatildeo individual do Imperador A

oratoacuteria livre sobre temas relevantes tais como aqueles que inspiraram a

eloquecircncia ciceroniana jaacute natildeo podia ser ouvida Pleitos autecircnticos em que a

decisatildeo poderia ser desenvolvida por um advogado estavam confinados agraves

cortes centuriais e a causas natildeo se prestavam agrave oratoacuteria

A mudanccedila do regime republicano para o imperial eacute comparaacutevel agrave transformaccedilatildeo

gradual da declamaccedilatildeo e da sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria Um dos reflexos dessa interferecircncia

do sistema poliacutetico sobre a oratoacuteria daacute-se justamente segundo Schwartz (2004 p 2) na

ldquoreduccedilatildeo significativa do terreno para o desenvolvimento do gecircnero deliberativo uma vez

que sob o principado o senado perde sua independecircncia efetiva e junto com ela restringem-

se consideravelmente as possibilidades tradicionais do discurso oratoacuteriordquo

21

Natildeo sem razatildeo a declamaccedilatildeo tinha por modelo supremo de eloquecircncia a proacutepria

oratoacuteria mais especificamente a ciceroniana (Secircneca Contr I praef 6) e que deveria ser

imitado Quintiliano por exemplo aleacutem de tratar das declamaccedilotildees em sua ldquoInstituiccedilatildeo

Oratoacuteriardquo cita ou menciona Ciacutecero 362 vezes Tal padratildeo de imitaccedilatildeo persistiria ao longo dos

seacuteculos entre os reacutetores latinos desde o seacuteculo I d C com Quintiliano ateacute a polecircmica do

Ciceronianismo durante o seacuteculo XVI

Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as reais

necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de temas

mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Para ele a declamaccedilatildeo era o ldquomais uacutetil de todos os

exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) Assim esta natildeo era apenas um treino

para jovens aprendizes da eloquecircncia pois

seria um erro julgar que na Antiguidade a declamaccedilatildeo estava restrita agraves

escolas de retoacuterica Os adultos inclusive os homens de accedilatildeo jaacute ceacutelebres mas

afastados provisoriamente da vida poliacutetica ou dos tribunais se exercitavam

com as declamaccedilotildees a fim de natildeo perderem o haacutebito da eloquecircncia Em 46 a

C quando Ceacutesar era ditador Ciacutecero lecionava oratoacuteria a Hiacutercio e a Dolabella

(Kennedy 1980 p 37)

A declamaccedilatildeo antiga tinha portanto um puacuteblico alvo anaacutelogo agravequele humanista que

surgiraacute depois De fato a importacircncia da oratoacuteria e por consequecircncia das teorias retoacutericas

na vida romana eacute determinante Poliacutetica jurisprudecircncia ndash e inclusive o comando militar ndash

dependiam do modo pelo qual os dirigentes articulavam a palavra O homem poliacutetico era

justamente aquele capaz de comunicar-se com o puacuteblico ao qual cabia tomar decisotildees seja no

contexto judicial seja no contexto deliberativo Eacute por essa razatildeo que o puacuteblico-alvo do

declamador era a classe dominante seja a parte que ainda estava em formaccedilatildeo no contexto

escolar seja aquela jaacute ldquoformadardquo que se exercitava ou se deleitava com o exerciacutecio em

ciacuterculos de maior intimidade Se a declamaccedilatildeo latina visava os magistrados no primeiro caso

ou se no segundo caso simulava o senado no regime republicano ou no regime imperial o

discurso visava justamente agraves pessoas que deveriam decidir pela deliberaccedilatildeo poliacutetica Sobre

os destinataacuterios da declamaccedilatildeo romana afirma Bernstein (2009 p 332)

Os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da alta

classe romana do imperador cuja presenccedila eacute mencionada por Secircneca (Contr

II412ndash13) aos estudantes que poderiam ter usado essa literatura como

material pedagoacutegico

22

14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos

141 A Retoacuterica a Herecircnio

Haacute trecircs referecircncias ao vocaacutebulo declamatio na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (III 20) Estas satildeo

as mais antigas na literatura latina pois esta obra teria sido escrita por um autor desconhecido

na primeira metade do seacuteculo I a C (Caplan1954 XVII)3 Para Bonner (1949 p 20) existe

uma conexatildeo proacutexima com o termo grego ἀναθώνηζις e o gecircnero declamaccedilatildeo De fato nesse

escrito por muito tempo equivocadamente atribuiacutedo a Ciacutecero mas cuja paternidade

ciceroniana jaacute era posta em duacutevida durante o Renascimento apresenta-se o termo declamaccedilatildeo

como um verdadeiro exerciacutecio oral justamente por tratar da pronuntiatio ou seja da forma

da locuccedilatildeo adequada a persuadir e a agradar a audiecircncia especialmente ao abordar os pontos

da firmeza (firmitudo) e da suavidade (mollitudo) da voz Caplan (ibid xvII) em sua

introduccedilatildeo agrave ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo comenta que as escolas retoacutericas latinas realizavam a

declamaccedilatildeo conforme os manuais os quais refletem a praacutetica escolar O texto apresenta os

exerciacutecios de forma enfaacutetica na forma de progymnaacutesmata estabelece as formas proacuteprias de

vaacuterios gecircneros discursivos o epidiacutetico (demonstratiuum) o deliberativo (deliberatiuum

deliberationes suαsoriae) e judiciaacuterio (iudiciale causae controuersiae) Deve-se notar que o

autor desenvolve alguns exemplos de declamaccedilotildees certamente inspiradas nas declamaccedilotildees

gregas Algumas destas discutem sobre o tema da paz e da guerra

142 Ciacutecero

Erasmo considerava Ciacutecero entre outros autores uma autoridade no que diz respeito agrave

composiccedilatildeo em prosa (Epiacutestola 20 Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31) Segundo

Chomarat (1981 p 935) Mendelson (1994 p 94) e Winterbottom (2006 p 76) na eacutepoca de

Ciacutecero havia duas noccedilotildees essenciais de declamaccedilatildeo que a caracterizam como portadora de

3 Quanto agrave data conveacutem citar tambeacutem outras opiniotildees como a do editor da obra para a Belles Lettres Achard

que palpita ldquoElle paraicirct donc se situer entre le mi de 86 et la fin de 83 Une telle datation s‟accorde parfaitement

avec l‟intention de l‟auteur et le contenu du livrerdquo (Achard 1997 p vii) E mais adiante ldquoPour toutes ces

raisons on peut consideacuterer comme assureacute que la Rheacutetorique agrave Herennius a eacuteteacute eacutecrite entre la mi-86 et le deacutebut de

82rdquo (Ibid p xii)

23

temas fictiacutecios ou como praacutetica de um exerciacutecio da elocuccedilatildeo (Kennedy 1980 p 37)

conforme o sentido escolar do termo μελέηη4

Na obra de Ciacutecero (Bonner 1949 p 27) haacute dez referecircncias agrave declamaccedilatildeo seja na

forma de substantivo seja na forma de verbo nas ldquoDisputas tusculanasrdquo (17) a palavra

ocorre como o sentido de exerciacutecio da palavra mas na oraccedilatildeo ldquoPor Placircnciordquo (47) em sentido

depreciativo eacute atribuiacuteda a um discurso banal ou proposiccedilatildeo refutaacutevel um protesto barulhento

Nota-se tambeacutem o sentido de invectivar contra ou sobre uma pessoa (Contra Verres 4 49

Epiacutestulas aos Familiares 3 11 2) Ciacutecero tambeacutem fala do declamator (Por Placircncio 83) ou

do exerciacutecio declamatorius (Orador 47) Haacute em Ciacutecero uma variante para o verbo declamar

declamitare (Epiacutestola LX a Papirio Paeto) Este uacuteltimo lido no contexto parece ter o sentido

como exerciacutecio veemente da declamaccedilatildeo ou da execuccedilatildeo reiterada de exerciacutecios de locutio

(Brutus 310 Sobre o orador 1251) Pode ser exercido para desprestigiar um contendor

(Filiacutepicas 5 19) ou para agradar os ouvintes (Disputas Tusculanas 1 7) Eacute em Ciacutecero que

ocorre a primeira distinccedilatildeo dos subgecircneros da declamaccedilatildeo quanto ao tipo de causa ou tema

deliberativa ou suasoacuteria (Por Rocio Amerino 82) juriacutedica ou causae (Disputas Tusculanas

1 7)

143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho

Manoel (2014 p 37) contudo ao tratar dos exerciacutecios de declamaccedilatildeo nos tempos de

Ciacutecero em comparaccedilatildeo com as declamaccedilotildees do periacuteodo imperial reconheceu que ldquofoi apoacutes o

fim da Repuacuteblica que teve iniacutecio a era das declamaccedilotildeesrdquo ou seja o periacuteodo no qual sua

praacutetica talvez tenha atingido uma espeacutecie de apogeu devido ao grau de difusatildeo da sua praacutetica

na sociedade romana e agrave maior quantidade e qualidade de registros escritos ainda

conservados Segundo Schwartz (2004 p 8) e Russel (2009 p 2) para a compreensatildeo das

caracteriacutesticas fundamentais desse gecircnero no periacuteodo imperial eacute fundamental considerar as

ldquoControveacutersiasrdquo (em dez livros) e as ldquoSuasoacuteriasrdquo de Secircneca o Velho Este discorreu sobre o

gecircnero declamatoacuterio nos prefaacutecios agraves controveacutersias escritos provavelmente nas deacutecadas de 20

ou 30 d C A importacircncia desse autor se verifica por ter vivido em uma eacutepoca na qual a

declamaccedilatildeo passou a ser realizada publicamente a fim de deleitar a audiecircncia e tomando o

4 Deve-se ainda acrescentar que aleacutem do sentido de exerciacutecio o termo tinha o sentido de cuidar Era usado

inclusive no contexto militar e medicinal (Cf Bailly Anatole Le Grand Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris

Hachette 2000 Voz μελέηη)

24

lugar da antiga oratoacuteria (Conte 1999 p 404) Redigidas em idade avanccedilada suas

declamaccedilotildees judiciais podem ser entendidas como escritas a pedido de seus filhos ou para a

instruccedilatildeo destes (Schwartz 2004 p 80) dadas as diversas referecircncias e locuccedilotildees direcionadas

explicitamente a estes em vaacuterios prefaacutecios (Secircneca Contr Pr 1 3 4 6 9 10 13 19 20 22)

Segundo Bloomer (1997 p 204) esta indicaccedilatildeo de destinataacuterios consanguiacuteneos natildeo deve ser

entendida senatildeo como uma estrateacutegia retoacuterica com um significado social a fim de simular

uma recomendaccedilatildeo agrave comunidade ou um ensino a disciacutepulos Sobre os destinataacuterios desta

declamaccedilatildeo conforme afirma Bernstein (2009 p 332) baseando-se em Secircneca (Contr II 4

12-13) os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da classe alta

conforme acima mecionamos

As ldquoControveacutersiasrdquo abordam setenta e quatro casos legais imaginaacuterios nos quais o

autor estabelece pareceres dos reacutetores sobre cada caso a partir de diferentes pontos de vista

(Salum 2010 p 119) Nos prefaacutecios apresentam-se as caracteriacutesticas individuais dos reacutetores

as quais satildeo discutidas de forma irocircnica eou pedagoacutegica As controveacutersias de Secircneca poreacutem

natildeo satildeo escritas de forma completa tal como foram ou teriam sido pronunciadas mas de

forma sintetizada (Schwartz 2004 p 8) Estas se diferenciam das declamaccedilotildees escritas em

grego cuja transcriccedilatildeo era integral sendo redigidas tais como haveriam de ser pronunciadas

a exemplo de Libacircnio Coriacutecio e Plutarco

A obra de Secircneca goza de eminente autoridade para a histoacuteria da oratoacuteria e da

declamaccedilatildeo Na opiniatildeo de Salum (2010 p 119) as ldquoControveacutersiasrdquo apresentam uma espeacutecie

de galeria de declamadores os quais personificam compreensotildees retoacutericas diversificadas

Aleacutem disso tambeacutem evoca uma distinccedilatildeo da declamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria e procura

estabelecer as qualidades imprescindiacuteveis do gecircnero conforme consta no prefaacutecio da terceira

controveacutersia (Contr III pr 7)

Segundo a leitura dos prefaacutecios denota-se que seu orador ldquoidealrdquo era Ciacutecero o qual eacute

apresentado inclusive como o primeiro dos declamadores latinos (Schwartz 2004 p 12)

embora essa afirmaccedilatildeo possa contrariar o que o proacuteprio Secircneca pensava a respeito da

declamaccedilatildeo no final da Repuacuteblica ldquoCiacutecero poreacutem natildeo declamava entatildeo estas a que

chamamos controveacutersias nem aquelas outras que eram pronunciadas antes de Ciacutecero e que

se chamavam thesis Noacutes dizemos controveacutersias mas Ciacutecero lhes chamava causasrdquo (Secircneca

Contr I pr 12) Aleacutem do problema de que algumas das causas ciceronianas poderiam ser

25

reais (histoacutericas) e natildeo fictiacutecias deve-se afirmar que o texto supracitado de Secircneca

problematiza a terminologia acerca da declamaccedilatildeo como ao afirmar que Cicero causas

vocabat

Secircneca cujos prefaacutecios estabelecem a declamaccedilatildeo como um gecircnero literaacuterio

autocircnomo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria apresenta alguns conceitos imprescindiacuteveis para sua

caracterizaccedilatildeo tais como a noccedilatildeo de sententia entendida como frase epigramaacutetica utilizada

para impressionar o leitor ou os ditados ou aforismos geralmente conclusivos do argumento

a diuisio que seria uma breve apresentaccedilatildeo do esquema argumentativo proposto era

fundamentada nas noccedilotildees de iustitia (justiccedila) no ius (direito) e na utilitas (interesse) e o

color entendido como ldquoo estilo com o qual o declamador apresenta a situaccedilatildeo ou seja

contava-se a acumulaccedilatildeo de figuras retoacutericas o ritmo do periacuteodo etcrdquo (Conte 1999 p 405)

Por outro lado Schwartz (2004 p 9) entende que o color seria ldquoo motivo imaginado para

justificar uma accedilatildeo de uma personagem em uma controveacutersiardquo O color concebido segundo a

conceituaccedilatildeo de Secircneca no contexto de uma controveacutersia era atribuiacutedo ao ato passado do

personagem descrito no thema (Fairweather 1981 p 32) por vezes no iniacutecio ldquoeste color foi

usado e logo atribui a ele desde o princiacutepiordquo (Contr I 1 24) ou ao longo desta ldquoAlbuacutecio

natildeo narrou mas erigiu este color desde o iniacuteio ateacute o finalrdquo (Contr I 1 24) Secircneca descreve o

color do discurso como sendo prudente temperado duro aacutespero ou severo Caracteres

anaacutelogos eram atribuiacutedos a um ou a todos os personagens da controveacutersia (Winterbottom

1980 p 171) Muitas vezes estava presente logo na narratio entendida como ldquouma descriccedilatildeo

sobre os principais atos cometidosrdquo (Van Mal-Maeder 2007 p 71) e que fornecem o cerne da

questatildeo a ser discutida na declamaccedilatildeo

Apesar do testemunho equivocado de Secircneca o Velho a respeito da origem da

declamaccedilatildeo ao mencionaacute-la como rem post me natam (Contr I 12) o estudo deste gecircnero

com base em seu escritos se faz importante natildeo somente em razatildeo das suas consideraccedilotildees

acerca das caracteriacutesticas essenciais acima mencionadas mas tambeacutem porque descreveu o

contexto histoacuterico e a praacutetica desta forma de discurso em seu tempo como uma espeacutecie de

retrocesso qualitativo (Secircneca Contr I pr 6) Conte (1999 p 404) observa que justamente a

mudanccedila de regime poliacutetico da Repuacuteblica ao Impeacuterio fez com que a declamaccedilatildeo se alterasse

pois a praacutetica oratoacuteria natildeo gozava da mesma liberdade de expressatildeo de antes com a

decadecircncia do Senado e a ausecircncia de praacutetica oratoacuteria na formaccedilatildeo do orador Os oradores

26

passaram a ser vistos com desconfianccedila por uma administraccedilatildeo que natildeo tolerava criacuteticas Natildeo

sem razatildeo os autores notam a decadecircncia da eloquentia apoacutes a morte de Ciacutecero natildeo pela falta

de gecircnios mas pela falta de liberdade de expressatildeo da opiniatildeo poliacutetica individual (Schwartz

2004 p 91) Entretanto a praacutetica das declamaccedilotildees se tornou um espetaacuteculo puacuteblico e

paulatinamente foi tomando o lugar da ldquorobusta oratoacuteria expressa pelos tempos de Ciacutecerordquo

(Sussman 1972 p 197) Schwartz sintetiza o papel e as incongruecircncias da praacutetica da

declamaccedilatildeo no periacuteodo republicano e sua heranccedila para a literatura latina

[as declamaccedilotildees] pelo fato de natildeo fazerem parte do campo tradicionalmente

mais livre da poesia nem de serem tampouco redutiacuteveis agrave simples funccedilatildeo

ancilar de exerciacutecio escolar colocava-as em um ldquonatildeo-lugarrdquo Essa orfandade

no entanto resultou em um vazamento da retoacuterica escolar sobre os outros

gecircneros discursivos Nesse processo eacute todo o campo da eloquecircncia que se

torna ldquodeclamatoacuteriordquo (Schwartz 2004 p 10)

Nos prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo Secircneca desaprovava as tendecircncias floridas da

oratoacuteria de seu tempo ou conforme supotildee Salum (2010 p 119) apresenta personagens como

portadores de defeitos e virtudes da declamaccedilatildeo a fim de teorizar sobre caracteriacutesticas

essenciais desta Para citar um exemplo uma passagem do prefaacutecio da segunda controuersia

expressa uma criacutetica ao estilo asiaacutetico de um aluno de Areacutellio Fusco que tinha certa propensatildeo

agrave filosofia Fabiano Papiacuterio ldquoseu arranjo de palavras efeminado demais para que um espiacuterito

que se prepara com preceitos tatildeo santos e rigorosos pudesse suportaacute-lardquo (Contr II 1) Secircneca

criticou a atividade de alguns declamadores aos quais atribuiacutea o anseio impreteriacutevel de

impressionar o puacuteblico atraveacutes de vazias frases de efeito pelo uso inapropriado das sententiae

marca essencial do gecircnero declamatoacuterio A sentenccedila eacute um silogismo incompleto mas natildeo

iloacutegico que prestigia as informaccedilotildees de interesse do declamador e que visa a impressionar o

ouvinte natildeo tanto pelo silogismo mas pela beleza ou forccedila da expressatildeo Nessa estrutura a

noccedilatildeo de sententia era fundamental pois ldquoesta procurava produzir o efeito mais do que a

loacutegica do periacuteodordquo (Salum 2010 p 119) ainda que natildeo abstraiacuteda a dimensatildeo retoacuterica do

logos Utilizava no entanto o entimema que segundo a conceituaccedilatildeo aristoteacutelica natildeo era

iloacutegico mas apenas apresentava o raciociacutenio de um modo incompleto e essencial a fim de ser

compreendido de forma mais direta pelo ouvinte ou mesmo enganaacute-lo e tornar o argumento

irresistivelmente persuasivo em contraponto com o raciociacutenio dialeacutetico desenvolvido em

todas as suas premissas poreacutem menos convincente

Entre as provas fornecidas pelo discurso distinguem-se trecircs espeacutecies umas

residem no caraacuteter moral do orador outras nas disposiccedilotildees que se criaram no

27

ouvinte outras no proacuteprio discurso pelo que ele demonstra ou parece

demonstrar Obteacutem-se a persuasatildeo por efeito do caraacuteter moral quando o

discurso procede de maneira que deixa a impressatildeo de o orador ser digno de

confianccedila [] Obteacutem-se a persuasatildeo nos ouvintes quando o discurso os leva a

sentir uma paixatildeo [] Enfim eacute pelo discurso que persuadimos sempre que

demonstramos a verdade ou o que parece ser a verdade de acordo com o que

sobre cada assunto eacute suscetiacutevel de persuadir (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 3-8

traduccedilatildeo Antocircnio de Carvalho 1999 p 33-34)

Silogismo significa basicamente calcular ou raciocinar em conexatildeo Uma das

caracteriacutesticas desse tipo de discurso eacute a formaccedilatildeo completa da sentenccedila loacutegica que atraveacutes de

proposiccedilotildees compostas atribuem verdade ou falsidade ao conceito exposto No discurso

dialeacutetico essas proposiccedilotildees compostas satildeo muitas vezes interligadas por conectivos

conformando assim oraccedilotildees coordenadas ou subordinadas Por isso Aristoacuteteles atribuiacutea ao

discurso retoacuterico a necessidade do conhecimento adequado das emoccedilotildees e das paixotildees

humanas O homem natildeo eacute persuadido pelo mero raciociacutenio Eacute necessaacuterio apelar agraves emoccedilotildees

Tal propoacutesito foi perseguido pela oratoacuteria sobretudo no ambiente republicano e sua

ldquoherdeirardquo nos tempos imperiais a declamaccedilatildeo

Por outro lado segundo Conte (1999 p 405)

Dado o caraacuteter fictiacutecio das situaccedilotildees e as muitas premissas o anseio do orator

natildeo eacute tanto persuadir mas sim deixar a audiecircncia atocircnita e ele para isso

recorre aos mais engenhosos truques da linguagem e da imaginaccedilatildeo O

maneirismo das formas torna exagerado o uso dos colores o termo teacutecnico

que indica a manipulaccedilatildeo inteligente de uma situaccedilatildeo ou de um conceito e

capaz de apresentar a mateacuteria em matildeos sob o aspecto mais surpreendente Na

busca do efeito e dos aplausos do auditoacuterio o orator tambeacutem faz uso de um

estilo precioso brilhante aquele que recorre a todos os artifiacutecios de asianismo

do acuacutemulo de figuras retoacutericas a uma expressatildeo densamente epigramaacutetica a

fim de cuidar do ritmo do periacuteodo

Secircneca tambeacutem caracteriza a declamaccedilatildeo com dois traccedilos distintivos em primeiro

lugar ao tratar da puacuteblica afirmava que esta visava a dar impressatildeo de improviso por meio da

velocidade (Contr IV 7) Em segundo lugar aleacutem da aparecircncia de algo natildeo preparado

deveria ter especial cuidado com o tom de voz tal como os manuais como a ldquoRetoacuterica a

Herecircniordquo preceituavam Um orator ou um ou um rhetor era desprestigiado caso seu trabalho

fosse assemelhado ao teatro cocircmico (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 7-8) uma vez que em

Roma os costumes dos artistas que atuavam na comeacutedia eram extremamente mal vistos E de

fato a comeacutedia era exercida por profissionais desprezados na alta sociedade romana Desse

modo muitas vezes atribuiacutea-se agravequele que atuava uma depravaccedilatildeo moral contra os costumes e

28

o mos maiorum A sua accedilatildeo (actio) se caracterizava exagerada e a modulaccedilatildeo no volume da

voz a fim de se fazer ouvir e entender adequadamente pela assembleia eram desagradaacuteveis em

comparaccedilatildeo agrave oratoacuteria ldquoprofissionalrdquo dos oradores do Foacuterum e do Senado Como a recitaccedilatildeo

da declamaccedilatildeo implicava no uso de uma locutio por vezes enfaacutetica somada ao uso da

prosopopeia os declamadores procuravam fugir do perigo de serem considerados meros

comediantes Disso resulta a grave criacutetica ao perigo de incorrer no ridiacuteculo como Secircneca

impunha agravequeles que natildeo regulavam bem a tonalidade da voz (Contr IV 10)

144 A suasoacuteria em Secircneca

Como dissemos as declamaccedilotildees de Secircneca estavam subdivididas em dois tipos as

controuersiae e as suasoriae As controveacutersias pertencem ao gecircnero judicial e consistiam no

julgamento de um caso fictiacutecio que se baseava na legislaccedilatildeo romana ou em leis fictiacutecias

(Bonner 1949 p 258) Jaacute as suasoacuterias fazem parte do gecircnero deliberativo e versavam sobre

temas mitoloacutegicos e histoacutericos Nelas o aluno tinha a finalidade de simular adequadamente o

discurso de uma personagem convencer a assembleia fictiacutecia segundo o propoacutesito de sua

causa e deleitar o puacuteblico real por meio de uma simulaccedilatildeo de discurso estruturado com uma

prosopopeia Esta personificaccedilatildeo deveria simultaneamente se adaptar ao objeto (res) ao

puacuteblico e agrave personagem que representa Daiacute se conclui a relaccedilatildeo da personificaccedilatildeo com a

noccedilatildeo aristoteacutelica de ecircthos mencionada acima e a sermocinatio tal como comenta Schenk

(1982 p 115-116)

A suasoria uma declamaccedilatildeo ensinada nas escolas de retoacuterica mais do que um

exerciacutecio elementar lecionado na escola de gramaacutetica exigia um auditoacuterio e

sua finalidade era preponderantemente a persuasatildeo Toda suasoacuteria era em

parte uma interpretaccedilatildeo pois o disciacutepulo ao compocirc-la tinha de assumir um

papel de preceptor ou conselheiro e portanto tinha de adaptar seus

ldquoargumentos seu modo sua tonalidade ao tipo de ouvinte quem quer que

fosse seja um cidadatildeo comum um soldado um senador um membro do

conselho militar um mensageiro em conformidade com as circunstacircncias do

debaterdquo (Bonner 1949 p 285) Mas o disciacutepulo tambeacutem tinha de convencer a

figura histoacuterica ou mitoloacutegica especiacutefica que eles estavam aconselhando ao

modo de actio O jovem aluno deveria aconselhar por assim dizer os

espartanos a resistir nas Termoacutepilas ou Agamenon a sacrificar sua filha

Ifigecircnia ou natildeo

Merecem especial destaque as suasoacuterias I II IV que tratam sobre a deliberaccedilatildeo da

conquista dos mares e da guerra com argumentos a favor e contra A primeira ldquoSuasoacuteriardquo

mencionada na Controuersia (VII 7 19) trata sobre Alexandre o Grande rei da Macedocircnia

29

O declamador coloca-se no lugar de um dos membros do conselho e discute se apoacutes a

conquista da Aacutesia e da Iacutendia o monarca deve atravessar o oceano Jaacute na segunda ldquoSuasoacuteriardquo

que eacute intitulada ldquoOs trezentos espartanos enviados contra Xerxes uma vez que os grupos de

trezentos enviados de toda a Greacutecia fugiram deliberam se tambeacutem eles proacuteprios fugiratildeordquo

trata sobre o episoacutedio dos 300 espartanos que haviam enfrentado os persas comandados por

Xerxes por ocasiatildeo da segunda invasatildeo (480 a C) em Termoacutepilas (Cf Heroacutedoto Histoacuteria

VII) Nesta suasoacuteria vaacuterios declamadores apresentam argumentos a favor e contra a fuga dos

espartanos Destaca-se o discurso de Fusco segundo Secircneca

Nesta suasoacuteria Fusco usou aquela divisatildeo popular dizendo que natildeo era

honroso fugir mesmo que fosse seguro em seguida que era igualmente

perigoso fugir ou lutar e por uacuteltimo que era mais perigoso fugir Os inimigos

deviam ser temidos por aqueles que lutam tanto os inimigos quanto os aliados

deviam ser temidos por aqueles que fogem (Suas II 11 Traduccedilatildeo de

Costrino p 2010 p 58)

A segunda ldquoSuasoacuteriardquo traz como tema tipicamente deliberativo questotildees que evocam a

guerra e o ofiacutecio do combatente como algo digno vendo-a como algo positivo honesto

Alguns declamadores vituperam aqueles que fogem da guerra apresentando o fato como algo

desonroso para os antepassados e que diminui a fama dos gregos

Na quarta ldquoSuasoacuteriardquo cujo tiacutetulo ldquoAlexandre o grande delibera sobre se invadiraacute a

Babilocircnia uma vez que lhe fora anunciado o perigo pela previsatildeo do aacuteugurerdquo encontramos o

episoacutedio da vitoacuteria de Alexandre sobre Daacuterio na batalha de Galgamela ocorrida no ano de

331 a C Com esta conquista o comandante grego vislumbrou a oportunidade de apoderar-

se da cidade mesopotacircmica Nesta suasoacuteria mais uma vez a guerra eacute tratada como algo

beneacutefico sobretudo para a imagem do comandante O auguacuterio natildeo quer senatildeo incutir o medo

no combate pois tanto a vida de cada homem quanto o destino dos conquistadores ldquosatildeo

forjadas para cada um por causa do engenho natildeo a partir da feacuterdquo (Suas IV 3) Por essas duas

passagens percebe-se natildeo somente que a questatildeo da guerra e por oposiccedilatildeo da paz eacute proacutepria

do gecircnero da declamaccedilatildeo suasoacuteria mas que a guerra pode ser tratada como uma causa

honesta no sentido de que eacute admiraacutevel e justa que predica a virilidade a legiacutetima defesa da

pessoa e da naccedilatildeo e que argumentos baseados na mitologia natildeo poderiam tornaacute-la uma causa

torpe Em outras palavras a guerra seria uma deliberaccedilatildeo necessaacuteria justa e admiraacutevel em

certos casos

30

145 Quintiliano

Erasmo qualificava a ldquoInstituiccedilotildees Oratoacuteriasrdquo de Quintiliano como escritos de

autoridade no que diz respeito agrave composiccedilatildeo em prosa (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p

31) Dentre as sessenta e quatro ocorrecircncias de substantivos e verbos com o radical declama-

(declamator declamare declamatio)5 foi oportuno selecionar quatro aspectos significativos

da declamaccedilatildeo primeiro sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 49)

segundo sua praacutetica escolar (Ibid II 1 1) terceiro a presenccedila nela de aspectos teoacutericos do

gecircnero deliberativo (Ibid III 4 7) e por uacuteltimo a ocorrecircncia nela do vitupeacuterio e do elogio

(Ibid II 4 22) Natildeo sem propoacutesito a prolixidade de Quintiliano a respeito fez com que lhe

fossem atribuiacutedas agraves coleccedilotildees de declamaccedilotildees maiores hoje comprovadamente espuacuterias dada

a presenccedila nelas do asianismo ausente dos demais escritos dele As declamaccedilotildees minores

entretanto poderiam ser atribuiacutedas a ele sem maiores dificuldades (Reali e Turazza 2012 p

7)

Do ponto de vista histoacuterico Quintiliano compartilha a supracitada ideia de Taacutecito

(Dialogo de Oratoribus 351) segundo a qual a declamaccedilatildeo seria uma pobre e mera imitaccedilatildeo

da antiga e ceacutelebre oratoacuteria romana em razatildeo de sua natureza fictiacutecia

De fato o que tomamos como exemplo possui uma natureza e forccedila reais ao

contraacuterio toda imitaccedilatildeo eacute construiacuteda e se acomoda a um propoacutesito alheio De

onde sucede que as declamaccedilotildees tenham muito menos sangue e forccedila que os

discursos pois a mateacuteria que eacute verdadeira nestes eacute imitada naquelas Acrescente-se

que o que eacute oacutetimo na oratoacuteria satildeo as coisas imitaacuteveis natildeo satildeo o engenho a invenccedilatildeo a

forccedila a desenvoltura e o que quer que seja concedido pela arte (Quintiliano

Instituiccedilatildeo Oratoacuteria X 2 11-12)

Quintiliano comenta que a ascensatildeo do gecircnero declamatoacuterio significou a decadecircncia

da oratoacuteria romana segundo os elevados moldes ciceronianos em uma relaccedilatildeo causal

(Schwartz 2004 p 2) pelas seguintes razotildees o caraacuteter fantasioso dos temas selecionados

que ele rejeitava veementemente e o estilo exagerado dos declamadores (Quintiliano

Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-15) que segundo ele quanto menos preocupados com a causa

que discutiam mais pensavam ldquoem deleitar os ouvidos da audiecircncia mesmo agrave custa das mais

iacutenfimas distraccedilotildeesrdquo (Ibid II 12 6) Natildeo devemos contudo ver nessas afirmaccedilotildees algo como

o estado histoacuterico das declamaccedilotildees em seu tempo pois muitas dessas declaraccedilotildees tecircm

5 As ocorrecircncias do radical escolhido (declama-) foram contadas numa versatildeo digitalizada da ediccedilatildeo da Institutio

Oratoria publicada pela Harvard University Press em 2006

31

finalidade pedagoacutegica dada a natureza da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria podendo ser tambeacutem

interpretadas como uma apresentaccedilatildeo de um modelo ou exemplum negativo e que natildeo deve

ser seguido ou imitado

De fato Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as

reais necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de

temas mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Sua preocupaccedilatildeo se explica pois pela proacutepria

finalidade didaacutetica de seus escritos Como considerava a declamaccedilatildeo o ldquomais uacutetil de todos os

exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) forneceu um bom retrato de como

estes exerciacutecios eram realizados em sua eacutepoca (Ibid II 10 1-15) Por fim deve-se dizer

tambeacutem que menciona a praacutetica de prover seus alunos com subsiacutedios escritos a fim de que

estes auxiliassem seus disciacutepulos em suas declamaccedilotildees (Ibid II 6 2) e chega a afirmar que

ldquoo exerciacutecio da escrita facilitava a locuccedilatildeo e o exerciacutecio da locuccedilatildeo incrementava a escritardquo

(Ibid X 7 29) Assim se era um exerciacutecio essencialmente oral cuja finalidade era a praacutetica

da locutio eacute justamente em Quintiliano (Ibid X 3 10) que surgem alguns indiacutecios de uma

declamaccedilatildeo escrita no contexto escolar (Murphy 2012 p 69) Esse processo corresponde agrave

tendecircncia de transcriccedilatildeo dos discursos forenses que tambeacutem passaram a ser concebidos para a

leitura e natildeo somente para a audiccedilatildeo em decorrecircncia talvez da decadecircncia da oratoacuteria entatildeo

mal vista pelo regime imperial (Williams 2009) Esse fenocircmeno denominado literalizaccedilatildeo

foi um processo que transparece numa praacutetica que se estabeleceu naquela tempo e que se

assemelha agrave praacutetica declamatoacuteria as recitationes (Conte 1999 p 405) Estas costumavam

anteceder a publicaccedilatildeo das obras natildeo se restringindo aos gecircneros poeacuteticos como os

epigramas de Marcial e as saacutetiras de Juvenal mas abrangiam tambeacutem prosas de historiadores

e epiacutestolas como as de Pliacutenio o Jovem entre outros gecircneros discursivos (Dupont1997 p 45)

As declamationes e as recitationes implicavam em um contexto oral de emissatildeo e recepccedilatildeo

pois embora minuciosamente preparadas e escritas natildeo visavam a convencer mas

sobretudo a deleitar (Schwartz 2004 p 15)

Quintiliano informa que em seu tempo a declamaccedilatildeo tambeacutem poderia versar sobre

temas deliberativos ou suasoacuterios (Insituticcedilatildeo Oratoacuteria III 8 61) ou sobre as causas judiciais

(Ibid II 1 9) Eacute ele tambeacutem quem trata do lugar do elogio e da censura dentro da

declamaccedilatildeo e relaciona esses elementos tiacutepicos do gecircnero epidiacutetico como lugar comum

32

Lugares-comuns (falo daqueles em que natildeo se especificam pessoas e eacute usual

declamar contra viacutecios como contra aqueles do aduacuteltero do jogador do

licencioso) satildeo da proacutepria natureza dos discursos em exerciacutecios e se tu

acrescentas o nome da parte acusada satildeo autecircnticas acusaccedilotildees Estes no

entanto geralmente satildeo tratados a partir de temas gerais para algo especiacutefico

como quando o assunto de uma declamaccedilatildeo eacute um aduacuteltero cego um jogador

pobre ou um velho licencioso Agraves vezes tambeacutem tecircm a sua utilizaccedilatildeo na

defesa quando ocasionalmente falamos em favor do luxo ou da licenciosidade

ou de um degenerado ou parasita eacute por vezes defendido da forma que

defendemos natildeo a pessoa mas o viacutecio (Ibid II 4 22)

Aleacutem de tratar da inadequaccedilatildeo da declamaccedilatildeo com a comeacutedia ao exemplicar com as

figuras antiteacuteticas do aduacuteltero cego do jogador pobre e do velho licencioso Quintiliano

discute sobre algumas formas de distinguir os tradicionais trecircs gecircneros de discurso

(deliberativo judicial e epidiacutetico) e afirma a interpenetraccedilatildeo que pode haver entre estes

Haacute entatildeo como eu disse um gecircnero que conteacutem o louvor e o vitupeacuterio mas

que eacute chamado pelos melhores de laudativum outros no entanto chamam-

no de demonstrativo Acredita-se que ambos os nomes sejam derivados do

grego respectivamente ἐγκωμιαζηικόν e ἐπιδεκηικόν Entretanto me parece

que a palavra ἐπιδεκηικόν tem o significado natildeo tanto de demonstraccedilatildeo mas

sim de ostentaccedilatildeo a fim de distinguir do termo ἐγκωμιαζηικόν pois embora

ela inclua em si o gecircnero laudativum natildeo consiste somente nesse tipo

Algueacutem pode negar que os discursos panegiacutericos satildeo ἐπιδεκηικόν No entanto

eles tomam a forma suasoacuteria e geralmente tratam dos interesses da Greacutecia De

modo que haacute de fato trecircs gecircneros mas em cada um deles haacute uma parte

dedicada ao objeto e outra parte agrave ostentaccedilatildeo Mas quando natildeo traduzindo do

grego chamam de demonstrativo satildeo simplesmente levados pela

consideraccedilatildeo de que o elogio e a censura demonstram o que eacute a coisa O

segundo tipo eacute o deliberativo e o terceiro o judicial Outras espeacutecies

incorreratildeo nestes gecircneros sem haver encontrado uma espeacutecie qualquer em que

natildeo deve elogiar ou censurar persuadir ou dissuadir para impor uma carga ou

repeli-la Nelas eacute comum conciliar narrar ensinar aumentar diminuir a fim

de influenciar o julgamento do puacuteblico excitando ou dissipando as paixotildees

Eu natildeo poderia concordar mesmo com aqueles que ao adotar segundo meu

parecer uma divisatildeo mais faacutecil e ilusoacuteria do que verdadeira consideram que o

laudativo diz respeito ao que eacute honesto (honroso) o deliberativo ao que eacute

conveniente (uacutetil) e o judicial ao que eacute justo todos satildeo em certo ponto

auxiliados uns pelos outros uma vez que no elogio satildeo consideradas a justiccedila

e a oportunidade e nas deliberaccedilotildees a honra e raramente encontraraacutes uma

peccedila processual judicial na qual natildeo ocorra em alguma parte algo do que

mencionei acima (Ibid III 4 12-16)

Para Quintiliano os trecircs gecircneros natildeo satildeo categorias estanques completamente

separadas mas um auxilia o outro na medida em que compartilham elementos e recursos de

argumentaccedilatildeo como eacute o caso da utilidade da justiccedila e da honra atribuiacuteda ao ato ou agrave pessoa

de um determinado personagem que se ataca ou defende em uma causa Ao gecircnero epidiacutetico

embora esteja inserido na tradicional triparticcedilatildeo geneacuterica estaacute reservado ldquoum papel residual

33

na organizaccedilatildeo do sistemardquo (Schwartz 2004 p 147) Quanto ao lugar do demonstrativo

trata-se de um dos assuntos mais controversos da retoacuterica antiga mas prevalece que estaacute

inserido como lugares comuns dentro dos demais gecircneros de modo que caso fosse assumida

a definiccedilatildeo a partir de uma orientaccedilatildeo discursiva (laudare ou vituperare) seria loacutegico que

tambeacutem fossem acrescentados outros gecircneros segundo este criteacuterio como a repreensatildeo

(obiurgatio) a exortaccedilatildeo (cohortatio) a consolaccedilatildeo (consolatio) entre outros (Ciacutecero Sobre

o Orador II 47 50) Quintiliano (Ibid III 4 9-14) antepotildee uma caracteriacutestica do gecircnero

epidiacutetico em relaccedilatildeo aos gecircneros deliberativo e forense O primeiro visa ao deleite e natildeo exige

de seus ouvintes a tomada de uma decisatildeo como o realizar ou natildeo um ato ou estabelecer a

culpabilidade ou a inocecircncia em um caso mas sim o assentimento O demonstrativo visa a

deleitar a fim de persuadir Segundo Schwartz (2004 p 149) ldquoa caracteriacutestica universalmente

aceita do gecircnero [eacute] o caraacuteter passivo do puacuteblico que soacute conta como apreciador esteacutetico dos

discursosrdquo

Eacute de Quintiliano por fim a referecircncia teoacuterica escrita em latim mais antiga da figura

prosopopeia aplicada ao gecircnero declamaccedilatildeo para ele os discursos suasoacuterios que envolvem a

prosopopeia satildeo ldquoos mais difiacuteceis de pronunciarrdquo (Ibid II 1 2) Segundo Van Mal-Maeder

(2007 p 53) uma vez que a principal finalidade da caracterizaccedilatildeo das personagens era ldquode

despertar a simpatia ou ao contraacuterio de suscitar a indignaccedilatildeo elas tecircm uma capacidade

ilustrativa que os declamadores se compraziam em usar na demonstraccedilatildeordquo Autores como

Clark (1957 p 218) e Bonner (1949 p 285) identificaram essa figura de linguagem que

tambeacutem eram progymnaacutesmata (Heacutelio Teatildeo Progymnaacutesmata 60) com uma caracteriacutestica

essencial da declamaccedilatildeo conforme acima citamos (Ibid III 8 49)

Segundo Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco I 3) os jovens por carecerem de experiecircncia

de vida natildeo eram aptos agrave poliacutetica Justamente em razatildeo deste particular Clark (1957 p 218)

observa que os disciacutepulos eram exercitados em declamaccedilotildees de temas histoacuterico-mitoloacutegicos

fictiacutecios e que deveriam simular um diaacutelogo em proximidade com personagens importantes da

histoacuteria e da mitologia greco-romana tais como fatos biograacuteficos de Sula Soacutecrates

Alexandre Ceacutesar ou Ciacutecero (Mendelson 1994 p 94) Note-se que a utilizaccedilatildeo de temas

mitoloacutegicos e histoacutericos natildeo tem a finalidade de distinguir entre o caraacuteter histoacuterico e

mitoloacutegico mas sim simular adequadamente o discurso segundo o estereoacutetipo corrente

formado a respeito dessas personagens Desse modo os estudantes eram estimulados a

34

compor prosopopeias no sentido em que uma personagem ausente geralmente inspirada na

histoacuteria ou na mitologia greco-romana toma a palavra para fazer um discurso Shenk (1982

p 116-118) tambeacutem observa a ocorrecircncia relevante do uso da prosopopeia nas declamaccedilotildees

deliberativas ou suasoriae ldquomuitas controveacutersias assim como todas as suasoacuterias foram

compostas como prosopopeias nas escolas de declamaccedilatildeordquo Segundo Winterbottom (1974 p

52) estas no sentido de um discurso do personagem simulado seriam uma espeacutecie de

suasoacuteria Dessa forma averigua como no gecircnero declamatoacuterio deliberativo ou suasoacuterio a

prosopopeia era um elemento essencial da declamaccedilatildeo Isso ocorre talvez devido ao poder

persuasivo dessa figura Quintiliano identifica a prosopopeia das causas fictiacutecias com os

diaacutelogos tatildeo utilizados pelos autores greco-romanos em temas filosoacuteficos

Entre aquelas coisas que satildeo ainda mais audaciosas e como pensa Ciacutecero que

exigem maior empenho estaacute a personificaccedilatildeo ou προζωποποιΐα Este recurso

fornece agrave oratoacuteria maravilhosa variedade e animaccedilatildeo Por esse meio exibimos

os pensamentos mais iacutentimos dos nossos adversaacuterios como se estivessem

falando com eles mesmos (mas ela soacute convenceraacute se os representarmos no que

eacute verossiacutemil presumir que ocorra em suas mentes) ou ainda sem sacrifiacutecio de

credibilidade pode introduzir conversas entre noacutes e os outros ou de outras

pessoas entre si e colocar palavras de conselho reprovaccedilatildeo reclamaccedilatildeo

elogio ou pena na boca de pessoas apropriadas ademais por meio destas

prosopopeias eacute possiacutevel trazer dos ceacuteus os deuses evocar a morte e dar vozes

a cidades e Estados Haacute autores que datildeo o nome de prosopopeia soacute agravequelas em

que haacute ficccedilatildeo de personagens e de discursos Quanto agraves outras em que haacute

homens a falar datildeo-lhe o nome de diaacutelogos preferindo o termo grego ao

latino utilizado por muitos que quer dizer conversaccedilatildeo (sermocinatio) Eu

poreacutem seguindo o uso dei o mesmo nome a uma coisa e a outra pois natildeo eacute

possiacutevel imaginar locuccedilotildees sem imaginar as pessoas que falam (Ibid IX 2

29-32)

Dessa forma segundo o argumento de Quintiliano os limites entre a declamaccedilatildeo

suasoacuteria ou epidiacutetica natildeo estariam definidos de modo suficiente em razatildeo da ocorrecircncia de

personagens com discursos diretos cujo conteuacutedo e estilo estatildeo adequados com o ethos de

cada personagem Natildeo se poderia entatildeo falar de declamaccedilatildeo latina epidiacutetica mas de

contextos epidiacuteticos

Por outro lado para Mendelson (1994 94) Quintiliano recomendava que a actio

considerasse natildeo somente o caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava mas tambeacutem aquele de seu

auditoacuterio como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade especificidade partido e

acima de tudo seu caraacuteter moral (Ibid III 8 37-38) Quintiliano o exemplifica com as

35

Catilinaacuterias na qual Ciacutecero daacute voz agrave Paacutetria e agrave Repuacuteblica (Catilinaacuterias 718 11 27) entes

figurados seres abstratos que tambeacutem tomam a voz na declamaccedilatildeo Embora Quintiliano

apenas pareccedila apresentar a prosopopeia como um fator de dificuldade e por consequecircncia

algo que atribui maior meacuterito para aquele que soubesse adaptar de modo adequado os

caracteres das personagens evocadas agrave temaacutetica em causa e aos gostos do auditoacuterio parece-

nos ponderado afirmar que ela eacute uma caracteriacutestica essencial da declamaccedilatildeo suasoacuteria pois

adaptar a figura fictiacutecia com o tema e a assembleia seria a finalidade mais especiacutefica do

exerciacutecio declamatoacuterio (Bonner 1949 p 285) Parece ser incoerente pensar em uma

declamaccedilatildeo sem a prosopopeia ou mesmo sem uma personificaccedilatildeo

15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento

Segundo Mack (2004 p 261) ldquoo renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser

caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo A recuperaccedilatildeo pode ser

entendida entre outros sentidos como a retomada de um corpus de textos greco-romanos

antigos muitos desaparecidos e desconhecidos pelos autores cristatildeos medievais e que

constituem basicamente o corpo de escritos com os quais ainda hoje se toma contato com a

Antiguidade greco-romana A adiccedilatildeo teria sido o acreacutescimo de novos recursos literaacuterios

oriundos do acuacutemulo cultural ao longo dos seacuteculos Trata-se de uma espeacutecie de simbiose entre

a cultura greco-romana e a cristatilde com seus diversos contatos com o oriente A renovaccedilatildeo seria

justamente esse adaptar-se aos novos tempos agraves novas aptidotildees e sensibilidades artiacutesticas

com a conformaccedilatildeo de um movimento cultural ampliacutessimo capaz de penetrar em

praticamente todas as artes e ciecircncias o Renascimento

Como se verificaraacute na recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo enquanto gecircnero literaacuterio e

pedagoacutegico faz-se necessaacuterio pontuar que o Renascimento surge basicamente a partir de dois

fenocircmenos de iacutendole literaacuteria primeiro com a recuperaccedilatildeo de textos antigos que natildeo tinham

sido conhecidos ou difundidos ao longo da chamada Idade Meacutedia e em segundo lugar com o

surgimento da imprensa que permitiu a difusatildeo desses textos nos ciacuterculos letrados em escala

ateacute entatildeo impensaacutevel (Sartorelli 2009 p 3) Para Murphy (2003 p 227) Se de um lado

havia o acreacutescimo de fontes agravequelas chamadas ldquocristatildesrdquo verifica-se uma mudanccedila de visatildeo de

mundo que natildeo tratava das coisas segundo uma visatildeo teocecircntrica mas que colocava o

homem no centro de tudo

36

O Renascimento conteve duas tendecircncias histoacutericas o Humanismo e o cientificismo

aspectos marcantes do periacuteodo histoacuterico que passava a chamar-se ldquomodernordquo O primeiro

movimento atribuiacutedo a uma classe de pessoas denominadas como humanistas consolidou-se

na peniacutensula itaacutelica e caracterizava-se por um conjunto de ideais ou princiacutepios que

valorizavam a razatildeo e as accedilotildees humanas segundo determinados valores morais como o

respeito a justiccedila a honra o amor a liberdade entre outros O movimento se se afirmava em

contraposiccedilatildeo ao ldquoteocentrismordquo da ldquoIdade das Trevasrdquo atribuiacuteda ao medievo em uma visatildeo

que embora se assemelhe ao iluminismo eacute contrariada pela historiografia contemporacircnea

Como decorrecircncia desse antropocentrismo o desenvolvimento das artes tambeacutem foi uma

caracteriacutestica desse movimento que no acircmbito das Letras a partir da recuperaccedilatildeo dos gecircneros

antigos se pautou no interesse crescente pelos princiacutepios da antiga retoacuterica entendida como

um conjunto de princiacutepios explicitados pelos autores gregos e latinos especialmente da

Antiguidade que abordavam a arte da eloquecircncia ou da argumentaccedilatildeo tendo em vista a

persuasatildeo e o deleite de um auditoacuterio

Dois dados apresentados por Murphy (2003 p 231) exemplificam esse interesse

crescente em relaccedilatildeo agrave Retoacuterica entre a ediccedilatildeo da primeira obra de Ciacutecero (o Sobre o

Orador) datada de 1465 e o ano de 1500 contabilizaram-se 332 publicaccedilotildees impressas ao

passo que houve apenas 154 ediccedilotildees das obras de Aristoacuteteles cujo predomiacutenio de temaacuteticas

filosoacuteficas eacute notoacuterio (Murphy 2003 p 231) Tendo em conta que muitas das obras

ciceronianas abordavam principalmente temas tiacutepicos da retoacuterica e que ao final de 1485 estas

jaacute tinham sido editadas e impressas (Revard Raumldle e Di Cesare 1988 p 522) sua figura

cresceu em importacircncia de modo que muitos elementos retoacutericos geralmente atribuiacutedos a

outros autores antigos foram recebidos pelos humanistas por intermeacutedio da leitura de seus

escritos (Sartorelli 2015 p 7)

Por outro lado a invenccedilatildeo da imprensa fez necessaacuteria a entrada de um nuacutemero ainda

maior de leigos para os trabalhos tipograacuteficos

Uma das principais consequecircncias da invenccedilatildeo da prensa tipograacutefica foi

ampliar as oportunidades de carreira abertas aos letrados Alguns deles se

tornaram letrados-impressores como Aldo Manutius em Veneza Outros

trabalhavam para impressores por exemplo corrigindo provas fazendo

iacutendices traduzindo ou mesmo escrevendo por encomenda de editores-

impressores Ficou mais faacutecil embora ainda fosse difiacutecil seguir a carreira de

ldquohomem de letrasrdquo (Burke 2003 p 28-29)

37

Nem mesmo apoacutes as controveacutersias teoloacutegicas acentuadas pela Reforma Protestante

que teve seu marco inicial com as teses de Lutero afixadas nas portas da catedral de

Winterberg em 1517 ndash mesmo ano de publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo ndash e a crescente

oposiccedilatildeo entre os vaacuterios credos cristatildeos as trocas epistolares se restringiram entre as

confissotildees religiosas (Vasoli 2008 p 6 Hernaacutendez Guerrero e Garciacutea Tejera 1994 p 102-

105) Sartorelli (2009 p 4) observa que este ciacuterculo de literatos manteve o latim como liacutengua

veicular utilizando-a como uma liacutengua internacional de comunicaccedilatildeo

eacute preciso ter em conta que esse movimento foi em uma medida de que

talvez natildeo nos apercebamos hoje um movimento essencialmente latino ou

seja em liacutengua latina Humanistas mesmo os helenistas escreviam sobretudo

em latim e foi em latim que Pico della Mirandola por exemplo divulgou

Platatildeo Assim sendo quando falamos aqui em imitatio elocutio etc estamos

sempre falando da liacutengua latina

Em contraste com os seacuteculos anteriores nos quais as letras estavam majoritariamente

restritas ao conhecimento dos cleacuterigos e embora o volgarizzamento com a literatura

ldquoficcionalrdquo como a de Dante ou Bocaccio entre outros escritos natildeo estritamente considerados

filosoacuteficos e teoloacutegicos essa nova classe de intelectuais chamados na Itaacutelia de humanistae

situava sua atenccedilatildeo em questotildees linguiacutesticas poeacuteticas e estiliacutesticas ao privilegiar a arte a

beleza e a persuasatildeo do discurso mais do que a abstraccedilatildeo e a pretensa precisatildeo e uso dos

termos muitas vezes repetitivos do texto filosoacutefico (Murphy 2003 p 241) Contudo a

maioria dos autores mais eminentes eram membros de ordens religiosas muito embora os

leigos ocupassem um espaccedilo cada vez maior nas escolas ou nas universidades atuando como

professores privados ou ainda como dependentes da liberalidade de patronos ou mecenas

especialmente durante o Renascimento (Vasoli 2008 p 6) Esses intelectuais trocavam

correspondecircncias e estabeleciam ciacuterculos de relaccedilotildees ou centros eruditos com a finalidade de

compartilhamento das suas atividades literaacuterias que posteriormente passaram a chamar-se de

academias e se espalharam por toda a Europa Ocidental a ponto de no final do seacuteculo XV

para designar essa corrente cunhou-se a expressatildeo Repuacuteblica das Letras (Moya Bedoya

2008 p 192)

A inserccedilatildeo de outros autores fontes para a inventio ndash aleacutem da Biacuteblia e dos Padres da

Igreja os autores antigos ndash fez com que a arte de ldquoencontrarrdquo argumentos a favor de uma

causa fosse praticada com a leitura de textos de autoridade largamente difundidos pela

imprensa e neste sentido satildeo os autores greco-latinos antigos que erasm privilegiados Estes

38

deveriam ser lidos para deles se extrair por meio do sistema de lugares e toacutepicos os criteacuterios

que podem ajudar a argumentar com um discurso agradaacutevel harmonioso e realmente

persuasivo tal como predicava a retoacuterica Assim o sistema de lugares (loci) se converte em

um meio primordial para ler e ao mesmo tempo para produzir o discurso (Mack 1993 p

130)

Aleacutem da invenccedilatildeo havia o fenocircmeno da imitaccedilatildeo (imitatio) dos antigos modelos

greco-romanos a qual contemplava principalmente preceitos de estilo ou seja as

habilidades verificadas em determinado texto a fim de efetivar a finalidade para a qual foi

escrito Estas habilidades seriam adquiridas atraveacutes de exerciacutecios baseados em textos latinos e

gregos antigos (Cobett e Connors 1999 p 411) A polecircmica em torno da imitaccedilatildeo procurava

discutir se esta teacutecnica se restringia somente ao reproduzir foacutermulas frasais opccedilotildees lexicais e

lugares comuns proacuteprios dos antigos modelos greco-romanos nos escritos dos humanistas As

discussotildees a respeito ocuparam um lugar central ao longo do final do seacuteculo XIV e no iniacutecio

do seacuteculo XV Os autores antigos eram considerados e inclusive venerados como os

possuidores do latim por excelecircncia e deveriam servir de modelo para que os humanistas

praticassem o ldquoverdadeirordquo latim (Sloane 2004 p 112) muito diverso do latim praticado

pelos autores medievais mais ocupados em questotildees dialeacuteticas filosoacuteficas do que com as

questotildees de estilo

Embora houvesse um certo consenso geral acerca da imitaccedilatildeo dos antigos no

Renascimento esse fenocircmeno natildeo foi de modo algum paciacutefico ao considerar as

particularidades desta imitaccedilatildeo Uma das querelas mais encarniccediladas foi o debate em torno do

ciceronianismo Os intelectuais europeus antagonizavam-se em uma tendecircncia de imitaccedilatildeo

estrita agraves obras de Ciacutecero e outra forma mais ecleacutetica que tambeacutem consideravam outros

autores antigos (Sartorelli 2015 p 13) Erasmo foi protagonista nessa polecircmica sobretudo

ao publicar o seu ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo no ano de 15286 Nesse escrito o holandecircs

antagonizou a imitaccedilatildeo estrita e exclusiva de Ciacutecero realizada por autores que se

denominavam como ciceronianos e que visavam imitar com exclusividade o leacutexico a

meacutetrica as declinaccedilotildees e as foacutermulas presentes nos textos ciceronianos a despeito da

qualidade dos demais latinos antigos e do contexto histoacuterico e cultural do seacuteculo XV Os

6 Recentemente traduzido diretamente do latim para o portuguecircs pela orientadora do presente estudo (Sartorelli

2014 e 2015)

39

ciceronianos antagonizavam com os humanistas ldquoecleacuteticosrdquo que defendiam a imitaccedilatildeo de

outros autores e que embora reconhecessem o valor das obras ciceronianas tambeacutem

procuravam imitar os demais reconhecendo inclusive a necessidade de incorporar novas

palavras e foacutermulas ao leacutexico latino Erasmo defendeu publicamente uma imitaccedilatildeo ecleacutetica ou

composta isto eacute que considerasse os autores antigos em peacute de igualdade e inclusive definiu a

imitaccedilatildeo a partir do ecletismo necessaacuterio para atender agraves diferenccedilas entre oradores por meio

da locuccedilatildeo de uma das personagens do ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo

Eu abraccedilo a imitaccedilatildeo mas aquela que ajudar a natureza natildeo a que a violar a

que corrigir os dotes naturais natildeo a que os destruir aprovo a imitaccedilatildeo mas a

que conforme o exemplo estaacute de acordo com o teu talento ou que ao menos

natildeo te opotildees a ele para que natildeo pareccedila um theomachein contra os gigantes

De novo aprovo a imitaccedilatildeo mas natildeo a dedicada a uma soacute prescriccedilatildeo de cujos

traccedilos natildeo se atreve a separar-se mas aquela que de todos os autores ou ao

menos dos mais importantes toma aquele que mais se destaca e o que mais

conveacutem a teu proacuteprio talento colhendo e natildeo acrescentando imediatamente ao

discurso tudo de belo que se lhe apresente mas fazendo-o passar a teu proacuteprio

coraccedilatildeo como se fosse ao estocircmago para quem uma vez transfundido agraves

veias pareccedila nascido do teu proacuteprio talento e natildeo mendigado de outra parte

Inspiraraacute assim o vigor e a iacutendole de tua mente e de tua natureza para que

quem lecirc natildeo reconheccedila o emblema tirado de Ciacutecero mas sim um feto nascido

de teu ceacuterebro da mesma forma que dizem Palas saiu do ceacuterebro de Juacutepiter

refletindo a imagem viva de seu pai e teu discurso natildeo pareccedila a ningueacutem um

mosaico mas a imagem viva de teu peito ou um rio emanado da fonte do teu

coraccedilatildeo Mas seja tua primeira e principal preocupaccedilatildeo a de conhecer a

mateacuteria que te propotildees tratar Ela prover-se-aacute copiosidade oratoacuteria prover-te-aacute

afetos verdadeiros e genuiacutenos Assim enfim dar-se-aacute que teu discurso viva

respire aja comova e arrebate e reflita todo teu ser (Erasmo Diaacutelogo

Ciceroniano Traduccedilatildeo por Sartorelli 2015 p 16)

Veremos como a ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem se apresenta como um discurso que recebe

e imita expressotildees lugares comuns e metaacuteforas correntes em autores antigos natildeo se limitando

a Ciacutecero mas colocando em praacutetica esta imitaccedilatildeo ecleacutetica defendida por Erasmo

16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos

Conveacutem considerar as mais importantes ediccedilotildees realizadas pelos humanistas

diretamente relacionadas ao gecircnero declamaccedilatildeo Por outro lado dado o nuacutemero inabordaacutevel

de ediccedilotildees obras e tiacutetulos do periacuteodo a ponto de Murphy (1983 p 20-36) enumerar quase

dois mil nomes que estatildeo contidos dentro do epiacuteteto de humanista ou renascentista deve-se

considerar a dificuldade de catalogar a praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo

40

Ao selecionar portanto algumas declamaccedilotildees entre os humanistas elegemos aquelas

que (grupo 1) os estudiosos de Erasmo consideram que foram conhecidas por ele e portanto

o teriam influenciado de modo direto e inconteste ou aquelas que foram inequivocamente

influenciadas por ele (grupo 2) Aleacutem desse criteacuterio deve-se considerar evidentemente certo

prestiacutegio desses autores em relaccedilatildeo a outros menos conhecidos a ponto de serem mais

habitualmente levados em conta pela academia7

A declamaccedilatildeo apoacutes seu esquecimento quase completo durante o periacuteodo bizantino

(Kennedy 1980 p 166) e apoacutes uma tiacutemida praacutetica das controveacutersias por alguns eruditos do

seacuteculo XI entre os quais destaca-se Anselmo de Cantuaacuteria (Kennedy 1980 p 185) passou a

ser praticada especialmente pelos humanistas do norte da Itaacutelia muito em razatildeo da

redescoberta dos mencionados manuscritos de Secircneca Quintiliano e Ciacutecero A retomada da

praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista tem seu iniacutecio delimitado na Itaacutelia do seacuteculo

XIV e coincide segundo o estudo de Giazzi (2008 p 315-317) com a existecircncia de

manuscritos de declamaccedilotildees sob os moldes antigos realizados e encontrados em Milatildeo e

anexados ao exempla epistolarum de Visconti datados nos anos da virada do seacuteculo XIV para

o XV Segundo Boulet (2013 p 9)

Um grande nuacutemero destas declamaccedilotildees foi pronunciado em situaccedilatildeo de

aprendizagem em contexto escolar como indica o imponente trabalho

pioneiro realizado por Van der Poel (1987) sob a orientaccedilatildeo de Jean-Claude

Margolin Os textos destas declamaccedilotildees pedagoacutegicas foram perdidos ou satildeo

lacunares ou de um interesse mediacuteocre

Mas estes autores natildeo gozavam de vaacuterios escritos fundamentais para a teorizaccedilatildeo e

exemplificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo antiga por exemplo a redescoberta de um dos manuscritos

integrais da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo no mosteiro suiacuteccedilo de Saint Gall pelo humanista italiano

Poggio Braccioloni deu-se apenas em setembro de 1416 (Enos 1990 p 177 Goacutemez

Cervantes 2007 p 424) Este manuscrito ateacute entatildeo soacute era conhecido parcialmente por

intermeacutedio do texto chamado de mutilatus Jaacute as declamaccedilotildees mais antigas consideradas como

pertencentes ao humanismo satildeo as quatro declamaccedilotildees de Coluccio Salutati (1331-1406)

intituladas em latim ldquoDeclamaccedilatildeo de Lucreacuteciardquo ldquoDeclamaccedilatildeo de Priacuteamordquo ldquoQuestatildeo contra

os decemvirirdquo e ldquoSobre o reinordquo (Enos 1990 p 177) A redescoberta do diaacutelogo ldquoSobre o

7 A segunda ediccedilatildeo do cataacutelogo de Murphy e Green apresentou 1717 autores 3842 tiacutetulos de retoacuterica em 12325

impressotildees publicadas em 310 cidades por 3340 editores da Finlacircndia ao Meacutexico (Green e Murphy 2006 p

IX)

41

oradorrdquo por Landriani veio alguns anos depois em 1421 (Strayer 1989 p 24) Data do

mesmo periacuteodo ademais o acesso agraves ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca pelos humanistas uma vez

que alguns excertos teriam sido publicados em Naacutepoles em 1475 e o texto integral que

incluiu as ldquoSuasoacuteriasrdquo foi editado em Veneza em 1490 (Grafton Most e Settis 2010 p

872) O proacuteprio Erasmo foi o responsaacutevel por duas ediccedilotildees da obra de Secircneca datadas de

1515 e 1529 sendo que a primeira ediccedilatildeo eacute anterior ao ano de redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

(1516) (Grafton Most e Settis 2010 p 872) Desta forma o conhecimento de Erasmo acerca

da declamaccedilatildeo natildeo se restringia mais ao manual da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e ao ldquoSobre a

invenccedilatildeordquo como nos tempos de Salutati mas tambeacutem passaria a contar com a influecircncia dos

demais textos ciceronianos assim como outros escritos retoacutericos de Secircneca o Velho

Isoacutecrates Platatildeo entre outros que ou natildeo eram conhecidos pelos autores cristatildeos no iniacutecio do

seacuteculo XV ou natildeo eram largamente valorizados ou difundidos antes da entrada em cena da

imprensa que sem duacutevida potencializou a difusatildeo dos escritos dos autores antigos da Greacutecia

e de Roma (Murphy 2005 p 3)

A redescoberta das declamaccedilotildees e dos textos que teorizam sobre ela aleacutem das

traduccedilotildees de Erasmo de algumas delas escritas em grego especialmente as de Libacircnio e

Luciano certamente influenciaram a praacutetica desse gecircnero pelo holandecircs uma vez que a

declamaccedilatildeo preconizada na retoacuterica ciceroniana na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e no ldquoSobre a

invenccedilatildeordquo que eram consideradas durante os seacuteculos como os escritos retoacutericos por

antonomaacutesia (Kennedy 1980 p 195) Aleacutem dessas obras Knott (1988 p 8-9) percebe a

influecircncia no ldquoSobre a abundacircnciardquo (De copia) de parte do livro I e d o II livro da ldquoInstituiccedilatildeo

Oratoacuteriardquo de Quintiliano justamente as partes que trazem vaacuterias referecircncias teoacutericas sobre o

gecircnero aleacutem das proacuteprias declamaccedilotildees atribuiacutedas a ele talvez atraveacutes da leitura de Valla

Aleacutem da produccedilatildeo de diversos manuais em que constava a praacutetica da declamaccedilatildeo em

ambiente escolar com finalidade explicitamente pedagoacutegica Van der Poel (1987 p 984)

salienta a produccedilatildeo desse gecircnero exterior ao ambiente e ao processo educacional em forma

escrita e literaacuteria tal como praticada por vaacuterios autores entre os quais se destaca a atividade

do ldquopriacutencipe dos humanistasrdquo Em seu ldquoPlano de estudosrdquo (De ratione Studii) por exemplo

Erasmo citava algumas obras fundamentais para a formaccedilatildeo de um humanista na qual se nota

a presenccedila expliacutecita das declamaccedilotildees traduzidas por ele dos temas proacuteprios a tais exerciacutecios e

dos escritos que tratavam sobre a declamaccedilatildeo como os de Secircneca (Kennedy 1980 p 196)

42

Apoacutes ser introduzida no norte da Europa a declamaccedilatildeo foi produzida pelos autores

renascentistas exclusivamente na forma escrita (Murphy 2012 p 69) com entusiasmo natildeo

menor do que a recepccedilatildeo do puacuteblico conforme se denota pelo alcance editorial que

obtiveram pois algumas das mais relevantes obras literaacuterias do Renascimento foram escritas

no formato declamatoacuterio tais como o ldquoElogio da Loucurardquo (1511) de Erasmo e as

declamaccedilotildees de Thomas More A declamaccedilatildeo chamada ldquoliteraacuteriardquo entendida aquela que era

exclusivamente escrita e visava o deleite dos eruditos e natildeo somente a escolar-pedagoacutegica

estava por assim dizer ldquona modardquo entre os autores do seacuteculo XVI

17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas

Entre os autores do Renascimento Van der Poel (2007 p 128-129) e Tunberg (2006

p 9) destacam as seguintes obras algumas das quais anteriores outras contemporacircneas agraves de

Erasmo e outras por fim posteriores agrave Querela como exemplos de declamaccedilotildees

paradigmaacuteticas segundo os preceitos herdados da retoacuterica antiga Apresentamos uma siacutentese

dessas declamaccedilotildees ressaltando os elementos particulares que satildeo pertinentes para uma

comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo antiga consideradas no primeiro capiacutetulo e

a ldquoQueixa da Pazrdquo objeto principal do presente estudo Dentre estas se destacam a

declamaccedilatildeo de Valla (Constatini donatione) e a de More que foram certamente conhecidas

por Erasmo dada a admiraccedilatildeo de Erasmo pelo primeiro e sua amizade pessoal para com o

segundo

171 Lourenccedilo Valla

Em uma de suas epiacutestolas a Cornelis Gerard (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31)

Erasmo afirma que a ldquoElegacircncias da liacutengua latinardquo (Elegantiae linguae latinae) escrito por

Valla o influenciou significativamente Para Gianotti (2008 p 65) os autores humanistas

tomavam o italiano como guia ldquona escolha lexical e estiliacutesticardquo Nessa mesma epiacutestola apoacutes

enumerar Ciacutecero Quintiliano Saluacutestio e Terecircncio como autoridades no tocante agrave prosa

Erasmo tambeacutem admitia a superioridade de Valla

Com efeito quanto agraves observaccedilotildees das elegacircncias em ningueacutem eu tenho tanta

confianccedila quanto em Lourenccedilo Valla pois natildeo temos nenhum outro a atribuir

tanta pertinaacutecia de engenho e tenacidade de memoacuteria Natildeo ousarei pois em

qualquer mateacuteria contrariar o que nas letras aconselhou

43

Conforme explicam Bentley (1977 p 11) e Weiler (1997 p 9) a influecircncia de Valla

sobre Erasmo tem um papel especial em sua formaccedilatildeo intelectual pois jaacute em 1489 o

holandecircs o louvava por restaurar a eloquecircncia em forma escrita e em latim Como veremos o

italiano tambeacutem foi um autor profiacutecuo de declamaccedilotildees que foram conhecidas e emuladas por

Erasmo Bentley (1977 p 28) inclusive afirma a insistecircncia de Valla na submissatildeo da

filosofia agrave retoacuterica e agrave filologia sendo que o holandecircs o seguiu pelo mesmo caminho ldquocom o

objetivo de renovar a moral e a religiosidade da cristandaderdquo (Bentley 1977 p 28) de um

modo muito semelhante e que seraacute explorado ao longo da presente dissertaccedilatildeo nas

declamaccedilotildees erasmianas

Entre as declamaccedilotildees de Valla conta-se a ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo (De falso credita

et ementita Constantini donatione) escrita em 1440 e publicada em 1517 Nesta declamaccedilatildeo

muito provavelmente conhecida por Erasmo o autor com argumentaccedilatildeo histoacuterica e

filoloacutegica demonstrou a falsidade da Doaccedilatildeo de Constantino um documento apoacutecrifo com o

qual a igreja justifica seu poder temporal Constantino e o Papa satildeo as personagens histoacutericas

que atuam no discurso ficcional tal como ocorria em diversas declamaccedilotildees latinas

De fato a palavra declamaccedilatildeo natildeo teria sido inserida por Valla no tiacutetulo mas pelo

editor Uacuterico Von Huten de forma que o autor parece natildeo ter tido a intenccedilatildeo clara de escrever

uma ldquodeclamaccedilatildeordquo (Ginzburg 2004 p xv) pois se pode dizer que a ldquoDoaccedilatildeo de

Constantinordquo se assemelha ao gecircnero diaacutelogo com tema histoacuterico natildeo filosoacutefico Esta

semelhanccedila remonta ao jaacute citado texto de Quintiliano jaacute considerado no capiacutetulo primeiro

que dirimia uma sinoniacutemia corrente entre os a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo devido ao caraacuteter

fictiacutecio e a presenccedila comum de personificaccedilotildees Aleacutem disso segundo o argumento de

Bowersock (2008 p ix) a declamaccedilatildeo de Valla natildeo poderia ser considerada uma declamaccedilatildeo

por natildeo apresentar os dois lados da questatildeo Como vimos no entanto nem todas as

declamaccedilotildees antigas tinham esse formato Ao comparar-se a ldquoQueixa da Pazrdquo com a ldquoDoaccedilatildeo

de Constantinordquo verificou-se que a primeira ao contraacuterio da segunda apresenta uma

descriccedilatildeo narrativa no exordium e apresenta em algumas partes caracteres semelhantes da

sermocinatio conforme consideramos no capiacutetulo primeiro a fim de desenvolver digressotildees e

amplificaccedilotildees de caraacuteter filosoacutefico ou teoloacutegico Ademais segundo Colemann e Perry (2001

p 3-4) tal como a Querela a ldquodeclamaccedilatildeordquo de Valla tem uma finalidade poliacutetica ao influir na

disputa territorial entre o papa Eugecircnio IV e o rei Afonso de Aragatildeo Siciacutelia e Naacutepoles para o

44

qual Valla trabalhava como conselheiro (Bowersock 2008 p vii) Deve-se salientar por fim

que Erasmo concede a voz agrave Paz ao passo o proacuteprio Valla toma a voz do discurso

172 Thomas More

A declamaccedilatildeo ldquoTiranicidardquo (Declamatione qua Luciani Tyrannicidae respondetur) foi

escrita por Thomas More (1478-1535) provavelmente em 1506 em emulaccedilatildeo a uma

declamaccedilatildeo erasmiana que tambeacutem refutava os argumentos do ldquoTiranicidardquo de Luciano

(Rummel 1985 p 50) Como eacute caracteriacutestico do humanismo a obra entra pois em diaacutelogo

extemporacircneo e fictiacutecio com uma ceacutelebre declamaccedilatildeo antiga (Baumann 1985 p 113) Na

obra antiga Luciano defende a causa do tiranicida em uma controveacutersia com argumentos do

gecircnero forense ou judicial (Thompson 1974 xviii) More que tambeacutem traduziu para o latim

a declamaccedilatildeo de Luciano (Logan e Adams 2003 xv) tal como o proacuteprio Erasmo (Chomarat

1981) natildeo quis apenas respondecirc-la como tambeacutem Erasmo o fizera mas expocircs suas proacuteprias

ideias de modo que os dois textos se relacionam formalmente e divergem em alguns pontos

de vista (Fox 1983 p 44) O autor inglecircs defende o argumento de que o tirano seraacute aceitaacutevel

se permitir que a cidade recupere a paz e a ordem de Direito Assim enquanto Luciano

satirizava com ironia a causa do tiranicida More a vitupera seguindo a praacutetica da declamaccedilatildeo

que selecionava apenas um lado da contenda

Erasmo relata a amizade com More e a praacutetica da declamaccedilatildeo realizada juntamente

com o autor inglecircs

Proponho-me agora a falar sobre o assunto daqueles estudos que foram o

principal meio de unir-nos a More e a mim Na sua primeira juventude seus

principais exerciacutecios literaacuterios foram em verso Depois disso More lutou para

tornar a sua prosa mais suave praticando todo tipo de escrita para formar um

estilo o caraacuteter do qual seraacute desnecessaacuterio lembrar especialmente a ti que

estaacute sempre com os seus livros nas matildeos Tinha o maior prazer em participar

de declamaccedilotildees escolhendo sempre algum tema polecircmico por envolver um

exerciacutecio mental importante Enquanto ainda jovem tentou redigir um

diaacutelogo em que desenvolvia a defesa da comunidade de Platatildeo ateacute mesmo na

questatildeo do tratamento das esposas Escreveu uma resposta ao Tiranicida de

Luciano em cuja argumentaccedilatildeo quis ter-me como rival para testar sua

proficiecircncia nesse tipo de escrita More publicou sua Utopia para mostrar o

que provoca o mal na vida das comunidades tendo em vista particularmente a

constituiccedilatildeo inglesa que conhece e entende muito bem Escreveu o Livro II

aos poucos e depois quando viu que um outro era necessaacuterio acrescentou o

Livro I de improviso daiacute uma certa desigualdade que se nota no estilo

(Clarissimo Equiti Ulricho Hutteno Epistolae Allen [ed] Vol 4 1922

Epiacutestola 999 traduccedilatildeo de Ana de Melo Franco)

45

A partir deste texto erasmiano distingue-se a praacutetica da declamaccedilatildeo renascentista

como um exerciacutecio escrito em prosa e um meio de obtenccedilatildeo de um estilo proacuteprio Verifica-se

ademais neste trecho conforme consideramos anteriormente um exemplo tiacutepico das relaccedilotildees

entre os humanistas e o compartilhamento de prosas em gecircneros recebidos da Antiguidade

entre os quais a declamaccedilatildeo com seu espaccedilo significativo praticado simultaneamente como

exerciacutecio e divertimento

Em epiacutestola a Erasmo (26 de maio de 1520) cerca de trecircs anos apoacutes a publicaccedilatildeo da

ldquoQueixa da Pazrdquo More se reporta agraves declamaccedilotildees de Luiacutes de Vives (Thomas More Corr

9335) Destaca o modo como o discurso que versava sobre temas de primeira ordem

utilizava-se do apelo agrave emoccedilatildeo a fim de que o leitor pudesse como que ldquoverrdquo e ldquosentirrdquo

aspectos do que era tratado A declamaccedilatildeo entatildeo tambeacutem eacute entendida como um modo de

expressar e transmitir sentimento em relaccedilatildeo a determinada causa situando-se como um

discurso retoacuterico que sem desprezar as dimensotildees do loacutegos e do ecircthos se dirige

especialmente ao paacutethos ao tocar as emoccedilotildees do leitor Tal troca epistolar entre More e

Erasmo denota a clareza com a qual esses autores entendiam o papeis retoacutericos do ethos e do

pathos e sua respectiva relevacircncia na declamaccedilatildeo

18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas

Van der Poel (2007 p 128-129) depois de apresentar duas formas nas quais as

declamaccedilotildees escritas eram apresentadas durante o Renascimento (ou seja as declamaccedilotildees

destinadas agrave circulaccedilatildeo em manuscrito para um ciacuterculo restrito de amigos mas ainda assim

escritas como os ldquoTiranicidasrdquo de More e Erasmo e as demais destinadas agrave publicaccedilatildeo

editorial) afirma que natildeo haacute uma distinccedilatildeo essencial entre elas mas que se pode observar

que no primeiro tipo predominam os temas histoacutericos enquanto que no segundo daacute-se uma

renovaccedilatildeo da antiga praacutetica oratoacuteria com escritos de gecircnero deliberativo

Um primeiro grupo constitui-se de declamaccedilotildees sobre temas histoacutericos da

Antiguidade ou sobre personagens ceacutelebres que acima de tudo eram vistas

como meros exerciacutecios retoacutericos mas pela escolha do tema e do tratamento

devem ser interpretadas como discussotildees dissimuladas sobre temas

contemporacircneos especialmente da natureza poliacutetica Entatildeo como alguns

discursos cerimoniais certas declamaccedilotildees podem ser categorizadas como

parcialmente ldquoclaacutessicasrdquo e parcialmente ldquomodernasrdquo Exemplos satildeo as

declamaccedilotildees sobre o tiranicida de Tomas More (1478-1535) escrita em

resposta agrave declamaccedilatildeo de Luciano em defesa do tiranicida (Tyrannicida) ou as

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cinco declamaccedilotildees de Vives as Declamationes Syllanae (1520) na qual os

poliacuteticos romanos argumentam a favor e contra a retenccedilatildeo do poder pelo

ditador de Roma enquanto Sula apresenta seu discurso de abdicaccedilatildeo

Finalmente haacute um grupo de oraccedilotildees ou declamaccedilotildees entre a categoria de

discursos natildeo escritos para a performance mas para a publicaccedilatildeo exclusiva em

forma impressa que a meu ver pode ser considerada completamente como

ldquomodernardquo [hellip] Seus autores claramente tem a ambiccedilatildeo da praacutetica da

verdadeira retoacuterica de Ciacutecero e Quintiliano a quem atribuem um papel

importante para o orador na praacutetica do discurso puacuteblico na esfera civil [hellip]

Quando algum humanista toma a pena para escrever um discurso anunciado

explicitamente como retoacuterico (oraccedilatildeo declamaccedilatildeo elogio ou outro tipo de

denominaccedilatildeo retoacuterica) eacute provaacutevel que ele esteja apresentando sua opiniatildeo

sobre um tema que ele considera relevante para a sociedade como um todo e

apresentando seu ponto de vista com especial assentimento e convicccedilatildeo (Van

der Poel 2007 p 128-129)

Segundo o argumento de Connolly (2009 p 139) as fontes das antigas declamaccedilotildees

inclusive das gregas eram segundo o jaacute citado elenco de temas proposto por Aristoacuteteles as

causas poliacuteticas as quais discutiam a paz e a guerra a guerra civil os impostos as relaccedilotildees

internacionais e outros temas poliacuteticos todos do gecircnero deliberativo e que natildeo deixaram de

estar em voga no Renascimento Quando um reacutetor ou um declamador argumentava a favor da

paz discutiam-se alguns princiacutepios que poderiam confrontar os tiranos de todos os tempos

como a liberdade a virtude da lei e a paz (Ibid p 140) Estas faziam com que a declamaccedilatildeo

natildeo fosse antiga ou moderna mas em um sentido ainda mais amplo e menos restritivo quase

atemporal na medida em que eram valores que perpassavam vaacuterias eacutepocas histoacutericas mas

tambeacutem se mantinha em comum uma espeacutecie de tradiccedilatildeo dada a invenccedilatildeo e a imitaccedilatildeo

ambas baseadas em padrotildees estabelecidos por autores antigos

De fato tanto o locutor de um exerciacutecio declamatoacuterio nos tempos do Impeacuterio quanto

um humanista que escrevia sua ldquodeclamaccedilatildeordquo em que tocava pontos de interesse para a

sociedade tinham em vista assuntos que chamariam a atenccedilatildeo dos seus ouvintes e que se

mostrariam uacuteteis (utilitas) conforme os princiacutepios basilares do deliberativo

Nesse sentido verifica-se que agrave semelhanccedila das declamaccedilotildees romanas que inseridas

nas tiacutepicas atividades dos reacutetores foram entendidas como ofensivas ao despotismo imperial

as declamaccedilotildees renascentistas abordavam temas uacuteteis e muitas vezes polecircmicos diante das

autoridades Jaacute citamos acima a afirmaccedilatildeo de Mack (2004 p 261) segundo a qual ldquoo

renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo

adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo Se a recuperaccedilatildeo eacute evidente com a retomada da antiga declamaccedilatildeo a

adiccedilatildeo (additon) e a renovaccedilatildeo (change) datildeo-se justamente na atualizaccedilatildeo deste gecircnero em

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relaccedilatildeo ao contexto histoacuterico social no qual estaacute inserido Esta adaptaccedilatildeo ao contexto era

exigida tanto na chamada declamaccedilatildeo que o autor denomina como ldquoclaacutessicardquo como na dita

ldquomodernardquo uma vez que a audiecircncia ou os leitores precisam ser convencidos segundo as

paixotildees que lhes satildeo sensiacuteveis conforme os argumentos que lhes satildeo verossiacutemeis e em

concordacircncia com sua compreensatildeo da moral e dos costumes A mudanccedila se alinha agrave eacutepoca

mas ela proacutepria jaacute era prevista pelos claacutessicos de modo que eacute uma das caracteriacutesticas

imprescindiacuteveis para um discurso efetivamente persuasivo

19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas

Consideramos anteriormente que a imitaccedilatildeo do gecircnero da declamaccedilatildeo nos primoacuterdios

do seacuteculo XIV entre os humanistas do norte da Itaacutelia das declamaccedilotildees de autores antigos que

escreveram em grego e latim e a redescoberta do texto completo da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria de

Quintiliano foram passos determinantes para a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo feita por Erasmo

Chomarat (1981 p 934) observa que os princiacutepios teoacutericos claacutessicos da declamaccedilatildeo

chegaram ao Renascimento por meio dos escritos desse autor romano Sobretudo com

Lourenccedilo Valla o orator era denominado como ldquoaquele que fala diante de uma tribuna ou

assembleiardquo e o rhetor ldquoeacute o professor de retoacutericardquo Jaacute o declamador eacute

aquele que estudando com o reacutetor executa uma causa fictiacutecia diante dos

alunos reunidos a fim de poder em seguida exercitar-se nas causas reais O

reacutetor que mesmo fora da escola pratica esse gecircnero seja para exercitar outras

pessoas seja para exercitar-se a si mesmo eacute denominado declamador (Valla

Elegacircncias da liacutengua latina IV 81)

Um contemporacircneo de Erasmo Henricus Cornelius Agrippa (1486-1535) que

tambeacutem produziu diversas declamaccedilotildees com temas semelhantes agraves erasmianas assim

conceitua a declamaccedilatildeo

por conseguinte a declamaccedilatildeo natildeo julga natildeo dogmatiza mas () fala por

vezes como brincadeira por vezes seriamente agraves vezes com falsidade agraves

vezes com rigor ela fala agraves vezes segundo meu proacuteprio pensamento agraves vezes

segundo o pensamento de outrem ela propotildee verdades falsidades afirmaccedilotildees

duacutebias () ela aduz a muitos argumentos sem valor (Cornelius Agrippa

Apologia adversus calumnias propter declamationem de Vanitate scientiarum

1533) (apud Chomarat 1981 p 941)

Como vimos tanto na definiccedilatildeo de Valla como na de Agripa permanecem duas

caracteriacutesticas principais da declamaccedilatildeo tal como fora entendida e praticada pelos autores

antigos especialmente Quintiliano ou seja trata-se de um exerciacutecio de elocutio e de um

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discurso fictiacutecio Van der Poel (1997 p 128-129) comenta que a definiccedilatildeo de Agripa e dos

humanistas em geral inclusive de Erasmo era a de um discurso de uma personagem fictiacutecia

Mas devido ao fato de que a declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista natildeo tem mais a finalidade

de ser meramente um exerciacutecio escolar e eacute praticada de forma escrita Surtz (1957 p 9)

propotildee que esta seja ldquouma composiccedilatildeo escrita para o divertimento e para o prazer a fim de

exercitar o talento nativo do autor e desenvolver seu poder literaacuteriordquo

110 Conclusotildees do capiacutetulo

O presente capiacutetulo teve a finalidade de expor alguns elementos sobre a recepccedilatildeo do

gecircnero da declamaccedilatildeo entre os humanistas As declamaccedilotildees antigas se classificam de dois

modos eram privadas ou puacuteblicas (Kennedy 1980 p 103) isto eacute natildeo podem ser reduzidas

somente a exerciacutecios escolares executados para a educaccedilatildeo dos jovens oradores mas tinham

tambeacutem um caraacuteter performaacutetico uma vez que costumavam ser praticadas por adultos com a

finalidade de produzir deleite em reuniotildees sociais ou como tirociacutenios privados da eloquecircncia

(Schwartz 2004 p 68-69 Edward 1928 p xiv Fairweather 1981 p 544) Contudo

Winterbottom (1980 p 13) baseado em um texto de Quintiliano que trata do panegiacuterico e do

demosntrativo no contexto das declamaccedilotildees escolares (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 11)

afirma que algumas das declamaccedilotildees puacuteblicas eram por assim dizer do epidiacutetico uma vez

que visavam muitas vezes a estabelecer um elogio ou um vitupeacuterio ao contraacuterio das demais

declamaccedilotildees ldquodidaacuteticasrdquo Baseado em Quintiliano Winterbottom (1980 p 26-27) reconhece

o gecircnero judiciaacuterio como a principal finalidade da declamaccedilatildeo mas distingue na

Controuersiae 276-9 de Secircneca o Reacutetor elementos caracteriacutesticos do gecircnero epidiacutetico

demonstrando que o elogio e o vitupeacuterio tambeacutem eram recursos retoacutericos correntes nas

declamaccedilotildees de gecircnero judicial pois muitas vezes era necessaacuterio qualificar a viacutetima ou uma

testemunha atraveacutes do elogio e desqualificar o reacuteu ou uma testemunha atraveacutes do vitupeacuterio

Como vimos o proacuteprio Ciacutecero afirmou declamar entre os seus amigos e familiares

justamente para exercitar-se para os momentos mais importantes de sua accedilatildeo poliacutetica Na

Roma Imperial difundiu-se na alta sociedade o costume de fazecirc-lo de modo que a

historiografia romana registrou na vida de alguns imperadores ao longo do periacuteodo

contemplado o costume de executar declamaccedilotildees (Schwartz 2004 p 68-69) Embora se

possa discutir acerca da real historicidade desses relatos pode-se dizer que a atribuiccedilatildeo da

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praacutetica declamatoacuteria pelos textos historiograacuteficos a respeito da vida dos imperadores denota

que essa praacutetica gozava de certo prestiacutegio ao menos no periacuteodo imperial muito embora

alguns textos critiquem os declamadores e suas performances O proacuteprio fato de dedicar

espaccedilo para criacutetica escrita numa eacutepoca em que a produccedilatildeo de texto natildeo era tatildeo simples atesta

o alcance que a declamaccedilatildeo teve na sociedade romana

Verificou-se que a recepccedilatildeo e a praacutetica do gecircnero no Renascimento teve seu iniacutecio no

norte da Itaacutelia e coincidiram ndash ou foram causadas ndash com a redescoberta de manuscritos suas

traduccedilotildees e reediccedilotildees impressas de algumas das obras retoacutericas mais importantes e que

tratavam sobre a declamaccedilatildeo de autores como Ciacutecero Quintiliano e Secircneca Vaacuterios

humanistas como Salutati e Valla (situados no seacuteculo XV) e Erasmo de Rotterdam Thomas

More Corneacutelio Agrippa entre outros cuja atividade puacuteblica data da primeira metade do

seacuteculo XVI produziram declamaccedilotildees escritas como exerciacutecio o que eacute caracteriacutestico desse

tempo e o que as diferencia da Antiguidade vimos ainda que as definiccedilotildees das caracteriacutesticas

essenciais da declamaccedilatildeo propostas por Valla e Agripa satildeo concordes com as antigas no

sentido de afirmaacute-la como exerciacutecio retoacuterico escrito de um discurso fictiacutecio sobre temas

suasoacuterios ou epidiacuteticos com ao menos duas finalidades expliacutecitas divertir atraveacutes de formas

e referecircncias que provocam o riso e instruir atraveacutes da persuasatildeo e da defesa de valores

eacuteticos abandonados ou marginalizados pela sociedade

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51

CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ

O presente capiacutetulo tem como finalidade apresentar agumas caracteriacutesticas gerais da

declamaccedilatildeo erasmiana tais como suas definiccedilotildees temas classificaccedilotildees e o contato de Erasmo

com outras declamaccedilotildees de seu tempo Aleacutem disso procura salientar os argumentos a favor e

contra a classificaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo enquanto pertencente a esse gecircnero em uma

comparaccedilatildeo com algumas das declamaccedilotildees do final do periacuteodo republicano e do iniacutecio do

impeacuterio

21 Definiccedilotildees erasmianas

A definiccedilatildeo de declamaccedilatildeo proposta por Erasmo abrange a proposiccedilatildeo principal das

definiccedilotildees de Valla e Agripa ou seja do exerciacutecio-fictiacutecio O holandecircs distingue entre

declamador reacutetor e orador na sua paraacutefrase ao Elegantias de Valla ldquodeclamador eacute aquele

que a soacutes ou na escola de retoacuterica defende uma causa fictiacutecia a fim de melhor executar uma

causa verdadeira Declamar eacute exercitar-se em um discurso sobre um tema fictiacuteciordquo (Opera

Omnia Erasmi I-4 ll 313923) Erasmo parecia estar bem ciente dos limites e das

caracteriacutesticas essenciais do gecircnero como se depreende por exemplo de uma citaccedilatildeo extraiacuteda

de seus Adaacutegios a qual natildeo deixa de ser tambeacutem uma autocriacutetica feita a partir da

classificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo presente em um escrito de Jerocircnimo (Erasmo Adagia 2500 III

V 100 Nec aures habeo nec tango) Tal comentaacuterio aparece na explicaccedilatildeo do adaacutegio 100

cujo significado pode ser entendido como ldquonatildeo tenho ouvidos nem tocordquo e se insere no

contexto de algueacutem que pegou algo de outro e diante do protesto deste dissimula a posse Ao

explicar o proveacuterbio o holandecircs cita uma epiacutestola que Jerocircnimo qualifica como declamaccedilatildeo

(Epiacutestola 117 12) cujo tema seria sobre a reconciliaccedilatildeo de uma matildee com sua filha

Justamente ao denominar como tal esse escrito e talvez percebendo que a causa natildeo eacute

deliberativa nem judicial nem mesmo um elogio ou sequer um caso fictiacutecio mas tendo

permanecido o caraacuteter de exerciacutecio Erasmo manteacutem a denominaccedilatildeo de declamaccedilatildeo talvez

por respeito agrave autoridade do Padre da Igreja que tambeacutem era reacutetor muito embora esta

classificaccedilatildeo possa ser facilmente contestada Erasmo portanto estaria consciente de que a

declamaccedilatildeo tem seus limites proacuteprios e que Jerocircnimo poderia ser criticado ao extrapolaacute-los

ao denominar assim neste texto em particular

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Com base na definiccedilatildeo erasmiana Akkerman (1995 p 53-54) procura diferenciar a

declamaccedilatildeo da oraccedilatildeo ldquoEm um sentido mais restrito oratio eacute um discurso que eacute na verdade

realizado em resposta a um evento social ou cerimonial e declamaccedilatildeo um exerciacutecio fictiacutecio

que se executa na escola ou a soacutesrdquo Erasmo tambeacutem entendia como declamaccedilatildeo ldquoum tema

imaginaacuterio que se trata a favor e contra a fim de exercitar a eloquecircnciardquo Essa definiccedilatildeo

segundo Chomarat (1981 p 937) seria ldquoa que mais distingue a declamaccedilatildeo da

bdquodeterminaccedilatildeo‟ dos teoacutelogos escolaacutesticosrdquo conforme consta em vaacuterias passagens do ldquoSobre a

liacutenguardquo (De liacutengua) o primeiro equiacutevoco estiliacutestico mencionado por ele seria o fato de atribuir

palavras ou expressotildees que inflam a importacircncia das coisas de modo que o tom do discurso

solene inclusive na declamaccedilatildeo natildeo condiz com o assunto tratado Assim este torna-se

tedioso falso e inclusive ridiacuteculo Tal modo de proceder o holandecircs o entende como uma

ldquotagarelice declamatoacuteriardquo que corrompe a verdadeira finalidade da eloquecircncia Embora

afirmasse que para julgar as declamaccedilotildees ldquonatildeo se deve considerar a verdade objetiva das

mateacuterias mas o talento natural e o poder persuasivo do escritorrdquo (Apologia Adversus

Monachos Quosdam Hispanos Opera IX 1089) estava ciente do poder persuasivo deste

gecircnero e dos incocircmodos que seu uso para fins poliacuteticos poderia gerar Por isso Erasmo

utilizou-se dele ao tratar sobre assuntos poliacuteticos nem um pouco unacircnimes como eacute o caso da

querela da paz e da guerra

Por fim haacute referecircncias agrave declamaccedilatildeo tambeacutem no Diaacutelogo Ciceroniano Nosoacutepono o

ciceroniano inveterado que defendia a imitaccedilatildeo restrita dos escritos de Marco Tuacutelio afirmava

praticar com alegria (feliciter) a declamaccedilatildeo (Erasmo Ciceroniano 644[21]) mas recusava a

sugestatildeo de Buleacuteforo de receber as contribuiccedilotildees de Quintiliano a esse gecircnero (Erasmo

Ciceroniano 657[35]) Deste trecho em contraste com o que defendiam os chamados

ciceronianos se percebe que a declamaccedilatildeo erasmiana natildeo se restringe agrave imitaccedilatildeo de Ciacutecero

mas era um gecircnero que se fundamentava essencialmente na recepccedilatildeo de outros autores que

praticaram ou teorizaram acerca deste gecircnero com maior ecircnfase do que ele tais como os

declamadores latinos e gregos do periacuteodo imperial Secircneca Quintiliano Plutarco Luciano

Libacircnio entre outros Erasmo aliaacutes sem distinguir a autenticidade da atribuiccedilatildeo de autoria

das ldquoDeclamaccedilotildees Maioresrdquo e ldquoMenoresrdquo a Quintiliano elogiava no ldquoSobre a abundacircnciardquo

(De copia 204-205 [246-247]) ldquoas descriccedilotildees das coisasrdquo apontando este elemento localizado

geralmente logo apoacutes o proecircmio da declamaccedilatildeo como um artifiacutecio para a captaccedilatildeo da

benevolecircncia e da atenccedilatildeo do leitor Por outro lado no Cap 12 [504-507] analisa o uso que

53

Ciacutecero fazia do termo declamare em passagem que evoca o livro II da ldquoRetoacutericardquo aristoteacutelica

ao relacionaacute-lo com a caracterizaccedilatildeo adequada ou apropriada de cada personagem de acordo

com a sua idade Entre os vaacuterios elementos a serem exercitados com a praacutetica declamatoacuteria

Erasmo apresenta em seu ldquoPlano de Estudosrdquo o ecircthos representado nas prosopopeias como um

dos pontos fundamentais as descriccedilotildees dos lugares do tempo e das coisas assim como a

dequaccedilatildeo das personificaccedilotildees agrave idade (jovens ou idosos) ou agrave profissatildeo (prostitutas soldados)

entre outros (Opera Omnia I-II 143[1-9] 1971 p 143)

22 Temas

Erasmo eacute muito expliacutecito ao tratar da declamaccedilatildeo e dos exerciacutecios (note-se o uso de

progymnasmata) em seu De ratione Para ele haacute necessidade de tratar de temas atuais uacuteteis

para a sociedade (respublica) que natildeo tenham somente a simples finalidade de exerciacutecio

retoacuterico ou de rememoraccedilatildeo de dados mitoloacutegicos e histoacutericos nem mesmo meras

elucubraccedilotildees inuacuteteis da dialeacutetica atribuiacuteda pelos humanistas aos escolaacutesticos Neste sentido a

declamaccedilatildeo erasmiana eacute praacutetica visa influenciar o leitor educaacute-lo natildeo somente no sentido de

aplicar na vida cotidiana os ditames da retoacuterica antiga mas tambeacutem de instruiacute-lo em valores

como a justiccedila a paz a coerecircncia dos costumes e o combate aos haacutebitos considerados

ridiacuteculos e que se fundamentavam numa tradiccedilatildeo cristatilde teologicamente mal entendida Se por

um lado algumas partes do discurso provocam reflexotildees seacuterias outras partes poreacutem apesar

da gravidade do assunto (por exemplo quando se fala de paz e guerra) deleitam o leitor sem

deixar de ser uacutetil por ser pertencente ao gecircnero deliberativo

Desse modo era necessaacuterio que este jogo [elocutoacuterio] fosse apresentado de

modo elegante para que o jovem se exercitasse nas escolas atraveacutes das

declamaccedilotildees muito embora Quintiliano tivesse com razatildeo preceituado que a

simulaccedilatildeo da declamaccedilatildeo acontecesse de uma forma mais proacutexima possiacutevel

com as verdadeiras accedilotildees pois os temas a se declamar costumavam ser

escolhidos entre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeis Com

efeito aqueles exerciacutecios satildeo importantes para os jovens porque tem o

objetivo de instrui-los sobretudo quando o argumento eacute tirado da Histoacuteria e eacute

adaptado agraves palavras e agraves sentenccedilas daqueles tempos contudo seraacute ainda mais

instrutivo atuar sobre as causas verdadeiras que tratam de questotildees envoltas

em circunstacircncias do tempo presente como se algueacutem as desenvolvesse para

que se aperfeiccediloe a repuacuteblica (Erasmo De ratione Studii Desiderii Erasmi

Opera Omnia I-II 1971 p 695[28-33] ndash p 696[1-2])

Quando Erasmo menciona que os ldquotemas a se declamar costumavam ser escolhidos

dentre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeisrdquo podemos entender que o autor

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visava um discurso que natildeo fosse somente uma espeacutecie de reproduccedilatildeo saudosa dos antigos

gecircneros discursivos gregos e romanos mas uma discussatildeo incisiva sobre os costumes das

pessoas de seu tempo Quando pertencente ao deliberativo abordaria temas que seriam

pertinentes para a sociedade como aliaacutes o era a polecircmica a respeito dos benefiacutecios da paz e

dos malefiacutecios da guerra inclusive sob o aspecto individual A Paz apresenta argumentos

praacuteticos contra a guerra como as dificuldades para o comeacutercio os gastos com mercenaacuterios e

armamentos e inclusive a inseguranccedila provocada pelo acuacutemulo destes em relaccedilatildeo ao

patrimocircnio dos cidadatildeos e possiacuteveis abusos contra a honra das mulheres

Neste sentido se as declamaccedilotildees erasmianas tratavam dos temas mais diversos tais

como a guerra a paz a infacircncia a loucura o matrimocircnio a vida monaacutestica e a medicina

entre outros Nelas era corrente o elogio e o vitupeacuterio seja nos escritos em que predominava

o Encomium seja nos deliberativos abordavam-se posiccedilotildees consideradas absolutas ou

irrefutaacuteveis por parte de teoacutelogos e filoacutesofos No lugar de privilegiar a loacutegica e o exaurimento

dos argumentos como eacute proacuteprio da dialeacutetica considerava esse temas poreacutem de modo a

privilegiar o que era uacutetil ao ser humano e afrontava os argumentos contraacuterios aos seus ideais

atraveacutes da retoacuterica Erasmo natildeo negava a verdade mas valorizava o que favorecia a

humanidade ulizando-se da retoacuterica para uma finalidade que considerava justa Erasmo estava

ciente de que ldquonatildeo existe nada tatildeo bom por natureza que natildeo possa ser distorcido por um

declamador astutordquo (Liber utilissimus de Conscribendis Epistolis 1670 p 267) mas estava

certo tambeacutem de que o declamador competente deveria primiar pela justiccedila e pela utilidade

mais do que pela mera busca da verdade abstrata e muitas vezes inuacutetil para o bem comum

muito embora fosse conveniente para os propugnadores da guerra

O caso concreto das discussotildees sobre a guerra justa ndash tatildeo defendida e inclusive

promovida por teoacutelogos alinhados aos interesses temporais de conquistas feudais ou mesmo

das guerras contra o islatilde ndash era um tema polecircmico uma vez que nem sempre a paz era do

convinha aos priacutencipes inclusive neste contubardo iniacutecio do seacuteculo XVI Em outras palavras

segundo esse trecho do texto supracitado o declamador astuto tem o poder de reunir a favor

do seu argumento uma apresentaccedilatildeo da realidade afim agrave sua causa Os argumentos eram

alinhavados em vista da finalidade prevista e poderiam distorcer ldquoverdadesrdquo incontestes

Trata-se natildeo somente da possibilidade de selecionar e dispor de argumentos mas de um modo

de apresentar que rompe ou desconstroacutei paradigmas a fim de construir outros talvez

55

esquecidos ou postos de lado como o eacute no caso em questatildeo a causa da paz e oposiccedilatildeo agrave

doutrina da guerra justa

Erasmo advoga pela paz e o faz como cristatildeo mas natildeo se apresenta ao menos no texto

da ldquoQueixa da Pazrdquo como um filoacutesofo ou um teoacutelogo compromissado com o que chama de

verdade a ponto de apresentar os dois lados da questatildeo ou seja os argumentos a favor e

contra a paz e a guerra mas defendia aquela sem considerar as objeccedilotildees contra o irenismo

dispondo sua razotildees com a finalidade de fazer bem ao auditoacuterio no sentido de instruiacute-lo com

valores eacuteticos como eacute o caso daqueles que fundamentam a opccedilotildees pela paz Neste sentido

Erasmo natildeo seria um sofista que alinha argumentos contra a guerra mas um ceacutetico em relaccedilatildeo

agrave sua eficaacutecia na resoluccedilatildeo dos problemas Acreditava que a concoacuterdia era mais adequada e

duradoura para a resoluccedilatildeo de qualquer espeacutecie de conflito em contraste com a guerra uma

espeacutecie de multiplicadora dos males

Conveacutem entatildeo demonstrar as incoerecircncias dos propugnadores da guerra apontando

os malefiacutecios desconsiderados pelos que defendiam o princiacutepio da guerra justa conforme

estudaremos ao caracterizar a Paz como saacutebia e teoacuteloga no uacuteltimo capiacutetulo da presente

dissertaccedilatildeo Essa afirmativa natildeo nega poreacutem uma espeacutecie de outra finalidade pedagoacutegica da

declamaccedilatildeo erasmiana natildeo menos relevante que a primeira como consta em uma passagem

da epiacutestola a Ulrico de Hutten Nesta ao comentar a declamaccedilatildeo sobre o ldquoTiranicidardquo de

Luciano e a ldquoUtopiardquo de More Erasmo estava ciente da finalidade de deleitar ou comprazer

proacutepria ao gecircnero conforme o texto supracitado no qual mencionada o percurso da formaccedilatildeo

retoacuterica do seu amigo More

Conveacutem notar que as declamaccedilotildees humanistas de modo anaacutelogo ao que se verificou

naquelas praticadas em ciacuterculos de adultos e amigos no periacuteodo republicano e imperial

tambeacutem visavam ao deleite situando-se entatildeo como uma autecircntica produccedilatildeo artiacutestica Desse

modo natildeo parece absurdo afirmar que a declamaccedilatildeo segundo a concepccedilatildeo erasmiana tem

um a dupla finalidade formativa (eacutetica situada nos valores e retoacuterica como aplicaccedilatildeo praacutetica

de princiacutepios em um discurso concreto) com toda a seriedade imposta pela gravidade dos

temas mas com o intuito de natildeo menosprezar a finalidade propriamente artiacutestica de deleitar

ou divertir o leitor Nesse ponto verifica-se a qualidade das declamaccedilotildees erasmianas que

sabem ser seacuterias jogando com temas graves sem deixar de formar os valores considerados

56

humanos justos e uacuteteis Desse modo o roterdamecircs parece evocar o ceacutelebre preceito

horaciano unir o uacutetil ao agradaacutevel (utile dulci)

23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes

Erasmo teve contato direto com as declamaccedilotildees e teorizaccedilotildees sobre este gecircnero

escritas em grego ou em latim por Isoacutecrates Plutarco Luciano e Libacircnio O proacuteprio holandecircs

atuou como editor e tradutor de algumas delas em um periacuteodo imediatamente anterior agrave

publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 entre as quais se destacam aquelas elencadas por

Rummel (1985 p 171-172) e cujos fac-siacutemiles estatildeo disponiacuteveis para consulta on-line no site

oficial8 da Biblioteca Nacional da Franccedila e que tambeacutem foram reeditadas na ediccedilatildeo criacutetica da

obra de Erasmo

231 Isoacutecrates

De fato Erasmo durante sua juventude traduziu alguns panegiacutericos de Isoacutecrates os

pertencentes ao gecircnero demonstrativo sobretudo no tocante agrave vituperaccedilatildeo e ao elogio a ponto

de publicar o Ad Nicolem juntamente com a ldquoInstituiccedilatildeo do Priacutencipe Cristatildeordquo em Basileia no

ano de 15169 Um princiacutepio pedagoacutegico atribuiacutedo por Erasmo a Isoacutecrates citado no ldquoSobre os

meninosrdquo (De pueris) e que parece se coadunar com as duas finalidades pedagoacutegicas da

declamaccedilatildeo (eacutetica e retoacuterica) eacute justamente o princiacutepio segundo o qual o recurso ao paacutethos

proacuteprio do exerciacutecio retoacuterico predispotildee o aluno a aprender quando seu afeto eacute movido ao

conteuacutedo proposto Trata-se do aprendizado atraveacutes do delectare ou seja do prazer que eacute

inerente agrave declamaccedilatildeo de alto niacutevel Os discursos escritos entatildeo neste gecircnero teriam o poder

de fazer com que o leitor amasse os valores eacuteticos e os recursos retoacutericos apresentados durante

o discurso A vituperaccedilatildeo tambeacutem age sobre a vontade do aluno uma vez que produz a

repulsa agraves atitudes e aos princiacutepios natildeo considerados eacuteticos pelo retoacuterico e a ridicularizaccedilatildeo

destes no interior do discurso visa entatildeo desconstruir a pretensa legitimidade de tais accedilotildees

que muitas vezes se atribuiacuteam agrave tradiccedilatildeo ou agrave justiccedila como eacute o caso da guerra

8 Disponiacutevel em httpwwwbnffrfraccxaccueilhtml Acesso 17 nov 2015

9 Aleacutem do panegiacuterico de Isoacutecrates e das declamaccedilotildees de Luciano e Libacircnio diretamente relacionadas com as

declamaccedilotildees erasmianas Erasmo tambeacutem editou outras obras no mesmo dececircnio que a Queixa da Paz tal como

a Institutiones grammaticae uma gramaacutetica grega escrita no seacuteculo XV escrita por Teodoro de Gaza e publicada

em dois volumes em Lovaina (1516 e 1518) e as traduccedilotildees de Rodolfo Agriacutecola de Isoacutecrates (Ad Demonicum)

publicada na mesma cidade em 1517

57

232 Plutarco

A influecircncia de Isoacutecrates eacute reduzida ao comparar-se com aquela de Plutarco Na

epiacutestola a Thomas Grey (Epiacutestola 64 Paris agosto de 1497 l 81 Allen 1974 p 137)

Erasmo jaacute mencionava a personagem Gryllard o que denota seu acesso agrave Moralia (985D-

992A) e a alguns discursos em grego entre os quais aqueles que satildeo explicitamente

classificados como declamaccedilotildees O mais significativo deles eacute sem duacutevida o ldquoSobre a

educaccedilatildeo dos meninosrdquo que influenciou diretamente o ldquoSobre os meninosrdquo do roterdamecircs

Natildeo sem razatildeo discursos de Plutarco foram vertidos por ele ao latim e editados em 1515

cerca de dois anos antes da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517)

233 Luciano

Segundo Boulet (2015 p 69) em recente estudo sobre as declamaccedilotildees renascentistas

Ao lado de Plutarco Luciano parece um autor particularmente interessante no

movimento que leva de Aristoacuteteles a Ciacutecero e de Erasmo a Boeacutecio Ambos os

autores satildeo constantemente mencionados direta ou indiretamente nas

declamaccedilotildees que nos interessam eles eram constantemente traduzidos e

comentados Eles satildeo exemplos para os autores que noacutes estudaremos

considerados como guias e modelos Certo nuacutemero de tratados de Luciano foi

traduzido para o latim por More e quatro por Erasmo

O roterdamecircs natildeo se debruccedilou em escritos de temas poliacuteticos ou naqueles atribuiacutedos

ao gecircnero judiciaacuterio mas aleacutem dos escritos no gecircnero demonstrativo dedicou-se ao estudo e

agrave traduccedilatildeo de vaacuterias declamaccedilotildees como as de Luciano (Rummel1985 p 21)

Erasmo dedicou-se de modo especial ao esforccedilo de traduzir do grego para o latim

diversas obras de Luciano (125-180 d C) reacutetor que se destacou por suas obras satiacutericas

conforme o proacuteprio holandecircs afirma na ldquoEpiacutestola a Joatildeo Botzheimrdquo10

Luciano foi ainda um

dos autores explicitamente prestigiado no ldquoPlano de Estudosrdquo erasmiano muito embora

alguns autores quinhentistas criticassem o valor de suas obras conforme se lecirc na introduccedilatildeo agrave

traduccedilatildeo ao ldquoTimeurdquo de Platatildeo realizada por Erasmo (Robinson 1969 p 365) Dentre as

traduccedilotildees das declamaccedilotildees de Luciano realizadas e publicadas em dois volumes ao longo do

10

Erasmo enumera As saturnais Cronosolon Algumas epiacutestolas saturnais Sobre o luto Icaromenipo

Toxaris O pseudomante O sonho ou o galo Tiacutemon O abdicante o Tiranicida Sobre aqueles que satildeo

conduzidos aos palaacutecios dos poderosos por mercecirc

58

ano de 1506 algumas foram publicadas sob o tiacutetulo de Luciani compluria opuscula (Toxaris

Tyrannicida Timon Gallus De mercede conductis e Longaevi) e outra parte foi dada a

conhecer com o tiacutetulo de Opuscula (Dialogi Mortuorum Dialogi Deorum Dialogi naturam

Hercules Eunuchus De Sacrificiis e Convivium) Erasmo retornou entre os anos de 1511 e

1512 agrave traduccedilatildeo e ediccedilatildeo de um terceiro grupo de escritos de Luciano (Icaromenippus

Saturnalia Astrologia Cronosolon Espistolae Saturnale De luctu e Abdicatus) publicados

com as traduccedilotildees anteriores sob o tiacutetulo de ldquoLuciani Erasmo interprete dialogirdquo em Paris

no ano de 1514 Essas obras jaacute foram republicadas pela ediccedilatildeo criacutetica de Amsterdam (1969-

atual) Thompson (1974 p 92) reafirma o consenso dos pesquisadores acerca da influecircncia do

estilo das declamaccedilotildees de Luciano sobre as erasmianas entre outros fatores pelo recurso agrave

ironia o sarcasmo elegante e a forma de ridicularizar costumes sociais incoerentes ou

supersticiosos conforme escreveu More que atribuiu ao holandecircs seu contato com as

declamaccedilotildees lucianescas Aliaacutes um dos toacutepos da primeira parte da ldquoQueixa da Pazrdquo reafirma

justamente alguns dos princiacutepios atribuiacutedos por Erasmo a Luciano na epiacutestola introdutoacuteria ao

ldquoSobre a Liacutenguardquo como eacute o caso da comparaccedilatildeo dos animais com o homem em tom de

superioridade justamente pelo fato de que embora sejam tidos como irracionais natildeo se

inferiorizam ao homem subjugado pelas paixotildees e pelos vis interesses pois a troca de lugar

entre homem e animal para desnudar a sociedade eacute um lugar comum da saacutetira lucianesca

(Erasmo Epiacutestola a Cristoacutevatildeo de Schiidlovietz p 19 ll 9-13) Para Erasmo o grande meacuterito

dos diaacutelogos de Luciano era fazer com que os mais jovens se deleitassem com o estilo e a

liacutengua (De conscribendis epistolis I 353B) Tal afirmativa ainda se verifica no ldquoSobre a

abundacircnciardquo no qual natildeo se absteacutem de elogiar a capacidade descritiva do caraacuteter viril

realizada por Luciano em Hamocircnidas (De copia II 198 ll 51-54-70-75)

234 Libacircnio

Quanto a Libacircnio (314-394 d C) filoacutesofo e professor de retoacuterica que escreveu em

grego Erasmo prefaciou a traduccedilatildeo da Declamatiuncula versa e graeco Libanio cum

thematis aliquot versis que foi publicada sob o tiacutetulo de Libanii aliquot declamatiuncula em

1503 Essas declamaccedilotildees merecem destaque dentro da obra de Erasmo e do Projeto

Humanista (Rummel1985 p 21) por assim dizer de recuperaccedilatildeo dos autores greco-

romanos uma vez que o proacuteprio Libacircnio teve inclusive parte de sua formaccedilatildeo realizada na

59

Greacutecia tendo facilitado acesso a autores gregos antigos apesar da dificuldade de transmissatildeo e

leitura de textos inclusive na atiguidade tardia

Sua atividade como reacutetor inclusive participando de competiccedilotildees puacuteblicas foi

realizada junto aos imperadores que visavam a uma recuperaccedilatildeo da antiga religiatildeo romana

Estes estavam em franco antagonismo com os cristatildeos que por sua vez tentavam suprimir a

antiga religiatildeo e a proacutepria mitologia contida nas tradiccedilotildees de escritos greco-romanos

consideradas meros rituais maacutegicos que prejudicavam a feacute cristatilde (Williams 2009 p 420)

Embora as declamaccedilotildees de Libacircnio fossem datadas da era cristatilde tinham talvez a preferecircncia

de Erasmo por portarem relevantes elementos da retoacuterica claacutessica segundo Kennedy

(1983162-163) tais discursos se diferenciavam dos antigos entre os quais predominavam os

temas judiciais e deliberativos ao apresentarem principalmente temas mitoloacutegicos ou

histoacutericos gregos com a finalidade de discutir assuntos pertinentes para o seu tempo

Libacircnio escreveu cerca de sessenta e quatro oraccedilotildees dentre as quais muitas (cf

oraccedilotildees 48 49 e 50) possuem temas deliberativos em razatildeo de sua proacutepria atividade no

acircmbito poliacutetico Outro atributo de suas declamaccedilotildees eacute o fato de iniciar algumas delas com

narrativas (katastasis) o que foi adotado por Erasmo em muitas de suas declamaccedilotildees Em

Erasmo a Loucura e a Paz por exemplo natildeo estabelecem uma narrativa em terceira pessoa

mas se caracterizam na abertura dos seus discursos atraveacutes de uma locuccedilatildeo direta Libacircnio

contudo se mostrava coerente com os manuais antigos de retoacuterica que apresentavam a

declamaccedilatildeo enquanto exerciacutecio que defendia os dois lados de uma questatildeo pois muitas das

suas declamaccedilotildees eram seguidas de uma ou vaacuterias antitheses finalizadas por um epilogo

(Williams 2009 p 424) Tal princiacutepio natildeo era seguido por Erasmo que apresentava somente

um lado da questatildeo

Conveacutem salientar o fato de que uma das declamaccedilotildees de Libacircnio traduzidas por

Erasmo tem justamente uma personagem feminina como sujeito ou remetente do discurso

Medeia Eacute bastante problemaacutetico comparar a Paz de Erasmo agrave Medeia dos claacutessicos mas

ainda assim verifica-se alguns traccedilos de semelhanccedila entre aquela matildee indignada pela morte

dos filhos e que se apresenta como viacutetima Haacute algumas passagens das declamaccedilotildees

erasmianas nas quais a Paz demonstra sua indignaccedilatildeo para os propugnadores da guerra que

maltratavam os mortais a quem esta dedicou seus cuidados maternais Note-se que a Paz

como veremos mais detidamente nos uacuteltimo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo invoca em seu

60

caraacuteter feminino e maternal as injusticcedilas feitas contra as viacutetimas da guerra a quem trata como

verdadeiros filhos

24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo

Segundo Chomarat as obras do gecircnero declamaccedilatildeo na obra de Erasmo podem ser

classificadas em duas categorias primeiro as declamaccedilotildees em sentido restrito que listaremos

abaixo e em seguida as obras que conteacutem elementos essenciais do gecircnero sem no entanto

receberem esta denominaccedilatildeo Muito embora Erasmo tivesse afirmado a dificuldade de

delinear os limites entre a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo nota-se que possuiacutea noccedilotildees claras a

respeito dos gecircneros retoacutericos e suas subespeacutecies como descreve no Brevissima

Confidendarum Epistolarum Formula acerca do deliberatiuum genus no contexto epistolar

mas que por analogia tambeacutem se aplica a uma declamaccedilatildeo de espeacutecie deliberativa e agraves

declamaccedilotildees de elogio e vitupeacuterio pertencentes ao gecircnero demonstrativo

Entatildeo passemos ao gecircnero deliberativo ocorrente em muitas espeacutecies de

epiacutestolas haacute epiacutestolas suasoacuterias e dissuasoacuterias exortatoacuterias peticcedilotildees

monitoacuterias as quais depois seratildeo consideradas em sua ordem Em primeiro

lugar deve-se definir no gecircnero deliberativo que pode ser chamado de

suasoacuterio a utilidade e a honestidade Quando chamamos algo de uacutetil tambeacutem

queremos denominar como honesto quando natildeo se pode dizer que eacute uacutetil

igualmente natildeo pode ser honesto Porque nesse gecircnero deve-se maximamente

esperar por essa utilidade que estaacute conjugada com a honestidade sem as quais

natildeo podemos suadir persuadir dissuadir exortar desencorajar pedir

aconselhar nem direcionar (como assim disseram) todas as flechas do estilo

ao alvo (Erasmo Brevissima maximaque compendiaria confidendarum

epistolarum formula Paris Apud Christianum Wechelum 1551 p 13)

De modo anaacutelogo nos textos jaacute citados de Quintiliano e Erasmo acerca da semelhanccedila

da declamaccedilatildeo com o diaacutelogo Chomarat (1981 p 932) reconhece a dificuldade em

diferenciar uma declamaccedilatildeo de uma oratio como eacute o caso do ldquoManual do soldado cristatildeordquo

(Enchiridion militis christiani) ou mesmo com uma diatribe segundo a denominaccedilatildeo do

proacuteprio Erasmo (Rummel 1995 p 60) como se verifica no ldquoSobre olivre arbiacutetriordquo (De libero

arbiacutetrio) a ponto de Chomarat (1981 p 932) denominaacute-los ldquoquasi-deacuteclamationsrdquo ou seja

obras que conteacutem um dos elementos essenciais da declamaccedilatildeo a prosopopeia Outra obra

erasmiana natildeo citada pelo estudioso francecircs constituiacuteda em estrutura de diaacutelogo merece

destaque especial uma vez que no caso do ldquoSobre o livre arbiacutetriordquo aleacutem de outras

personagens Erasmo entra no diaacutelogo ao atribuir discursos ao seu proacuteprio nome Mas a

61

grande objeccedilatildeo para sua inserccedilatildeo no gecircnero eacute o fato de natildeo cumprir o quesito de que o texto

deve simular uma causa fictiacutecia

Baseando-se na epiacutestola de Erasmo a Botzheim eacute possiacutevel estabelecer o elencode onze

declamaccedilotildees escritas e publicadas pelo holandecircs e que se conservaram

1 Elogio da vida monaacutestica

2 Resposta ao bispo

3 Louvor e vituperaccedilatildeo do matrimocircnio

4 Elogio da medicina

5 Contra o tiranicida

6 Antibaacuterbaros

7 Sobre o desprezo do mundo11

8 Sobre a prematura morte do filho

9 Sobre os meninos

10 Elogio da Loucura

11 Queixa da Paz

Chomarat (1981 p 932) apresenta dois possiacuteveis tiacutetulos de declamaccedilotildees compostas

por Erasmo cujos textos foram perdidos primeiro ldquoVitupeacuterio agrave vida dos mongesrdquo que teria

sido escrita em Bolonha entre 1506 e 1507 e duas declamaccedilotildees com argumentaccedilotildees

mutuamente opostas sobre a guerra do Papado contra Veneza presumivelmente escrita em

Bolonha em 1508 Dada a temaacutetica os argumentos descritos neste texto provavelmente estatildeo

presentes na ldquoQueixa da Pazrdquo e no ldquoA guerra eacute doce para os inexperientesrdquo Erasmo tambeacutem

mencionou em epiacutestola datada de 1509 e enviada de Paris a intenccedilatildeo de escrever duas

declamaccedilotildees (Encomium naturae e Encomium gratiae) que foram sugeridas por ocasiatildeo da

redaccedilatildeo do ldquoElogio da Loucurardquo12

11

Essa obra foi curiosamente classificada pelo proacuteprio Erasmo como uma epiacutestola declamatoacuteria suasoacuteria

12 Ainda segundo Chomarat (1981 p 934) grande parte das declamaccedilotildees de Erasmo foram escritas por pedido

ldquoformalrdquo de algueacutem que lhe era proacuteximo (Laus vitae monasticae Encomium artis medicae Contra tyrannidam

as duas declamaccedilotildees perdidas escritas em Roma De pueris e Querela Pacis) ou para seus alunos (Episcopi

Responsio Laus ac vituperatio matrimonii e De morte filii praemature praerepti) como modelos praacuteticos dos

conselhos teoacutericos do De Copia (Chomarat 1981 p 935) Esse uacuteltimo grupo pode caber na definiccedilatildeo de

declamaccedilatildeo como exerciacutecio escolar Quanto agravequelas feitas a pedidos com evidente finalidade poliacutetica (como a

Queixa da Paz) ou laudatoacuteria ou ainda como publicaccedilotildees que visavam debater assuntos literaacuterios e que

ilustravam os conselhos contidos no De Copia (Chomarat 1981 p 934)

62

25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas

Van der Poel (2007 p 129) classifica as declamaccedilotildees erasmianas em trecircs espeacutecies

pedagoacutegicas moralizantes e poliacuteticas

Nas numerosas declamaccedilotildees de Erasmo sobre mateacuterias morais e pedagoacutegicas

como tambeacutem nas de assunto poliacutetico como o Encomium moriae De pueris

instituendis Querela Pacis e tambeacutem o Encomium matrimonii tambeacutem

encontramos referecircncias tiacutepicas do vir bonus dicendi peritus Suas

declamaccedilotildees satildeo manifestamente discursos escritos nos quais natildeo somente

critica as condiccedilotildees da sociedade e do interior da Igreja que ele acha

repreensiacutevel mas nas quais tambeacutem defende suas proacuteprias ideias de sociedade

cristatilde civilizada ideal que prova ser na verdade bastante controverso Na sua

carta a Joatildeo Botzheim de 1523 Erasmo assume que o propoacutesito de muitas de

suas declamaccedilotildees pertinent ad institutionem vitae (visam a prover a instruccedilatildeo

do modo de viver)

Desse modo cabe agraves declamaccedilotildees deliberativas e inclusive algumas laudatoacuterias a

finalidade de mouere mas em Erasmo haacute uma especificidade pois o movimento da vontade

do seu interlocutor eacute impulsionado pela tomada de atitudes em conformidade com valores

humanos considerados bons Nesse sentido apresenta uma finalidade pedagoacutegica atraveacutes da

defesa de princiacutepios eacuteticos edificantes O que tambeacutem eacute uma forma de suadere uma vez que a

declamaccedilatildeo erasmiana entendida como um discurso que natildeo defende as duas partes de uma

causa mas opta por uma delas considerada melhor leva a escolher uma entre as opccedilotildees

disponiacuteveis Desse modo o discurso tem um objetivo bem determinado e o mouere e o

suadere estatildeo agrave disposiccedilatildeo do declamador para sugerir accedilotildees consideradas uacuteteis (conveniente)

e honrosas (honestum)

De fato segundo Tunberg (2006 p 9) as obras de Erasmo especialmente o ldquoElogio a

Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo visam a indicar um caminho eacutetico e se ocupam do modo de

agir humano Para Chomarat (1981 p 937) o humanista visava a uma accedilatildeo poliacutetica marginal

ldquoconstituir-se propagandista de uma escolha poliacutetica feita por outros a fim de exercer uma

influecircncia moral sobre a opiniatildeo ou sobre os governantes que o honram mais do que o

escutamrdquo O proacuteprio Erasmo apontou essa intenccedilatildeo explicitamente ao inserir vaacuterias de suas

declamaccedilotildees inclusive a que estudamos no quarto volume da ediccedilatildeo de suas obras

completas publicadas em sua vida com o sugestivo tiacutetulo ldquoObras que visam agrave instruccedilatildeo dos

costumesrdquo (Cantos 2006 p 285) Tal propoacutesito eacute verificado por Tunberg (2006 p 17) ao

comentar a prosopopeia erasmiana da Paz

63

Nas declamaccedilotildees de Erasmo natildeo somente no que se refere ao Elogio da

Loucura mas tambeacutem agrave Queixa da Paz ambas apresentam uma noccedilatildeo vaga

ou abstrata de uma espeacutecie de mulher divina na qual se vecirc a capacidade de

falar e apontar com o dedo de que maneiras certos costumes humanos devem

ser emendados

Corrigir os costumes eacute tambeacutem tarefa do riso No ldquoElogio da Loucurardquo o lado satiacuterico

eacute evidente Na ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo parece querer moralizar a sociedade natildeo por meio da

saacutetira mas sobretudo da ironia da comparaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude entre o belo e o feio

Trata-se do uso do elogio e do vitupeacuterio como instrumentos de moralizaccedilatildeo Este recurso se

insere em uma concepccedilatildeo estrateacutegica ainda mais ampla de Erasmo segundo a qual a educaccedilatildeo

nos claacutessicos seria um instrumento para a moralizaccedilatildeo da sociedade de caraacuteter catequeacutetico

natildeo para sua paganizaccedilatildeo Para Sloane (2004 p 112) predominavam no Renascimento duas

formas de recepccedilatildeo dos claacutessicos a primeira prezava os autores antigos como fontes do prazer

da elocutio e a segunda como fonte de inspiraccedilatildeo para a imitatio Como vimos

anteriormente as declamaccedilotildees de Luciano aos olhos de Erasmo e More realizavam tal

propoacutesito com excelecircncia No caso do ldquoElogio da Loucurardquo o recurso agrave saacutetira eacute evidente mas

natildeo se deve deixar de observar tal aspecto nas demais declamaccedilotildees erasmianas nas quais

Margolin (1992 p 911) ao comentar a ldquoQueixa da Pazrdquo notou diversos recursos retoacutericos

como ldquoa ironia mas com mais coacutelera emoccedilatildeo e piedade em defesa do povo atingido pelos

reveses da guerrardquo Dessa forma pretende mostrar em quatro seccedilotildees de argumentos a

incoerecircncia dos humanos que defendem a guerra dos cristatildeos que guerreiam e dos priacutencipes

que governam com base na guerra e sobretudo a incongruecircncia da missatildeo clerical com o

ofiacutecio das armas

26 Declamaccedilatildeo escrita e integral

A ldquoQueixa da Pazrdquo foi concebida em forma escrita para ser publicada e natildeo haacute

evidecircncias de que existisse alguma espeacutecie de actio das declamaccedilotildees de Erasmo ou de outro

humanista ou seja de que elas fossem lidas em voz alta e na presenccedila de uma audiecircncia

ainda que em contexto familiar Nesse aspecto nota-se uma diferenccedila fundamental entre esta

declamaccedilatildeo e muitas das declamaccedilotildees antigas pois os humanistas natildeo visavam mais ao

deleite e agrave persuasatildeo do seu puacuteblico-alvo atraveacutes da modulaccedilatildeo da voz mas concentravam sua

atenccedilatildeo ao efeito agradaacutevel que a ordenaccedilatildeo e a escolha adequada das palavras e aos diversos

64

recursos retoacutericos poderiam causar em algueacutem que lia a obra na solidatildeo em pronunciar em voz

alta

Contudo o deleite produzido por um discurso no leitor solitaacuterio ou no ouvinte da

assembleia puacuteblica ou de um contexto iacutentimo ou familiar natildeo estaacute localizado apenas na

finalidade formal de que este teria sido escrito ldquopara ser pronunciadordquo ou ldquopara ser lido

individualmenterdquo mas sim na riqueza de figuras nos jogos de palavras e imagens e nos

diversos recursos que a retoacuterica disponibiliza de modo que a mera forma de veiculaccedilatildeo no

sentido de que ele deve ser lido individualmente ou em puacuteblico natildeo seria um fator suficiente

para descaracterizar um gecircnero Deve-se considerar que primeiro ainda que escrita a

declamaccedilatildeo imitava a forma dos textos falados Segundo porque ainda se praticava muito a

leitura puacuteblica Talvez Erasmo natildeo tenha ele mesmo lido seu texto em voz alta mas eacute bem

provaacutevel que ciacuterculos de amigos ou seguidores se reunissem para que um lesse para os outros

os ldquolanccedilamentosrdquo do mestre

27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico

Assim como ocorria na declamaccedilatildeo antiga a humanista tinha por audiecircncia a elite

letrada capaz de ler latim com naturalidade a ponto de compreender as ironias os sacarmos e

as entrelinhas contidas nos textos erasmianos Era esse puacuteblico que se deleitava com os jogos

e os exerciacutecios declamatoacuterios

Tais recursos retoacutericos estavam inseridos tambeacutem em um contexto poliacutetico de modo

anaacutelogo agrave praacutetica da declamaccedilatildeo imperial conforme jaacute analisamos Segundo evidecircncias

internas e externas apontadas por Beauduin (1991 Introduccedilatildeo) essa obra foi escrita em

Lovaina Beacutelgica em uma data e ocasiatildeo incerta natildeo posterior a novembro de 1516 quando

Erasmo ldquovisitou a corte por ocasiatildeo de uma assembleia dos maiores priacutencipes da eacutepocardquo

(Cantos 2006 p 23 Herding 1977 p 7) e estabeleceu contatos com pessoas influentes

como o Chanceler Montjoy (Erasmo Ep 516 Linhas 17-18 Carta a Pierre Gilles de 20 de

janeiro de 1517 1977 p 187) A ldquoQueixa da Pazrdquo foi publicada no decorrer do ano de 1517

tendo sido dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Note-se que Erasmo entre

os anos de 1515 e 1521 (Rummel 1996 p 243) era Conselheiro do Rei Carlos V (Herding

1977 p 8) da dinastia dos Habsburgos Rei dos Paiacuteses Baixos terra de Erasmo da Espanha

de Naacutepoles Siciacutelia e Jerusaleacutem e Duque da Borgonha cujo ducado haveria de ser anexado

65

pela Espanha no dia 23 de janeiro de 1517 (Bataillon 2007 p 81) A partir de 1519 o Rei

Carlos seria tambeacutem o Imperador dos Romanos (1519-1558) A famiacutelia dos Habsburgos cujo

centro de atividades era a Espanha jaacute era a mais poderosa dinastia europeia por volta da

publicaccedilatildeo da Queixa da Paz (1517) Bataillon (2007 p 81) com base nas cartas de Erasmo

informa que em virtude do cargo de conselheiro este chegou a receber rendimentos

espanhoacuteis mas natildeo aceitou o bispado de Zaragoza nem mudar-se para a corte espanhola a

fim de evitar o ambiente dividido em facccedilotildees e contaminado por posiccedilotildees poliacuteticas contraacuterias

a seus proacuteprios valores Erasmo desculpou-se de aceitar a prebenda episcopal e passou a

frequentar a Universidade de Lovaina onde esteve mais assiduamente entre os anos de 1515 e

1521 (Rummel 1996 p 243) dedicando-se ao estudo dos escritos biacuteblicos natildeo sem

aproveitar os recursos da ceacutelebre biblioteca (Bataillon 2007 p 82) Essa foi a fase de sua

vida que precedeu agraves mais acirradas controveacutersias teoloacutegicas que aos poucos foram minando

seu prestiacutegio de preceptor da Europa No ano de 1516 natildeo seria exagero afirma que o

holandecircs era o epicentro intelectual desse mundo fluente no latim A situaccedilatildeo duacutebia em que se

posicionou em relaccedilatildeo ao cargo de conselheiro oferecido pelo rei natildeo somente demonstra o

prestiacutegio e a influecircncia dos seus escritos mas tambeacutem uma espeacutecie de autonomia com a qual

o escritor pretendia apresentar suas ideias inclusive a despeito de prebendas e posiccedilotildees

poliacuteticas

Segundo Herding (1977 p 13) como evento histoacuterico proacuteximo que se pode

considerar o principal motivo da redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz deve-se destacar que

estavam em curso as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e

por fim da alianccedila franco-veneziana (1513-1516) Como alguns desses paiacuteses ou seus

soberanos satildeo explicitamente mencionados na Queixa da Paz13

uma tabela pode esclarecer o

intrincado jogo poliacutetico de interesses de naccedilotildees que essas ligas envolviam

13

Erasmo menciona os reis de modo respeitoso de modo a natildeo contrariaacute-los Sua menccedilatildeo poreacutem para os

conhecedores dos fatos poderiam soar como ironia ldquoPriacutencipe Carlos adolescente de iacutendole incorrupta E natildeo

descuida de mim o Imperador Maximiliano Nem a isso se recusa Henrique o iacutenclito rei da Inglaterrardquo (Erasmo

de Rotterdam Queixa da Paz) Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano

Alematildeo com apenas 17 anos de idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo do Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio

Habsburgo em 1519 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela

morreria dois anos depois Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia

a catolicidade do rei inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536

66

Alianccedilas durante as guerras posteriores agrave Liga de Cambrai

Liga de Cambrai (1508ndash10)

Estados Pontifiacutecios

Franccedila

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Coroa de Aragatildeo

Ducado de Ferrara

Repuacuteblica de Veneza

Alianccedila veneziana-papal (1510ndash11)

Estados Pontifiacutecios

Repuacuteblica de Veneza

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Franccedila

Ducado de Ferrara

Santa Liga contra Franccedila (1511ndash13)

Estados Pontifiacutecios

Repuacuteblica de Veneza

Espanha

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Inglaterra

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Franccedila

Ducado de Ferrara

Repuacuteblica de Florenccedila

Alianccedila franco-veneziana (1513ndash16)

Estados Pontifiacutecios

Espanha

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Inglaterra

Ducado de Milatildeo

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Repuacuteblica de Veneza

Franccedila

Escoacutecia

Ducado de Ferrara

67

Erasmo em sua Querela critica nominalmente o jaacute falecido Papa Juacutelio II que no

governo dos Estados Pontifiacutecios e por causa de suas alianccedilas militares passou para a Histoacuteria

como o ldquoPapa Guerreirordquo e que ele havia chamado de Julius Exclusus (1968 p 27)

expulsando-o do paraiacuteso por intermeacutedio de um Pedro que via no papa acompanhado de

soldados ldquoum espetaacuteculo nunca visto antes para natildeo dizer um monstrordquo Que este tenha sido

de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa ldquoQueixa da Pazrdquo prova-

o natildeo somente a alusatildeo aos paiacuteses ao final deste escrito mas o proacuteprio autor informou acerca

das circunstacircncias da redaccedilatildeo desse texto em uma carta endereccedilada a Joatildeo Botzheim

Escrevi a Queixa da paz haacute cerca de sete anos quando fui convidado pela

primeira vez para a corte do priacutencipe Faziam-se entatildeo grandes preparativos

em Cambrai para uma conferecircncia que reuniria os maiores priacutencipes do mundo

ndash o imperador o rei da Franccedila o rei de Inglaterra o nosso Carlos ndash a fim de

selarem entre si a paz com laccedilos de accedilo como eacute costume dizer-se Agrave frente

desta accedilatildeo diplomaacutetica achavam-se o ilustre Guilherme de Chiegravevres e Joatildeo

Sauvage grande chanceler vocacionado para o serviccedilo do Estado Opunham-

se a este projeto aqueles que natildeo viam nenhuma vantagem em que reinasse a

tranquilidade aqueles que segundo a expressatildeo de Filoacutexeno () preferem de

longe uma paz que natildeo seja uma paz uma guerra que natildeo seja uma guerra Foi

assim que a pedido de Joatildeo Sauvage escrevi a Queixa da Paz As coisas de

fato encaminharam-se de tal sorte que teria sido mais acertado escrever

Epitaacutefio da paz pois natildeo restam quaisquer esperanccedilas de que ela possa

escapar com vida (Erasmo de Rotterdam Epistola a Joatildeo Botzheim 1523

Correspondence of Eramus Toronto University Toronto Press 1989 p 319)

Nesta carta Erasmo poderia estar se referindo aos diversos conflitos ocorridos entre

1517 e 1523 como a Sexta Guerra da Itaacutelia (1521-1526) tambeacutem conhecida pela disputa

entre Valois e Habsburgos as duas mais importantes dinastias da Europa

Na epiacutestola introdutoacuteria publicada juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo

concebe o escrito como em defesa da Franccedila (Carta ao Bispo Felipe de Utrecht 1917 ll 23-

35) Contudo para Rodrigues Erasmo visava diretamente os interesses holandeses

a Queixa da Paz escrita jaacute tendo em vista Carlos de Gent como soberano dos

reinos espanhoacuteis enfatizava a necessidade de natildeo insistir na poliacutetica

antifrancesa da qual os Paiacuteses Baixos eram viacutetimas tradicionais Assim a

poliacutetica erasmiana assumia de acordo com Mesnarde os anseios dos corpos

sociais neerlandeses (Rodrigues 2012 p 154-155)

De fato alguns dos argumentos contidos no texto em estudo abordam as dificuldades

impostas agrave circulaccedilatildeo de mercadorias que era o motor econocircmico dos paiacuteses baixos e da

regiatildeo renana Entretanto pode-se dizer que natildeo seria correto afirmar Erasmo como defensor

dos interesses particulares da Franccedila dos Paiacuteses Baixos ou de qualquer dos contendores das

68

Guerras da Liga de Cambrai uma vez que seus argumentos a favor da paz satildeo aplicaacuteveis a

qualquer naccedilatildeo visam o bem da humanidade como eacute proacuteprio do irenismo defendido por ele

28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz

Erasmo seraacute o autor cujas obras foram mais difundidas comentadas e a partir de certo

momento tambeacutem contestadas como se pode averiguar pelas diversas reediccedilotildees traduccedilotildees e

referecircncias a estas em outros autores do periacuteodo Por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da

Pazrdquo o roterdamecircs recebeu algumas cartas de elogio conforme se denota do seu epistolaacuterio

(Allen Ep 95 n 1 II) ateacute o final da segunda deacutecada de 1500 nessa fase anterior agrave Reforma

em que o prestiacutegio de Erasmo o entatildeo ldquopreceptor da Europardquo era intocaacutevel Impressionam

ademais as inuacutemeras ediccedilotildees em latim e as diversas traduccedilotildees para os vernaacuteculos Margolin

(1992 p 911) informa a existecircncia de pelo menos vinte seis ediccedilotildees nos dozes anos

subsequentes agrave primeira ediccedilatildeo perfazendo a soma de mais de trinta ediccedilotildees tendo como

recorte o seacuteculo XVI (Rummel 1990 p 288) Contam-se ademais diversas traduccedilotildees para as

principais liacutenguas europeias ocidentais por exemplo duas traduccedilotildees para o alematildeo em 1521

uma para o francecircs e para outros vernaacuteculos incluindo o holandecircs cuja primeira apariccedilatildeo se

deu em 1567 (Augustijn 1995 p 73) Radice (1968 p 290) observa que embora Erasmo jaacute

houvesse falado contra a guerra em obras como ldquoPanegiacutericordquo (1504) e nos ldquoAdaacutegiosrdquo (1515)

deve-se considerar a Queixa da Paz ldquocomo o mais citado e celebrado apelo pela paz

universalrdquo Natildeo eacute de se admirar que seus principais trabalhos ateacute entatildeo publicados

especialmente sua traduccedilatildeo do ldquoNovo Testamentordquo e suas declamaccedilotildees ldquoElogio da Loucurardquo e

ldquoQueixa da Pazrdquo tenham-no tornado um pensador do norte prestigiado em toda a Europa

cujo centro cultural era a Itaacutelia a ponto de em 1522 Vives afirmar ldquoeacute de pasmar a admiraccedilatildeo

inspirada por Erasmo a todos os espanhoacuteis saacutebios ignorantes homens de igreja e secularesrdquo

(Epiacutestola de 6 de setembro de 1522 apud Bataillon 2007 p 156) Este testemunho pode ser

entendido como beneacutevolo e parcial uma vez que desconsidera os inuacutemeros ataques sofridos

por Erasmo na peniacutensula ibeacuterica sobretudo apoacutes as traduccedilotildees biacuteblicas e os acontecimentos da

Reforma Na verdade o proacuteprio ataque direto e polecircmico efetuado contra as traduccedilotildees soacute

atesta o alcance de sua influecircncia

69

29 A disposiccedilatildeo retoacuterica

Chomarat (1981 p 931) ao longo do capiacutetulo III de seu Grammaire et Rheacutetorique

chez Eacuterasme denominado La Declamation fornece uma lista de declamaccedilotildees e analisa esse

gecircnero tal como exercido pelo humanista holandecircs especialmente no ldquoElogio da Loucurardquo

No entanto o pesquisador dedicou apenas alguns paraacutegrafos agrave ldquoQueixa da Pazrdquo sem se

estender na explicaccedilatildeo de sua forma da sua disposiccedilatildeo segundo os ditames da retoacuterica e da

natureza dos seus argumentos limitando-se a estruturaacute-la em trecircs partes principais

A argumentaccedilatildeo desenvolve trecircs ideias sucessivas a natureza constituiu o

homem para a benevolecircncia e para a concoacuterdia a doutrina de Cristo consiste

na paz concorda com o amor muacutetuo a guerra eacute uma fonte de calamidades na

segunda parte bem mais longa apoacutes ter demonstrado a discoacuterdia que reina em

toda parte ateacute mesmo entre os monges e entre os esposos apesar do

ensinamento de Cristo a Paz descreve a presenccedila da guerra sobretudo nos

uacuteltimos dez anos com o aumento das agruras e do escacircndalo guerra entre os

cristatildeos guerra das quais participam os padres e mesmo os papas enfim oacute

dor guerras travadas em nome de Cristo a religiatildeo da paz foi pervertida ao

serviccedilo da guerra nos dois campos se recita o Pater Noster esta progressatildeo eacute

seguida de uma confutatio do argumento invocado por certos cristatildeos

segundo o qual os beligenrates obedecem a uma certa necessidade coagidos agrave

guerra apesar da sua proacutepria vontade Esta confutatio analisa as fontes reais

da guerra (as paixotildees) e afirma que a condiccedilatildeo primeira da paz eacute a vontade da

paz entre certos priacutencipes mas tambeacutem no clero e no povo Na terceira parte

salienta entre as consequecircncias dos conflitos armados natildeo somente as ruiacutenas

e a miseacuteria dos povos mas as liccedilotildees de infraccedilatildeo agraves leis o viacutecio e a impiedade

que daacute agrave guerra ldquoa desonra do nome cristatildeordquo [] A indignaccedilatildeo a dor a

piedade inspiram Erasmo a belas passagens os conselhos praacuteticos o apelo agrave

regularizaccedilatildeo dos conflitos atraveacutes de negociaccedilotildees a insistecircncia sobre a

responsabilidade destes diretores de opiniatildeo que satildeo os pregadores e os

conjuramentos aos priacutencipes cristatildeos que fazem perceber que esta declamaccedilatildeo

natildeo seria somente um exerciacutecio somente o artifiacutecio da prosopopeia manteacutem

ainda a Querela Pacis ao gecircnero que ilustraram obras precedentes [as demais

declamaccedilotildees] (Chomarat 1981 p 999-1000)

No ldquoSobre a abundacircnciardquo de 1512 Erasmo havia afirmado que ldquona ordem ou

disposiccedilatildeo eacute sumamente necessaacuterio o meacutetodordquo ou seja a loacutegica e a clareza da argumentaccedilatildeo

devem evitar uma sensaccedilatildeo de perturbaccedilatildeo ou confusatildeo (De Copia Liber II p 280 ll 95-99)

Deve-se distinguir nisso que o roterdamecircs tambeacutem chama de ordo ou constructio a sequecircncia

das palavras dentro de uma frase (De Copia Liber I p 75 ll 47-49) Para ele eacute necessaacuterio

selecionar as proposiccedilotildees de modo adequado justamente pelo criteacuterio do que se acha

conveniente ou agradaacutevel Deve-se pois hierarquizaacute-las e transitar entre elas tomando por

regra aquelas que satildeo mais proacuteximas umas das outras de modo que se evitem saltos temaacuteticos

natildeo adequados (De Copia Liber II p 228 ll 781-787) Erasmo preceituava no ldquoSobre

70

abundacircnciardquo assim como no subtiacutetulo ldquoSobre a ordemrdquo do seu ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo

(De conscribendi epistolis p 301 ll 2-15) que a ordem ou disposiccedilatildeo devem partir do

criteacuterio do que eacute ldquonaturalrdquo e do que eacute ldquoartiacutesticordquo aconselhando que deve ser menos frequente

o caraacuteter artiacutestico uma vez que os leitores natildeo satildeo do vulgo mas eruditos e que tais epiacutestolas

natildeo satildeo ouvidas mas lidas Ademais embora a disposiccedilatildeo seja necessaacuteria para a clareza em

alguns gecircneros como eacute o caso do epistolar essa disposiccedilatildeo deve ser dissimulada e natildeo

ostensiva Contudo o que Erasmo mais recomenda evitar eacute um texto confuso por falta de

disposiccedilatildeo adequada Ainda nesse escrito encontram-se no subtiacutetulo ldquoSobre o gecircnero

dissuasoacuteriordquo algumas afirmaccedilotildees pertinentes a respeito da suasoacuteria como eacute o caso da ldquoQueixa

da Pazrdquo no sentido de que recomenda a paz e desaconselha a guerra Para ele o ato de

desaconselhar algo a algueacutem implica na seleccedilatildeo de argumentos que satildeo desagradaacuteveis para

aquele que pretendemos dissuadir As proposiccedilotildees devem ser dispostas de modo que sua

compreensatildeo seja simplificada atraveacutes de exemplos e comparaccedilotildees sem deixar evidente a

disposiccedilatildeo (De conscribendi epistolis p 429 ll 5-20)

Do ponto de vista da disposiccedilatildeo a ldquoQueixa da Pazrdquo parece seguir uma subdivisatildeo

concorde com a tradiccedilatildeo retoacuterica (Silva 2015 p 60) que o proacuteprio Erasmo propunha que

fosse ensinada aos alunos em seu ldquoPlano de estudosrdquo (p 134 l 10-135 ll 1-5) Basicamente

ela se subdivide em

- Proecircmio (προοίμιονexordium)

- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio)

- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)

- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio)

No caso especiacutefico da declamaccedilatildeo irecircnica as ediccedilotildees inclusive aquelas revisadas por

Erasmo apresentam uma epiacutestola a Felipe Bispo de Utrecht (Carta ao Bispo Felipe de

Utrecht 1917 ll 23-35) que se assemelha agravequilo a que hoje correntemente se intitula como

dedicatoacuteria na qual o autor sauacuteda o bispo pelo novo cargo desejando-lhe o mesmo sucesso de

seus antepassados Em certo trecho desta epiacutestola menciona ainda a situaccedilatildeo de seu tempo

como motivaccedilatildeo para a redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

71

Jaacute no tiacutetulo da declamaccedilatildeo Erasmo explicita o tema ldquoQueixa da Paz perseguida e

rejeitada em toda parte pelas naccedilotildeesrdquo (Querela Pacis undique gentium eiectae

profligataeque) assim como ocorria nas controveacutersias senequianas que apresentavam a

temaacutetica de forma clara logo na primeira frase ou em um breve texto que introduzia a causa

em discussatildeo (Schwartz 2004 p 71) O tiacutetulo apresenta o tema principal do discurso (a Paz)

cuja causa eacute tiacutepica do gecircnero deliberativo e das antigas suasoriae a Paz eacute tratada tambeacutem

como uma personificaccedilatildeo ofendida a personagem principal e remetente do discurso tal como

ocorre na sexta suasoacuteria de Secircneca na qual Ciacutecero eacute o interlocutor fictiacutecio (Schwartz 2004 p

110) Esta apresenta sua queixa Trata-se do lamento da injuacuteria e da tentativa de destruiccedilatildeo

contra a Paz As declamaccedilotildees costumavam antepor suas personagens geralmente fictiacutecias em

uma disputa No caso da Querela jaacute no tiacutetulo da obra haacute personagens expliacutecitas (a Paz como

protagonista com voz ativa e as naccedilotildees sem voz ativa) e uma indicaccedilatildeo geneacuterica de lugar

(em toda parte) Todo o universo em todo lugar conspira contra a paz e esta apresenta sua

queixa com argumentos jaacute explorados pelo roterdamecircs no ldquoA guerra eacute doce para os

inexperientesrdquo (1515) e na ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo (1516) Contudo natildeo satildeo os

argumentos que diferenciam esta declamaccedilatildeo dos demais escritos em favor da paz ou

contraacuterios agrave guerra mas sim sua forma ou seja seu gecircnero assim como os recursos retoacutericos

presentes no texto

Aplicando a tradiccedilatildeo de disposiccedilatildeo retoacuterica agraves declamaccedilotildees podemos dividi-la nas

seguintes partes

- Proecircmio (προοίμιονexordium) (4- 29)14

- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio) (30-112)

- a primeira parte trata da paz entre os animais (30-112)

- a segunda parte trata da destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202)

- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)

- a primeira parte trata de Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido pelos que se

dizem cristatildeos (203-401)

14

Os nuacutemeros araacutebicos se referem agraves linhas da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi

Roterodami Opera Omnia Amsterdam 1978)

72

- a segunda parte trata do exemplo dos pagatildeos (402-435)

- a terceira parte trata de como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados

pela guerra (436-594)

- a quarta parte trata de sugestotildees para o priacutencipe evitar a guerra (595-871)

- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio) (872-918)

Em algumas ediccedilotildees a indicaccedilatildeo pax loquitur excluiacuteda da ediccedilatildeo criacutetica daacute iniacutecio ao

proecircmio (προοίμιονexordium) este localizado logo apoacutes a epiacutestola ao bispo Felipe e ao tiacutetulo

(1-3) Vem a seguir uma espeacutecie de auto-apresentaccedilatildeo da Paz (4-29) a qual fala na primeira

pessoa do singular descreve a si mesma e aos males que os homens injustamente cometem

contra ela e contra si mesmos

A narratio (διήγηζις) (30-202) pode ser dividida em duas partes a primeira trata da

paz entre os animais (30-112) cujo objetivo talvez seja mostrar que esta eacute conforme a

natureza ao passo que a guerra contraacuteria Esta eacute peacutessima justamente porque se opotildee agrave

natureza das coisas (rerum natura) e nisso os proacuteprios animais apesar de seres irracionais e

natildeo dotados da palavra serviriam de exemplo a ser seguido pelo homem Quando este se faz

guerreiro torna-se abjeto pois contraria sua natureza racional Jaacute a segunda parte trata da

destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) entre as linhas 113-130 Erasmo indica os

cristatildeos e a cidade como adversaacuterios dela que natildeo pode obter uma ldquomoradardquo entre eles Em

seguida volta-se contra os priacutencipes (131-142) os eruditos (143-157) e os religiosos (158-

189) Inclusive se refere agrave famiacutelia como lugar no qual ela eacute maltratada (190-194) O proacuteprio

homem eacute um ser dividido pois a razatildeo luta contra as paixotildees e estas entre si (195-200)

A confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio) pode ser subdividida em pelo menos quatro grandes

blocos a primeira parte trata do Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido por todos aqueles que

se dizem cristatildeos (203-401) Erasmo recusa aqui que o epiacuteteto ldquoDeus dos exeacutercitosrdquo presente

em trechos do Antigo Testamento possa servir de argumento a favor da guerra (223-230)

Verifica-se que a fala dirigida ao priacutencipe cristatildeo (249) se assemelha em certas partes do

discurso ao gecircnero speculum principum15

tatildeo em voga no Renascimento a ponto de Erasmo

ter dedicado vaacuterios de seus escritos a esse objeto nos quais inclusive incorrem argumentos

73

irecircnicos comuns agrave ldquoQueixa da Pazrdquo e que seratildeo considerados em pormenor abaixo O gecircnero

ldquoEspelho dos priacutencipesrdquo eacute uma espeacutecie de manual eacutetico e poliacutetico em que se detalham as

virtudes e os deveres de um priacutencipe ideal Tratava-se de uma tentativa de promover um

priacutencipe justo e um governo anaacutelogo Acreditava-se desde a antiguidade ateacute no periacuteodo

medieval que a formaccedilatildeo moral do governante determinaria a felicidade dos suacuteditos Se

Cristo eacute o priacutencipe da Paz natildeo cabe aos priacutencipes que se dizem cristatildeos promover a guerra

Homens reais satildeo entatildeo retratados como mais crueacuteis que personagens da histoacuteria ou da

antiga mitologia como Dioniacutesio e Mezecircncio (428-429) Uma terceira parte aborda como o

Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados pela guerra (436-594) Note-se o trecho

elogioso agrave Franccedila (436-450) que justifica o tom francoacutefilo do discurso cofnroem o pedido do

chanceler Joatildeo Sauvage que teria encomendado a redaccedilatildeo desta declamaccedilatildeo Entre 451e 473

Erasmo retorna ao argumento de que os homens satildeo mais crueacuteis que as feras O bloco mais

extenso do discurso a quarta parte da confirmaccedilatildeo dirige-se diretamente ao priacutencipe

apresentando sugestotildees para que este evite a guerra (595-871) O epiacutelogo (επίλογοςperoratio)

(872-918) apresenta-se sob uma forma de apelo a todas as pessoas a comeccedilar pelos

poderosos para que promovam a paz Segue-se o princiacutepio da rememoratio sugerido pelas

tradiccedilotildees dos manuais de retoacuterica com a finalidade de retomar rapidamente os argumentos

desenvolvidos anteriormente Finalmente o proacuteprio autor resume o conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida por todo o texto

Tudo nos convida a isso Em primeiro lugar o proacuteprio instinto da natureza e

se assim posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo lugar o proacuteprio

Cristo Priacutencipe e Autor de toda felicidade humana Depois as incontaacuteveis

vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero imenso das calamidades da

guerra Convidam agrave paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que como

que inspirados por Deus jaacute estatildeo propensos agrave concoacuterdia (Queixa da Paz 889-

892)

210 As sentenccedilas e os adaacutegios

Sentenccedilas e adaacutegios satildeo recursos recorrentes nas declamaccedilotildees erasmianas assim como

o foram na obra senequiana segundo as tradiccedilotildees retoacutericas antigas transmitidas por

Quintiliano (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria XII 10 48) Em epiacutestola a Willian Blount embora natildeo se

refira expressamente ao uso delas no gecircnero que estudamos afirma Erasmo sobre o uso de

sentenccedilas em geral

74

O proveacuterbio melhora com a idade exatamente como os vinhos Eles natildeo se

limitam a ornamentar o seu estilo Eles satildeo igualmente uacuteteis para tambeacutem lhe

dar forccedila Por esta razatildeo Quintiliano natildeo soacute os incluiu entre os meios de

aliviar o teacutedio judicial entre as figuras de oratoacuteria mas considera que o

exemplo proverbial eacute um dos meacutetodos mais eficazes de prova se o seu

propoacutesito eacute convencer ou para refutar o seu adversaacuterio por meio de um ditado

espirituoso ou para defender a sua proacutepria posiccedilatildeo (Epiacutestola 125 ll 56-65

Steyn junho de 1500 I The Correspondence of Erasmus I 1974 p 255

traduccedilatildeo do inglecircs para o portuguecircs)

Logo no iniacutecio do ldquoSobre a abundacircnciardquo Erasmo pontua como as sententiae satildeo

recursos basilares da sua retoacuterica que tecircm o poder de conferir qualidade e elegacircncia ao

discurso ainda que tambeacutem tragam em si ldquoo perigo natildeo reduzido de deixaacute-lo afetadordquo (De

Copia I 9 p 26) Um dos erros apontados pelo holandecircs eacute a inadequaccedilatildeo com o tema ou

com o argumento proposto ou seja um adaacutegio que contrariasse o que a antiga tradiccedilatildeo

retoacuterica nomeava como decoro ou entatildeo o uso exagerado qualificado como ldquosententiarum

turbardquo que natildeo eacute capaz de reduzir a pobreza inerente ao discurso (Ibid)

Deve-se salientar a diferenccedila entre sententia no sentido de proveacuterbio e a sentenccedila no

sentido frase ou oraccedilatildeo que tambeacutem foi objeto de consideraccedilatildeo do roterdamecircs Relembrando

a ceacutelebre disputa entre Ciacutecero e Roacutescio sobre qual dos dois seria capaz de repetir uma mesma

ideia com o maior nuacutemero de formas sinoniacutemicas concebe a proposiccedilatildeo fundamental segundo

a qual a variaccedilatildeo das sentenccedilas enriquece o discurso (De Copia I 40-45 p 28) Erasmo ousa

ainda afirmar que natildeo eacute somente a variaccedilatildeo copiosa das sentenccedilas que eacute capaz de tornar um

discurso eloquente mas tambeacutem a concisatildeo de modo que a parcimocircnia eacute um fator relevante

para um discurso retoricamente constituiacutedo

Natildeo raro temos de dizer a mesma coisa vaacuterias vezes mas nesse caso se faltar

variaccedilatildeo ou perderemos ou faremos como o cuco de modo que repitamos as

mesmas palavras repetidas vezes sendo incapaz de dar diferente forma ou

color para a sentenccedila de maneira que nossa falta de eloquecircncia pareceraacute

ridiacutecula a noacutes mesmos e esgotaraacute totalmente o nosso puacuteblico de miseraacutevel

cansaccedilo (De Copia I 130-134 p 32)

Nota-se o uso da expressatildeo color com um sentido semelhante agravequele utilizado por

Secircneca o Velho em suas declamaccedilotildees as quais haviam sido editadas por Erasmo um ano

antes da publicaccedilatildeo da Querela e que segundo Knott (1988 p 12) tiveram influecircncia direta

sobre a declamaccedilatildeo e a coleccedilatildeo de adaacutegios erasmiana Embora natildeo trate exatamente da

sentenccedila senequiana enquanto proveacuterbio ao longo do capiacutetulo XVII do De copia Erasmo

aborda um tema que possui certa analogia com o criteacuterio para a seleccedilatildeo das sentenccedilas Ao

75

discorrer sobre a importacircncia da metaacutefora ou das similitudines como recurso retoacuterico capaz de

conferir ao discurso ornamento gravidade sublimidade e humor (De Copia I 801-803 p

64) apresenta a coleccedilatildeo de adaacutegios (De conscribendis epistolis p 240 ll 15-16) que

enriquecem o texto mas que devem ser selecionados com criteacuterio ldquoa metaacutefora natildeo ser dura

ou baixa ou mais exagerada do que eacute adequado ou dessemelhante ou demasiado frequente

especialmente a que eacute da mesma espeacutecierdquo (De Copia I 817-818 p 64) Ao que parece

Erasmo se refere ao uso moderado natildeo repetitivo no tocante agrave forma e ao conteuacutedo da

sentenccedila

O proacuteprio roterdamecircs colecionou centenas de adaacutegios na ediccedilatildeo expandida publicada

em 1508 e que satildeo utilizados (De Copia I 812-814 p 64) segundo Knott (1988 p 12) natildeo

somente como meras traduccedilotildees para o latim quando advindos do grego ou meras citaccedilotildees

literais quando originaacuterios do latim mas em alguns casos satildeo parafraseadas ou ao menos

demonstram certa semelhanccedila justamente para dar variedade e elegacircncia agraves diversas

sentenccedilas muito embora a maioria delas seja apenas recolhida dos escritos antigos com a

finalidade de ornamentar o discurso como eacute o caso da ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo natildeo se

absteacutem do uso de adaacutegios com finalidade retoacuterica Nesse particular podemos constatar que

tais adaacutegios possuem trecircs fontes especiacuteficas e em muitos casos grafadas na ediccedilatildeo criacutetica da

Queixa da Paz e que de certo modo coincidem com a lista supracitada de Knott (1988 p

12) ao serem classificadas em quatro fontes as antigas as biacuteblicas as patriacutesticas e os

proacuteprios adaacutegios de Erasmo

Algumas destas referecircncias se configuram apenas como citaccedilotildees diretas ou indiretas

dos autores Algumas podem ser expliacutecitas como eacute o caso de Platatildeo (linhas 9 da epiacutestola-

prefaacutecio e (551) enquanto outras satildeo alusotildees como Liacutevio (1-3)16

de Homero (7517

) de

Oviacutedio (16218

) de Siacutelio Itaacutelico (21019

) de Ciacutecero (21820

e 75821

) de Virgiacutelio (46722

e 67023

) e

16

ldquoundique se suosque profligante fortunardquo (Livio 3319)

17 ldquoCirces pharmacisrdquo (Homero Odisseia X 235ss)

18 ldquovestes candidae meo colorerdquo (Ovidio Arte Amatoacuteria 3 502)

19 ldquopax optima rerumrdquo (Silio Puacutenicas XI 592ss)

20 ldquoa viro laudatordquo (Ciacutecero Disputas Tusculanas IV 31 67)

21 ldquosilent leges inter armardquo (Cicero Mil 4 10)

22 ldquoignobile vulgusrdquo (Virgiacutelio Aeneida I 149)

23 ldquoquae maacutexima turba estrdquo (Virgiacutelio Aeneida VI 611)

76

de Plauto (76424

) Haacute citaccedilotildees de adaacutegios recolhidos e selecionados por Erasmo em sua

proacutepria coletacircnea (linhas 1825

2226

6227

7728

9129

15530

50531

553-55632

803-80433

86634

e 90635

) Alguns satildeo inspirados em fontes antigas como o de Pliacutenio (5736

) de Horaacutecio (15237

)

ou de Aristoacuteteles (391)38

Erasmo de modo algum aconselha a seleccedilatildeo de sentenccedilas de um

uacutenico autor mas a imitaccedilatildeo e a coleccedilatildeo destas retiradas das mais variadas fontes inclusive as

de origem ou inspiraccedilatildeo biacuteblica e patriacutestica chegando inclusive a ridicularizar no ldquoDiaacutelogo

Ciceronianordquo (p 617 ll 9-12) mais especificamente no diaacutelogo entre as personagens

Nosoacutepono e Buleacuteforo os autores que se aferravam unicamente agrave coleccedilatildeo das sentenccedilas e

adaacutegios oriundos ou inspirados na obra atribuiacuteda a Ciacutecero Erasmo eacute ecleacutetico no elenco das

fontes mas foi constantemente acusado de falta de cuidado no uso das sentenccedilas

Conforme lecirc-se no ldquoPlano de estudosrdquo o estiacutemulo aos estudantes de retoacuterica para o

cultivo da coleccedilatildeo e o conhecimento de adaacutegios e sentenccedilas dos antigos eacute imprescindiacutevel para

o enriquecimento do discurso em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica antiga pois satildeo fontes

da invenccedilatildeo da abundacircncia e da variaccedilatildeo das sentenccedilas (De ratione studii p 149 ll 18-27)

Por fim Erasmo chega a afirmar explicitamente no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo a

necessaacuteria imitaccedilatildeo das sentenccedilas colecionadas entre os autores citando inclusive as

declamaccedilotildees de Luciano a Aulo Geacutelio (De conscribendis epistolis p 532 ll 8-12)

24

ldquoparietum perfossorrdquo (Plauto Pseud 9 8 6)

25 ldquoPax omnium bonarum rerum et parens est et nutrixrdquo (Erasmo Adagia 3001)

26 ldquoigens malorum pelagusrdquo (Erasmo Adagia 3001)

27 ldquoFuremque fur cognoscitrdquo (Erasmo Adagia 1263)

28 ldquouni lachrymas clementiar et misericordiae symbolumrdquo (Erasmo Adagia 3001)

29 ldquosolum hominem nundum produxitrdquo (Erasmo Adagia 3001)

30 ldquodentata chartardquo (Erasmo Adagia 87)

31 ldquoe suggesto sacrordquo (Erasmo Adagia 3001)

32 ldquordquoEthnicorum leges parriciacutediordquo (Erasmo Adagia 3918)

33 ldquoad Cares viliacutessimosrdquo (Erasmo Adagia 514)

34 ldquoActa est fabulardquo (Erasmo Adagia 239)

35 ldquoBellum e bello seriturrdquo (Erasmo Adagia 3001)

36 ldquoLeonum feritas inter se non dimicat serpentium morsus non petit serpentes ne maris quidem beluae ac pisces

nisi in diversar genera sacuiuntrdquo (Plinio Histoacuteria VII 5)

37 ldquode lana caprinardquo (Erasmo Adag 253 Horaacutecio Espiacutestulas I 1815)

38 ldquoConciliant homines malardquo ou ldquomala conciliant et malosrdquo (Erasmo Adagia 1071)

77

211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes

Se a declamaccedilatildeo desde o iniacutecio possuiu uma relaccedilatildeo estreita com outros gecircneros

como a oraccedilatildeo (oratio) e o diaacutelogo (sermocinatio) identificamos outro correlato o espelho

dos priacutencipes Ora natildeo somente o tema aproxima a ldquoQueixa da Pazrdquo da ldquoInstituiccedilatildeo do

priacutencipe cristatildeordquo mas tambeacutem sobretudo em algumas de suas partes que aconselham o

suserano Herding (1974 p 6) aponta que ainda o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInsituiccedilatildeo do

priniacutencipe cristatildeordquo se caracterizam como obras erasmianas pertencentes a esse gecircnero

literaacuterio Por outro lado os argumentos utilizados na ldquoQueixa da Pazrdquo ao parecer de Herding

(1974 p 9) configuram a proacutepria ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo como um tratado de iacutendole

irecircnica O autor (1975 p 98) tambeacutem observou que Plutarco cuja obra moral tinha sido

editada e publicada por Erasmo em 1514 pode ter influenciado o roterdamecircs na redaccedilatildeo de

seus escritos suasoacuterios e pedagoacutegicos dirigidos especificamente aos priacutencipes O proacuteprio

Erasmo jaacute na carta a Felipe aquela que introduz a ldquoQueixa da Pazrdquo dirige-se a membros da

nobreza e em epiacutestola a Joatildeo Botzheim datada do ano de 1523 afirma sua declamaccedilatildeo como

um escrito cujos destinataacuterios satildeo justamente membros governantes Herding (1974 p 100)

levanta a hipoacutetese de que tal como esta tambeacutem seu mais ceacutelebre espelho do priacutencipe tenha

sido encomendada pelo chanceler Joatildeo Sauvage Esse escrito entatildeo seria de suasoacuterio e

pedagoacutegico no sentido de sugerir atitudes moralizadoras das relaccedilotildees entre os priacutencipes e os

seus congecircneres entre estes e o povo

Em todo o texto da ldquoQueixa da Pazrdquo haacute cinquenta e seis repeticcedilotildees da palavra

ldquopriacutenciperdquo muitas vezes em uma funccedilatildeo apelativa atraveacutes do uso do vocativo Para Erasmo o

gecircnero speculum segue um modelo Cristo que eacute o ldquoPriacutencipe da pazrdquo (Queixa da Paz 205-

214) Erasmo trata do regente bom (614 e 770) ou pio (770) e se propotildee aconselhaacute-los a

deliberar em favor da Paz em nome de princiacutepios eacuteticos tal como eacute tiacutepico das suasoacuterias

(Queixa da Paz 205-214) Ateacute mesmo na peroraccedilatildeo a Paz novamente volta-se a eles (Queixa

da Paz 872-876) As dezenas de refecircncias ao governante e a semelhanccedila de alguns trechos

com o gecircnero espelho de priacutencipes natildeo desautorizam a classificar a ldquoQueixa da Pazrdquo como

declamaccedilatildeo pois o tema sobre a paz tiacutepico do gecircnero deliberativo e o objetivo de aconselhar

proacuteprio das suasoacuterias satildeo elementos correntes nas antigas declamaccedilotildees

Por fim deve-se considerar que Gaeta (1969) notou semelhanccedilas evidentes entre o

diaacutelogo filosoacutefico presente no exoacuterdio do ldquoSobre a Clemecircnciardquo do Jovem Secircneca com o da

78

ldquoQueixa da Pazrdquo Notei que grande semelhanccedila da Queixa da Paz com o exoacuterdio de Secircneca

(Sobre a clemecircncia 1-4) Aquele foi um escrito filosoacutefico-moral destinado ao jovem

imperador Nero de modo a contribuir com a formaccedilatildeo deste (Manjarreacutes 2001 p 85) e que

de modo fictiacutecio simula discursos diretos de Nero (ver I2) ao passo que na declamaccedilatildeo em

estudo a locuccedilatildeo direta eacute proferida pela proacutepria Paz Secircneca o Jovem inicia sua

argumentaccedilatildeo apresentando o proacuteprio Nero como fonte dos dons virtudes e bens e o contrasta

com a humanidade ldquobriguenta intriguenta e apaixonadardquo capaz de causar ldquoa ruiacutena para si

mesmardquo Secircneca instrui o imperador a se auto-apresentar como aquele que cumpre o ofiacutecio de

Deus sobre a terra como o aacuterbitro da vida e da morte Cabe ao governante decidir as posses

do homem pois a fortuna de cada um proveacutem da sua boca Ele deve decidir sobre qual

inimigo deve ser tratado com rigor ou clemecircncia pois cidades e civilizaccedilotildees florescem pelas

suas palavras Mas Nero prefere promover a paz para benefiacutecio dos povos que lhe satildeo

submetidos Jaacute consideramos e ainda aprofundaremos como a paz se apresenta de modo

anaacutelogo e com argumentos semelhantes Em ambos os discursos elaborados em primeira

pessoa usam-se as imagens da prosperidade para a paz e da destruiccedilatildeo para a guerra em

ambos embora a paz seja apresentada como agradaacutevel aos ceacuteus ou seja aos deuses e aos

homens esta natildeo eacute aceita e perde seu lugar para a guerra

212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio

Ao estudar a ldquoQueixa da Pazrdquo sob a perspectiva dos trecircs gecircneros notamos novamente

a ocorrecircncia especial de traccedilos destes gecircneros o deliberativo ou suasoacuterio e o demonstrativo

ou epidiacutetico O primeiro ocorre sobretudo nos trechos em que a Paz se configura como

beneacutevola conselheira (Queixa da Paz 595-597) A Paz volta-se ao suserano a fim de

aconselhaacute-lo referindo-se na forma da terceira pessoa do singular

A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os afetos privados e estimar todas as coisas

segundo o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe evite viagens a terras

longiacutenquas ou antes que nunca cruze os limites territoriais do seu reino

(Queixa da Paz 646-647)

A Paz tambeacutem utiliza a segunda pessoa do singular ao dirigir-se diretamente ao

cristatildeo a fim de defender sua causa tal como se verificou em jaacute citada parte da peroraccedilatildeo

(Queixa da Paz 872-876) Entretanto esta natildeo se dirige como conselheira apenas do poder

laico mas tenta persuadir o proacuteprio Sumo Pontiacutefice

79

Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice Romano Entretanto no momento em que os

povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras perversas ndash e isto por longos

anos ndash onde estaacute a autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde estaacute o seu

poder proacuteximo ao de Cristo Era nesse ponto e entatildeo que a autoridade papal

certamente deveria ser exercida a natildeo ser que os papas tambeacutem compartilhem

as mesmas ambiccedilotildees (Queixa da Paz 583-586)

Os conselhos deliberativos assumem a construccedilatildeo do futuro mas tambeacutem o

subjuntivo como por exemplo nesse trecho no qual a Paz sugere regras com finalidade

paciacutefica no tocante ao direito de sucessatildeo de territoacuterios

Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas possibilidades para governar sua

regiatildeo da melhor forma possiacutevel Pois quando estiver totalmente concentrado

no cuidado de um soacute reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus filhos

enriquecido por melhorias E desta forma como eacute evidente tudo floresceraacute

Que sejam aliados natildeo apenas por viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas

contratuais mas sim unidos por amizade sincera e pura e acima de tudo por

um idecircntico e comum amor por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei

seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais proacuteximo por consanguinidade quer

agravequele que pelos votos do povo for considerado o mais capaz Quanto aos

demais que lhes baste estar entre o nuacutemero dos nobres mais honrados (Queixa

da Paz 639-645)

Ao comentar o ldquoElogio ao matrimocircniordquo (1518) publicado um ano apoacutes a publicaccedilatildeo

da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517) Leushuis (2004 p 1287) estabelece uma definiccedilatildeo que parece

adequada agrave declamaccedilatildeo que estudamos

Primeiramente publicada em marccedilo de 1518 sob o tiacutetulo de Declamatio in

genere suasorio de laude matrimonii o texto combina elementos da

declamaccedilatildeo (declamatio) e do elogio (laus) Ao considerar a natureza geral da

declamaccedilatildeo pode-se dizer que o objetivo deste texto eacute discutir os argumentos

a favor e contra (in utramque partem) a tese (thesis) em um modo suasoacuterio

(genus suasorium) Na linha da tradiccedilatildeo claacutessica ciceroniana na qual o gecircnero

era usado para discutir uma questatildeo abstrata ou filosoacutefica [] as declamaccedilotildees

do iniacutecio do seacuteculo XVI expressam o valor dos julgamentos dos seus autores

sobre problemas morais ou eacuteticos por meio da retoacuterica do louvor ou do

vitupeacuterio (laus e vituperatio) (Leushuis 2004 p 1287)

Aleacutem disso Querela pode ser traduzido por queixa lamento ou queixume mas

tambeacutem possui um sentido muito proacuteximo a vitupeacuterio ou reclamaccedilatildeo pois quem se queixa

vitupera reclama ou lamenta algo39

Verificou-se alguns trechos da declamaccedilatildeo que

apresentam traccedilos do gecircnero epidiacutetico como quando Erasmo empresta a voz para a Paz fazer

sua proacutepria exaltaccedilatildeo na primeira pessoa do singular (Queixa da Paz 18-21) Em outra parte

a Paz exalta-se a si mesma com o uso da terceira pessoa do singular ldquoCom tatildeo grande nuacutemero

39

Cf Gaffiot F Latin Dictionnaire Latin-Franccedilais Paris Hachette 2000 Voz Querela

80

de argumentos a natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela nos convida com tatildeo grande

nuacutemero de seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com tantos laccedilos e razotildeesrdquo (Queixa da

Paz 103-104) Erasmo tambeacutem utiliza o arqueacutetipo de Cristo como argumento para exaltaacute-la

(Queixa da Paz 203-222)

Em vaacuterios trechos a Paz se auto-elogia por meio de uma comparaccedilatildeo com Cristo a

fim de exaltar seu proacuteprio ecircthos e de associar-se a sua autoridade assim como agravequela de Davi

e Salomatildeo monarcas biacuteblicos que favoreceram Israel com a prosperidade gerada pela paz

Erasmo estabelece um contraste tiacutepico do gecircnero epidiacutetico que satildeo as vituperaccedilotildees agrave causa

contraacuteria sucessivas aos elogios agrave causa que se estaacute defendendo (Queixa da Paz 237-248)

Em outro excerto o paralelismo entre vituperaccedilatildeo e elogio eacute alternado Comeccedila-se

pela censura e passa-se ao encocircmio e vice-versa

Que os mortais desculpem com sua fraqueza o que quiserem mas se de fato

natildeo amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo entre si com batalhas

contiacutenuas Olhai para o Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que outra

coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o

cumprimento da paz ldquoa paz esteja convoscordquo e lhes prescreveu essa forma de

saudaccedilatildeo como a uacutenica digna dos cristatildeos Os Apoacutestolos natildeo se esqueceram

desses preceitos e recomendavam a paz em suas cartas e desejavam paz

agravequeles a que amavam de forma especial Escolhe coisa importante quem faz

votos pela sauacutede mas estaacute desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha

recomentado durante toda a sua vida nunca deixou de a recomendar Vede

com quatildeo grande solicitude a recomenda quando estava prestes a morrer

ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos tenho amadordquo E novamente ldquoeu vos

deixo a paz eu vos dou a minha pazrdquo (Queixa da Paz 259-268)

A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem pode ser vista como pertencente agrave espeacutecie do epidiacutetico

chamada lamentaccedilatildeo Tal fenocircmeno corre logo no exordium (Queixa da Paz 4-17)

Destacam-se no trecho supracitado alguns verbos que denotam a lamentaccedilatildeo deplorare e

deflendi sunt assim como a expressatildeo mea iniuria Esse formato de lamento ocorre em

vaacuterios trechos esparsos pela obra como o iniacutecio do primeiro argumento no qual Erasmo

defende que a guerra contraria a natureza humana (Queixa da Paz 30-31) Em um longo

periacuteodo a personificaccedilatildeo da Paz lamenta ou vitupera o fato de ter sido destruiacuteda pelos

homens inclusive pelos cristatildeos pois foi de fato destruiacuteda ldquoem toda parterdquo como se declara

no tiacutetulo da declamaccedilatildeo (Queixa da Paz 122-123) O lamento da Paz se volta contra os

governantes

81

Entretanto oacute coisa indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar sequer a

sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute fingido e simulado natildeo haacute nada que

natildeo seja corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por divergecircncias e

rivalidades ocultas No final natildeo encontro o trono da paz entre eles mas antes

eacute aiacute que mais estatildeo as fontes e origens de todas as guerras (Queixa da Paz

136-140 )40

A personificaccedilatildeo da Paz amplifica a lamentaccedilatildeo ao descrever suas decepccedilotildees junto a

diversas classes da sociedade os eruditos o clero secular e mesmo entre aqueles que mais

deveriam primar pela ldquoperfeiccedilatildeo da caridaderdquo ou seja que deveriam se destacar pela virtude e

pelo exemplo aos demais atraveacutes da vida humilde no interior de um convento (Queixa da

Paz 184-189)

A Paz natildeo encontrou seu lugar junto aos governantes nem junto agrave hierarquia

eclesiaacutestica dos altos graus ateacute os mais iacutenfimos Nota-se a decepccedilatildeo para com a estrutura

institucional da igreja Essa lamentaccedilatildeo ocupa consideraacutevel espaccedilo dentro da declamaccedilatildeo e

parece ser o objeto principal da queixa uma vez que outros setores da sociedade satildeo

mencionados em trechos comparativamente reduzidos como eacute o caso da destruiccedilatildeo da paz na

famiacutelia Esta vitupera com veemecircncia sobretudo contra os cleacuterigos bispos e papas como eacute o

caso de Juacutelio II os quais apesar do ofiacutecio eclesiaacutestico passaram para a histoacuteria como

guerreiros (Shaw 1993 p 15) Esse Papa havia inclusive conferido o estandarte da cruz aos

suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute (Queixa da Paz 520-540)

Tal recurso ocorre na peroratio construiacuteda por Erasmo na qual se evoca natildeo somente

o principado ou o sacerdoacutecio mas tambeacutem o povo (Queixa da Paz 867-888) Deve-se

pontuar contudo que sendo um texto escrito em latim em uma eacutepoca na qual grassava o

analfabetismo significaria uma exclusatildeo do povo Potanto a restriccedilatildeo do puacuteblico-alvo agravequeles

que sabiam ler natildeo exclui o apelo universal que a Paz se julga no direito de proferir Esta eacute

chamada a habitar em toda parte muito embora tenha sido injuriada e perseguida

213 Conclusotildees do capiacutetulo

No capiacutetulo segundo caracterizamos o gecircnero declamaccedilatildeo segundo Erasmo

definindo-o como um discurso fictiacutecio escrito em prosa com caraacuteter de exerciacutecio da

40

At o rem indignam apud hos nec umbram verae concordiae licuit cernere Fucata fictaque omniafactionibus

apertis clanculariis dissidiis ac simultatibus corrupta sunt universa Denique adeo apud hos non esse sedem paci

comperio ut hinc potius omnium bellorum fontes ac seminaria (Erasmo Queixa da Paz 136-140)

82

eloquecircncia cuja finalidade eacute simultaneamente educativa no sentido de ser formativa do ponto

de vista eacutetico ao aconselhar valores humanos condizentes com os ideais irecircnicos e literaacuteria

ao apresentar-se como um divertimento na medida em que procura comprazer o leitor atraveacutes

de formas elegantes e metaacuteforas que visam provocar o riso

Verificou-se que restaram ao menos onze declamaccedilotildees de autoria de Erasmo e que

algumas se assemelham ao diaacutelogo por apresentarem mais de uma personagem que emitem

discursos diretos reciprocamente direcionados As declamaccedilotildees erasmianas divergem das

senequianas e equiparam-se agraves gregas no sentido de que eram escritas integralmente ou seja

tal como haveriam de ser pronunciadas Em oposiccedilatildeo a estas estatildeo as controveacutersias de

Secircneca que eram redigidas de modo fragmentaacuterio e que possivelmente natildeo eram lidas em voz

alta da mesma forma que eram escritas muito embora tivessem a finalidade de exercitar a

actio entendida como o exerciacutecio da modulaccedilatildeo da voz tal como a declamaccedilatildeo mencionada

em Ciacutecero ou na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo

A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem apresentou traccedilos caracteriacutesticos de outros gecircneros antigos

retomados pelos humanistas tais como a oratoacuteria o espelho dos priacutencipes o panegiacuterico o

tratado moral a epiacutestola suasoacuteria e o diaacutelogo Aleacutem disso verificou-se que de modo

semelhante ao praticado nas declamaccedilotildees gregas os humanistas apresentavam elementos do

gecircnero epidiacutetico e deliberativo no primeiro caso haacute elogios agrave paz tanto em suas

autodescriccedilotildees como na enumeraccedilatildeo dos benefiacutecios que esta concede aos mortais mas

tambeacutem haacute trechos nos quais ela vitupera contra a guerra seus propugnadores e os vaacuterios

malefiacutecios desta sobre os homens em particular e sobre a sociedade Elogiar e vituperar

configuram-se entatildeo como traccedilos do gecircnero epidiacutetico no discurso irecircnico da Paz Contudo o

tema da paz eacute tiacutepico do deliberativo e alguns trechos apresentam uma forma de deliberaccedilatildeo a

favor de sua proacutepria causa apresentando os argumentos a favor da guerra somente na medida

em que satildeo imprescindiacuteveis para a confutaccedilatildeo ou o desaconselhamento

83

CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ

O presente capiacutetulo tem o objetivo de tratar da caracterizaccedilatildeo da prosopopeia realizada

na ldquoQueixa da Pazrdquo A partir da anaacutelise sobretudo do exordium da declamaccedilatildeo (1-29) e de

outras partes que se fizerem pertinentes o estudo visa a apresentar os traccedilos da personificaccedilatildeo

por meio de seu proacuteprio discurso uma vez que esta declamaccedilatildeo se caracteriza como um uacutenico

discurso o da Paz e natildeo apresenta qualquer narrativa introdutoacuteria em terceira pessoa

31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo

Para Erasmo a prosopopeia eacute o discurso de um ente humanizado uma personificaccedilatildeo

que estando longe ausente ou morta estabelece uma fala um discurso direto (De copia II

389-397) Sua definiccedilatildeo recupera a antiga tradiccedilatildeo retoacuterica presente em manuais e autores

renomados entre outros possiacuteveis exemplos como na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (IV 53 66) O

exemplo de Platatildeo como prosopopeia tambeacutem estaacute presente em Ciacutecero (Fin IV 22 61) Para

Erasmo uma prosopopeia deve parecer verossiacutemil aos leitores (De copia II 388-389)

Permite ademais tratar de assuntos seacuterios ou graves sobretudo quando simula o discurso da

paacutetria da natureza da repuacuteblica ou da proviacutencia Erasmo chega a citar as proacuteprias

ldquoCatilinaacuteriasrdquo e a locuccedilatildeo de Soacutecrates no diaacutelogo ldquoCriacutetonrdquo de Platatildeo para fundamentar seu

ponto de vista (De Copia II 389-405) Para ele a prosopopeia permite dar voz ldquomuitas vezes

aos proacuteprios deuses aos locais e a muitas coisas mudas com as quais ornamos o discursordquo (De

copia II 406-407) Conveacutem contudo consignar que Erasmo natildeo distingue entre uma

prosopopeia no sentido de uma pessoa ausente que toma a voz e uma personificaccedilatildeo

entendida como uma abstraccedilatildeo ndash como eacute o caso da paz ndash ou um objeto ou animal que

usualmente natildeo tem a habilidade da fala

32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas

Erasmo aleacutem de leitor tradutor e editor de escritos antigos tambeacutem era exegeta e

teoacutelogo e portanto dispunha para a invenccedilatildeo do corpus biacuteblico escrito em grego em pleno

periacuteodo heleniacutestico ou da sua versatildeo latina a ldquoVulgatardquo revisada por Jerocircnimo datada do

seacuteculo IV d C Sem duacutevida estas fontes contribuiacuteram para a forma de alguns trechos da

ldquoQueixa da Pazrdquo Em 1517 fazia cerca de um ano que ele havia publicado sua traduccedilatildeo para o

84

latim do Novo Testamento grego apoacutes um amplo trabalho de criacutetica dos manuscritos e

seleccedilatildeo das variantes possivelmente mais originais estabelecendo criteacuterios ainda hoje

utilizados nas ediccedilotildees criacuteticas de escritos antigos

No texto biacuteblico entre outras significativas personificaccedilotildees abstratas femininas tem-

se a ἀγάπη a caridade (Ad Corinthios I 134-13) e a Γσνὴ ἄθρων a mulher louca ou senhora

loucura (Proverbia 913-18) Destaca-se no ldquoLivro da Sabedoriardquo escrito por volta do seacuteculo

II a C no Egito o qual conteacutem a personificaccedilatildeo da sabedoria como uma mulher bela uma

matildee rica fonte de ciecircncia e ldquocriadorardquo de todas as coisas de uma forma semelhante agrave paz Ela

seria a antiacutetese da Loucura que seria a matildee de todas as maldades e contradiccedilotildees humanas O

autor biacuteblico imagina-se inclusive em desponsoacuterio com a sabedoria a qual se enamorou de

modo anaacutelogo a uma ninfa

A sabedoria eacute radiante e imarcesciacutevel Aqueles que a amam a contemplam

com facilidade e os que a procuram a encontram Ela se antecipa e se faz

conhecer aos que a desejam quem madruga por ela natildeo se cansaraacute pois a

encontraraacute sentada agrave sua porta Meditar nela eacute a perfeiccedilatildeo da prudecircncia e o

que vigia por sua causa logo se encontraraacute sem perigo Com efeito ela vai agrave

procura dos que a merecem nos caminhos mostra-se benigna e os precede em

cada pensamento Seu verdadeiro princiacutepio eacute o desejo da instruccedilatildeo empenho

da instruccedilatildeo eacute o amor e o amor a observaccedilatildeo das leis mas a guarda das leis eacute

a confirmaccedilatildeo da incorruptibilidade a incorruptibilidade verdadeiramente faz

estar proacuteximo de Deus Portanto o desejo de sabedoria conduz agrave realeza Oacute

tiranos dos povos se vos deleitais com tronos e cetros honrai pois a

sabedoria a fim de que reineis eternamente Anunciarei-vos o que eacute a

sabedoria e como ela se originou e natildeo vos esconderei os misteacuterios poreacutem

desde o iniacutecio de sua origem investigarei e farei manifesto o seu

conhecimento e natildeo me apartarei da verdade nem farei caminho com inveja

corruptora porque ela jamais comungaraacute com a sabedoria (Sapientia 6 12-

23)

Outra personificaccedilatildeo biacuteblica que certamente influenciou o caraacuteter amaacutevel da Paz seria

a caridade usada por Paulo autor explicitamente citado na ldquoQueixa da Pazrdquo em seis trechos

(169 215 710 712 735 835) Esta estaacute presente em uma de suas cartas redigidas

originariamente em grego koineacute Nota-se que a antiacutetese loucura-sabedoria utilizada por

Erasmo no ldquoElogio da Loucurardquo pode ter muito provavelmente sua origem ou inspiraccedilatildeo nos

escritos sapienciais biacuteblicos sejam veterotestamentaacuterios sejam paulinos A grande diferenccedila

contudo das ficccedilotildees de Erasmo para com aqueles textos consiste no uso da primeira pessoa

do singular numa estrutura de monoacutelogo no qual a personagem fala de si mesma e discorre

85

longamente sobre o tema em questatildeo abrangendo inclusive a totalidade do discurso e natildeo

somente alguns trechos

Na literatura biacuteblica aleacutem da primeira pessoa do singular verificam-se descriccedilotildees

dessas prosopopeias abstratas na terceira pessoa do singular o que eacute evitado no ldquoElogio da

Loucurardquo e na ldquoQueixa da Pazrdquo Esta seria a grande novidade que Erasmo proporcionou agrave

declamaccedilatildeo enquanto gecircnero antigo recebido no Renascimento (Chomarat 1981 p 940

Kennedy 1978 p 85) Ao comentar genericamente as personificaccedilotildees da Loucura e da Paz

Kennedy (1978 p 79) afirma que Erasmo ldquoincorporou usos da voz e intensidade que

romperam os limites da locuccedilatildeo e as proacuteprias barreiras linguiacutesticas transcendendo as

convenccedilotildees ciceronianas ou aacuteticas que no periacuteodo se procuravam associarrdquo Nesse sentido

rompeu os paradigmas biacuteblicos ao conceder a suas personificaccedilotildees simulaccedilatildeo de um discurso

direto de um monoacutelogo na integralidade do opuacutesculo Diferenciam-se inclusive dos diaacutelogos

presentes em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo com as personificaccedilotildees do amado e da amada embora

sejam apresentados em discursos diretos Estas tambeacutem se distinguem das declamaccedilotildees

erasmianas pois entatildeo em forma de diaacutelogo inclusive com a presenccedila de outros personagens

natildeo protagonistas e tais discursos diretos do casal natildeo ocupam a integralidade do livro

33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio

Se quanto agrave personificaccedilatildeo simulada a ldquoQueixa da Pazrdquo muito se assemelha a alguns

trechos biacuteblicos a forma de um monoacutelogo inteiramente atribuiacutedo a uma prosopopeia feminina

eacute encontrada poreacutem nos poemas elegiacuteacos das epiacutestolas que Oviacutedio escreveu e denominou

posteriormente como ldquoHeroidesrdquo Embora esta natildeo contenha personificaccedilotildees conveacutem aqui

consideraacute-la Trata-se de uma coleccedilatildeo de vinte e uma cartas de amor escritas e dirigidas a seus

amados por personagens femininas da mitologia e da literatura com exceccedilatildeo de trecircs cartas

que satildeo dirigidas por homens agraves suas amantes A ausecircncia o esquecimento a distacircncia o

abandono ou a perda funcionam como pontos de partida para que as heroiacutenas dediquem cartas

e se lamentem dos seus amores insatisfeitos por diversas causas As heroiacutenas procedem de

diferentes mitos e gecircneros literaacuterios como os poemas homeacutericos a trageacutedia a liacuterica a eacutepica

entre outros Oviacutedio adapta as personagens femininas agrave sua sensibilidade elegiacuteaca com a qual

desenvolve o tema do amor por exemplo na epiacutestola de Peneacutelope a qual expressa em sua

carta a Ulisses sentimentos amorosos (Heroides 1) apenas esboccedilados na ldquoOdisseiardquo Soto

86

(2012 p 52) nota que Oviacutedio caracterizou as amantes e concubinas de forma mais atraente e

beneacutevola que a empregada para descrever as esposas que muitas vezes causavam problemas

aos seus esposos Esta ideia contrariava frontalmente a moral de Augusto que visava por

meio de decretos a proteger os ldquobons costumesrdquo na sociedade romana Soto (2012 p 51)

tambeacutem nota que as personagens mitoloacutegicas caracterizadas por Oviacutedio correspondem mais agraves

mulheres do seu tempo do que agraves proacuteprias narrativas mitoloacutegicas Ao comentar as ldquoHeroidesrdquo

observa Margolin (1971 p 224 nota 8) os discursos diretos ldquoaplicam as liccedilotildees de retoacuterica

que ele [Oviacutedio] teria recebido junto aos mestres Aureacutelio Fusco e Porcio Latro Oviacutedio natildeo

procura nelas a verossimilhanccedila histoacuterica Elas pertencem agrave tradiccedilatildeo das suasoriaerdquo

Verificaram-se referecircncias de Erasmo agraves ldquoHeroidesrdquo nos ldquoAdaacutegiosrdquo no ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo

(p 42 ll 538-543) e no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo eacute justamente no trecho desta terceira

obra cujo subtiacutetulo Peculiaris epistolae character em que Erasmo trata da caracterizaccedilatildeo das

personificaccedilotildees que se deu a referecircncia agraves ldquoHeroidesrdquo agraves quais natildeo hesitou em chamar de

ldquopequenas declamaccedilotildeesrdquo (declamatiuncula) (De conscribendis epistolis p 224 ll 5-10)41

Em algumas das ediccedilotildees revisadas pelo autor o exordium da declamaccedilatildeo irecircnica de

Erasmo eacute precedido pela indicaccedilatildeo da pessoa que fala no monoacutelogo declamatoacuterio pax

loquitur Esse subtiacutetulo visa a salientar que a declamaccedilatildeo seraacute feita pela proacutepria Paz que

personificada se queixa lamenta ou manifesta sua inconformidade com a injusta perseguiccedilatildeo

que os homens fazem contra ela embora ela por sua natureza beneacutevola seja capaz de

comunicar aos homens todos os bens naturais e sobrenaturais individuais e coletivos Eis

assim que a ldquoQueixa da pazrdquo se tornaraacute como o proacuteprio Erasmo mais tarde afirmou o

ldquoEpitaacutefio da Pazrdquo tatildeo rejeitada ao longo da Histoacuteria e sobretudo naquele iniacutecio do seacuteculo

XVI (na Epiacutestola a Joatildeo Botzheim) Trata-se de um traccedilo de ligaccedilatildeo com a elegia que teve

iniacutecio como canto fuacutenebre O uso da personificaccedilatildeo se baseava no princiacutepio defendido pelo

roterdamecircs ldquoa personificaccedilatildeo eacute variaacutevel de diversas formas o escritor pode selecionar a que

deseja que se deve fazer Assim como eacute o homem assim deve ser sua accedilatildeordquo (De Copia I

13) Esta teoria remonta agrave construccedilatildeo de caracteres (ἦθος) jaacute presente nas poeacuteticas de

Aristoacuteteles (Poeacutetica 6 12-15) e Horaacutecio (Ars Poetica 153-178)

41

Margolin (1971 p 253 nota 6) tambeacutem visualizou uma referecircncia indireta agraves heroidas no seguinte trecho ldquoIn

hoc argumenta poterit et illud admoneri blandiorem oportere flngi epistolam quam adolescens adolescenti

congerro congerroni amans scrihit amantirdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 253 ll 5-7) como tambeacutem

no seguinte trecho ao se falar do retorno de Ulisses agrave proximidade de Peneacutelope descrita nas Heroidas de Oviacutedio

ldquoQuum ad vxores ventum est tum jiunt seneserdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 269 l 17)

87

34 Personificaccedilotildees femininas

Chomarat (1981 p 1000) afirma que a personificaccedilatildeo da Paz possui duas

caracteriacutesticas essenciais eacute feminina e abstrata Isso natildeo somente porque pax em latim eacute um

substantivo feminino mas por sua proacutepria caracterizaccedilatildeo por Erasmo Aristoacuteteles apontou que

haacute caracteres adequados e distintos agrave personificaccedilatildeo masculina e agrave feminina ldquosem duacutevida

existem caracteres viris entretanto a coragem desta espeacutecie de caracteres natildeo conveacutem agrave

natureza femininardquo (Poeacutetica 15 4) Se o Estagirita aponta a coragem como um elemento

proacuteprio ao homem para Mendelson (1994 p 94) Quintiliano recomendava que a actio

considerasse no caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava e em seu auditoacuterio alguns fatores

relevantes como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade sexo idade partido e

acima de tudo seu caraacuteter moral (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 37-38) Tambeacutem no ldquoDe copiardquo

(II 384-389) ele se refere agrave consideraccedilatildeo do gecircnero da pessoa que emite o discurso Deste

modo verifica-se que o recurso agrave caracterizaccedilatildeo do feminino eacute um fator relevante dentre as

estrateacutegias de persuasatildeo exploradas por Erasmo ao personificar a Paz como uma saacutebia e

compassiva mulher (Spierling 2008 p 119) que se dirige a todos os mortais para convencecirc-

los das vantagens individuais e sociais da paz apresentando razotildees naturais tais como a

incompatibilidade entre a natureza e a guerra e as consequecircncias inconvenientes da guerra no

plano poliacutetico e soacutecio-econocircmico Do ponto de vista religioso a guerra natildeo corresponde ao

ideal da cavalaria medieval e da propagaccedilatildeo da feacute Erasmo denuncia a incoerecircncia com a

doutrina cristatilde por parte de bispos e pregadores agentes da guerra ainda que por motivos

ldquojustosrdquo ou ldquosantosrdquo mas muitas vezes insignificantes

Embora a personificaccedilatildeo erasmiana natildeo seja uma prosopopeia feminina isto eacute

representasse a ficccedilatildeo de uma mulher ldquoem concretordquo ndash como encontramos nas ldquoHeroidesrdquo ndash

mas sim de uma abstraccedilatildeo ou alegoria como no caso da paz ou da loucura ou por exemplo

como encontramos em Ciacutecero ao atribuir uma voz agrave paacutetria e agrave repuacuteblica no iniacutecio das

ldquoPrimeiras Catilinaacuteriasrdquo (718 11 27) eacute justamente nesse ponto entre outros que

encontramos mais uma inovaccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana

Erasmo escreveu vaacuterias de suas obras tendo a figura da mulher dentro do contexto do

matrimocircnio seja na fase anterior (virgens) durante este (casadas) ou posterior (viuvez) tais

como o ldquoElogio do matrimocircniordquo (1518) o ldquoPretendentes e meninasrdquo (1523) o ldquoVirgem

misoacutegamardquo (1523) o ldquoVirgem penitenterdquo (1523) o ldquoEsposa mempsigama ou casamentordquo

88

(1523) e alguma trechos do ldquoInstituiccedilatildeo do matrimocircnio cristatildeordquo (1526) Sua declamaccedilatildeo

ldquoElogio do matrimocircniordquo e o seu tratado sobre a viuvez assim como vaacuterios de seus coloacutequios

lidam com a virgindade o namoro o casamento a criaccedilatildeo de filhos e a viuvez (Chomarat

1981 p 894) assuntos que tocam diretamente em questotildees da relaccedilatildeo entre os gecircneros

masculino e feminino Sowards (1982 p 88) apresenta alguns pontos especiacuteficos na

concepccedilatildeo erasmiana acerca da mulher a necessidade de lhes prestar a educaccedilatildeo em

conformidade com os humanistas italianos que julgavam ser esta essencial para uma formaccedilatildeo

moral que preserve a virgindade preacute-matrimonial aleacutem disso compreendia a liberdade da

mulher na escolha do cocircnjuge Este enfoque em questotildees de castidade deve-se agraves discussotildees

acerca da exaltaccedilatildeo do celibato sobre ao matrimocircnio que Erasmo confuta promovendo um

elogio e uma suasoacuteria do matrimocircnio (Leushuis 2004 p 1287-1307) Se de um lado a Paz

se reveste dos caracteres femininos Erasmo tambeacutem cita uma frase paulina afirmando que

natildeo se pode fazer distinccedilatildeo ldquoentre grego e baacuterbaro entre homem e mulherrdquo onde se nota

abertura para a consideraccedilatildeo de certa igualdade entre os gecircneros ldquoA partir daiacute natildeo haacute mais

servos e homens livres baacuterbaros e gregos homens e mulheres mas todos satildeo o mesmo em

Cristo que tudo conduziu agrave concoacuterdiardquo (Queixa da Paz 369-370)

Em alguns trechos escritos por Erasmo haacute a transcriccedilatildeo de alguns estereoacutetipos do sexo

feminino

O sexo feminino eacute afligido por dois viacutecios Elas vivem para agradar na

aparecircncia Este desejo eacute originaacuterio na vangloacuteria Segundo elas natildeo podem

tolerar injuacuterias e satildeo propensas agrave vinganccedila Isso se deve agrave fraqueza dos seus

intelectos e agrave sua ignoracircncia para com a verdadeira nobreza Uma mente

realmente nobre releva a injuacuteria Ademais como a mulher eacute levada pelas

emoccedilotildees elas medem a honra pelos padrotildees exteriores e natildeo podem tolerar ser

superadas nessas mateacuterias (Epistola V p 704 F-5A)

Se Erasmo afirma a ldquopeculiar inconstacircncia da mulherrdquo (De Copia II 758)

reconheceo mesmo em relaccedilatildeo agrave crianccedila ao povo e inclusive ao proacuteprio homem Para

Rummel (1996 p 4) o holandecircs reproduz em seus escritos os defeitos dos estereoacutetipos

masculino e o feminino Os homens satildeo como feras mas como estatildeo no controle patriarcal

satildeo mimados facilmente enganados A mulher eacute rancorosa vatilde ignoacutebil atrasada

intelectualmente e manhosa mas tal leitura do texto conforme a proacutepria autora claramente se

propotildee a explicar deve ser entendida no gecircnero proacuteprio dos textos erasmianos sobre o

matrimocircnio que abordam os dois lados da questatildeo embora tais estereoacutetipos sejam por vezes

refutados logo em seguida por ele Leushuis (2004 p 1288) tambeacutem constata que as

89

declamaccedilotildees erasmianas que tratam do casamento apresentam probatio e confutatio a favor da

instituiccedilatildeo Entretanto apesar do comprometimento de Erasmo para a defesa do matrimocircnio

o autor submetido agrave forma do gecircnero natildeo deixa de apresentar por exemplo em uma carta de

genere dissuasorio uma lista de argumentos teoloacutegicos contra o matrimocircnio como a

virgindade e o celibato como meios de felicidade e o desejo sexual como pecado assim como

alguns prejuiacutezos do contato entre os gecircneros Se o matrimocircnio eacute uma armadilha a mulher

seria um ser trapaceiro que envolve o noivo em seus laccedilos (2004 p 1288) mas conveacutem

entender tais afirmaccedilotildees como os argumentos que Erasmo pretende refutar a ponto de aleacutem

do elogio agrave beleza agrave gentileza das francesas e a Margareth More nos proacuteprios escritos sobre o

matrimocircnio a mulher tambeacutem ser apresentada como mais do que uma companheira

agradaacutevel

O que eacute pois mais doce do que viver com uma mulher com quem tu estaacutes

mais intimamente ligado natildeo apenas pelos laccedilos de afeto mas tambeacutem pela

uniatildeo fiacutesica Se tirar o grande deleite espiritual da bondade dos outros

parentes proacuteximos e conhecidos como eacute muito mais agradaacutevel ter algueacutem com

quem compartilhar os sentimentos secretos do coraccedilatildeo com quem tu podes

falar como consigo mesmo Com essa lealdade obtens seguranccedila com quem

conduz as tuas fortunas como proacuteprias Que felicidade existe na uniatildeo de

marido e mulher Em comparaccedilatildeo com isto naotilde existe nada maior nem mais

duradouro em toda a natureza Enquanto estamos ligados com os nossos

outros amigos pela benevolecircncia do espiacuterito com uma esposa estamos unidos

pelo maior carinho pela uniatildeo fiacutesica pelo viacutenculo do sacramento e pela

partilha comum de todas as fortunas (De conscribendis epistolis Collected

Works Erasmus 25 p 139)

Basta ler o exordium da ldquoQueixa da Pazrdquo para a clara percepccedilatildeo de que o feminino

caracterizado pelo roterdamecircs se coaduna com uma visatildeo positiva da mulher e natildeo com o

estereoacutetipo negativo utilizado por ele nas confutaccedilotildees retoacutericas de alguns trechos de seus

escritos Dificilmente se podem esperar demonstraccedilotildees inequiacutevocas sobre questotildees

complexas como o papel da mulher de um homem que afirma que ldquoassuntos humanos

podem tomar tantas formas que respostas definitivas natildeo podem ser fornecidas para todos

elesrdquo (Rummel 1996 p 12 Terpstra 1997 p 696) Margolin (2000 p 10) com argumentos

anaacutelogos demonstra como os elogios e as criacuteticas agrave mulher presentes nos escritos de Erasmo

natildeo podem ser inferidos como seu ldquopensamento expliacutecitordquo devido agrave transposiccedilatildeo do eu

discursivo para uma personificaccedilatildeo diversa do autor e que era proacutepria do gecircnero literaacuterio por

ele utilizado

90

Entretanto estas afirmaccedilotildees ao levarem em conta apenas os escritos sobre o

matrimocircnio e a personificaccedilatildeo da Loucura podem natildeo ter explicitado a caracterizaccedilatildeo do

feminino presente na ldquoQueixa da Pazrdquo que apresenta exatamente as qualidades contraacuterias ao

estereoacutetipo dos defeitos da mulher a Paz eacute amorosa saacutebia sublime intelectualmente superior

aos homens e delicada Eacute a mulher perfeita que oferece a si mesma para o benefiacutecio da

humanidade Ela eacute imortal face aos homens mortales Representa a mulher em seu esplendor

conforme os criteacuterios do que era considerado belo naquele contexto histoacuterico Veremos

ademais que aleacutem de mulher a Paz figura de um modo tatildeo elevado que mais se assemelha a

uma ninfa ou a uma deusa embora mantenha seus caracteres femininos segundo os moldes

predominantes no seacuteculo XVI adaptando seu ecircthos ao que o puacuteblico espera de quem

argumente sobre ela Sloane (2004 p 113) ao comentar os antigos fundamentos retoacutericos

para os autores do Renascimento escreveu

Em termos retoacutericos a questatildeo gira em torno do ecircthos ou seja os meios pelos

quais um falante ou escritor projeta uma autoimagem Eacute bem sabido que a

absorccedilatildeo com a retoacuterica ndash uma arte sobre a qual os pagatildeos como Ciacutecero

tinham muito a dizer ndash eacute uma das marcas do humanismo renascentista Ecircthos

identidade ou individualidade eacute um princiacutepio fundamental da retoacuterica E

caraacuteter por sua vez foi um dos principais temas do proacuteprio Renascimento um

periacuteodo em que personalidades altamente individualizadas colocaram seu selo

sobre as maravilhas artiacutesticas e intelectuais da eacutepoca O Renascimento foi um

tempo por outro lado em que a autoconstruccedilatildeo tornou-se possiacutevel em que o

passado e a linhagem se tornaram um pouco menos funcional ou louvaacutevel do

que a identidade que cada um era capaz de forjar para si mesmo

Autoconstruccedilatildeo bem como o ethos capturou a imaginaccedilatildeo dos leitores ndash por

meio de peccedilas de prosa curtas chamadas ldquocaraacuteteresrdquo atraveacutes das ldquoCaraacuteteresrdquo

receacutem-impressas de Teofrasto atraveacutes da retoacuterica revivida de Aristoacuteteles com

sua descriccedilatildeo de vaacuterias personagens que o orador pode encontrar em sua

audiecircncia Como estes uacuteltimos exemplos indicam ecircthos em particular teve

uma aplicaccedilatildeo praacutetica e comunicativa (Sloane 2004 p 113)

O discurso de uma personagem feminina natildeo ocupa somente algumas partes do

discurso como em algumas das antigas declamaccedilotildees mas de modo semelhante agraves ldquoHeroidesrdquo

ocupam a totalidade do discurso O discurso inteiro ao menos no ldquoElogio da Loucurardquo e na

ldquoQueixa da Pazrdquo satildeo caracteriacutesticos de uma personificaccedilatildeo feminina Vejamos agora por

meio de alguns trechos do discurso como a Paz se caracteriza como ela delineia seu proacuteprio

ecircthos retoacuterico

Jaacute no exordium (Queixa da Paz 18-21) percebe-se natildeo somente a divindade e o

feminino mas tambeacutem o exerciacutecio das tiacutepicas funccedilotildees maternas ldquofonte progenitora

91

aleitadora fomentadorardquo Note-se que natildeo somente substantivos e adjetivos deste gecircnero satildeo

utilizados para a caracterizaccedilatildeo da paz O discurso estaacute coerente com o caraacuteter feminino

sobretudo pela atribuiccedilatildeo da maternidade mais especificamente com o ato de amamentar ou

nutrir assim como o ato de tutelar ou cuidar que naquele tempo era praticado quase

exclusivamente pela figura feminina dentro da estrutura familiar tiacutepica da Antiguidade Se o

uso de substantivos com a terminaccedilatildeo trix pertence ao gecircnero feminino nos substantivos

utilizados por Erasmo nota-se ademais o campo semacircntico da maternidade Essa Paz se volta

ao homem suplicante pelo dom da concoacuterdia demonstrando como ela nutre alimenta protege

e enriquece o homem que eacute tratado como uma espeacutecie de filho pequeno lactente e

dependente A Paz de Erasmo eacute pois uma verdadeira matildee Esta tambeacutem eacute sedutora

perspicaz argumentiva o que se coaduna exatamente com a finalidade da retoacuterica persuadir

Os trechos que elevam o feminino contrastam com oque vitupera o masculino Se este

eacute honrado lento forte reflete o antigo ideal medieval de cavalaria ou mesmo da

combatividade masculina dos antigos heroacuteis da Greacutecia e de Roma Erasmo poreacutem ironiza

essa espeacutecie de honradez que defende ideal da guerra Afronta demonstrando que a

masculinidade atrelada ao heroiacutesmo agravada pelo fato de ser praticada por homens jaacute

maduros estaacute ligada a um caraacuteter sanguinaacuterio contraacuterio agrave proacutepria natureza humana

essencialmente paciacutefica

Ateacute aquilo que outrora era consenso entre os pagatildeos de que natildeo se devia

cobrir os cabelos brancos com um elmo como diz o poeta esse costume hoje

entre os cristatildeos tornou-se motivo de louvor Para Nasatildeo eacute coisa infame um

soldado velho enquanto para estes ser um guerreiro septuagenaacuterio eacute algo

magniacutefico (Queixa da Paz 474-476)

Eacute justamente o contraacuterio do ideal de cavalaria das ldquoChansonsrdquo ou mesmo da ldquoMorte

do Lidadorrdquo de Alexandre Herculano entre outras manifestaccedilotildees ideoloacutegicas presentes na

literatura do Romantismo o idoso ldquohonradordquo pelo fato de ir agrave guerra apesar da idade O

combatente idoso eacute aqui uma figura indigna merecedora de saacutetira ou vitupeacuterio Jaacute a Paz eacute

caracterizada como matildee procura proteger seus filhos os mortais pois ldquonatildeo haacute nada mais

infeliz para os homens do que ela [a guerra]rdquo (Queixa da Paz 25) Na terceira parte da obra

em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica grega (Retoacuterica 1360a) Erasmo desenvolve

argumentos de conveniecircncia econocircmica ou de honra para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia A

maternidade desta se exerce ao garantir o bom desenvolvimento da sociedade Voltaremos a

esse ponto ao tratarmos da Paz enquanto saacutebia e proficiente em assuntos praacuteticos como

92

economia poliacutetica e diplomacia Se de um lado esta eacute caracterizada como mulher deve-se

observar que a declamaccedilatildeo de Erasmo tambeacutem a caracteriza como uma divindade uma deusa

35 A deusa Pax

Para Ciacutecero (De natura deorum II 70) os deuses e deusas estavam caracterizados de

modo a representar as paixotildees e os temperamentos humanos Afrodite por exemplo era a

mais bela das deusas aquela que se deixa levar pelo amor pelo poder da beleza e pelos

impulsos da sexualidade (Ibid II 69) Perseacutefone eacute aquela atraiacuteda pelo mundo espiritual

misteriosa miacutestica que vivia dividida entre o mundo sensiacutevel e o superior e capaz de ser

macabra e ter pensamentos sombrios (Ibid II 66) Ceres eacute a deusa matildee que se deleita com as

crianccedilas exalta a geraccedilatildeo da vida de sentimentos emoccedilotildees e experiecircncias Eacute a deusa do

cereal a nutriz e a matildee (Ibid I 40) Juno seria a mulher do poder a irmatilde e esposa de Zeus

Ciumenta vinga-se em filhos de outras mulheres ou nos espectadores Embora estabeleccedila

relaccedilotildees de fidelidade e lealdade reage agrave frustaccedilotildees com ira e natildeo com depressatildeo (Ibid II

66) Vesta permanecendo virgem revela a mulher em um espiacuterito de integridade Atena

deusa da sabedoria e da vitoacuteria eacute praacutetica desinibida e segura (Ibid II 67) Diana a deusa

atleacutetica ama e protege a natureza (Ibid II 68-69) Nesse sentido a mitologia seria uma

espeacutecie de cataacutelogo de caracteres Essas paixotildees estavam em harmonia com os seus atos de

modo que muitas vezes imitavam as paixotildees humanas fossem as boas chamadas virtudes

fossem as maacutes chamadas viacutecios Assim as deusas possuiacuteam seu proacuteprio ἦθος (caraacuteter) Seu

ἦθος admitia as paixotildees e as accedilotildees harmocircnicas como preceituavam as normas das antigas

poeacuteticas (Aristoacuteteles Poeacutetica VI 12-15 Horaacutecio Arte Poetica 153-178) Van der Poel

(1987) concebe que os criteacuterios horacianos sobre a caracterizaccedilatildeo das personagens foram

influentes e determinantes nas declamaccedilotildees renascentistas

Observe-se entatildeo a deusa Pax correspondente agrave deusa grega Εἰρήνη Esta foi

reconhecida oficialmente como deusa no governo de Otaacutevio Augusto que edificou no

Campus Martius o templo chamado de Ara Pacis e outro chamado de Forum Pacis Desse

modo natildeo havia sido objeto de culto oficial no periacuteodo republicano Filha de Juacutepiter e da

Iustitia era representada com um ramo de oliveiras um cetro e uma cornucoacutepia siacutembolos

associados agrave primavera eacutepoca da florescecircncia da harmonia e da abundacircncia Nota-se que

Erasmo ao caracterizaacute-la em seu exoacuterdio parece ter claramente a figura dessa deusa greco-

93

romana em sua imaginaccedilatildeo sobretudo ao afirmar que nada floresce no mundo sem a proteccedilatildeo

da paz (Queixa da Paz 1-29) A imagem da cornucoacutepia torna-se evidente no seguinte trecho

ldquosem mim natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro

ou santo e nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20) Nos

antigos seu caraacuteter era descrito como gentil (Epigrama atribuiacutedo a Homero 15) doce (Greek

Lyric V Anonymous Fragmento 1021) administradora das riquezas da humanidade (Piacutendaro

Odes oliacutempicas 13 6ss) por fim a deusa da prosperidade (Virgiacutelio Georgicae 2 425ss) Agrave

Paz juntamente com a Justiccedila e a Lei cabe ldquovigiar as obras dos mortaisrdquo (Hesiacuteodo Teogonia

901-903) Como veremos mais detidamente Erasmo caracteriza a Paz ldquolouvada a uma soacute voacutes

pelos deuses e pelos homensrdquo (Queixa da Paz 17) ora como uma deusa ora como uma musa

ao modo antigo pois a pax fala se si mesma como necessaacuteria em relaccedilatildeo ao humano-

contigente (Queixa da Paz 20-21)

Aleacutem da relaccedilatildeo da deusa latina Pax com a grega Εἰρήνη a Paz conclama sua

audiecircncia como mortales entendido basicamente como uma forma de denominar a raccedila

humana mas que no contexto insinua uma oposiccedilatildeo a sua proacutepria imortalidade (Queixa da

Paz 259-260) Se os homens satildeo mortais a Paz os trata como tal afirmando-se como imortal

pois tal como na concepccedilatildeo antiga somente os deuses podem ser imortais (Ciacutecero De natura

deorum II 153) Outro exemplo desse lugar comum eacute encontrado em Saluacutestio que

costumava usar este vocaacutebulo para a diferenciaccedilatildeo dos homens em relaccedilatildeo agraves bestas e aos

deuses (Saluacutestio Bellum catilinae 1 5) Por outro lado haacute a concepccedilatildeo cristatilde predominante

no seacuteculo XVI de que somente as criaturas espirituais podem ser imortais tais como a alma

humana o ser angeacutelico e a essecircncia divina em conformidade com o cristianismo atraveacutes de

numerosas passagens do Novo Testamento (Cf Matheus 1028 Acta Apostolorum 227)

Quando Erasmo utiliza esta expressatildeo no contexto cristatildeo parece querer exaltar a

figura do que fala no caso da Paz uma vez que ao chamar aos homens ldquomortaisrdquo ela se

exclui desse conjunto e como a imortalidade eacute uma caracteriacutestica divina sugere os termos de

sua superioridade conferindo-lhe autoridade para invectivar de quem quer que seja ainda que

sejam altos dignitaacuterios eclesiaacutesticos ou mundanos Chamar de mortais seria entatildeo uma

maneira muito suave de entendecirc-la como dotada de uma autoridade divina A Paz toma o

papel da origem da benevolecircncia como ser divino que infunde sentimentos misericordiosos de

uns para com os outros tal como a divindade cristatilde Para isso utiliza a anaacutefora ldquosem mim

94

natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro ou santo e

nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20)

Desprende-se aleacutem disso em outro trecho a dependecircncia do homem apontada pela

pax A noccedilatildeo de contingente e necessaacuterio no cristianismo eacute anaacuteloga agrave do homem para com

Deus Se aquele depende da Paz ela eacute uma deusa Esta eacute quem faz florescer quem torna tudo

puro e santo quem torna qualquer coisa que ja agradaacutevel aos ceacuteus Natildeo sem razatildeo logo no

exordium esta atribui a si mesma a honra de ser louvada pelos deuses e pelos homens como

administradora dos bens celestiais e terrenos (Queixa da Paz 18-21)

A deusa Paz ousa tratar o proacuteprio Cristo como seu arauto ou mensageiro ldquoCristo fora

enviado por minha causa e tomava conta de mimrdquo (Queixa da Paz 240-241) Nesse ponto a

Paz afirma ter sido anunciada por Cristo Ao tomar a natureza divina usa a autoridade dele

para se dignificar pois os cristatildeos sobretudo em uma sociedade que ainda natildeo havia se

cindido com as variantes confessionais da Reforma acredita que Jesus era um ser

misteriosamente idecircntico e distinto de Deus Pai Este teria encarnado para anunciar o Pai mas

a Paz se afirma como anunciada por ele Esta se identifica entatildeo com o proacuteprio ser que

deveria ser anunciado Esta tambeacutem se apresenta com a missatildeo dele enquanto pacificadora e

mediadora pois o proacuteprio sacrifiacutecio da missa para ser bem aceito pela divindade deve ser

oferecido em seu nome

Quando ordena que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo seja

oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com o irmatildeo porventura natildeo ensina

abertamente que a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e que nenhuma

oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo for recomendada por mim (Queixa da

Paz 318-322)

Nota-se a insinuaccedilatildeo de referir-se ao sacrifiacutecio da missa e comparar o papel da Pax ao

de Cristo Justifica-se esse artifiacutecio no lugar da explicitaccedilatildeo clara e direta devido agrave

interpretaccedilatildeo que alguns cristatildeos costumavam ter em comparaccedilotildees com a pessoa de Cristo

considerada pela teologia catoacutelica como intocaacutevel e incomparaacutevel Insinuar sem afirmar era

necessaacuterio para proteger-se contra possiacuteveis invectivas de teoacutelogos aacutevidos de inuacuteteis e

rancorosas controveacutersias teoloacutegicas lamentadas pela Paz Em oposiccedilatildeo agrave supracitada

referecircncia a duas suasoacuterias senequianas (Suasoacuteria I II e IV) nas quais encontram as questotildees

da guerra e dos combatentes como sujeitos de uma causa honesta Diante da honorabilidade

da guerra natildeo eacute dimimnuiacuteda nem pelo poder do auguacuterio ou pela verdade de feacute Entretanto

95

Erasmo procura tratar a paz como uma causa honesta respandando-se na Biacuteblia contra

aqueles que querem a guerra Desse modo enfraque o argumento juriacutedico filosoacutefico e

teoloacutegico da ldquoguerra justardquo com o poder da retoacuterica

36 A Paz enquanto saacutebia

Natildeo eacute de se estranhar que em sua caracterizaccedilatildeo a Paz aleacutem de feminina e ldquodivinardquo

seja delineada como saacutebia De fato esta desenvolve os seus argumentos poliacuteticos em seu

proacuteprio favor Nota-se a amplitude de aspectos abordados por ela a fim de reforccedilar o

argumento tal como recomendava Aristoacuteteles na defesa de uma causa nos discursos

deliberativos

Quanto agrave paz e agrave guerra eacute preciso conhecer o poder da cidade quanta forccedila jaacute

tem e a quanta pode chegar a natureza das forccedilas que tem agrave sua disposiccedilatildeo e

as que pode acrescentar e aleacutem disso que guerras travou e como planejou Eacute

necessaacuterio saber estas coisas natildeo soacute sobre a proacutepria cidade mas tambeacutem sobre

as cidades vizinhas Eacute necessaacuterio ainda saber com que povos se pode esperar

fazer a guerra a fim de manter a paz com as mais fortes e fazer a guerra contra

as mais fracas Eacute tambeacutem necessaacuterio saber se os recursos militares da cidade

satildeo iguais ou desiguais aos dos vizinhos pois nisto tambeacutem pode ser superior

ou inferior Aleacutem disso eacute necessaacuterio ter estudado natildeo soacute as guerras da proacutepria

cidade mas tambeacutem as das outras em funccedilatildeo dos seus resultados pois de

causas semelhantes resultam efeitos semelhantes (Retoacuterica I 4 9)

Tais lugares comuns sugeridos por Aristoacuteteles e recorrentes em diversos autores

antigos satildeo utilizados pela Paz entre os quais destaca-se logo de iniacutecio o argumento que

ocupa a primeira sessatildeo segundo o qual os animais devem ser imitados como exemplo uma

vez que os homens providos de razatildeo natildeo se comportam como tal mas sim como se presume

dos irracionais (Queixa da Paz 45-50)

Se na Antiguidade a piedade para com os deuses era um lugar-comum uacutetil para defesa

de uma causa (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 8) Erasmo aplica tal recurso retoacuterico agrave cultura cristatilde

utilizando-se de referecircncias dos Evangelhos a Cristo como modelo a ser emulado (Queixa da

Paz 261-268) A Paz natildeo somente o relembra como exemplum mas traz elementos da histoacuteria

greco-romana a serem admirados pelos seus leitores a fim de evitar-se os conflitos armados

(Queixa da Paz 618-621) Partindo dos argumentos de natureza religiosa para os praacuteticos

esta ousa apresentar motivaccedilotildees econocircmicas a favor do irenismo completando assim sua

oniciecircncia acerca de vaacuterias aacutereas do conhecimento (Queixa da Paz 782-797)

96

A segunda estrateacutegia de Erasmo para caracterizar a pax como apta a aconselhar os

homens em seus negoacutecios poliacuteticos sobretudo em defesa de si mesmo seria que este eacute

violento contra sua proacutepria raccedila A sabedoria desta se demonstra tambeacutem pelos argumentos

deliberativos que estimulam accedilotildees concretas para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia e para evitar a

guerra Deve-se salientar ademais a proposta de um esquema jurisdicional entre os priacutencipes

europeus a fim de resolver conflitos dinaacutesticos territoriais e poliacuteticos (Rodrigues 2012 p

275-276)

Segundo Mack (1993 p 307-308) ao comentar o De Copia a analogia que eacute possiacutevel

identificar nos argumentos apresentados pela Paz em seu favor estaacute presente em alguns dos

paradigmas que Erasmo propocircs Colocaremos em paralelo esses meacutetodos com alguns dos

argumentos retoacutericos apresentados

Princiacutepio do De Copia 1 6 Ocorrecircncia na Querela

Apoacutes afirmar sumariamente

prosseguir com uma

explicaccedilatildeo mais ampla

(75A)

O tema do livro estaacute expliacutecito em seu tiacutetulo quando se fala

que a Paz foi rejeitada e perseguida em toda parte pelas

naccedilotildees Demonstra-se cada parte dessa proposiccedilatildeo ao longo

da Queixa da Paz

Enumerar singularmente as

causas do argumento (77A)

A Paz enumera as consequecircncias maleacuteficas da guerra e as

suas proacuteprias benesses como por exemplo ao confrontar o

incremento da cultura e da economia proporcionados por sua

influecircncia e o decliacutenio das duas durante a guerra

Perseguir as causas mais

elevadas (77C)

A Paz acredita que a guerra nasce nos coraccedilotildees humanos

atraveacutes da discoacuterdia dos interesses egosiacutesticos sobretudo de

certas classes mais influentes mas tambeacutem eacute sustentada com

argumentos incoerentes com a pietas cristatilde e o ensinamento

paciacutefico de Cristo

Enumerar as causas que

corroboram com o

argumento (77D)

A Paz enumera as diversas consequecircncias da guerra como o

estupro a peste a decadecircncia moral e econocircmica entre

outros mas tambeacutem enumera as benesses de sua lavra como

a ordem a tranquilidade a prosperidade e a concoacuterdia

universal

Propor e colorir com ricas Erasmo descreve coisas lugares pessoas e periacuteodos

97

descriccedilotildees a favor do

argumento (77E)

histoacutericos a fim de convencer seu leitor como por exemplo

ao descrever a Paz entre os animais ou na repuacuteblica romana

ou ainda entre os anjos ao passo que apresenta a guerra

entre os democircnios os eruditos e os religiosos assim como

se refere aos tempos de Roma ao passado proacuteximo da

guerra dos uacuteltimos doze anos entre outros

Incluir digressotildees quando

conveniente (77F)

Eacute possiacutevel identificar diversas digressotildees na declamaccedilatildeo

tais como sobre a natureza dos animais a legislaccedilatildeo de

sucessatildeo as consequecircncias econocircmicas entre outras

Amplificar argumentos

(77G)

A amplificaccedilatildeo tambeacutem eacute um recurso utilizado pela Paz

como no caso de citar os diversos animais que satildeo capazes

de viver em harmonia Erasmo tambeacutem amplifica o assunto

de Cristo Paciacutefico ao trazer agrave tona diversas passagens

irecircnicas atribuiacutedas a Cristo

A sabedoria da deusa Paz tambeacutem compreende a arte retoacuterica que atraveacutes da sua

declamaccedilatildeo tal como os antigos reacutetores apresenta seu discurso como um modelo de suasoacuteria

a favor da paz e vitupeacuterio contra a guerra

37 A Paz enquanto teoacuteloga

Erasmo utiliza argumentos teoloacutegicos na ldquoQueixa da Pazrdquo de forma separada e

complementar dedicando uma sessatildeo deles aos de origem biacuteblica e outra aos de inspiraccedilatildeo

antiga Hoffman (1994 p 227) defende a hipoacutetese de que ele tratava desses assuntos cristatildeos

inclusive com as antigas teacutecnicas retoacutericas

Nosso estudo sobre a hermenecircutica biacuteblica demonstrou como ele introduzia a

retoacuterica a serviccedilo da teologia Utilizava o meacutetodo alegoacuterico e tropoloacutegico de

forma a coordenar cristologia eclesiologia e eacutetica em um uacutenico caminho

humanista Seu meacutetodo exegeacutetico natildeo somente revela seus princiacutepios

hermenecircuticos mas tambeacutem sua teologia retoacuterica

Ele por exemplo coloca o ldquoCristo paciacuteficordquo como exemplo a ser seguido pelos

leitores Se este se diz cristatildeo deve zelar pela paz da mesma forma como Jesus o havia

recomendado aos seus disciacutepulos Nota-se poreacutem que no caso da Queixa da Paz o holandecircs

98

natildeo usa as passagens da Biacuteblia de modo a fazer uma verdadeira exegese como o realizou nas

diversas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos escritos antigos e biacuteblicos mas delimita alguns trechos para

defender o ponto de vista irecircnico refutando alguns passos sobretudo do Antigo Testamento

que servem de fundamento para seus opositores e de incocircmodo para seu argumento Eacute

justamente nesses pontos que a Paz estabelece uma confutaccedilatildeo (Queixa da Paz 253-259)

A Paz antepotildee o Deus dos judeus com o Deus dos cristatildeos como forma de refutar o

Antigo Testamento com passos do Novo comportamento que se insere no contexto mais

amplo como ponto inequiacutevoco da teologia cristocecircntrica de Erasmo de que natildeo trataremos na

presente dissertaccedilatildeo por tema e pertinecircncia Ele parte de uma expressatildeo tiacutepica das canccedilotildees

medievais de exortaccedilatildeo agrave ldquoguerra santardquo inspiradas em excertos do Antigo Testamento como a

referecircncia ao Deus dos Exeacutercitos (Queixa da Paz 224-236)

Erasmo natildeo discute diretamente a natureza da expressatildeo ldquoDeus dos Exeacutercitosrdquo Prefere

passar pela questatildeo sem aprofundaacute-la com longas digressotildees filoloacutegicas e teoloacutegicas como os

teoacutelogos costumavam fazer nas questotildees sobre a guerra justa ao discutir as passagens a favor

e contra a guerra presentes na Biacuteblia (Cf Isaiacuteas 3218 Salmo 1245 Salmo 1276 Gaacutelatas

616 Isaiacuteas 527) Chomarat (1981 p 938) aponta a necessidade de sobrevivecircncia no meio

poliacutetico e eclesiaacutestico no qual Erasmo atuava como erudito como motivo significativo para a

escolha de um gecircnero que poderia dar liberdade para falar sem ser censurado ou punido

embora as reaccedilotildees contraacuterias ao ldquoElogio da Loucurardquo mostrem que ele natildeo estava totalmente

imune Ao comentar a caracterizaccedilatildeo da personagem emissora do discurso Sloane (2004 p

116) afirma ldquotratava-se de algo como uma maacutescara para o autorrdquo

A personificaccedilatildeo da Paz tambeacutem seria uma espeacutecie de camuflagem para Erasmo pois

embora natildeo se saiba se Erasmo previa que os teoacutelogos se voltariam contra seu irenismo eacute

certo que apoacutes a publicaccedilatildeo desse escrito somado sem duacutevida aos acontecimentos e

polecircmicas posteriores contextualizados na Reforma ocorreram reaccedilotildees contra a ldquoQueixa da

Pazrdquo especialmente na Espanha e na Franccedila

No primeiro paiacutes Zuntildeiga teria encontrado trechos ldquoluteranosrdquo (Bataillon 2007 p

124) No que se refere ao segundo Telle (1978 p 35) aponta que esta declamaccedilatildeo irecircnica

reacendeu justamente a ceacutelebre controveacutersia teoloacutegica ldquoacerca de guerra justardquo atacada por

Erasmo e por outros teoacutelogos catoacutelicos (Ibid p 33) inclusive protestantes como Calvino

99

(Ibid p 36) e defendida pelos teoacutelogos e juristas da Universidade de Paris A polecircmica

chegou a tal ponto que a traduccedilatildeo francesa da Querela publicada por Chevalier de Berquin foi

censurada pela Faculdade de Teologia da Sorbonne em 1ordm de junho de 1525 (Ibid p 32) e

renovada em 1527 (Phillips 1971 p 247)

Natildeo era a primeira polecircmica de Berquin Antes de traduzir para o francecircs as obras de

Erasmo ele havia se dedicado agraves obras de Lutero (Bataillon 2007 p 153) Tambeacutem natildeo era a

primeira polecircmica de Erasmo com os teoacutelogos da Sorbonne pois jaacute havia disputado com estes

por ocasiatildeo das suas traduccedilotildees biacuteblicas (Rodrigues 2012 p 338) Natildeo se deve desconsiderar

ademais os inconvenientes poliacuteticos que a defesa da paz poderia fazer surgir com os priacutencipes

cristatildeos tais como Henrique VIII e Francisco I ciosos das incursotildees militares e ceacutelebres pelos

seus feitos guerreiros (Telle 1978 p 35)

Erasmo com sua ldquoQueixa da Pazrdquo entrava em conflito direto e em plena polecircmica

com teoacutelogos escolaacutesticos e com poliacuteticos influentes e beligerantes a ponto de se verificar a

condenaccedilatildeo sistemaacutetica da Universidade de Lovaina contra toda sua obra literaacuteria e a

mudanccedila de Erasmo para Basileia Suiacuteccedila (Moya Bedoya 2008 p 203) Se natildeo se pode

conceber que o roterdamecircs teria previsto as controveacutersias suscitadas pelos seus escritos

inclusive por uma de suas traduccedilotildees natildeo seria exagero afirmar que este expunha os priacutencipes

e sua hipocrisia de um modo incisivo convincente e em certos trechos satiacuterico

Deve-se por fim considerar que na Queixa da Paz Erasmo natildeo eacute um pacifista a

ponto de negar qualquer forma de conflito armado (Kinsella e Carr 2007 p 55-56) Sua

praacutetica de expor em seus escritos ldquoutramque partemrdquo ou seja os dois lados da questatildeo

(Remer 1994 p 313) como correu no caso da guerra entre os cristatildeos considerada cruel e a

guerra dos cristatildeos contra os turcos considerada justa aleacutem de muitos fatores sobretudo

quando este assume posiccedilotildees ldquohumanistas-cristatildesrdquo contribuiu para que sustentasse a fama de

vir duplex tal como o alcunhou Lutero (Weiler 1997 p 11)

Em termos teoloacutegicos pouca diferenccedila se verifica entre os teoacutelogos pregadores das

cruzadas contra o islatilde nos seacuteculos XII e XIII e alguns trechos do escrito de Erasmo que

argumenta acerca da oportunidade da guerra contra os turcos e da sua inconveniecircncia entre os

cristatildeos (Queixa da Paz 681-685)

100

38 A Paz enquanto viacutetima

Essa matildee zelosa saacutebia divina apresenta-se tambeacutem como viacutetima da guerra e do

instinto sanguinaacuterios dos homens Nota-se assim outra estrateacutegia de persuasatildeo sugerida pela

tradiccedilatildeo dos manuais de retoacuterica pois falar em primeira pessoa de seus proacuteprios males atrai a

compaixatildeo ou o amor dos ouvintes (Retoacuterica a Herecircnio I 8 2) Dessa forma o paacutethos

movido pela Pax no leitor eacute a piedade tal como Aristoacuteteles o explicava em sua ldquoRetoacutericardquo (II

8 2) ldquoa piedade consiste numa certa pena causada pela apariccedilatildeo de um mal destruidor e

aflitivo que afeta quem natildeo merece ser prejudicado que pode prejudicar-nos as noacutes mesmos

ou a algum dos nossos principalmente quando esse mal nos ameaccedila de pertordquo Eacute o que

transparece no exordium sobretudo no seguinte trecho ao estabelecer a antiacutetese entre o seu

amor e a maldade dos homens

E embora eu preferisse somente irar-me contra eles sou antes compelida a me

condoer deles a ter misericoacuterdia deles Eacute decerto desumano afastar de si

aquele que de alguma forma nos ama eacute ingrato hostilizar aquele que merece o

bem eacute iacutempio afligir a progenitora e servidora de todos (Queixa da Paz 8-11)

Aristoacuteteles (Retoacuterica I 12 1) tambeacutem afirmava que convinha que se caracterizassem

os injusticcedilados em primeiro lugar pelo fato de serem necessitados A paz eacute extremamente

necessaacuteria ao homem logo persegui-la se configura como injusto e digno de censura A

intenccedilatildeo seria natildeo somente produzir a piedade para com ela mas a indignaccedilatildeo contra quem

persegue e destroacutei aquela que a tantos beneficia Aristoacuteteles apresenta a indignaccedilatildeo como o

contraacuterio da piedade A primeira muitas vezes nasce da segunda pois quem se indigna contra

os reveses imerecidos tem piedade de quem imerecidamente foi prejudicado (Ibid II 9 2)

Logo no iniacutecio da primeira parte que trata do homem guerreiro como inferior agraves feras a Paz

retoma a estrateacutegia de apresentar-se como viacutetima a fim de mover o pathos da compaixatildeo dos

leitores e acrescenta em seu caraacuteter a capacidade de perdoar ldquoSe feras me desprezassem desse

modo eu o suportaria mais facilmente e atribuiria essa ofensa agrave natureza que inserira nelas

uma iacutendole selvagemrdquo (Queixa da Paz 31-32)

Apoacutes descrever longamente a onipresenccedila dos litiacutegios clericais inclusive entre os

religiosos que deveriam primar pela perfeiccedilatildeo dos conselhos evangeacutelicos a Paz chega ao

cuacutemulo de mostrar-se sem lugar para morar entre os homens como uma desabrigada e

desamparada em razatildeo da onipresenccedila da guerra

101

Mas pobre de mim Tambeacutem aqui verifico que a cidade estaacute totalmente

maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a tal ponto que quase natildeo se

pode achar uma uacutenica casa na qual exista um lugar para mim por alguns dias

Entretanto deixo de lado o povo que tal como o mar eacute arrebatado por seus

ardores e me recolho (Queixa da Paz 127-130)

Apela pois agrave clemecircncia do coraccedilatildeo humano Como viacutetima exige compaixatildeo e

procura convencer o homem atraveacutes de um discurso que move agraves emoccedilotildees sobretudo agrave

comiseraccedilatildeo ao atrair a simpatia expondo os proacuteprios males

39 Conclusatildeo do capiacutetulo

Erasmo inovou ao trazer para a declamaccedilatildeo uma personificaccedilatildeo feminina A Paz

poreacutem natildeo eacute somente caracterizada como uma mulher com as qualidades e defeitos

estereotipados nos escritos retoacutericos erasmianos que uma visatildeo simplista poderia taxar como

preconceituosa uma vez que reproduz uma valorizaccedilatildeo negativa da mulher Se eacute verdede que

Erasmo tambeacutem reproduz estereoacutetipos masculino com tons natildeo menos severos eacute certo de que

para ele o declamador deve estabelecer o caraacuteter da personagem que fala de um modo

adequado agraves expectativas da audiecircncia fictiacutecia e dos leitores reais a fim de que o discurso

cumpra a finalidade persuasiva que eacute proacutepria do gecircnero Sem a caracterizaccedilatildeo adequada

simultaneamente agrave audiecircncia e agrave personificaccedilatildeo a declamaccedilatildeo natildeo seria persuasiva pois iria

contrariar o princiacutepio retoacuterico da verossimilhanccedila

A Paz eacute abstrata feminina mais precisamente maternal mas tambeacutem eacute uma espeacutecie de

divindade Deve-se poreacutem considerar que sua caracterizaccedilatildeo como deusa natildeo contemplaria

as paixotildees tiacutepicas da mitologia greco-romana mas uma deusa sem defeitos como o Deus

cristatildeo Esta natildeo eacute somente anunciada por Cristo mas eacute capaz de disputar pela sua proacutepria

causa com todos os argumentos possiacuteveis e sugeridos pela antiga tradiccedilatildeo retoacuterica

Parafraseando Quintiliano a Paz entatildeo segue aquele ditame de ser uma ldquomulier divina bona

dicendi peritardquo Esta argumenta baseada em lugares comuns extraiacutedos da natureza (rerum

natura) da teologia biacuteblica e patriacutestica da economia da poliacutetica e de questotildees diplomaacuteticas

pertinentes no seacuteculo XVI como uma ldquoseguidorardquo daquele conselho de Ciacutecero segundo o

qual o orador deve ser proficiente tambeacutem nas leis na histoacuteria e na filosofia para bem

argumentar Aleacutem de saacutebia a paz eacute bondosa como uma deusa ao modo cristatildeo Configurada

como uma abstraccedilatildeo feminina a paz se dirige ao clero e aos priacutencipes com a autoridade de

uma deusa com a estrateacutegia feminina com a bondade de uma matildee com argumentos de uma

102

saacutebia com a piedade de uma teoacuteloga a fim de persuadir com autoridade suficiente a favor de

sua proacutepria causa Esta seria natildeo a doutrina escolaacutestica da ldquoguerra justardquo mas retoacuterica

humanista (erasmiana) da ldquopaz justardquo

103

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A presente dissertaccedilatildeo de mestrado teve por objeto de pesquisa o estudo da

declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em 1517 por Erasmo de Rotterdam Como resultado

foram apresentados um estudo introdutoacuterio sobre o gecircnero antigo declamaccedilatildeo sua recepccedilatildeo

no Renascimento e a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o portuguecircs brasileiro O texto

fonte utilizado foi extraiacutedo da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi Roterodami

Opera Omnia Amsterdam 1978)

Ao longo do estudo introdutoacuterio discorremos sobre a definiccedilatildeo e as principais

propriedades da declamaccedilatildeo Delineamos esse gecircnero discursivo como originaacuterio na Greacutecia

onde se chamava meleteacute recebido pelos latinos com o nome de declamaccedilatildeo Distinguimos

dois ambientes nos quais era praticada primeiro nas escolas de retoacuterica quando nos

manuais estava situada entre os uacuteltimos exerciacutecios das progymnaacutesmata caracterizado como

um treinamento da performance ou da pronuacutencia e a simulaccedilatildeo do discurso de uma

personagem histoacuterica ou mitoloacutegica segundo em reuniotildees sociais ou seja a praacutetica de

discursos fictiacutecios tambeacutem atribuiacutedos a personagens histoacutericas ou mitoloacutegicas em um

ambiente restrito e de niacutevel cultural e econocircmico elevado praticado por pessoas que jaacute tinham

o haacutebito da oratoacuteria puacuteblica seja judicial seja deliberativa a fim de exercitar-se ou mesmo

deleitar os convivas Tal praacutetica assemelhava-se ao haacutebito da recitatio na qual os antigos

divulgavam em leituras puacuteblicas a uma audiecircncia seleta novos escritos em prosa ou em

versos

Verificamos que nos dois ambientes nos quais se praticava a declamaccedilatildeo o principal

objetivo e desafio do gecircnero seria a caracterizaccedilatildeo adequada da personagem fictiacutecia

selecionada onde a representaccedilatildeo do ecircthos discursivo deveria adequar-se agrave personalidade agrave

ocasiatildeo ao tema agrave audiecircncia de modo que o discurso fosse maximamente persuasivo e

verossiacutemil Desse modo a principal figura de linguagem contemplada na declamaccedilatildeo seria a

prosopopeia

Quanto agraves personagens correntemente utilizadas nas antigas declamaccedilotildees

predominavam as masculinas muito embora tambeacutem se utilizassem as femininas conquanto

em posiccedilotildees inferiores ou subalternas Embora natildeo fosse usual a utilizaccedilatildeo de personificaccedilotildees

104

no sentido de abstraccedilotildees ou coisas que tomam a voz nota-se o uso de personagens femininas

em posiccedilatildeo de protagonista em discursos que ocupavam a integridade da obra nas ldquoHeroidesrdquo

de Oviacutedio muito embora estas natildeo pertencessem ao gecircnero declamaccedilatildeo mas ao epistolar

Tais dados foram significativos ao constatar esta adiccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana ao

apresentar uma personificaccedilatildeo feminina como remetente do discurso

Quanto ao uso de personagens histoacutericas como eacute habitual em vaacuterios gecircneros

discursivos natildeo era preocupaccedilatildeo primordial da declamaccedilatildeo a exposiccedilatildeo histoacuterica exata dos

eventos ou das pessoas mas sim a caracterizaccedilatildeo adequada e verossiacutemil das personagens

atraveacutes do discurso direto pois o objetivo natildeo era narrar a histoacuteria mas apresentar o discurso

adequado de determinado personagem para determinada audiecircncia segundo as sensibilidades

desta para com os estereoacutetipos jaacute consignados a respeito das prosopopeias selecionadas

Atestamos que a defesa dos dois lados contraacuterios da causa ou a escolha de apenas um

dos lados variou de acordo com a ocasiatildeo mas era costume apresentar os dois lados da causa

nas escolas de retoacuterica a fim de exercitar o aluno o que natildeo era predominante na declamaccedilatildeo

praticada pelos oradores mais experientes ou em algumas declamaccedilotildees escritas

Quanto agraves espeacutecies da declamaccedilatildeo constatamos a existecircncia de escritos em gecircnero

demonstrativo como elegias e panegiacutericos sobretudo em grego filosoacutefico praticados nas

escolas de retoacuterica deliberativo tambeacutem chamados de suasoacuterias e nos ambientes de discussatildeo

puacuteblica e na simulaccedilatildeo de temas tiacutepicos do gecircnero deliberativo por ocasiatildeo de temas

histoacutericos com a finalidade de suadir os cidadatildeos a optarem entre outros assuntos pela paz

ou pela guerra pelo aumento ou diminuiccedilatildeo de impostos e outras decisotildees de interesse

puacuteblico judicial tambeacutem chamados de causae ou controuersiae por simularem temas e

ocasiotildees proacuteprias dos tribunais

Ainda sobre a declamaccedilatildeo antiga percebemos que essa durante a transiccedilatildeo de regime

poliacutetico da repuacuteblica para o impeacuterio tomou paulatinamente o lugar da antiga oratoacuteria

tornando-se o gecircnero apropriado para a praacutetica da emissatildeo dos discursos em forma oral e

escrita

Os atuais corpora das declamaccedilotildees gregas e latinas mais amplos datam justamente do

periacuteodo imperial e foram escritos em latim e grego dependendo da localizaccedilatildeo dos seus

produtores assim Quintiliano Secircneca que viveram na parte latina escreveram sobre a

105

declamaccedilatildeo ou declamaccedilotildees nessa liacutengua ao passo que Plutarco Heacutelio Aristides Luciano de

Samosata Libacircnio de Antioquia e Coriacutecio de Gaza as escreveram em grego Portanto

embora as origens do termo e das referecircncias agrave declamaccedilatildeo contidas nos manuais de retoacuterica

remontem a periacuteodos anteriores as principais fontes da declamaccedilatildeo grega e a latina que

chegaram ateacute noacutes datam da eacutepoca imperial

A renovaccedilatildeo deste gecircnero durante o Renascimento estaacute diretamente relacionada agrave

recuperaccedilatildeo e reediccedilatildeo nos seacuteculos XV e XVI dos corpora antigos que continham

declamaccedilotildees ou que tratavam do gecircnero como eacute o caso da reediccedilatildeo do texto completo da

ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano em 1416 Tal recuperaccedilatildeo partiu do norte da Itaacutelia

primeiramente com Salutati e posteriormente com Lourenccedilo Valla A partir deste chegou ao

norte da Europa sendo praticada nos dois primeiros dececircnios do seacuteculo XVI por Erasmo e

More A partir desses dois humanistas sobretudo pela influecircncia do roterdamecircs foi utilizada

por outros contemporacircneos como Vives Cardano e Agrippa

O contato com as declamaccedilotildees antigas por Erasmo deu-se basicamente sob quatro

formas que classificamos natildeo necessariamente em ordem cronoloacutegica primeiro como leitor

no periacuteodo em que ainda era estudante de teologia ao ter conhecimento das obras que

tratavam a respeito como eacute as de Quintiliano e Ciacutecero (Chomarat 1981) segundo como

editor ao publicar em forma impressa as declamaccedilotildees de Secircneca o Velho terceiro como

tradutor ao transpor do grego para o latim algumas das declamaccedilotildees de Luciano Libacircnio e

Plutarco quarto como escritor ao publicar onze declamaccedilotildees tratadas explicitamente por ele

jaacute no tiacutetulo das obras ou classificadas por ele como tal em epiacutestola a Joatildeo Botzheim (1523)

entre as quais as mais ceacutelebres satildeo o ldquoElogio da Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo

A escrita desta natildeo foi posterior a novembro de 1516 e foi publicada em 1517 quando

Erasmo era conselheiro de Carlos V e residia em Lovaina Beacutelgica A obra foi dedicada ao

Abade Antocircnio van Bergen e foi possivelmente redigida a pedido do chanceler Joatildeo Sauvage

O evento histoacuterico proacuteximo que teria motivado a redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz

foram as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e por fim da

alianccedila franco-veneziana (1513-1516) cujos conflitos dispersos pela Europa tambeacutem

atingiam os locais de residecircncia ou frequentados pelo roterdamecircs

106

A caracteriacutestica mais marcante desta declamaccedilatildeo de Erasmo eacute que natildeo apresenta

qualquer introduccedilatildeo ou conclusatildeo narrativa como por exemplo costuma ocorrer em algumas

das declamaccedilotildees senequianas mas transcrevia o discurso direto emitido por uma

personificaccedilatildeo abstrata Trata-se de uma repeticcedilatildeo da praacutetica registrada no ldquoElogio da

Loucurardquo Natildeo haacute diaacutelogos no texto como aliaacutes eacute proacuteprio de uma declamaccedilatildeo entendida

geralmente como um monoacutelogo muito embora o roterdamecircs classificasse na epiacutestola a Joatildeo

Botzheim (1523) o diaacutelogo ldquoAntibaacuterbarosrdquo como uma declamaccedilatildeo ainda que este apresente

mais de uma personagem cada qual com vaacuterios discursos diretos reciprocamente

direcionados

A disposiccedilatildeo retoacuterica da obra segue a tradiccedilatildeo antiga quanto agrave estrutura baacutesica

proecircmio narratio confirmaccedilatildeo e epiacutelogo Mais especificamente podemos dividir a Queixa

da Paz nas seguintes partes com a numeraccedilatildeo correspondente (os nuacutemeros se referem agraves

linhas da jaacute mencionada ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo) proecircmio (προοίμιονexordium) (4-

29) Narratio (διήγηζις narratio) (30-112) a primeira parte trata da paz entre os animais (30-

112) a segunda parte descreve a destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) a confirmaccedilatildeo

(πίζηις probatio) cuja primeira parte apresenta o exemplo de Cristo paciacutefico modelo a ser

seguido pelos que se dizem cristatildeos (203-401) a segunda parte apresenta o exemplo dos

pagatildeos (402-435) a terceira parte argumenta como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo

prejudicados pela guerra (436-594) a quarta parte sugere accedilotildees para que o priacutencipe evite a

guerra (595-871) e por fim finaliza-se com o epiacutelogo constituiacutedo de vaacuterios vocativos

(επίλογοςperoratio) (872-918)

Em conformidade com a tradiccedilatildeo antiga das declamaccedilotildees senequianas notou-se a

utilizaccedilatildeo por Erasmo de sentenccedilas ao longo do discurso com o objetivo de tornar o texto

mais expressivo Quanto agraves fontes das sentenccedilas podemos classificaacute-las em trecircs grupos

primeiro as antigas como Platatildeo (9 e 551) Liacutevio (1-3) Homero (75) Oviacutedio (162) Siacutelio

Itaacutelico (210) Ciacutecero (218 e 758) Virgiacutelio (467 e 670) Plauto (764) Pliacutenio (57) Horaacutecio

(152) e Aristoacuteteles (391) segundo as citaccedilotildees de adaacutegios selecionados e remodelados pelo

roterdamecircs em sua proacutepria coletacircnea de ldquoAdaacutegiosrdquo (linhas 18 22 62 77 91 155 505 553-

556 803-804 866 e 906) terceiro as de origem biacuteblica e patriacutestica especialmente ao tratar de

Cristo Paciacutefico A versatildeo latina da biacuteblia citada ao longo da declamaccedilatildeo eacute a Vulgata de

Jerocircnimo

107

Em harmonia com Herding (1974 p 6) nota-se em algumas partes da obra

semelhanccedilas com o gecircnero espelho do priacutencipe e a repeticcedilatildeo de alguns argumentos irecircnicos jaacute

apresentados por Erasmo em escritos como o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInstituiccedilatildeo do

priacutencipe cristatildeordquo A semelhanccedila averiguada aleacutem da dimensatildeo temaacutetica (paz e guerra)

tambeacutem contempla o objetivo suasoacuterio de certas partes do discurso da paz ao dirigir-se ao

governante como quem pretende ensinar ou aconselhar baseado em valores eacuteticos tiacutepicos dos

humanistas colocando os interesses humanos acima de quaisquer outros princiacutepios Em

Erasmo mais especificamente satildeo evocados os princiacutepios cristatildeos tratados como perfeitos

muito embora ao longo do discurso a praacutetica apontada para os seguidores de Cristo natildeo seja

concorde com os valores cristatildeos elogiados pela Paz Ao que parece os proacuteprios argumentos

teoloacutegicos seguem esta finalidade ao omitir os argumentos biacuteblicos e filosoacuteficos favoraacuteveis agrave

guerra justa O texto sobrepotildee a vida humana acima de qualquer outro princiacutepio seja a honra

seja a proteccedilatildeo dos interesses dinaacutesticos ou estatais Inclusive os argumentos econocircmicos satildeo

alinhavados segundo esta finalidade de proteccedilatildeo do indiviacuteduo sobretudo o indefeso ao

mencionar explicitamente as possiacuteveis ofensas contra a mulher e os camponeses (povo)

Conveacutem ainda ressaltar que o humanismo erasmiano eacute essencialmente cristatildeo pois

fundamenta seus argumentos harmonicamente com as fontes biacuteblicas e patriacutesticas mas eacute

tenazmente contraacuterio agraves incoerecircncias para com a feacute e a eacutetica cristatilde por parte daqueles que mais

especialmente deveriam propagaacute-la ou praticaacute-la o clero e os governantes

A obra em estudo apresentou ainda traccedilos do gecircnero deliberativo o aconselhar

(suadere) o auditoacuterio (os priacutencipes e os cleacuterigos) a favor da paz e a evitar a guerra mas

tambeacutem algumas carateriacutesticas do gecircnero demonstrativo ou epidiacutetico ao elogiar a paz e

vituperar contra a guerra Tal constataccedilatildeo aproxima simultaneamente este escrito aos

panegiacutericos e algumas declamaccedilotildees escritas em grego pertences ao gecircnero demonstrativo e

agraves suasoacuterias senequianas especialmente as que tratam da paz e da guerra (Suasoacuterias I II e

IV) A mescla dos trecircs gecircneros discursivos (demonstrativo deliberativo e judicial) natildeo era

novidade e era mesmo reconhecida na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo uma vez que ateacute no gecircnero

judicial como se lecirc na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo era comum o orador vituperar contra os defeitos

morais do oponente ou elogiar as virtudes do seu cliente a fim de angariar a simpatia ou a

antipatia do juiz ou do juacuteri conforme o seu interesse

108

Quanto agrave personificaccedilatildeo da paz aleacutem de sua jaacute mencionada semelhanccedila com as

prosopoeias femininas das ldquoHeroidesrdquo verificamos ainda certa semelhanccedila com as

personagens femininas abstratas biacuteblicas da Sabedoria e da Loucura Poreacutem a Paz

caracterizada por Erasmo se diferencia destas por apresentar um discurso direto que ocupa a

integralidade do livro e natildeo somente uma parte diminuta Ademais a Paz se assemelha agrave

prosopopeiaa da amada presente em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo pelo fato de tambeacutem emitir

discursos diretos e ser protagonista do gecircnero feminino mas por outro lado se diferencia na

medida em que a amada dialoga com outras personagens ao longo do livro

Em relaccedilatildeo agrave Antiguidade a adiccedilatildeo verificada da declamaccedilatildeo erasmiana tanto no

ldquoElogio da Loucurardquo como na ldquoQueixa da Pazrdquo eacute a atribuiccedilatildeo da integralidade do discurso

direto a uma personificaccedilatildeo feminina Esta eacute caracterizada como matildee por nutrir os homens

como filhos como viacutetima de uma atroz perseguiccedilatildeo em toda parte como saacutebia que aconselha

os priacutencipes ao modo do gecircnero Espelho dos Priacutencipes a que conservem a paz e evitem de

todos os modos a guerra O discurso utiliza-se de argumentos filosoacuteficos como eacute o caso do

lugar comum segundo o qual se o homem eacute racional deve ser tatildeo ou mais paciacutefico do que os

animais os quais natildeo satildeo dotados de razatildeo e por consequecircncia de palavra Por outro lado

utiliza-se de argumentos teoloacutegicos biacuteblicos ao apresentar os exemplos de Davi Salomatildeo e

de Cristo Paciacutefico como modelos da opccedilatildeo pela paz proacutepria aos seguidores da religiatildeo cristatilde

A paz utiliza-se ainda de argumentos de ordem poliacutetica social e econocircmica primeiro no que

tange agrave poliacutetica eacute mantenedora da estabilidade do reino e da sucessatildeo hereditaacuteria monaacuterquica

assim como do livre tracircnsito entre as fronteiras dos paiacuteses europeus segundo no que diz

respeito aos aspectos sociais aponta a desestruturaccedilatildeo da vida da cidade por causa da

manutenccedilatildeo de um corpo de mercenaacuterios habituados agrave violecircncia junto a uma populaccedilatildeo

indefesa terceiro com argumentos de dimensatildeo econocircmica indica os diminutos gastos da

resoluccedilatildeo paciacutefica das controveacutersias interestatais em comparaccedilatildeo com o modo beacutelico e os

empecilhos naturais ao comeacutercio em situaccedilotildees de guerra ou siacutetio

A paz mostra-se assim como portadora do ideal da tradiccedilatildeo retoacuterica antiga recebida e

imitada no Renascimento ao caracterizar-se como aquilo a que poderiacuteamos chamar mulier

bona dicendi perita Ela utiliza-se dos diversos recursos retoacutericos proporcionados pela

declamaccedilatildeo especialmente a simulaccedilatildeo de um discurso fictiacutecio em formato de prosopopeia

para mover seus leitores a sentimentos e atitudes paciacuteficas Utiliza-se da comiseratio ao

109

colocar-se como viacutetima e evoca a injusta reaccedilatildeo dos homens para com seus inumeraacuteveis e

incontestes benefiacutecios O homem guerreiro contraria a razatildeo mostra-se sem compaixatildeo para

com seus semelhantes e contradiz a proacutepria essecircncia do cristianismo que apresenta o Priacutencipe

da Paz como ideal a ser seguido e imitado No caso dos detentores de influecircncia social como

cleacuterigos e eruditos a paz estimula que propaguem o ideal da paz Por fim ao dirigir-se aos

governantes propotildee a si mesma como o esteio mestre de uma poliacutetica proacutespera e humana

110

111

NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA

COMENTADA

Quinhentos anos depois da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 suas palavras

ecoam em pleno seacuteculo XXI com surpreendente atualidade Esta declamaccedilatildeo natildeo somente se

apresenta como um primor da recepccedilatildeo e da imitaccedilatildeo dos antigos claacutessicos Nela a

personificaccedilatildeo da paz lamenta contra a guerra e argumenta a favor de si mesma com aquele

estilo elegante irocircnico e incisivo de Erasmo Suas argumentaccedilotildees contemplam praticamente

todas as dimensotildees de relacionamento humano no interior do coraccedilatildeo humano na famiacutelia

nas relaccedilotildees interpessoais e entre os estados Se de um lado muitos pensadores jaacute discorreram

sobre a paz que tal a ouvirmos falar de si mesma Eacute exatamente este o grande presente que

Erasmo proporcionou aos seus leitores naquele iniacutecio do seacuteculo XVI e cuja primeira traduccedilatildeo

para o portuguecircs brasileiro o leitor tem em matildeos

Esta traduccedilatildeo estaacute precedida da carta-proecircmio de Erasmo a Felipe que foi publicada

juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo As notas parcas em extensatildeo e quantidade tecircm o objetivo

de esclarecer algumas variantes entre as ediccedilotildees expressotildees que remetem aos antigos

dificuldades de traduccedilatildeo e informaccedilotildees pertinentes sobre lugares adaacutegios e personagens

citados no texto natildeo evidentes para muitos leitores modernos Algumas destas referecircncias

foram baseadas nas notas da ediccedilatildeo criacutetica propostas por Herding (1977) nas notas das

traduccedilotildees publicadas por Margolin (1992) e Pinto (1999) e no estudo de Tunberg (1996) Os

comentaacuterios em nota estatildeo redigidos de forma que sejam explicativos para pessoas natildeo

especializadas nos estudos claacutessicos ou nas referecircncias histoacutericas ou eclesiaacutesticas utilizadas

por Erasmo em uma possiacutevel publicaccedilatildeo desta traduccedilatildeo O texto latino e a numeraccedilatildeo entre

colchetes das linhas contidas seguem a ediccedilatildeo criacutetica da presente na Desiderii Erasmi Opera

Omnia (IV-2 1977 p 59-101) Utilizamo-nos do dicionaacuterio de Gaffiot como material de

consulta aleacutem de outras traduccedilotildees da obra para outras liacutenguas conforme listamos na

bibliografia Esta traduccedilatildeo natildeo visa simplificar o texto de Erasmo a fim de adaptaacute-lo ao

mercado livresco O puacuteblico-alvo de nossa traduccedilatildeo assemelha-se agravequele do roterdamecircs ou

seja o leitor erudito em geral e ao acadecircmico em particular Nossa traduccedilatildeo visa ser o mais

fiel possiacutevel agrave declamaccedilatildeo Essa fidelidade ao gecircnero exige entatildeo o cuidado em relaccedilatildeo ao

niacutevel de linguagem utilizado a fim de manter natildeo somente a extensatildeo dos paraacutegrafos os

112

quiasmos e as anaacuteforas utilizadas mas tambeacutem as imagens retiradas da cultura claacutessica e

biacuteblica

113

Texto latino da ediccedilatildeo criacutetica

[1] Clarissimo praesuli traiectensi

Philippo Erasmo Roteramus S D

[3] Gratularer tibi Philippe

praesul non minus vitae ornamentis

quam summorum ducum imaginibus

clarassime quod tanti muneris honore sis

auctus ni compertum [5] haberem quam

invitus susceperis quamque gravate

optimi maximique principis Caroli

autoritate fueris adactus cuius alioqui

charitati nihil non eras daturus

[7] Atque haec ipsa res spem

nobis certissimam facit fore ut cum laude

perfungaris suscepto quandoquidem

Plato vir exquisitissimi planeque divini

iudicii non alios existimat ad

rempublicam gerendam idoneos quam

eos qui [10] huc nolentes pertrahuntur

[10] Auget autem nostram de te

fiduciam quoties in mentem venit et cui

tu succedas fratri et quo patre sitis ambo

profecti

[11] Nam David vir eruditus iuxta

ac prudens permultis annis sic locum

istum tenuit ut suis ornamentis

Traduccedilatildeo

Erasmo de Roterdam a Felipe Bispo de

Utrecht saudaccedilotildees43

Distinto como tu eacutes bispo Felipe natildeo

menos pelo esplendor da vossa vida do que pela

grande e principesca linhagem eu me

congratularia contigo o acreacutescimo do seu novo e

mais honroso cargo se eu natildeo soubesse com que

relutacircncia o assumiste e com que dificuldade

foste impelido (a isso) pela autoridade do melhor

e maior dos priacutencipes Carlos pelo qual sentes

tal afeiccedilatildeo que concordarias com qualquer coisa

Eacute justamente isso que nos deu a segura

esperanccedila de que tu desempenhes teu encargo

com louvor Platatildeo44

varatildeo de excelente e

preciso juiacutezo quase divino julgou que ningueacutem

eacute mais apto a governar um corpo poliacutetico do que

aqueles que satildeo chamados a atuar contra a sua

vontade

Ora aumenta nossa confianccedila em ti toda

vez que temos em mente as qualidades do irmatildeo

que sucedeste e o pai do qual ambos voacutes

procedestes

Pois Davi45

varatildeo igualmente erudito e

saacutebio pelos muitos anos manteve essa posiccedilatildeo

43

Felipe de Borgonha eacute um filho bastardo de Felipe o Bom (1396-1467)

44 Platatildeo Repuacuteblica 7520D Erasmo Institutio Principis Christiani ASD IV-1 p 152 I 514ss

45 Como o destinataacuterio um filho bastardo de Felipe o Bom duque da Borgonha que foi bispo de Utrecht de

1455 ateacute sua morte em 1496 Segundo a ediccedilatildeo criacutetica em algumas ediccedilotildees encontramos a seguinte variante

Nam David germanus tuus vir eruditus Tal lectio foi considerada menos original no aparato criacutetico

114

plurimum splendoris ac dignitatis

addiderit ipsi muneri per se licet

amplissimo multis modis magnus ac

suspiciendus sed in hoc praecipue [15]

salutaris reipublicae quod nihil ducebat

antiquius sibi pace publica hac quoque in

parte patrem Philippum Burguindiae

ducem referens virum nulla non re

maximum sed tamen pacis artibus cum

primis insigem et aeternae hominum

memoriae commendatum

[18] Qui tibi hoc etiam impesius

erit exprimendus non tantum ut filius

patri sed ut Philippus Philippo

respondeas

[20] Intelligit iam dudum tua

prudentia quid abs te populus universus

expectet [21] Triplex onus humeris

sustines patris exemplum ac fratris tum

horum temporum fata (quid enim aliud

dicam) nescio quomodo ad bellum

pertrahentia [23] Vidimus ipsi nuper ut

quidam amicis quam hostibus graviores

nihil intentatum reliquerint ne bellorum

aliquando finis esset rursus ut vix

expresserint alii qui [25] reipublicae

principique ex animo bene volunt ut

pacem cum Francis semper optanda

de tal modo que acrescentou por seus proacuteprios

meacuteritos a dignidade e o esplendor ao proacuteprio

ofiacutecio por mais prestigioso que ele fosse em si

mesmo que a si como grande e admiraacutevel

homem convinha com grande e largueza e

variedade mais salutar agrave Repuacuteblica sobretudo

por isto pelo fato de que pensou nada ser mais

importante do que a paz puacuteblica tal como

evocou o teu pai Felipe duque da Borgonha um

grande homem em todas as mateacuterias mas insigne

sobretudo pelas artes da paz e confiado agrave eterna

memoacuteria dos homens46

Deveraacutes tomaacute-lo como modelo de modo

que satildeo sejas [para ele] somente o que um filho eacute

para o pai mas que respondas a Felipe como

[outro] Felipe

Entende haacute muito tempo a tua prudecircncia

o que todo o povo espera de ti Carregas um

triplo peso nos ombros o exemplo do teu pai do

teu irmatildeo e os destinos destes tempos (o que

mais poderia eu dizer) natildeo sei como atraiacutedos

para a guerra Noacutes mesmos vimos ultimamente47

como alguns nada deixaram de tentar embora

sendo mais severos aos seus amigos do que aos

seus inimigos a fim de assegurar que a guerra

jamais tenha fim a dificuldade encontrada pelos

outros que sinceramente desejam o bem para a

sociedade e ao priacutencipe que deve perseguir a paz

46

O reinado de Felipe de Borgonha foi paciacutefico em certo grau mas acima de tudo por obter uma reconciliaccedilatildeo

com a Franccedila ao final da guerra dos cem anos

47 A composiccedilatildeo da Queixa da Paz estaacute relacionada agrave poliacutetica de aproximaccedilatildeo com a Franccedila e de paz universal

promovida por Chiegravevres e Joatildeo Sauvage que emanaram os tratados de Noyon (augusto de 1516) e Cambrai

(marccedilo de 1517)

115

hisce vero temporibus etiam necessariam

amplecteremur

[26] Cuius sane rei indignitas

movit animum meum ut tum Pacis

undique profligatae Querimoniam

scriberem quo nimirum hac ratione

iustissimum animi mei dolorem vel

ulciscerer vel lenirem

[29] Libellum ad te ceu

primitiolas novo episcopo debitas [30]

mitto quo diligentius tueatur tua

celsitudo pacem utcunque partam si non

patiar eam obliuisci quanto negocio nobis

costiterit Bene Vale

[1] QUERELA PACIS UNDIQUE

GENTIUM EIECTAE

PROFLIGATAEQUE

AVTORE DESIDERIO ERASMO

ROTERODAMO

[4] Si me licet immerentem suo

tamen commodo sic aversarentur

eiicerent profligarentque [5] mortales

meam modo iniuriam et illorum

iniquitatem deplorarem Nunc cum me

profligatam protinus fontem omnis

humanae felicitatis ipsi a semet arceant

para com a Franccedila a qual sempre deve ser por

noacutes abraccedilada especialmente nesses dias

A indignaccedilatildeo com essas coisas moveu

completamente o meu espiacuterito a fim de escrever

a queixa da paz perseguida em toda parte de

modo que por este meio poderia vingar ou

pacificar a justiacutessima dor do meu espiacuterito

Envio entatildeo esta pequena obra como

uma espeacutecie de primiacutecia devida ao nosso bispo a

fim de que Vossa Alteza possa ser mais diligente

para preservar a paz se natildeo permito esquececirc-la

quanto trabalho nos custou

Passe bem

Queixa da paz perseguida e rejeitada em toda

parte pelas naccedilotildees

De autoria de Desideacuterio Erasmo de Rotterdam

Se mesmo que natildeo merecendo48

os

mortais ainda assim de tal modo me

hostilizassem perseguissem e rejeitassem tendo

em vista sua proacutepria vantagem eu deploraria

apenas a minha injuacuteria e a iniquidade deles Mas

uma vez que eles tendo me rejeitado impedem a

si mesmos de saciar-se na fonte de toda

felicidade humana e se precipitam no mar de

48

Cf Terecircncio Hec 5 1 14 ldquoinscitum afferre iniuriam tibi immerentirdquo

116

omniumque calamitatum pelagus sibi

accersant magis illorum mihi deflenda

est infelicitas quam mea iniuria et quibus

irasci tantum maluissem horum dolere

vicem hos commiserari compellor Nam

utcumque amantem [10] ab se propellere

inhumanum est bene merentem aversari

ingratum parentem ac servatricem

omnium affligere impium Caeterum tot

egregias commoditates quas mecum

adfero sibimetipsis invidere proque his

ultro tam tetram malorum omnium

lernam accersere an non hoc extremae

cuiusdam dementiae videtur Sceleratis

irasci par est at sic furiis actos quid aliud

quam deflere possumus [15] Qui non

alio sane nomine magis deflendi sunt

quam quod ipsi sese non deflent nec alio

magis infelices quam quod infelicitatem

suam non sentiunt quando nonnullus

gradus est ad sanitatem morbi sui

magnitudinem agnoscere Etenim si ego

sum Pax illa divorum simul et hominum

voce laudata fons parens altrix

ampliatrix tutatrix rerum bonarum

omnium quas vel caelum habet ve (sic)

[20] terra si sine me nihil usquam

florens nihil tutum nihil purum aut

sanctum nihil aut iucundum hominibus

aut gratum superis si contra haec omnia

bellum semel omnium malorum quicquid

usquam est in rerum natura oceanus

todas as calamidades entatildeo devo lamentar mais

a infelicidade deles do que a injuacuteria contra mim

E embora eu preferisse somente irar-me contra

eles sou antes compelida a me condoer deles a

ter misericoacuterdia deles Eacute certamente desumano

afastar de si o que de algum modo nos ama eacute

ingrato hostilizar o que merece o bem eacute iacutempio

afligir a progenitora e servidora de todos

Ademais acaso natildeo parece ser de uma demecircncia

extrema isso de recusar para si mesmos as

vantagens tatildeo grandes que comigo trago e no

lugar delas invocar a tatildeo terriacutevel Lerna de todos

males Eacute justo irar-se contra os criminosos mas

que mais podemos fazer senatildeo lamentar aqueles

que agiram assim por causa das Fuacuterias Estes

certamente devem ser lamentados natildeo por outro

motivo senatildeo justamente porque natildeo lamentam a

si mesmos nem por outro lado haacute homens mais

infelizes do que aqueles que natildeo percebem sua

proacutepria infelicidade uma vez que reconhecer o

tamanho da proacutepria doenccedila eacute um passo para a

cura Se eu pois sou aquela Paz louvada a uma

soacute voz pelos deuses e pelos homens fonte

progenitora aleitadora fomentadora tutora de

todas as coisas boas que existem quer no ceacuteu

quer na terra se sem mim natildeo haacute nada que

floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute

seguro nada eacute puro ou santo e nada eacute alegre

para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteus se em

contrapartida a tudo isto uma uacutenica guerra onde

quer que esteja na natureza das coisas eacute uma

espeacutecie de oceano de todos os males ao mesmo

117

quidam si huius vitio subito marcescunt

florentia dilabuntur aucta labascunt

fulta pereunt bene condita amarescunt

dulcia denique si res est adeo non sancta

ut omnis [25] pietatis ac religionis sit

maxime praesentanea pestis si nihil hoc

uno infelicius hominibus nihil invisius

superis quaeso per deum immortalem

quis credat istos homines esse quis

credat ullam sanae mentis micam inesse

qui me talem tantis impendiis tantis

studiis tanto molimine tot technis tot

curis tot periculis student eiicere

tantumque malorum velint tam chare

emere

[30] Si me ad istum modum

spernerent ferae levius ferrem et in me

admissam contumeliam naturae

imputarem quae ingenium immite

insevisset si mutis pecudibus essem

invisa condonarem inscitiae propterea

quod his ea vis animi negata sit quae sola

dotes meas queat perspicere At o rem

indignam ac plus quam prodigiosam

unum animal aedidit natura ratione

praeditum ac divinae [35] mentis capax

unum benevolentiae concordiaeque

genuit et tamen apud quantumlibet

efferas feras apud quantumvis brutas

pecudes mihi citius locus sit quam apud

homines Iam tot orbium coelestium licet

tempo se por influecircncia dela as coisas que

estavam florescendo subitamente murcham as

grandes se dissolvem os fundamentos ruem as

bem construiacutedas perecem as doces amargam em

suma se eacute algo a tal ponto sacriacutelego que eacute como

a peste venenosa de toda a piedade e religiatildeo se

natildeo haacute nada mais infeliz para os homens do que

ela se nada eacute mais odioso para os ceacuteus por

favor pelo Deus imortal quem acreditaraacute que

tais homens existam quem acreditaraacute que haacute

uma uacutenica migalha de bom senso em seres que

com tantos esforccedilos tantos trabalhos com tanto

peso com tantas teacutecnicas com tantos cuidados

tantos perigos empenhem-se em me lanccedilar fora

a mim que sou assim e prefiram pagar tatildeo caro

por uma quantidade tatildeo grande de males

Se feras me desprezassem desse modo eu

o suportaria mais facilmente e atribuiria essa

ofensa agrave natureza que inserira nelas uma iacutendole

selvagem Se eu fosse odiada pelo gado mudo

eu o perdoaria por sua ignoracircncia porque lhe foi

negada a faculdade do entendimento que eacute a

uacutenica capaz de perceber os meus dons Mas oacute

coisa indigna e mais que monstruosa a natureza

soacute produziu um animal dotado de razatildeo e capaz

da mente divina soacute gerou um ser capaz de

benevolecircncia e de concoacuterdia e no entanto eacute

mais faacutecil haver um lugar para mim junto agraves

feras por mais ferozes que sejam e agraves bestas

por mais brutas que sejam do que junto aos

homens Jaacute dentre os corpos celestes que satildeo

tantos embora seus movimentos natildeo sejam

118

nec motus sit idem nec vis eadem tamen

iis tot iam seculis constant vigentque

foedera Elementorum pugnantes inter se

vires aequabili libramine pacem aeternam

tuentur et in tanta [40] discordia consensu

commercioque mutuo concordiam alunt

In animantium corporibus quam fidus

membrorum inter ipsa consensus quam

parata defensio mutua Quid tam

dissimile quam corpus et anima Et

tamen quam arcta necessitudine

connexuerit haec duo natura nimirum

declarat ipsa divulsio Proinde ut vita

nihil aliud est quam corporis et animae

societas ita sanitas omnium [45] corporis

qualitatum concentus est Animantia

rationis expertia in suo quaeque genere

civiliter concorditerque degunt

Armentatim vivunt elephanti gregatim

pascuntur sues et oves turmatim volant

grues et graculi habent sua comitia

ciconiae pietatis etiam magistrae mutuis

officiis sese tuentur delphini Nota est

formicarum et apum inter ipsas concors

politia Sed quid de his loqui pergo [50]

quae tametsi ratione vacant sensu non

vacant

[51] In arboribus in herbis

amicitiam possis agnoscere Steriles sunt

quaedam nisi marem adiungas vitis

ulmum amplectitur vitem amat persica

iguais nem sua energia seja a mesma contudo

desde haacute muitos seacuteculos existem e vigoram entre

eles pactos As forccedilas dos elementos que lutam

entre si mantecircm a paz eterna atraveacutes de um

equiliacutebrio constante e em meio a tatildeo grande

discoacuterdia fomentam a concoacuterdia por meio do

consenso e do trato reciacuteproco Nos corpos dos

seres animados como eacute soacutelido o consenso dos

membros entre si e quatildeo preparado para a defesa

muacutetua Que existe de mais diferente do que o

corpo e a alma E contudo a proacutepria separaccedilatildeo

evidencia com quatildeo estreito laccedilo a natureza uniu

essas duas coisas De forma que assim como a

vida nada mais eacute que a associaccedilatildeo do corpo e da

alma assim tambeacutem a sauacutede do corpo eacute a

harmonia de todas as suas propriedades Os

animais desprovidos de razatildeo qualquer que seja

a espeacutecie convivem em harmonia e em

concoacuterdia Os elefantes vivem em manada

porcos e ovelhas satildeo apascentados em rebanhos

os grous e os estorninhos voam em bando as

cegonhas mestras de fidelidade tecircm seus

grupos os golfinhos ajudam-se uns aos outros

com cuidados muacutetuos e notoacuterio eacute o regime

cordial das formigas e das abelhas entre si Mas

para que continuo a falar dessas criaturas que

embora desprovidas de razatildeo natildeo satildeo

desprovidas de sentimento

Entre as aacutervores e as plantas poderias

reconhecer a amizade Algumas delas satildeo

esteacutereis a menos que lhes acrescentes o macho

o olmeiro eacute abraccedilado pela videira o pessegueiro

119

Usque adeo quae nihil sentiunt tamen

pacis beneficium sentire videntur Sed

haec rursum ut sentiendi vim non habent

ita quod vitam habeant iis quae sentiunt

finitima [55] sunt Quid aeque brutum

atque saxorum genus Dicas tamen his

quoque pacis et concordiae sensum

inesse Ita Magnes ferrum ad sese trahit

attractum tenet Quid quod inter

immanissimas etiam feras conuenit

Leonum inter ipsos feritas non dimicat

Aper in aprum non vibrat dentem

fulmineum Lynci cum lynce pax est

Draco non saevit in draconem Luporum

concordiam etiam proverbia nobilitarunt

[60] Addam quod magis etiam mirum

videatur impii spiritus per quos caelitum

atque hominum concordia primum

dirupta est et hodie rumpitur tamen inter

se foedus habent suamque illam

qualemcumque tyrannidem consensu

tuentur

[64] Solos homines quos omnium

maxime decebat unanimitas quibusque

cum [65] primis opus est ea neque natura

tam aliis in rebus potens et efficax

conciliat nec institutio coniungit nec tot

ex consensu profecturae commoditates

conglutinant nec tantorum denique

malorum sensus et experientia in mutuum

ama a videira Ateacute mesmo aqueles que nada

sentem parecem no entanto sentir o benefiacutecio

da paz Mais ainda se esses seres natildeo tecircm a

capacidade de sentir satildeo na medida em que tecircm

vida proacuteximos daqueles que sentem O que haacute

de tatildeo bruto quanto agrave raccedila das pedras Dizes

contudo que tambeacutem nestas estaacute contido o senso

da paz e da concoacuterdia Assim o imatilde atrai o ferro

para si e tendo-o atraiacutedo o reteacutem O que eacute isso

que congrega ateacute as feras mais selvagens entre

si A ferocidade dos leotildees entre eles natildeo

aparece49

Um javali natildeo vibra seu dente afiado

contra outro javali haacute paz de lince com lince a

serpente natildeo se enfurece com outra serpente e

ateacute os proveacuterbios elogiaram a concoacuterdia que

existe entre lobos Acrescentarei ainda algo que

parece mais espantoso os espiacuteritos iacutempios (por

meio dos quais a concoacuterdia entre os ceacuteus e os

homens se rompeu no comeccedilo e ainda hoje se

rompe) tecircm contudo um pacto entre si e

manteacutem aquela sua tirania atraveacutes do consenso

De todos os seres satildeo os homens aqueles

a quem mais convinha a uniatildeo e a que de longe

ela eacute mais necessaacuteria poreacutem de todos satildeo os

uacutenicos que nem a natureza tatildeo potente e eficaz

em outras coisas concilia nem a instruccedilatildeo une

nem associam as facilidades advindas de um

acordo a ser firmado nem enfim a percepccedilatildeo e

a experiecircncia de tatildeo grandes males reconduz ao

49

Margolin (1992 p 914) identifica uma recepccedilatildeo de Pliacutenio (Histoacuteria natural VII 5)

120

amorem redigit Figura communis

omnium vox eadem et cum caetera

animantium genera corporum formis

potissimum inter se differant uni homini

indita vis [70] rationis quae ita sit illis

inter ipsos communis ut cum nullo sit

reliquorum animantium communis uni

huic animanti sermo datus praecipuus

necessitudinum conciliator Insita sunt

communiter disciplinarum ac virtutum

semina ingenium mite placidumque et ad

mutuam benevolentiam propensum ut

per se iuvet amari et iucundum sit de aliis

benemereri nisi quis pravis cupiditatibus

[75] ceu Circes pharmacis corruptus ex

homine degenerarit in belluam Hinc est

videlicet quod vulgus quicquid ad

mutuam benevolentiam pertinet

humanum appellat Addidit lacrymas

exorabilis ingenii documentum quo si

quid forte inciderit offensae et amicitiae

serenitatem nubecula aliqua obfuscarit

facile redeant in gratiam

En quot rationibus natura

amor muacutetuo A aparecircncia eacute comum a todos a

voz eacute a mesma e embora as demais espeacutecies dos

animais se diferenciem umas das outras

sobretudo pelas formas dos corpos soacute ao homem

foi infundida a razatildeo que assim como eacute comum

entre eles mesmos natildeo eacute comum entre eles e os

demais animais50

Soacute a este ser animado foi

concedida a fala que eacute o principal conciliador

dos laccedilos sociais foram-lhe inseridas as

sementes dos saberes e das virtudes de um

temperamento doce plaacutecido e propenso a uma

muacutetua benevolecircncia de tal forma que lhe agrada

ser amado pelo que eacute e sente-se alegre em fazer

gratuitamente o bem a quem o merece a natildeo ser

que algueacutem corrompido por perversos desejos

como que pelos alucinoacutegenos de Circe51

se

degenere de homem em fera52

Eacute por isso que

natildeo sem razatildeo o vulgo chama humano a tudo

aquilo que diz respeito agrave benevolecircncia muacutetua53

Acrescentou-lhe as laacutegrimas comprovaccedilatildeo de

um espiacuterito sensiacutevel a pedidos de desculpas para

que facilmente se faccedilam as pazes caso ocorra

talvez um incidente ofensivo ou alguma

nuvenzinha ofusque a serenidade da amizade

Eis com quatildeo grande nuacutemero de

50

Cf Quintiliano Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 16 17-18 Segundo Margolin (1992 p 914) ldquotema banal da

superioridade do homem dotado de linguagem e de razatildeordquo

51 Herding (1978 p 65 nota 75) percebe a recepccedilatildeo de Homero (Odisseia X 235ss) ldquoCirces pharmacisrdquo

52 Alusatildeo ao trecho da Odisseia (X 310) segundo o qual a deusa feiticeira Circe filha do deus Heacutelio com a

feiticeira Heacutecate especialista em venenos acolhe primeiramente depois furiosamente Ulisses e seus

companheiros Segundo Margolin (1992 p 915) ldquotrata-se de um tema claacutessico da degenerescecircncia moral ou

fiacutesica dos homens metamorfoseados em bestas ferozes para a liberaccedilatildeo dos seus instintos brutaisrdquo

53 Noccedilatildeo capital entre os humanistas Erasmo natildeo pensa ser a humanitas um dom natural do homem pois ele se

torna humano A razatildeo bem formada deve fazer redescobrir a verdadeira natureza do homem que lhe permite

comandar e superar sua natureza instintiva

121

concordiam docuit Nec his tamen [80]

contenta pacis lenociniis amicitiam

homini non solam iucundam esse voluit

verum etiam necessariam Eoque tum

corporum tum animorum dotes ita partita

est ut nemo sit omnium tam instructus

quin infimorum etiam officio

nonnumquam adiuvetur nec eadem

attribuit omnibus nec paria ut haec

inaequalitas mutuis amicitiis aequaretur

Aliis in regionibus alia proveniunt quo

vel usus [85] ipse mutua doceret

commercia

[86] Caeteris animantibus sua

tribuit arma praesidiaque quibus sese

tuerentur unum hominem produxit

inermem atque imbecillum nec prorsus

aliter tutum quam foedere mutuaque

necessitudine Civitates repperit

necessitas et ipsarum inter se societatem

docuit necessitas quo ferarum ac

praedonum vim cunctis [90] viribus

propellerent Adeo nihil est in rebus

humanis quod ipsum sibi sufficiat In

ipsis statim vitae primordiis perisset

hominum genus nisi conditum

propagasset coniugalis concordia nec

enim nasceretur homo et mox natus

argumentos a natureza nos ensinou a concoacuterdia

Natildeo satisfeita contudo com esses encantos que

resultam da paz quis que a amizade fosse natildeo

somente agradaacutevel mas tambeacutem necessaacuteria para

o homem Por essa razatildeo repartiu de tal forma

os dotes tanto os dos corpos quanto os dos

espiacuteritos que natildeo haacute ningueacutem que seja tatildeo

dotado de todos eles que jamais necessite ser

socorrido pelo auxiacutelio dos subalternos tampouco

atribuiu a todos caracteriacutesticas idecircnticas e iguais

a fim de que essa desigualdade fosse equilibrada

atraveacutes de amizades muacutetuas As diferentes

regiotildees produzem coisas diferentes de modo que

a proacutepria utilidade ensinasse os muacutetuos

comeacutercios

Aos outros animais a natureza concedeu

armas e recursos a fim de se defenderem soacute o

homem ela produziu indefeso e fraco

dependente para sua seguranccedila inteiramente de

alianccedila muacutetua e dos laccedilos de solidariedade54

A

necessidade inventou as cidades e a necessidade

ensinou a sociedade entre elas a fim de unindo

forccedilas repelir o ataque das feras e dos ladrotildees

Mais ainda natildeo haacute nada nas coisas humanas que

baste a si mesma O gecircnero humano teria

perecido logo nos primeiros estaacutegios da vida se

uma vez criado a concoacuterdia conjugal natildeo o

tivesse propagado pois o homem nem nasceria

ou morreria logo ao nascer e expiraria no limiar

mesmo da vida se a matildeo amiga das parteiras e

54

Eacute o mito de Epimeteu que ao criar os animais com seus respectivos atributos concedeu ao homem o fogo dos

deuses ensinando-lhe tambeacutem como trabalhar com ele (Cf Platatildeo Protaacutegoras 320C-322C)

122

interiret atque in ipso vitae limine vitam

amitteret nisi obstetricum amica manus

nisi nutricum amica pietas succurreret

infantulo Atque in hunc usum

vehementissimos [95] illos pietatis

igniculos insevit ut parentes etiam illud

ament quod nondum viderunt Adiecit

mutuam liberorum erga parentes

pietatem ut illorum imbecillitas horum

praesidiis vicissim sublevaretur fieretque

illa cunctis quidem ex aequo plausibilis

sed Graecis aptissime dicta

ἀμηιπελάργωζις Accedunt huc

cognationum et affinitatum vincula

accedit in nonnullis ingeniorum

studiorum [100] formaeque similitudo

certissima benevolentiae conciliatrix in

multis arcanus quidam animorum sensus

ac mirus ad mutuum amorem stimulus

quem veteres admirati numini

adscribebant

[103] Tot argumentis natura

docuit pacem concordiamque tot

illecebris ad eam invitat tot laqueis

trahit tot rebus compellit Et post haec

quaenam ista tam ad [105] nocendum

efficax Erinnys his omnibus disruptis

disiectis discussis insatiabilem pugnandi

furiam insevit humanis pectoribus Nisi

se a piedade amiga das amas de leite natildeo

socorresse o bebezinho Mas tendo em vista sua

utilidade a natureza inseriu nos homens

fortiacutessimos estiacutemulos de piedade a fim de que os

pais amem ateacute aquilo que ainda nem sequer

viram Acrescentou a piedade muacutetua dos filhos

para com os pais para que a fraqueza destes seja

por sua vez amparada pelos cuidados daqueles e

a que se decirc aquele sentimento certamente vaacutelido

para todos mas a que os gregos chamaram mais

apropriadamente ἀμηιπελάργωζις55

Somam-se a

estes os viacuteculos das consanguinidades e das

afinidades Acrescente-se em alguns a

semelhanccedila de temperamento de feiccedilotildees e de

interesses a qual eacute a mais certa conciliadora da

benevolecircncia havendo tambeacutem em muitos

homens uma espeacutecie de sentido misterioso das

almas e uma maravilhosa tendecircncia para o amor

muacutetuo que os antigos admirados atribuiacuteam a

uma divindade

Com tatildeo grande nuacutemero de argumentos a

natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela

nos convida com tatildeo grande nuacutemero de

seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com

tantos laccedilos e razotildees E no entanto que Eriacutenia

foi essa tatildeo eficaz em prejudicar que tendo

todas aquelas coisas sido destruiacutedas destroccediladas

e arrasadas infundiu nos coraccedilotildees humanos a

55

O termo deriva de πελαργoacuteς e se refere agrave piedade da cegonha conforme a literatura grega Margolin (1992 p

916) sugere a traduccedilatildeo como ldquoreconhecimento filialrdquo ou de ldquopiedade filialrdquo com a ideia de uma piedade que

ldquoretornardquo

123

primum admirationem deinde sensum

etiam mali adimeret assuetudo quis

crederet humana mente praeditos istos

qui sic iugibus dissidiis litibus bellis

inter sese certant rixantur tumultuantur

Postremo rapinis sanguine cladibus

ruinis sacra profanaque [110] miscent

omnia nec ulla tam sancta foedera quae

illos in mutuam perniciem debacchantes

queant dirimere Ut nihil etiam accesserit

satis erat commune hominis vocabulum

ut inter homines conveniret

[113] Sed esto nihil apud

homines profecerit natura quae

plurimum valet ut in beluis Itane nihil et

apud Christianos valuit Christus Parum

efficax sit doctrina [115] naturae quae

maximam vim habet in his quoque quae

sensu vacant Caeterum cum hac multo

praestantior sit doctrina Christi cur ea se

profitentibus non persuadet id quod unum

omnium maxime suadet nempe pacem

mutuamque benevolentiam Aut saltem

hanc tam impiam efferamque belligerandi

insaniam dedocet Cum hominis

vocabulum audio mox accurro velut ad

animal mihi [120] proprie natum

confidens fore ut illic liceat acquiescere

cum Christianorum audio titulum magis

etiam advolo apud hos certe regnaturam

insaciaacutevel fuacuteria de fazer a guerra Se o costume

natildeo tivesse feito desaparecer primeiro o espanto

depois ateacute a emoccedilatildeo diante do mal quem

acreditaria que satildeo providos de razatildeo humana

esses que lutam entre si se confrontam e se

combatem com constantes dissensotildees litiacutegios e

guerras Finalmente com pilhagens sangue

assassinatos e destruiccedilotildees misturam todas as

coisas sagradas e profanas nem haacute alianccedilas por

mais sagradas que eles natildeo sejam capazes de

romper inebriados para sua muacutetua destruiccedilatildeo

Para que nada disso uma vez mais ocorresse

seria suficiente a simples palavra ldquohomemrdquo para

que os homens se unissem

Mas que seja A natureza que tem tatildeo

grande poder entre os animais nada pode junto

aos homens mas seraacute que Cristo tambeacutem natildeo

pocircde nada entre os cristatildeos Que seja pouco

eficaz a doutrina da natureza a qual tem maacutexima

forccedila ateacute para os seres privados de sentidos mas

sendo a doutrina de Cristo muito superior por

que esta natildeo eacute capaz de persuadir os que a

professam aquilo que ela ensina sobre todas as

coisas a saber a paz e a muacutetua benevolecircncia

Ou pelo menos natildeo os dissuade de tatildeo iacutempia e

selvagem insacircnia de guerrear Quando ouccedilo a

palavra homem logo acudo como a um animal

nascido de mim confiante de que nele

encontrarei o lugar do meu repouso quando

ouccedilo a designaccedilatildeo de cristatildeos voo mais ainda

na esperanccedila de que entre eles certamente hei de

reinar Entretanto aqui tambeacutem me envergonha e

124

etiam me sperans Sed hic quoque pudet

ac piget dicere fora basilicae curiae

templa sic undique litibus perstrepunt ut

nusquam apud ethnicos aeque adeo ut

cum bona pars humanae calamitatis sit

advocatorum turba tamen haec etiam ad

litigantium [125] undas paucitas sit ac

solitudo Civitatem adspicio spes illico

oboritur inter hos saltem convenire quos

eadem cingunt moenia eaedem

moderantur leges et velut una vectos

navi commune continet periculum Sed o

me miseram quae hic quoque dissidiis

omnia vitiata comperio adeo ut vix

domum ullam reperire liceat in qua mihi

sit vel dies aliquot locus Sed plebem

omitto quae maris ritu [130] suis aestibus

rapitur

[131] In principum aulas velut in

portum quemdam me recipio Erit

inquam certe apud hos locus paci plus hi

sapiunt quam vulgus ut qui sint plebis

animus atque oculus populi tum eius

vices gerunt qui doctor est et princeps

concordiae a quo quidem cum omnibus

tum his praecipue sum commendata Et

[135] omnia bene pollicentur Video

blandas consalutationes amicos

angustia dizer os foacuteruns as basiacutelicas os

tribunais e as igrejas ressoam por todos os lados

com tal violecircncia como nunca houve igual entre

os gentios A tal ponto que embora boa parte da

calamidade humana esteja na turba dos

advogados esta no entanto em relaccedilatildeo agraves ondas

dos litigantes eacute um nada um deserto Olho para

a cidade e imediatamente renasce minha

esperanccedila de que exista uniatildeo ao menos entre

aqueles que as mesmas muralhas circundam e

satildeo regidos pelas mesmas leis e que como que

navegam num mesmo navio unidas por um

perigo em comum Mas pobre de mim Tambeacutem

aqui verifico que a cidade estaacute totalmente

maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a

tal ponto que quase natildeo se pode achar uma uacutenica

casa na qual exista um lugar para mim por

alguns dias Entretanto deixo de lado o povo

que tal como o mar eacute arrebatado por sua proacutepria

agitaccedilatildeo56

Voltei-me agraves cortes dos priacutencipes como a

uma espeacutecie de porto Digo que certamente

existiraacute junto a estes um lugar para a paz pois

eles sabem mais que o vulgo de forma que satildeo a

alma e os olhos do povo Eles fazem pois agraves

vezes deste que eacute o doutor e o priacutencipe da

concoacuterdia natildeo soacute por este fui recomendada mas

tambeacutem por eles E tudo isso eles prometem

Vejo saudaccedilotildees suaves abraccedilos amigaacuteveis

alegres banquetes assim como todos os demais

56

A ldquoagitaccedilatildeordquo como traduccedilatildeo de aestibus referencia agraves aacuteguas agitadas agrave agitaccedilatildeo do mar sentido registrado nos

dicionaacuterios (Agradeccedilo ao Prof Paulo Vasconcellos essa sugestatildeo por ocasiatildeo do exame de qualificaccedilatildeo)

125

complexus hilares compotationes

caeteraque officia humanitatis At o rem

indignam apud hos nec umbram verae

concordiae licuit cernere Fucata fictaque

omnia factionibus apertis clanculariis

dissidiis ac simultatibus corrupta sunt

universa Denique adeo apud hos non

esse sedem paci comperio ut hinc potius

omnium bellorum [140] fontes ac

seminaria Quo me posthac conferam

infelix posteaquam toties fefellit spes

At principes magni sunt potius quam

eruditi magisque ducuntur cupiditatibus

quam recto animi iudicio

[143] Ad eruditorum greges

confugiam Bonae litterae reddunt

homines philosophia plusquam homines

theologia reddit divos Apud hos certe

dabitur conquiescere [145] tot actae

ambagibus Verum proh dolor en hic

quoque bellorum aliud genus minus

quidem cruentum sed tamen non minus

insanum Schola cum schola dissidet et

ceu rerum veritas loco commutetur ita

quaedam scita non traiiciunt mare

quaedam non superant Alpes quaedam

non tranant Rhenum immo in eadem

academia cum rhetore bellum est

dialectico cum iureconsulto [150]

deveres da civilidade Entretanto oacute coisa

indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar

sequer a sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute

fingido e simulado natildeo haacute nada que natildeo seja

corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por

divergecircncias e rivalidades ocultas No final natildeo

encontro o trono da paz entre eles mas antes eacute aiacute

que mais estatildeo as fontes e origens de todas as

guerras Depois de tantas vezes ver perdida a

esperanccedila para onde eu infeliz devo acorrer

Mas os priacutencipes talvez satildeo mais importantes

que eruditos e mais se deixam conduzir pelas

paixotildees do que pelo reto juiacutezo da alma

Refugiar-me-ei na grei dos eruditos as

boas letras formam os homens a filosofia os

torna mais do que homens e a teologia torna-os

santos Junto a eles certamente ser-me-aacute dado

repousar depois de me ter enredado em tantas

digressotildees Entretanto oacute dor Aqui tambeacutem haacute

outro tipo de guerra de fato menos cruenta

contudo natildeo menos insana Escolas se digladiam

com escolas e como se a verdade mudasse com

os lugares certos conceitos natildeo atravessam o

mar outros natildeo transpotildeem os Alpes outros

enfim natildeo cruzam o Reno e ateacute na mesma

Academia o retoacuterico disputa com o dialeacutetico ou

o jurista discorda do teoacutelogo Chega-se ao ponto

de que no mesmo gecircnero de profissatildeo o tomista

luta contra o escotista 57

o realista contra o

57

Cf ldquoOs traccedilos do labirinto satildeo menos complicados do que as tortuosas voltas dos realistas nominalistas

tomistas albertistas occamistas escotistasrdquo (Elogio da Loucura 53) Erasmo buscou o fundamento de sua

doutrina nas fontes do cristianismo natildeo nas ldquosutilezasrdquo dos comentaacuterios variados e contraditoacuterios dos filoacutesofos

medievais (cf Margolin1992 p 918)

126

dissidet theologus Atque adeo in eodem

professionis genere cum Thomista pugnat

Scotista cum Reali Nominalis cum

Peripatetico Platonicus adeo ut ne in

minutissimis quidem rebus inter hos

conveniat ac saepenumero de lana

caprina atrocissime digladientur donec

disputationis calor ab argumentis ad

convitia a convitiis ad pugnos

incrudescat et si res pugionibus aut

lanceis non [155] agitur stilis veneno

tinctis sese confodiunt dentata charta

dilacerant invicem alter in alterius

famam letalia linguarum vibrant spicula

Quo me vertam toties experta mihi data

verba

[158] Quid superest nisi una

veluti sacra ancora religio Huius

professio licet sit Christianorum omnium

communis tamen eam isti peculiariter

profitentur titulo [160] cultu cerimoniis

qui vulgo Sacerdotum cognomento

commendantur Hos itaque procul

intuenti cuncta spem faciunt portum mihi

paratum esse Arrident vestes candidae

meoque colore insignes video cruces

pacis symbola audio dulcissimum illud

fratris cognomen eximiae caritatis

nominalista o platocircnico contra o peripateacutetico

de tal forma que nem sequer concordam em

ninharias e muitas vezes se digladiam

violentamente por latilde de caprina58

ateacute que o calor

do debate recrudesce e dos argumentos se passa

agraves ofensas das ofensas aos safanotildees59

e se o

assunto natildeo se resolver com adagas e lanccedilas

trespassam-se com penas envenenadas

dilaceram-se com papeacuteis que mordem e um vibra

o dardo mortal da liacutengua contra o renome do

outro 60

Para onde me voltarei depois de tantas

palavras enganosas que me foram dirigidas

Que me resta senatildeo a religiatildeo uacutenica

acircncora sagrada Embora todos os cristatildeos em

geral a professem contudo alguns a professam

de um modo peculiar tanto pelo nome como

pelo tipo de vida e cerimocircnias que praticam e

que satildeo aqueles a que vulgarmente se daacute o nome

de sacerdotes Estes observados assim agrave

distacircncia tudo daacute a esperanccedila de que seja ali o

porto preparado para mim Suas vestes brancas

sorriem famosas pela minha cor 61

vejo as

cruzes siacutembolos da paz ouccedilo aquele dulciacutessimo

cognome de irmatildeos demonstraccedilatildeo de um amor

58

Herding (1978 p 67 nota 152-153) nota-se referecircncia a Horaacutecio (Epiacutestola I 18 15)

59 Nota-se a referecircncia a Ciacutecero (Ad Quintum fratem 2 15 6)

60 A expressatildeo ldquocharta dentatardquo eacute um expressatildeo ciceroniana (cf Cicero Ad Quintum fratem 2141)

61 Cf Oviacutedio Ars amatoria 3502

127

argumentum audio salutationes pacis

laeto omine felices cerno rerum omnium

communionem [165] coniunctum

collegium templum idem leges easdem

conventus quotidianos Quis hic non

confidat paci locum fore Sed o rem

indignam nusquam fere collegio

convenit cum episcopo parum hoc nisi

et ipsi inter sese factionibus scinderentur

Quotusquisque sacerdos est cui non sit

cum aliquo sacerdote lis Paulus rem non

ferendam censet quod Christianus litiget

adversus Christianum [170] Et sacerdos

cum sacerdote episcopus cum episcopo

certat Verum his quoque forsitan

ignoscat aliquis quod longo iam usu

propemodum in prophanorum consortium

abierunt posteaquam eadem cum illis

coeperunt possidere Age fruantur hii

sane suo iure quod ceu praescriptione

sibi vindicant Unum hominum genus

superest qui sic adstricti sunt religioni ut

etiam si cupiant [175] nullo pacto queant

excutere non magis profecto quam

testudo domum Sperarem apud hos mihi

fore locum nisi toties frustrata spes me

prorsus desperare docuisset Et tamen ne

quid intentatum relinquam experiar

Quaeris exitum A nullis resilii magis

exiacutemio ouccedilo as saudaccedilotildees de paz cheias de

votos de felicidade vejo a comunhatildeo de todos os

bens um colegiado unido o mesmo templo as

mesmas leis e as reuniotildees diaacuterias Quem natildeo

acreditaria ser este o lugar da paz Mas oacute coisa

indigna Quase natildeo haacute uma ordem que concorde

com o bispo e pior cindem-se em facccedilotildees Quatildeo

poucos satildeo os sacerdotes que natildeo estejam em

litiacutegio com ao menos outro sacerdote Paulo62

natildeo concorda que um cristatildeo tenha disputas

contra outro cristatildeo 63

e o sacerdote discute com

o sacerdote o bispo com o bispo Mas haacute talvez

quem os desculpe jaacute que desde haacute muito tempo

quase se aproximaram do consoacutercio com o

profano depois de comeccedilarem a possuir as

mesmas coisas que eles Pois seja Que

usufruam como se fosse direito seu aquilo que

reivindicam como privileacutegio Haacute ainda uma

espeacutecie de homems que estatildeo de tal forma

ligados a uma religiatildeo que ainda que o

quisessem natildeo conseguiriam deixaacute-la por nada

exatamente como ocorre com a tartaruga e seu

casco Esperaria encontrar junto a eles um lugar

se tantas esperanccedilas frustadas natildeo tivessem me

ensinado a desesperar completamente Mas

enfim para natildeo deixe algo a tentar

experimentarei Queres saber o resultado De

ningueacutem tive de fugir mais raacutepido Pois o que se

poderia esperar de um lugar onde uma ordem

62

Cf II Ad Corinthum 67

63 Cf II Ad Corinthum 67

128

Nam quid sperem ubi religio cum

religione dissidet Tot factiones sunt

quot sunt sodalitia Dominicales dissident

cum Minoritis [180] Benedictini cum

Bernardinis tot nomina tot cultus tot

cerimoniae studio diversae ne quid

omnino conveniret sua cuique placent

aliena damnat et oditque quisque Quin

idem sodalitium factionibus scinditur

Observantes insectantur Coletas utrique

tertium genus quod a conventu

cognomen habet cum nihil inter istos

conveniat

Iam ut par est omnibus rebus

diffisa optabam vel [185] in uno

quopiam monasteriolo latitare quod vere

tranquillum esset Invita dicam quod

utinam non esset verissimum nullum

adhuc reperi quod non intestinis odiis ac

religiosa64

discorda da outra Tantas satildeo as

facccedilotildees quantas satildeo as irmandades os

dominicanos65

disputam com os minoritas66

os

beneditinos67

com os bernardinos68

tantos

nomes tantos cultos tantas cerimocircnias

diferentes de modo que natildeo concordam em coisa

alguma cada um satisfeito com o que eacute seu cada

um condenando e odiando o que eacute dos outros

Aleacutem disso a mesma irmandade estaacute dividida

em facccedilotildees69

os observantes70

perseguem os

recoletas71

e uma terceira ordem deles que tem

o nome de conventual72

quando nada entre eles

conveacutem

Jaacute que eacute assim desconfiada de todas as

coisas dispunha-me a ocultar-me em um

mosteirozinho qualquer que fosse

verdadeiramente tranquilo Direi relutante aquilo

que quem dera natildeo fosse muito verdadeiro ateacute

hoje ainda natildeo encontrei nenhum que natildeo

64

No original religio Natildeo se pode traduzir nesse caso religio por religiatildeo No tempo de Erasmo chamava-se

religiatildeo uma ordem religiosa especiacutefica diferentemente do sentido moderno que usa esse termo para outras

religiotildees acatoacutelicas Erasmo chamava de religio o que hoje os teoacutelogos chamam de carisma Carisma eacute o

vocaacutebulo que se refere agraves caracteriacutesticas especiacuteficas dos indiviacuteduos ou das ordens religiosas Ademais na

teologia catoacutelica do seacuteculo XVI soacute existia uma religiatildeo a catoacutelica Eacute preciso lembrar que natildeo havia acontecido

ainda o simboacutelico feito de Lutero que desencadeou a ruptura das igrejas reformadas com Roma

65 Margolin (1992920) comenta que neste trecho ldquoErasmo logo aproveita a ocasiatildeo de se queixar dos

dominicanos sobretudo os espanhoacuteis cuja estrita ortodoxia natildeo se acomoda ao seu espiacuterito reformistardquo

66 Menores ou freis menores cuja ordem foi fundada em 1223 por Satildeo Francisco de Assis

67 Ordem religiosa fundada por Satildeo Bento por volta do ano 528 sobre o Monte Cassino Itaacutelia

68 Religiosos cistercienses cuja ordem foi fundada em 1098 por Roberto de Citeaux posteriormente reforma em

1119 pelo seu sucessor Satildeo Bernardo de Claraval

69 Dissensatildeo da ordem franciscana instituiacuteda pelo Papa Leatildeo X atraveacutes da bula Ite vos in vineam meam (1517)

70 Ordem fundada durante o Conciacutelio de Constanccedila (1415) e confirmada pelo Papa Martinho V (1420) A regra eacute

mais restrita do que dos conventuais

71 Ordem fundada por Nicollete Boylet ao norte da Franccedila

72 Ordem dos Frades Menores Conventuais surgida entre os anos de 1249 e 1250 que predicava uma vida

mendicante dentro dos conventos em oposiccedilatildeo ao modo de vida itinerante

129

iurgiis esset infectum Pudor sit

recensere quam nihili de nugis tricisque

quantas cieant pugnas viri senes barba

pallioque verendi postremo ut sibi

videntur impense tum eruditi tum sancti

Arridebat spes nonnulla [190] fore ut

alicubi inter tot coniugia qualiscumque

daretur locus

Quid enim non pollicetur domus

communis fortuna communis lectus

communis liberi communes Denique

corporum ipsorum ius mutuum ut unum

potius hominem credas e duobus

conflatum quam duos Huc quoque

sceleratissima illa Eris irrepsit totque

vinculis copulatos dirimit dissidiis

animorum Et tamen inter [195] hos citius

contingat locus quam inter eos qui tot

titulis tot insignibus tot cerimoniis

absolutam caritatem profitentur Tandem

illud in votis esse coepit ut saltem in

unius hominis pectore daretur locus Ne

id quidem contigit idem homo secum

pugnat Ratio belligeratur cum affectibus

et insuper affectus cum affectu

conflictatur dum alio vocat pietas alio

trahit cupiditas Rursum aliud [200]

suadet libido aliud ira aliud ambitio

aliud avaritia Et huiusmodi cum sint non

pudet tamen illos appellari Christianos

cum modis omnibus dissideant ab eo

estivesse contaminado por essas discoacuterdias e

oacutedios intestinos Eacute uma vergonha contar quantas

lutas por causa de bagatelas e futilidades

totalmente insignificantes satildeo causadas por

anciatildeos venerandos em suas barbas e haacutebitos e

que persistem em se ver a si mesmos tatildeo

eruditos tatildeo santos Sorria-me a esperanccedila de

que haveria de encontrar um abrigo em algum

lugar entre tantos casais

Que outra coisa poderia prometer-me um

lar comum de uma sorte comum de um leito

comum e de filhos comuns Enfim do direito

muacutetuo aos proacuteprios corpos a tal ponto que nos eacute

permitido crer que em lugar de dois seres se

trata mais propriamente de um formado a partir

de dois Tambeacutem aqui penetrou aquela tatildeo

perversa Eacuteris e separou com dissensotildees pessoas

que estavam ligadas por muitos viacutenculos E

contudo com mais rapidez se consegue um lugar

entre estes do que entre aqueles outros que com

tantos tiacutetulos tantas insiacutegnias tantas cerimocircnias

professam uma caridade absoluta Finalmente

comecei a ter o desejo de que ao menos fosse

dado um lugar no coraccedilatildeo de um uacutenico homem

Mas tambeacutem aiacute natildeo fui bem sucedida pois o

mesmo homem luta contra si mesmo A razatildeo

luta contra os sentimentos e ademais os

sentimentos lutam entre si se a piedade impele

numa direccedilatildeo o desejo arrasta para outra

ademais a libido aconselha uma coisa a ira

outra a ambiccedilatildeo outra a avareza outra Mas

mesmo assim natildeo se envergonham de chamar-se

130

quod Christo praecipuum est ac

peculiare

[203] Universam eius vitam

contemplare quid aliud est quam

concordiae mutuique amoris doctrina

Quid aliud inculcant eius praecepta quid

parabolae nisi [205] pacem nisi

caritatem mutuam Egregius ille vates

Esaias cum coelesti afflatus spiritu

Christum illum rerum omnium

conciliatorem venturum annunciaret num

satrapam pollicetur num urbium

eversorem num bellatorem num

triumphatorem Nequaquam Quid

igitur Principem Pacis siquidem cura

omnium optimum principem intelligi

vellet ab ea re denotavit quam omnium

[210] optimam iudicasset Neque mirum

ita visum Esaiae cum Silius Ethnicus

Poeta hunc in modum de me scripserit

Pax optima rerum quas homini natura

dedit Concinit huic mysticus ille

citharoedus et factus est inquiens in

pace locus eius In pace dixit non in

tentoriis non in castris princeps est

pacis pacem amat offenditur dissidio

Rursum Esaias opus iustitiae pacem

cristatildeos embora se afastem daquilo que eacute

principal e peculiar em Cristo

Contempla toda a vida dele que outra

coisa eacute ela senatildeo um ensinamento de concoacuterdia

e de amor muacutetuo Que outra coisa inculcam os

seus preceitos e suas paraacutebolas a natildeo ser a paz a

natildeo ser a muacutetua caridade O grande profeta

Isaiacuteas ao anunciar inspirado pelo Espiacuterito

Celeste que Cristo haveria de vir como

conciliador de todas as criaturas teria por acaso

prometido um saacutetrapa ou um agitador de cidades

ou um guerreiro ou um triunfador De modo

algum O quecirc entatildeo O priacutencipe da Paz Pois

como tinha a intenccedilatildeo de referir-se ao priacutencipe

por excelecircncia descreveu-o por aquela coisa que

eacute a mais excelente de todas Natildeo admira que tal

tenha sido a opiniatildeo de Isaiacuteas porque ateacute um

poeta pagatildeo Siacutelio escreveu deste modo sobre

mim ldquoa paz eacute o dom mais excelente que a

natureza concedeu ao homemrdquo73

Aquele famoso

miacutestico citarista cantou a meu respeito ao dizer

ldquoE fez seu assento na pazrdquo 74

ldquoNa pazrdquo disse ele

natildeo em tendas natildeo em acampamentos Eacute o

Priacutencipe da paz Ele ama a paz ofende-se com a

discoacuterdia E novamente Isaiacuteas ldquoagrave justiccedila chama-

se obra da pazrdquo 75

pensando se eacute que natildeo me

engano o mesmo que pensou Paulo que outrora

74 Erasmo cita o texto biacuteblico do Psalmo 753 da Vulgata (seacutec IV) atribuiacutedo a Eusebius Sophronius Hieronymus

(347-420) mais conhecido como Satildeo Jerocircnimo ldquoEt factus est in pace locus eiusrdquo Para os textos citados do Novo

Testamento Erasmo cita sua proacutepria traduccedilatildeo latina

75 Erasmo parafraseia a traduccedilatildeo de Jerocircnimo ldquoOpus iustitiae paxrdquo de um trecho de Isaiah 3217

131

appellat idem sentiens [215] ni fallor

quod sensit Paulus ille et ipse e Saulo

turbulento redditus tranquillus et pacis

doctor Cum caritatem caeteris omnibus

arcani spiritus dotibus anteponens quo

pectore qua facundia meum encomium

detonuit Corinthiis Cur enim non glorier

sic laudari a viro tam laudato Is alias

deum pacis appellat alias pacem dei

vocat palam indicans haec duo sic inter

sese cohaerere ut ibi pax esse non possit

ubi deus non adsit nec illic esse deus

possit ubi pax non [220] adsit Itidem et

pacis angelos in divinis libris vocatos

legimus pios ac dei ministros ut per se

liqueat quos belli Angelos oporteat

accipi

[223] Audite strenui bellatores

Videte sub cuius signis militetis nimirum

illius qui primus dissidium sevit inter

deum et hominem Quicquid calamitatum

sentit mortalitas huic dissidio debet

violento Saulo76

converteu-se em paciacutefico e

mestre da paz sobrepondo a caridade acima de

todos os outros dons do Espiacuterito Santo com que

coraccedilatildeo com que eloquecircncia entoou meu elogio

aos coriacutentios77

Por que eu natildeo me gloriaria de

ser elogiada por um varatildeo tatildeo louvado Ora me

chama ldquoo Deus da pazrdquo 78

ora invoca ldquoa paz de

Deusrdquo 79

indicando claramente que esses dois

conceitos estatildeo interligados de tal forma que

onde haacute paz Deus se faz presente e Deus natildeo se

faz presente onde natildeo existe paz Do mesmo

modo podemos ler nas Escrituras Sagradas que

os homens piedosos e os ministros de Deus satildeo

chamados mensageiros da paz80

a fim de que por

si mesmo fique evidente quais satildeo aqueles que

devemos entender como mensageiros da guerra

Ouvi isto poderosos guerreiros Vede

sob que estandarte militais Sem duacutevida daquele

que primeiro semeou a discoacuterdia entre Deus e o

homem81

A este primeiro conflito devem ser

atribuiacutedas todas as calamidades que a

humanidade sofre Eacute ridiacuteculo o que alguns

argumentam de que nas Sagradas Escrituras se

76

Paulo entatildeo chamado de Saulo ldquorespirava ameaccedilas e oacutedio contra os cristatildeosrdquo (Acta apostolorum 91)

77 ldquoNon enim est dissensionis Deus sed pacis sicut in omnibus ecclesiis sanctorumrdquo (Prima ad Corinthians

1433) ldquoin pace autem vocavit nos Deusrdquo (Prima ad Corinthians 715) ldquosapite pacem habete et Deus dilectionis

et pacis erit vobiscumrdquo (Secunda ad Corinthians 13 11)

78 Deus Pacis Erasmo recorre mais uma vez agrave traduccedilatildeo de Jerocircnimo para Prima ad Thessalonicenses 523 e Ad

Philipenses 49 Segundo Margolin (1992 p 922) Paulo utilizada a expressatildeo Deus pacis em vaacuterias passagens

(Ad Romanos 1533 1620 Ad Corinthios I 1433 Ad Corinthios II 1311 Ad Philipenses 49 Ad

Tessalonicenses I 523 Ad Hebraeos 1320)

79 ldquoPax Deirdquo (Ad Philipenses 47)

80 ldquoEcce praecones clamabunt foris angeli pacis amare flebuntrdquo (Isaiah 337)

81 Erasmo parece evocar a metaacutefora da serpente do paraiacuteso descrita nos capiacutetulos iniciais do Genesis

132

acceptum ferre Frivolum est enim quod

argutantur quidam in arcanis litteris

deum exercituum et deum ultionum dici

Permultum enim interest inter Iudaeorum

deum et Christianorum deum etiamsi

suapte natura unus et idem deus est Aut

si nobis quoque placent tituli veteres age

sit exercituum deus modo acies intelligas

virtutum concentum quarum [230]

praesidio vitia demoliuntur homines pii

Sit ultionum Deus modo vindictam

accipias vitiorum correctionem ut

cruentas strages quibus Hebraeorum libri

referti sunt non ad laniandos homines

sed ad impios affectus e pectore

profligandos referas Sed ut quod

institutum erat persequamur quoties

absolutam felicitatem significant arcanae

litterae pacis nomine id faciunt velut

Esaias [235] Sedebit inquit populus

meus in pulcritudine pacis Et alius Pax

inquit super Israel Rursum Esaias

admiratur pedes annunciantium pacem

annunciantium bona

Quisquis Christum annunciat

pacem annunciat Quisquis bellum

fala do Deus dos exeacutercitos82

ou do Deus das

vinganccedilas 83

Grande diferenccedila haacute entre o Deus

dos judeus e o Deus dos cristatildeos embora pela

natureza seja um uacutenico e mesmo Deus Se

poreacutem os epiacutetetos antigos nos agradam que seja

o Deus dos exeacutercitos contanto que se entenda

por exeacutercito a uniatildeo das virtudes com cuja forccedila

os homens piedosos demolem os viacutecios Que seja

o Deus das vinganccedilas desde que aceites como

vinganccedila a correccedilatildeo dos viacutecios e queiras dizer

que as matanccedilas sangrentas de que os livros dos

hebreus estatildeo repletos visavam natildeo a dilacerar

os homens mas a expulsar-lhes do peito as

paixotildees iacutempias Mas prossigamos naquilo que

haviacuteamos decidido Todas as vezes que as

Sagradas Escrituras querem dizer felicidade

absoluta elas o expressam pelo nome de paz

Por exemplo como disse Isaiacuteas ldquosentar-se-aacute o

meu povo na beleza da pazrdquo 84

E em outro

lugar que diz ldquoHaja Paz sobre Israelrdquo 85

E o

mesmo Isaiacuteas se admira com os peacutes dos que

anunciam a paz dos que anunciam as coisas

boas86

Quem quer que anuncie a Cristo anuncia

a paz Quem quer que pregue a guerra prega

aquele que eacute o que mais se diferencia de Cristo

Pois vejamos Que outra coisa buscou o Filho de

82

Na Vulgata de Jerocircnimo a expressatildeo Deus exercituum consta sessenta e cinco vezes todas no Antigo

Testamento

83 Na Vulgata a expressatildeo Deus ultionum soacute eacute usada uma vez no Salmo 931

84 ldquoSedebit inquit populus meus in pulcritudine pacisrdquo (Isaiah 3218)

85 ldquoPax super Israelrdquo (Psalmus 1245 Psalmus 1276 Ad Galatas 616)

86 ldquoQuam pulchri super montes pedes adnuntiantis et praedicantis pacem bonum praedicantisrdquo (Isaiah 527)

133

praedicat illum praedicat qui Christi

dissimillimus est Age iam quae res dei

filium pellexit in terras nisi ut mundum

patri reconciliaret ut homines inter se

mutua et [240] indissolubili caritate

conglutinaret postremo ut ipsum

hominem sibi faceret amicum Mea igitur

gratia legatus erat meum agebat

negotium Atque ob id Solomonem sui

typum ferre voluit qui nobis εἰρηνοποιός

id est pacificus dicitur Quantumuis

magnus erat David tamen quia bellator

erat quia sanguine fuerat impiatus non

sinitur exstruere domum domini Non

meretur hac [240] parte gerere typum

Christi pacifici Iam illud interim

perpende bellator si profanant bella

numinis iussu suscepta gestaque quid

facient quae suasit ambitio quae ira quae

furor Si pium regem polluit effusus

sanguis ethnicorum quid faciet tam

ingens effusio sanguinis Christiani

[249] Obsecro te Christiane

Deus nesta terra senatildeo que o mundo se

reconciliasse com o Pai Que os homens se

unissem entre si por uma muacutetua e indissoluacutevel

caridade Em suma para fazer-se amigo do

proacuteprio homem Assim portanto Cristo fora

enviado por minha causa e tomava conta de

mim Por isso constituiu como sua imagem o rei

Salomatildeo87

chamado de εἰρηνοποιός88

ou seja ldquoο

paciacuteficordquo Grandioso e ilustre era Davi89

mas

porque era guerreiro porque tinha sido maculado

pelo sangue natildeo lhe foi autorizado construir a

casa do Senhor nem foi merecedor por isso de

ser a imagem do Cristo Paciacutefico Presta bem

atenccedilatildeo oacute homem guerreiro Se as guerras que

foram feitas e perpretadas por ordem da

divindade profanam que faratildeo aquelas que a

ambiccedilatildeo a ira e a loucura aconselharam Se o

sangue dos pagatildeos que derramou foi capaz de

macular um rei tatildeo piedoso o que poderaacute fazer

este enorme derramamento de sangue cristatildeo 90

Imploro-te oacute Priacutencipe Cristatildeo se

verdadeiramente eacutes cristatildeo que contemples o

exemplo do priacutencipe por excelecircncia observa

87

Erasmo evoca a etimologia do nome Solomon paciacutefico que de acordo com o livro dos Reis e das Crocircnicas

seria filho do rei Davi Reinou sobre Israel entre 970 e 931 a C Construiu o primeiro templo de Jerusaleacutem teria

sido o autor de alguns livros biacuteblicos e ceacutelebre pelo dom de sabedoria

88 ldquoFilius qui nascetur tibi et erit vir quietissimus faciam enim eum requiescere ab omnibus inimicis suis per

circuitum et ob hanc causam pacificus vocabitur et pacem et otium dabo in Israhel cunctis diebus eiusrdquo (Primus

Paralipomenon 22 9)

89 David reinou sobre Judaacute entre 1010 e 1002 a C e sobre o reino unido de Israel entre 1002 e 970 a C Tronou-

se ceacutelebre como guerreiro comandante muacutesico e poeta se lhe atribui a autoria da maioria dos salmos Teria sido

castigado pelo adulteacuterio com Bersabeia seguido do assassinato do esposo dela Urias

90 Percebe-se que Erasmo fala de uma guerra inserida em seu presente ou em passado muito proacuteximo Segundo

evidecircncias histoacutericas ele se refere agrave guerra da Liga de Cambrai ou Liga Santa que envolveu os principais estados

europeus durante os anos de 1508 a 1516

134

Princeps si modo vere Christianus es

contemplare [250] tui principis

imaginem observa quomodo regnum

suum inierit quomodo progressus sit

quomodo hinc decesserit et mox

intelliges quomodo abs te geri velit

nimirum ut summa curarum tuarum pax

sit et concordia Nato iam Christo num

bellicis tubis insonant angeli Clangorem

tubarum audiere Iudaei quibus bellare

permissum est Haec congruebant

auspicia quibus fas erat odisse [255]

inimicos At genti pacificae longe aliam

cantionem canunt pacis angeli Num

classicum canunt num victorias

triumphos trophaeaque pollicentur

Minime Quid tandem Pacem

annunciant congruentes cum prophetarum

oraculis et annunciant non iis qui caedes

spirant ac bella qui feroces ad arma

gestiunt sed qui bona voluntate propensi

sint ad concordiam Praetexant quae

velint suo [260] morbo mortales ni

bellum amarent non sic iugibus bellis

inter se conflictarentur Age Christus ipse

iam adultus quid aliud docuit quid aliud

expressit quam pacem Pacis omine suos

subinde salutat Pax vobis eamque

salutandi formam suis praescribit veluti

unice dignam Christianis Atque huius

como ele iniciou e desenvolveu o seu reinado

como ele daqui partiu e imediatamente

aprenderaacutes como eacute necessaacuterio que o administres

de forma que sem duacutevida alguma a paz e a

concoacuterdia sejam o principal objeto de tuas

preocupaccedilotildees Assim que o Cristo nasceu os

Anjos por acaso tocaram as trombetas de

guerra Somente os judeus a quem era

permitido guerrear ouviam os sons das

trombetas Estes auspiacutecios eram compreenssiacuteveis

na eacutepoca em que a lei mosaica legitimava o oacutedio

aos inimigos mas os anjos da paz devem entoar

um canto totalmente diferente para os povos

paciacuteficos Por acaso tocam o clarim Por acaso

prometem vitoacuterias triunfos e trofeacuteus Jamais O

quecirc entatildeo Anunciam a paz conforme os

oraacuteculos dos profetas e a anunciam natildeo agravequeles

que aspiram a assassinatos e guerras e que

anseiam ferozmente pelas armas mas agravequeles

que com boa vontade satildeo propensos agrave

concoacuterdia Que os mortais desculpem com sua

fraqueza o que quiserem mas se de fato natildeo

amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo

entre si com batalhas contiacutenuas Olhai para o

Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que

outra coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso

ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o cumprimento

da paz ldquoa paz esteja convoscordquo91

e lhes

prescreveu essa forma de saudaccedilatildeo como a uacutenica

digna dos cristatildeos Os apoacutestolos natildeo se

91

ldquoPax vobisrdquo (Ioannes20192126 Lucas 2436)

135

praecepti non immemores apostoli pacem

praefantur in suis epistolis pacem optant

iis quos [265] unice diligunt Rem

praeclaram optat qui salutem optat sed

felicitatis summam precatur Hanc ille

toties in omni vita commendatam vide

quanta sollicitudine commendet

moriturus Diligatis inquit invicem sicut

dilexi vos Ac rursum Pacem meam do

vobis pacem relinquo vobis

[269] Auditis quid relinquat suis

Num equos num satellitium num

imperium num opes Nihil horum Quid

igitur Pacem dat pacem relinquit

pacem cum amicis pacem cum inimicis

Iam illud mihi consyderes velim quid a

coena mystica iam imminente mortis

tempore supremis illis precibus flagitarit

a patre Rem opinor haud vulgarem

poposcit qui se sciebat impetraturum

quicquid peteret Pater inquit sancte

serva eos in nomine tuo ut sint unum

sicut et nos Vide quaeso quam

insignem concordiam exigat in suis

Christus Non dixit ut sint unanimes sed

ut sint unum neque id quocumque modo

esqueceram desses preceitos e recomendavam a

paz em suas cartas e desejavam paz agravequeles a

que amavam de forma especial Escolhe coisa

importante quem faz votos pela sauacutede mas estaacute

desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha

recomendado durante toda a sua vida nunca

deixou de a recomendar Veja com quatildeo grande

solicitude a recomenda quando estava prestes a

morrer ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos

tenho amadordquo 92

E novamente ldquoeu vos deixo

a paz eu vos dou a minha pazrdquo93

Ouvis o que Cristo deixou para os seus

Cavalos Escoltas Poder Riquezas Nada

disso O quecirc entatildeo Cristo lhes daacute a paz lhes

deixa a paz Paz com os amigos paz com os

inimigos Gostaria tambeacutem que considerasses

comigo o que jaacute no tempo em que a sua morte

era iminente ele suplicou ao Pai com aquelas

suas uacuteltimas preces na miacutestica ceia Suponho

que natildeo pediu algo usual pois sabia que haveria

de obter qualquer coisa que pedisse Disse ldquoPai

santo guarda-os em teu nome para que sejam

um como noacutesrdquo Veja por favor quatildeo insiacutegne eacute a

concoacuterdia que Cristo solicita para seus

disciacutepulos ele natildeo disse ldquopara que eles sejam

unacircnimesrdquo mas ldquoque sejam um soacuterdquo e isso natildeo

de qualquer forma mas ldquocomo noacutes somos um

noacutes que de maneira perfeita e inefaacutevel somos o

mesmordquo94

indicando assim que soacute alimentando

92

ldquoSicut dilexit me Pater et ego dilexi vos manete in dilectione meardquo (Ioannes 159)

93 ldquoPacem relinquo vobis pacem meam do vobisrdquo (Ioannes 1427)

94 ldquoPater sancte serva eos in nomine tuo quos dedisti mihi ut sint unum sicut et nosrdquo (Ioannes 1711)

136

sed sicuti nos inquit unum sumus qui

perfectissima et ineffabili ratione sumus

idem et illud obiter indicans hac una via

servandos esse mortales si mutuam inter

sese pacem aluerint Porro quod huius

mundi principes insigni quopiam suos

notant [280] quo possint a caeteris

dignosci praesertim in bello vide qua

tandem nota Christus insignierit suos

non alia videlicet quam mutuae caritatis

Hoc inquiens argumento cognoscent

homines vos esse meos discipulos non si

sic aut sic vestiamini non si his aut his

vescamini cibis non si tantum ieiunetis

non si tantum psalmorum exhauseritis

sed si dilexeritis invicem neque id sane

vulgari [285] modo sed quemadmodum

ego dilexi vos Innumera sunt

philosophorum praecepta varia sunt

Moysi plurima regum edicta unicum est

inquit praceptum meum ut ametis

invicem Idem orandi formam suis

praescribens nonne in ipso statim initio

mire admonet concordiae Christianae

Pater inquit noster Unius est precatio

una communis omnium est postulatio

una domus eademque [290] familia sunt

omnes ab uno patre pendent omnes Et

qui convenit eos iugibus bellis inter sese

entre si uma paz reciacuteproca eacute que os mortais

poderatildeo se salvar Da mesma forma que os

priacutencipes deste mundo assinalam seus suacuteditos

com uma marca a fim de que possam reconhececirc-

los de imediato entre os demais sobretudo na

guerra vecirc com que sinal Cristo distinguiu os

seus com o da muacutetua caridade ldquoPor este sinalrdquo

disse ldquoos homens reconheceratildeo que sois meus

disciacutepulos natildeo se vos vestirdes deste ou daquele

modo natildeo se comerdes deste ou daquele

alimento natildeo se jejuardes muito natildeo se

recitardes grande nuacutemero de salmos mas se vos

amardes uns aos outros e natildeo de uma forma

usual mas assim como eu vos ameirdquo95

Incontaacuteveis satildeo os preceitos dos filoacutesofos

numerosos satildeo os de Moiseacutes muitos os eacuteditos

dos reis mas diz ele ldquoo meu preceito eacute um soacute

amai-vos uns aos outrosrdquo96

Por isso ao ensinar a

seus disciacutepulos a foacutermula da oraccedilatildeo Cristo jaacute

natildeo quis logo de iniacutecioadvogar para a concoacuterdia

cristatilde Diz ldquoPai Nossordquo 97

A oraccedilatildeo eacute de um soacute

um uacutenico pedido comum de todos um soacute lar e

todos satildeo uma mesma famiacutelia todos dependem

de um soacute Pai Como eacute possiacutevel que em guerras

perpeacutetuas se combatam entre si Como eacute

possiacutevel que interpeles o Pai comum se

atravessas com a espada as viacutesceras do teu

irmatildeo Por que quis arraigar nas mentes dos seus

disciacutepulos sobretudo isso Com quantos

95

Cf Ioannes 1512

96 ldquoHoc est praeceptum meum ut diligatis invicem sicut dilexi vosrdquo (Ioannes 1512)

97 ldquoPater Nosterrdquo (Matheus 69)

137

conflictari Quo ore compellas

communem patrem si in fratris tui

viscera ferrum stringis Iam quoniam

unum hoc voluit altissime insidere

suorum animis quot symbolis quot

parabolis quot praeceptis concordiae

studium inculcavit Se pastorem vocat

suos oves Et obsecro quis umquam

[295] vidit oves pugnantes cum ovibus

Aut quid faciunt lupi si grex ipse semet

invicem lacerat Cum se vitis stirpem

vocat suos vero palmites quid aliud

quam expressit unanimitatem Portentum

videatur piaculis procurandum si in

eadem vite palmes cum palmite bellet et

ostentum non est si Christianus pugnet

cum Christiano Postremo si quid

omnino Christianis sacrosanctum est

[300] certe sacrosanctum esse debet ac

penitus animis illorum insidere quae

Christus extremis illis mandatis tradidit

veluti testamentum condens ac filiis ea

commendans quae cuperet illis

numquam venire in oblivionem Aut quid

aliud in his docet mandat praecipit orat

nisi mutuum inter ipsos amorem Quid

illa sacrosancti panis et calicis philotesii

communio nisi novam quamdam et

indissolubilem [305] concordiam sanxit

Caeterum quando sciebat non posse

constare pacem ubi de magistratu de

gloria de opibus de vindicta certamen

siacutembolos com quantas paraacutebolas com quantos

preceitos instruiu o amor da concoacuterdia Cristo

chama-se a si mesmo pastor e aos seus ovelhas

Ora eu pergunto algueacutem porventura jaacute viu

ovelhas lutando com ovelhas O que fariam os

lobos se o rebanho comeccedilasse a lutar entre si

Quando se chama a si mesmo a Videira e aos

seus ramos natildeo quis dizer unidade Se na

mesma videira um ramo guerreasse contra outro

ramo natildeo pareceria isso espantoso que deveria

ser conjurado com sacrifiacutecios expiatoacuterios e por

acaso natildeo se trata de um prodiacutegio que um cristatildeo

lute com cristatildeo Por fim haacute algo de mais

sagrado para os cristatildeos certamente deve ser

sagrado e penetrar no interior das almas o que

Cristo lhes transmitiu atraveacutes daqueles uacuteltimos

mandamentos como que fazendo um testamento

aquilo que recomendou como a filhos e desejou

que jamais caiacutesse no esquecimento Que outra

coisa Cristo ensina ordena preceitua e roga ao

Pai senatildeo que exista o amor muacutetuo entre os

homens Que outra coisa aquela comunhatildeo do

patildeo consagrado e do caacutelice do amor sancionou

senatildeo uma nova concoacuterdia indissoluacutevel

Ademais uma vez que sabia natildeo ser possiacutevel

contar com a paz onde haacute lutas por causa de

cargos de gloacuteria de riquezas de litiacutegios e de

processos arranca paixotildees dessa espeacutecie

completamente das almas dos seus proiacutebe que

eles sobretudo resistam ao mal ordena que eles

faccedilam o bem agravequeles que lhes fazem o mal e

ainda que desejem o bem daqueles que lhes

138

est ut penitus affectus eiusmodi revellit

ex animis suorum vetat in totum ne

malo resistant iubet ut de male

merentibus bene mereantur si possint

bene precentur male precantibus Et

Christiani sibi videntur qui ob

quantumuis levem iniuriolam [310]

magnam orbis partem in bellum

pertrahunt Praecipit ut qui in suo

populo sit princeps is ministrum agat nec

alia re praecellat aliis nisi quod melior

sit et pluribus prosit Et non pudet

quosdam ob pusillam accessiunculam

regni pomoeriis addendam tantos ciere

tumultus Docet avium et liliorum ritu in

diem vivere Vetat sollicitudinem in

posterum diem extendere vult totos e

caelo [315] pendere divites omnes

excludit a regno caelorum et non

verentur quidam ob pecuniolam non

exsolutam fortasse nec debitam tantum

humani sanguinis effundere Atque his

temporibus hae vel iustissimae

suscipiendi belli causae videntur

Profecto haud aliud agit Christus iubens

ut unum quiddam a se discant miti esse

animo minimeque feroci cum iubet

relinqui donarium ad aram nec [320]

prius offerri quam cum fratre reditum sit

desejam o mal E veem-se como cristatildeos aqueles

que por causa de uma leve injuriazinha levam agrave

guerra uma grande parte do mundo Ordena que

o priacutencipe se comporte como um servo e que em

nada supere os outros a natildeo ser por ser o melhor

e o mais uacutetil para a maioria E os priacutencipes deste

mundo por pequeninas aquisiccedilotildees territoriais ou

para acrescentar ao reino alguns pomeacuterios natildeo

se envergonham de criar tamanha turbaccedilatildeo

Ensina a viver o dia como as aves e os liacuterios

Proiacutebe-nos de preocupar-nos de forma

demasiada com o dia de amanhatilde98

quer que

todos dependamos apenas do ceacuteu exclui todos

os ricos do reino dos ceacuteus e haacute quem por uma

pequena diacutevida natildeo saldada talvez nem mesmo

devida derrame tanto sangue humano Ora

estes talvez pareccedilam hoje em dia motivos

justiacutessimos para se fazer a guerra Mas acaso

Cristo natildeo age de forma contraacuteria ordenando

que cada qual aprenda dele uma soacute coisa a ter

um espiacuterito manso nada feroz Quando ordena

que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo

seja oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com

o irmatildeo porventura natildeo ensina abertamente que

a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e

que nenhuma oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo

for recomendada por mim Deus rejeitava as

oferendas judaicas que eram bodes ou ovelhas

porque eram oferecidas por homens que viviam

98

A paz relembra o capiacutetulo sexto do Evangelho de Marcos no qual Cristo teria enviado os Doze dois a dois

ordenando-lhes que natildeo levassem coisa alguma para o caminho nem patildeo nem mochila nem dinheiro no cinto

mas somente um bordatildeo como calccedilado unicamente sandaacutelias e que se natildeo revestissem de duas tuacutenicas

139

in gratiam nonne palam docet rebus

omnibus anteponendam esse concordiam

nec ullam victimam esse deo gratam nisi

commendante me Respuebat deus

Iudaicum munus fortassis haedum aut

ovem quod a dissidentibus offerretur et

Christiani sic inter sese belligerantes

sacrosanctam illam victimam audent

offerre Iam cum se gallinae pullos sub

[325] alas aggreganti facit adsimilem

quam apto symbolo depinxit concordiam

Ille congregator est et qui convertit

Christianos esse milvios Eodem pertinet

quod lapis dictus est angularis utrumque

parietem committens et continens et qui

convenit ut huius vicarii totum orbem ad

arma commoveant regnaque regnis

committant Summum illum

conciliatorem habent principem ut

iactant et [330] nullis rationibus ipsi sibi

possunt reconciliari Conciliavit ille

Pilatum et Herodem et suos in

concordiam redigere non potest Petrum

adhuc semiiudaeum qui in praesentis

capitis discrimine dominum ac

praeceptorem tueri parabat obiurgat ipse

qui defendebatur gladiumque iubet

recondere et Christianis ob levissimas

causas numquam non expromptus

districtusque est gladius idque in [335]

em discoacuterdia e como ousam os cristatildeos que

guerreiam entre si ofertar aquele sacrifiacutecio

sagrado Quatildeo apropriada eacute a imagem com que

ele retratou a concoacuterdia ao fazer uma

comparaccedilatildeo entre si mesmo e a galinha que junta

os pintinhos sob as asas Ele eacute o congregador e

os cristatildeos seratildeo aves de rapina Pelo mesmo

motivo eacute chamado pedra angular que ao mesmo

tempo une e manteacutem duas paredes e seratildeo

aqueles que ocupam o lugar dele na terra os que

movem todo orbe agraves armas e incitam reinos

contra reinos Jactam-se de que tecircm como

Priacutencipe aquele sumo conciliador mas se

mostram incapazes de ser por ele reconciliados

Ele conciliou Pilatos e Herodes e natildeo pode

conduzir os seus agrave concoacuterdia E ainda a Pedro

(um meio judeu que diante de um perigo

mortal quis defender o seu Senhor e Mestre)

Cristo repreendeu e ordenou agravequele que o

defendia que a espada fosse guardada99

E os

cristatildeos por causa de questotildees ligeiriacutessimas tecircm

sempre a espada desembainhada e pronta contra

os proacuteprios cristatildeos Por acaso desejaria ser

defendido pela proteccedilatildeo da espada aquele que ao

morrer pediu perdatildeo pelos autores do crime

Todos os livros sagrados do cristianismo

99

Erasmo se refere ao episoacutedio no qual Pedro atacou com uma espada um dos soldados que prendiam Jesus (Cf

Matheus 2651 Marcus 1447 Lucas 2250-51 Ioannes 1810)

140

Christianos An ille se gladii praesidio

defensum velit qui moriens deprecatur

pro necis auctoribus

[337] Omnes Christianorum

litterae sive vetus legas testamentum

sive novum nihil aliud quam pacem et

unanimitatem crepant et omnis

Christianorum vita nihil aliud quam bella

tractat Quaenam est haec plusquam

ferina feritas [340] quae tot rebus nec

vinci potest nec leniri Quin potius aut

Christianorum titulo gloriari desinant aut

Christi doctrinam exprimant concordia

Quousque vita pugnabit cum nomine

Insignite quantumlibet aedes vestesque

crucis imagine non agnoscet Christus

symbolum nisi quod ipse praescripsit

videlicet concordiae Congregati vident

euntem in caelum congregati iubentur

operiri spiritum [345] caelestem Et inter

congregatos se semper versaturum

promiserat ne quis speraret usquam in

bellis adesse Christum Iam igneus ille

spiritus quid aliud est quam caritas

Nihil igne communius citra dispendium

ullum ignis igni accenditur Vis autem

cognoscere spiritum illum concordiae

parentem esse Exitum vide Erat inquit

cunctis cor unum et anima una

[350] Tolle spiritum e corpore

se lecircs o Antigo Testamento ou o Novo clamam

nada mais do que a paz e a unidade e a vida toda

dos cristatildeos nada mais eacute do que ocupar-se da

guerra Que ferocidade mais que bestial eacute esta

que nem pode ser vencida nem ser amenizada

com tatildeo grande nuacutemero de antiacutedotos Eacute melhor

que optem ou desistem de se gloriar do tiacutetulo de

cristatildeos ou imitam vivendo em concoacuterdia a

doutrina de Cristo Ateacute quando a vida contradiraacute

o nome Ainda que ornamenteis e assinaleis com

a imagem da cruz os templos e as vestes Cristo

natildeo reconheceraacute como seu sinal senatildeo aquele

que ele mesmo prescreveu ou seja o sinal da

concoacuterdia Congregados viram-no subir ao Ceacuteu

congregados foram chamados a receber o

Espiacuterito Santo E havia prometido que sempre

haveria de encontrar-se no meio daqueles que

estivessem congregados para ningueacutem esperar

que Cristo esteja presente nas guerras Jaacute aquele

espiacuterito iacutegneo que outra coisa eacute senatildeo amor

Nada eacute mais comum do que o fogo pois sem

demora fogo eacute aceso pelo fogo Queres saber

como aquele espiacuterito gerava a concoacuterdia Vecirc o

resultado Ele diz ldquoeram todos um soacute coraccedilatildeo e

uma soacute almardquo 100

Tira o espiacuterito do corpo e imediatamente

dissolve-se toda aquela ligaccedilatildeo dos membros

Tira a paz e pereceraacute toda a sociedade cristatilde Os

teoacutelogos afirmam que hoje o Espiacuterito Celeste se

100

ldquoMultitudinis autem credentium erat cor et anima unardquo (Acta Apostolorum 4 32)

141

continuo dilabitur omnis illa membrorum

compago tolle pacem et perit omnis

Christianae vitae societas Tot hodie

sacramentis infundi caelestem spiritum

affirmant theologi Si verum praedicant

ubi peculiaris spiritus illius effectus cor

unum et anima una Sin fabulae sunt cur

tantam honoris hisce rebus defertur

Atque haec sane dixerim quo magis

Christianos [355] suorum morum pudeat

non quo sacramentis aliquid detraham

Nam quod populum Christianum

ecclesiam vocari placuit quid aliud quam

unanimitatis admonet Qui convenit

castris et ecclesiae Haec aggregationem

sonat illa dissidium Si pars Ecclesiae

gloriaris esse quid tibi cum bellis Si ab

Ecclesia semotus es quid tibi cum

Christo Si eadem omnes habet domus si

communem [360] habetis principem si

eidem militatis omneis (sic) si

sacramentis iisdem estis initiati si iisdem

gaudetis donativis si iisdem alimini

stipendiis si commune petitur praemium

quid ita inter vos tumultuamini Videmus

inter impios istos commilitones qui

mercede ad caedis peragendae

ministerium conducti veniunt tantam esse

concordiam non ob aliud nisi quod sub

iisdem militant signis et [365] pietatem

profitentes tot res non conglutinant Itane

nihil agitur tot sacramentis Baptismus

infunde em noacutes por um grande nuacutemero de

sacramentos Se de fato pregam a verdade onde

estaacute o efeito particular daquele espiacuterito a saber

um soacute coraccedilatildeo e uma soacute alma Se os

sacramentos natildeo passam de faacutebulas por que se

lhes confere tanta honra Se o disse assim dessa

maneira natildeo foi para depreciar em coisa alguma

os sacramentos mas a fim de que os cristatildeos

mais possam envergonhar-se de seus maus

costumes Aquilo que o povo cristatildeo agradou-se

em chamar Igreja natildeo foi para aconselhar a

unidade Como conciliar exeacutercito e Igreja Esta

soa uniatildeo aquele divisatildeo se te glorias de ser

parte da Igreja que tens tu a ver com as guerras

Se te afastaste da Igreja que tens tu com Cristo

Se todos possuiacutes o mesmo lar se tendes um

Priacutencipe comum se militais todos sob o mesmo

estandarte se fostes iniciados nos mesmos

sacramentos se vos alegrais com os mesmos

dons se sois alimentados graccedilas aos mesmos

recursos se buscais o mesmo precircmio por que

vos enfrentais assim entre voacutes Vemos enorme

concoacuterdia entre os iacutempios mercenaacuterios que satildeo

levados pela esperanccedila de precircmio ao serviccedilo de

perpetrar assassinatos isso ocorre natildeo por outra

coisa senatildeo porque lutam sob os mesmos

estandartes por que entatildeo tatildeo grande nuacutemero

de benefiacutecios natildeo une aqueles que professam a

piedade Seratildeo tatildeo ineficazes tantos

sacramentos O batismo comum a todos atraveacutes

do qual renascemos com Cristo e libertados do

mundo somos inseridos como membros de

142

communis omnium per hunc Christo

renascimur et exsecti mundo Christi

membris inserimur Quid autem tam idem

esse potest quam eiusdem corporis

membra Ab hoc igitur neque servus est

quisquam neque liber neque barbarus

neque Graecus neque vir neque foemina

sed omnes idem in Christo [370] sunt qui

omnia redigit in concordiam

[371] Scythas ita iungit paululum

sanguinis utrimque gustati e calice ut pro

amico nihil cunctentur et mortem

oppetere Ethnicis etiam sancta est

amicitia quam mensa communis

conciliavit et Christianos caelestis ille

panis ac mysticus ille calix non continet

in amicitia quam ipse sanxit Christus

quam illi quotidie [375] renovant ac

repraesentant sacrificiis Si nihil illic egit

Christus quorsum opus hodie tot

cerimoniis Si rem seriam egit cur sic a

vobis negligitur quasi rem ludicram ac

scenicam egerit Audet quisquam ad

sacram illam mensam amicitiae

symbolum audet ad pacis convivium

accedere qui bellum destinat in

Christianos et eos parat perdere pro

quibus servandis mortuus est Christus

Cristo Ora que comunhatildeo maior pode haver que

a dos membros do mesmo corpo A partir daiacute

natildeo haacute mais servos e homens livres baacuterbaros e

gregos homens e mulheres mas todos satildeo o

mesmo em Cristo 101

que tudo conduziu agrave

concoacuterdia102

Um pouco de sangue bebido de um

mesmo caacutelice une de tal modo os citas que pelo

amigo natildeo vacilam perante nenhum sacrifiacutecio

ainda enfrentar a morte 103

tambeacutem entre os

pagatildeos existe uma amizade sagrada que nasceu

de uma mesa em comum e aquele patildeo do ceacuteu

aquele caacutelice consagrado que o proacuteprio Cristo

santificou e que eles mesmos renovam

diariamente nas missas natildeo mantecircm na amizade

os cristatildeos Se Cristo natildeo tinha nenhuma

intenccedilatildeo com isso para que servem hoje em dia

tantas cerimocircnias Mas se tinha uma finalidade

seacuteria por que voacutes o negligenciais tanto como se

fosse uma brincadeira e uma encenaccedilatildeo Algueacutem

ousa aproximar-se daquela mesa sagrada

siacutembolo da amizade ousa aceder ao banquete da

paz quem trama a guerra contra cristatildeos e

prepara para destruir aqueles que Cristo morreu

para salvar e se apressa a beber o sangue

daqueles em favor dos quais o Cristo derramou o

seu sangue Oacute coraccedilotildees mais duros que

diamantes Haacute harmonia em negoacutecios tatildeo

101

ldquonon est Iudaeus neque Graecus non est servus neque liber non est masculus et femina omnes enim vos

unus estis in Christo Iesurdquo (Ad Galatas 328)

102 ldquoInstaurare omnia in Christordquo (Ad Ephesios 110)

103 Cf Isoacutecrates Panegiacuterico 21 ll 12-16 Erasmo compocircs o adaacutegio 2494 ldquoScytharum solitudordquo (LB II 849 B-

C) Na epiacutestola 809 (5 de abril de 1518) mencionou a solitudo Scytha

143

[380] eorum haurire sanguinem pro

quibus suum sanguinem fudit Christus O

pectora plus quam adamantina in rebus

tam multis consortium est et in vita tam

inexplicabile dissidium Eadem nascendi

lex omnibus eadem senescendi

moriendique necessitas Eumdem generis

Principem habent omnes eumdem

religionis auctorem eodem omnes

redempti sanguine iisdem omnes initiati

sacris iisdem [385] aluntur sacramentis

Quicquid ex his redit muneris ab eodem

proficiscitur fonte et ex aequo commune

est omnibus Eadem omnium Ecclesia

denique praemium idem omnium Quin

caelestis illa Hierusalem ad quam

suspirant vere Christiani a pacis visione

nomen habet cuius interim ecclesia

typum sustinet Et qui fit ut haec

tantopere discrepet ab exemplari Adeo

nihil promovit tot [390] viis solers natura

nihil ipse Christus perfecit tot praeceptis

tot mysteriis tot symbolis Vel ipsa mala

conciliant et malos iuxta proverbium

Christianos inter se nec bona nec mala

ulla conciliant Quid humana vita

fragilius quid brevius Quot ea morbis

quot casibus obnoxia Et tamen cum plus

habeat ex sese malorum quam ut ferri

variados e na vida uma tatildeo inexplicaacutevel divisatildeo

Se a lei de nascer eacute a mesma para todos eacute a

mesma para todos a necessidade de envelhecer e

morrer Todos tecircm o mesmo antepassado da

espeacutecie todos tecircm o mesmo mestre de religiatildeo

todos foram redimidos com o mesmo sangue

todos foram iniciados nos mesmos ritos todos

satildeo alimentados com os mesmos sacramentos e

quaisquer que sejam os benefiacutecios que destes

procedem satildeo obtidos da mesma fonte e por

direito satildeo comuns a todos Todos tecircm a mesma

Igreja e no fim o precircmio seraacute igual para todos

Mais ainda aquela Jerusaleacutem Celeste pela qual

os cristatildeos verdadeiros suspiram possui o nome

de ldquovisatildeo da pazrdquo e durante esta vida terrena a

Igreja se apresenta como uma figura sua O que

se passou para que esta se discrepe de tal

maneira do modelo Ateacute que ponto eles nada

conseguem nem a natureza tatildeo industriosa por

tantos caminhos nem o poacuteprio Cristo com tantos

preceitos tantos misteacuterios tantos siacutembolos

Segundo o proveacuterbio ateacute as maldades unem os

maus 104

soacute para os cristatildeos eacute que natildeo haacute coisas

boas nem maacutes capazes de uni-los uns aos outros

O que pode haver de mais fraacutegil do que a vida

humana O que haacute de mais breve A quantas

doenccedilas e acidentes fatais se expotildee E no

entanto ainda que por sua natureza jaacute tenha

uma cota de males mais pesada do que se pode

104

O proveacuterbio citado por Erasmo seria de sua proacutepria autoria conciliant homines mala (Erasmo Adagia 1071)

mas tem origem aristoteacutelica ldquoo criminoso se une ao criminoso por prazerrdquo (Aristoacuteteles Retoacuterica I e Eacutetica a

Eudemo 1238a e 1239b)

144

possit tamen maximam malorum partem

ipsi sibi accersunt [395] dementes Tanta

caecitas humanos animos occupat ut

nihil horum perspiciant sic praecipites

aguntur ut omnia naturae Christique

vincula omnia foedera rumpant

dissecent diffringant Pugnant passim

atque assidue nec modus nec finis

Colliditur gens cum gente civitas cum

civitate factio cum factione princeps

cum principe et ob duorum

homuncionum qui mox velut ephemera

sint [400] interituri seu stulticiam seu

ambitionem res humanae sursum

deorsum miscentur

[402] Missas faciam veterum

bellorum tragoedias Repetamus decem

ab hinc annis acta ubi non gentium

crudelissime pugnatum est terra marique

Quae regio non Christiano sanguine

commaduit Quod flumen quod mare

non humano [405] cruore tinctum est

Et o pudor pugnant immanius quam

Iudaei quam ethnici quam ferae

Quicquid bellorum Iudaeis gestum est

suportar mesmo assim os homens dementes

produzem para si mesmos a maior parte dos

males A cegueira das mentes humanas eacute tatildeo

grande que natildeo percebem nada Agem de modo

tatildeo precipitado que rompem rasgam e infrinjem

todos os viacutenculos da natureza e de Cristo

esquecendo todas as alianccedilas Combatem

assiduamente e em toda parte a ponto de

tumultuar sem medida nem fim Um povo

combate outro povo uma cidade com outra

cidade uma facccedilatildeo com outra facccedilatildeo um

priacutencipe com outro priacutencipe e por causa da

burrice ou da ambiccedilatildeo de dois homenzinhos que

hatildeo de perecer como coisas efecircmeras

subvertem-se de cima a baixo as coisas humanas

Natildeo contarei as trageacutedias das guerras

antigas Contemos somente as dos uacuteltimos dez

anos105

Onde natildeo encontraremos a crudeliacutessima

luta das naccedilotildees por terra e mar Que regiatildeo natildeo

derramou sangue cristatildeo Que rio e que mar natildeo

estatildeo tingidos com sangue humano106

Oacute

vergonha lutam de modo mais feroz do que os

judeus do que os pagatildeos e do que as feras

Todas as guerras que os judeus moveram contra

os estrangeiros (ἀλλόθσλος) os cristatildeos

deveriam direcionar contra os viacutecios mas com

estes os homens encontram-se de bem eacute contra

os homens que se faz a guerra Os judeus

poreacutem se faziam guerra era porque uma ordem

105

Erasmo poderia estar se referindo agrave guerra franco-espanhola A batalha de Cerignoles e a de Garigliano por

exemplo datam respectivamente de 2804 e 2712 de 1503

106 Herding (1978 p 79 nota 404) percebe a recepccedilatildeo de Horaacutecio (Carm II I 29-36)

145

adversus Allophylos (ἀλλόθσλος) id

Christianis gerendum adversus vitia

quibus nunc cum vitiis convenit cum

hominibus bellum est Et tamen Iudaeos

divina iussio ducebat ad pugnam

Christianos si praetextibus detractis rem

vere aestimes transversos rapit ambitio

agit ira [410] pessimus consultor

pertrahit habendi numquam satiata

cupiditas Atque his fere cum exteris res

erat Christianis cum Turcis foedus est

inter ipsos bellum Iam ethnicos tyrannos

fere gloriae sitis ad bellum exstimulabat

atque hi tamen sic barbaras atque efferas

nationes subigebant ut vinci expediret et

victor de victis bene mereri studeret

Dabant operam ut quam fieri posset

incruenta esset victoria [415] quo simul

et victori honesta fama praemium esset et

victis solatium victoris benignitas

[417] At pudet meminisse quam

pudendis quam frivolis de causis

Christiani Principes orbem ad arma

concitent Hic obsoletum ac putrem

aliquem titulum aut reperit aut

commentus est quasi vero ita magni

referat quis regnum administret [420]

modo publicis commodis reste

consulatur Ille causatur omissum nescio

divina os levava agrave batalha Os cristatildeos se

deixarmos de lado os pretextos e pensarmos as

coisas com retidatildeo a ambiccedilatildeo eacute que os empurra

para o mal a ira o pior dos conselheiros age

arrasta-os o desejo insaciaacutevel de possuir No

mais aqueles em geral tinham litiacutegios com os

estrangeiros enquanto que os cristatildeos fazem

alianccedila com os turcos e guerra entre eles

mesmos Jaacute os tiranos pagatildeos sede de gloacuteria era

o que em geral os estimulava agrave guerra e seja

como for subjugavam assim naccedilotildees baacuterbaras e

selvagens de tal forma que ser vencido era

proveitoso e o vencedor esforccedilava-se para cuidar

bem dos vencidos107

Tomavam providecircncias

para que a vitoacuteria fosse o menos cruenta

possiacutevel de forma que a fama honrada fosse o

precircmio para o vencedor e a benignidade do

vencedor consolo dos vencidos

Mas envergonha lembrar quatildeo

vergonhosos e quatildeo friacutevolos satildeo os motivos

pelos quais os priacutencipes cristatildeos levam o mundo

agraves armas108

Este ou encontra ou inventa algum

tiacutetulo qualquer obsoleto ou esquecido como se

realmente importasse muito quem eacute que

administra o reino desde que vele inteiramente

pelos interesses puacuteblicos Aquele alega natildeo sei

que claacuteusula foi omitida em um contrato de cem

107

Segundo Margolin (1992 p 931) Erasmo se refere a um tratado de paz entre o sultatildeo e Veneza datado de

1503 renovado em 1514 e em setembro de 1517

108 Cf Horaacutecio Carm I 35 15

146

quid in foedere centum capitum Hic illi

privatim infensus est ob sponsam

interceptam aut scomma liberius dictum

Et quod est omnium sceleratissimum

sunt qui tyrannica arte quod populi

concordia potestatem suam labefactari

sentiant dissidio stabiliri subornent qui

data opera bellum excitent quo simul et

coniunctos dirimant et infelicem populum

licentius expilent scelestissimi quidam

qui populi malis aluntur et quibus pacis

tempore non multum est quod agant in

republica Quae tartarea furia venenum

hoc in pectus Christianum potuit

immittere Quis hanc tyrannidem docuit

Christicolas quam nec Dionysius ullus

nec Mezentius ullus novit Belluae verius

quam homines et sola tyrannide nobiles

[430] nec usquam cordati nisi ad

nocendum nec umquam concordes nisi

ad opprimendam rempublicam Et haec

qui gerunt pro Christianis habentur

audent humano sanguine undique polluti

ad sacras aedes ad sacras aras accedere

O pestes in extremas insulas deportandas

capiacutetulos Este eacute inimigo pessoal daquele por

causa de uma esposa que natildeo lhe foi entregue ou

por algum sarcasmo mais licencioso E o que eacute

mais criminoso de tudo eacute que haacute aqueles que por

meio de uma artimanha tiracircnica porque os povos

em concoacuterdia arruinam sua autoridade enquanto

que as divisotildees a solidificam subornam outros

para que excitem a guerra a fim de que ao

mesmo tempo e em acordo muacutetuo possam

desunir e pilhar mais livremente o povo infeliz

Isso eacute o que procuram os priacutencipes mais

criminosos que se alimentam com males do

povo e que em tempo de paz natildeo haacute muito que

faccedilam por suas repuacuteblicas Que fuacuteria infernal foi

capaz de infundir este veneno nos peitos

cristatildeos Quem ensinou aos seguidores de Cristo

essa tirania que nem Dioniacutesio109

nem

Mezecircncio110

conheceram jamais Satildeo

verdadeiramente mais feras do que homens

nobres somente pela tirania sagazes apenas para

matar e concordes apenas para oprimir a

repuacuteblica E os dessa laia satildeo tidos por cristatildeos e

contaminados por sangue humano ousam

aproximar-se dos edifiacutecios e altares sagrados Oacute

flagelos Que sejam deportados para as ilhas

109

Erasmo natildeo se refere ao Deus do Vinho mas aos reis de Siracusa Dioniacutesio I o Antigo (430-367 a C)

tirano de Siracusa por trinta e oito anos ateacute a sua morte Segundo Deodoro Siacuteculo (90-30 a C) Dioniacutesio era de

origem humilde mas tomou conta do poder por ocasiatildeo da guerra de Cartago em 405 a C Apoacutes lutas e alianccedilas

militares foi derrotado pelos cartagineses em 383 a C (Cf Diodoro Siacuteculo Histoacuteria XIII 96 4)

110 Mezecircncio foi um rei de origem etrusca que governou a cidade de Cere Destacado personagem da Eneida de

Virgiacutelio (70-19 a C) toma parte da guerra contra os troianos Virgiacutelio em discordacircncia com os autores mais

antigos transmitiu a figura de Mezecircncio como um terriacutevel tirano Narra que entre outras torturas hediondas

Mezecircncio permitia que seus prisioneiros fossem amarrados face a face com outros criminosos vivos ou mortos

os quais teriam cometido tantos excessos que os proacuteprios habitantes de Cere o expulsaram (Virgiacutelio Eneida XI

7-16) Catatildeo registrou a prepotecircncia do tirano Mezecircncio ao exigir para si as primiacutecias do vinho destinadas a

Juacutepiter(Origines I 12)

147

Si Christiani corporis unius membra sunt

cur non gratulatur quisque alienae

felicitati Nunc prope iusta movendi

[435] belli causa videtur regnum

finitimum rebus omnibus paulo

florentius

[436] Etenim si verum fateri

volumus quid aliud commovit et hodie

commovet tam multos ad armis

lacessendum Franciae regnum nisi quod

est unum omnium florentissimum

Nullum latius patet nusquam senatus

augustior nusquam academia celebrior

nusquam concordia maior et ob hoc

ipsum potestas summa

[440] Nusquam aeque florent

leges nusquam illibatior religio nec

Iudaeorum commercio corrupta velut

apud Italos nec Turcarum aut

Maranorum vicinia infecta

quemadmodum apud Hispanos et

Hungaros Germania ne quid dicam de

Bohoemis in tot regulos dissecta est ac

regni ne species quidem ulla Sola

Francia ceu flos illibatus Christianae

ditionis et velut arx quaedam tutissima si

qua fors [445] tempestas ingruat tot

modis impetitur tot artibus incessitur

nec ob aliud nisi cuius gratia conveniebat

gratulari si qua vena Christianae mentis

mais remotas Se satildeo membros de um soacute corpo

cristatildeo por que cada um natildeo se congratula com a

felicidade alheia Hoje em dia quase parece que

eacute uma justa causa para mover a guerra que o

reino vizinho seja um pouco mais florescente em

todas os aspectos

E de fato se queremos reconhecer a

verdade que outra coisa impeliu e impele hoje

em dia tantos povos agraves armas contra o Reino da

Franccedila senatildeo o fato de este ser o mais proacutespero

de todos Nenhum eacute tatildeo grande em nenhum

lugar o senado eacute mais respeitaacutevel em nenhum

lugar a universidade eacute mais ceacutelebre em nenhum

paiacutes a concoacuterdia eacute maior e por isso mesmo o

poder tatildeo supremo111

Em nenhum lugar as leis florescem como

ali em nenhum lugar a religiatildeo eacute mais pura jaacute

que natildeo estaacute corrompida pelo comeacutercio com os

judeus como entre os italianos nem as fronteiras

estatildeo repletas de turcos e marranos como entre

os espanhoacuteis e os huacutengaros A Alemanha para

natildeo mencionar os Boecircmios foi dividida em

pedaccedilos por tantos reizinhos e natildeo tem sequer a

aparecircncia de um reino Soacute a Franccedila eacute como uma

flor intacta da cristandade como sua mais segura

cidadela mas se por acaso surge alguma

tempestade ela eacute de tantos modos atacada eacute

combatida com tantas artes pelo uacutenico motivo

pelo qual deveria ser celebrada se nos seus

inimigos houvesse um pouco de espiacuterito cristatildeo

111

Segundo Margolin (1992 p 933) ldquoErasmo idealiza a ambiccedilatildeo do imperialismo francecircs por motivaccedilotildees de

ordem poliacutetica sobretudo pela francofilia da poliacutetica borgonhesardquo

148

esset in istis Atque his tam impiis factis

praetexitur titulus pius sic sternunt viam

ad propagandum imperium Christi O

rem monstrosam parum consultum

putant reipublicae Christianae nisi

pulcerrimam ac felicissimam ditionis

christianae partem [450] subverterint

[451] Quid quod in his tractandis

feras etiam ipsas feritate praecedunt Non

omnes pugnant belluae nec ferarum nisi

in diversum genus conflictatio est

quemadmodum et ante diximus saepius

inculcandum quo magis inhaereat

animis Vipera non mordet viperam nec

lynx lyncem discerpit Ac rursum illae

cum [455] pugnant suis pugnant armis

Illas armavit natura Homines inermes

natos o Deum immortalem qualibus

armis armat ira Tartareis machinis

impetunt Christiani Christianos Quis

enim credat bombardas hominis

inventum esse Nec ille tam densis

agminibus in mutuum exitium ruunt

Quis unquam vidit decem leones cum

decem tauris congredi At quoties viginti

millia Christianorum cum [460] totidem

Christianis ferro decertant Tanti est

laedere tanti est haurire sanguinem

fratrum Nec illis fere bellum est nisi

cum fames aut cura sobolis in rabiem

agit At Christianis quae tam levis iniuria

est ut non videatur idonea bellandi

E estes atos tatildeo perversos satildeo justificados por

alegaccedilotildees tatildeo pias Eacute assim que se abre o

caminho para propagar o impeacuterio de Cristo Oacute

ato monstruoso Acham que cuidam pouco dos

interesses da repuacuteblica cristatilde a natildeo ser que

ponham a perder a parte mais bela e mais feacutertil

da cristandade

Que nos resta dizer senatildeo que os homens

com esses seus empreendimentos superam em

selvageria as proacuteprias feras Nem todos os

animais selvagens satildeo agressivos e aqueles que

satildeo ferozes o satildeo apenas contra espeacutecies

diferentes como jaacute dissemos anteriormente e

conveacutem repetir vaacuterias vezes para inculcaacute-lo e

fixaacute-lo nas mentes A viacutebora natildeo morde a viacutebora

e lince natildeo devora o lince E repito quando

lutam lutam com as suas armas aquelas com

que a natureza os armou mas aos homens que

nasceram desarmados oacute Deus imortal com que

armas a ira os arma Cristatildeos atacam cristatildeos

com maacutequinas infernais Quem acreditaria que o

canhatildeo eacute uma invenccedilatildeo do homem Tampouco

aquelas buscando destruiccedilatildeo muacutetua se atiram

umas contra as outras em fileiras cerradas Ou

algueacutem jaacute viu dez leotildees formados em pelotatildeo

contra dez touros Mas quantas vezes vinte mil

cristatildeos desembainharam a espada contra outros

tantos cristatildeos Tatildeo importante eacute ferir e derramar

o sangue dos irmatildeos E mais as feras impelem

ao furor a natildeo ser quando haacute fome ou por

cuidado da prole Para os cristatildeos contudo

quase natildeo existe uma injuacuteria por mais leve que

149

occasio Si faceret ista plebes utcumque

praetexi poterat inscitia si iuvenes

excusari poterat aetatis imperitia si

prophani nonnihil elevaret atrocitatem

facti [465] personae qualitas Nunc ab iis

potissimum videmus oriri bellorum

semina quorum consilio moderationeque

populi motus componi conveniebat

Contentum illud et ignobile vulgus condit

egregias urbes conditas civiliter

administrat administrando locupletat In

has irrepunt satrapae et ceu fuci quod

aliena partum est industria surripiunt et

quod a plurimis bene congestum est a

paucis [470] male dissipatur quod recte

conditum crudelissime diruitur Quod si

prisca non meminerunt repetat qui volet

secum hisce duodecim annis gesta bella

Causas expendat comperiet omnia

principum gratia suscepta magno populi

malo gesta cum ne tantillum quidem ad

populum attineret

[474] Iam quod olim foedum

habebatur apud ethnicos caniciem galea

premere ut [475] inquit ille id apud

Christianos laudi ducitur Turpe senex

seja que natildeo lhes pareccedila ocasiatildeo para guerrear

Se fosse a plebe a fazer isso poder-se-ia de uma

forma ou de outra pretender ignoracircncia Se os

jovens podia excusaacute-los a imperiacutecia da idade Se

os leigos a condiccedilatildeo da pessoa em certa medida

relevaria a atrocidade do feito Mas hoje vemos

que as sementes da guerra satildeo lanccediladas

exatamente por aqueles cujo conselho e

moderaccedilatildeo conviria que as agitaccedilotildees fossem

contidas Aquele vulgo ignoacutebil desprezado e

sem nobreza edifica cidades egreacutegias uma vez

edificadas administra-as civilizadamente e ao

administraacute-las as enriquece Irrompem nelas os

saacutetrapas e como se fossem zangotildees roubam o

que eacute produto do trabalho alheio e o que foi

poupado por muitos eacute dissipado por poucos e o

que havia sido construiacutedo retamente eacute destruiacutedo

com crueldade A esse respeito se natildeo haacute

recordaccedilatildeo dos tempos antigos que aquele que o

desejar repasse consigo mesmo a memoacuteria das

guerras feitas nos uacuteltimos dozes anos pondere

suas causas e descobriraacute que todas se deram por

culpa dos priacutencipes realizadas para grande

prejuiacutezo do povo uma vez que suas motivaccedilotildees

nem um tantinho sequer se aproveitassem ao

povo

Ateacute aquilo que outrora era consenso entre

os pagatildeos de que natildeo se devia cobrir os cabelos

brancos com um elmo como diz o poeta112

esse

costume hoje entre os cristatildeos tornou-se motivo

112

Cf Virgiacutelio Aeneida IX 612 Oviacutedio Trist IV 1 74

150

miles Nasoni et istis magnifica res est

bellator septuagenarius Imo ne

sacerdotes quidem ipsos pudet quos olim

deus nec in sanguinaria illa et inclementi

lege Moysi voluit ullo sanguine pollui

non pudet theologos Christianae vitae

magistros non pudet absolutae religionis

professores non pudet episcopos non

pudet cardinales et [480] Christi vicarios

eius rei auctores ac faces esse quam

Christus tantopere detestatus est Qui

convenit mitrae et galeae Quid pedo

cum gladio Quid evangelico codici cum

clypeo Qui convenit pacis omine

salutare populum et orbem ad

turbulentissimas pugnas concitare pacem

dare lingua re bellum immittere Tun

eodem ore quo Christum pacificum

praedicas bellum laudas eademque

[485] tuba Deum canis et Satanam Tun

apud concionem sacram cuculla tectus ad

caedem incitas simplicem populum qui

ex ore tuo doctrinam exspectabat

evangelicam Tun apostolorum occupans

locum pugnantia doces cum apostolorum

praeceptis An non vereris ne quod de

Christi praeconibus dictum est Quam

speciosi pedes nunciantium pacem

nunciantium bona nunciantium salutem

in diversum [490] vertatur Quam foeda

lingua sacerdotum adhortantium ad

de louvor Para Nasatildeo

eacute coisa infame um

soldado velho enquanto para estes ser um

guerreiro septuagenaacuterio eacute algo magniacutefico

Ademais nem os proacuteprios sacerdotes se

envergonham justamente eles aos quais outrora

Deus natildeo permitiu nenhuma contaminaccedilatildeo pelo

sangue nem naquela sanguinaacuteria e inclemente

lei de Moiseacutes113

natildeo se envergonham os

teoacutelogos mestres da vida cristatilde natildeo se

envergonham os professores de uma religiatildeo

perfeita natildeo se envergonham os bispos natildeo se

envergonham os cardeais e os vigaacuterios de Cristo

de serem os autores e incitadores de algo que

Cristo detestou tanto Que relaccedilatildeo existe entre a

mitra e o elmo Entre a docecircncia e a espada

Entre Evangelho e o escudo Que relaccedilatildeo haacute

entre saudar o povo com o sinal da paz e incitar

o mundo a lutas turbulentiacutessimas Desejar a paz

com a liacutengua mas na realidade provocar a

guerra Eacute possiacutevel que pregues o Cristo paciacutefico

com a mesma boca com que louvas a guerra e

que cantes Deus e Satanaacutes com o mesmo

instrumento Eacute possiacutevel que coberto com o

capuz do haacutebito incites no sagrado puacutelpito o

povo simples que esperava da tua boca a

doutrina evangeacutelica ao assassinato Eacute possiacutevel

que tu ocupando o lugar dos Apoacutestolos ensines

a violecircncia em contradiccedilatildeo com os preceitos dos

Apoacutestolos Acaso natildeo temes aquilo que eacute dito

sobre os arautos de Cristo ldquocomo satildeo belos os

peacutes dos que anunciam a paz dos que anunciam o

113

Erasmo provavelmente se refere agraves leis do Pentateuco que se assemelham agrave Lei de Taliatildeo

151

bellum incitantium ad mala

provocantium ad perniciem Apud

Romanos adhuc impie pios qui

pontificium maximum iniret ex more

confirmabat iureiurando se manus ab

omni sanguine puras servaturum adeo ut

ne laesus quidam ulcisceretur Atque

huius sacramenti fidem constanter

praestitit Titus Vespasianus imperator

ethnicus [495] idque laudi datur a

scriptore ethnico At o prorsus sublatam

e rebus humanis frontem apud

Christianos Deo dicati Sacerdotes et qui

his quoque sanctius aliquid prae se ferunt

monachi ad caedes ad strages

inflammant et Evangelii tubam Martis

tubam faciunt obliti dignitatis suae

sursum ac deorsum cursitant nihil non

tum faciunt tum patiuntur dum bellum

excitent et per hos Principes [500]

alioqui fortassis quieturi ad pugnam

inflammantur quorum auctoritate

tumultuantes sedari conveniebat Imo

quod est prodigiosius belligerantur ipsi

idque earum rerum gratia quas et apud

impios contempsere philosophi

bem dos que anunciam a salvaccedilatildeordquo 114

se mude

em seu contraacuterio ldquocomo eacute destestaacutevel a liacutengua

dos sacerdotes que exortam agrave guerra que incitam

ao mal que provocam a agressatildeordquo Entre os

romanos ateacute entatildeo impiamente pios aquele que

tomava posse como pontiacutefice maacuteximo era

obrigado por juramento a conservar suas matildeos

limpas de todo sangue de tal forma que mesmo

que fosse ferido por algueacutem natildeo se vingaria

Tito Vespasiano115

imperador pagatildeo manteve a

fidelidade a este sacramento com zelo fiel e por

isso foi louvado por um escritor pagatildeo116

Entre

os cristatildeos poreacutem oacute vergonha inteiramente

removida das accedilotildees humanas Os sacerdotes

cristatildeos consagrados a Deus e os monges que

se gabam de superar aqueles em santidade

inflamam os acircnimos dos priacutencipes e da plebe aos

assassinatos e ao massacre Transformam o

clarim do Evangelho em trombeta de Marte e

esquecidos de sua dignidade correm para cima e

para baixo tudo fazendo e tudo suportando ateacute

que consigam incitar agrave guerra e por causa desses

priacutencipes que satildeo inflamados agrave luta sem sua

intervenccedilatildeo talvez se inclinassem para a paz

precisamente deles a quem convinha acalmar

com sua autoridade E ateacute o que eacute ainda mais

114

ldquoQuam pulchri super montes pedes annuntiantis praedicantis pacem annuntiantis bonum praedicantis

salutemrdquo (Isaiah 521)

115 Tito Vespasiano imperador romano entre 79 e 81 d C fez um juramento de guardar suas matildeos puras da

efusatildeo de sangue humano Com a pacificaccedilatildeo das revoltas judaicas culminada com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem

(70 d C) obteve durante seu governo grande popularidade ao assumir o Impeacuterio a ponto de ser louvado pelo

historiador Suetocircnio e outros historiadores contemporacircneos especialmente pela benignidade para com as viacutetimas

da erupccedilatildeo do Vesuacutevio em 79 d C e o incecircndio de Roma em 80 d C

116 Erasmo se refere agraves palavras de Suetocircnio (As vidas dos doze ceacutesares Vida de Tito 91)

152

quarumque contemptus proprius ac

peculiaris est viris apostolicis

[504] Ante paucos annos cum

fatali quodam morbo mundus ad arma

raperetur [505] evangelici praecones

hoc est Minores ac Praedicatores e

suggesto sacro classicum canebant et

ultro ad furiam propensos magis

accendebant Apud Britannos animabant

in Gallos apud Gallos animabant in

Britannos omnes ad bellum instigabant

Ad pacem nemo provocabat praeter unum

aut alterum quibus pene capitale fuit me

vel nominasse Cursitabant ultro citroque

sacrosancti praesules [510] et dignitatis et

professionis suae obliti publicum orbis

morbum opera sua exacerbantes tum hinc

Iulium pontificem Romanum hinc Reges

ad maturandum bellum instigantes

perinde quasi non satis ipsi sua sponte

insanirent et tamen hanc manifestariam

insaniam magnificis titulis praeteximus

Huc patrum leges huc piorum hominum

scripta huc arcanae scripturae verba

prodigioso eles mesmos guerreiam por causa de

coisas que ateacute entre pagatildeos os filoacutesofos votaram

ao desprezo os quais devem ser objeto do

desprezo mais rpoacuterpio e peculiar dos varotildees

apostoacutelicos

Haacute alguns anos quando certa febre fatal

fez com que o mundo inteiro acorresse agraves armas

os pregadores evangeacutelicos isto eacute alguns

minoritas e dominicanos cantavam o claacutessico

toque de guerra do alto do puacutelpito sagrado117

e

acendiam ainda mais aqueles jaacute propensos agrave

fuacuteria Entre os ingleses inflamavam contra os

franceses entre os franceses inflamavam contra

os ingleses Instigavam todos agrave guerra Agrave paz

ningueacutem incitava a natildeo ser um ou outro que

pouco faltou para que fossem condenados agrave pena

capital por terem mencionado meu nome Os

santiacutessimos prelados corriam de um lado para o

outro e esquecidos de sua dignidade e de sua

profissatildeo exarcebavam com seus atos a miseacuteria

do mundo instigando ora de um lado o proacuteprio

Juacutelio 118

Pontiacutefice Romano ora do outro esses

tantos reis a preparar a guerra como se eles por

si mesmos e por sua proacutepria vontade jaacute natildeo

estivessem suficientemente loucos Mas

adornamos esta loucura manifesta com tiacutetulos

pomposos Com essa finalidade deturpamos de

117

Suggestus sacro era um lugar alto ou tribuna no qual os oradores romanos falavam ao povo Cf Erasmo

Dulce bellum LB II 956 F

118 O papa Juacutelio II (1443- 1513) foi conhecido como Il Papa Terribile ou Il Papa Guerriero Chamava-

se Giuliano della Rovere e foi Papa entre 1503 e 1513 Seu papado foi marcado por atividades poliacuteticas projetos

arquitetocircnicos e cultivo das artes Entre 1509 e 1513 inclsuive com a convocaccedilatildeo de um conciacutelio em Latratildeo deu

apoio agrave Liga Santa ou Liga de Cambrai com Luiacutes XII da Franccedila Maximiliano I Imperador Alematildeo Fernando II

Rei de Aragatildeo e Henrique VIII da Inglaterra contra a Repuacuteblica de Veneza a fim de conquistar a Romagna

153

impudentissime [515] detorquemus ne

dicam impie Imo iam eo prope rediit res

ut stultum et impium sit adversus bellum

hiscere et id laudare quod sole ore

Christi laudatum est Parum consulere

populo parum favere Principi videtur

qui suaserit rem omnium saluberrimam et

ab omnium pestilentissima dehortetur

Iam ipsa castra sequuntur sacrifici

praesunt in castris episcopi et relictis

ecclesiis suis [520] Bellonae rem agunt

Imo gignit iam bellum sacerdotes gignit

episcopos gignit cardinales quibus

campi legatus honorificus titulus et

apostolorum successoribus dignus

habetur Quo minus mirum si Martem

spirant quos Mars genuit Et quo malum

sit insanabilius tantam impietatem

pietatis specie praetexunt Vexilla crucem

habent Miles impius et nummis aliquot

ad lanienam ac caedem [525] conductus

crucis insigne praefert et belli symbolum

est quod solum dedocere bellum poterat

Quid tibi cum cruce scelerate miles Istis

animis istis factis dracones tigrides ac

lupi conveniebant Istud signum eius est

qui non pugnando sed moriendo vicit

forma desavergonhada para natildeo dizer iacutempia as

leis dos nossos antepassados119

os escritos dos

homens piedosos e as palavras da Sagrada

Escritura E mais chegou-se ao ponto em que ser

contra a guerra e louvar aquilo que Cristo

valorizou e louvou acima de tudo eacute considerado

prova de loucura e de impiedade Parece que

aquele que aconselhar a mais salutar e dissuadir

da mais pestilenta de todas as coisas este zela

pouco pelos interesses do povo e favorece pouco

ao priacutencipe Os sacerdotes acompanham os

locais da guerra os bispos tomam a frente nos

acampamentos militares e abandonadas suas

igrejas fazem sacrifiacutecios a Belona120

E jaacute se

chegou ao ponto de a guerra gerar sacerdotes

gerar bispos gerar Cardeais em relaccedilatildeo aos

quais se considera digno dos sucessores dos

apoacutestolos e sumamente honoriacutefico o tiacutetulo de

embaixador da guerra Natildeo eacute de se admirar

aqueles a quem Marte gerou respiram Marte E

para que o mal seja mais incuraacutevel revestem tatildeo

grande impiedade com aparecircncia de piedade Os

estandartes ostentam a cruz 121

O soldado iacutempio

contratado por algumas moedas para esquartejar

e matar porta diante de si o siacutembolo da cruz e

torna-se estandarte de guerra a uacutenica coisa que

poderia dissuadir da guerra O que tu soldado

119

A expressatildeo tem um sentido duplo primeiro pode-se referir aos Padres da Igreja ou seja aqueles padres

antigos que na Histoacuteria da Igreja que se tornaram ceacutelebres segundo a Tradiccedilatildeo catoacutelica pela vida virtuosa

ortodoxia e antiguidade (viveram entre os seacuteculos I e VIII d C) e segundo aos Patriarcas hebreus cujas

histoacuterias se encontram no livro do Gecircnesis

120 Bellona foi uma antiga deusa romana da Guerra correspondente agrave deusa grega Enyo

121 O papa Juacutelio II havia dado o estandarte da cruz aos suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute

154

qui servavit non perdidit quodque cum

primis admonere te poterat cum quibus

hostibus tibi res sit si modo Christianus

es et qua [530] ratione vincendum sit Tu

salutis insigne gestas ad fratris perniciem

properans et cruce perdis eum qui cruce

servatus est Quid quod ab arcanis illis et

adorandis sacris nam haec quoque

pertrahuntur in castra in quibus inprimis

summa Christianorum concordia

repraesentatur curritur in aciem dirum

ferrum in fratris viscera stringitur et

facinoris omnium sceleratissimi quo non

aliud esse [535] potest impiis spiritibus

gratius Christum faciunt spectatorem si

tamen illic dignatur adesse Christus

Denique quod est omnium

absurdissimum in utrisque castris in

utraque acie crucis signum relucet in

utrisque sacra Quid hoc monstri est

pugnat crux cum cruce Christus adversus

Christum belligeratur Hoc signum

Christiani nominis hostes terrere solet

Cur nunc oppugnant quod adorant [540]

Homines non una digni cruce sed vera

Quaeso quid in hisce sacris orat miles

pater noster Os durum audes eum

appellare patrem qui fratris tui iugulum

petis Sanctificetur nomen tuum qui

magis dehonestari poterat nomen dei

quam istiusmodi inter vos tumultibus

Adveniat regnum tuum sic oras qui tanto

celerado fazes com a cruz Esse modo de pensar

e de agir conveacutem mais a serpentes tigres e lobos

Esta insiacutegnia eacute daquele que natildeo venceu ao lutar

mas ao morrer que salvou natildeo fez perecer Ele

veio te ensinar se eacutes cristatildeo contra que inimigos

tu deverias lutar e como deverias fazer para

vencer Tu portas contigo o emblema da salvaccedilatildeo

e ao mesmo tempo te precipitas ao assassinato

do teu irmatildeo e destroacuteis com a cruz aquele que

foi salvo pela cruz E que dizer dos sacramentos

misteriosos e solenes Eacute fato que eles tambeacutem

levam para os acampamentos militares aquelas

cerimocircnias nas quais se representa sobretudo a

suma concoacuterdia dos cristatildeos Corre-se para a

linha de batalha e com crueacuteis espadas rasgam-

se as viacutesceras do irmatildeo Isso obriga Cristo a se

tornar espectador do mais celerado de todos os

crimes ndash que eacute ao mesmo tempo o mais grato

aos espiacuteritos mais iacutempios ndash se eacute que Cristo

consente em estar presente num acampamento

Por fim o mais absurdo de tudo eacute que em ambos

os acampamentos e em ambas linhas de batalha

se ergue e brilha o sinal da cruz e em ambos os

ritos sagrados satildeo celebrados Pode haver algo

mais monstruoso A cruz luta contra a cruz e

Cristo guerreia contra Cristo Este sinal costuma

aterrorizar os inimigos do nome cristatildeo Por que

os cristatildeos atacam aquilo que adoram Os

homens natildeo satildeo dignos de somente portar o

siacutembolo da cruz mas sim uma cruz verdadeira

Por favor por que durante a missa o soldado

recita o Pai Nosso Como te atreves boca

155

sanguine tyrannidem tuam moliris Fiat

voluntas tua quemadmodum in coelo ita

[545] et in terra pacem vult ille et tu

bellum paras Panem quotidianum a

communi Patre petis qui fraternas exuris

segetes et tibi quoque mavis perire quam

illi prodesse Iam quonam ore dices illud

et dimitte nobis debita nostra sicut et nos

dimittimus debitoribus nostris qui ad

parricidium festinas Deprecaris

periculum tentationis qui tuo periculo

fratrem in periculum pertrahis A malo

liberari postulas [550] cuius instinctu

summum malum fratri machinaris

[551] Plato negat appellandum

bellum quod Graeci moveant adversus

Graecos Seditio est inquit Et istis

sanctum etiam bellum est quod ob

quamlibet causam tali milite talibus

armis cum Christiano gerit Christianus

Ethnicorum leges culeo insutum in

profluentem abiiciunt qui ferrum fraterno

desavergonhada a chamar de Pai agravequele a quem

pedes auxiacutelio para cortares a garganta do teu

irmatildeo ldquoSantificado seja o teu nomerdquo o que

poderia macular de forma mais completa o nome

de Deus senatildeo esse tipo de disputa entre voacutes

ldquoVenha a noacutes o vosso reinordquo fazes este pedido

tu que com tatildeo grande derramamento de sangue

te empenhas em tua tirania ldquoSeja feita a vossa

vontade assim na terra como no ceacuteurdquo Cristo

quer a paz e tu preparas guerra ldquoO patildeo de cada

diardquo pedes ao Pai comum tu que queimas as

plantaccedilotildees do teu irmatildeo e preferes morrer a

beneficiar o proacuteximo Pois como eacute possiacutevel que

rezeis aquilo ldquoE perdoai as nossas diacutevidas

assim como noacutes perdoamos os nossos

devedoresrdquo tu que te apressas para o fratriciacutedio

Oras que Ele te proteja no ldquoperigo da tentaccedilatildeordquo

tu que com perigo para ti mesmo conduzes o

teu irmatildeo para o perigo Tu pedes para seres

livrado do mal e instigado por ele maquinas

contra teu irmatildeo o pior dos males

Ao ver gregos moverem guerra contra

outros gregos Platatildeo afirmou que natildeo se deve

chamar essa luta de ldquoguerrardquo denominando-a

antes ldquosediccedilatildeordquo122

Enquanto para os cristatildeos eacute

ldquosantardquo a guerra em que com tal tipo de

soldados e com tais armas uns cristatildeos brandem

armas contra outros cristatildeos por qualquer

pretexto insignificante Segundo as leis dos

pagatildeos quem manchasse sua espada com sangue

122

Cf Platatildeo Repuacuteblica V 470

156

sanguine imbuerit [555] An minus

fratres sunt quos Christus copulavit

quam quos sanguinis propinquitas Et

tamen hic praemium est parricidio O

miseram bellantium sortem Qui vincit

parricida est qui vincitur perit nihilo

secius parricidio obnoxius quod

parricidium conatus est Et post haec

exsecrantur Turcas velut impios et a

Christo alienos quasi vero cum haec

agunt ipsi Christiani sint aut quasi

Turcis [560] ullum spectaculum exhiberi

possit iucundius quam si conspiciant

illos mutuis telis sese confodientes

Immolant ut aiunt Turcae daemonibus

At cum his nulla victima sit acceptior

quam si Christianus mactet Christianum

quaeso quid aliud facis quam illi Tum

enim gemina fruuntur hostia spiritus

impii cum pariter et qui mactat et qui

mactatur fit victima Si quis Turcis favet

si quis amicus est [565] daemonibus

hostias huiusmodi frequenter offerat Sed

audio iamdudum quid excusent homines

in suum ipsorum malum ingeniosi Cogi

se queruntur et invitos ad bellum

pertrahi Detrahe personam istam abiice

fucos tuum ipsius pectus consule

reperies iram ambitionem stultitiam huc

fraterno deveria ser fechado em um saco e

jogado no rio da cidade123

Seratildeo menos irmatildeos

aqueles que Cristo uniu do que aqueles unidos

pela consanguinidade E contudo entre voacutes daacute-

se precircmio ao fratriciacutedio Oacute triste sorte dos

beligerantes Quem vence eacute fratricida mas quem

eacute vencido morre igualmente culpado de

fratriciacutedio pois tentou praticaacute-lo Aleacutem disso os

turcos satildeo execrados como iacutempios e alheios a

Cristo como se na verdade fossem cristatildeos

aqueles que agem desse modo e se proclamam

cristatildeos ou como se houvesse um espetaacuteculo

mais agradaacutevel aos turcos do que verem os

cristatildeos se ferirem uns aos outros com lanccedilas Os

cristatildeos dizem que os turcos oferecem imolaccedilotildees

aos democircnios mas como para esses nenhuma

oferenda sacrificial lhes eacute mais agradaacutevel do que

um cristatildeo imolado por outro pergunto e voacutes

Em que sois diferentes dos turcos De fato os

espiacuteritos iacutempios apoderam-se de duas oferendas

sacrificiais pois tanto aquele que imola quanto

aquele que eacute imolado tornam-se viacutetimas suas do

mesmo jeito Se algueacutem visa a favorecer os

turcos se algueacutem eacute amigo dos democircnios que

ofereccedila com frequecircncia semelhante hoacutestia Haacute

muito tempo ouvi o que dizem alguns homens

engenhosos em se excusar de suas maldades

Estes se queixam de serem constrangidos

arrastados agrave guerra a contragosto Arranca essa

123

A expressatildeo culleo insutus (costurado em um saco) foi recebido no Adaacutegio 3978 Agostinho (Contra

Faustum XXII 22) jaacute tratava dessa pena imposta aos parricidas ocorrente tambeacutem em Secircneca (Dial 3165)

Quintiliano (Inst 786) e Justiniano (Institutiones 1816)

157

pertraxisse non necessitatem nisi forte

hac fini necessitatem metiris si non per

omnia satisfiat [570] animo Ad populum

phaleras deus fucis non deluditur Atque

interea solennes aguntur supplicationes

magnis clamoribus petitur pax

vociferantur immani boatu ut pacem

nobis dones te rogamus audi nos

Nonne iure optimo Deus istis responderit

quid me ridetis Rogatis ut depellam

quod ipsi vobis accersitis volentes

Deprecamini cuius ipsi vobis estis

auctores Si quaelibet offensa [575]

bellum parit cui tandem non est quod

queratur Inter uxorem et maritum

incidunt ad quae sit connivendum nisi

malis dirimi benevolentiam Quod si quid

eiusmodi sit ortum inter principes quid

opus erat mox ad arma rapi

[578] Sunt leges sunt hommes

eruditi sunt venerandi abbates sunt

reverendi episcopi quorum salubri

maacutescara joga fora esses disfarces e consulta o

teu proacuteprio coraccedilatildeo E encontraraacutes que foram a

ira a ambiccedilatildeo e a loucura que te arrastaram para

a guerra e natildeo a necessidade A natildeo ser que

chames de necessidade aquele insaciaacutevel desejo

da avareza Guarda os adornos para o povo Deus

natildeo se ilude com disfarces124

E enquanto isso

realizam-se suacuteplicas solenes pedem paz com

grande clamor gritam com ruiacutedo gigantesco

ldquorogamos-te que nos decircs a paz noacutes te

suplicamos ouve-nosrdquo125

Com todo direito natildeo

poderia Deus responder-lhes ldquopor que vos rides

de mim Rogais que eu afaste de voacutes aquilo que

voacutes mesmos procurastes de livre vontade

Suplicais-me que vos livre daquilo de que voacutes

mesmos sois os autoresrdquo Se uma ofensa

qualquer provoca uma guerra quem natildeo teria

motivos para se queixar Entre marido e mulher

surgem agraves vezes alguns conflitos para os quais

conveacutem fechar os olhos a menos que a

gravidade dos males impeccedila a benevolecircncia Ora

se atritos desse tipo surgirem entre priacutencipes por

que motivo recorrer sem demora agraves armas

Existem leis existem homens eruditos

existem abades venerandos e existem bispos

reverendos com cujo conselho salutar poder-se-

ia remediar o conflito Por que natildeo tornar

124

Cf Peacutersio Saacutetiras 330

125 Erasmo se refere a uma das invocaccedilotildees da Litania Sanctorum uma antiga oraccedilatildeo de formato litacircnico cujo

texto latino foi estabelecido em 590 pelo Papa Gregoacuterio I o Magno Sua versatildeo grega eacute ainda mais antiga e

remonta a Gregoacuterio Taumaturgo (213-270) ldquoUt regibus et principibus christianis pacem et veram concordiam

donare digneris Te rogamus audi nos Ut cuncto populo christiano pacem et unitatem largiri digneris Te

rogamus audi nosrdquo (Vauchez 1994 p 27)

158

consilio tumultus rerum componi poterat

Cur non hos [580] potius arbitros faciunt

quos haud possint tam iniquos nancisci

quin minore malo discessuri sint quam si

armis experiantur Vix ulla tam iniqua

pax quin bello vel aequissimo sit potior

Prius expende singula quae bellum vel

postulat vel adducit et quantum lucri

feceris intelliges Summa Romani

pontificis auctoritas Ast cum gentes cum

principes impiis bellis tumultuantur

idque annos [585] aliquot ubi tum

pontificum auctoritas ubi potestas

Christo proxima Hic certe erat

expromenda nisi ipsi similibus tenerentur

cupiditatibus Vocat Pontifex ad bellum

paretur Vocat idem ad pacem cur non

obtemperatur itidem Si pacem malunt

cur Iulio bellandi auctori tam alacriter

obeditum est Leoni ad pacem et

concordiam provocanti vix quisquam

obtemperat Si vere sacrosancta est

Romani [590] pontificis auctoritas certe

maxime valere par est quoties ad id

provocat quod unice docuit Christus

Caeterum quos Iulius ad bellum exitiale

potuit excitare cum Leo sanctissimus

aacuterbitros homens que de modo algum possa ser

tatildeo perversos que natildeo estejam a desertar por um

mal menor do que experimentar armas

Dificilmente uma paz eacute tatildeo iniacutequa que natildeo seja

preferiacutevel agrave mais justa das guerras Faz bem os

caacutelculos de cada artigo que a guerra exige e por

outro lado acarreta e teraacutes previsto quanto lucro

te renderaacute Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice

Romano Entretanto no momento em que os

povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras

perversas ndash e isto por longos anos ndash onde estaacute a

autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde

estaacute o seu poder proacuteximo ao de Cristo Era

nesse ponto que a autoridade papal certamente

deveria ser exercida se tambeacutem os papas natildeo

compartilhassem as mesmas ambiccedilotildees Se o

pontiacutefice conclama para a guerra logo eacute

obedecido Se ele mesmo apela agrave paz por que

natildeo se lhe obedece da mesma forma Se

preferem a paz entatildeo por que a ordem para

guerrear de Juacutelio126

foi obedecida com

entusiasmo mas quando Leatildeo127

apelou para a

paz e a concoacuterdia quase ningueacutem obedeceu Se

a autoridade do Pontiacutefice Romano eacute

verdadeiramente sagrada e santa deveria valer

de modo certo e absoluto todas as vezes que

visasse ao que Cristo quis ensinar de modo

126

Referecircncia ao Papa Juacutelio II

127 Papa Leatildeo X (1475-1521) cujo nome de batismo era Giovanni di Lorenzo de Medici que sucedeu Juacutelio II em

11031513 e presidiu a Seacute de Pedro tinha concluiacutedo um tratado de paz com os franceses vitoriosos na Batalha

de Marignan (Viterbo 13101515) Margolin (1992 p 940) informa que ldquoapoacutes a guerra de Urbino o Papa havia

defendido uma treacutegua na Europa em vista de uma eventual cruzadardquo Erasmo por diplomacia mitifica a figura

do Papa Leatildeo como conciliador Os registros histoacutericos poreacutem natildeo escusam esse pontiacutefice de atividades e

alianccedilas guerreiras

159

pontifex non idem possit tot modis ad

Christianam concordiam provocans

declarant sese ecclesiae praetextu suis

servisse cupiditatibus ne quid dicam

acerbius

[595] Si ex animo taedet

bellorum dabo consilium quo

concordiam tueri possitis Solida pax

haud constat affinitatibus haud

foederibus hominum ex quibus

frequenter exoriri bella videmus

Repurgandi fontes ipsi unde malum hoc

scatet pravae cupiditates tumultus istos

pariunt Et dum quisque suis inservit

adfectibus interim affligitur respublica

nec tamen adsequitur hoc ipsum quisque

[600] quod malis rationibus adfectat

Sapiant principes et populo sapiant non

sibi ac vere sapiant ut maiestatem suam

ut felicitatem ut opes ut splendorem his

rebus metiantur quae vere magnos et

excellentes faciunt Sint eo animo erga

rempublicam quo pater erga familiam

Ita se magnum existimet rex si quam

optimis imperet ita felicem si suos

felices reddiderit ita sublimem si quam

[605] maxime liberis imperet ita

opulentum si populum habeat

opulentum ita florentem si civitates

muito especial A partir disso eacute justo concluir

que os mesmos que foram incitados pelo apelo agrave

guerra de Juacutelio natildeo foram igualmente obedientes

aos numerosos argumentos baseados na

concoacuterdia cristatilde do Santiacutessimo Papa Leatildeo assim

agiram com o pretexto de servir agrave Igreja mas ndash

para natildeo dizer algo mais duro ndash buscaram isto

sim suas proacuteprias ambiccedilotildees

Se estais sinceramente cansados da

guerra darei um conselho com o qual podeis

cultivar a paz Uma paz soacutelida natildeo nasce de laccedilos

de parentesco nem de alianccedilas entre os homens

dos quais muitas vezes vemos nascer a guerra

Eacute preciso purificar as fontes de onde nascem

esses males e que datildeo agrave luz esses conflitos as

suas perversas ambiccedilotildees Entatildeo enquanto o

priacutencipe submete-se a suas paixotildees natildeo apenas

aflige-se a repuacuteblica como ele tampouco

consegue aquilo a que visava obter em seus vis

propoacutesitos Que os priacutencipes sejam saacutebios e que

sejam saacutebios em prol do povo e natildeo somente

para si e que sejam verdadeiramente saacutebios de

tal forma que a sua majestade a sua felicidade a

sua riqueza e o seu esplendor sejam avaliados

por aquelas coisas que os fazem verdadeiramente

poderosos e superiores na sociedade Que

tenham para com a repuacuteblica a mesma

disposiccedilatildeo do pai para com a famiacutelia Que o Rei

soacute se considere grande se governar sobre os

melhores homens que seja feliz se tornar seus

suacuteditos felizes glorioso se bem governar

homens livres opulento se o povo for opulento

160

perpetua pace florentes habeat Atque

hunc Principes animum imitentur

proceres ac magistratus omnia

reipublicae commodis metiantur et hac

via rectius suis consuluerint commodis

Rex qui hoc sit animo num is facile

commovebitur ut pecuniam a suis

extorqueat quam barbaro militi numeret

[610] Suos ad famem adiget ut impios

aliquot Duces ditet Num is suorum

vitam tot periculis obiiciet Non opinor

Hactenus exerceat imperium ut

meminerit se hominem imperare

hominibus liberum liberis postremo

Christianum Christianis Huic vicissim

tantum deferat populus quatenus ad

publicam utilitatem conducit Non aliud

exiget bonus princeps mali vero

cupiditates retundet civium [615]

consensus absit utrimque privati

commodi ratio Plurimum honoris

habeatur iis qui bellum excluserint qui

concordiam restituerint ingenio

consiliove suo denique qui hoc modis

omnibus moliatur non ut maximam

militum ac machinarum vim comparet

sed ut iis non sit opus Quod pulcerrimum

facinus tot imperatorum unus

Diocletianus animo concepisse legitur

Quod si bellum [620] vitari non potest

ita geratur ut summa malorum in eorum

capita recidat qui belli dedere causas

e proacutespero se por uma paz perpeacutetua reinar

sobre cidades proacutesperas E que essa disposiccedilatildeo

dos priacutencipes seja imitada pelos seus proacuteceres

assim como pelos magistrados Que avaliem

tudo segundo a medida do bem-estar da

repuacuteblica e dessa maneira teratildeo assegurado com

mais seguranccedila seu proacuteprio bem-estar Se o rei

tiver essa disposiccedilatildeo acaso se sentiraacute levado a

extorquir o dinheiro dos suacuteditos para contratar

mercenaacuterios baacuterbaros Acaso levaraacute os seus agrave

fome para que enriqueccedila alguns generais iacutempios

Acaso exporaacute a vida dos seus a tatildeo grandes

perigos Natildeo o creio Que o priacutencipe impere de

tal modo que se lembre sempre de que eacute um

homem que governa homens um homem livre

que governa homens livres e em uacuteltima anaacutelise

um cristatildeo que governa cristatildeos O povo por sua

vez que o aceite somente na medida em que seja

em benefiacutecio da utilidade puacuteblica O bom

priacutencipe natildeo exige nada mais que isso As

ambiccedilotildees do mau satildeo derrubadas pelo consenso

dos cidadatildeos Que a loacutegica do interesse privado

esteja ausente em ambas as partes Maior honra

tenham aqueles que evitaram a guerra e cujo

engenho e conselho restituiacuteram a concoacuterdia Em

suma aqueles que por todos os meios se

esforccedilaram natildeo para obter o maior nuacutemero

possiacutevel de soldados e maacutequinas de guerra mas

em tornar tudo isso desnecessaacuterio Dentre tatildeo

grande nuacutemero de imperadores que existiram

Diocleciano segundo se lecirc foi o uacutenico que

concebeu em seu coraccedilatildeo esta accedilatildeo a mais nobre

161

Nunc Principes tuti belligerantur

ductores hinc crescunt maxima malorum

pars in agricolas ac plebem effunditur ad

quos nec attinet bellum nec ipsi belli

causam ullam dederunt Ubi principis

sapientia si haec non perpendit ubi

principis animus si haec levia ducit

Invenienda ratio qua [625] fiat ne toties

mutentur ac velut obambulent imperia

quod omnis rerum novatio tumultum

gignat tumultus bellum Id facile fiet si

Regum liberi intra ditionis fines

elocentur aut si quem libeat finitimis

adiungere spes omnibus successionis

praecisa esto Nec fas sit Principi ditionis

portionem ullam vendere aut alienare

perinde quasi privata sint praedia liberae

civitates Nam liberae sunt quibus rex

[630] imperat serviunt quos tyrannus

premit Nunc huiusmodi matrimoniorum

vicibus fit ut apud Hybernos natus

repente imperet Indis aut qui modo Syris

imperabat subito Rex sit Britanniae

Fitque ut neutra regio Principem habeat

dum priorem relinquit et a posteriore non

agnoscitur nimirum ignotus alioque

mundo natus Atque interim dum illud

parit dum evincit dum stabilit alterum

[635] exhaurit proteritque nonnumquam

amittit utrumque dum utrumque

complecti studet vix alteri administrando

idoneus Semel inter principes conveniat

dentre todas Agora se natildeo se pode evitar uma

guerra que seja travada de tal forma que ao

menos a maior parte dos males caia sobre as

cabeccedilas daqueles que causaram a guerra Hoje

em dia poreacutem os priacutencipes combatem

esmerando em sua seguranccedila e por isso o

aumento de poder de seus generais enquanto

isso a maior parte dos males atinge os

camponeses e o povo justamente aqueles que

natildeo tiraram qualquer proveito da guerra nem

deram qualquer motivo para que ela se

realizasse Onde estaacute a sabedoria do priacutencipe se

natildeo considera essas coisas Onde estaacute o coraccedilatildeo

do priacutencipe se pensa que isso eacute algo sem

importacircncia Deve-se encontrar um modo de

evitar que um reino mude de dinastia e como que

passe de matildeo em matildeo pois inovaccedilotildees desse tipo

sempre geram confusatildeo e confusatildeo gera guerras

Isso pode ser realizado de forma simples se os

filhos do rei tiverem seu poder dentro dos limites

de seu feudo Se houver algum que se interessar

em acrescentar territoacuterio aos seus domiacutenios que

este seja excluiacutedo dos direitos de sucessatildeo Que

natildeo lhe seja liacutecito vender ou alienar nem a menor

porccedilatildeo de seu feudo como se as cidades livres

fossem propriedades privadas Daacute-se pois o

nome de cidades livres agravequelas governadas por

um rei enquanto que aquelas que um tirano

oprime vivem sob servidatildeo Hoje em dia pelos

acasos de casamentos desse tipo acontece de um

irlandecircs passar de repente a reinar sobre os

indianos ou de algueacutem haacute pouco governante dos

162

quid quisque debeat administrare ac

ditionis fines semel datos nulla proferat

aut contrahat affinitas nulla convellant

foedera ita suam quisque portionem

enitetur quam potest ornatissimam

reddere dum in unam omne studium

intendet [640] hanc conabitur rebus

optimis locupletatam suis liberis

relinquere Atque hoc sane pacto futurum

est ut ubique floreant omnia Caeterum

inter sese non affinitatibus aut factitiis

sodalitatibus sed syncera puraque

amicitia copulentur maximeque simili

communique studio bene merendi de

rebus humanis Principi vero succedat vel

qui genere proximus vel qui populi

suffragiis maxime iudicabitur [645]

idoneus Caeteris sat sit inter honestos

haberi proceres

siacuterios tornar-se rei da Inglaterra128

E enquanto

isso as duas regiotildees ficam sem priacutencipe o

primeiro porque ele a abandonou o segundo

porque natildeo passa de um estrangeiro vindo de

outro lugar e natildeo o reconhece como soberano

Enquanto o priacutencipe se preocupa em obter esse

reconhecimento conquistaacute-lo e consolidaacute-lo

empobrece e drena o outro reino e por vezes

perde os dois quando tenta abraccedilar a ambos pois

dificilmente eacute capaz de governar um soacute Que de

uma vez por todas os priacutencipes estejam de

acordo sobre o territoacuterio que cada um deve

governar e que nenhum laccedilo de parentesco

aumente ou diminua essas fronteiras que foram

estabelecidas que nenhuma alianccedila as destrua

Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas

possibilidades para governar sua regiatildeo da

melhor forma possiacutevel Pois quando estiver

totalmente concentrado no cuidado de um soacute

reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus

filhos enriquecido por melhorias E desta

forma como eacute evidente tudo em toda parte

floresceraacute Que sejam aliados natildeo apenas por

viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas contratuais

mas sim unidos por amizade sincera e pura e

acima de tudo por um idecircntico e comum amor

por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei

seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais

proacuteximo por consanguinidade quer agravequele que

128

Margolin (1992 p 942) afirma que essa frase de Erasmo ldquopoderia invocar ainda Maximiliano que declarou

guerra a Hungria (em 1490) pois a viuacuteva de Matias Corvin rei da Hungria havia desposado Ladislau da

Boecircmia ferindo seus pretenciosos direitos de sucessatildeordquo

163

[646] Regium est nescire privatos

adfectus et omnia publicis commodis

aestimare Ad haec longinquas

peregrinationes vitet Princeps imo

pomoeria regni numquam transire velit

memineritque dicti longo seculorum

consensu probati Frons occipitio prior

est Locupletatum se existimet non si

quid aliis ademerit [650] sed si sua

reddiderit meliora Cum de bello agitur

ne adhibeat in consilium iuvenes quibus

ideo bellum placet quod experti non sunt

quantum habeat malorum neve eos

quibus expedit turbari publicam

tranquillitatem quique populi

calamitatibus aluntur ac saginantur Senes

cordatos et integros accersat et quorum

pietas patriae spectata sit Nec temere ad

unius aut alterius libidinem [655] bellum

moveatur quod semel coeptum haud

facile finitur Res omnium

periculosissima non nisi totius populi

consensu suscipiatur Belli causae statim

praecidendae sunt Ad quaedam

connivendum comitas comitatem

invitabit Nonnumquam emenda pax Ea

si ratione subduxeris quid bellum fuerit

exhausturum et quot cives ab exitio

serves parvo empta videbitur etiamsi

magno [660] emeris quando praeter

pelos votos do povo for considerado o mais

capaz Quanto aos demais que lhes baste estar

entre o nuacutemero dos nobres mais honrados

A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os

afetos privados e estimar todas as coisas segundo

o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe

evite viagens a terras longiacutenquas ou antes que

nunca cruze os limites territoriais do seu reino

Que se recorde do ditado comprovado pelo longo

consenso dos seacuteculos ldquoeacute preciso que o mestre

tenha os olhos sobre seu ofiacuteciordquo Que o priacutencipe

considere que enriqueceu natildeo se tirar algo dos

outros mas aperfeiccediloando o que lhe pertence Se

haacute uma questatildeo de guerra que natildeo convoque a

conselho os jovens aos quais a guerra sempre

agrada pois natildeo experimentaram os muitos

males que ela causa nem consulte aqueles a

quem interessa perturbar a tranquilidade puacuteblica

e que satildeo alimentados e engordados pela

calamidade do povo Que convoque um conselho

de anciatildeos sensatos e iacutentegros cuja piedade para

com a paacutetria eacute comprovada E que natildeo inicie a

guerra temerariamente movido pelo desejo deste

ou daquele porque uma vez iniciada ela natildeo se

extingue com facilidade E uma vez que a guerra

eacute o assunto mais perigoso de todos que natildeo seja

decidida sem o consenso de todo o povo As

causas da guerra devem ser imediatamente

extirpadas Conveacutem deixar passar certas coisas a

cortesia convidaraacute agrave cortesia Haacute ocasiotildees em

que a paz deveraacute ser comprada Se fizeres os

caacutelculos pesando quanto a guerra haveria de ser

164

civium tuorum sanguinem plus erat bello

impendendum Ineas rationem quantum

malorum vitaris quantum bonorum

tuearis et impendii non poenitebit

Fungantur interim suo officio praesules

sacerdotes vere sint sacerdotes monachi

professionis suae meminerint theologi

quod Christo dignum est doceant

Conspirent omnes adversus bellum in

hoc latrent [665] omnes Pacem publice

privatimque praedicent efferant

inculcent Tum si minus possint efficere

ne ferro decernatur certe ne probent ne

intersint ne rei vel tam sceleratae vel

certe tam suspectae ipsis auctoribus

honos habeatur Satis sit in bello caesis

in prophano sepulcrum dari Si qui boni

sunt in hoc genere qui certe paucissimi

sunt non ob haec fraudabuntur suo

praemio caeterum impii [670] quae

maxima turba est minus sibi placebunt

honore detracto

[671] De his bellis loquor quae

vulgo Christiani cum Christianis

commitunt Nec enim idem sentio de his

custosa e o grande nuacutemero de cidadatildeos que

salvas seu preccedilo seraacute considerado iacutenfimo

mesmo que pagues um valor alto visto que natildeo

era soacute o sangue dos teus suacuteditos que haveria de

perder-se com a guerra Calcula quanto dos

males evitaste e quanto dos bens protegeste e

natildeo te arrependeraacutes do gasto Que nesse iacutenterim

os prelados cumpram sua tarefa que os

sacerdotes sejam verdadeiramente sacerdotes

que os monges se lembrem da sua profissatildeo e

que os teoacutelogos ensinem aquilo que eacute digno de

Cristo Que todos conspirem contra a guerra e

contra ela todos declamem Que preguem

promovam e inculquem a paz quer em puacuteblico

quer em privado E se porventura natildeo

conseguirem fazer com que as disputas natildeo se

resolvam pela espada que ao menos demonstrem

sua desaprovaccedilatildeo e natildeo compareccedilam para evitar

que por sua presenccedila se considere honrosa uma

coisa tatildeo odiosa ou pelo menos tatildeo duvidosa

Que aos que tombaram na guerra seja suficiente

que lhes seja dada sepultura em solo profano Se

haacute algumas pessoas boas entre os guerreiros ndash e

certamente satildeo pouquiacutessimas ndash natildeo por isso

seratildeo defraudadas em seu precircmio Por outro

lado os iacutempios que satildeo a maioria129

estes se

sentiratildeo menos contentes nas armas com a

retirada da honraria do sepulcro cristatildeo

Refiro-me agraves guerras que os cristatildeos

fazem contra os cristatildeos Natildeo tenho poreacutem

129

Virgiacutelio Aeneis VI 6 I 1

165

qui simplici pioque studio vim

incursantium barbarorum depellunt et

suo periculo publicam tranquillitatem

tuentur Nunc trophaea sanguine tincta

eorum pro quorum salute Christus suum

fudit sanguinem [675] reponuntur in

templis inter apostolorum ac martyrum

statuas quasi posthac pium sit futurum

non fieri martyres sed facere Abunde

magnum erat haec in foro aut armario

quopiam reposita servari In sacras aedes

quas purissimas esse decet nihil recipi

convenit quod sanguine sit inquinatum

Sacerdotes deo sacri nusquam adsint nisi

ad dirimenda bella In haec si

consentiant [680] si eadem ubique

inculcent plurimum habitura momenti

est Quod si hic fatalis est humani ingenii

morbus ut prorsus absque bellis durare

nequeat quin potius malum hoc in Turcas

effunditur tametsi praestabat et hos

doctrina bene factis vitaeque innocentia

ad Christi religionem allicere quam

armis adoriri Attamen si bellum ut

diximus omnino vitari non potest illud

certe levius [685] sit malum quam sic

impie Christianos inter se committi

collidique Si mutua caritas illos non

adglutinat certe coniunget utcumque

communis hostis et qualiscumque

syncretismus erit ut absit vera concordia

igual julgamento sobre aquelas com as quais

tomados por um sentimento puro e piedoso

enfrentam as incursotildees dos baacuterbaros e com

perigo da proacutepria vida protegem a tranquilidade

puacuteblica Hoje nas igrejas colocam-se trofeacuteus de

guerra tingidos com o sangue daqueles por cuja

salvaccedilatildeo Cristo derramou o seu sangue por entre

as estaacutetuas dos apoacutestolos e dos maacutertires como se

depois disso fosse considerado piedoso natildeo

tornar-se maacutertires mas fazecirc-los Jaacute seria o

bastante que esses troacutefeus fossem exibidos no

foacuterum ou em um armaacuterio qualquer mas natildeo

devem expocirc-los os templos sagrados que devem

ser os mais puros e de forma alguma conveacutem que

recebam qualquer objeto manchado de sangue

Que os sacerdotes natildeo se apresentem pelo Deus

sagrado a natildeo ser para dirimir as guerras Se

nisso concordarem se em todos os lugares

inculcarem o mesmo enorme influecircncia hatildeo de

ter Ora se a guerra eacute uma fatal e doentia

propensatildeo do engenho humano de modo que

natildeo lhe eacute possiacutevel viver absolutamente sem ela

por que natildeo se dirige esse mal inevitaacutevel contra

os turcos embora fosse preferiacutevel atraiacute-los para a

religiatildeo de Cristo por meio da doutrina dos bons

costumes e de uma vida de inocecircncia do que

atacaacute-los com armas Se contudo como

dissemos a guerra natildeo pode ser completamente

evitada de todo modo atacar os turcos eacute um mal

menor do que os cristatildeos se enfrentarem e se

colidirem mutuamente de maneira tatildeo perversa

Se o amor muacutetuo natildeo os une pelo menos de

166

[688] Postremo magna pars pacis

est ex animo velle pacem Quibus enim

pax vere cordi est hi omnes pacis

occasiones arripiunt quae obstant aut

negligunt aut [690] amoliuntur permulta

ferunt dum tantum bonum sit incolume

Nunc ipsi bellorum seminaria quaerunt

quod ad concordiam facit elevant aut

dissimulant etiam quod ad bellum tendit

ultro exaggerant exulcerantque Pudet

referre ex cuiusmodi nugis quantas

excitent tragoedias et ex quam minuta

scintillula quae rerum tempestates

exoriantur Tunc illud iniuriarum agmen

venit in mentem [695] et suum quisque

malum sibi exaggerat at benefactorum

interim profunda oblivio ut iures

adfectari bellum Et saepe principum

privatum quiddam est quod orbem ad

arma compellit at plus quam publicum

esse debet ob quod bellum suscipiatur

Quin ubi nihil subest causae ipsi

dissidiorum causas sibi fingunt regionum

vocabulis ad odiorum alimoniam

abutentes et hunc stultae plebis [700]

errorem alunt magnates et in suum

abutuntur compendium alunt sacerdotes

quidam Anglus hostis est Gallo nec ob

aliud nisi quod Gallus est Scoto

alguma forma um inimigo comum poderia uni-

los e haveria ao menos uma espeacutecie de

harmonia ainda que longe de ser a verdadeira

concoacuterdia

Finalmente o primeiro e primordial

passo para a paz se realiza ao desejar

sinceramente a paz De fato quem tem o coraccedilatildeo

realmente repleto do desejo de paz aproveita

todas as oportunidades para estabelececirc-la diante

dos obstaacuteculos negligencia-os ou elimina-os

resigna-se a suportar muita coisa contanto que

se consiga manter incoacutelume um tatildeo grande bem

Atualmente entretanto satildeo os proacuteprios priacutencipes

que buscam disseminar as guerras enfraquecem

e ateacute dissimulam tudo o que promove a

concoacuterdia por iniciativa proacutepria exageram e

instigam tudo o que leva agrave guerra Envergonho-

me de mencionar com que tipo de ninharia

instigam tatildeo grandes trageacutedias e de quatildeo

diminutas centelhazinhas nascem tatildeo grandes

tempestades Entatildeo ressurge-lhes na mente

aquela ruptura provocada por uma tropa de

injuacuterias e cada qual exagera para si mesmo o

mal anteriormente sofrido mas esquece de todos

os benefiacutecios recebidos de forma a que endosses

o direito a fazer a guerra Muitas vezes um

interesse particular qualquer dos priacutencipes eacute

capaz de levar o mundo inteiro agraves armas Ora

aquilo que ocasiona a guerra deve ser mais do

que eacute puacuteblico Mais ainda onde natildeo haacute uma

causa real para o conflito eles mesmos inventam

motivos para divisotildees pronunciando os nomes

167

Britannus infensus est nec aliam ob rem

nisi quod Scotus est Germanus cum

Franco dissidet Hispanus cum utroque O

pravitatem disiungit inane loci

vocabulum Cur non potius tot res

conciliant Male vis Britannus Gallo cur

non potius [705] bene vis homo homini

Christianus Christiano Cur res frivola

plus apud istos potest quam tot naturae

nexus tot Christi vincula Locus corpora

dirimit non animos Separabat olim

Rhenus Gallum a Germano at Rhenus

non separat Christianum a Christiano

Pyrenaei montes Hispanos a Gallis

seiungunt at iidem non dirimunt

Ecclesiae communionem Mare dirimit

Anglos a Gallis at non dirimit [710]

religionis societatem Paulus Apostolus

indignatur audire inter Christianos has

voces Ego sum Apollo ego sum Cephae

ego sum Pauli nec impia cognomina sinit

secare Christum omnia conciliantem et

nos commune patriae vocabulum gravem

causam iudicamus cur gens in gentis

internecionem tendat Ne id quidem satis

nonnullorum animis bellorum avidis

prave dataque opera dissidiorum [715]

ansas quaerunt ipsam dividunt Galliam

et ea vocabulis distrahunt quae nec maria

nec montes nec vera regionum nomina

da regiatildeo inimiga de tal forma que alimentem os

oacutedios e natildeo apenas os magnatas como tambeacutem

alguns sacerdotes nutrem esse engodo da plebe

estulta para seu proveito pessoal Dizem que o

inglecircs eacute inimigo do francecircs sem qualquer outra

razatildeo exceto pelo simples fato de ser francecircs O

escocecircs eacute odioso para o bretatildeo natildeo por outro

motivo senatildeo por ser escocecircs O alematildeo discorda

do francecircs e o espanhol dos dois Oacute

perversidade O vatildeo vocaacutebulo de lugar desune

Por que natildeo podem antes tantas coisas unir Tu

bretatildeo queres mal ao francecircs Por que natildeo

podes como ser humano querer bem a outro ser

humano como cristatildeo a um outro cristatildeo Por

que uma tolice como essa tem mais poder sobre

os homens do que tatildeo grande nuacutemero de elos da

natureza de tantos viacutenculos instituiacutedos por

Cristo A geografia eacute capaz de separar os corpos

natildeo as almas O Reno separava antigamente o

territoacuterio gaulecircs do germacircnico mas o Reno natildeo

separa o cristatildeo do cristatildeo Os Pirineus separam

os espanhoacuteis dos franceses mas natildeo os separam

da comunhatildeo da Igreja Se o mar separa os

ingleses dos franceses natildeo rompe a unidade da

religiatildeo O apoacutestolo Paulo indigna-se ao ouvir

entre os cristatildeos as seguintes palavras Eu sou

de Apolos eu sou de Cefas eu sou de Paulordquo 130

e natildeo tolera que cognomes iacutempios dissolvam a

conciliaccedilatildeo universal realizada por Cristo Como

podemos julgar que o nome da paacutetria de cada um

130

ldquoEgo quidem sum Pauli ego autem Apollo ego vero Cephae ego autem Christi divisus est Christusrdquo (Prima ad

Corinthios 112-13)

168

distrahunt E Gallis Germanos faciunt ne

vel nominis consortio coalescat amicitia

Si in actionibus odiosis velut divortii

nec litem facile recipit iudex nec

quamlibet admittit probationem cur isti

in re omnium odiosissima quamlibet

frivolam causam admittunt [720]

Quinpotius id quod res est cogitant

mundum hunc communem esse patriam

omnium si patriae titulus conciliat ab

iisdem maioribus ortos omneis si facit

amicos sanguinis affinitas Ecclesiam

unam esse familiam ex aequo communem

omnibus Si domus eadem copulat

necessitudines in hanc partem ingeniosos

esse par est Toleras quaedam in socero

non ob aliud nisi quod socer est et nihil

toleras [725] in eo qui religionis

consortio frater est Multa condonas

generis propinquitati et nihil condonas

affinitati religionis Certe nullum

vinculum arctius alligat quam Christi

sodalitas Cur id solum ob oculos

obversatur quod animum exulcerat Si

paci faves sic cogita potius in hoc

laesit sed saepe alias profuit aut alieno

impulsu laesit

seja justificativa para que um povo se esforce por

exterminar outro povo Mas nem isso basta para

alguns espiacuteritos aacutevidos de guerras que de forma

perversa e acintosa se empenham em achar

pretextos para dissensotildees Procuram inclusive

dividir a Franccedila e a desagregam atraveacutes de

palavras que nem os mares nem os montes nem

as diferentes proviacutencias tecircm poder para desunir

Chamam a franceses ldquoalematildeesrdquo para impedir

que a amizade se fortaleccedila ainda que seja pela

comunhatildeo de nome Se nos processos litigiosos

como por exemplo o divoacutercio o juiz natildeo aceita

facilmente a causa nem admite irrestritamente

qualquer prova por que os homens admitem

qualquer causa friacutevola para a guerra que eacute a

mais litigiosa de todas as coisas Por que natildeo

pensam antes no seguinte Se a mera designaccedilatildeo

a paacutetria eacute capaz de unir os concidadatildeos este

mundo eacute a paacutetria comum de todos se a afinidade

de sangue eacute capaz de estabelecer relaccedilotildees de

amizade todos nascemos dos mesmos

antepassados se o lar em comum forma laccedilos de

parentesco a Igreja eacute uma soacute famiacutelia comum a

todos por igual Eacute justo que se mostrem

engenhosos tambeacutem nesse sentido Toleras algo

desagradaacutevel em teu sogro pelo simples fato de

ele ser teu sogro e natildeo toleras o quer for naquele

que pela comunidade de religiatildeo eacute teu irmatildeo

Se perdoas muitas coisas pelo parentesco

consanguiacuteneo natildeo perdoas os que satildeo teus

parentes pela religiatildeo Ora o fato eacute que nenhum

viacutenculo liga com maior forccedila do que a

169

[730] Postremo quemadmodum

apud Homerum dissidii causas quod

inter Agamemnonem et Achillem

intercesserat in Aten Deam reiiciunt qui

vocant ad concordiam ita quae excusari

non possunt aliquando fatis imputentur

aut malo cuipiam si libet genio et in

haec odium ab ipsis hominibus

transferatur Cur magis ad perniciem

suam sapiunt quam ad tuendam

felicitatem Cur ad [735] malum quam

ad bonum sunt oculatiores Qui paulo

cordatiores sunt expendunt consyderant

circumspiciunt priusquam privatum

quoque negotium aggrediantur Et clausis

oculis praecipites in bellum ipsi sese

coniiciunt praesertim cum semel

admissum excludi non possit quin e

pusillo fit maximum ex uno plura ex

incruento cruentum maxime cum haec

procella non unum aut alterum [740]

affligat sed universos pariter involvat

Quod si vulgus haec parum expendit

certe principis et optimatum partes sunt

fraternidade em Cristo Por que soacute se apresenta

aos olhos aquilo que a mente abomina Se tu

procuras a paz eacute melhor que tu cogites contigo

mesmo ldquose nisso ele me magoou talvez incitado

por algueacutem em outros casos poreacutem ele me tem

sido uacutetilrdquo

Finalmente assim como em Homero131

aqueles que aconselham a concoacuterdia lanccedilaram

toda culpa do atrito entre Agamenon e Aquiles

em Ates deusa da vinganccedila da mesma forma se

imponha aos fados ou talvez a algum mau

gecircnio a culpa daquelas ofensas que satildeo

indesculpaacuteveis transferindo para esses seres

imaginaacuterios o oacutedio contra os homens Por que os

homens satildeo mais inteligentes para sua proacutepria

destruiccedilatildeo do que para a preservaccedilatildeo do seu bem

estar Por que satildeo mais cuidadosos com o mal

do que com o bem Aqueles que tecircm um pouco

de sensatez preferem pesar considerar e

observar antes de se lanccedilarem a qualquer

negoacutecio privado Mas ainda assim eles se

lanccedilam de cabeccedila na guerra com os olhos

fechados apesar de a guerra ser um tipo de mal

que uma vez criado natildeo pode ser extirpado

facilmente Antes a partir de um pequeno

conflito faz-se um enorme de uma soacute batalha

muitas de um ataque incruento uma carnificina

chega-se ao cuacutemulo com esta procela que natildeo

abate apenas um ou dois mas atinge a todos por

igual Se o povo natildeo compreende essas coisas

131

Cf Homero Iliacuteada IX 505 XIX 91

170

haec secum reputare Sacerdotum est ista

rationibus omnibus infulcire volentibus

ac nolentibus ingerere Haerebunt tandem

si nusquam non audiantur

[744] Ad bellum gestis Primum

inspice cuiusmodi res sit pax cuiusmodi

bellum [745] quid illa bonorum quid

hoc malorum secum vehat atque ita

rationem ineas num expediat pacem

bello permutare Si res quaedam

admirabilis est regnum undique rebus

optimis florens bene conditis urbibus

bene cultis agris optimis legibus

honestissimis disciplinis sanctissimis

moribus cogita tecum haec felicitas mihi

perturbanda est si bello Contra si

quando conspexisti ruinas urbium [750]

dirutos vicos exusta fana desolatos

agros et id spectaculum miserandum ut

est visum est cogita hunc esse belli

fructum Si grave iudicas sceleratam

conductitiorum militum colluviem in

tuam regionem inducere hos civium

tuorum malo alere his inservire his

blandiri immo horum arbitrio te ipsum ac

tuam incolumitatem committere fac

cogites hanc esse belli conditionem Si

abominaris [755] latrocinia haec docet

bellum Si exsecraris parricidium hoc in

cabe aos priacutencipes e aos liacutederes refletir sobre

tudo isso consigo mesmos Com maior razatildeo

ainda cabe aos sacerdotes querendo ou natildeo

defender com todos os argumentos a causa

paciacutefica Obteratildeo o seu precircmio no final mesmo

que em nenhuma parte sejam ouvidos

Anseias pela guerra Primeiro observa

bem que eacute a paz e que eacute a guerra que bens traz

consigo a primeira e que males porta consigo a

segunda e assim ponderaraacutes se vale a pena

trocar a paz pela guerra Se um reino florescente

em toda parte com tudo o que haacute de melhor com

cidades bem construiacutedas com campos bem

cultivados com oacutetimas leis com o ensino mais

honesto e com os costumes mais santos eacute algo

admiraacutevel considera contigo mesmo se faccedilo a

guerra essa minha felicidade deve ser

perturbada Por outro lado se ao contemplares

as ruiacutenas das cidades as aldeias destruiacutedas os

templos em chamas e os campos desolados isso

te pareceu tal como de fato eacute um espetaacuteculo

lastimaacutevel pensa que satildeo estes os frutos da

guerra Se julgas perigoso a turba criminosa dos

mercenaacuterios ser conduzida para teu paiacutes com a

desgraccedila dos teus suacuteditos tu os alimentares ao

servi-los e bajulaacute-los e mais entregares a ti

mesmo e a tua seguranccedila ao arbiacutetrio desses

homens dedica-te a pensar que essa eacute a condiccedilatildeo

da guerra Se abominas os latrociacutenios a guerra eacute

que os ensina se execras os parriciacutedios na

guerra eacute que se aprendem De fato que hesitaccedilatildeo

vai sentir quando levado por forte emoccedilatildeo a

171

bello discitur Nam qui vereatur unum

occidere commotus qui levi

auctoramento conductus tot homines

iugulat Si praesentissima Reipublicae

pestis est legum neglectus silent leges

inter arma Si foedum existimas stuprum

incestum et his turpiora horum omnium

bellum magister est Si fons omnium

malorum est impietas [760] et religionis

neglectus haec belli procellis prorsus

obruitur Si iudicas pessimum esse

reipublicae statum cum plurimum

possunt qui pessimi sunt in bello

regnant sceleratissimi et quos in pace

suffigas in crucem horum in bellis

primaria est opera Quis enim melius per

devia ducet copias quam latro

exercitatus Quis fortius diripiet aedes

aut spoliabit templa quam parietum

perfossor aut sacrilegus [765] Quis

animosius feriet hostem et hauriet ferro

vitalia quam gladiator aut parricida

Quis aeque idoneus ad iniiciendum ignem

urbibus aut machinis quam incendiarius

Quis aeque contemnet fluctus marisque

discrimina ac pirata diutinis

praedationibus exercitus Vis palam

cernere quam res sit impia bellum

matar um soacute homem quem em troca de um

pequeno soldo degola tatildeo grande nuacutemero de

homens Se a praga se abate sobre a repuacuteblica

haacute indeferenccedila pela justiccedila porque as leis

silenciam132

em meio agraves armas

133 Se o estupro a

violecircncia e coisas ainda mais nefandas que estas

te parecem torpes lembra-te de que eacute justamente

a guerra a mestra de todas as accedilotildees mais

horrendas Se a impiedade e a negligecircncia para

com a religiatildeo satildeo a fonte de todos os males

considera que ela eacute totalmente destruiacuteda pelas

procelas da guerra Se julgas que a pior situaccedilatildeo

da repuacuteblica eacute quando muito podem os que satildeo

peacutessimos na guerra reinam os mais criminosos e

tecircm proeminecircncia aqueles que em tempos de

paz condenas agrave cruz Pois quem pode guiar as

tropas por caminhos tortuosos melhor do que um

experiente assaltante de estradas Quem estaacute

mais seguro em roubar casas ou pilhar templos

do que o arrombador ou o sacriacutelego 134

Quem eacute

mais valente em debelar o inimigo e furar-lhe as

entranhas com a espada do que o gladiador e o

parricida Quem eacute mais haacutebil em tocar fogo nas

cidades ou nas maacutequinas de guerra do que o

incendiaacuterio Quem poderia suportar melhor as

ondas e os perigos do mar do que o pirata

exercitado dia e noite nos saques Queres ver

com clareza quanto eacute iacutempia uma guerra

132

Cicero Mil 4 10

133 A expressatildeo ldquosilent leges inter armardquo remonta a Ciacutecero (Pro Milone 410) e Luciano (Pharsade 1277)

ldquoleges bello siluere coactaerdquo

134 Plauto Pseud 9 8 6

172

animadverte per quos geritur

[770] Si pio principi nihil

antiquius esse debet quam suorum

incolumitas huic bellum in primis

invisum sit oportet Si principis felicitas

est imperare felici pacem potissimum

amplecti debet Si praecipue optandum

bono principi ut imperet quam optimis

bellum detestetur oportet unde scatet

omnis impietatis sentina Si suas opes

esse putat quidquid cives possident

bellum omnibus rationibus [775] vitet

Quod ut felicissime cadat certe facultates

omnium atterit et quod honestis artibus

partum est in immanes quosdam

carnifices erogandum Iam illud etiam

atque etiam perpendant suam cuique

blandiri causam et suam cuique spem

arridere cum illa saepenumero pessima

sit quae commoto videatur aequissima

Et haec non raro fallit Sed finge causam

iustissimam finge exitum [780] belli

prosperrimum rationem fac ineas

omnium incommodorum quibus gestum

est bellum et commoditatum quas peperit

victoria et vide num tanti fuerit vincere

Vix umquam victoria contingit incruenta

Iam habes tuos humano sanguine

pollutos Ad haec supputa morum

publicaeque disciplinae iacturam nullo

compendio sarciendam Exhauris tuum

fiscum expilas populum oneras bonos

Observa quem as faz

Se para um priacutencipe piedoso nada deve

ser mais precioso do que a seguranccedila dos seus

suacuteditos eacute necessaacuterio que a guerra lhe seja

detestaacutevel acima de todas as coisas Se a

felicidade do priacutencipe consiste em governar para

a felicidade do seu povo ele deve optar

preferencialmente pela paz Se o principal

objetivo do bom priacutencipe consiste em governar

sobre os melhores eacute necessaacuterio que odeie a

guerra da qual jorra o esgoto de todo tipo de

impiedade Se o priacutencipe pensa que satildeo riquezas

suas os bens que seus suacuteditos possuam entatildeo

que evite a guerra por todas as razotildees pois eacute

certo que esta ainda que venha a ser vencida

arruiacutena os recursos de todos e as riquezas

conquistadas pelo trabalho honesto tecircm de ser

gastas com o sustento de certos carrascos

selvagens Eacute necessaacuterio ainda que considerem

mais e mais que todo homem lisonjeia-se com

sua proacutepria causa e a proacutepria esperanccedila que

acalenta lhe parece mais risonha a qual ainda

que muitas vezes se torne a pior das realidades

induz ao erro e parece justiacutessima a quem estaacute

perturbado Supotildee a mais legiacutetima das causas

considera o mais feliz desfecho para uma guerra

calcula todos os prejuiacutezos inerentes ao estado de

guerra e o lucro gerado pela vitoacuteria E vecirc se a

vitoacuteria compensou o investimento Quase nunca

ocorre uma vitoacuteria sem sanguinolecircncia o que

conquistaste estaraacute contaminado de sangue

humano Soma a isso que para obter a vitoacuteria os

173

[785] ad facinus excitas iacutemprobos neque

vero confecto bello protinus et belli

reliquiae sopitae sunt Obsolescunt artes

includuntur negociatorum commercia Ut

hostem includas prius temet ipsum a tot

regionibus cogeris excludere Ante

bellum omnes finitimae regiones tuae

erant pax enim rerum commerciis facit

omnia communia Vide quantam rem

egeris nunc vix tua est quae maxime tua

[790] est ditio Ut oppidulum excindas

quot machinis quot tentoriis opus est

Imitatitiam urbem facias oportet ut

veram evertas at minoris aliud verum

oppidum exstrui poterat Ne liceat hosti

prodire ex oppido tu exsul a patria sub

dio dormis Minoris constaturum erat

aedificare nova moenia quam aedificata

machinis demoliri Ut ne computem hic

quod pecuniarum effluit inter exigentium

[795] recipientium ac ducum digitos

quae sane pars est non minima Quod si

horum singula ad verum calculum

revoces ni compereris decima

impendiorum parte pacem redimi

potuisse patiar aequo animo me

profligari undique Sed parum excelsi

animi tibi videare si quid remittas

iniuriarum Immo nullum est certius

argumentum humilis animi minimeque

regii quam ulcisci Maiestati tuae [800]

non nihil decedere putas si cum finitimo

costumes e a ordem puacuteblica satildeo devastados e

isso estaacute perdido sem possibilidade de reparo

Exaures o teu tesouro expolias o povo oneras os

bons incitas os iacutemprobos para o crime E

acabada a guerra natildeo creias que as suas

consequecircncias se esvairiam imediatamente As

artes fragilizam-se os tratos comerciais cessam

Para sitiares o inimigo eacutes forccedilado a abandonar

primeiro muitas regiotildees Antes da guerra todos

os territoacuterios vizinhos eram teus pois com as

trocas comerciais a paz torna todos os bens

comuns Presta atenccedilatildeo no que fizeste Com a

guerra mal se pode dizer agora que te pertence o

teu proacuteprio territoacuterio Quantas maacutequinas de

guerra e quantas tendas satildeo necessaacuterias para

destruir uma cidadezinha Eacute preciso que

construas quase uma cidade falsa para

conquistares uma verdadeira quando seria

possiacutevel por preccedilo menor construir outra cidade

verdadeira Para impedir que o inimigo saia da

cidade sitiada dormes ao ar livre exilado da tua

paacutetria Sairia muito mais barato levantar novas

muralhas do que demolir as jaacute construiacutedas com

maacutequinas de guerra Isso sem contar a

quantidade de dinheiro que deve ser repassado agraves

matildeos dos cobradores dos recebedores e dos

generais que aliaacutes natildeo eacute de modo algum a

menor parte de teus gastos Se depois de

calculares um orccedilamento exato de cada um

desses itens natildeo chegares agrave conclusatildeo de que a

paz poderia ter sido comprada pela deacutecima parte

do que a guerra custou darei de bom grado

174

principe agens et fortasse cognato aut

affini fortassis alias bene de te merito de

tuo iure decedas aliquantulum At quanto

humilius deiicis maiestatem tuam dum

barbaris cohortibus et infimae

sceleratorum feci numquam explendae

auro subinde litare cogeris dum ad Cares

vilissimos simul ac nocentissimos

blandus ac supplex mittis legatos dum

[805] tuum ipsius caput dum tuorum

fortunas illorum credis fidei quibus nihil

est neque pensi neque sancti Quod siquid

iniquitatis videbitur habere pax cave sic

cogites hoc perdo sed tanti pacem emo

[808] At dixerit argutior aliquis

Facile donarim si res ad me privatim

pertineat Princeps sum negotium

publicum velim nolim ago Non facile

permissatildeo para que me expulsem de toda parte

Contudo a ti pareccedila pouca grandeza de espiacuterito

se retribuiacuteres alguma das ofensas Na verdade

eu te asseguro que natildeo haacute prova mais certa de

um espiacuterito mesquinho e nada reacutegio do que o

desejo de vinganccedila Julgas rebaixar tua

majestade se de modo magnacircnimo renuncias a

um pouquinho de teu direito quando tens uma

pendecircncia com um priacutencipe vizinho que aliaacutes

bem pode ser teu parente ou chegado por

afinidade e que talvez em outra ocasiatildeo te

tenha feito o bem Mas como humilhas a tua

majestade muito mais quando eacutes forccedilado a

aplacar com ouro os insaciaacuteveis esquadrotildees de

baacuterbaros ou ainda pior a mais vil raleacute dos

criminosos quando numa posiccedilatildeo de lisonja e

suacuteplica envias embaixadores para contratar os

mais vis e perversos mercenaacuterios135

quando

fazes a tua proacutepria cabeccedila e a sorte dos teus

suacuteditos depender da lealdadade desses teus

aliados para quem natildeo existe nada de sagrado ou

respeitaacutevel Quanto a isso se parecer que a paz

tem algo de iniacutequo evita pensar assim ldquoEu

perco istordquo mas pensa antes ldquopor tanto compro

a pazrdquo

Mas algum priacutencipe mais arguto poderia

objetar ldquose dependesse soacute de mim perdoaria

com facilidade Como sou priacutencipe queira ou

natildeo queira devo cuidar de um interesse

135

Segundo Diodoro Siacuteculo Careacutes teria sido um general ateniense que viveu no seacuteculo IV a C Careacutes passou

para a histoacuteria como traidor porque estando os gregos em guerra contra os argivos Careacutes evitou atacar os

inimigos e feriu os aliados de Atenas promoveu uma guerra civil e desacreditou seu povo diante de seus aliados

(Diodoro Siacuteculo Biblioteca Histoacuterica Livro XV 73)

175

bellum suscipiet [810] qui nihil nisi

publicum spectat atqui contra videmus

omneis belli causas ex his rebus nasci

quae nihil ad populum pertineant Vis

hanc aut illam ditionis partem vindicare

quid istud ad populi negotium Vis

ulcisci qui filiae renunciavit quid hoc ad

rempublicam Haec expendere haec

perspicere vere sapientis vereque magni

est principis Quis umquam aut latius

imperavit aut splendidius [815] Octavio

Augusto42

At is cupiebat etiam deponere

imperium si quem vidisset reipublicae

magis salutarem principem Merito

laudata est ab egregiis auctoribus vox illa

cuiusdam imperatoris Pereant inquit

filii mei si quis alius melius sit

reipublicae consulturus Hos animos

reipublicae praestiterunt homines impii

quod ad Christi religionem attinet et

Christiani principes usque [820] adeo

vilem ducunt populum Christianum ut

gravissimo orbis incendio privatas suas

cupiditates vel ulcisci velint vel explere

puacuteblicordquo Ora quem atende exclusivamente ao

interesse puacuteblico natildeo aceitaraacute a guerra com

facilidade A verdade eacute que tambeacutem aqui vemos

que quase todas as causas da guerra nascem de

interesses que em nada concernem ao povo

Queres reivindicar teu domiacutenio sobre este ou

aquele feudo Pois que proveito tira o povo

desse projeto Queres tirar a desforra do priacutencipe

que necusou desposar a tua filha136

Mas o que

isto tem a ver com os interesses da repuacuteblica

Refletir sobre essas questotildees e observar todas

essas circunstacircncias eacute proacuteprio de um priacutencipe

saacutebio e grande Quem eacute que reinou de modo

mais esplecircndido e por tanto tempo do que Otaacutevio

Augusto Mas ele proacuteprio desejava vivamente

renunciar ao impeacuterio caso encontrasse algueacutem

que pudesse vir a ser um priacutencipe mais capaz de

promover a repuacuteblica137

Com meacuterito foi louvado

pelos autores egreacutegios aquela fala do imperador

ldquoPereccedilam os meus filhos se houver algueacutem que

cuide melhor da repuacuteblicardquo138

Homens iacutempios

do ponto de vista da religiatildeo de Cristo foram

capazes de cultivar esses pensamentos acerca da

repuacuteblica e agora priacutencipes cristatildeos desprezam

42

deponere imperium (cf Suet Aug 28)

136 Segundo Margolin (1992 p 950) alusatildeo agrave filha do Imperador Maximiliano Margarida da Aacuteustria noiva de

Carlos VIII mas rejeitada por seu pai em 1492

137 Como tradutor tenho convicccedilatildeo de que Erasmo utiliza a palavra repuacuteblica em um sentido muito proacuteximo ao

que hoje denominamos estado O priacutencipe natildeo protege a repuacuteblica entendida como sistema de governo oposto agrave

monarquia mas o estado como um aparato que visa o bem comum Conforme Suetocircnio (Iulius 83) Ceacutesar

Augusto foi o fundador do Impeacuterio Romano e primeiro Imperador que administrou o impeacuterio por mais de 40

anos Augusto iniciou o periacuteodo de paz relativa chamado de Pax Romana Embora tenha expandido o impeacuterio

estabeleceu relaccedilotildees paciacuteficas com outros reinos e reformou o sistema tributaacuterio desenvolveu as vias romanas

com um sistema oficial de correio e outras obras arquitetocircnicas em Roma obtendo grande popularidade

138 Cf Hist Aug Auid Cast 2 8

176

[822] Iam audio quosdam ita

tergiversantes ut negent se tutos esse

posse nisi vim improborum acriter

propellant Cur igitur inter innumeros

imperatores Romanos soli Antonini pius

et philosophus petiti non sunt Nisi quod

nemo tutius [825] regnat quam qui

paratus est et deponere utpote quod

reipublicae gerat non sibi Quod si nihil

vos movet neque naturae sensus neque

pietatis respectus neque tanta calamitas

certe Christiani nominis probrum animos

vestros in concordiam redigat Quota

mundi portio tenetur a Christianis Atque

haec tamen est illa civitas in aedito monte

sita spectaculum facta deo et hominibus

[830] At quid sentire putandum est quid

loqui quae probra in Christum evomere

Christiani nominis hostes ubi vident

Christianos sic inter sese concertare

levioribus de causis quam ethnici

crudelius quam impii machinis

tetrioribus quam ipsi Quorum inventum

est bombarda Nonne Christianorum Et

quo res sit indignior his induuntur

apostolorum nomina insculpuntur

o povo cristatildeo a tal ponto que incendeiam o

mundo inteiro para saciar sua sede de cobiccedila ou

seu desejo de vinganccedila

Jaacute ouccedilo o argumento de alguns que me

criticam Negam que se possa conservar sua

seguranccedila se natildeo lutarem de forma acerba contra

o iacutempeto dos iacutemprobos Por que entatildeo dentre os

inuacutemeros imperadores romanos somente os

Antoninos139

o Pio e o Filoacutesofo natildeo foram

atacados Natildeo seraacute porque ningueacutem reina com

maior seguranccedila do que aquele que estaacute

preparado para renunciar sabendo que serve aos

interesses da repuacuteblica e natildeo a seus proacuteprios

caprichos Se nada disso vos comove nem o

bom senso da natureza nem o respeito oriundo

da piedade nem a visatildeo de tantas calamidades

que ao menos o oproacutebrio que recai sobre o nome

cristatildeo conduza as vossas mentes agrave concoacuterdia

Qual eacute a porccedilatildeo do mundo pertencente aos

cristatildeos Esta eacute no entanto aquela cidade

edificada sobre um monte elevado espetaacuteculo

para Deus e para os homens Mas que se deve

julgar que pensam O que dizem Que espeacutecie

de ofensas se espera que vomitem contra Cristo

os inimigos do nome cristatildeo ao verem o modo

como os cristatildeos lutam entre si movidos por

causas mais insignificantes do que as dos

pagatildeos de modo mais cruel do que os iacutempios e

com maacutequinas mais terriacuteveis do que aquelas que

139

O Antonino Pio mencionado por Erasmo seria o imperador romano da dinastia Nerva-Antonina que governou

entre os anos de 138 e 161 e Marcus Antonius philosophus que foi imperador conhecido sob o nome de Marcus

Aurelius Antoninus (161-180) (Historia Augusta Ant Pius 133 Marc Ant Philos 185)

177

imagines O crudelis [835] irrisio Paulus

ille pacis hortator perpetuus tartaream

machinam torquet in Christianum Si

cupimus Turcas ad Christi religionem

adducere prius ipsi simus Christiani

Numquam hoc illi credent si quod est

perspiciant nusquam magis saevire quam

apud Christianos id quod Christus unum

omnium maxime detestatus est Et quod

Homerus ethnicus demiratur in ethnicis

cum suavium [840] etiam rerum satietas

sit somni cibi potus choreae musices

belli infelicis nullam esse satietatem id

apud eos verissimum est quibus ipsum

etiam belli vocabulum abominandum

esse oportuit Roma furiosa quondam illa

bellatrix tamen Iani sui templum

aliquoties vidit clausum Et qui convenit

apud vos nullas esse bellandi ferias

Quonam ore praedicabitis eis Christum

pacis auctorem ipsi [845] perpetuis

dissidiis inter vos tumultuantes Iam quos

putatis animos addit Turcis vestra

discordia Nihil enim facilius quam

vincere dissidentes Vultis illis esse

formidabiles Concordes estote Cur ultro

vobis et praesentis vitae iucunditatem

invidetis et a futura felicitate vultis

excidere Multis malis per se obnoxia est

vita mortalium magnam molestiae

eles mesmos usam Quem inventou os canhotildees

Acaso natildeo foram os cristatildeos E para tornar isso

ainda mais indigno revestem as armas de

destruiccedilatildeo com os nomes dos Apoacutestolos e

esculpem sobre elas imagens de santos Oacute cruel

escaacuternio Que o nome de Paulo o perpeacutetuo

arauto da paz seja dado a uma maacutequina infernal

apontada contra os cristatildeos Se desejamos

converter os turcos agrave religiatildeo de Cristo eacute

necessaacuterio que primeiro noacutes mesmos sejamos

cristatildeos Nunca eles acreditaratildeo se constatarem

em toda parte ndash e isto eacute inegaacutevel ndash que grassa em

nenhum lugar mais que entre os cristatildeos aquilo

que Cristo destestou acima de todas as coisas E

aquilo que um poeta pagatildeo como Homero140

espanta a pagatildeos quando constata que haacute

saciedade ateacute para as coisas agradaacuteveis da vida

como o sono a comida a bebida as danccedilas e a

muacutesica mas natildeo para a infeliz guerra antes

deveria tecirc-lo espantado ver que era a coisa mais

verdadeira do mundo para homens que deveriam

abominar ateacute o vocaacutebulo guerra Ateacute mesmo a

outrora impetuosa Roma aquela cidade

guerreira viu muitas vezes fechado o seu templo

de Jano141

E natildeo haacute entre voacutes algueacutem que

concorde que se faccedila uma treacutegua na guerra

Como podereis abrir a boca para pregar aos

turcos sobre Cristo o autor da paz se voacutes

mesmos vos confrontais em perpeacutetuas divisotildees

internas Jaacute pensastes que reaccedilatildeo vossa discoacuterdia

140

Cf Hom Il XIII 636-639

141 Cf Suet Aug 22

178

partem adimet concordia [850] dum

mutuis officiis alius alium aut consolatur

aut iuvat Si quid boni obtinget id tum

suavius tum communius reddet

concordia dum amicus impertit amico et

benevolus benevolo gratulatur Quam

frivola sunt quamque mox peritura pro

quibus inter vos tumultus est Mors

omnibus imminet non minus Regibus

quam plebeiis Quos tumultus ciet

animalculum mox fumi in morem

evaniturum [855] In foribus adest

aeternitas Quorsum attinet pro rebus

istis umbraticis perinde moliri quasi vita

haec esset immortalis O miseros qui

felicem illam piorum vitam non credunt

aut non sperant impudentes qui sibi

pollicentur e bellis ad eam iter esse cum

illa nihil sit aliud quam ineffabilis

quaedam felicium animorum communio

cum iam ad plenum continget quod

Christus tam enixe [860] rogaverat

patrem coelestem ut sic inter se

iungerentur illi quemadmodum ipse patri

iunctus esset Ad hanc summam

concordiam qui possitis esse idonei nisi

eam interim pro virili meditemini Ut

non subito ex spurco helluone fit angelus

ita non subito ex bellatore sanguinario

martyrum et divorum socius Eia satis

iam superque fusum est Christiani si

parum est humani sanguinis satis in

produz nos turcos Pois nada mais faacutecil do que

vencer aqueles que natildeo se entendem Quereis

tornar-vos temiacuteveis para eles Ponde-vos de

acordo Por que recusais deliberadamente os

prazeres da vida presente e quereis perder os da

felicidade futura Por si soacute a vida dos mortais

estaacute repleta de muitos males mas grande parte

desse incocircmodo seria aliviada pela concoacuterdia que

faz que uns aos outros se ajudem ou ao menos

consolem-se com serviccedilos muacutetuos Se algum

benefiacutecio for dado a algueacutem a concoacuterdia faraacute tal

bem tanto mais agradaacutevel quanto mais for

extensivo aos demais o amigo partilhando-o

com o amigo e sentindo alegria com a alegria do

outro Como as guerras satildeo friacutevolas e por quatildeo

levianas questotildees se promove o conflito entre

voacutes A morte ameaccedila a todos e natildeo menos aos

reis que aos plebeus Quantas discoacuterdias produz

um animalzinho despreziacutevel que logo

desapareceraacute como fumaccedila ao vento Ao sair da

vida a eternidade estaacute agraves portas Que proveito haacute

em construir suas aspiraccedilotildees em coisas tatildeo vatildes

como se a vida presente fosse imortal Oacute

miseraacuteveis que natildeo acreditam ou natildeo esperam

aquela vida feliz dos homens piedosos Homens

impudicos que se persuadem de que existe um

caminho que leva das guerras agravequela vida

quando ela natildeo eacute senatildeo a inefaacutevel comunhatildeo de

todas as almas bem-aventuradas quando se

realizar finalmente em toda a plenitude aquilo

que Cristo havia pedido tatildeo assiduamente ao Pai

Celeste que todos se unissem como o Filho estaacute

179

[865] mutua debacchatum exitia satis

hactenus Furiis Orcoque litatum satis diu

quae Turcarum pascat oculos Acta est

fabula Saltem aliquando post nimium diu

toleratas bellorum miserias resipiscite

Quicquid hactenus insanitum est fatis

imputetur Placeat Christianis quae

quondam profanis placuit superiorum

malorum oblivio Posthac communibus

consiliis in pacis studium incumbite

[870] Et sic incumbite ut non stupeis sed

solidis atque adamantinis vinculis coeat

numquam dirumpenda

[872] Vos appello principes de

quorum nutu potissimum pendent res

mortalium qui Christi principis

imaginem inter mortales geritis

Agnoscite regis vestri vocem ad pacem

vocantis existimate totum orbem diutinis

fessum malis hoc a vobis [875] flagitare

unido ao Pai Natildeo podeis ser dignos de gozar

essa suma concoacuterdia a natildeo ser que a prepareis o

mais possiacutevel Assim como eacute impossiacutevel que

subitamente um glutatildeo sujo se transforme em um

anjo assim tambeacutem natildeo eacute de repente que de um

guerreiro sanguinaacuterio surge um amigo dos

maacutertires e dos divinos Eia Basta Jaacute se

derramou muito sangue cristatildeo como se fosse

pouco dizer sangue humano Basta de os homens

se deixarem tomar por essa loucura de

destruiccedilotildees muacutetuas Decirc-se agora um basta de

fazer oferendas agraves fuacuterias e ao Orco Basta o que

haacute muito divirte os olhos dos turcos Depois de

tolerar as miseacuterias das guerras por tanto tempo

arrependei-vos ao menos uma vez Que sejam

imputados aos fados as insanidades todas

praticadas ateacute hoje Que os cristatildeos natildeo se

envergonhem em fazer como outrora os pagatildeos

esquecer os males passados Depois por

deliberaccedilotildees comuns aplicai-vos agrave preservaccedilatildeo

da paz E aplicai-vos de tal forma que ela se

firme com laccedilos natildeo de tecido mas soacutelidos e

mais inquebraacuteveis que o diamante que jamais

romper-se-atildeo

Apelo a voacutes priacutencipes que com um

miacutenimo gesto alteram a sorte dos mortais voacutes

que representais entre os homens o exemplo do

Cristo Priacutencipe Reconhecei a voz do vosso

Mestre que vos chama agrave paz Convencei-vos de

que o mundo todo fatigado de demasiados

males suplica isso de voacutes Se haacute algueacutem a quem

uma ofensa ainda machuque parece justo que a

180

Si quid cui dolet etiam aequum est hoc

publicae omnium felicitati donare Maius

est negotium quam ut levibus causis

debeat retardari Appello vos sacerdotes

deo sacri hoc studiis omnibus exprimite

quod deo gratissimum esse scitis Hoc

depellite quod illi maxime invisum

Appello vos theologi pacis evangelium

praedicate hanc semper popularibus

auribus occinite [880] Appello vos

episcopi aliique dignitate Ecclesiastica

praeminentes ad pacem aeternis vinculis

adstringendam vestra valeat auctoritas

Appello vos primates et magistratus ut

sapientiae regum ut pietati pontificum

vestra voluntas sit adiutrix Vos appello

promiscue quicumque Christiano nomine

censemini consentientibus animis in hoc

conspirate Hic ostendite quantum valeat

adversus potentum [885] tyrannidem

multitudinis concordia Huc pariter

omnes omnia sua consilia conferant

Iungat aeterna concordia quos tam multis

rebus coniunxit natura pluribus Christus

Communibus studiis agant omnes quod

ad omnium ex aequo felicitatem pertinet

[889] Huc invitant omnia primum

ipse naturae sensus atque ipsa ut ita

dicam humanitas [890] Deinde totius

humanae felicitatis Princeps et Auctor

Christus Ad haec tam multa pacis

perdoe em nome da felicidade puacuteblica de todos

Este assunto eacute da maior prioridade para ser

protelado por motivos insignificantes Apelo a

voacutes sacerdotes consagrados para Deus

Empenhai-vos zelosamente em pregar aquilo que

sabeis que eacute a coisa mais grata a Deus e em

dissuadir daquilo que Ele mais detesta Apelo a

voacutes teoacutelogos Pregai o Evangelho da paz

trombeteai sempre isto nos ouvidos do povo

Apelo a voacutes bispos e demais dignataacuterios

eclesiaacutesticos que a vossa autoridade sirva para

atar a paz com viacutenculos eternos Apelo a voacutes

nobres e magistrados para que auxilies com a

vossa vontade a sabedoria dos reis e a piedade do

pontiacutefice Apelo a todos voacutes quem quer que

sejais que vos designeis com o nome de cristatildeo

para que vos coloqueis de acordo e sejais

unacircnimes no projeto da paz Mostrai aqui que a

concoacuterdia dos povos vale mais que tirania dos

poderosos Que todos ofereccedilam por igual todos

os seus conselhos para essa finalidade Que a

concoacuterdia eterna una aqueles a quem a natureza

uniu por muitos viacutenculos mas que Cristo uniu

por muitos mais Que todos em suas atividades

cotidianas procurem o que por igual interessa agrave

felicidade de todos

Tudo nos convida a isso Em primeiro

lugar o proacuteprio instinto da natureza e se assim

posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo

lugar o proacuteprio Cristo priacutencipe e autor de toda

felicidade humana Depois as incontaacuteveis

vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero

181

commoda tot belli calamitates Vocant

huc ipsi principum animi iam velut

adflante deo ad concordiam propensi En

pacificus ille placidusque Leo signum

omnibus extulit ad pacem invitans

vereque Christi vicarium agens Si vere

oves estis sequimini pastorem Si filii

audite patrem Vocat huc [895] ille non

titulo tantum Christianissimus Galliarum

rex Franciscus qui pacem nec emere

gravatur nec usquam suae maiestatis

habet rationem modo publicae paci

consulat hoc denique vere splendidum ac

regium esse docens de genere humano

quam optime mereri Vocat huc

clarissimus princeps Carolus incorruptae

indolis adolescens Nec abhorret Caesar

Maximilianus nec detractat [900]

inclytus Angliae rex Henricus Tantorum

principum exemplum caeteros libenter

imitari par est Maxima plebis pars

bellum detestatur pacem orat Pauculi

quidam modo quorum impia felicitas a

publica pendet infelicitate bellum optant

Quorum improbitas ut plus valeat quam

imenso das calamidades da guerra Convidam agrave

paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que

como que inspirados por Deus jaacute estatildeo

propensos agrave concoacuterdia Eis aquele paciacutefico e

tranquilo Leatildeo142

que diante de todos ergueu o

estandarte a fim de convidar agrave paz e agiu como

autecircntico Vigaacuterio de Cristo Se verdadeiramente

sois ovelhas segui o pastor Se sois filhos

escutai o pai Convida agrave paz o celebrado

Francisco143

rei da Franccedila cristianiacutessimo natildeo

apenas de tiacutetulo o qual natildeo soacute natildeo se

envergonha de comprar a paz como tambeacutem natildeo

se mostra demasiadamente zeloso de sua

majestade contanto que seja para cuidar da paz

puacuteblica ensinando enfim que eacute proacuteprio de um

espiacuterito realmente esplecircndido e reacutegio ser

merecedor da maior gratidatildeo do gecircnero humano

Convida agrave paz o preclariacutessimo Priacutencipe

Carlos144

jovem de iacutendole incorruptiacutevel E natildeo

descuida de mim o Imperador Maximiliano145

assim como natildeo deprecia Henrique o iacutenclito rei

da Inglaterra146

Eacute justo que os demais imitem

com toda alegria o exemplo de tatildeo grandes

priacutencipes O povo em sua maioria detesta a

guerra e faz votos pela paz Reduzido eacute o nuacutemero

142

Papa Leatildeo X

143 Francisco I (1494-1547) Rei da Franccedila de 1515 ateacute a sua morte Queixa da Paz foi publicada em 1517 dois

anos apoacutes Francisco herdar o governo

144 Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano Alematildeo com apenas 17 anos de

idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio Habsburgo em 1519

145 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela morreria dois anos

depois

146 Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia a catolicidade do rei

inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536

182

bonorum omnium voluntas aequum sit

nec ne vos ipsi expendite Videtis

hactenus nihil actum foederibus nihil

[905] promotum affinitatibus nihil vi

nihil ulciscendo Nunc contra periculum

facite quid possit placabilitas quid

beneficentia Bellum e bello seritur ultio

trahit ultionem Nunc gratia gratiam

pariat et beneficium beneficio invitetur

isque regalior videatur qui plus de suo

iure concesserit Non successit quod

humanis studiis gestum est At fortunabit

ipse Christus pia consilia quae se [910]

autore et auspice viderit suscipi Aderit

dexter adspirabit favebitque faventibus

ei rei cui favit ipse plurimum privatos

adfectus publica vincat utilitas

Quamquam dum huic consulitur et sua

cuique fortuna melior reddetur

principibus regnum erit augustius si piis

ac felicibus imperent ut legibus regnent

magis quam armis proceribus maior

veriorque dignitas sacerdotibus otium

tranquillius [915] populo quies uberior

et ubertas quietior nomen Christianum

formidabilius crucis hostibus Denique

singuli singulis et omnes omnibus cari

simul [917] et iucundi eritis super omnia

Christo grati cui placuisse summa

felicitas est [918] Dixi

daqueles que optam pela guerra porque sua

felicidade iacutempia depende da infelicidade puacuteblica

Ponderai voacutes mesmos se eacute justo que a maldade

destes tenha mais forccedila do que a vontade de

todos os homens bons Vedes que ateacute o presente

momento nada se conseguiu com tratados nada

foi feito com a promoccedilatildeo de matrimocircnios

poliacuteticos nada se obteve pela forccedila nada se

construiu com a vinganccedila Fazei entatildeo a

experiecircncia do poder da clemecircncia e da boa

vontade Guerra semeia guerra vinganccedila atrai

vinganccedila Que agora a indulgecircncia decirc agrave luz a

indulgecircncia e um favor feito a algueacutem convide a

outro favor Que se avalie como possuidor de

realeza aquele que mais conceder os seus

proacuteprios direitos em benefiacutecio da paz Natildeo se

realizou aquilo que foi tentado apenas com as

providecircncias humanas mas o proacuteprio Cristo traraacute

ecircxito agraves decisotildees piedosas que vir que satildeo

concebidas tendo-o como autor e guia supremo

Estaraacute presente de forma propiacutecia inspiraraacute e

favoreceraacute aqueles que favorecem aquilo a que

ele favoreceu sobremaneira Que a utilidade

puacuteblica supere as paixotildees privadas Ateacute porque

enquanto cada um se ocupa desta torna melhor

sua proacutepria sorte os priacutencipes seratildeo mais

augustos se governarem suacuteditos piedosos e

felizes reinando sob a eacutegide das leis mais do que

pelas armas Os nobres gozaratildeo de maior e mais

autecircntica dignidade os sacerdotes usufruiratildeo de

um repouso mais tranquilo o povo teraacute uma

tranquilidade mais proacutespera ou uma

183

prosperidade mais tranquila O nome cristatildeo seraacute

mais temido pelos inimigos da cruz Em suma

todos e cada um de voacutes sereis em tudo mais

amados e agradaacuteveis uns para os outros e cada

um de todos e sobretudo sereis mais gratos a

Cristo a quem agradar consiste a suma

felicidade dessa vida Tenho dito

184

185

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  • A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdamestudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • SUMAacuteRIO
  • INTRODUCcedilAtildeO
    • Estrutura do estudo introdutoacuterio
    • Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa
      • CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO RENASCIMENTO
        • 11 Origem grega
          • 111 Definiccedilatildeo
          • 112 Principais autores e escritos em grego
            • 12 A praacutetica latina
            • 13 As fontes latinas
              • 131 Discussatildeo terminoloacutegica
              • 132 O contexto republicano e o imperial
                • 14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos
                  • 141 A Retoacuterica a Herecircnio
                  • 142 Ciacutecero
                  • 143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho
                  • 144 A suasoacuteria em Secircneca
                  • 145 Quintiliano
                    • 15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento
                    • 16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos
                    • 17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas
                      • 171 Lourenccedilo Valla
                      • 172 Thomas More
                        • 18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas
                        • 19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas
                        • 110 Conclusotildees do capiacutetulo
                          • CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ
                            • 21 Definiccedilotildees erasmianas
                            • 22 Temas
                            • 23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes
                              • 231 Isoacutecrates
                              • 232 Plutarco
                              • 233 Luciano
                                • 24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo
                                • 25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas
                                • 26 Declamaccedilatildeo escrita e integral
                                • 27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico
                                • 28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz
                                • 29 A disposiccedilatildeo retoacuterica
                                • 210 As sentenccedilas e os adaacutegios
                                • 211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes
                                • 213 Conclusotildees do capiacutetulo
                                  • CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ
                                    • 31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo
                                    • 32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas
                                    • 33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio
                                    • 34 Personificaccedilotildees femininas
                                    • 35 A deusa Pax
                                    • 36 A Paz enquanto saacutebia
                                    • 37 A Paz enquanto teoacuteloga
                                    • 38 A Paz enquanto viacutetima
                                    • 39 Conclusatildeo do capiacutetulo
                                      • CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                      • NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA COMENTADA
                                      • BIBLIOGRAFIA
                                        • Fontes primaacuterias
                                        • Traduccedilotildees da Queixa da Paz em ordem cronoloacutegica
                                        • Outras fontes e traduccedilotildees
                                        • Dicionaacuterios
                                        • Estudos
Page 3: A declamação Queixa da Paz de Erasmo de Rotterdam: …...É objetivo desta dissertação apresentar a primeira tradução direta do latim para o português brasileiro da declamação

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

NOME SANTOS Marcos Eduardo Melo dos

TIacuteTULO A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdam estudo

introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da

Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Letras Claacutessicas

Aprovado em 04082017

Banca Examinadora

Prof Dr Edelcio Gonccedilalvez de Souza (Presidente)

Instituiccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Profa Dra Ana Claacuteudia Romano Ribeiro

Instituiccedilatildeo Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP)

Profa Dra Leni Ribeiro Leite

Instituiccedilatildeo Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES)

Profa Dra Charlene Martins Miotti

Instituiccedilatildeo Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar aos meus pais Emanuel e Luiza Agrave minha esposa Susana meu

filho Felipe e aos meus irmatildeos Emanuel Luiz e Hugo

Agrave Professora Doutora Elaine Cristine Sartorelli que orientou incansavelmente cada

etapa do trabalho e sempre permitiu a liberdade para adoccedilatildeo ou natildeo de suas sugestotildees Devo

reconhecer todo seu empenho Guardarei admiraccedilatildeo pela sua competecircncia e gratidatildeo por tudo

que com ela aprendi

Natildeo poderia deixar ainda de manifestar minha gratidatildeo a tudo que o Professor Doutor

Pablo Schwartz Frydman e a Doutoranda Baacuterbara Costa e Silva ambos dedicados

pesquisadores das antigas declamaccedilotildees contribuiacuteram para o aprofundamento e a correccedilatildeo do

estudo introdutoacuterio Aos professores Paulo Vasconcellos e Pablo Schwartz Frydman que

fizeram vaacuterias sugestotildees pertinentes durante o exame de qualificaccedilatildeo tanto no texto

introdutoacuterio quanto na traduccedilatildeo

Ao corpo docente da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da

Universidade de Satildeo Paulo que com muito esmero excelecircncia e solicitude me

acompanharam nessa etapa especialmente aos Professores Doutores Joseacute Eduardo Lohner

Pablo Schwartz Frydman Maacutercio Suzuki Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Luiz Antocircnio

Lindo que tambeacutem concederam indicaccedilotildees durante o trabalho de conclusatildeo da disciplina que

com eles cursei ao longo do mestrado Natildeo poderia ser omisso em agradecer agrave banca

examinadora que com gentileza e competecircncia arguiram e indicaram modificaccedilotildees no

trabalho

Agrave amiga Professora Doutora Vanessa Guimaratildees Monteiro Ferreira da Costa que

tambeacutem fez observaccedilotildees significativas no que se refere agrave traduccedilatildeo Ao Professor Doutor Marc

van der Poel que gentilmente enviou por correio seus artigos e livros sobre a declamaccedilatildeo natildeo

disponiacuteveis agrave venda a fim de contribuir com esta pesquisa Aos professores de Liacutengua

Portuguesa meus amigos que incansavelmente me auxiliaram na redaccedilatildeo revisatildeo e

discussotildees de opccedilotildees de redaccedilatildeo nomeadamente Letiacutecia Mendes Ferri Luiz Santos Susana

Aparecida da Silva Regina Berti Sarah Barbosa e Weber Suhett

RESUMO

SANTOS Marcos Eduardo Melo dos A declamaccedilatildeo Queixa da paz de Erasmo de

Rotterdam estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue) 2017 228 f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo 2017

Este trabalho propotildee a primeira traduccedilatildeo feita diretamente do latim para o portuguecircs

brasileiro de uma das obras mais importantes do humanista Erasmo de Rotterdam a Querela

Pacis undique gentium eiectae profligataeque publicada em 1517 Tal obra constitui-se ao

lado de outros escritos como uma das mais importantes declamaccedilotildees realizadas durante o

Renascimento Nossa transposiccedilatildeo para o portuguecircs consideraraacute os recursos retoacutericos escritos

em latim aleacutem de conter notas explicativas e referecircncias histoacutericas mitoloacutegicas e

bibliograacuteficas sempre que estas se fizerem necessaacuterias para melhor compreensatildeo do texto

aleacutem de referecircncias a autores da Antiguidade assim como a outras obras do proacuteprio autor No

estudo introdutoacuterio dessa obra de gecircnero declamatio renascentista procurar-se-aacute analisar o

texto erasmiano segundo a conceituaccedilatildeo da retoacuterica tradicional antiga sobretudo dos autores

do periacuteodo imperial quando a praacutetica das declamaccedilotildees escritas em grego e latim se sobrepocircs agrave

oratoacuteria sem espaccedilo em razatildeo do decliacutenio senatorial Com base nas fontes antigas e nos

estudos recentes pretendemos identificar as semelhanccedilas e diferenccedilas entre a retoacuterica dos

autores romanos e a erasmiana nela concretizada Tambeacutem seratildeo investigadas as estrateacutegias

da argumentaccedilatildeo persuasiva sejam epidiacuteticas sejam deliberativam em favor da paz e em sua

polecircmica diatribe contra a guerra

Palavras-chave retoacuterica recepccedilatildeo dos claacutessicos humanismo Erasmo de Rotterdam

declamaccedilatildeo

ABSTRACT

SANTOS Marcos Eduardo Melo dos The Complaint of Peace declamation by

Desiderius Erasmus introduction and translation (Bilingual edition) 2017 228 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo

2017

This paper proposes the first translation directly from Latin into Brazilian Portuguese

of one of the most important works by the humanist Desiderius Erasmus Querela Pacis

undique gentium eiectae profligataeque published in 1517 This work constitutes one of the

most important declamations written during the Renaissance Our transposition to Portuguese

will consider rhetorical resources as well as containing explanatory notes about historical

mythological and bibliographical references whenever these are necessary for a better

understanding of the text such as references to direct or indirect allusions to writings of

Antiquity or other works by the author himself In the introductory study of this work of the

Renaissance declamatio genre we will analyze the Erasmian text according to the ancient

traditional Greco-Roman concept of Rethoric especially in the authors of the imperial period

when the practice of declamations written in Greek and Latin overlapped the oratory without

the ancient status because of the senatorial decline Based on ancient sources and recent

studies we intend to identify the similarities and differences between the rhetoric of classic

Latin authors and the erasmian rhetoric embodied in the Complaint of Peace We will also

investigate the strategies of persuasive argumentation whether epididical or deliberative in

favor of peace and in its controversial diatribe against war

Keywords rhetoric classical reception humanism Desiderius Erasmus declamation

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 1

Estrutura do estudo introdutoacuterio 4

Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa 5

CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO

RENASCIMENTO 11

11 Origem grega 11

111 Definiccedilatildeo 11

112 Principais autores e escritos em grego 14

12 A praacutetica latina 15

13 As fontes latinas 17

131 Discussatildeo terminoloacutegica 18

132 O contexto republicano e o imperial 19

14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos 22

141 A Retoacuterica a Herecircnio 22

142 Ciacutecero 22

143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho 23

144 A suasoacuteria em Secircneca 28

145 Quintiliano 30

15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento 35

16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos 39

17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas 42

171 Lourenccedilo Valla 42

172 Thomas More 44

18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas 45

19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas 47

110 Conclusotildees do capiacutetulo 48

CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ 51

21 Definiccedilotildees erasmianas 51

22 Temas 53

23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes 56

231 Isoacutecrates 56

232 Plutarco 57

233 Luciano 57

234 Libacircnio 58

24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo 60

25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas 62

26 Declamaccedilatildeo escrita e integral 63

27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico 64

28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz 68

29 A disposiccedilatildeo retoacuterica 69

210 As sentenccedilas e os adaacutegios 73

211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes 77

212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio 78

213 Conclusotildees do capiacutetulo 81

CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ 83

31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo 83

32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas 83

33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio 85

34 Personificaccedilotildees femininas 87

35 A deusa Pax 92

36 A Paz enquanto saacutebia 95

37 A Paz enquanto teoacuteloga 97

38 A Paz enquanto viacutetima 100

39 Conclusatildeo do capiacutetulo 101

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 103

NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA

COMENTADA 111

BIbLIOGRAFIA 185

Fontes primaacuterias 185

Traduccedilotildees da Queixa da Paz em ordem cronoloacutegica 185

Outras fontes e traduccedilotildees 187

Dicionaacuterios 189

Estudos 189

1

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute objetivo desta dissertaccedilatildeo apresentar a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o

portuguecircs brasileiro da declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo (Querela Pacis) obra de autoria do

humanista holandecircs Erasmo de Rotterdam1 escrita ao longo do ano de 1516 e publicada em

novembro de 1517 Esta seraacute precedida de um estudo introdutoacuterio que procuraraacute ressaltar o

uso de recursos retoacutericos em defesa da paz e de criacutetica agrave guerra Aleacutem de identificar o modo

pelo qual se fez uso dos autores antigos na ldquoQueixa da Pazrdquo verificaremos as colaboraccedilotildees

mais relevantes de Erasmo para a retoacuterica segundo a antiga tradiccedilatildeo escrita em grego e e

latim Como objetivos especiacuteficos o presente trabalho visa aleacutem de propor uma nova

traduccedilatildeo apresentar uma introduccedilatildeo e notas atualizadas segundo os recentes estudos

acadecircmicos assinalar a ocorrecircncia de referecircncias a oradores latinos assim como daqueles

declamadores do periacuteodo imperial romano que escreveram em grego identificar os elementos

da retoacuterica deliberativa erasmiana em defesa da paz do ponto de vista do gecircnero declamaccedilatildeo

(declamatio)

Este trabalho de pesquisa justifica-se pela contribuiccedilatildeo da primeira traduccedilatildeo direta do

latim para o portuguecircs brasileiro da ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em versatildeo biliacutengue ou seja

com o texto latino em paralelo com a traduccedilatildeo e a uacutenica precedida de um estudo introdutoacuterio

especiacutefico acerca do ponto de vista do gecircnero a que o texto pertence Essa traduccedilatildeo fornece a

aos pesquisadores lusoacutefonos um texto para o entendimento da concepccedilatildeo e do uso da

declamaccedilatildeo por Erasmo que aleacutem de ser um dos mais destacados autores humanistas que

ldquodirecionaram suas obras mais importantes para a educaccedilatildeo literaacuteriardquo (Mack 1993 p 303)

escreveu quatorze obras nesse gecircnero inclusive dentre elas algumas de suas mais lidas

traduzidas e comentadas como eacute o caso do ldquoElogio da Loucurardquo Essa traduccedilatildeo

disponibilizaraacute aos pesquisadores lusoacutefonos a traduccedilatildeo de uma das mais difundidas obras de

Erasmo de Rotterdam em diversos pontos de vista tais como recepccedilatildeo dos antigos pelos

autores cristatildeos renascentistas a permanecircncia dos gecircneros antigos na prosa neolatina e sua

atualizaccedilatildeo por meio da imitatio recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga no seacuteculo XVI uso de

1 Sobre a referecircncia agrave cidade de Erasmo (Rotterdam Roterdatildeo Roterdatilde Roterdam) encontrei variantes

ortograacuteficas em textos acadecircmicos lusos e brasileiros Optei pela versatildeo ldquoRotterdamrdquo com base no ldquoManual de

Redaccedilatildeo Oficial e Diplomaacutetica do Itamaratyrdquo (Brasil Ministeacuterio das Relaccedilotildees Exteriores Manual de redaccedilatildeo

oficial e diplomaacutetica do Itamaraty 2016 p 166)

2

recursos retoacutericos no gecircnero deliberativo e finalmente trata-se de um texto fundamental para

a compreensatildeo da filosofia irecircnica de Erasmo ou seja ao conjunto de argumentos filosoacuteficos

que Erasmo alinha a favor da paz e do qual deriva a moderna concepccedilatildeo de paz em sua

dimensatildeo interestatal

O texto latino por noacutes utilizado foi o ldquoQuerela Pacis undique gentium eictae

profiligataequerdquo disponiacutevel na ediccedilatildeo criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera

omnia recognita et adnotatione critica instructa notisque illustrata Amsterdam North-

Holland 1969-2001) coleccedilatildeo cujo volume com o texto em estudo foi publicado em 1977

Como fontes de conceituaccedilatildeo da arte retoacuterica servimo-nos das obras dos autores latinos e

gregos que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo especialmente aqueles que

foram certamente conhecidos por Erasmo Conforme Chomarat (1981 p 990) devem-se

considerar alguns autores que influenciaram Erasmo na redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

especialmente os que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo Especial atenccedilatildeo

deve ser dada aos autores que aleacutem de teorizarem sobre o gecircnero tambeacutem o praticaram

Conforme a observaccedilatildeo de Franco Gaeta (1968 p 13) procurar-se-aacute a fundamentaccedilatildeo em

ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano assim como nas ldquoControveacutersiasrdquo e ldquoSuasoriasrdquo de

Secircneca o velho e no ldquoSobre a Clemecircnciardquo de Secircneca o Jovem Nesse grupo de autores

antigos devemos ainda acrescer Ciacutecero Plutarco Libacircnio e Luciano Os textos destes autores

foram citados por Erasmo que aleacutem de tradutor tambeacutem era editor e que teve uma

contribuiccedilatildeo significativa para a introduccedilatildeo dos meacutetodos criacuteticos na histoacuteria da filologia

conforme o consenso de vaacuterios autores da aacuterea (Bentley 1977 p 9 Prete 1965 p 259 Prete

1970 p 18 Payne 1974 p 54)

Segundo evidecircncias internas e externas apontadas em um estudo das epiacutestolas

erasmianas realizado por Beauduin (1991 p 35) essa obra foi escrita em Lovaina Beacutelgica

entre novembro e dezembro do ano de 1516 a pedido do grande chanceler da Borgonha Joatildeo

Sauvage e dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Nesse mesmo ano

Erasmo havia sido nomeado conselheiro do priacutencipe Carlos de Borgonha que logo se tornaria

Carlos de Espanha (Margolin 1992 p 909) Foi publicada em 1517 e reeditada em 1518

Como evento histoacuterico proacuteximo que pode ser considerado o principal motivo da redaccedilatildeo desse

manifesto em favor da paz deve-se destacar que estava em curso a guerra da Liga de

Cambrai a qual se estendeu ateacute os enfrentamentos das guerras da Liga Santa (1508-1516)

3

Que este tenha sido de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa

ldquoQueixa da Pazrdquo prova-o a menccedilatildeo a tais fatos histoacutericos em uma de suas correspondecircncias a

Joatildeo Botzheim (1523)2 Da mesma forma Erasmo alude indiretamente ao tema no final da

declamaccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo afirmava na epiacutestola a Joatildeo

Botzheim que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma declamaccedilatildeo (Chomarat 1987 p 997) pretendemos

discutir no estudo introdutoacuterio sobre as caracteriacutesticas desse gecircnero Para isto natildeo somente

verificaremos sua gecircnese atribuiacuteda aos autores gregos (como μελέηη) e sua recepccedilatildeo pelos

autores latinos (como declamatio) mas em que medida a declamaccedilatildeo erasmiana enquadra-se

nesse gecircnero antigo

Em geral seu formato antigo foi definido por Bonner (1949 p 13) Wintterboton

(1980 p 24) e Schwartz (2004 p 21) como um discurso escrito como exerciacutecio escolar

acerca de uma causa fictiacutecia com a finalidade de treino em temas da retoacuterica deliberativa ou

judiciaacuteria Dentre suas caracteriacutesticas o presente estudo ressalta a personificaccedilatildeo que nas

declamationes renascentistas especialmente em Erasmo foi praticada de uma forma

inovadora em comparaccedilatildeo com as antigas Enquanto que naquelas antigas ou seja produzidas

nos seacuteculos I a C a I d C As personagens satildeo humanas e fictiacutecias o que denota certa

modificaccedilatildeo para o gecircnero em estudo A novidadade das declamaccedilotildees renascentistas

especialmente em Erasmo seria a inserccedilatildeo da fala (prosopopeia) de personagens abstratas

como a Paz na ldquoQueixa da Pazrdquo e a Loucura em seu ldquoElogiordquo

Por outro lado destaca-se a ficccedilatildeo como estrateacutegia para expressar ideias de forma livre

em uma sociedade que natildeo prezava a liberdade de expressatildeo e a caracterizaccedilatildeo com atributos

sociais e psicoloacutegicos do universo feminino nessas personificaccedilotildees erasmianas Tal

caracterizaccedilatildeo sem o uso de voz narrativa como eacute natural na declamaccedilatildeo mas atraveacutes do

discurso direto apresenta a paz como mulher e matildee apelando agraves emoccedilotildees do leitor a fim de

cativaacute-lo para a causa irecircnica pretendida pelo autor Conveacutem portanto analisar a ldquoQueixa da

Pazrdquo sob a perspectiva da recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo de um modo semelhante ao que

era praticado pelos autores antigos e predicado nos manuais de retoacuterica latina

2 Cf Erasmo de Rotterdam A Johann von Botzheim in Correspondence of Erasmus Letters 1252 to 1355

1522 to 1523 Trad James Martin Estes Toronto University Toronto Press 1989 p 319

4

Estrutura do estudo introdutoacuterio

O estudo introdutoacuterio estaacute composto de trecircs capiacutetulos os quais procuram apresentar a

ldquoQueixa da Pazrdquo em sua relaccedilatildeo com o gecircnero literaacuterio que inspirou sua forma a declamaccedilatildeo

Assim o primeiro capiacutetulo o caracteriza entre alguns autores antigos que escreveram sobre o

ele ou utilizaram-se dele no periacuteodo compreendido entre os seacuteculos I a C e I d C Aleacutem do

recorte do periacuteodo e dos autores seraacute dada atenccedilatildeo especial agraves referecircncias agrave declamaccedilatildeo nas

obras de Ciacutecero na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo nos Prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o

Velho e na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano que ilustram as discussotildees das

caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo que presentemente consideramos

O segundo capiacutetulo discorre sobre a praacutetica deste gecircnero por Erasmo A discussatildeo se

inicia com uma descriccedilatildeo do seu uso entre os autores do Renascimento sobretudo daqueles

que podem ter influenciado o roterdamecircs na escrita das suas declamaccedilotildees Seguir-se-aacute um

elenco das declamaccedilotildees erasmianas e um estudo da questatildeo de espeacutecies de declamaccedilotildees suas

relaccedilotildees diretas com outros gecircneros e a ocorrecircncia de prosopopeias a fim de estabelecermos

comparaccedilotildees

O terceiro capiacutetulo trata da ldquoQueixa da Pazrdquo em comparaccedilatildeo com o gecircnero

declamaccedilatildeo praticado e teorizado pelos autores antigos conforme se discorreu no capiacutetulo

primeiro assim como algumas datadas do Renascimento ou de autoria do proacuteprio Erasmo

Aqui procuraremos ainda demonstrar como e em que medida esta obra pertence agrave linhagem

da declamaccedilatildeo tal como esta era prescrita e praticada pelos autores dos seacuteculos XV e XVI

Tais comparaccedilotildees visam sobretudo a dois pontos primeiro tratar a respeito do subgecircnero da

ldquoQueixa da Pazrdquo ao analisar os argumentos a favor de classificaacute-la como do epidiacutetico ou

como do deliberativo segundo uma vez que os autores do Renascimento utilizavam

intencionalmente os princiacutepios da retoacuterica antiga para a invenccedilatildeo de seus escritos

discutiremos a caracterizaccedilatildeo da Paz enquanto prosopopeia abstrata e feminina como

estrateacutegia de persuasatildeo em conformidade com as regras de retoacuterica antiga recebida no

Renascimento

5

Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa

Antes de entrar no objeto proposto conveacutem pontuar o estado dos estudos acadecircmicos

acerca do gecircnero declamaccedilatildeo e mais especificamente da sua recepccedilatildeo entre os escritores

humanistas A produccedilatildeo de artigos acadecircmicos ou dissertaccedilotildees nesse recorte temaacutetico natildeo eacute

numericamente ampla mas tem sido enriquecida por especialistas voltados para pesquisas

sobre a declamaccedilatildeo ou os autores que a ela se dedicaram Ao iniciarmos o cotejo das versotildees

da ldquoQueixa da Pazrdquo verificamos que se encontram disponiacuteveis para consulta on-line seis das

vinte e cinco ediccedilotildees desta obra datadas do seacuteculo XVI Aleacutem dessas ediccedilotildees latinas foi

possiacutevel encontrar uma traduccedilatildeo francesa do seacuteculo XVI La Complainte de la Paix

Tradution de le Chevalier de Berquin (1525) Verificou-se ademais que haacute uma ediccedilatildeo

criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera omnia recognita et adnotatione critica instructa

notisque illustrata Amsterdam North-Holland 1969-2001) e dezenas de traduccedilotildees em inglecircs

francecircs italiano alematildeo e portuguecircs cuja lista encontra-se na bibliografia e da qual

salientamos a existecircncia de doze ediccedilotildees nos uacuteltimos quinze anos em cinco vernaacuteculos

ocidentais Deve-se dizer que muitas destas natildeo parecem ser traduzidas diretamente do latim

Dessa profusatildeo de fontes e traduccedilotildees infere-se que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma obra que natildeo

somente obteve grande difusatildeo durante o seacuteculo XVI Ainda hoje eacute umas das obras de

Erasmo mais difundidas equiparavelmente ao ldquoElogio da Loucurardquo e o ldquoDe Copiardquo O

primeiro dispensa apresentaccedilatildeo no caso do segundo conveacutem lembrar que ldquoseguindo os

modelos de Ciacutecero e Quintiliano e tendo como principal objetivo a invenccedilatildeo foi

provavelmente o manual mais estudado de todo o Renascimentordquo (Mack 1993 p 305)

contando com mais de cento e cinquenta ediccedilotildees somente na centuacuteria de sua publicaccedilatildeo Esta

difusatildeo denota a relevacircncia e a influecircncia desse autor para a recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga em

seu tempo Muitos dos princiacutepios retoacutericos consignados nesse manual satildeo postos em praacutetica

na declamaccedilatildeo que pretendemos analisar Haacute tambeacutem a ediccedilatildeo das epiacutestolas de Erasmo

realizada sob a direccedilatildeo de Allen (1906) e que satildeo uacuteteis para o entendimento da compreensatildeo

do proacuteprio autor acerca da sua obra das circunstacircncias histoacutericas que inspiraram a redaccedilatildeo do

discurso da Paz e dos conceitos que potildee em praacutetica nessa declamaccedilatildeo

Embora muitas destas ediccedilotildees (Bagdat 1924 Von Balthasar 1945 Dolan 1964

Philip 1967 Gaeta 1968 Christian 1968 Radice 1968 Telle 1978 Hannermann 1985

Van Leeuwen 1986 Levi 1986 Chomarat 1991 e 1974 Margolin 1992 Carena 1995

6

Pinto 1999 Cinti 2005 Labre 2005 Jovella 2008 Bellacasa 2008 Hoffmann 2013)

apresentem introduccedilotildees agrave ldquoQueixa da Pazrdquo ou a outras obras de Erasmo (Sartorelli 2013

Saacutenchez Salor 2011 King e Rix 2007) deve-se dizer que embora estas apresentem alguns

dados que natildeo podem ser preteridos e que foram considerados no presente estudo estes textos

introdutoacuterios estatildeo muitas vezes limitados agraves regras e aos objetivos editoriais restringindo-se

a informaccedilotildees biograacuteficas ou histoacutericas sem anaacutelises aprofundadas do texto seu gecircnero ou

recepccedilatildeo

Aleacutem das introduccedilotildees das traduccedilotildees verificou-se a existecircncia de apenas um estudo

acadecircmico na aacuterea de literatura especiacutefico sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo (Bagdat 1924) assim

como o artigo de Chomarat (1974) e um dos capiacutetulos do seu livro ldquoGrammaire et Rheacutetorique

chez Erasmerdquo (1981) Foi entatildeo necessaacuterio incrementar a pesquisa com artigos acadecircmicos e

livros publicados mais recentemente por editoras universitaacuterias que tratam sobre temas

indiretamente relacionados com o objeto de pesquisa ou seja sobre o autor (Erasmo de

Rotterdam) sobre a obra em estudo sobre o gecircnero no qual foi escrita a obra (declamaccedilatildeo) e

sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga entre os humanistas Dada a falta de estudos que tratam

diretamente sobre a Queixa da Paz natildeo foi possiacutevel apresentar um estado da questatildeo no

sentido a que se estaacute habituado na academia mas apenas algumas obras que apresentam

relaccedilatildeo parcial com nosso objetivo

Tendo diante de si estes livros ou artigos eacute possiacutevel classificaacute-los nos seguintes

grupos (grupo 1) sobre a retoacuterica e a declamaccedilatildeo antiga (grupo 2) sobre a recepccedilatildeo da

retoacuterica e da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 3) sobre estas em Erasmo Dadas as

limitaccedilotildees temporais do mestrado assim como a dificuldade de acesso a alguns livros natildeo

disponiacuteveis nas bibliotecas brasileiras os livros capiacutetulos de livros e artigos abaixo

catalogados natildeo esgotam a bibliografia sobre as mateacuterias em questatildeo como eacute o caso de

muitas obras de origem francesa que natildeo foi possiacutevel acessar mas que natildeo satildeo pertinentes

para o presente estudo uma vez que tratam da recepccedilatildeo da obra de holandecircs em outros autores

a partir do seacuteculo XVI

Ainda que nossa intenccedilatildeo primeira fosse atentar para a declamaccedilatildeo latina natildeo era

possiacutevel preterir alguns estudos sobre a grega (Russell 2009) e sobre a caracterizaccedilatildeo da

mulher nesta (Gruber 2008) uma vez que se fazem pertinentes natildeo somente para a

consideraccedilatildeo da romana mas tambeacutem daquela praticada por Erasmo que as conhecia ainda

7

na forma de manuscrito Entre os estudos sobre a declamaccedilatildeo latina destacam-se o de Wolf

(2013) Van Mal-Maeder (2007) Winterbottom (1980 e 2006) Shenk (1982) Mendelson

(1994) Clarke (1996) Bonner (1949 e 1966) e Schwartz (2000 e 2004) Tambeacutem se tornam

pertinentes alguns estudos especiacuteficos sobre as declamaccedilotildees como o de Bonner (1966) sobre

Luciano o artigo de Schwartz (2000) sobre esse gecircnero sob Augusto os dois artigos de

Bayley sobre as ldquoDeclamationes maioresrdquo e ldquominoresrdquo atribuiacutedas a Quintiliano (1984 e

1989) os artigos de Clark (1957) e Dupont (1997) sobre sua praacutetica escolar e os estudos de

Marrou (1948) de Vasconcelos (2000 e 2002) de Gibson (2004) e de Manoel (2014) sobre as

progymnasmata o estudo acerca da relaccedilatildeo do contexto histoacuterico com as controveacutersias escrito

por Mendelson (1994) o artigo com o recorte sobre as ldquocrianccedilas abandonadasrdquo nas

declamaccedilotildees (Bernstein 2009) o artigo sobre a declamaccedilatildeo em Secircneca (Edward 1928

Sussman 1972 Fairweather 1981 Schwartz 2004 Bloomer 2010 Costrino 2010) ou

ainda outros autores como em Taacutecito (Pereira 2013) em Quintiliano (Reali e Turazza 2012)

e em Luciano (Thompson 1965 e 1974) Dentre este alguns natildeo somente foram lidos por

Erasmo mas tambeacutem traduzidos por ele do grego para o latim

Sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 2) destacam-se os artigos

de Kinney (1976) e Vasoli (2008) sobre a retoacuterica humanista Devem-se ressaltar ainda os

textos sobre as declamaccedilotildees de Erasmo analisados por Giazzi (2008) Tunberg (1996 2006 e

2013) os jaacute mencionados escritos de Chomarat (1974 e 1981) e Van der Poel (1987 e 1989)

Aleacutem disso Van der Poel publicou artigos sobre a declamaccedilatildeo em Agripa e Erasmo (Van der

Poel 1994 e 1997) e em Cardano (Vander Poel 2005) Entre os estudos sobre as declamaccedilotildees

de Erasmo em particular destaca-se a referecircncia de Grimal (1994) sobre a declamaccedilatildeo

ldquoSobre a morterdquo de Erasmo as introduccedilotildees ao ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo (Pigman 1977

Sartorelli 2015) ao ldquoElogio do Matrimocircniordquo de Leushuis (2004) e Sowards (1958 e 1982)

sobre o ldquoElogio da Loucurardquo (Sartorelli 2013 Moya Bedoya 1994) Sobre a influecircncia de

Valla em Erasmo haacute o artigo de Bentley (1977) assim como os estudos de Schwahn (1928) e

Ginzburg (2004) sobre a declamaccedilatildeo ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo Temos ainda os estudos de

Fox (1983) Baumann (1985) e Corral (2012) sobre o ldquoTiranicidardquo de More os de Logan

(2003) e Miller (1994) sobre a ldquoUtopiardquo e por fim sobre o ldquoElogio de Nerordquo de Cardano o

estudo de Biffino (2002)

8

Sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga em Erasmo (grupo 3) verificamos a existecircncia de

capiacutetulos de livros e artigos de Murphy (1974 1983 2005 e 2012) Bataillon (1977 e 1982)

Margolin (1973 1977 1992 1987 1993 1995 1997 e 1998) Chomarat (1974 e 1981)

Pigman (1980 e 1990) Green e Murphy (2006) Mack (1993 1996 e 2011) Sartorelli (2001

2009 2012 2013 e 2015) Rummel (1985 1990 1996 1998 1999 e 2000) Weiland (1988)

Pinto (2006) e Logan (1994) Haacute alguns estudos sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga no

Renascimento que se referem marginalmente sobre Erasmo como o de Burke (2003) e os

artigos de Kinneyy (2004) Goacutemez Cervantes (2007) Alexandre Juacutenior (2008) Hernaacutendez

Guerrero e Garciacutea Tejera (1992) e Gianotti (2008) Ainda nesse grupo destaca-se o artigo

sobre ldquodeclamaccedilatildeo e retoacutericardquo de Gunderson (2009) Tendo como recorte a obra de Erasmo

temos Sloane (1991 e 2004) e Pinto (2006) Haacute ainda sobre a saacutetira em Erasmo feita por Story

(2012) Kennedy (1980) Hoffmann (1994) e Boyle (2004) tambeacutem apresentam artigos sobre

a relaccedilatildeo da filologia e da retoacuterica erasmiana com a teologia e a filologia biacuteblica Ainda no

recorte do Renascimento destaca-se o estudo filosoacutefico sobre a paz feito por Cailes (2012)

no qual compara as teorias de Erasmo e Machiavel e os estudos filosoacuteficos acerca do

pacifismo de Erasmo realizados por Meulen (1990) Hoffmann (2000) Kinsella e Carr

(2007) Martiacuten (2007) Dungen (2008) e Christi (2009) A respeito de outras questotildees

filosoacuteficas ou literaacuterias podemos citar as dissertaccedilotildees ou teses defendidas na proacutepria

Universidade de Satildeo Paulo a de Salum (2009) a de Nassaro (2010) e a de Rodrigues (2012)

Embora natildeo seja o foco principal da pesquisa tivemos o cuidado de consultar algumas

biografias Entre estas acessamos duas por Bainton (1969) e Faludy (1970) Minnich e

Meissner (1978) Boeft (1989) Bietenholz (1985 e 2009) e Vredeveld (1993) escrevem textos

de iacutendole histoacuterico-biograacutefica Meacutenager (2000) redigiu um artigo acerca da posiccedilatildeo poliacutetica

neutra de Erasmo face agrave poliacutetica francesa e espanhola Merece especial destaque o trabalho

biograacutefico de Beauduin (1991) com base na epistolografia erasmiana Haacute tambeacutem estudos

histoacutericos sobre a influecircncia erasmiana no seacuteculo XVI (Rowland 1987)

No tocante agrave recepccedilatildeo que os escritos de Erasmo obtiveram sem pretender esgotar o

universo desse gecircnero de pesquisa e que natildeo se configura como essencial para na pesquisa

como eacute o caso da ampla produccedilatildeo francesa tivemos acesso ao artigo sobre sua influecircncia em

Joatildeo Fletcher escrito por Waith (1951) em Joatildeo Bodin conforme artigo de Remer (1994)

em Bartolomeu de las Casas segundo Torres (1993) na Alemanha do seacuteculo XVI por Tracy

9

(1969) na literatura francesa em artigo de Phillips (1971) no seacuteculo XIX por Mansfiel

(1968) e sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo romana no seacuteculo XX por Gunderson (2003)

Destacam-se alguns estudos temaacuteticos como o texto de Whers (2004) sobre a eacutetica

erasmiana sobre a recepccedilatildeo do ldquoAdversus Jovianumrdquo em Erasmo escrito por Pabel (2002)

sobre a influecircncia de Jerocircnimo no holandecircs em artigo de Sloane (2004) e sobre a influecircncia

da ldquoArte Poeacuteticardquo de Horaacutecio sobre os ldquoAdaacutegiosrdquo publicado por Magnien (2012) Como

analisaremos a caracterizaccedilatildeo da paz enquanto personagem feminina eacute necessaacuterio considerar

o livro de Rummel (1996) sobre a mulher em Erasmo e os artigos sobre a educaccedilatildeo feminina

publicado por Soward (1982) por Cousins (2004) e por Leushuis (2004) Sobre a ficccedilatildeo nas

declamaccedilotildees temos o estudo de van Mal-Maeder (2007) que inclusive foi comentada em

resenha por Bloomer (2009) Entre estes trabalhos deve-se levar em consideraccedilatildeo a questatildeo

sobre a oposiccedilatildeo dos humanistas aos escolaacutesticos (Bejczy 2001 Rummel 1998)

Esta pesquisa verificou portanto com a exceccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de Bagdat (1924) e o

artigo de Chomarat (1974) o qual tratou especificamente sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto

de vista da aacuterea de Letras a inexistecircncia de artigo acadecircmico ou livro especiacutefico sobre o tema

em questatildeo ou seja sobre a recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo Encontramos apenas seu

tratamento de modo sucinto em Chomarat (1981) e Van der Poel (1989) Por outro lado

verificou-se a necessidade e a relevacircncia acadecircmica do estudo das declamaccedilotildees de Erasmo e

de consideraccedilotildees mais especiacuteficas sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto de vista da recepccedilatildeo dos

antigos Como vaacuterios autores mencionam este gecircnero e a proacutepria declamaccedilatildeo como exemplo

deve-se considerar que devido ao caraacuteter marginal de muitos comentaacuterios sem a

especificidade de uma referecircncia direta agrave declamaccedilatildeo em comento ou ao tratar do pacifismo

erasmiano sem muitas vezes levar em consideraccedilatildeo o gecircnero literaacuterio da obra torna-se

pertinente um texto especiacutefico sobre o gecircnero literaacuterio sua personificaccedilatildeo feminina da paz

sob o enfoque da recepccedilatildeo dos autores antigos a qual ainda eacute ineacutedita no mundo acadecircmico

Ademais com exceccedilatildeo do capiacutetulo de Chomarat (1981) e apesar da importacircncia da retoacuterica

antiga para os autores do Renascimento verificamos a inexistecircncia de textos acadecircmicos

especiacuteficos sobre a retoacuterica na ldquoQueixa da Pazrdquo motivo pelo qual se verifica mais um ponto

de novidade no presente estudo

10

11

CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO

RENASCIMENTO

O presente capiacutetulo trata da definiccedilatildeo conceitual e das diferenccedilas essenciais e

terminoloacutegicas do gecircnero declamaccedilatildeo (em latim declamatio em grego μελέηη) entre alguns

autores antigos gregos e latinos especialmente nos tempos finais da Repuacuteblica e do iniacutecio do

Impeacuterio Entre esses autores antigos daremos atenccedilatildeo especial agrave forma como o assunto

aparece nas obras de Ciacutecero na passagem pertinente da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo em alguns

prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o Velho e por fim em Quintiliano em razatildeo da

influecircncia da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo sobre os humanistas a partir da redescoberta de um de

seus manuscritos na iacutentegra no iniacutecio do seacuteculo XV Apoacutes uma descriccedilatildeo do uso da

declamaccedilatildeo entre as ediccedilotildees dos autores antigos que escreveram declamaccedilotildees ou teorias sobre

a declamaccedilatildeo e foram editados ou traduzidos no Renascimento nosso enfoque recairaacute

especialmente sobre aqueles autores humanistas que precederam Erasmo na recuperaccedilatildeo do

gecircnero

11 Origem grega

111 Definiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo em carta a Joatildeo Botzheim datada de

1523 classificou a Queixa da Paz como uma declamaccedilatildeo e de que haacute consenso entre

estudiosos como Chomarat (1981 p 997) que confirmam esta classificaccedilatildeo eacute oportuno

considerar o que vem a ser exatamente uma declamaccedilatildeo segundo a conceituaccedilatildeo dos autores

antigos imitados pelos humanistas Em conferecircncia ainda natildeo publicada Sartorelli assim

define a declamaccedilatildeo in genere

Na Antiguidade as declamationes eram discursos escritos como exerciacutecio

escolar acerca de uma causa fictiacutecia apenas para aquecimento ou treino nos

cursos de oratoacuteria Tratava-se portanto de preparaccedilatildeo para a ocasiatildeo em que a

fala de fato se faria necessaacuteria (o tribunal a assembleia) e uma demonstraccedilatildeo

de habilidade O exercitar-se era o essencial para manter-se bdquoem forma‟ para

um puacuteblico cujos ouvidos estavam acostumados ao mais alto niacutevel de

eloquecircncia e que natildeo deixaria passar um deslize por parte daquele que

discursava (Sartorelli 2013 reproduccedilatildeo de conferecircncia)

12

Deve-se recordar que alguns poucos exerciacutecios similares agrave declamaccedilatildeo (a μελέηη)

ainda que tais discursos sejam duvidosos em relaccedilatildeo agrave sua finalidade escolar teriam sido

praticados pelos sofistas entre os quais podem-se citar o Elogio a Helena ou a Defesa de

Palemedes cuja autoria foi atribuiacuteda a Goacutergias e que satildeo datados do seacuteculo IV a C ou ainda

as Tetralogias de Antifonte (Winterbottom 2006 p 76 Costrino 2010 p 12 Kennedy

1980 p 28) Conservaram-se ainda alguns papiros de declamaccedilotildees gregas datadas do seacuteculo

III a C consideradas as mais antigas declamaccedilotildees conservadas (Russel 2009 p 6)

Nesse particular Kennedy (1980 p 103) ressaltou a importacircncia do manual sobre

declamaccedilotildees do gecircnero epidiacutetico Este eacute composto de oito capiacutetulos preservados entre as obras

de Dioniacutesio de Halicarnaso mas escrito por um autor anocircnimo do terceiro seacuteculo traz

orientaccedilotildees retoacutericas para a composiccedilatildeo de Elogios para os festivais casamentos aniversaacuterios

e exortaccedilotildees para os jogos oliacutempicos Entretanto ldquoos mais extensos tratados com a forma

epidiacutetica da declamaccedilatildeo se concentram em dois trabalhos atribuiacutedos a Menandro de

Laodiceia um reacutetor do terceiro seacuteculordquo (Kennedy 1980 p 103)

Apesar da heterogeneidade dos corpora declamatoacuterios gregos aquelas declamaccedilotildees

tecircm em comum o fato de simularem a defesa de uma causa fictiacutecia baseada em

acontecimentos histoacutericos ou mitoloacutegicos Contudo no que se refere agrave precisatildeo das datas dos

nomes e a situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se

ali imprecisotildees pois sua principal finalidade era como dissemos a praacutetica da oratoacuteria e a

persuasatildeo dos ouvintes (Wolf 2013 p 270) Gibson (2004 p 105-106) todavia demonstra

que ao menos no manual de Heacutelio Teatildeo havia certa preocupaccedilatildeo com a historicidade das

declamaccedilotildees (Winterbottom 1980 v) pois o discurso deveria ser adequado como um

ldquoexerciacutecio histoacutericordquo harmocircnico com a caracterizaccedilatildeo das personagens e com os dados

narrativos (Gibson 2004 p 105-106)

Usando as tradicionais categorias dos trecircs gecircneros tambeacutem presentes em Aristoacuteteles

(Retoacuterica 14) algumas dessas declamaccedilotildees foram classificadas como judiciais uma vez que

tinham como meta defender ou atacar algueacutem no ambiente forense procurando influenciar na

elaboraccedilatildeo de uma sentenccedila de culpa ou absolviccedilatildeo (Fairwethear 1981 p 545) Outras por

outro lado poderiam pertencer aos gecircneros epidiacutetico e deliberativo jaacute que tambeacutem versavam

sobre temas histoacuterico-mitoloacutegicos seja para aconselhar ou desaconselhar em uma deliberaccedilatildeo

seja para elogiar ou vituperar (Gibson 2004 p 103) Segundo o estudo de Russell (2009 p

13

4) como exemplos de declamaccedilotildees gregas do gecircnero deliberativo (suasoacuteria) podem-se

mencionar as de Polemon de Laodiceia e Adriano de Tiro Para ele (2009 p 6) as

declamaccedilotildees de Coriacutecio de Gaza teriam sido ldquoas melhores desses autoresrdquo pois apresentam

ldquoum estilo virtuoso capaz de escrever com elegacircncia e com um aacutetico claacutessico em total

observacircncia das claacuteusulas do seu proacuteprio tempordquo

Alguns pontos gerais na declamaccedilatildeo claacutessica grega merecem ser considerados em

detalhes em razatildeo da relevacircncia do uso da personificaccedilatildeo no discurso irecircnico erasmiano No

tocante agrave caracterizaccedilatildeo das personagens envolvidas nas declamaccedilotildees gregas Russell (2009

p 87-90) afirma que os elementos do ecircthos retoacuterico estavam presentes nas declamaccedilotildees pois

estas levavam em conta a adequaccedilatildeo da imagem de si mesmo as particularidades da audiecircncia

e a situaccedilatildeo psicoloacutegica e social dos oponentes O autor (Ibid p 92-93) apresenta a

declamaccedilatildeo 33 de Libacircnio como um dos exemplos de caracterizaccedilatildeo completa de uma

personagem feminina atraveacutes da narraccedilatildeo (katastasis) minuciosa dos elementos da vida

domeacutestica Aleacutem disso Russell (Ibid p 83) percebeu uma relaccedilatildeo estreita de alguns

elementos da declamaccedilatildeo grega com os da comeacutedia tendo ainda notado (Ibid p 102) que as

declamaccedilotildees gregas tambeacutem tinham um epiacutelogo harmonioso com o tema presente nos

primeiros paraacutegrafos demonstrando que esta deveria ser uma das suas virtudes Por fim

conveacutem destacar sempre segundo Russel (Ibid p 4-5) que algumas delas eram realizadas

tanto a favor de somente um dos lados da questatildeo quanto a favor dos dois lados

sucessivamente como se verificou na ldquoVida dos sofistasrdquo de Filoacutestrato

Eacute preciso considerar que os principais corpora de declamaccedilotildees gregas foram escritos

no periacuteodo histoacuterico em que Roma dominava politicamente a parte oriental do Mediterracircneo

onde predominava o grego como liacutengua franca por isso algumas coleccedilotildees natildeo foram escritas

em latim Natildeo sem razatildeo no parecer de Kennedy (1980 p 103) ldquoa declamaccedilatildeo foi o maior

fenocircmeno retoacuterico do Impeacuterio Romano escrito em latim e gregordquo Para Bloomer (2010 p

297) ldquoa declamaccedilatildeo eacute o primeiro grande movimento literaacuterio do Impeacuterio Romanordquo Embora

existam outros gecircneros literaacuterios cuja difusatildeo tambeacutem tenha sido comparaacutevel ou talvez

superior em sofisticaccedilatildeo agrave declamaccedilatildeo deve-se poreacutem destacar que a praacutetica declamatoacuteria

natildeo se limitava aos ceacutelebres ciacuterculos eruditos mas tambeacutem estava presente no ciacuterculo escolar

e filosoacutefico

14

112 Principais autores e escritos em grego

Entre os principais nomes da declamaccedilatildeo grega sobretudo na praacutetica da suasoacuteria e das

controveacutersias histoacutericas devem-se destacar Plutarco Aristides Luciano Libacircnio e Coriacutecio

Historicamente tais autores se concentram em periacuteodo posterior ao que eacute correntemente

denominado como Segunda Sofiacutestica cuja delimitaccedilatildeo apesar de controversa eacute geralmente

compreendida entre os seacuteculos I e IV d C Coriacutecio estaria situado no periacuteodo da Terceira

Sofiacutestica (Silva 2015)

Plutarco escreveu apenas seis obras morais que satildeo especificamente identificadas

como declamaccedilotildees entre as quais se destacam ldquoSe os atenienses satildeo melhores nas armas do

que nas letrasrdquo e o discurso ldquoSobre a fortuna e a virtude de Alexandrerdquo no qual consta um

elogio ao monarca (Boulet 2013 p 61)

Entre os discursos de Heacutelio Aristides destacam-se aqueles com temas histoacutericos

propostos aos estudantes tambeacutem conhecidos como declamaccedilotildees histoacutericas O mais ceacutelebre o

ldquoLeuctrianrdquo apresenta as controveacutersias de apoio e neutralidade em relaccedilatildeo a Tebas Atenas e

Esparta (Russell 1983 p 4)

Quanto a Luciano de Samosata (125-181 d C) temos nomeadamente os discursos a

favor e contra a aceitaccedilatildeo do touro Phalaris em Delfos e o discurso cocircmico ldquoTribunal das

vogaisrdquo em que o Sigma cobra o Tau pelo roubo de todas as palavras soletradas com duplo

Tau

Entre os mais profiacutecuos produtores de declamaccedilotildees Libacircnio de Antioquia (314-394 d

C) escreveu cinquenta e uma declamaccedilotildees ainda conservadas das quais poucas satildeo

questionadas quanto agrave autenticidade Entre as histoacutericas destacam-se a ldquoApologia de Soacutecratesrdquo

e alguns plasmata que satildeo casos fictiacutecios entre os quais alguns explicitamente cocircmicos

(Russel 1983 p 4)

Por fim devemos mencionar Coriacutecio de Gaza (primeira metade do seacuteculo VI) autor

que jaacute pertence ao periacuteodo denominado como Terceira Sofiacutestica Escreveu doze discursos que

tratam desde temas e locais comuns imitados de textos gregos antigos como Homero e

Heroacutedoto ateacute elogios ao Bispo Marciano e a apologia dos mimos um gecircnero popular de

15

Gaza Digno de nota eacute o discurso no qual simula a tentativa de Paacutetroclo em persuadir Aquiles

a retornar ao campo de batalha apoacutes o ultraje de Agamecircmnon (Silva 2015 p 75)

Dada a relevacircncia da caracterizaccedilatildeo de personificaccedilotildees femininas para o presente

estudo conveacutem destacar desde jaacute que no tocante ao estudo destas nas declamaccedilotildees gregas os

papeacuteis representados pela mulher eram em menor nuacutemero em comparaccedilatildeo com o de

personagens masculinas (Gruber 2008 p 138-140) Estas poderiam ser a filha a matildee a

madrasta a mulher a esposa a concubina e a meretriz Todavia natildeo costumavam receber as

variaccedilotildees de caraacuteter atribuiacutedas ao homem como ser rico pobre velho filoacutesofo entre outros

Segundo Gruber (ibid p 139) as mulheres eram caracterizadas como ldquoceacuteticas proacutedigas

extravagantes invejosas orgulhosas incocircmodas e maacutesrdquo Para exemplificar em qual tipo de

declamaccedilotildees as personificaccedilotildees femininas costumavam ocorrer Gruber (ibid p 140)

considerou que nas declamaccedilotildees de Menandro as mulheres estavam envolvidas

principalmente em casos de adulteacuterio (41 de 89 declamaccedilotildees) e rapto (13) Disto se pode

concluir que as mulheres ocupavam um papel secundaacuterio nas declamaccedilotildees gregas natildeo

somente por serem caracterizadas com menor variedade e especificidade quando comparadas

agraves masculinas mas tambeacutem por estarem na maioria das vezes em posiccedilotildees sociais

consideradas inferiores como eacute o caso de uma mulher indefesa sujeita ao rapto ou ainda de

modo a angaria a antipatia dos leitores como eacute o caso da aduacuteltera

12 A praacutetica latina

Com efeito Winterbottom (1980 p 10) observa que as personagens habituais

presentes nas declamaccedilotildees latinas tambeacutem parecem ser inspiradas no ambiente cultural

helecircnico ou ao menos recebidas do contato com as declamaccedilotildees gregas talvez pela leitura

das proacuteprias declamaccedilotildees ou atraveacutes dos manuais de retoacuterica de origem grega que circulavam

em Roma

satildeo personagens caracteriacutesticas com as quais simpatizamos (jovens

violadas filhos deserdados tiranicidas) ou com as quais natildeo se simpatiza

(piratas pais severos tiranos) [] Destarte as raiacutezes desse mundo satildeo

helecircnicas e remontam pelo menos ateacute o quarto seacuteculo antes de Cristo

(Winterbottom 1980 p 10)

16

Incontestavelmente trata-se de mais um gecircnero literaacuterio originado entre os gregos e

transmitido aos autores latinos os quais o modificaram segundo as circunstacircncias do seu

tempo

o uso de exerciacutecios retoacutericos sobre temas judiciais e deliberativos havia sido

praticado por reacutetores gregos e por seus disciacutepulos seacuteculos antes do tempo de

Secircneca o velho e haviam entrado no programa escolar latino durante a

infacircncia de Ciacutecero pelo menos (Fairweather 1981 p 543-4)

Ao se referir a Crasso e Antocircnio mencionados no ldquoSobre o Oradorrdquo Vasconcellos

(2000 p 180) afirma ldquoa educaccedilatildeo nas escolas dos reacutetores de tradiccedilatildeo sofiacutestica consistia

sobretudo em ensinar ao aluno de oratoacuteria os preceitos teacutecnicos sobre o dizer por meio de

manuais chamados de ldquoArte Retoacutericardquo ensino demasiadamente formal e pouco eficiente na

visatildeo dos dois oradores do diaacutelogordquo O objetivo primaacuterio da declamaccedilatildeo latina era sobretudo

o exerciacutecio da eloquecircncia o tirociacutenio do discurso persuasivo (Kennedy 1980 p 108) natildeo

obstante sua praacutetica fosse mais abrangente

Com efeito como indicamos acima os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eram apenas

parte integrante do programa das escolas retoacutericas situados geralmente apoacutes as

progymnaacutesmata mas tambeacutem eram praticados nas escolas filosoacuteficas por meio do que

passaram a ser chamados de ldquothesisrdquo (Winterbottom 2006 p 94 Kennedy 1980 p 37)

Uma vez que a educaccedilatildeo retoacuterica era realizada com o intuito de obter crescimento gradual da

dificuldade ou da complexidade do discurso (Costrino 2010 p 13) as teses de temaacutetica

filosoacutefica estavam localizadas sempre ao final dos manuais de retoacuterica como os de Heacutelio

Teatildeo Hermoacutegenes Nicolau e Aftocircnio (Kennedy 1994 p 16) indicando que deveriam ser os

exerciacutecios mais complexos Segundo Marrou (1975 p 439) ldquouma vez concluiacuteda a longa seacuterie

de exerciacutecios preparatoacuterios o aluno era solicitado a redigir discursos fictiacutecios sobre um tema

dado pelo mestre e segundo as prescriccedilotildees e conselhos desterdquo

Taacutecito expressa a opiniatildeo de que as controuersiae ou seja as declamaccedilotildees do gecircnero

judicial eram mais difiacuteceis ou complexas do que as do gecircnero deliberativo

Duas espeacutecies de mateacuterias satildeo tratadas entre os reacutetores as suasoacuterias e as

controveacutersias Dessas delegam-se as suasoacuterias aos meninos jaacute que satildeo

claramente mais faacuteceis e menos exigentes quanto ao conhecimento as

controveacutersias satildeo designadas para os mais maduros (Taacutecito Diaacutelogo dos

oradores 35)

17

Tambeacutem Quintiliano apresenta sua opiniatildeo a respeito do grau de dificuldade entre os

exerciacutecios escolares de retoacuterica apresentando a prosopopeia um exerciacutecio retoacuterico anterior agrave

declamaccedilatildeo presente nos manuais de retoacuterica e componente significativo da proacutepria

declamaccedilatildeo como um dos exerciacutecios mais complexos

as prosopopeias me parecem de longe as mais difiacuteceis pois nestas a todo

trabalho da suasoacuteria acrescenta-se ainda a dificuldade da personagem pois a

mesma coisa deve ser aconselhada por Ceacutesar de um modo por Ciacutecero de

outro por Catatildeo de outro (Inst Orat III 8 49)

Pode-se dizer que a dificuldade inerente da praacutetica da suasoacuteria entendida como uma

espeacutecie de declamaccedilatildeo deliberativa a que se refere Quintiliano reside justamente na

configuraccedilatildeo do ecircthos retoacuterico apropriado para as personagens contidas no discurso e na

formulaccedilatildeo deste de modo convincente Deveria ademais ser adequado segundo o decorum

exigido pela plateia que o assiste Mas em razatildeo do conhecimento profundo das

particularidades dos preceitos que as controveacutersias envolviam somados agrave aplicaccedilatildeo da

caracterizaccedilatildeo do ecircthos o gecircnero judicial deveria ser o mais complexo Pode-se entatildeo

concluir que as declamaccedilotildees se configuravam como o uacuteltimo estaacutegio da formaccedilatildeo retoacuterica de

um cidadatildeo romano Eram esta os exerciacutecios das suasoriae e por fim das controuersiae ou

vice-versa

Ademais deve-se dizer que uma vez que a precisatildeo histoacuterica das datas nomes e

situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se imprecisotildees

(Wolf 2013 p 270) pode-se dizer que o principal virtuosismo do declamador residia na

capacidade de adequar os diversos elementos da declamaccedilatildeo como o tema com o caraacuteter

(ethos) da assembleia e das personagens fictiacutecias envolvidas pois o foco da praacutetica

declamatoacuteria era o exerciacutecio da eloquecircncia segundo os ditames dos manuais de retoacuterica

13 As fontes latinas

Diversos autores latinos trataram da declamaccedilatildeo ou dos declamadores subdividos

genericamente em dois grupos aqueles do periacuteodo republicano como Ciacutecero e aqueles do

periacuteodo imperial como Oviacutedio (Arte amatoacuteria) Juvenal (Saacutetira 10 165-169) Taacutecito

(Diaacutelogo sobre os oradores 35) Calpurnio Flaco (Declamaccedilotildees) Suetocircnio (Sobre os reacutetores

e Sobre os gramaacuteticos e os reacutetores) Secircneca e Quintiliano Em Oviacutedio (Arte amatoacuteria 1 465-

469) por exemplo declamare ocorre com o sentido de falar com algueacutem em tom

18

declamatoacuterio O discurso do amante teraacute a eloquecircncia persuasiva que convence o povo (nas

assembleias) o juiz (nos tribunais) e os senadores (no senado) Mas essa eloquecircncia natildeo deve

trair afetaccedilatildeo como mero artifiacutecio Oviacutedio prega aqui a retoacuterica cuja arte se esconde (lateant

uires) O amante natildeo deve parecer estar fazendo um discurso para a amada

Entretanto a anaacutelise das ocorrecircncias do radical do substantivo declamatio ou do verbo

declamare denota que algumas obras contecircm maior nuacutemero e relevacircncia para o estudo da

evoluccedilatildeo histoacuterica da declamaccedilatildeo latina enquanto gecircnero Eacute justamente a consideraccedilatildeo do seu

conteuacutedo e do seu contexto histoacuterico que sugerem a hipoacutetese de que a declamaccedilatildeo do tempo

de Ciacutecero natildeo era idecircntica a de Quintiliano e Secircneca o Velho

131 Discussatildeo terminoloacutegica

A terminologia com a qual se denominavam os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eacute uniacutevoca

entre os escritores que trataram de exerciacutecios idecircnticos ou equiparaacuteveis agrave declamaccedilatildeo na

literatura latina entre o seacuteculo I a C e o seacuteculo I d C Mendelson (1994 p 96) discorre sobre

um desses problemas terminoloacutegicos

No tempo de Ciacutecero a declamaccedilatildeo forense ou caso legal era conhecida

simplesmente como causa enquanto que posteriormente jaacute sob o Imperium

passou a ser conhecida como scholastica ou tema-escolar a fim de indicar o

modo por assim dizer restrito nos quais surgiam tais discursos artificiais

Schwartz (2004 p 65-66) sintetiza esta controveacutersia

No que diz respeito ao periacuteodo preacute-ciceroniano cuja caracteriacutestica segundo

Secircneca eram os exerciacutecios que recebem o nome grego de thesis (tese) o

material de que dispomos para nos referir a ele eacute bem escasso e portanto

torna-se difiacutecil chegar a conclusotildees definitivas Quintiliano define as theseis

ou quaestiones infinitae (questotildees indefinidas) em oposiccedilatildeo agraves causae (causas)

ou quaestiones finitae (questotildees definidas) proacuteprias do acircmbito judicial As

questotildees indefinidas eram discussotildees dialeacuteticas em que os participantes

defendiam uma ou outra das posiccedilotildees em conflito (in utramque partem) sem

referecircncia a pessoas tempos lugares e outras circunstacircncias (cf Quint III

55) Tratava-se de temas gerais de natureza abstrata especulativa ou

filosoacutefica Tais exerciacutecios desenvolvidos com frequecircncia nas escolas dos

filoacutesofos eram adequados agrave elaboraccedilatildeo de loci communes que tambeacutem eram

utilizados na oratoacuteria forense na declamaccedilatildeo e ateacute em gecircneros poeacuteticos como

a saacutetira Quintiliano afirma que a questatildeo indefinida eacute mais ampla que a causa

que eacute derivada dela Assim a questatildeo indefinida ldquodeve o homem casarrdquo (an

uxor ducenda) eacute logicamente preacutevia agrave questatildeo definida ldquodeve Catatildeo casarrdquo (an

Catoni ducenda) (cf Quint III 5 8) Haacute na definiccedilatildeo de Quintiliano portanto

uma antecedecircncia loacutegica da tese a respeito da causa mas nada obriga a pensar

que tal deva ter sido a ordem histoacuterica em que sucederam essas classes de

19

exerciacutecios Ao contraacuterio haacute evidecircncias de que exerciacutecios de tipo judicial

devem ter existido bem antes da eacutepoca de Ciacutecero Talvez o problema seja

sobretudo terminoloacutegico Com efeito eacute possiacutevel que Secircneca ao falar em

ldquotesesrdquo estivesse pensando em outros exerciacutecios diferentes dos praticados em

escolas de filosofia

No tocante agrave comparaccedilatildeo das declamaccedilotildees latinas supeacuterstites que haviam sido

realizadas ao longo dos seacuteculos I a C e I d C com os trecircs gecircneros de discurso presentes na

tradiccedilatildeo retoacuterica greco-romana pode-se dizer que tratavam basicamente de dois tipos de

causae deliberativa (suasoria) ou juriacutedica (controuersia) (Mendelson 1994 p 93) Quanto

ao epidiacutetico ao menos em Secircneca o Velho natildeo se encontram exemplos de declamaccedilotildees

realizadas com predominacircncia deste gecircnero Como veremos Quintiliano admitiraacute o uso do

demonstrativo ou laudativo entendido como tendo por objetivo principal o elogio ou a

vituperaccedilatildeo como um recurso argumentativo nas declamaccedilotildees deliberativas ou judiciais

132 O contexto republicano e o imperial

Ao comparar a praacutetica da declamaccedilatildeo no final da repuacuteblica e no iniacutecio do Impeacuterio

identificou-se que este gecircnero sofreu algumas alteraccedilotildees no tocante agrave terminologia e agrave forma

Ela havia deixado de ser um mero exerciacutecio das escolas de retoacuterica ou um termo aplicado agrave

praacutetica privada de um exerciacutecio oratoacuterio para tornar-se nos primeiros anos de Augusto uma

performance puacuteblica atraente em todas as classes sociais inclusive nas mais elevadas

A partir de Augusto as salas de declamaccedilatildeo constituem um espaccedilo que reuacutene

oradores reconhecidos assim como personalidades da vida puacuteblica (Contr II

412-13) Conveacutem distinguir aqui entre a declamaccedilatildeo como praacutetica escolar dos

jovens na aula do reacutetor e a declamaccedilatildeo como espetaacuteculo puacuteblico Com efeito

nas proacuteprias escolas de declamaccedilatildeo se realizavam periodicamente exibiccedilotildees

puacuteblicas das declamaccedilotildees jaacute preparadas por alunos e o reacutetor Natildeo era raro que

nestas ocasiotildees participassem ativamente convidados alheios agrave escola (Contr

III praef 16 Contr X praef) Desse modo a declamaccedilatildeo comeccedila

progressivamente a se tornar independente da finalidade de preparar para a

oratoacuteria e se converte em um fim em si mesmo (Schwartz 2000 p 275)

Esta fase antecedeu o decliacutenio por assim dizer do prestiacutegio desse gecircnero na virada do

I ao II seacuteculo d C conforme as criacuteticas de Taacutecito que identificava poucos ldquoautecircnticos

oradoresrdquo (Diaacutelogo sobre os oradores 14 4) Mas essa criacutetica pode ser relativizada se

considerarmos a popularidade da declamaccedilatildeo na Roma Imperial pois embora fosse uma arte

nascida na escola Suetocircnio (Vida de Antocircnio 84 Vida de Nero 10) atesta sua presenccedila e

exerciacutecio inclusive por imperadores Por outro lado durante o I seacuteculo a C embora Pisatildeo e

20

Pompeu tivessem se exercitado na declamaccedilatildeo (Ciacutecero Brutus 309-310) seu status natildeo era

comparaacutevel ao da oratoacuteria uma vez que ao contraacuterio do que se daria um seacuteculo mais tarde a

declamaccedilatildeo no tempo de Ciacutecero era contestada por aristocratas como Messala ou Poacutelio que

a assemelhavam agraves praacuteticas do tatro cocircmico desprezadas pela alta sociedade romana (Conte

1999 p 405) Destarte identifica-se entatildeo uma ascensatildeo da declamaccedilatildeo puacuteblica que teria

chegado a um apogeu de prestiacutegio nos primeiros dececircnios do seacuteculo I d C natildeo somente pelo

proacuteprio desenvolvimento do gecircnero mas pela ldquodecadecircnciardquo da oratoacuteria apoacutes seu afastamento

dos padrotildees ciceronianos (Schwartz 2004 p 2) A teoria segundo a qual o auge da oratoacuteria se

refletiu na accedilatildeo e nos escritos de Ciacutecero sendo este o padratildeo adequado para a praacutetica

declamatoacuteria eacute encontrada nas ldquoDeclamaccedilotildeesrdquo de Secircneca o Velho e no ldquoDiaacutelogordquo de Taacutecito

A declamaccedilatildeo seria por assim dizer a herdeira e a substituta da oratoacuteria um gecircnero cujo

sentido original soacute poderia ser vivido e praticado na Repuacuteblica devido agrave falta de liberdade de

expressatildeo durante o periacuteodo imperial

Segundo Edward (1928 p xvi-xvii) essa ascensatildeo teve origem na transformaccedilatildeo do

sistema poliacutetico romano

Como eacute que aquilo que fora primeiramente um mero exerciacutecio das escolas de

retoacuterica ou um termo aplicado agrave praacutetica privada de um orador distinto tornou-

se nos primeiros anos do reinado de Augusto uma performance puacuteblica e

atraente uma coisa praticada por si mesma e de certo modo algo pelo qual

todas as classes sociais se animavam O motivo deve ser encontrado na

mudanccedila de condiccedilotildees poliacuteticas A repuacuteblica estava extinta desde Filipos uma

vez estabelecido finalmente o poder de Augusto no Aacutecio o priacutencipe

concentrou todo o poder em suas proacuteprias matildeos as assembleias do povo eram

entatildeo desorganizadas ou de relevacircncia poliacutetica insignificante as deliberaccedilotildees

do senado perderam significado e efetividade suas decisotildees poderiam ser

revogadas a qualquer momento pela intervenccedilatildeo individual do Imperador A

oratoacuteria livre sobre temas relevantes tais como aqueles que inspiraram a

eloquecircncia ciceroniana jaacute natildeo podia ser ouvida Pleitos autecircnticos em que a

decisatildeo poderia ser desenvolvida por um advogado estavam confinados agraves

cortes centuriais e a causas natildeo se prestavam agrave oratoacuteria

A mudanccedila do regime republicano para o imperial eacute comparaacutevel agrave transformaccedilatildeo

gradual da declamaccedilatildeo e da sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria Um dos reflexos dessa interferecircncia

do sistema poliacutetico sobre a oratoacuteria daacute-se justamente segundo Schwartz (2004 p 2) na

ldquoreduccedilatildeo significativa do terreno para o desenvolvimento do gecircnero deliberativo uma vez

que sob o principado o senado perde sua independecircncia efetiva e junto com ela restringem-

se consideravelmente as possibilidades tradicionais do discurso oratoacuteriordquo

21

Natildeo sem razatildeo a declamaccedilatildeo tinha por modelo supremo de eloquecircncia a proacutepria

oratoacuteria mais especificamente a ciceroniana (Secircneca Contr I praef 6) e que deveria ser

imitado Quintiliano por exemplo aleacutem de tratar das declamaccedilotildees em sua ldquoInstituiccedilatildeo

Oratoacuteriardquo cita ou menciona Ciacutecero 362 vezes Tal padratildeo de imitaccedilatildeo persistiria ao longo dos

seacuteculos entre os reacutetores latinos desde o seacuteculo I d C com Quintiliano ateacute a polecircmica do

Ciceronianismo durante o seacuteculo XVI

Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as reais

necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de temas

mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Para ele a declamaccedilatildeo era o ldquomais uacutetil de todos os

exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) Assim esta natildeo era apenas um treino

para jovens aprendizes da eloquecircncia pois

seria um erro julgar que na Antiguidade a declamaccedilatildeo estava restrita agraves

escolas de retoacuterica Os adultos inclusive os homens de accedilatildeo jaacute ceacutelebres mas

afastados provisoriamente da vida poliacutetica ou dos tribunais se exercitavam

com as declamaccedilotildees a fim de natildeo perderem o haacutebito da eloquecircncia Em 46 a

C quando Ceacutesar era ditador Ciacutecero lecionava oratoacuteria a Hiacutercio e a Dolabella

(Kennedy 1980 p 37)

A declamaccedilatildeo antiga tinha portanto um puacuteblico alvo anaacutelogo agravequele humanista que

surgiraacute depois De fato a importacircncia da oratoacuteria e por consequecircncia das teorias retoacutericas

na vida romana eacute determinante Poliacutetica jurisprudecircncia ndash e inclusive o comando militar ndash

dependiam do modo pelo qual os dirigentes articulavam a palavra O homem poliacutetico era

justamente aquele capaz de comunicar-se com o puacuteblico ao qual cabia tomar decisotildees seja no

contexto judicial seja no contexto deliberativo Eacute por essa razatildeo que o puacuteblico-alvo do

declamador era a classe dominante seja a parte que ainda estava em formaccedilatildeo no contexto

escolar seja aquela jaacute ldquoformadardquo que se exercitava ou se deleitava com o exerciacutecio em

ciacuterculos de maior intimidade Se a declamaccedilatildeo latina visava os magistrados no primeiro caso

ou se no segundo caso simulava o senado no regime republicano ou no regime imperial o

discurso visava justamente agraves pessoas que deveriam decidir pela deliberaccedilatildeo poliacutetica Sobre

os destinataacuterios da declamaccedilatildeo romana afirma Bernstein (2009 p 332)

Os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da alta

classe romana do imperador cuja presenccedila eacute mencionada por Secircneca (Contr

II412ndash13) aos estudantes que poderiam ter usado essa literatura como

material pedagoacutegico

22

14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos

141 A Retoacuterica a Herecircnio

Haacute trecircs referecircncias ao vocaacutebulo declamatio na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (III 20) Estas satildeo

as mais antigas na literatura latina pois esta obra teria sido escrita por um autor desconhecido

na primeira metade do seacuteculo I a C (Caplan1954 XVII)3 Para Bonner (1949 p 20) existe

uma conexatildeo proacutexima com o termo grego ἀναθώνηζις e o gecircnero declamaccedilatildeo De fato nesse

escrito por muito tempo equivocadamente atribuiacutedo a Ciacutecero mas cuja paternidade

ciceroniana jaacute era posta em duacutevida durante o Renascimento apresenta-se o termo declamaccedilatildeo

como um verdadeiro exerciacutecio oral justamente por tratar da pronuntiatio ou seja da forma

da locuccedilatildeo adequada a persuadir e a agradar a audiecircncia especialmente ao abordar os pontos

da firmeza (firmitudo) e da suavidade (mollitudo) da voz Caplan (ibid xvII) em sua

introduccedilatildeo agrave ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo comenta que as escolas retoacutericas latinas realizavam a

declamaccedilatildeo conforme os manuais os quais refletem a praacutetica escolar O texto apresenta os

exerciacutecios de forma enfaacutetica na forma de progymnaacutesmata estabelece as formas proacuteprias de

vaacuterios gecircneros discursivos o epidiacutetico (demonstratiuum) o deliberativo (deliberatiuum

deliberationes suαsoriae) e judiciaacuterio (iudiciale causae controuersiae) Deve-se notar que o

autor desenvolve alguns exemplos de declamaccedilotildees certamente inspiradas nas declamaccedilotildees

gregas Algumas destas discutem sobre o tema da paz e da guerra

142 Ciacutecero

Erasmo considerava Ciacutecero entre outros autores uma autoridade no que diz respeito agrave

composiccedilatildeo em prosa (Epiacutestola 20 Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31) Segundo

Chomarat (1981 p 935) Mendelson (1994 p 94) e Winterbottom (2006 p 76) na eacutepoca de

Ciacutecero havia duas noccedilotildees essenciais de declamaccedilatildeo que a caracterizam como portadora de

3 Quanto agrave data conveacutem citar tambeacutem outras opiniotildees como a do editor da obra para a Belles Lettres Achard

que palpita ldquoElle paraicirct donc se situer entre le mi de 86 et la fin de 83 Une telle datation s‟accorde parfaitement

avec l‟intention de l‟auteur et le contenu du livrerdquo (Achard 1997 p vii) E mais adiante ldquoPour toutes ces

raisons on peut consideacuterer comme assureacute que la Rheacutetorique agrave Herennius a eacuteteacute eacutecrite entre la mi-86 et le deacutebut de

82rdquo (Ibid p xii)

23

temas fictiacutecios ou como praacutetica de um exerciacutecio da elocuccedilatildeo (Kennedy 1980 p 37)

conforme o sentido escolar do termo μελέηη4

Na obra de Ciacutecero (Bonner 1949 p 27) haacute dez referecircncias agrave declamaccedilatildeo seja na

forma de substantivo seja na forma de verbo nas ldquoDisputas tusculanasrdquo (17) a palavra

ocorre como o sentido de exerciacutecio da palavra mas na oraccedilatildeo ldquoPor Placircnciordquo (47) em sentido

depreciativo eacute atribuiacuteda a um discurso banal ou proposiccedilatildeo refutaacutevel um protesto barulhento

Nota-se tambeacutem o sentido de invectivar contra ou sobre uma pessoa (Contra Verres 4 49

Epiacutestulas aos Familiares 3 11 2) Ciacutecero tambeacutem fala do declamator (Por Placircncio 83) ou

do exerciacutecio declamatorius (Orador 47) Haacute em Ciacutecero uma variante para o verbo declamar

declamitare (Epiacutestola LX a Papirio Paeto) Este uacuteltimo lido no contexto parece ter o sentido

como exerciacutecio veemente da declamaccedilatildeo ou da execuccedilatildeo reiterada de exerciacutecios de locutio

(Brutus 310 Sobre o orador 1251) Pode ser exercido para desprestigiar um contendor

(Filiacutepicas 5 19) ou para agradar os ouvintes (Disputas Tusculanas 1 7) Eacute em Ciacutecero que

ocorre a primeira distinccedilatildeo dos subgecircneros da declamaccedilatildeo quanto ao tipo de causa ou tema

deliberativa ou suasoacuteria (Por Rocio Amerino 82) juriacutedica ou causae (Disputas Tusculanas

1 7)

143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho

Manoel (2014 p 37) contudo ao tratar dos exerciacutecios de declamaccedilatildeo nos tempos de

Ciacutecero em comparaccedilatildeo com as declamaccedilotildees do periacuteodo imperial reconheceu que ldquofoi apoacutes o

fim da Repuacuteblica que teve iniacutecio a era das declamaccedilotildeesrdquo ou seja o periacuteodo no qual sua

praacutetica talvez tenha atingido uma espeacutecie de apogeu devido ao grau de difusatildeo da sua praacutetica

na sociedade romana e agrave maior quantidade e qualidade de registros escritos ainda

conservados Segundo Schwartz (2004 p 8) e Russel (2009 p 2) para a compreensatildeo das

caracteriacutesticas fundamentais desse gecircnero no periacuteodo imperial eacute fundamental considerar as

ldquoControveacutersiasrdquo (em dez livros) e as ldquoSuasoacuteriasrdquo de Secircneca o Velho Este discorreu sobre o

gecircnero declamatoacuterio nos prefaacutecios agraves controveacutersias escritos provavelmente nas deacutecadas de 20

ou 30 d C A importacircncia desse autor se verifica por ter vivido em uma eacutepoca na qual a

declamaccedilatildeo passou a ser realizada publicamente a fim de deleitar a audiecircncia e tomando o

4 Deve-se ainda acrescentar que aleacutem do sentido de exerciacutecio o termo tinha o sentido de cuidar Era usado

inclusive no contexto militar e medicinal (Cf Bailly Anatole Le Grand Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris

Hachette 2000 Voz μελέηη)

24

lugar da antiga oratoacuteria (Conte 1999 p 404) Redigidas em idade avanccedilada suas

declamaccedilotildees judiciais podem ser entendidas como escritas a pedido de seus filhos ou para a

instruccedilatildeo destes (Schwartz 2004 p 80) dadas as diversas referecircncias e locuccedilotildees direcionadas

explicitamente a estes em vaacuterios prefaacutecios (Secircneca Contr Pr 1 3 4 6 9 10 13 19 20 22)

Segundo Bloomer (1997 p 204) esta indicaccedilatildeo de destinataacuterios consanguiacuteneos natildeo deve ser

entendida senatildeo como uma estrateacutegia retoacuterica com um significado social a fim de simular

uma recomendaccedilatildeo agrave comunidade ou um ensino a disciacutepulos Sobre os destinataacuterios desta

declamaccedilatildeo conforme afirma Bernstein (2009 p 332) baseando-se em Secircneca (Contr II 4

12-13) os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da classe alta

conforme acima mecionamos

As ldquoControveacutersiasrdquo abordam setenta e quatro casos legais imaginaacuterios nos quais o

autor estabelece pareceres dos reacutetores sobre cada caso a partir de diferentes pontos de vista

(Salum 2010 p 119) Nos prefaacutecios apresentam-se as caracteriacutesticas individuais dos reacutetores

as quais satildeo discutidas de forma irocircnica eou pedagoacutegica As controveacutersias de Secircneca poreacutem

natildeo satildeo escritas de forma completa tal como foram ou teriam sido pronunciadas mas de

forma sintetizada (Schwartz 2004 p 8) Estas se diferenciam das declamaccedilotildees escritas em

grego cuja transcriccedilatildeo era integral sendo redigidas tais como haveriam de ser pronunciadas

a exemplo de Libacircnio Coriacutecio e Plutarco

A obra de Secircneca goza de eminente autoridade para a histoacuteria da oratoacuteria e da

declamaccedilatildeo Na opiniatildeo de Salum (2010 p 119) as ldquoControveacutersiasrdquo apresentam uma espeacutecie

de galeria de declamadores os quais personificam compreensotildees retoacutericas diversificadas

Aleacutem disso tambeacutem evoca uma distinccedilatildeo da declamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria e procura

estabelecer as qualidades imprescindiacuteveis do gecircnero conforme consta no prefaacutecio da terceira

controveacutersia (Contr III pr 7)

Segundo a leitura dos prefaacutecios denota-se que seu orador ldquoidealrdquo era Ciacutecero o qual eacute

apresentado inclusive como o primeiro dos declamadores latinos (Schwartz 2004 p 12)

embora essa afirmaccedilatildeo possa contrariar o que o proacuteprio Secircneca pensava a respeito da

declamaccedilatildeo no final da Repuacuteblica ldquoCiacutecero poreacutem natildeo declamava entatildeo estas a que

chamamos controveacutersias nem aquelas outras que eram pronunciadas antes de Ciacutecero e que

se chamavam thesis Noacutes dizemos controveacutersias mas Ciacutecero lhes chamava causasrdquo (Secircneca

Contr I pr 12) Aleacutem do problema de que algumas das causas ciceronianas poderiam ser

25

reais (histoacutericas) e natildeo fictiacutecias deve-se afirmar que o texto supracitado de Secircneca

problematiza a terminologia acerca da declamaccedilatildeo como ao afirmar que Cicero causas

vocabat

Secircneca cujos prefaacutecios estabelecem a declamaccedilatildeo como um gecircnero literaacuterio

autocircnomo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria apresenta alguns conceitos imprescindiacuteveis para sua

caracterizaccedilatildeo tais como a noccedilatildeo de sententia entendida como frase epigramaacutetica utilizada

para impressionar o leitor ou os ditados ou aforismos geralmente conclusivos do argumento

a diuisio que seria uma breve apresentaccedilatildeo do esquema argumentativo proposto era

fundamentada nas noccedilotildees de iustitia (justiccedila) no ius (direito) e na utilitas (interesse) e o

color entendido como ldquoo estilo com o qual o declamador apresenta a situaccedilatildeo ou seja

contava-se a acumulaccedilatildeo de figuras retoacutericas o ritmo do periacuteodo etcrdquo (Conte 1999 p 405)

Por outro lado Schwartz (2004 p 9) entende que o color seria ldquoo motivo imaginado para

justificar uma accedilatildeo de uma personagem em uma controveacutersiardquo O color concebido segundo a

conceituaccedilatildeo de Secircneca no contexto de uma controveacutersia era atribuiacutedo ao ato passado do

personagem descrito no thema (Fairweather 1981 p 32) por vezes no iniacutecio ldquoeste color foi

usado e logo atribui a ele desde o princiacutepiordquo (Contr I 1 24) ou ao longo desta ldquoAlbuacutecio

natildeo narrou mas erigiu este color desde o iniacuteio ateacute o finalrdquo (Contr I 1 24) Secircneca descreve o

color do discurso como sendo prudente temperado duro aacutespero ou severo Caracteres

anaacutelogos eram atribuiacutedos a um ou a todos os personagens da controveacutersia (Winterbottom

1980 p 171) Muitas vezes estava presente logo na narratio entendida como ldquouma descriccedilatildeo

sobre os principais atos cometidosrdquo (Van Mal-Maeder 2007 p 71) e que fornecem o cerne da

questatildeo a ser discutida na declamaccedilatildeo

Apesar do testemunho equivocado de Secircneca o Velho a respeito da origem da

declamaccedilatildeo ao mencionaacute-la como rem post me natam (Contr I 12) o estudo deste gecircnero

com base em seu escritos se faz importante natildeo somente em razatildeo das suas consideraccedilotildees

acerca das caracteriacutesticas essenciais acima mencionadas mas tambeacutem porque descreveu o

contexto histoacuterico e a praacutetica desta forma de discurso em seu tempo como uma espeacutecie de

retrocesso qualitativo (Secircneca Contr I pr 6) Conte (1999 p 404) observa que justamente a

mudanccedila de regime poliacutetico da Repuacuteblica ao Impeacuterio fez com que a declamaccedilatildeo se alterasse

pois a praacutetica oratoacuteria natildeo gozava da mesma liberdade de expressatildeo de antes com a

decadecircncia do Senado e a ausecircncia de praacutetica oratoacuteria na formaccedilatildeo do orador Os oradores

26

passaram a ser vistos com desconfianccedila por uma administraccedilatildeo que natildeo tolerava criacuteticas Natildeo

sem razatildeo os autores notam a decadecircncia da eloquentia apoacutes a morte de Ciacutecero natildeo pela falta

de gecircnios mas pela falta de liberdade de expressatildeo da opiniatildeo poliacutetica individual (Schwartz

2004 p 91) Entretanto a praacutetica das declamaccedilotildees se tornou um espetaacuteculo puacuteblico e

paulatinamente foi tomando o lugar da ldquorobusta oratoacuteria expressa pelos tempos de Ciacutecerordquo

(Sussman 1972 p 197) Schwartz sintetiza o papel e as incongruecircncias da praacutetica da

declamaccedilatildeo no periacuteodo republicano e sua heranccedila para a literatura latina

[as declamaccedilotildees] pelo fato de natildeo fazerem parte do campo tradicionalmente

mais livre da poesia nem de serem tampouco redutiacuteveis agrave simples funccedilatildeo

ancilar de exerciacutecio escolar colocava-as em um ldquonatildeo-lugarrdquo Essa orfandade

no entanto resultou em um vazamento da retoacuterica escolar sobre os outros

gecircneros discursivos Nesse processo eacute todo o campo da eloquecircncia que se

torna ldquodeclamatoacuteriordquo (Schwartz 2004 p 10)

Nos prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo Secircneca desaprovava as tendecircncias floridas da

oratoacuteria de seu tempo ou conforme supotildee Salum (2010 p 119) apresenta personagens como

portadores de defeitos e virtudes da declamaccedilatildeo a fim de teorizar sobre caracteriacutesticas

essenciais desta Para citar um exemplo uma passagem do prefaacutecio da segunda controuersia

expressa uma criacutetica ao estilo asiaacutetico de um aluno de Areacutellio Fusco que tinha certa propensatildeo

agrave filosofia Fabiano Papiacuterio ldquoseu arranjo de palavras efeminado demais para que um espiacuterito

que se prepara com preceitos tatildeo santos e rigorosos pudesse suportaacute-lardquo (Contr II 1) Secircneca

criticou a atividade de alguns declamadores aos quais atribuiacutea o anseio impreteriacutevel de

impressionar o puacuteblico atraveacutes de vazias frases de efeito pelo uso inapropriado das sententiae

marca essencial do gecircnero declamatoacuterio A sentenccedila eacute um silogismo incompleto mas natildeo

iloacutegico que prestigia as informaccedilotildees de interesse do declamador e que visa a impressionar o

ouvinte natildeo tanto pelo silogismo mas pela beleza ou forccedila da expressatildeo Nessa estrutura a

noccedilatildeo de sententia era fundamental pois ldquoesta procurava produzir o efeito mais do que a

loacutegica do periacuteodordquo (Salum 2010 p 119) ainda que natildeo abstraiacuteda a dimensatildeo retoacuterica do

logos Utilizava no entanto o entimema que segundo a conceituaccedilatildeo aristoteacutelica natildeo era

iloacutegico mas apenas apresentava o raciociacutenio de um modo incompleto e essencial a fim de ser

compreendido de forma mais direta pelo ouvinte ou mesmo enganaacute-lo e tornar o argumento

irresistivelmente persuasivo em contraponto com o raciociacutenio dialeacutetico desenvolvido em

todas as suas premissas poreacutem menos convincente

Entre as provas fornecidas pelo discurso distinguem-se trecircs espeacutecies umas

residem no caraacuteter moral do orador outras nas disposiccedilotildees que se criaram no

27

ouvinte outras no proacuteprio discurso pelo que ele demonstra ou parece

demonstrar Obteacutem-se a persuasatildeo por efeito do caraacuteter moral quando o

discurso procede de maneira que deixa a impressatildeo de o orador ser digno de

confianccedila [] Obteacutem-se a persuasatildeo nos ouvintes quando o discurso os leva a

sentir uma paixatildeo [] Enfim eacute pelo discurso que persuadimos sempre que

demonstramos a verdade ou o que parece ser a verdade de acordo com o que

sobre cada assunto eacute suscetiacutevel de persuadir (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 3-8

traduccedilatildeo Antocircnio de Carvalho 1999 p 33-34)

Silogismo significa basicamente calcular ou raciocinar em conexatildeo Uma das

caracteriacutesticas desse tipo de discurso eacute a formaccedilatildeo completa da sentenccedila loacutegica que atraveacutes de

proposiccedilotildees compostas atribuem verdade ou falsidade ao conceito exposto No discurso

dialeacutetico essas proposiccedilotildees compostas satildeo muitas vezes interligadas por conectivos

conformando assim oraccedilotildees coordenadas ou subordinadas Por isso Aristoacuteteles atribuiacutea ao

discurso retoacuterico a necessidade do conhecimento adequado das emoccedilotildees e das paixotildees

humanas O homem natildeo eacute persuadido pelo mero raciociacutenio Eacute necessaacuterio apelar agraves emoccedilotildees

Tal propoacutesito foi perseguido pela oratoacuteria sobretudo no ambiente republicano e sua

ldquoherdeirardquo nos tempos imperiais a declamaccedilatildeo

Por outro lado segundo Conte (1999 p 405)

Dado o caraacuteter fictiacutecio das situaccedilotildees e as muitas premissas o anseio do orator

natildeo eacute tanto persuadir mas sim deixar a audiecircncia atocircnita e ele para isso

recorre aos mais engenhosos truques da linguagem e da imaginaccedilatildeo O

maneirismo das formas torna exagerado o uso dos colores o termo teacutecnico

que indica a manipulaccedilatildeo inteligente de uma situaccedilatildeo ou de um conceito e

capaz de apresentar a mateacuteria em matildeos sob o aspecto mais surpreendente Na

busca do efeito e dos aplausos do auditoacuterio o orator tambeacutem faz uso de um

estilo precioso brilhante aquele que recorre a todos os artifiacutecios de asianismo

do acuacutemulo de figuras retoacutericas a uma expressatildeo densamente epigramaacutetica a

fim de cuidar do ritmo do periacuteodo

Secircneca tambeacutem caracteriza a declamaccedilatildeo com dois traccedilos distintivos em primeiro

lugar ao tratar da puacuteblica afirmava que esta visava a dar impressatildeo de improviso por meio da

velocidade (Contr IV 7) Em segundo lugar aleacutem da aparecircncia de algo natildeo preparado

deveria ter especial cuidado com o tom de voz tal como os manuais como a ldquoRetoacuterica a

Herecircniordquo preceituavam Um orator ou um ou um rhetor era desprestigiado caso seu trabalho

fosse assemelhado ao teatro cocircmico (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 7-8) uma vez que em

Roma os costumes dos artistas que atuavam na comeacutedia eram extremamente mal vistos E de

fato a comeacutedia era exercida por profissionais desprezados na alta sociedade romana Desse

modo muitas vezes atribuiacutea-se agravequele que atuava uma depravaccedilatildeo moral contra os costumes e

28

o mos maiorum A sua accedilatildeo (actio) se caracterizava exagerada e a modulaccedilatildeo no volume da

voz a fim de se fazer ouvir e entender adequadamente pela assembleia eram desagradaacuteveis em

comparaccedilatildeo agrave oratoacuteria ldquoprofissionalrdquo dos oradores do Foacuterum e do Senado Como a recitaccedilatildeo

da declamaccedilatildeo implicava no uso de uma locutio por vezes enfaacutetica somada ao uso da

prosopopeia os declamadores procuravam fugir do perigo de serem considerados meros

comediantes Disso resulta a grave criacutetica ao perigo de incorrer no ridiacuteculo como Secircneca

impunha agravequeles que natildeo regulavam bem a tonalidade da voz (Contr IV 10)

144 A suasoacuteria em Secircneca

Como dissemos as declamaccedilotildees de Secircneca estavam subdivididas em dois tipos as

controuersiae e as suasoriae As controveacutersias pertencem ao gecircnero judicial e consistiam no

julgamento de um caso fictiacutecio que se baseava na legislaccedilatildeo romana ou em leis fictiacutecias

(Bonner 1949 p 258) Jaacute as suasoacuterias fazem parte do gecircnero deliberativo e versavam sobre

temas mitoloacutegicos e histoacutericos Nelas o aluno tinha a finalidade de simular adequadamente o

discurso de uma personagem convencer a assembleia fictiacutecia segundo o propoacutesito de sua

causa e deleitar o puacuteblico real por meio de uma simulaccedilatildeo de discurso estruturado com uma

prosopopeia Esta personificaccedilatildeo deveria simultaneamente se adaptar ao objeto (res) ao

puacuteblico e agrave personagem que representa Daiacute se conclui a relaccedilatildeo da personificaccedilatildeo com a

noccedilatildeo aristoteacutelica de ecircthos mencionada acima e a sermocinatio tal como comenta Schenk

(1982 p 115-116)

A suasoria uma declamaccedilatildeo ensinada nas escolas de retoacuterica mais do que um

exerciacutecio elementar lecionado na escola de gramaacutetica exigia um auditoacuterio e

sua finalidade era preponderantemente a persuasatildeo Toda suasoacuteria era em

parte uma interpretaccedilatildeo pois o disciacutepulo ao compocirc-la tinha de assumir um

papel de preceptor ou conselheiro e portanto tinha de adaptar seus

ldquoargumentos seu modo sua tonalidade ao tipo de ouvinte quem quer que

fosse seja um cidadatildeo comum um soldado um senador um membro do

conselho militar um mensageiro em conformidade com as circunstacircncias do

debaterdquo (Bonner 1949 p 285) Mas o disciacutepulo tambeacutem tinha de convencer a

figura histoacuterica ou mitoloacutegica especiacutefica que eles estavam aconselhando ao

modo de actio O jovem aluno deveria aconselhar por assim dizer os

espartanos a resistir nas Termoacutepilas ou Agamenon a sacrificar sua filha

Ifigecircnia ou natildeo

Merecem especial destaque as suasoacuterias I II IV que tratam sobre a deliberaccedilatildeo da

conquista dos mares e da guerra com argumentos a favor e contra A primeira ldquoSuasoacuteriardquo

mencionada na Controuersia (VII 7 19) trata sobre Alexandre o Grande rei da Macedocircnia

29

O declamador coloca-se no lugar de um dos membros do conselho e discute se apoacutes a

conquista da Aacutesia e da Iacutendia o monarca deve atravessar o oceano Jaacute na segunda ldquoSuasoacuteriardquo

que eacute intitulada ldquoOs trezentos espartanos enviados contra Xerxes uma vez que os grupos de

trezentos enviados de toda a Greacutecia fugiram deliberam se tambeacutem eles proacuteprios fugiratildeordquo

trata sobre o episoacutedio dos 300 espartanos que haviam enfrentado os persas comandados por

Xerxes por ocasiatildeo da segunda invasatildeo (480 a C) em Termoacutepilas (Cf Heroacutedoto Histoacuteria

VII) Nesta suasoacuteria vaacuterios declamadores apresentam argumentos a favor e contra a fuga dos

espartanos Destaca-se o discurso de Fusco segundo Secircneca

Nesta suasoacuteria Fusco usou aquela divisatildeo popular dizendo que natildeo era

honroso fugir mesmo que fosse seguro em seguida que era igualmente

perigoso fugir ou lutar e por uacuteltimo que era mais perigoso fugir Os inimigos

deviam ser temidos por aqueles que lutam tanto os inimigos quanto os aliados

deviam ser temidos por aqueles que fogem (Suas II 11 Traduccedilatildeo de

Costrino p 2010 p 58)

A segunda ldquoSuasoacuteriardquo traz como tema tipicamente deliberativo questotildees que evocam a

guerra e o ofiacutecio do combatente como algo digno vendo-a como algo positivo honesto

Alguns declamadores vituperam aqueles que fogem da guerra apresentando o fato como algo

desonroso para os antepassados e que diminui a fama dos gregos

Na quarta ldquoSuasoacuteriardquo cujo tiacutetulo ldquoAlexandre o grande delibera sobre se invadiraacute a

Babilocircnia uma vez que lhe fora anunciado o perigo pela previsatildeo do aacuteugurerdquo encontramos o

episoacutedio da vitoacuteria de Alexandre sobre Daacuterio na batalha de Galgamela ocorrida no ano de

331 a C Com esta conquista o comandante grego vislumbrou a oportunidade de apoderar-

se da cidade mesopotacircmica Nesta suasoacuteria mais uma vez a guerra eacute tratada como algo

beneacutefico sobretudo para a imagem do comandante O auguacuterio natildeo quer senatildeo incutir o medo

no combate pois tanto a vida de cada homem quanto o destino dos conquistadores ldquosatildeo

forjadas para cada um por causa do engenho natildeo a partir da feacuterdquo (Suas IV 3) Por essas duas

passagens percebe-se natildeo somente que a questatildeo da guerra e por oposiccedilatildeo da paz eacute proacutepria

do gecircnero da declamaccedilatildeo suasoacuteria mas que a guerra pode ser tratada como uma causa

honesta no sentido de que eacute admiraacutevel e justa que predica a virilidade a legiacutetima defesa da

pessoa e da naccedilatildeo e que argumentos baseados na mitologia natildeo poderiam tornaacute-la uma causa

torpe Em outras palavras a guerra seria uma deliberaccedilatildeo necessaacuteria justa e admiraacutevel em

certos casos

30

145 Quintiliano

Erasmo qualificava a ldquoInstituiccedilotildees Oratoacuteriasrdquo de Quintiliano como escritos de

autoridade no que diz respeito agrave composiccedilatildeo em prosa (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p

31) Dentre as sessenta e quatro ocorrecircncias de substantivos e verbos com o radical declama-

(declamator declamare declamatio)5 foi oportuno selecionar quatro aspectos significativos

da declamaccedilatildeo primeiro sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 49)

segundo sua praacutetica escolar (Ibid II 1 1) terceiro a presenccedila nela de aspectos teoacutericos do

gecircnero deliberativo (Ibid III 4 7) e por uacuteltimo a ocorrecircncia nela do vitupeacuterio e do elogio

(Ibid II 4 22) Natildeo sem propoacutesito a prolixidade de Quintiliano a respeito fez com que lhe

fossem atribuiacutedas agraves coleccedilotildees de declamaccedilotildees maiores hoje comprovadamente espuacuterias dada

a presenccedila nelas do asianismo ausente dos demais escritos dele As declamaccedilotildees minores

entretanto poderiam ser atribuiacutedas a ele sem maiores dificuldades (Reali e Turazza 2012 p

7)

Do ponto de vista histoacuterico Quintiliano compartilha a supracitada ideia de Taacutecito

(Dialogo de Oratoribus 351) segundo a qual a declamaccedilatildeo seria uma pobre e mera imitaccedilatildeo

da antiga e ceacutelebre oratoacuteria romana em razatildeo de sua natureza fictiacutecia

De fato o que tomamos como exemplo possui uma natureza e forccedila reais ao

contraacuterio toda imitaccedilatildeo eacute construiacuteda e se acomoda a um propoacutesito alheio De

onde sucede que as declamaccedilotildees tenham muito menos sangue e forccedila que os

discursos pois a mateacuteria que eacute verdadeira nestes eacute imitada naquelas Acrescente-se

que o que eacute oacutetimo na oratoacuteria satildeo as coisas imitaacuteveis natildeo satildeo o engenho a invenccedilatildeo a

forccedila a desenvoltura e o que quer que seja concedido pela arte (Quintiliano

Instituiccedilatildeo Oratoacuteria X 2 11-12)

Quintiliano comenta que a ascensatildeo do gecircnero declamatoacuterio significou a decadecircncia

da oratoacuteria romana segundo os elevados moldes ciceronianos em uma relaccedilatildeo causal

(Schwartz 2004 p 2) pelas seguintes razotildees o caraacuteter fantasioso dos temas selecionados

que ele rejeitava veementemente e o estilo exagerado dos declamadores (Quintiliano

Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-15) que segundo ele quanto menos preocupados com a causa

que discutiam mais pensavam ldquoem deleitar os ouvidos da audiecircncia mesmo agrave custa das mais

iacutenfimas distraccedilotildeesrdquo (Ibid II 12 6) Natildeo devemos contudo ver nessas afirmaccedilotildees algo como

o estado histoacuterico das declamaccedilotildees em seu tempo pois muitas dessas declaraccedilotildees tecircm

5 As ocorrecircncias do radical escolhido (declama-) foram contadas numa versatildeo digitalizada da ediccedilatildeo da Institutio

Oratoria publicada pela Harvard University Press em 2006

31

finalidade pedagoacutegica dada a natureza da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria podendo ser tambeacutem

interpretadas como uma apresentaccedilatildeo de um modelo ou exemplum negativo e que natildeo deve

ser seguido ou imitado

De fato Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as

reais necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de

temas mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Sua preocupaccedilatildeo se explica pois pela proacutepria

finalidade didaacutetica de seus escritos Como considerava a declamaccedilatildeo o ldquomais uacutetil de todos os

exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) forneceu um bom retrato de como

estes exerciacutecios eram realizados em sua eacutepoca (Ibid II 10 1-15) Por fim deve-se dizer

tambeacutem que menciona a praacutetica de prover seus alunos com subsiacutedios escritos a fim de que

estes auxiliassem seus disciacutepulos em suas declamaccedilotildees (Ibid II 6 2) e chega a afirmar que

ldquoo exerciacutecio da escrita facilitava a locuccedilatildeo e o exerciacutecio da locuccedilatildeo incrementava a escritardquo

(Ibid X 7 29) Assim se era um exerciacutecio essencialmente oral cuja finalidade era a praacutetica

da locutio eacute justamente em Quintiliano (Ibid X 3 10) que surgem alguns indiacutecios de uma

declamaccedilatildeo escrita no contexto escolar (Murphy 2012 p 69) Esse processo corresponde agrave

tendecircncia de transcriccedilatildeo dos discursos forenses que tambeacutem passaram a ser concebidos para a

leitura e natildeo somente para a audiccedilatildeo em decorrecircncia talvez da decadecircncia da oratoacuteria entatildeo

mal vista pelo regime imperial (Williams 2009) Esse fenocircmeno denominado literalizaccedilatildeo

foi um processo que transparece numa praacutetica que se estabeleceu naquela tempo e que se

assemelha agrave praacutetica declamatoacuteria as recitationes (Conte 1999 p 405) Estas costumavam

anteceder a publicaccedilatildeo das obras natildeo se restringindo aos gecircneros poeacuteticos como os

epigramas de Marcial e as saacutetiras de Juvenal mas abrangiam tambeacutem prosas de historiadores

e epiacutestolas como as de Pliacutenio o Jovem entre outros gecircneros discursivos (Dupont1997 p 45)

As declamationes e as recitationes implicavam em um contexto oral de emissatildeo e recepccedilatildeo

pois embora minuciosamente preparadas e escritas natildeo visavam a convencer mas

sobretudo a deleitar (Schwartz 2004 p 15)

Quintiliano informa que em seu tempo a declamaccedilatildeo tambeacutem poderia versar sobre

temas deliberativos ou suasoacuterios (Insituticcedilatildeo Oratoacuteria III 8 61) ou sobre as causas judiciais

(Ibid II 1 9) Eacute ele tambeacutem quem trata do lugar do elogio e da censura dentro da

declamaccedilatildeo e relaciona esses elementos tiacutepicos do gecircnero epidiacutetico como lugar comum

32

Lugares-comuns (falo daqueles em que natildeo se especificam pessoas e eacute usual

declamar contra viacutecios como contra aqueles do aduacuteltero do jogador do

licencioso) satildeo da proacutepria natureza dos discursos em exerciacutecios e se tu

acrescentas o nome da parte acusada satildeo autecircnticas acusaccedilotildees Estes no

entanto geralmente satildeo tratados a partir de temas gerais para algo especiacutefico

como quando o assunto de uma declamaccedilatildeo eacute um aduacuteltero cego um jogador

pobre ou um velho licencioso Agraves vezes tambeacutem tecircm a sua utilizaccedilatildeo na

defesa quando ocasionalmente falamos em favor do luxo ou da licenciosidade

ou de um degenerado ou parasita eacute por vezes defendido da forma que

defendemos natildeo a pessoa mas o viacutecio (Ibid II 4 22)

Aleacutem de tratar da inadequaccedilatildeo da declamaccedilatildeo com a comeacutedia ao exemplicar com as

figuras antiteacuteticas do aduacuteltero cego do jogador pobre e do velho licencioso Quintiliano

discute sobre algumas formas de distinguir os tradicionais trecircs gecircneros de discurso

(deliberativo judicial e epidiacutetico) e afirma a interpenetraccedilatildeo que pode haver entre estes

Haacute entatildeo como eu disse um gecircnero que conteacutem o louvor e o vitupeacuterio mas

que eacute chamado pelos melhores de laudativum outros no entanto chamam-

no de demonstrativo Acredita-se que ambos os nomes sejam derivados do

grego respectivamente ἐγκωμιαζηικόν e ἐπιδεκηικόν Entretanto me parece

que a palavra ἐπιδεκηικόν tem o significado natildeo tanto de demonstraccedilatildeo mas

sim de ostentaccedilatildeo a fim de distinguir do termo ἐγκωμιαζηικόν pois embora

ela inclua em si o gecircnero laudativum natildeo consiste somente nesse tipo

Algueacutem pode negar que os discursos panegiacutericos satildeo ἐπιδεκηικόν No entanto

eles tomam a forma suasoacuteria e geralmente tratam dos interesses da Greacutecia De

modo que haacute de fato trecircs gecircneros mas em cada um deles haacute uma parte

dedicada ao objeto e outra parte agrave ostentaccedilatildeo Mas quando natildeo traduzindo do

grego chamam de demonstrativo satildeo simplesmente levados pela

consideraccedilatildeo de que o elogio e a censura demonstram o que eacute a coisa O

segundo tipo eacute o deliberativo e o terceiro o judicial Outras espeacutecies

incorreratildeo nestes gecircneros sem haver encontrado uma espeacutecie qualquer em que

natildeo deve elogiar ou censurar persuadir ou dissuadir para impor uma carga ou

repeli-la Nelas eacute comum conciliar narrar ensinar aumentar diminuir a fim

de influenciar o julgamento do puacuteblico excitando ou dissipando as paixotildees

Eu natildeo poderia concordar mesmo com aqueles que ao adotar segundo meu

parecer uma divisatildeo mais faacutecil e ilusoacuteria do que verdadeira consideram que o

laudativo diz respeito ao que eacute honesto (honroso) o deliberativo ao que eacute

conveniente (uacutetil) e o judicial ao que eacute justo todos satildeo em certo ponto

auxiliados uns pelos outros uma vez que no elogio satildeo consideradas a justiccedila

e a oportunidade e nas deliberaccedilotildees a honra e raramente encontraraacutes uma

peccedila processual judicial na qual natildeo ocorra em alguma parte algo do que

mencionei acima (Ibid III 4 12-16)

Para Quintiliano os trecircs gecircneros natildeo satildeo categorias estanques completamente

separadas mas um auxilia o outro na medida em que compartilham elementos e recursos de

argumentaccedilatildeo como eacute o caso da utilidade da justiccedila e da honra atribuiacuteda ao ato ou agrave pessoa

de um determinado personagem que se ataca ou defende em uma causa Ao gecircnero epidiacutetico

embora esteja inserido na tradicional triparticcedilatildeo geneacuterica estaacute reservado ldquoum papel residual

33

na organizaccedilatildeo do sistemardquo (Schwartz 2004 p 147) Quanto ao lugar do demonstrativo

trata-se de um dos assuntos mais controversos da retoacuterica antiga mas prevalece que estaacute

inserido como lugares comuns dentro dos demais gecircneros de modo que caso fosse assumida

a definiccedilatildeo a partir de uma orientaccedilatildeo discursiva (laudare ou vituperare) seria loacutegico que

tambeacutem fossem acrescentados outros gecircneros segundo este criteacuterio como a repreensatildeo

(obiurgatio) a exortaccedilatildeo (cohortatio) a consolaccedilatildeo (consolatio) entre outros (Ciacutecero Sobre

o Orador II 47 50) Quintiliano (Ibid III 4 9-14) antepotildee uma caracteriacutestica do gecircnero

epidiacutetico em relaccedilatildeo aos gecircneros deliberativo e forense O primeiro visa ao deleite e natildeo exige

de seus ouvintes a tomada de uma decisatildeo como o realizar ou natildeo um ato ou estabelecer a

culpabilidade ou a inocecircncia em um caso mas sim o assentimento O demonstrativo visa a

deleitar a fim de persuadir Segundo Schwartz (2004 p 149) ldquoa caracteriacutestica universalmente

aceita do gecircnero [eacute] o caraacuteter passivo do puacuteblico que soacute conta como apreciador esteacutetico dos

discursosrdquo

Eacute de Quintiliano por fim a referecircncia teoacuterica escrita em latim mais antiga da figura

prosopopeia aplicada ao gecircnero declamaccedilatildeo para ele os discursos suasoacuterios que envolvem a

prosopopeia satildeo ldquoos mais difiacuteceis de pronunciarrdquo (Ibid II 1 2) Segundo Van Mal-Maeder

(2007 p 53) uma vez que a principal finalidade da caracterizaccedilatildeo das personagens era ldquode

despertar a simpatia ou ao contraacuterio de suscitar a indignaccedilatildeo elas tecircm uma capacidade

ilustrativa que os declamadores se compraziam em usar na demonstraccedilatildeordquo Autores como

Clark (1957 p 218) e Bonner (1949 p 285) identificaram essa figura de linguagem que

tambeacutem eram progymnaacutesmata (Heacutelio Teatildeo Progymnaacutesmata 60) com uma caracteriacutestica

essencial da declamaccedilatildeo conforme acima citamos (Ibid III 8 49)

Segundo Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco I 3) os jovens por carecerem de experiecircncia

de vida natildeo eram aptos agrave poliacutetica Justamente em razatildeo deste particular Clark (1957 p 218)

observa que os disciacutepulos eram exercitados em declamaccedilotildees de temas histoacuterico-mitoloacutegicos

fictiacutecios e que deveriam simular um diaacutelogo em proximidade com personagens importantes da

histoacuteria e da mitologia greco-romana tais como fatos biograacuteficos de Sula Soacutecrates

Alexandre Ceacutesar ou Ciacutecero (Mendelson 1994 p 94) Note-se que a utilizaccedilatildeo de temas

mitoloacutegicos e histoacutericos natildeo tem a finalidade de distinguir entre o caraacuteter histoacuterico e

mitoloacutegico mas sim simular adequadamente o discurso segundo o estereoacutetipo corrente

formado a respeito dessas personagens Desse modo os estudantes eram estimulados a

34

compor prosopopeias no sentido em que uma personagem ausente geralmente inspirada na

histoacuteria ou na mitologia greco-romana toma a palavra para fazer um discurso Shenk (1982

p 116-118) tambeacutem observa a ocorrecircncia relevante do uso da prosopopeia nas declamaccedilotildees

deliberativas ou suasoriae ldquomuitas controveacutersias assim como todas as suasoacuterias foram

compostas como prosopopeias nas escolas de declamaccedilatildeordquo Segundo Winterbottom (1974 p

52) estas no sentido de um discurso do personagem simulado seriam uma espeacutecie de

suasoacuteria Dessa forma averigua como no gecircnero declamatoacuterio deliberativo ou suasoacuterio a

prosopopeia era um elemento essencial da declamaccedilatildeo Isso ocorre talvez devido ao poder

persuasivo dessa figura Quintiliano identifica a prosopopeia das causas fictiacutecias com os

diaacutelogos tatildeo utilizados pelos autores greco-romanos em temas filosoacuteficos

Entre aquelas coisas que satildeo ainda mais audaciosas e como pensa Ciacutecero que

exigem maior empenho estaacute a personificaccedilatildeo ou προζωποποιΐα Este recurso

fornece agrave oratoacuteria maravilhosa variedade e animaccedilatildeo Por esse meio exibimos

os pensamentos mais iacutentimos dos nossos adversaacuterios como se estivessem

falando com eles mesmos (mas ela soacute convenceraacute se os representarmos no que

eacute verossiacutemil presumir que ocorra em suas mentes) ou ainda sem sacrifiacutecio de

credibilidade pode introduzir conversas entre noacutes e os outros ou de outras

pessoas entre si e colocar palavras de conselho reprovaccedilatildeo reclamaccedilatildeo

elogio ou pena na boca de pessoas apropriadas ademais por meio destas

prosopopeias eacute possiacutevel trazer dos ceacuteus os deuses evocar a morte e dar vozes

a cidades e Estados Haacute autores que datildeo o nome de prosopopeia soacute agravequelas em

que haacute ficccedilatildeo de personagens e de discursos Quanto agraves outras em que haacute

homens a falar datildeo-lhe o nome de diaacutelogos preferindo o termo grego ao

latino utilizado por muitos que quer dizer conversaccedilatildeo (sermocinatio) Eu

poreacutem seguindo o uso dei o mesmo nome a uma coisa e a outra pois natildeo eacute

possiacutevel imaginar locuccedilotildees sem imaginar as pessoas que falam (Ibid IX 2

29-32)

Dessa forma segundo o argumento de Quintiliano os limites entre a declamaccedilatildeo

suasoacuteria ou epidiacutetica natildeo estariam definidos de modo suficiente em razatildeo da ocorrecircncia de

personagens com discursos diretos cujo conteuacutedo e estilo estatildeo adequados com o ethos de

cada personagem Natildeo se poderia entatildeo falar de declamaccedilatildeo latina epidiacutetica mas de

contextos epidiacuteticos

Por outro lado para Mendelson (1994 94) Quintiliano recomendava que a actio

considerasse natildeo somente o caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava mas tambeacutem aquele de seu

auditoacuterio como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade especificidade partido e

acima de tudo seu caraacuteter moral (Ibid III 8 37-38) Quintiliano o exemplifica com as

35

Catilinaacuterias na qual Ciacutecero daacute voz agrave Paacutetria e agrave Repuacuteblica (Catilinaacuterias 718 11 27) entes

figurados seres abstratos que tambeacutem tomam a voz na declamaccedilatildeo Embora Quintiliano

apenas pareccedila apresentar a prosopopeia como um fator de dificuldade e por consequecircncia

algo que atribui maior meacuterito para aquele que soubesse adaptar de modo adequado os

caracteres das personagens evocadas agrave temaacutetica em causa e aos gostos do auditoacuterio parece-

nos ponderado afirmar que ela eacute uma caracteriacutestica essencial da declamaccedilatildeo suasoacuteria pois

adaptar a figura fictiacutecia com o tema e a assembleia seria a finalidade mais especiacutefica do

exerciacutecio declamatoacuterio (Bonner 1949 p 285) Parece ser incoerente pensar em uma

declamaccedilatildeo sem a prosopopeia ou mesmo sem uma personificaccedilatildeo

15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento

Segundo Mack (2004 p 261) ldquoo renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser

caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo A recuperaccedilatildeo pode ser

entendida entre outros sentidos como a retomada de um corpus de textos greco-romanos

antigos muitos desaparecidos e desconhecidos pelos autores cristatildeos medievais e que

constituem basicamente o corpo de escritos com os quais ainda hoje se toma contato com a

Antiguidade greco-romana A adiccedilatildeo teria sido o acreacutescimo de novos recursos literaacuterios

oriundos do acuacutemulo cultural ao longo dos seacuteculos Trata-se de uma espeacutecie de simbiose entre

a cultura greco-romana e a cristatilde com seus diversos contatos com o oriente A renovaccedilatildeo seria

justamente esse adaptar-se aos novos tempos agraves novas aptidotildees e sensibilidades artiacutesticas

com a conformaccedilatildeo de um movimento cultural ampliacutessimo capaz de penetrar em

praticamente todas as artes e ciecircncias o Renascimento

Como se verificaraacute na recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo enquanto gecircnero literaacuterio e

pedagoacutegico faz-se necessaacuterio pontuar que o Renascimento surge basicamente a partir de dois

fenocircmenos de iacutendole literaacuteria primeiro com a recuperaccedilatildeo de textos antigos que natildeo tinham

sido conhecidos ou difundidos ao longo da chamada Idade Meacutedia e em segundo lugar com o

surgimento da imprensa que permitiu a difusatildeo desses textos nos ciacuterculos letrados em escala

ateacute entatildeo impensaacutevel (Sartorelli 2009 p 3) Para Murphy (2003 p 227) Se de um lado

havia o acreacutescimo de fontes agravequelas chamadas ldquocristatildesrdquo verifica-se uma mudanccedila de visatildeo de

mundo que natildeo tratava das coisas segundo uma visatildeo teocecircntrica mas que colocava o

homem no centro de tudo

36

O Renascimento conteve duas tendecircncias histoacutericas o Humanismo e o cientificismo

aspectos marcantes do periacuteodo histoacuterico que passava a chamar-se ldquomodernordquo O primeiro

movimento atribuiacutedo a uma classe de pessoas denominadas como humanistas consolidou-se

na peniacutensula itaacutelica e caracterizava-se por um conjunto de ideais ou princiacutepios que

valorizavam a razatildeo e as accedilotildees humanas segundo determinados valores morais como o

respeito a justiccedila a honra o amor a liberdade entre outros O movimento se se afirmava em

contraposiccedilatildeo ao ldquoteocentrismordquo da ldquoIdade das Trevasrdquo atribuiacuteda ao medievo em uma visatildeo

que embora se assemelhe ao iluminismo eacute contrariada pela historiografia contemporacircnea

Como decorrecircncia desse antropocentrismo o desenvolvimento das artes tambeacutem foi uma

caracteriacutestica desse movimento que no acircmbito das Letras a partir da recuperaccedilatildeo dos gecircneros

antigos se pautou no interesse crescente pelos princiacutepios da antiga retoacuterica entendida como

um conjunto de princiacutepios explicitados pelos autores gregos e latinos especialmente da

Antiguidade que abordavam a arte da eloquecircncia ou da argumentaccedilatildeo tendo em vista a

persuasatildeo e o deleite de um auditoacuterio

Dois dados apresentados por Murphy (2003 p 231) exemplificam esse interesse

crescente em relaccedilatildeo agrave Retoacuterica entre a ediccedilatildeo da primeira obra de Ciacutecero (o Sobre o

Orador) datada de 1465 e o ano de 1500 contabilizaram-se 332 publicaccedilotildees impressas ao

passo que houve apenas 154 ediccedilotildees das obras de Aristoacuteteles cujo predomiacutenio de temaacuteticas

filosoacuteficas eacute notoacuterio (Murphy 2003 p 231) Tendo em conta que muitas das obras

ciceronianas abordavam principalmente temas tiacutepicos da retoacuterica e que ao final de 1485 estas

jaacute tinham sido editadas e impressas (Revard Raumldle e Di Cesare 1988 p 522) sua figura

cresceu em importacircncia de modo que muitos elementos retoacutericos geralmente atribuiacutedos a

outros autores antigos foram recebidos pelos humanistas por intermeacutedio da leitura de seus

escritos (Sartorelli 2015 p 7)

Por outro lado a invenccedilatildeo da imprensa fez necessaacuteria a entrada de um nuacutemero ainda

maior de leigos para os trabalhos tipograacuteficos

Uma das principais consequecircncias da invenccedilatildeo da prensa tipograacutefica foi

ampliar as oportunidades de carreira abertas aos letrados Alguns deles se

tornaram letrados-impressores como Aldo Manutius em Veneza Outros

trabalhavam para impressores por exemplo corrigindo provas fazendo

iacutendices traduzindo ou mesmo escrevendo por encomenda de editores-

impressores Ficou mais faacutecil embora ainda fosse difiacutecil seguir a carreira de

ldquohomem de letrasrdquo (Burke 2003 p 28-29)

37

Nem mesmo apoacutes as controveacutersias teoloacutegicas acentuadas pela Reforma Protestante

que teve seu marco inicial com as teses de Lutero afixadas nas portas da catedral de

Winterberg em 1517 ndash mesmo ano de publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo ndash e a crescente

oposiccedilatildeo entre os vaacuterios credos cristatildeos as trocas epistolares se restringiram entre as

confissotildees religiosas (Vasoli 2008 p 6 Hernaacutendez Guerrero e Garciacutea Tejera 1994 p 102-

105) Sartorelli (2009 p 4) observa que este ciacuterculo de literatos manteve o latim como liacutengua

veicular utilizando-a como uma liacutengua internacional de comunicaccedilatildeo

eacute preciso ter em conta que esse movimento foi em uma medida de que

talvez natildeo nos apercebamos hoje um movimento essencialmente latino ou

seja em liacutengua latina Humanistas mesmo os helenistas escreviam sobretudo

em latim e foi em latim que Pico della Mirandola por exemplo divulgou

Platatildeo Assim sendo quando falamos aqui em imitatio elocutio etc estamos

sempre falando da liacutengua latina

Em contraste com os seacuteculos anteriores nos quais as letras estavam majoritariamente

restritas ao conhecimento dos cleacuterigos e embora o volgarizzamento com a literatura

ldquoficcionalrdquo como a de Dante ou Bocaccio entre outros escritos natildeo estritamente considerados

filosoacuteficos e teoloacutegicos essa nova classe de intelectuais chamados na Itaacutelia de humanistae

situava sua atenccedilatildeo em questotildees linguiacutesticas poeacuteticas e estiliacutesticas ao privilegiar a arte a

beleza e a persuasatildeo do discurso mais do que a abstraccedilatildeo e a pretensa precisatildeo e uso dos

termos muitas vezes repetitivos do texto filosoacutefico (Murphy 2003 p 241) Contudo a

maioria dos autores mais eminentes eram membros de ordens religiosas muito embora os

leigos ocupassem um espaccedilo cada vez maior nas escolas ou nas universidades atuando como

professores privados ou ainda como dependentes da liberalidade de patronos ou mecenas

especialmente durante o Renascimento (Vasoli 2008 p 6) Esses intelectuais trocavam

correspondecircncias e estabeleciam ciacuterculos de relaccedilotildees ou centros eruditos com a finalidade de

compartilhamento das suas atividades literaacuterias que posteriormente passaram a chamar-se de

academias e se espalharam por toda a Europa Ocidental a ponto de no final do seacuteculo XV

para designar essa corrente cunhou-se a expressatildeo Repuacuteblica das Letras (Moya Bedoya

2008 p 192)

A inserccedilatildeo de outros autores fontes para a inventio ndash aleacutem da Biacuteblia e dos Padres da

Igreja os autores antigos ndash fez com que a arte de ldquoencontrarrdquo argumentos a favor de uma

causa fosse praticada com a leitura de textos de autoridade largamente difundidos pela

imprensa e neste sentido satildeo os autores greco-latinos antigos que erasm privilegiados Estes

38

deveriam ser lidos para deles se extrair por meio do sistema de lugares e toacutepicos os criteacuterios

que podem ajudar a argumentar com um discurso agradaacutevel harmonioso e realmente

persuasivo tal como predicava a retoacuterica Assim o sistema de lugares (loci) se converte em

um meio primordial para ler e ao mesmo tempo para produzir o discurso (Mack 1993 p

130)

Aleacutem da invenccedilatildeo havia o fenocircmeno da imitaccedilatildeo (imitatio) dos antigos modelos

greco-romanos a qual contemplava principalmente preceitos de estilo ou seja as

habilidades verificadas em determinado texto a fim de efetivar a finalidade para a qual foi

escrito Estas habilidades seriam adquiridas atraveacutes de exerciacutecios baseados em textos latinos e

gregos antigos (Cobett e Connors 1999 p 411) A polecircmica em torno da imitaccedilatildeo procurava

discutir se esta teacutecnica se restringia somente ao reproduzir foacutermulas frasais opccedilotildees lexicais e

lugares comuns proacuteprios dos antigos modelos greco-romanos nos escritos dos humanistas As

discussotildees a respeito ocuparam um lugar central ao longo do final do seacuteculo XIV e no iniacutecio

do seacuteculo XV Os autores antigos eram considerados e inclusive venerados como os

possuidores do latim por excelecircncia e deveriam servir de modelo para que os humanistas

praticassem o ldquoverdadeirordquo latim (Sloane 2004 p 112) muito diverso do latim praticado

pelos autores medievais mais ocupados em questotildees dialeacuteticas filosoacuteficas do que com as

questotildees de estilo

Embora houvesse um certo consenso geral acerca da imitaccedilatildeo dos antigos no

Renascimento esse fenocircmeno natildeo foi de modo algum paciacutefico ao considerar as

particularidades desta imitaccedilatildeo Uma das querelas mais encarniccediladas foi o debate em torno do

ciceronianismo Os intelectuais europeus antagonizavam-se em uma tendecircncia de imitaccedilatildeo

estrita agraves obras de Ciacutecero e outra forma mais ecleacutetica que tambeacutem consideravam outros

autores antigos (Sartorelli 2015 p 13) Erasmo foi protagonista nessa polecircmica sobretudo

ao publicar o seu ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo no ano de 15286 Nesse escrito o holandecircs

antagonizou a imitaccedilatildeo estrita e exclusiva de Ciacutecero realizada por autores que se

denominavam como ciceronianos e que visavam imitar com exclusividade o leacutexico a

meacutetrica as declinaccedilotildees e as foacutermulas presentes nos textos ciceronianos a despeito da

qualidade dos demais latinos antigos e do contexto histoacuterico e cultural do seacuteculo XV Os

6 Recentemente traduzido diretamente do latim para o portuguecircs pela orientadora do presente estudo (Sartorelli

2014 e 2015)

39

ciceronianos antagonizavam com os humanistas ldquoecleacuteticosrdquo que defendiam a imitaccedilatildeo de

outros autores e que embora reconhecessem o valor das obras ciceronianas tambeacutem

procuravam imitar os demais reconhecendo inclusive a necessidade de incorporar novas

palavras e foacutermulas ao leacutexico latino Erasmo defendeu publicamente uma imitaccedilatildeo ecleacutetica ou

composta isto eacute que considerasse os autores antigos em peacute de igualdade e inclusive definiu a

imitaccedilatildeo a partir do ecletismo necessaacuterio para atender agraves diferenccedilas entre oradores por meio

da locuccedilatildeo de uma das personagens do ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo

Eu abraccedilo a imitaccedilatildeo mas aquela que ajudar a natureza natildeo a que a violar a

que corrigir os dotes naturais natildeo a que os destruir aprovo a imitaccedilatildeo mas a

que conforme o exemplo estaacute de acordo com o teu talento ou que ao menos

natildeo te opotildees a ele para que natildeo pareccedila um theomachein contra os gigantes

De novo aprovo a imitaccedilatildeo mas natildeo a dedicada a uma soacute prescriccedilatildeo de cujos

traccedilos natildeo se atreve a separar-se mas aquela que de todos os autores ou ao

menos dos mais importantes toma aquele que mais se destaca e o que mais

conveacutem a teu proacuteprio talento colhendo e natildeo acrescentando imediatamente ao

discurso tudo de belo que se lhe apresente mas fazendo-o passar a teu proacuteprio

coraccedilatildeo como se fosse ao estocircmago para quem uma vez transfundido agraves

veias pareccedila nascido do teu proacuteprio talento e natildeo mendigado de outra parte

Inspiraraacute assim o vigor e a iacutendole de tua mente e de tua natureza para que

quem lecirc natildeo reconheccedila o emblema tirado de Ciacutecero mas sim um feto nascido

de teu ceacuterebro da mesma forma que dizem Palas saiu do ceacuterebro de Juacutepiter

refletindo a imagem viva de seu pai e teu discurso natildeo pareccedila a ningueacutem um

mosaico mas a imagem viva de teu peito ou um rio emanado da fonte do teu

coraccedilatildeo Mas seja tua primeira e principal preocupaccedilatildeo a de conhecer a

mateacuteria que te propotildees tratar Ela prover-se-aacute copiosidade oratoacuteria prover-te-aacute

afetos verdadeiros e genuiacutenos Assim enfim dar-se-aacute que teu discurso viva

respire aja comova e arrebate e reflita todo teu ser (Erasmo Diaacutelogo

Ciceroniano Traduccedilatildeo por Sartorelli 2015 p 16)

Veremos como a ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem se apresenta como um discurso que recebe

e imita expressotildees lugares comuns e metaacuteforas correntes em autores antigos natildeo se limitando

a Ciacutecero mas colocando em praacutetica esta imitaccedilatildeo ecleacutetica defendida por Erasmo

16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos

Conveacutem considerar as mais importantes ediccedilotildees realizadas pelos humanistas

diretamente relacionadas ao gecircnero declamaccedilatildeo Por outro lado dado o nuacutemero inabordaacutevel

de ediccedilotildees obras e tiacutetulos do periacuteodo a ponto de Murphy (1983 p 20-36) enumerar quase

dois mil nomes que estatildeo contidos dentro do epiacuteteto de humanista ou renascentista deve-se

considerar a dificuldade de catalogar a praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo

40

Ao selecionar portanto algumas declamaccedilotildees entre os humanistas elegemos aquelas

que (grupo 1) os estudiosos de Erasmo consideram que foram conhecidas por ele e portanto

o teriam influenciado de modo direto e inconteste ou aquelas que foram inequivocamente

influenciadas por ele (grupo 2) Aleacutem desse criteacuterio deve-se considerar evidentemente certo

prestiacutegio desses autores em relaccedilatildeo a outros menos conhecidos a ponto de serem mais

habitualmente levados em conta pela academia7

A declamaccedilatildeo apoacutes seu esquecimento quase completo durante o periacuteodo bizantino

(Kennedy 1980 p 166) e apoacutes uma tiacutemida praacutetica das controveacutersias por alguns eruditos do

seacuteculo XI entre os quais destaca-se Anselmo de Cantuaacuteria (Kennedy 1980 p 185) passou a

ser praticada especialmente pelos humanistas do norte da Itaacutelia muito em razatildeo da

redescoberta dos mencionados manuscritos de Secircneca Quintiliano e Ciacutecero A retomada da

praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista tem seu iniacutecio delimitado na Itaacutelia do seacuteculo

XIV e coincide segundo o estudo de Giazzi (2008 p 315-317) com a existecircncia de

manuscritos de declamaccedilotildees sob os moldes antigos realizados e encontrados em Milatildeo e

anexados ao exempla epistolarum de Visconti datados nos anos da virada do seacuteculo XIV para

o XV Segundo Boulet (2013 p 9)

Um grande nuacutemero destas declamaccedilotildees foi pronunciado em situaccedilatildeo de

aprendizagem em contexto escolar como indica o imponente trabalho

pioneiro realizado por Van der Poel (1987) sob a orientaccedilatildeo de Jean-Claude

Margolin Os textos destas declamaccedilotildees pedagoacutegicas foram perdidos ou satildeo

lacunares ou de um interesse mediacuteocre

Mas estes autores natildeo gozavam de vaacuterios escritos fundamentais para a teorizaccedilatildeo e

exemplificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo antiga por exemplo a redescoberta de um dos manuscritos

integrais da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo no mosteiro suiacuteccedilo de Saint Gall pelo humanista italiano

Poggio Braccioloni deu-se apenas em setembro de 1416 (Enos 1990 p 177 Goacutemez

Cervantes 2007 p 424) Este manuscrito ateacute entatildeo soacute era conhecido parcialmente por

intermeacutedio do texto chamado de mutilatus Jaacute as declamaccedilotildees mais antigas consideradas como

pertencentes ao humanismo satildeo as quatro declamaccedilotildees de Coluccio Salutati (1331-1406)

intituladas em latim ldquoDeclamaccedilatildeo de Lucreacuteciardquo ldquoDeclamaccedilatildeo de Priacuteamordquo ldquoQuestatildeo contra

os decemvirirdquo e ldquoSobre o reinordquo (Enos 1990 p 177) A redescoberta do diaacutelogo ldquoSobre o

7 A segunda ediccedilatildeo do cataacutelogo de Murphy e Green apresentou 1717 autores 3842 tiacutetulos de retoacuterica em 12325

impressotildees publicadas em 310 cidades por 3340 editores da Finlacircndia ao Meacutexico (Green e Murphy 2006 p

IX)

41

oradorrdquo por Landriani veio alguns anos depois em 1421 (Strayer 1989 p 24) Data do

mesmo periacuteodo ademais o acesso agraves ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca pelos humanistas uma vez

que alguns excertos teriam sido publicados em Naacutepoles em 1475 e o texto integral que

incluiu as ldquoSuasoacuteriasrdquo foi editado em Veneza em 1490 (Grafton Most e Settis 2010 p

872) O proacuteprio Erasmo foi o responsaacutevel por duas ediccedilotildees da obra de Secircneca datadas de

1515 e 1529 sendo que a primeira ediccedilatildeo eacute anterior ao ano de redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

(1516) (Grafton Most e Settis 2010 p 872) Desta forma o conhecimento de Erasmo acerca

da declamaccedilatildeo natildeo se restringia mais ao manual da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e ao ldquoSobre a

invenccedilatildeordquo como nos tempos de Salutati mas tambeacutem passaria a contar com a influecircncia dos

demais textos ciceronianos assim como outros escritos retoacutericos de Secircneca o Velho

Isoacutecrates Platatildeo entre outros que ou natildeo eram conhecidos pelos autores cristatildeos no iniacutecio do

seacuteculo XV ou natildeo eram largamente valorizados ou difundidos antes da entrada em cena da

imprensa que sem duacutevida potencializou a difusatildeo dos escritos dos autores antigos da Greacutecia

e de Roma (Murphy 2005 p 3)

A redescoberta das declamaccedilotildees e dos textos que teorizam sobre ela aleacutem das

traduccedilotildees de Erasmo de algumas delas escritas em grego especialmente as de Libacircnio e

Luciano certamente influenciaram a praacutetica desse gecircnero pelo holandecircs uma vez que a

declamaccedilatildeo preconizada na retoacuterica ciceroniana na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e no ldquoSobre a

invenccedilatildeordquo que eram consideradas durante os seacuteculos como os escritos retoacutericos por

antonomaacutesia (Kennedy 1980 p 195) Aleacutem dessas obras Knott (1988 p 8-9) percebe a

influecircncia no ldquoSobre a abundacircnciardquo (De copia) de parte do livro I e d o II livro da ldquoInstituiccedilatildeo

Oratoacuteriardquo de Quintiliano justamente as partes que trazem vaacuterias referecircncias teoacutericas sobre o

gecircnero aleacutem das proacuteprias declamaccedilotildees atribuiacutedas a ele talvez atraveacutes da leitura de Valla

Aleacutem da produccedilatildeo de diversos manuais em que constava a praacutetica da declamaccedilatildeo em

ambiente escolar com finalidade explicitamente pedagoacutegica Van der Poel (1987 p 984)

salienta a produccedilatildeo desse gecircnero exterior ao ambiente e ao processo educacional em forma

escrita e literaacuteria tal como praticada por vaacuterios autores entre os quais se destaca a atividade

do ldquopriacutencipe dos humanistasrdquo Em seu ldquoPlano de estudosrdquo (De ratione Studii) por exemplo

Erasmo citava algumas obras fundamentais para a formaccedilatildeo de um humanista na qual se nota

a presenccedila expliacutecita das declamaccedilotildees traduzidas por ele dos temas proacuteprios a tais exerciacutecios e

dos escritos que tratavam sobre a declamaccedilatildeo como os de Secircneca (Kennedy 1980 p 196)

42

Apoacutes ser introduzida no norte da Europa a declamaccedilatildeo foi produzida pelos autores

renascentistas exclusivamente na forma escrita (Murphy 2012 p 69) com entusiasmo natildeo

menor do que a recepccedilatildeo do puacuteblico conforme se denota pelo alcance editorial que

obtiveram pois algumas das mais relevantes obras literaacuterias do Renascimento foram escritas

no formato declamatoacuterio tais como o ldquoElogio da Loucurardquo (1511) de Erasmo e as

declamaccedilotildees de Thomas More A declamaccedilatildeo chamada ldquoliteraacuteriardquo entendida aquela que era

exclusivamente escrita e visava o deleite dos eruditos e natildeo somente a escolar-pedagoacutegica

estava por assim dizer ldquona modardquo entre os autores do seacuteculo XVI

17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas

Entre os autores do Renascimento Van der Poel (2007 p 128-129) e Tunberg (2006

p 9) destacam as seguintes obras algumas das quais anteriores outras contemporacircneas agraves de

Erasmo e outras por fim posteriores agrave Querela como exemplos de declamaccedilotildees

paradigmaacuteticas segundo os preceitos herdados da retoacuterica antiga Apresentamos uma siacutentese

dessas declamaccedilotildees ressaltando os elementos particulares que satildeo pertinentes para uma

comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo antiga consideradas no primeiro capiacutetulo e

a ldquoQueixa da Pazrdquo objeto principal do presente estudo Dentre estas se destacam a

declamaccedilatildeo de Valla (Constatini donatione) e a de More que foram certamente conhecidas

por Erasmo dada a admiraccedilatildeo de Erasmo pelo primeiro e sua amizade pessoal para com o

segundo

171 Lourenccedilo Valla

Em uma de suas epiacutestolas a Cornelis Gerard (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31)

Erasmo afirma que a ldquoElegacircncias da liacutengua latinardquo (Elegantiae linguae latinae) escrito por

Valla o influenciou significativamente Para Gianotti (2008 p 65) os autores humanistas

tomavam o italiano como guia ldquona escolha lexical e estiliacutesticardquo Nessa mesma epiacutestola apoacutes

enumerar Ciacutecero Quintiliano Saluacutestio e Terecircncio como autoridades no tocante agrave prosa

Erasmo tambeacutem admitia a superioridade de Valla

Com efeito quanto agraves observaccedilotildees das elegacircncias em ningueacutem eu tenho tanta

confianccedila quanto em Lourenccedilo Valla pois natildeo temos nenhum outro a atribuir

tanta pertinaacutecia de engenho e tenacidade de memoacuteria Natildeo ousarei pois em

qualquer mateacuteria contrariar o que nas letras aconselhou

43

Conforme explicam Bentley (1977 p 11) e Weiler (1997 p 9) a influecircncia de Valla

sobre Erasmo tem um papel especial em sua formaccedilatildeo intelectual pois jaacute em 1489 o

holandecircs o louvava por restaurar a eloquecircncia em forma escrita e em latim Como veremos o

italiano tambeacutem foi um autor profiacutecuo de declamaccedilotildees que foram conhecidas e emuladas por

Erasmo Bentley (1977 p 28) inclusive afirma a insistecircncia de Valla na submissatildeo da

filosofia agrave retoacuterica e agrave filologia sendo que o holandecircs o seguiu pelo mesmo caminho ldquocom o

objetivo de renovar a moral e a religiosidade da cristandaderdquo (Bentley 1977 p 28) de um

modo muito semelhante e que seraacute explorado ao longo da presente dissertaccedilatildeo nas

declamaccedilotildees erasmianas

Entre as declamaccedilotildees de Valla conta-se a ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo (De falso credita

et ementita Constantini donatione) escrita em 1440 e publicada em 1517 Nesta declamaccedilatildeo

muito provavelmente conhecida por Erasmo o autor com argumentaccedilatildeo histoacuterica e

filoloacutegica demonstrou a falsidade da Doaccedilatildeo de Constantino um documento apoacutecrifo com o

qual a igreja justifica seu poder temporal Constantino e o Papa satildeo as personagens histoacutericas

que atuam no discurso ficcional tal como ocorria em diversas declamaccedilotildees latinas

De fato a palavra declamaccedilatildeo natildeo teria sido inserida por Valla no tiacutetulo mas pelo

editor Uacuterico Von Huten de forma que o autor parece natildeo ter tido a intenccedilatildeo clara de escrever

uma ldquodeclamaccedilatildeordquo (Ginzburg 2004 p xv) pois se pode dizer que a ldquoDoaccedilatildeo de

Constantinordquo se assemelha ao gecircnero diaacutelogo com tema histoacuterico natildeo filosoacutefico Esta

semelhanccedila remonta ao jaacute citado texto de Quintiliano jaacute considerado no capiacutetulo primeiro

que dirimia uma sinoniacutemia corrente entre os a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo devido ao caraacuteter

fictiacutecio e a presenccedila comum de personificaccedilotildees Aleacutem disso segundo o argumento de

Bowersock (2008 p ix) a declamaccedilatildeo de Valla natildeo poderia ser considerada uma declamaccedilatildeo

por natildeo apresentar os dois lados da questatildeo Como vimos no entanto nem todas as

declamaccedilotildees antigas tinham esse formato Ao comparar-se a ldquoQueixa da Pazrdquo com a ldquoDoaccedilatildeo

de Constantinordquo verificou-se que a primeira ao contraacuterio da segunda apresenta uma

descriccedilatildeo narrativa no exordium e apresenta em algumas partes caracteres semelhantes da

sermocinatio conforme consideramos no capiacutetulo primeiro a fim de desenvolver digressotildees e

amplificaccedilotildees de caraacuteter filosoacutefico ou teoloacutegico Ademais segundo Colemann e Perry (2001

p 3-4) tal como a Querela a ldquodeclamaccedilatildeordquo de Valla tem uma finalidade poliacutetica ao influir na

disputa territorial entre o papa Eugecircnio IV e o rei Afonso de Aragatildeo Siciacutelia e Naacutepoles para o

44

qual Valla trabalhava como conselheiro (Bowersock 2008 p vii) Deve-se salientar por fim

que Erasmo concede a voz agrave Paz ao passo o proacuteprio Valla toma a voz do discurso

172 Thomas More

A declamaccedilatildeo ldquoTiranicidardquo (Declamatione qua Luciani Tyrannicidae respondetur) foi

escrita por Thomas More (1478-1535) provavelmente em 1506 em emulaccedilatildeo a uma

declamaccedilatildeo erasmiana que tambeacutem refutava os argumentos do ldquoTiranicidardquo de Luciano

(Rummel 1985 p 50) Como eacute caracteriacutestico do humanismo a obra entra pois em diaacutelogo

extemporacircneo e fictiacutecio com uma ceacutelebre declamaccedilatildeo antiga (Baumann 1985 p 113) Na

obra antiga Luciano defende a causa do tiranicida em uma controveacutersia com argumentos do

gecircnero forense ou judicial (Thompson 1974 xviii) More que tambeacutem traduziu para o latim

a declamaccedilatildeo de Luciano (Logan e Adams 2003 xv) tal como o proacuteprio Erasmo (Chomarat

1981) natildeo quis apenas respondecirc-la como tambeacutem Erasmo o fizera mas expocircs suas proacuteprias

ideias de modo que os dois textos se relacionam formalmente e divergem em alguns pontos

de vista (Fox 1983 p 44) O autor inglecircs defende o argumento de que o tirano seraacute aceitaacutevel

se permitir que a cidade recupere a paz e a ordem de Direito Assim enquanto Luciano

satirizava com ironia a causa do tiranicida More a vitupera seguindo a praacutetica da declamaccedilatildeo

que selecionava apenas um lado da contenda

Erasmo relata a amizade com More e a praacutetica da declamaccedilatildeo realizada juntamente

com o autor inglecircs

Proponho-me agora a falar sobre o assunto daqueles estudos que foram o

principal meio de unir-nos a More e a mim Na sua primeira juventude seus

principais exerciacutecios literaacuterios foram em verso Depois disso More lutou para

tornar a sua prosa mais suave praticando todo tipo de escrita para formar um

estilo o caraacuteter do qual seraacute desnecessaacuterio lembrar especialmente a ti que

estaacute sempre com os seus livros nas matildeos Tinha o maior prazer em participar

de declamaccedilotildees escolhendo sempre algum tema polecircmico por envolver um

exerciacutecio mental importante Enquanto ainda jovem tentou redigir um

diaacutelogo em que desenvolvia a defesa da comunidade de Platatildeo ateacute mesmo na

questatildeo do tratamento das esposas Escreveu uma resposta ao Tiranicida de

Luciano em cuja argumentaccedilatildeo quis ter-me como rival para testar sua

proficiecircncia nesse tipo de escrita More publicou sua Utopia para mostrar o

que provoca o mal na vida das comunidades tendo em vista particularmente a

constituiccedilatildeo inglesa que conhece e entende muito bem Escreveu o Livro II

aos poucos e depois quando viu que um outro era necessaacuterio acrescentou o

Livro I de improviso daiacute uma certa desigualdade que se nota no estilo

(Clarissimo Equiti Ulricho Hutteno Epistolae Allen [ed] Vol 4 1922

Epiacutestola 999 traduccedilatildeo de Ana de Melo Franco)

45

A partir deste texto erasmiano distingue-se a praacutetica da declamaccedilatildeo renascentista

como um exerciacutecio escrito em prosa e um meio de obtenccedilatildeo de um estilo proacuteprio Verifica-se

ademais neste trecho conforme consideramos anteriormente um exemplo tiacutepico das relaccedilotildees

entre os humanistas e o compartilhamento de prosas em gecircneros recebidos da Antiguidade

entre os quais a declamaccedilatildeo com seu espaccedilo significativo praticado simultaneamente como

exerciacutecio e divertimento

Em epiacutestola a Erasmo (26 de maio de 1520) cerca de trecircs anos apoacutes a publicaccedilatildeo da

ldquoQueixa da Pazrdquo More se reporta agraves declamaccedilotildees de Luiacutes de Vives (Thomas More Corr

9335) Destaca o modo como o discurso que versava sobre temas de primeira ordem

utilizava-se do apelo agrave emoccedilatildeo a fim de que o leitor pudesse como que ldquoverrdquo e ldquosentirrdquo

aspectos do que era tratado A declamaccedilatildeo entatildeo tambeacutem eacute entendida como um modo de

expressar e transmitir sentimento em relaccedilatildeo a determinada causa situando-se como um

discurso retoacuterico que sem desprezar as dimensotildees do loacutegos e do ecircthos se dirige

especialmente ao paacutethos ao tocar as emoccedilotildees do leitor Tal troca epistolar entre More e

Erasmo denota a clareza com a qual esses autores entendiam o papeis retoacutericos do ethos e do

pathos e sua respectiva relevacircncia na declamaccedilatildeo

18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas

Van der Poel (2007 p 128-129) depois de apresentar duas formas nas quais as

declamaccedilotildees escritas eram apresentadas durante o Renascimento (ou seja as declamaccedilotildees

destinadas agrave circulaccedilatildeo em manuscrito para um ciacuterculo restrito de amigos mas ainda assim

escritas como os ldquoTiranicidasrdquo de More e Erasmo e as demais destinadas agrave publicaccedilatildeo

editorial) afirma que natildeo haacute uma distinccedilatildeo essencial entre elas mas que se pode observar

que no primeiro tipo predominam os temas histoacutericos enquanto que no segundo daacute-se uma

renovaccedilatildeo da antiga praacutetica oratoacuteria com escritos de gecircnero deliberativo

Um primeiro grupo constitui-se de declamaccedilotildees sobre temas histoacutericos da

Antiguidade ou sobre personagens ceacutelebres que acima de tudo eram vistas

como meros exerciacutecios retoacutericos mas pela escolha do tema e do tratamento

devem ser interpretadas como discussotildees dissimuladas sobre temas

contemporacircneos especialmente da natureza poliacutetica Entatildeo como alguns

discursos cerimoniais certas declamaccedilotildees podem ser categorizadas como

parcialmente ldquoclaacutessicasrdquo e parcialmente ldquomodernasrdquo Exemplos satildeo as

declamaccedilotildees sobre o tiranicida de Tomas More (1478-1535) escrita em

resposta agrave declamaccedilatildeo de Luciano em defesa do tiranicida (Tyrannicida) ou as

46

cinco declamaccedilotildees de Vives as Declamationes Syllanae (1520) na qual os

poliacuteticos romanos argumentam a favor e contra a retenccedilatildeo do poder pelo

ditador de Roma enquanto Sula apresenta seu discurso de abdicaccedilatildeo

Finalmente haacute um grupo de oraccedilotildees ou declamaccedilotildees entre a categoria de

discursos natildeo escritos para a performance mas para a publicaccedilatildeo exclusiva em

forma impressa que a meu ver pode ser considerada completamente como

ldquomodernardquo [hellip] Seus autores claramente tem a ambiccedilatildeo da praacutetica da

verdadeira retoacuterica de Ciacutecero e Quintiliano a quem atribuem um papel

importante para o orador na praacutetica do discurso puacuteblico na esfera civil [hellip]

Quando algum humanista toma a pena para escrever um discurso anunciado

explicitamente como retoacuterico (oraccedilatildeo declamaccedilatildeo elogio ou outro tipo de

denominaccedilatildeo retoacuterica) eacute provaacutevel que ele esteja apresentando sua opiniatildeo

sobre um tema que ele considera relevante para a sociedade como um todo e

apresentando seu ponto de vista com especial assentimento e convicccedilatildeo (Van

der Poel 2007 p 128-129)

Segundo o argumento de Connolly (2009 p 139) as fontes das antigas declamaccedilotildees

inclusive das gregas eram segundo o jaacute citado elenco de temas proposto por Aristoacuteteles as

causas poliacuteticas as quais discutiam a paz e a guerra a guerra civil os impostos as relaccedilotildees

internacionais e outros temas poliacuteticos todos do gecircnero deliberativo e que natildeo deixaram de

estar em voga no Renascimento Quando um reacutetor ou um declamador argumentava a favor da

paz discutiam-se alguns princiacutepios que poderiam confrontar os tiranos de todos os tempos

como a liberdade a virtude da lei e a paz (Ibid p 140) Estas faziam com que a declamaccedilatildeo

natildeo fosse antiga ou moderna mas em um sentido ainda mais amplo e menos restritivo quase

atemporal na medida em que eram valores que perpassavam vaacuterias eacutepocas histoacutericas mas

tambeacutem se mantinha em comum uma espeacutecie de tradiccedilatildeo dada a invenccedilatildeo e a imitaccedilatildeo

ambas baseadas em padrotildees estabelecidos por autores antigos

De fato tanto o locutor de um exerciacutecio declamatoacuterio nos tempos do Impeacuterio quanto

um humanista que escrevia sua ldquodeclamaccedilatildeordquo em que tocava pontos de interesse para a

sociedade tinham em vista assuntos que chamariam a atenccedilatildeo dos seus ouvintes e que se

mostrariam uacuteteis (utilitas) conforme os princiacutepios basilares do deliberativo

Nesse sentido verifica-se que agrave semelhanccedila das declamaccedilotildees romanas que inseridas

nas tiacutepicas atividades dos reacutetores foram entendidas como ofensivas ao despotismo imperial

as declamaccedilotildees renascentistas abordavam temas uacuteteis e muitas vezes polecircmicos diante das

autoridades Jaacute citamos acima a afirmaccedilatildeo de Mack (2004 p 261) segundo a qual ldquoo

renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo

adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo Se a recuperaccedilatildeo eacute evidente com a retomada da antiga declamaccedilatildeo a

adiccedilatildeo (additon) e a renovaccedilatildeo (change) datildeo-se justamente na atualizaccedilatildeo deste gecircnero em

47

relaccedilatildeo ao contexto histoacuterico social no qual estaacute inserido Esta adaptaccedilatildeo ao contexto era

exigida tanto na chamada declamaccedilatildeo que o autor denomina como ldquoclaacutessicardquo como na dita

ldquomodernardquo uma vez que a audiecircncia ou os leitores precisam ser convencidos segundo as

paixotildees que lhes satildeo sensiacuteveis conforme os argumentos que lhes satildeo verossiacutemeis e em

concordacircncia com sua compreensatildeo da moral e dos costumes A mudanccedila se alinha agrave eacutepoca

mas ela proacutepria jaacute era prevista pelos claacutessicos de modo que eacute uma das caracteriacutesticas

imprescindiacuteveis para um discurso efetivamente persuasivo

19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas

Consideramos anteriormente que a imitaccedilatildeo do gecircnero da declamaccedilatildeo nos primoacuterdios

do seacuteculo XIV entre os humanistas do norte da Itaacutelia das declamaccedilotildees de autores antigos que

escreveram em grego e latim e a redescoberta do texto completo da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria de

Quintiliano foram passos determinantes para a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo feita por Erasmo

Chomarat (1981 p 934) observa que os princiacutepios teoacutericos claacutessicos da declamaccedilatildeo

chegaram ao Renascimento por meio dos escritos desse autor romano Sobretudo com

Lourenccedilo Valla o orator era denominado como ldquoaquele que fala diante de uma tribuna ou

assembleiardquo e o rhetor ldquoeacute o professor de retoacutericardquo Jaacute o declamador eacute

aquele que estudando com o reacutetor executa uma causa fictiacutecia diante dos

alunos reunidos a fim de poder em seguida exercitar-se nas causas reais O

reacutetor que mesmo fora da escola pratica esse gecircnero seja para exercitar outras

pessoas seja para exercitar-se a si mesmo eacute denominado declamador (Valla

Elegacircncias da liacutengua latina IV 81)

Um contemporacircneo de Erasmo Henricus Cornelius Agrippa (1486-1535) que

tambeacutem produziu diversas declamaccedilotildees com temas semelhantes agraves erasmianas assim

conceitua a declamaccedilatildeo

por conseguinte a declamaccedilatildeo natildeo julga natildeo dogmatiza mas () fala por

vezes como brincadeira por vezes seriamente agraves vezes com falsidade agraves

vezes com rigor ela fala agraves vezes segundo meu proacuteprio pensamento agraves vezes

segundo o pensamento de outrem ela propotildee verdades falsidades afirmaccedilotildees

duacutebias () ela aduz a muitos argumentos sem valor (Cornelius Agrippa

Apologia adversus calumnias propter declamationem de Vanitate scientiarum

1533) (apud Chomarat 1981 p 941)

Como vimos tanto na definiccedilatildeo de Valla como na de Agripa permanecem duas

caracteriacutesticas principais da declamaccedilatildeo tal como fora entendida e praticada pelos autores

antigos especialmente Quintiliano ou seja trata-se de um exerciacutecio de elocutio e de um

48

discurso fictiacutecio Van der Poel (1997 p 128-129) comenta que a definiccedilatildeo de Agripa e dos

humanistas em geral inclusive de Erasmo era a de um discurso de uma personagem fictiacutecia

Mas devido ao fato de que a declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista natildeo tem mais a finalidade

de ser meramente um exerciacutecio escolar e eacute praticada de forma escrita Surtz (1957 p 9)

propotildee que esta seja ldquouma composiccedilatildeo escrita para o divertimento e para o prazer a fim de

exercitar o talento nativo do autor e desenvolver seu poder literaacuteriordquo

110 Conclusotildees do capiacutetulo

O presente capiacutetulo teve a finalidade de expor alguns elementos sobre a recepccedilatildeo do

gecircnero da declamaccedilatildeo entre os humanistas As declamaccedilotildees antigas se classificam de dois

modos eram privadas ou puacuteblicas (Kennedy 1980 p 103) isto eacute natildeo podem ser reduzidas

somente a exerciacutecios escolares executados para a educaccedilatildeo dos jovens oradores mas tinham

tambeacutem um caraacuteter performaacutetico uma vez que costumavam ser praticadas por adultos com a

finalidade de produzir deleite em reuniotildees sociais ou como tirociacutenios privados da eloquecircncia

(Schwartz 2004 p 68-69 Edward 1928 p xiv Fairweather 1981 p 544) Contudo

Winterbottom (1980 p 13) baseado em um texto de Quintiliano que trata do panegiacuterico e do

demosntrativo no contexto das declamaccedilotildees escolares (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 11)

afirma que algumas das declamaccedilotildees puacuteblicas eram por assim dizer do epidiacutetico uma vez

que visavam muitas vezes a estabelecer um elogio ou um vitupeacuterio ao contraacuterio das demais

declamaccedilotildees ldquodidaacuteticasrdquo Baseado em Quintiliano Winterbottom (1980 p 26-27) reconhece

o gecircnero judiciaacuterio como a principal finalidade da declamaccedilatildeo mas distingue na

Controuersiae 276-9 de Secircneca o Reacutetor elementos caracteriacutesticos do gecircnero epidiacutetico

demonstrando que o elogio e o vitupeacuterio tambeacutem eram recursos retoacutericos correntes nas

declamaccedilotildees de gecircnero judicial pois muitas vezes era necessaacuterio qualificar a viacutetima ou uma

testemunha atraveacutes do elogio e desqualificar o reacuteu ou uma testemunha atraveacutes do vitupeacuterio

Como vimos o proacuteprio Ciacutecero afirmou declamar entre os seus amigos e familiares

justamente para exercitar-se para os momentos mais importantes de sua accedilatildeo poliacutetica Na

Roma Imperial difundiu-se na alta sociedade o costume de fazecirc-lo de modo que a

historiografia romana registrou na vida de alguns imperadores ao longo do periacuteodo

contemplado o costume de executar declamaccedilotildees (Schwartz 2004 p 68-69) Embora se

possa discutir acerca da real historicidade desses relatos pode-se dizer que a atribuiccedilatildeo da

49

praacutetica declamatoacuteria pelos textos historiograacuteficos a respeito da vida dos imperadores denota

que essa praacutetica gozava de certo prestiacutegio ao menos no periacuteodo imperial muito embora

alguns textos critiquem os declamadores e suas performances O proacuteprio fato de dedicar

espaccedilo para criacutetica escrita numa eacutepoca em que a produccedilatildeo de texto natildeo era tatildeo simples atesta

o alcance que a declamaccedilatildeo teve na sociedade romana

Verificou-se que a recepccedilatildeo e a praacutetica do gecircnero no Renascimento teve seu iniacutecio no

norte da Itaacutelia e coincidiram ndash ou foram causadas ndash com a redescoberta de manuscritos suas

traduccedilotildees e reediccedilotildees impressas de algumas das obras retoacutericas mais importantes e que

tratavam sobre a declamaccedilatildeo de autores como Ciacutecero Quintiliano e Secircneca Vaacuterios

humanistas como Salutati e Valla (situados no seacuteculo XV) e Erasmo de Rotterdam Thomas

More Corneacutelio Agrippa entre outros cuja atividade puacuteblica data da primeira metade do

seacuteculo XVI produziram declamaccedilotildees escritas como exerciacutecio o que eacute caracteriacutestico desse

tempo e o que as diferencia da Antiguidade vimos ainda que as definiccedilotildees das caracteriacutesticas

essenciais da declamaccedilatildeo propostas por Valla e Agripa satildeo concordes com as antigas no

sentido de afirmaacute-la como exerciacutecio retoacuterico escrito de um discurso fictiacutecio sobre temas

suasoacuterios ou epidiacuteticos com ao menos duas finalidades expliacutecitas divertir atraveacutes de formas

e referecircncias que provocam o riso e instruir atraveacutes da persuasatildeo e da defesa de valores

eacuteticos abandonados ou marginalizados pela sociedade

50

51

CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ

O presente capiacutetulo tem como finalidade apresentar agumas caracteriacutesticas gerais da

declamaccedilatildeo erasmiana tais como suas definiccedilotildees temas classificaccedilotildees e o contato de Erasmo

com outras declamaccedilotildees de seu tempo Aleacutem disso procura salientar os argumentos a favor e

contra a classificaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo enquanto pertencente a esse gecircnero em uma

comparaccedilatildeo com algumas das declamaccedilotildees do final do periacuteodo republicano e do iniacutecio do

impeacuterio

21 Definiccedilotildees erasmianas

A definiccedilatildeo de declamaccedilatildeo proposta por Erasmo abrange a proposiccedilatildeo principal das

definiccedilotildees de Valla e Agripa ou seja do exerciacutecio-fictiacutecio O holandecircs distingue entre

declamador reacutetor e orador na sua paraacutefrase ao Elegantias de Valla ldquodeclamador eacute aquele

que a soacutes ou na escola de retoacuterica defende uma causa fictiacutecia a fim de melhor executar uma

causa verdadeira Declamar eacute exercitar-se em um discurso sobre um tema fictiacuteciordquo (Opera

Omnia Erasmi I-4 ll 313923) Erasmo parecia estar bem ciente dos limites e das

caracteriacutesticas essenciais do gecircnero como se depreende por exemplo de uma citaccedilatildeo extraiacuteda

de seus Adaacutegios a qual natildeo deixa de ser tambeacutem uma autocriacutetica feita a partir da

classificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo presente em um escrito de Jerocircnimo (Erasmo Adagia 2500 III

V 100 Nec aures habeo nec tango) Tal comentaacuterio aparece na explicaccedilatildeo do adaacutegio 100

cujo significado pode ser entendido como ldquonatildeo tenho ouvidos nem tocordquo e se insere no

contexto de algueacutem que pegou algo de outro e diante do protesto deste dissimula a posse Ao

explicar o proveacuterbio o holandecircs cita uma epiacutestola que Jerocircnimo qualifica como declamaccedilatildeo

(Epiacutestola 117 12) cujo tema seria sobre a reconciliaccedilatildeo de uma matildee com sua filha

Justamente ao denominar como tal esse escrito e talvez percebendo que a causa natildeo eacute

deliberativa nem judicial nem mesmo um elogio ou sequer um caso fictiacutecio mas tendo

permanecido o caraacuteter de exerciacutecio Erasmo manteacutem a denominaccedilatildeo de declamaccedilatildeo talvez

por respeito agrave autoridade do Padre da Igreja que tambeacutem era reacutetor muito embora esta

classificaccedilatildeo possa ser facilmente contestada Erasmo portanto estaria consciente de que a

declamaccedilatildeo tem seus limites proacuteprios e que Jerocircnimo poderia ser criticado ao extrapolaacute-los

ao denominar assim neste texto em particular

52

Com base na definiccedilatildeo erasmiana Akkerman (1995 p 53-54) procura diferenciar a

declamaccedilatildeo da oraccedilatildeo ldquoEm um sentido mais restrito oratio eacute um discurso que eacute na verdade

realizado em resposta a um evento social ou cerimonial e declamaccedilatildeo um exerciacutecio fictiacutecio

que se executa na escola ou a soacutesrdquo Erasmo tambeacutem entendia como declamaccedilatildeo ldquoum tema

imaginaacuterio que se trata a favor e contra a fim de exercitar a eloquecircnciardquo Essa definiccedilatildeo

segundo Chomarat (1981 p 937) seria ldquoa que mais distingue a declamaccedilatildeo da

bdquodeterminaccedilatildeo‟ dos teoacutelogos escolaacutesticosrdquo conforme consta em vaacuterias passagens do ldquoSobre a

liacutenguardquo (De liacutengua) o primeiro equiacutevoco estiliacutestico mencionado por ele seria o fato de atribuir

palavras ou expressotildees que inflam a importacircncia das coisas de modo que o tom do discurso

solene inclusive na declamaccedilatildeo natildeo condiz com o assunto tratado Assim este torna-se

tedioso falso e inclusive ridiacuteculo Tal modo de proceder o holandecircs o entende como uma

ldquotagarelice declamatoacuteriardquo que corrompe a verdadeira finalidade da eloquecircncia Embora

afirmasse que para julgar as declamaccedilotildees ldquonatildeo se deve considerar a verdade objetiva das

mateacuterias mas o talento natural e o poder persuasivo do escritorrdquo (Apologia Adversus

Monachos Quosdam Hispanos Opera IX 1089) estava ciente do poder persuasivo deste

gecircnero e dos incocircmodos que seu uso para fins poliacuteticos poderia gerar Por isso Erasmo

utilizou-se dele ao tratar sobre assuntos poliacuteticos nem um pouco unacircnimes como eacute o caso da

querela da paz e da guerra

Por fim haacute referecircncias agrave declamaccedilatildeo tambeacutem no Diaacutelogo Ciceroniano Nosoacutepono o

ciceroniano inveterado que defendia a imitaccedilatildeo restrita dos escritos de Marco Tuacutelio afirmava

praticar com alegria (feliciter) a declamaccedilatildeo (Erasmo Ciceroniano 644[21]) mas recusava a

sugestatildeo de Buleacuteforo de receber as contribuiccedilotildees de Quintiliano a esse gecircnero (Erasmo

Ciceroniano 657[35]) Deste trecho em contraste com o que defendiam os chamados

ciceronianos se percebe que a declamaccedilatildeo erasmiana natildeo se restringe agrave imitaccedilatildeo de Ciacutecero

mas era um gecircnero que se fundamentava essencialmente na recepccedilatildeo de outros autores que

praticaram ou teorizaram acerca deste gecircnero com maior ecircnfase do que ele tais como os

declamadores latinos e gregos do periacuteodo imperial Secircneca Quintiliano Plutarco Luciano

Libacircnio entre outros Erasmo aliaacutes sem distinguir a autenticidade da atribuiccedilatildeo de autoria

das ldquoDeclamaccedilotildees Maioresrdquo e ldquoMenoresrdquo a Quintiliano elogiava no ldquoSobre a abundacircnciardquo

(De copia 204-205 [246-247]) ldquoas descriccedilotildees das coisasrdquo apontando este elemento localizado

geralmente logo apoacutes o proecircmio da declamaccedilatildeo como um artifiacutecio para a captaccedilatildeo da

benevolecircncia e da atenccedilatildeo do leitor Por outro lado no Cap 12 [504-507] analisa o uso que

53

Ciacutecero fazia do termo declamare em passagem que evoca o livro II da ldquoRetoacutericardquo aristoteacutelica

ao relacionaacute-lo com a caracterizaccedilatildeo adequada ou apropriada de cada personagem de acordo

com a sua idade Entre os vaacuterios elementos a serem exercitados com a praacutetica declamatoacuteria

Erasmo apresenta em seu ldquoPlano de Estudosrdquo o ecircthos representado nas prosopopeias como um

dos pontos fundamentais as descriccedilotildees dos lugares do tempo e das coisas assim como a

dequaccedilatildeo das personificaccedilotildees agrave idade (jovens ou idosos) ou agrave profissatildeo (prostitutas soldados)

entre outros (Opera Omnia I-II 143[1-9] 1971 p 143)

22 Temas

Erasmo eacute muito expliacutecito ao tratar da declamaccedilatildeo e dos exerciacutecios (note-se o uso de

progymnasmata) em seu De ratione Para ele haacute necessidade de tratar de temas atuais uacuteteis

para a sociedade (respublica) que natildeo tenham somente a simples finalidade de exerciacutecio

retoacuterico ou de rememoraccedilatildeo de dados mitoloacutegicos e histoacutericos nem mesmo meras

elucubraccedilotildees inuacuteteis da dialeacutetica atribuiacuteda pelos humanistas aos escolaacutesticos Neste sentido a

declamaccedilatildeo erasmiana eacute praacutetica visa influenciar o leitor educaacute-lo natildeo somente no sentido de

aplicar na vida cotidiana os ditames da retoacuterica antiga mas tambeacutem de instruiacute-lo em valores

como a justiccedila a paz a coerecircncia dos costumes e o combate aos haacutebitos considerados

ridiacuteculos e que se fundamentavam numa tradiccedilatildeo cristatilde teologicamente mal entendida Se por

um lado algumas partes do discurso provocam reflexotildees seacuterias outras partes poreacutem apesar

da gravidade do assunto (por exemplo quando se fala de paz e guerra) deleitam o leitor sem

deixar de ser uacutetil por ser pertencente ao gecircnero deliberativo

Desse modo era necessaacuterio que este jogo [elocutoacuterio] fosse apresentado de

modo elegante para que o jovem se exercitasse nas escolas atraveacutes das

declamaccedilotildees muito embora Quintiliano tivesse com razatildeo preceituado que a

simulaccedilatildeo da declamaccedilatildeo acontecesse de uma forma mais proacutexima possiacutevel

com as verdadeiras accedilotildees pois os temas a se declamar costumavam ser

escolhidos entre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeis Com

efeito aqueles exerciacutecios satildeo importantes para os jovens porque tem o

objetivo de instrui-los sobretudo quando o argumento eacute tirado da Histoacuteria e eacute

adaptado agraves palavras e agraves sentenccedilas daqueles tempos contudo seraacute ainda mais

instrutivo atuar sobre as causas verdadeiras que tratam de questotildees envoltas

em circunstacircncias do tempo presente como se algueacutem as desenvolvesse para

que se aperfeiccediloe a repuacuteblica (Erasmo De ratione Studii Desiderii Erasmi

Opera Omnia I-II 1971 p 695[28-33] ndash p 696[1-2])

Quando Erasmo menciona que os ldquotemas a se declamar costumavam ser escolhidos

dentre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeisrdquo podemos entender que o autor

54

visava um discurso que natildeo fosse somente uma espeacutecie de reproduccedilatildeo saudosa dos antigos

gecircneros discursivos gregos e romanos mas uma discussatildeo incisiva sobre os costumes das

pessoas de seu tempo Quando pertencente ao deliberativo abordaria temas que seriam

pertinentes para a sociedade como aliaacutes o era a polecircmica a respeito dos benefiacutecios da paz e

dos malefiacutecios da guerra inclusive sob o aspecto individual A Paz apresenta argumentos

praacuteticos contra a guerra como as dificuldades para o comeacutercio os gastos com mercenaacuterios e

armamentos e inclusive a inseguranccedila provocada pelo acuacutemulo destes em relaccedilatildeo ao

patrimocircnio dos cidadatildeos e possiacuteveis abusos contra a honra das mulheres

Neste sentido se as declamaccedilotildees erasmianas tratavam dos temas mais diversos tais

como a guerra a paz a infacircncia a loucura o matrimocircnio a vida monaacutestica e a medicina

entre outros Nelas era corrente o elogio e o vitupeacuterio seja nos escritos em que predominava

o Encomium seja nos deliberativos abordavam-se posiccedilotildees consideradas absolutas ou

irrefutaacuteveis por parte de teoacutelogos e filoacutesofos No lugar de privilegiar a loacutegica e o exaurimento

dos argumentos como eacute proacuteprio da dialeacutetica considerava esse temas poreacutem de modo a

privilegiar o que era uacutetil ao ser humano e afrontava os argumentos contraacuterios aos seus ideais

atraveacutes da retoacuterica Erasmo natildeo negava a verdade mas valorizava o que favorecia a

humanidade ulizando-se da retoacuterica para uma finalidade que considerava justa Erasmo estava

ciente de que ldquonatildeo existe nada tatildeo bom por natureza que natildeo possa ser distorcido por um

declamador astutordquo (Liber utilissimus de Conscribendis Epistolis 1670 p 267) mas estava

certo tambeacutem de que o declamador competente deveria primiar pela justiccedila e pela utilidade

mais do que pela mera busca da verdade abstrata e muitas vezes inuacutetil para o bem comum

muito embora fosse conveniente para os propugnadores da guerra

O caso concreto das discussotildees sobre a guerra justa ndash tatildeo defendida e inclusive

promovida por teoacutelogos alinhados aos interesses temporais de conquistas feudais ou mesmo

das guerras contra o islatilde ndash era um tema polecircmico uma vez que nem sempre a paz era do

convinha aos priacutencipes inclusive neste contubardo iniacutecio do seacuteculo XVI Em outras palavras

segundo esse trecho do texto supracitado o declamador astuto tem o poder de reunir a favor

do seu argumento uma apresentaccedilatildeo da realidade afim agrave sua causa Os argumentos eram

alinhavados em vista da finalidade prevista e poderiam distorcer ldquoverdadesrdquo incontestes

Trata-se natildeo somente da possibilidade de selecionar e dispor de argumentos mas de um modo

de apresentar que rompe ou desconstroacutei paradigmas a fim de construir outros talvez

55

esquecidos ou postos de lado como o eacute no caso em questatildeo a causa da paz e oposiccedilatildeo agrave

doutrina da guerra justa

Erasmo advoga pela paz e o faz como cristatildeo mas natildeo se apresenta ao menos no texto

da ldquoQueixa da Pazrdquo como um filoacutesofo ou um teoacutelogo compromissado com o que chama de

verdade a ponto de apresentar os dois lados da questatildeo ou seja os argumentos a favor e

contra a paz e a guerra mas defendia aquela sem considerar as objeccedilotildees contra o irenismo

dispondo sua razotildees com a finalidade de fazer bem ao auditoacuterio no sentido de instruiacute-lo com

valores eacuteticos como eacute o caso daqueles que fundamentam a opccedilotildees pela paz Neste sentido

Erasmo natildeo seria um sofista que alinha argumentos contra a guerra mas um ceacutetico em relaccedilatildeo

agrave sua eficaacutecia na resoluccedilatildeo dos problemas Acreditava que a concoacuterdia era mais adequada e

duradoura para a resoluccedilatildeo de qualquer espeacutecie de conflito em contraste com a guerra uma

espeacutecie de multiplicadora dos males

Conveacutem entatildeo demonstrar as incoerecircncias dos propugnadores da guerra apontando

os malefiacutecios desconsiderados pelos que defendiam o princiacutepio da guerra justa conforme

estudaremos ao caracterizar a Paz como saacutebia e teoacuteloga no uacuteltimo capiacutetulo da presente

dissertaccedilatildeo Essa afirmativa natildeo nega poreacutem uma espeacutecie de outra finalidade pedagoacutegica da

declamaccedilatildeo erasmiana natildeo menos relevante que a primeira como consta em uma passagem

da epiacutestola a Ulrico de Hutten Nesta ao comentar a declamaccedilatildeo sobre o ldquoTiranicidardquo de

Luciano e a ldquoUtopiardquo de More Erasmo estava ciente da finalidade de deleitar ou comprazer

proacutepria ao gecircnero conforme o texto supracitado no qual mencionada o percurso da formaccedilatildeo

retoacuterica do seu amigo More

Conveacutem notar que as declamaccedilotildees humanistas de modo anaacutelogo ao que se verificou

naquelas praticadas em ciacuterculos de adultos e amigos no periacuteodo republicano e imperial

tambeacutem visavam ao deleite situando-se entatildeo como uma autecircntica produccedilatildeo artiacutestica Desse

modo natildeo parece absurdo afirmar que a declamaccedilatildeo segundo a concepccedilatildeo erasmiana tem

um a dupla finalidade formativa (eacutetica situada nos valores e retoacuterica como aplicaccedilatildeo praacutetica

de princiacutepios em um discurso concreto) com toda a seriedade imposta pela gravidade dos

temas mas com o intuito de natildeo menosprezar a finalidade propriamente artiacutestica de deleitar

ou divertir o leitor Nesse ponto verifica-se a qualidade das declamaccedilotildees erasmianas que

sabem ser seacuterias jogando com temas graves sem deixar de formar os valores considerados

56

humanos justos e uacuteteis Desse modo o roterdamecircs parece evocar o ceacutelebre preceito

horaciano unir o uacutetil ao agradaacutevel (utile dulci)

23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes

Erasmo teve contato direto com as declamaccedilotildees e teorizaccedilotildees sobre este gecircnero

escritas em grego ou em latim por Isoacutecrates Plutarco Luciano e Libacircnio O proacuteprio holandecircs

atuou como editor e tradutor de algumas delas em um periacuteodo imediatamente anterior agrave

publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 entre as quais se destacam aquelas elencadas por

Rummel (1985 p 171-172) e cujos fac-siacutemiles estatildeo disponiacuteveis para consulta on-line no site

oficial8 da Biblioteca Nacional da Franccedila e que tambeacutem foram reeditadas na ediccedilatildeo criacutetica da

obra de Erasmo

231 Isoacutecrates

De fato Erasmo durante sua juventude traduziu alguns panegiacutericos de Isoacutecrates os

pertencentes ao gecircnero demonstrativo sobretudo no tocante agrave vituperaccedilatildeo e ao elogio a ponto

de publicar o Ad Nicolem juntamente com a ldquoInstituiccedilatildeo do Priacutencipe Cristatildeordquo em Basileia no

ano de 15169 Um princiacutepio pedagoacutegico atribuiacutedo por Erasmo a Isoacutecrates citado no ldquoSobre os

meninosrdquo (De pueris) e que parece se coadunar com as duas finalidades pedagoacutegicas da

declamaccedilatildeo (eacutetica e retoacuterica) eacute justamente o princiacutepio segundo o qual o recurso ao paacutethos

proacuteprio do exerciacutecio retoacuterico predispotildee o aluno a aprender quando seu afeto eacute movido ao

conteuacutedo proposto Trata-se do aprendizado atraveacutes do delectare ou seja do prazer que eacute

inerente agrave declamaccedilatildeo de alto niacutevel Os discursos escritos entatildeo neste gecircnero teriam o poder

de fazer com que o leitor amasse os valores eacuteticos e os recursos retoacutericos apresentados durante

o discurso A vituperaccedilatildeo tambeacutem age sobre a vontade do aluno uma vez que produz a

repulsa agraves atitudes e aos princiacutepios natildeo considerados eacuteticos pelo retoacuterico e a ridicularizaccedilatildeo

destes no interior do discurso visa entatildeo desconstruir a pretensa legitimidade de tais accedilotildees

que muitas vezes se atribuiacuteam agrave tradiccedilatildeo ou agrave justiccedila como eacute o caso da guerra

8 Disponiacutevel em httpwwwbnffrfraccxaccueilhtml Acesso 17 nov 2015

9 Aleacutem do panegiacuterico de Isoacutecrates e das declamaccedilotildees de Luciano e Libacircnio diretamente relacionadas com as

declamaccedilotildees erasmianas Erasmo tambeacutem editou outras obras no mesmo dececircnio que a Queixa da Paz tal como

a Institutiones grammaticae uma gramaacutetica grega escrita no seacuteculo XV escrita por Teodoro de Gaza e publicada

em dois volumes em Lovaina (1516 e 1518) e as traduccedilotildees de Rodolfo Agriacutecola de Isoacutecrates (Ad Demonicum)

publicada na mesma cidade em 1517

57

232 Plutarco

A influecircncia de Isoacutecrates eacute reduzida ao comparar-se com aquela de Plutarco Na

epiacutestola a Thomas Grey (Epiacutestola 64 Paris agosto de 1497 l 81 Allen 1974 p 137)

Erasmo jaacute mencionava a personagem Gryllard o que denota seu acesso agrave Moralia (985D-

992A) e a alguns discursos em grego entre os quais aqueles que satildeo explicitamente

classificados como declamaccedilotildees O mais significativo deles eacute sem duacutevida o ldquoSobre a

educaccedilatildeo dos meninosrdquo que influenciou diretamente o ldquoSobre os meninosrdquo do roterdamecircs

Natildeo sem razatildeo discursos de Plutarco foram vertidos por ele ao latim e editados em 1515

cerca de dois anos antes da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517)

233 Luciano

Segundo Boulet (2015 p 69) em recente estudo sobre as declamaccedilotildees renascentistas

Ao lado de Plutarco Luciano parece um autor particularmente interessante no

movimento que leva de Aristoacuteteles a Ciacutecero e de Erasmo a Boeacutecio Ambos os

autores satildeo constantemente mencionados direta ou indiretamente nas

declamaccedilotildees que nos interessam eles eram constantemente traduzidos e

comentados Eles satildeo exemplos para os autores que noacutes estudaremos

considerados como guias e modelos Certo nuacutemero de tratados de Luciano foi

traduzido para o latim por More e quatro por Erasmo

O roterdamecircs natildeo se debruccedilou em escritos de temas poliacuteticos ou naqueles atribuiacutedos

ao gecircnero judiciaacuterio mas aleacutem dos escritos no gecircnero demonstrativo dedicou-se ao estudo e

agrave traduccedilatildeo de vaacuterias declamaccedilotildees como as de Luciano (Rummel1985 p 21)

Erasmo dedicou-se de modo especial ao esforccedilo de traduzir do grego para o latim

diversas obras de Luciano (125-180 d C) reacutetor que se destacou por suas obras satiacutericas

conforme o proacuteprio holandecircs afirma na ldquoEpiacutestola a Joatildeo Botzheimrdquo10

Luciano foi ainda um

dos autores explicitamente prestigiado no ldquoPlano de Estudosrdquo erasmiano muito embora

alguns autores quinhentistas criticassem o valor de suas obras conforme se lecirc na introduccedilatildeo agrave

traduccedilatildeo ao ldquoTimeurdquo de Platatildeo realizada por Erasmo (Robinson 1969 p 365) Dentre as

traduccedilotildees das declamaccedilotildees de Luciano realizadas e publicadas em dois volumes ao longo do

10

Erasmo enumera As saturnais Cronosolon Algumas epiacutestolas saturnais Sobre o luto Icaromenipo

Toxaris O pseudomante O sonho ou o galo Tiacutemon O abdicante o Tiranicida Sobre aqueles que satildeo

conduzidos aos palaacutecios dos poderosos por mercecirc

58

ano de 1506 algumas foram publicadas sob o tiacutetulo de Luciani compluria opuscula (Toxaris

Tyrannicida Timon Gallus De mercede conductis e Longaevi) e outra parte foi dada a

conhecer com o tiacutetulo de Opuscula (Dialogi Mortuorum Dialogi Deorum Dialogi naturam

Hercules Eunuchus De Sacrificiis e Convivium) Erasmo retornou entre os anos de 1511 e

1512 agrave traduccedilatildeo e ediccedilatildeo de um terceiro grupo de escritos de Luciano (Icaromenippus

Saturnalia Astrologia Cronosolon Espistolae Saturnale De luctu e Abdicatus) publicados

com as traduccedilotildees anteriores sob o tiacutetulo de ldquoLuciani Erasmo interprete dialogirdquo em Paris

no ano de 1514 Essas obras jaacute foram republicadas pela ediccedilatildeo criacutetica de Amsterdam (1969-

atual) Thompson (1974 p 92) reafirma o consenso dos pesquisadores acerca da influecircncia do

estilo das declamaccedilotildees de Luciano sobre as erasmianas entre outros fatores pelo recurso agrave

ironia o sarcasmo elegante e a forma de ridicularizar costumes sociais incoerentes ou

supersticiosos conforme escreveu More que atribuiu ao holandecircs seu contato com as

declamaccedilotildees lucianescas Aliaacutes um dos toacutepos da primeira parte da ldquoQueixa da Pazrdquo reafirma

justamente alguns dos princiacutepios atribuiacutedos por Erasmo a Luciano na epiacutestola introdutoacuteria ao

ldquoSobre a Liacutenguardquo como eacute o caso da comparaccedilatildeo dos animais com o homem em tom de

superioridade justamente pelo fato de que embora sejam tidos como irracionais natildeo se

inferiorizam ao homem subjugado pelas paixotildees e pelos vis interesses pois a troca de lugar

entre homem e animal para desnudar a sociedade eacute um lugar comum da saacutetira lucianesca

(Erasmo Epiacutestola a Cristoacutevatildeo de Schiidlovietz p 19 ll 9-13) Para Erasmo o grande meacuterito

dos diaacutelogos de Luciano era fazer com que os mais jovens se deleitassem com o estilo e a

liacutengua (De conscribendis epistolis I 353B) Tal afirmativa ainda se verifica no ldquoSobre a

abundacircnciardquo no qual natildeo se absteacutem de elogiar a capacidade descritiva do caraacuteter viril

realizada por Luciano em Hamocircnidas (De copia II 198 ll 51-54-70-75)

234 Libacircnio

Quanto a Libacircnio (314-394 d C) filoacutesofo e professor de retoacuterica que escreveu em

grego Erasmo prefaciou a traduccedilatildeo da Declamatiuncula versa e graeco Libanio cum

thematis aliquot versis que foi publicada sob o tiacutetulo de Libanii aliquot declamatiuncula em

1503 Essas declamaccedilotildees merecem destaque dentro da obra de Erasmo e do Projeto

Humanista (Rummel1985 p 21) por assim dizer de recuperaccedilatildeo dos autores greco-

romanos uma vez que o proacuteprio Libacircnio teve inclusive parte de sua formaccedilatildeo realizada na

59

Greacutecia tendo facilitado acesso a autores gregos antigos apesar da dificuldade de transmissatildeo e

leitura de textos inclusive na atiguidade tardia

Sua atividade como reacutetor inclusive participando de competiccedilotildees puacuteblicas foi

realizada junto aos imperadores que visavam a uma recuperaccedilatildeo da antiga religiatildeo romana

Estes estavam em franco antagonismo com os cristatildeos que por sua vez tentavam suprimir a

antiga religiatildeo e a proacutepria mitologia contida nas tradiccedilotildees de escritos greco-romanos

consideradas meros rituais maacutegicos que prejudicavam a feacute cristatilde (Williams 2009 p 420)

Embora as declamaccedilotildees de Libacircnio fossem datadas da era cristatilde tinham talvez a preferecircncia

de Erasmo por portarem relevantes elementos da retoacuterica claacutessica segundo Kennedy

(1983162-163) tais discursos se diferenciavam dos antigos entre os quais predominavam os

temas judiciais e deliberativos ao apresentarem principalmente temas mitoloacutegicos ou

histoacutericos gregos com a finalidade de discutir assuntos pertinentes para o seu tempo

Libacircnio escreveu cerca de sessenta e quatro oraccedilotildees dentre as quais muitas (cf

oraccedilotildees 48 49 e 50) possuem temas deliberativos em razatildeo de sua proacutepria atividade no

acircmbito poliacutetico Outro atributo de suas declamaccedilotildees eacute o fato de iniciar algumas delas com

narrativas (katastasis) o que foi adotado por Erasmo em muitas de suas declamaccedilotildees Em

Erasmo a Loucura e a Paz por exemplo natildeo estabelecem uma narrativa em terceira pessoa

mas se caracterizam na abertura dos seus discursos atraveacutes de uma locuccedilatildeo direta Libacircnio

contudo se mostrava coerente com os manuais antigos de retoacuterica que apresentavam a

declamaccedilatildeo enquanto exerciacutecio que defendia os dois lados de uma questatildeo pois muitas das

suas declamaccedilotildees eram seguidas de uma ou vaacuterias antitheses finalizadas por um epilogo

(Williams 2009 p 424) Tal princiacutepio natildeo era seguido por Erasmo que apresentava somente

um lado da questatildeo

Conveacutem salientar o fato de que uma das declamaccedilotildees de Libacircnio traduzidas por

Erasmo tem justamente uma personagem feminina como sujeito ou remetente do discurso

Medeia Eacute bastante problemaacutetico comparar a Paz de Erasmo agrave Medeia dos claacutessicos mas

ainda assim verifica-se alguns traccedilos de semelhanccedila entre aquela matildee indignada pela morte

dos filhos e que se apresenta como viacutetima Haacute algumas passagens das declamaccedilotildees

erasmianas nas quais a Paz demonstra sua indignaccedilatildeo para os propugnadores da guerra que

maltratavam os mortais a quem esta dedicou seus cuidados maternais Note-se que a Paz

como veremos mais detidamente nos uacuteltimo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo invoca em seu

60

caraacuteter feminino e maternal as injusticcedilas feitas contra as viacutetimas da guerra a quem trata como

verdadeiros filhos

24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo

Segundo Chomarat as obras do gecircnero declamaccedilatildeo na obra de Erasmo podem ser

classificadas em duas categorias primeiro as declamaccedilotildees em sentido restrito que listaremos

abaixo e em seguida as obras que conteacutem elementos essenciais do gecircnero sem no entanto

receberem esta denominaccedilatildeo Muito embora Erasmo tivesse afirmado a dificuldade de

delinear os limites entre a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo nota-se que possuiacutea noccedilotildees claras a

respeito dos gecircneros retoacutericos e suas subespeacutecies como descreve no Brevissima

Confidendarum Epistolarum Formula acerca do deliberatiuum genus no contexto epistolar

mas que por analogia tambeacutem se aplica a uma declamaccedilatildeo de espeacutecie deliberativa e agraves

declamaccedilotildees de elogio e vitupeacuterio pertencentes ao gecircnero demonstrativo

Entatildeo passemos ao gecircnero deliberativo ocorrente em muitas espeacutecies de

epiacutestolas haacute epiacutestolas suasoacuterias e dissuasoacuterias exortatoacuterias peticcedilotildees

monitoacuterias as quais depois seratildeo consideradas em sua ordem Em primeiro

lugar deve-se definir no gecircnero deliberativo que pode ser chamado de

suasoacuterio a utilidade e a honestidade Quando chamamos algo de uacutetil tambeacutem

queremos denominar como honesto quando natildeo se pode dizer que eacute uacutetil

igualmente natildeo pode ser honesto Porque nesse gecircnero deve-se maximamente

esperar por essa utilidade que estaacute conjugada com a honestidade sem as quais

natildeo podemos suadir persuadir dissuadir exortar desencorajar pedir

aconselhar nem direcionar (como assim disseram) todas as flechas do estilo

ao alvo (Erasmo Brevissima maximaque compendiaria confidendarum

epistolarum formula Paris Apud Christianum Wechelum 1551 p 13)

De modo anaacutelogo nos textos jaacute citados de Quintiliano e Erasmo acerca da semelhanccedila

da declamaccedilatildeo com o diaacutelogo Chomarat (1981 p 932) reconhece a dificuldade em

diferenciar uma declamaccedilatildeo de uma oratio como eacute o caso do ldquoManual do soldado cristatildeordquo

(Enchiridion militis christiani) ou mesmo com uma diatribe segundo a denominaccedilatildeo do

proacuteprio Erasmo (Rummel 1995 p 60) como se verifica no ldquoSobre olivre arbiacutetriordquo (De libero

arbiacutetrio) a ponto de Chomarat (1981 p 932) denominaacute-los ldquoquasi-deacuteclamationsrdquo ou seja

obras que conteacutem um dos elementos essenciais da declamaccedilatildeo a prosopopeia Outra obra

erasmiana natildeo citada pelo estudioso francecircs constituiacuteda em estrutura de diaacutelogo merece

destaque especial uma vez que no caso do ldquoSobre o livre arbiacutetriordquo aleacutem de outras

personagens Erasmo entra no diaacutelogo ao atribuir discursos ao seu proacuteprio nome Mas a

61

grande objeccedilatildeo para sua inserccedilatildeo no gecircnero eacute o fato de natildeo cumprir o quesito de que o texto

deve simular uma causa fictiacutecia

Baseando-se na epiacutestola de Erasmo a Botzheim eacute possiacutevel estabelecer o elencode onze

declamaccedilotildees escritas e publicadas pelo holandecircs e que se conservaram

1 Elogio da vida monaacutestica

2 Resposta ao bispo

3 Louvor e vituperaccedilatildeo do matrimocircnio

4 Elogio da medicina

5 Contra o tiranicida

6 Antibaacuterbaros

7 Sobre o desprezo do mundo11

8 Sobre a prematura morte do filho

9 Sobre os meninos

10 Elogio da Loucura

11 Queixa da Paz

Chomarat (1981 p 932) apresenta dois possiacuteveis tiacutetulos de declamaccedilotildees compostas

por Erasmo cujos textos foram perdidos primeiro ldquoVitupeacuterio agrave vida dos mongesrdquo que teria

sido escrita em Bolonha entre 1506 e 1507 e duas declamaccedilotildees com argumentaccedilotildees

mutuamente opostas sobre a guerra do Papado contra Veneza presumivelmente escrita em

Bolonha em 1508 Dada a temaacutetica os argumentos descritos neste texto provavelmente estatildeo

presentes na ldquoQueixa da Pazrdquo e no ldquoA guerra eacute doce para os inexperientesrdquo Erasmo tambeacutem

mencionou em epiacutestola datada de 1509 e enviada de Paris a intenccedilatildeo de escrever duas

declamaccedilotildees (Encomium naturae e Encomium gratiae) que foram sugeridas por ocasiatildeo da

redaccedilatildeo do ldquoElogio da Loucurardquo12

11

Essa obra foi curiosamente classificada pelo proacuteprio Erasmo como uma epiacutestola declamatoacuteria suasoacuteria

12 Ainda segundo Chomarat (1981 p 934) grande parte das declamaccedilotildees de Erasmo foram escritas por pedido

ldquoformalrdquo de algueacutem que lhe era proacuteximo (Laus vitae monasticae Encomium artis medicae Contra tyrannidam

as duas declamaccedilotildees perdidas escritas em Roma De pueris e Querela Pacis) ou para seus alunos (Episcopi

Responsio Laus ac vituperatio matrimonii e De morte filii praemature praerepti) como modelos praacuteticos dos

conselhos teoacutericos do De Copia (Chomarat 1981 p 935) Esse uacuteltimo grupo pode caber na definiccedilatildeo de

declamaccedilatildeo como exerciacutecio escolar Quanto agravequelas feitas a pedidos com evidente finalidade poliacutetica (como a

Queixa da Paz) ou laudatoacuteria ou ainda como publicaccedilotildees que visavam debater assuntos literaacuterios e que

ilustravam os conselhos contidos no De Copia (Chomarat 1981 p 934)

62

25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas

Van der Poel (2007 p 129) classifica as declamaccedilotildees erasmianas em trecircs espeacutecies

pedagoacutegicas moralizantes e poliacuteticas

Nas numerosas declamaccedilotildees de Erasmo sobre mateacuterias morais e pedagoacutegicas

como tambeacutem nas de assunto poliacutetico como o Encomium moriae De pueris

instituendis Querela Pacis e tambeacutem o Encomium matrimonii tambeacutem

encontramos referecircncias tiacutepicas do vir bonus dicendi peritus Suas

declamaccedilotildees satildeo manifestamente discursos escritos nos quais natildeo somente

critica as condiccedilotildees da sociedade e do interior da Igreja que ele acha

repreensiacutevel mas nas quais tambeacutem defende suas proacuteprias ideias de sociedade

cristatilde civilizada ideal que prova ser na verdade bastante controverso Na sua

carta a Joatildeo Botzheim de 1523 Erasmo assume que o propoacutesito de muitas de

suas declamaccedilotildees pertinent ad institutionem vitae (visam a prover a instruccedilatildeo

do modo de viver)

Desse modo cabe agraves declamaccedilotildees deliberativas e inclusive algumas laudatoacuterias a

finalidade de mouere mas em Erasmo haacute uma especificidade pois o movimento da vontade

do seu interlocutor eacute impulsionado pela tomada de atitudes em conformidade com valores

humanos considerados bons Nesse sentido apresenta uma finalidade pedagoacutegica atraveacutes da

defesa de princiacutepios eacuteticos edificantes O que tambeacutem eacute uma forma de suadere uma vez que a

declamaccedilatildeo erasmiana entendida como um discurso que natildeo defende as duas partes de uma

causa mas opta por uma delas considerada melhor leva a escolher uma entre as opccedilotildees

disponiacuteveis Desse modo o discurso tem um objetivo bem determinado e o mouere e o

suadere estatildeo agrave disposiccedilatildeo do declamador para sugerir accedilotildees consideradas uacuteteis (conveniente)

e honrosas (honestum)

De fato segundo Tunberg (2006 p 9) as obras de Erasmo especialmente o ldquoElogio a

Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo visam a indicar um caminho eacutetico e se ocupam do modo de

agir humano Para Chomarat (1981 p 937) o humanista visava a uma accedilatildeo poliacutetica marginal

ldquoconstituir-se propagandista de uma escolha poliacutetica feita por outros a fim de exercer uma

influecircncia moral sobre a opiniatildeo ou sobre os governantes que o honram mais do que o

escutamrdquo O proacuteprio Erasmo apontou essa intenccedilatildeo explicitamente ao inserir vaacuterias de suas

declamaccedilotildees inclusive a que estudamos no quarto volume da ediccedilatildeo de suas obras

completas publicadas em sua vida com o sugestivo tiacutetulo ldquoObras que visam agrave instruccedilatildeo dos

costumesrdquo (Cantos 2006 p 285) Tal propoacutesito eacute verificado por Tunberg (2006 p 17) ao

comentar a prosopopeia erasmiana da Paz

63

Nas declamaccedilotildees de Erasmo natildeo somente no que se refere ao Elogio da

Loucura mas tambeacutem agrave Queixa da Paz ambas apresentam uma noccedilatildeo vaga

ou abstrata de uma espeacutecie de mulher divina na qual se vecirc a capacidade de

falar e apontar com o dedo de que maneiras certos costumes humanos devem

ser emendados

Corrigir os costumes eacute tambeacutem tarefa do riso No ldquoElogio da Loucurardquo o lado satiacuterico

eacute evidente Na ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo parece querer moralizar a sociedade natildeo por meio da

saacutetira mas sobretudo da ironia da comparaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude entre o belo e o feio

Trata-se do uso do elogio e do vitupeacuterio como instrumentos de moralizaccedilatildeo Este recurso se

insere em uma concepccedilatildeo estrateacutegica ainda mais ampla de Erasmo segundo a qual a educaccedilatildeo

nos claacutessicos seria um instrumento para a moralizaccedilatildeo da sociedade de caraacuteter catequeacutetico

natildeo para sua paganizaccedilatildeo Para Sloane (2004 p 112) predominavam no Renascimento duas

formas de recepccedilatildeo dos claacutessicos a primeira prezava os autores antigos como fontes do prazer

da elocutio e a segunda como fonte de inspiraccedilatildeo para a imitatio Como vimos

anteriormente as declamaccedilotildees de Luciano aos olhos de Erasmo e More realizavam tal

propoacutesito com excelecircncia No caso do ldquoElogio da Loucurardquo o recurso agrave saacutetira eacute evidente mas

natildeo se deve deixar de observar tal aspecto nas demais declamaccedilotildees erasmianas nas quais

Margolin (1992 p 911) ao comentar a ldquoQueixa da Pazrdquo notou diversos recursos retoacutericos

como ldquoa ironia mas com mais coacutelera emoccedilatildeo e piedade em defesa do povo atingido pelos

reveses da guerrardquo Dessa forma pretende mostrar em quatro seccedilotildees de argumentos a

incoerecircncia dos humanos que defendem a guerra dos cristatildeos que guerreiam e dos priacutencipes

que governam com base na guerra e sobretudo a incongruecircncia da missatildeo clerical com o

ofiacutecio das armas

26 Declamaccedilatildeo escrita e integral

A ldquoQueixa da Pazrdquo foi concebida em forma escrita para ser publicada e natildeo haacute

evidecircncias de que existisse alguma espeacutecie de actio das declamaccedilotildees de Erasmo ou de outro

humanista ou seja de que elas fossem lidas em voz alta e na presenccedila de uma audiecircncia

ainda que em contexto familiar Nesse aspecto nota-se uma diferenccedila fundamental entre esta

declamaccedilatildeo e muitas das declamaccedilotildees antigas pois os humanistas natildeo visavam mais ao

deleite e agrave persuasatildeo do seu puacuteblico-alvo atraveacutes da modulaccedilatildeo da voz mas concentravam sua

atenccedilatildeo ao efeito agradaacutevel que a ordenaccedilatildeo e a escolha adequada das palavras e aos diversos

64

recursos retoacutericos poderiam causar em algueacutem que lia a obra na solidatildeo em pronunciar em voz

alta

Contudo o deleite produzido por um discurso no leitor solitaacuterio ou no ouvinte da

assembleia puacuteblica ou de um contexto iacutentimo ou familiar natildeo estaacute localizado apenas na

finalidade formal de que este teria sido escrito ldquopara ser pronunciadordquo ou ldquopara ser lido

individualmenterdquo mas sim na riqueza de figuras nos jogos de palavras e imagens e nos

diversos recursos que a retoacuterica disponibiliza de modo que a mera forma de veiculaccedilatildeo no

sentido de que ele deve ser lido individualmente ou em puacuteblico natildeo seria um fator suficiente

para descaracterizar um gecircnero Deve-se considerar que primeiro ainda que escrita a

declamaccedilatildeo imitava a forma dos textos falados Segundo porque ainda se praticava muito a

leitura puacuteblica Talvez Erasmo natildeo tenha ele mesmo lido seu texto em voz alta mas eacute bem

provaacutevel que ciacuterculos de amigos ou seguidores se reunissem para que um lesse para os outros

os ldquolanccedilamentosrdquo do mestre

27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico

Assim como ocorria na declamaccedilatildeo antiga a humanista tinha por audiecircncia a elite

letrada capaz de ler latim com naturalidade a ponto de compreender as ironias os sacarmos e

as entrelinhas contidas nos textos erasmianos Era esse puacuteblico que se deleitava com os jogos

e os exerciacutecios declamatoacuterios

Tais recursos retoacutericos estavam inseridos tambeacutem em um contexto poliacutetico de modo

anaacutelogo agrave praacutetica da declamaccedilatildeo imperial conforme jaacute analisamos Segundo evidecircncias

internas e externas apontadas por Beauduin (1991 Introduccedilatildeo) essa obra foi escrita em

Lovaina Beacutelgica em uma data e ocasiatildeo incerta natildeo posterior a novembro de 1516 quando

Erasmo ldquovisitou a corte por ocasiatildeo de uma assembleia dos maiores priacutencipes da eacutepocardquo

(Cantos 2006 p 23 Herding 1977 p 7) e estabeleceu contatos com pessoas influentes

como o Chanceler Montjoy (Erasmo Ep 516 Linhas 17-18 Carta a Pierre Gilles de 20 de

janeiro de 1517 1977 p 187) A ldquoQueixa da Pazrdquo foi publicada no decorrer do ano de 1517

tendo sido dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Note-se que Erasmo entre

os anos de 1515 e 1521 (Rummel 1996 p 243) era Conselheiro do Rei Carlos V (Herding

1977 p 8) da dinastia dos Habsburgos Rei dos Paiacuteses Baixos terra de Erasmo da Espanha

de Naacutepoles Siciacutelia e Jerusaleacutem e Duque da Borgonha cujo ducado haveria de ser anexado

65

pela Espanha no dia 23 de janeiro de 1517 (Bataillon 2007 p 81) A partir de 1519 o Rei

Carlos seria tambeacutem o Imperador dos Romanos (1519-1558) A famiacutelia dos Habsburgos cujo

centro de atividades era a Espanha jaacute era a mais poderosa dinastia europeia por volta da

publicaccedilatildeo da Queixa da Paz (1517) Bataillon (2007 p 81) com base nas cartas de Erasmo

informa que em virtude do cargo de conselheiro este chegou a receber rendimentos

espanhoacuteis mas natildeo aceitou o bispado de Zaragoza nem mudar-se para a corte espanhola a

fim de evitar o ambiente dividido em facccedilotildees e contaminado por posiccedilotildees poliacuteticas contraacuterias

a seus proacuteprios valores Erasmo desculpou-se de aceitar a prebenda episcopal e passou a

frequentar a Universidade de Lovaina onde esteve mais assiduamente entre os anos de 1515 e

1521 (Rummel 1996 p 243) dedicando-se ao estudo dos escritos biacuteblicos natildeo sem

aproveitar os recursos da ceacutelebre biblioteca (Bataillon 2007 p 82) Essa foi a fase de sua

vida que precedeu agraves mais acirradas controveacutersias teoloacutegicas que aos poucos foram minando

seu prestiacutegio de preceptor da Europa No ano de 1516 natildeo seria exagero afirma que o

holandecircs era o epicentro intelectual desse mundo fluente no latim A situaccedilatildeo duacutebia em que se

posicionou em relaccedilatildeo ao cargo de conselheiro oferecido pelo rei natildeo somente demonstra o

prestiacutegio e a influecircncia dos seus escritos mas tambeacutem uma espeacutecie de autonomia com a qual

o escritor pretendia apresentar suas ideias inclusive a despeito de prebendas e posiccedilotildees

poliacuteticas

Segundo Herding (1977 p 13) como evento histoacuterico proacuteximo que se pode

considerar o principal motivo da redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz deve-se destacar que

estavam em curso as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e

por fim da alianccedila franco-veneziana (1513-1516) Como alguns desses paiacuteses ou seus

soberanos satildeo explicitamente mencionados na Queixa da Paz13

uma tabela pode esclarecer o

intrincado jogo poliacutetico de interesses de naccedilotildees que essas ligas envolviam

13

Erasmo menciona os reis de modo respeitoso de modo a natildeo contrariaacute-los Sua menccedilatildeo poreacutem para os

conhecedores dos fatos poderiam soar como ironia ldquoPriacutencipe Carlos adolescente de iacutendole incorrupta E natildeo

descuida de mim o Imperador Maximiliano Nem a isso se recusa Henrique o iacutenclito rei da Inglaterrardquo (Erasmo

de Rotterdam Queixa da Paz) Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano

Alematildeo com apenas 17 anos de idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo do Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio

Habsburgo em 1519 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela

morreria dois anos depois Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia

a catolicidade do rei inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536

66

Alianccedilas durante as guerras posteriores agrave Liga de Cambrai

Liga de Cambrai (1508ndash10)

Estados Pontifiacutecios

Franccedila

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Coroa de Aragatildeo

Ducado de Ferrara

Repuacuteblica de Veneza

Alianccedila veneziana-papal (1510ndash11)

Estados Pontifiacutecios

Repuacuteblica de Veneza

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Franccedila

Ducado de Ferrara

Santa Liga contra Franccedila (1511ndash13)

Estados Pontifiacutecios

Repuacuteblica de Veneza

Espanha

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Inglaterra

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Franccedila

Ducado de Ferrara

Repuacuteblica de Florenccedila

Alianccedila franco-veneziana (1513ndash16)

Estados Pontifiacutecios

Espanha

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Inglaterra

Ducado de Milatildeo

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Repuacuteblica de Veneza

Franccedila

Escoacutecia

Ducado de Ferrara

67

Erasmo em sua Querela critica nominalmente o jaacute falecido Papa Juacutelio II que no

governo dos Estados Pontifiacutecios e por causa de suas alianccedilas militares passou para a Histoacuteria

como o ldquoPapa Guerreirordquo e que ele havia chamado de Julius Exclusus (1968 p 27)

expulsando-o do paraiacuteso por intermeacutedio de um Pedro que via no papa acompanhado de

soldados ldquoum espetaacuteculo nunca visto antes para natildeo dizer um monstrordquo Que este tenha sido

de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa ldquoQueixa da Pazrdquo prova-

o natildeo somente a alusatildeo aos paiacuteses ao final deste escrito mas o proacuteprio autor informou acerca

das circunstacircncias da redaccedilatildeo desse texto em uma carta endereccedilada a Joatildeo Botzheim

Escrevi a Queixa da paz haacute cerca de sete anos quando fui convidado pela

primeira vez para a corte do priacutencipe Faziam-se entatildeo grandes preparativos

em Cambrai para uma conferecircncia que reuniria os maiores priacutencipes do mundo

ndash o imperador o rei da Franccedila o rei de Inglaterra o nosso Carlos ndash a fim de

selarem entre si a paz com laccedilos de accedilo como eacute costume dizer-se Agrave frente

desta accedilatildeo diplomaacutetica achavam-se o ilustre Guilherme de Chiegravevres e Joatildeo

Sauvage grande chanceler vocacionado para o serviccedilo do Estado Opunham-

se a este projeto aqueles que natildeo viam nenhuma vantagem em que reinasse a

tranquilidade aqueles que segundo a expressatildeo de Filoacutexeno () preferem de

longe uma paz que natildeo seja uma paz uma guerra que natildeo seja uma guerra Foi

assim que a pedido de Joatildeo Sauvage escrevi a Queixa da Paz As coisas de

fato encaminharam-se de tal sorte que teria sido mais acertado escrever

Epitaacutefio da paz pois natildeo restam quaisquer esperanccedilas de que ela possa

escapar com vida (Erasmo de Rotterdam Epistola a Joatildeo Botzheim 1523

Correspondence of Eramus Toronto University Toronto Press 1989 p 319)

Nesta carta Erasmo poderia estar se referindo aos diversos conflitos ocorridos entre

1517 e 1523 como a Sexta Guerra da Itaacutelia (1521-1526) tambeacutem conhecida pela disputa

entre Valois e Habsburgos as duas mais importantes dinastias da Europa

Na epiacutestola introdutoacuteria publicada juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo

concebe o escrito como em defesa da Franccedila (Carta ao Bispo Felipe de Utrecht 1917 ll 23-

35) Contudo para Rodrigues Erasmo visava diretamente os interesses holandeses

a Queixa da Paz escrita jaacute tendo em vista Carlos de Gent como soberano dos

reinos espanhoacuteis enfatizava a necessidade de natildeo insistir na poliacutetica

antifrancesa da qual os Paiacuteses Baixos eram viacutetimas tradicionais Assim a

poliacutetica erasmiana assumia de acordo com Mesnarde os anseios dos corpos

sociais neerlandeses (Rodrigues 2012 p 154-155)

De fato alguns dos argumentos contidos no texto em estudo abordam as dificuldades

impostas agrave circulaccedilatildeo de mercadorias que era o motor econocircmico dos paiacuteses baixos e da

regiatildeo renana Entretanto pode-se dizer que natildeo seria correto afirmar Erasmo como defensor

dos interesses particulares da Franccedila dos Paiacuteses Baixos ou de qualquer dos contendores das

68

Guerras da Liga de Cambrai uma vez que seus argumentos a favor da paz satildeo aplicaacuteveis a

qualquer naccedilatildeo visam o bem da humanidade como eacute proacuteprio do irenismo defendido por ele

28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz

Erasmo seraacute o autor cujas obras foram mais difundidas comentadas e a partir de certo

momento tambeacutem contestadas como se pode averiguar pelas diversas reediccedilotildees traduccedilotildees e

referecircncias a estas em outros autores do periacuteodo Por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da

Pazrdquo o roterdamecircs recebeu algumas cartas de elogio conforme se denota do seu epistolaacuterio

(Allen Ep 95 n 1 II) ateacute o final da segunda deacutecada de 1500 nessa fase anterior agrave Reforma

em que o prestiacutegio de Erasmo o entatildeo ldquopreceptor da Europardquo era intocaacutevel Impressionam

ademais as inuacutemeras ediccedilotildees em latim e as diversas traduccedilotildees para os vernaacuteculos Margolin

(1992 p 911) informa a existecircncia de pelo menos vinte seis ediccedilotildees nos dozes anos

subsequentes agrave primeira ediccedilatildeo perfazendo a soma de mais de trinta ediccedilotildees tendo como

recorte o seacuteculo XVI (Rummel 1990 p 288) Contam-se ademais diversas traduccedilotildees para as

principais liacutenguas europeias ocidentais por exemplo duas traduccedilotildees para o alematildeo em 1521

uma para o francecircs e para outros vernaacuteculos incluindo o holandecircs cuja primeira apariccedilatildeo se

deu em 1567 (Augustijn 1995 p 73) Radice (1968 p 290) observa que embora Erasmo jaacute

houvesse falado contra a guerra em obras como ldquoPanegiacutericordquo (1504) e nos ldquoAdaacutegiosrdquo (1515)

deve-se considerar a Queixa da Paz ldquocomo o mais citado e celebrado apelo pela paz

universalrdquo Natildeo eacute de se admirar que seus principais trabalhos ateacute entatildeo publicados

especialmente sua traduccedilatildeo do ldquoNovo Testamentordquo e suas declamaccedilotildees ldquoElogio da Loucurardquo e

ldquoQueixa da Pazrdquo tenham-no tornado um pensador do norte prestigiado em toda a Europa

cujo centro cultural era a Itaacutelia a ponto de em 1522 Vives afirmar ldquoeacute de pasmar a admiraccedilatildeo

inspirada por Erasmo a todos os espanhoacuteis saacutebios ignorantes homens de igreja e secularesrdquo

(Epiacutestola de 6 de setembro de 1522 apud Bataillon 2007 p 156) Este testemunho pode ser

entendido como beneacutevolo e parcial uma vez que desconsidera os inuacutemeros ataques sofridos

por Erasmo na peniacutensula ibeacuterica sobretudo apoacutes as traduccedilotildees biacuteblicas e os acontecimentos da

Reforma Na verdade o proacuteprio ataque direto e polecircmico efetuado contra as traduccedilotildees soacute

atesta o alcance de sua influecircncia

69

29 A disposiccedilatildeo retoacuterica

Chomarat (1981 p 931) ao longo do capiacutetulo III de seu Grammaire et Rheacutetorique

chez Eacuterasme denominado La Declamation fornece uma lista de declamaccedilotildees e analisa esse

gecircnero tal como exercido pelo humanista holandecircs especialmente no ldquoElogio da Loucurardquo

No entanto o pesquisador dedicou apenas alguns paraacutegrafos agrave ldquoQueixa da Pazrdquo sem se

estender na explicaccedilatildeo de sua forma da sua disposiccedilatildeo segundo os ditames da retoacuterica e da

natureza dos seus argumentos limitando-se a estruturaacute-la em trecircs partes principais

A argumentaccedilatildeo desenvolve trecircs ideias sucessivas a natureza constituiu o

homem para a benevolecircncia e para a concoacuterdia a doutrina de Cristo consiste

na paz concorda com o amor muacutetuo a guerra eacute uma fonte de calamidades na

segunda parte bem mais longa apoacutes ter demonstrado a discoacuterdia que reina em

toda parte ateacute mesmo entre os monges e entre os esposos apesar do

ensinamento de Cristo a Paz descreve a presenccedila da guerra sobretudo nos

uacuteltimos dez anos com o aumento das agruras e do escacircndalo guerra entre os

cristatildeos guerra das quais participam os padres e mesmo os papas enfim oacute

dor guerras travadas em nome de Cristo a religiatildeo da paz foi pervertida ao

serviccedilo da guerra nos dois campos se recita o Pater Noster esta progressatildeo eacute

seguida de uma confutatio do argumento invocado por certos cristatildeos

segundo o qual os beligenrates obedecem a uma certa necessidade coagidos agrave

guerra apesar da sua proacutepria vontade Esta confutatio analisa as fontes reais

da guerra (as paixotildees) e afirma que a condiccedilatildeo primeira da paz eacute a vontade da

paz entre certos priacutencipes mas tambeacutem no clero e no povo Na terceira parte

salienta entre as consequecircncias dos conflitos armados natildeo somente as ruiacutenas

e a miseacuteria dos povos mas as liccedilotildees de infraccedilatildeo agraves leis o viacutecio e a impiedade

que daacute agrave guerra ldquoa desonra do nome cristatildeordquo [] A indignaccedilatildeo a dor a

piedade inspiram Erasmo a belas passagens os conselhos praacuteticos o apelo agrave

regularizaccedilatildeo dos conflitos atraveacutes de negociaccedilotildees a insistecircncia sobre a

responsabilidade destes diretores de opiniatildeo que satildeo os pregadores e os

conjuramentos aos priacutencipes cristatildeos que fazem perceber que esta declamaccedilatildeo

natildeo seria somente um exerciacutecio somente o artifiacutecio da prosopopeia manteacutem

ainda a Querela Pacis ao gecircnero que ilustraram obras precedentes [as demais

declamaccedilotildees] (Chomarat 1981 p 999-1000)

No ldquoSobre a abundacircnciardquo de 1512 Erasmo havia afirmado que ldquona ordem ou

disposiccedilatildeo eacute sumamente necessaacuterio o meacutetodordquo ou seja a loacutegica e a clareza da argumentaccedilatildeo

devem evitar uma sensaccedilatildeo de perturbaccedilatildeo ou confusatildeo (De Copia Liber II p 280 ll 95-99)

Deve-se distinguir nisso que o roterdamecircs tambeacutem chama de ordo ou constructio a sequecircncia

das palavras dentro de uma frase (De Copia Liber I p 75 ll 47-49) Para ele eacute necessaacuterio

selecionar as proposiccedilotildees de modo adequado justamente pelo criteacuterio do que se acha

conveniente ou agradaacutevel Deve-se pois hierarquizaacute-las e transitar entre elas tomando por

regra aquelas que satildeo mais proacuteximas umas das outras de modo que se evitem saltos temaacuteticos

natildeo adequados (De Copia Liber II p 228 ll 781-787) Erasmo preceituava no ldquoSobre

70

abundacircnciardquo assim como no subtiacutetulo ldquoSobre a ordemrdquo do seu ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo

(De conscribendi epistolis p 301 ll 2-15) que a ordem ou disposiccedilatildeo devem partir do

criteacuterio do que eacute ldquonaturalrdquo e do que eacute ldquoartiacutesticordquo aconselhando que deve ser menos frequente

o caraacuteter artiacutestico uma vez que os leitores natildeo satildeo do vulgo mas eruditos e que tais epiacutestolas

natildeo satildeo ouvidas mas lidas Ademais embora a disposiccedilatildeo seja necessaacuteria para a clareza em

alguns gecircneros como eacute o caso do epistolar essa disposiccedilatildeo deve ser dissimulada e natildeo

ostensiva Contudo o que Erasmo mais recomenda evitar eacute um texto confuso por falta de

disposiccedilatildeo adequada Ainda nesse escrito encontram-se no subtiacutetulo ldquoSobre o gecircnero

dissuasoacuteriordquo algumas afirmaccedilotildees pertinentes a respeito da suasoacuteria como eacute o caso da ldquoQueixa

da Pazrdquo no sentido de que recomenda a paz e desaconselha a guerra Para ele o ato de

desaconselhar algo a algueacutem implica na seleccedilatildeo de argumentos que satildeo desagradaacuteveis para

aquele que pretendemos dissuadir As proposiccedilotildees devem ser dispostas de modo que sua

compreensatildeo seja simplificada atraveacutes de exemplos e comparaccedilotildees sem deixar evidente a

disposiccedilatildeo (De conscribendi epistolis p 429 ll 5-20)

Do ponto de vista da disposiccedilatildeo a ldquoQueixa da Pazrdquo parece seguir uma subdivisatildeo

concorde com a tradiccedilatildeo retoacuterica (Silva 2015 p 60) que o proacuteprio Erasmo propunha que

fosse ensinada aos alunos em seu ldquoPlano de estudosrdquo (p 134 l 10-135 ll 1-5) Basicamente

ela se subdivide em

- Proecircmio (προοίμιονexordium)

- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio)

- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)

- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio)

No caso especiacutefico da declamaccedilatildeo irecircnica as ediccedilotildees inclusive aquelas revisadas por

Erasmo apresentam uma epiacutestola a Felipe Bispo de Utrecht (Carta ao Bispo Felipe de

Utrecht 1917 ll 23-35) que se assemelha agravequilo a que hoje correntemente se intitula como

dedicatoacuteria na qual o autor sauacuteda o bispo pelo novo cargo desejando-lhe o mesmo sucesso de

seus antepassados Em certo trecho desta epiacutestola menciona ainda a situaccedilatildeo de seu tempo

como motivaccedilatildeo para a redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

71

Jaacute no tiacutetulo da declamaccedilatildeo Erasmo explicita o tema ldquoQueixa da Paz perseguida e

rejeitada em toda parte pelas naccedilotildeesrdquo (Querela Pacis undique gentium eiectae

profligataeque) assim como ocorria nas controveacutersias senequianas que apresentavam a

temaacutetica de forma clara logo na primeira frase ou em um breve texto que introduzia a causa

em discussatildeo (Schwartz 2004 p 71) O tiacutetulo apresenta o tema principal do discurso (a Paz)

cuja causa eacute tiacutepica do gecircnero deliberativo e das antigas suasoriae a Paz eacute tratada tambeacutem

como uma personificaccedilatildeo ofendida a personagem principal e remetente do discurso tal como

ocorre na sexta suasoacuteria de Secircneca na qual Ciacutecero eacute o interlocutor fictiacutecio (Schwartz 2004 p

110) Esta apresenta sua queixa Trata-se do lamento da injuacuteria e da tentativa de destruiccedilatildeo

contra a Paz As declamaccedilotildees costumavam antepor suas personagens geralmente fictiacutecias em

uma disputa No caso da Querela jaacute no tiacutetulo da obra haacute personagens expliacutecitas (a Paz como

protagonista com voz ativa e as naccedilotildees sem voz ativa) e uma indicaccedilatildeo geneacuterica de lugar

(em toda parte) Todo o universo em todo lugar conspira contra a paz e esta apresenta sua

queixa com argumentos jaacute explorados pelo roterdamecircs no ldquoA guerra eacute doce para os

inexperientesrdquo (1515) e na ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo (1516) Contudo natildeo satildeo os

argumentos que diferenciam esta declamaccedilatildeo dos demais escritos em favor da paz ou

contraacuterios agrave guerra mas sim sua forma ou seja seu gecircnero assim como os recursos retoacutericos

presentes no texto

Aplicando a tradiccedilatildeo de disposiccedilatildeo retoacuterica agraves declamaccedilotildees podemos dividi-la nas

seguintes partes

- Proecircmio (προοίμιονexordium) (4- 29)14

- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio) (30-112)

- a primeira parte trata da paz entre os animais (30-112)

- a segunda parte trata da destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202)

- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)

- a primeira parte trata de Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido pelos que se

dizem cristatildeos (203-401)

14

Os nuacutemeros araacutebicos se referem agraves linhas da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi

Roterodami Opera Omnia Amsterdam 1978)

72

- a segunda parte trata do exemplo dos pagatildeos (402-435)

- a terceira parte trata de como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados

pela guerra (436-594)

- a quarta parte trata de sugestotildees para o priacutencipe evitar a guerra (595-871)

- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio) (872-918)

Em algumas ediccedilotildees a indicaccedilatildeo pax loquitur excluiacuteda da ediccedilatildeo criacutetica daacute iniacutecio ao

proecircmio (προοίμιονexordium) este localizado logo apoacutes a epiacutestola ao bispo Felipe e ao tiacutetulo

(1-3) Vem a seguir uma espeacutecie de auto-apresentaccedilatildeo da Paz (4-29) a qual fala na primeira

pessoa do singular descreve a si mesma e aos males que os homens injustamente cometem

contra ela e contra si mesmos

A narratio (διήγηζις) (30-202) pode ser dividida em duas partes a primeira trata da

paz entre os animais (30-112) cujo objetivo talvez seja mostrar que esta eacute conforme a

natureza ao passo que a guerra contraacuteria Esta eacute peacutessima justamente porque se opotildee agrave

natureza das coisas (rerum natura) e nisso os proacuteprios animais apesar de seres irracionais e

natildeo dotados da palavra serviriam de exemplo a ser seguido pelo homem Quando este se faz

guerreiro torna-se abjeto pois contraria sua natureza racional Jaacute a segunda parte trata da

destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) entre as linhas 113-130 Erasmo indica os

cristatildeos e a cidade como adversaacuterios dela que natildeo pode obter uma ldquomoradardquo entre eles Em

seguida volta-se contra os priacutencipes (131-142) os eruditos (143-157) e os religiosos (158-

189) Inclusive se refere agrave famiacutelia como lugar no qual ela eacute maltratada (190-194) O proacuteprio

homem eacute um ser dividido pois a razatildeo luta contra as paixotildees e estas entre si (195-200)

A confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio) pode ser subdividida em pelo menos quatro grandes

blocos a primeira parte trata do Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido por todos aqueles que

se dizem cristatildeos (203-401) Erasmo recusa aqui que o epiacuteteto ldquoDeus dos exeacutercitosrdquo presente

em trechos do Antigo Testamento possa servir de argumento a favor da guerra (223-230)

Verifica-se que a fala dirigida ao priacutencipe cristatildeo (249) se assemelha em certas partes do

discurso ao gecircnero speculum principum15

tatildeo em voga no Renascimento a ponto de Erasmo

ter dedicado vaacuterios de seus escritos a esse objeto nos quais inclusive incorrem argumentos

73

irecircnicos comuns agrave ldquoQueixa da Pazrdquo e que seratildeo considerados em pormenor abaixo O gecircnero

ldquoEspelho dos priacutencipesrdquo eacute uma espeacutecie de manual eacutetico e poliacutetico em que se detalham as

virtudes e os deveres de um priacutencipe ideal Tratava-se de uma tentativa de promover um

priacutencipe justo e um governo anaacutelogo Acreditava-se desde a antiguidade ateacute no periacuteodo

medieval que a formaccedilatildeo moral do governante determinaria a felicidade dos suacuteditos Se

Cristo eacute o priacutencipe da Paz natildeo cabe aos priacutencipes que se dizem cristatildeos promover a guerra

Homens reais satildeo entatildeo retratados como mais crueacuteis que personagens da histoacuteria ou da

antiga mitologia como Dioniacutesio e Mezecircncio (428-429) Uma terceira parte aborda como o

Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados pela guerra (436-594) Note-se o trecho

elogioso agrave Franccedila (436-450) que justifica o tom francoacutefilo do discurso cofnroem o pedido do

chanceler Joatildeo Sauvage que teria encomendado a redaccedilatildeo desta declamaccedilatildeo Entre 451e 473

Erasmo retorna ao argumento de que os homens satildeo mais crueacuteis que as feras O bloco mais

extenso do discurso a quarta parte da confirmaccedilatildeo dirige-se diretamente ao priacutencipe

apresentando sugestotildees para que este evite a guerra (595-871) O epiacutelogo (επίλογοςperoratio)

(872-918) apresenta-se sob uma forma de apelo a todas as pessoas a comeccedilar pelos

poderosos para que promovam a paz Segue-se o princiacutepio da rememoratio sugerido pelas

tradiccedilotildees dos manuais de retoacuterica com a finalidade de retomar rapidamente os argumentos

desenvolvidos anteriormente Finalmente o proacuteprio autor resume o conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida por todo o texto

Tudo nos convida a isso Em primeiro lugar o proacuteprio instinto da natureza e

se assim posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo lugar o proacuteprio

Cristo Priacutencipe e Autor de toda felicidade humana Depois as incontaacuteveis

vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero imenso das calamidades da

guerra Convidam agrave paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que como

que inspirados por Deus jaacute estatildeo propensos agrave concoacuterdia (Queixa da Paz 889-

892)

210 As sentenccedilas e os adaacutegios

Sentenccedilas e adaacutegios satildeo recursos recorrentes nas declamaccedilotildees erasmianas assim como

o foram na obra senequiana segundo as tradiccedilotildees retoacutericas antigas transmitidas por

Quintiliano (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria XII 10 48) Em epiacutestola a Willian Blount embora natildeo se

refira expressamente ao uso delas no gecircnero que estudamos afirma Erasmo sobre o uso de

sentenccedilas em geral

74

O proveacuterbio melhora com a idade exatamente como os vinhos Eles natildeo se

limitam a ornamentar o seu estilo Eles satildeo igualmente uacuteteis para tambeacutem lhe

dar forccedila Por esta razatildeo Quintiliano natildeo soacute os incluiu entre os meios de

aliviar o teacutedio judicial entre as figuras de oratoacuteria mas considera que o

exemplo proverbial eacute um dos meacutetodos mais eficazes de prova se o seu

propoacutesito eacute convencer ou para refutar o seu adversaacuterio por meio de um ditado

espirituoso ou para defender a sua proacutepria posiccedilatildeo (Epiacutestola 125 ll 56-65

Steyn junho de 1500 I The Correspondence of Erasmus I 1974 p 255

traduccedilatildeo do inglecircs para o portuguecircs)

Logo no iniacutecio do ldquoSobre a abundacircnciardquo Erasmo pontua como as sententiae satildeo

recursos basilares da sua retoacuterica que tecircm o poder de conferir qualidade e elegacircncia ao

discurso ainda que tambeacutem tragam em si ldquoo perigo natildeo reduzido de deixaacute-lo afetadordquo (De

Copia I 9 p 26) Um dos erros apontados pelo holandecircs eacute a inadequaccedilatildeo com o tema ou

com o argumento proposto ou seja um adaacutegio que contrariasse o que a antiga tradiccedilatildeo

retoacuterica nomeava como decoro ou entatildeo o uso exagerado qualificado como ldquosententiarum

turbardquo que natildeo eacute capaz de reduzir a pobreza inerente ao discurso (Ibid)

Deve-se salientar a diferenccedila entre sententia no sentido de proveacuterbio e a sentenccedila no

sentido frase ou oraccedilatildeo que tambeacutem foi objeto de consideraccedilatildeo do roterdamecircs Relembrando

a ceacutelebre disputa entre Ciacutecero e Roacutescio sobre qual dos dois seria capaz de repetir uma mesma

ideia com o maior nuacutemero de formas sinoniacutemicas concebe a proposiccedilatildeo fundamental segundo

a qual a variaccedilatildeo das sentenccedilas enriquece o discurso (De Copia I 40-45 p 28) Erasmo ousa

ainda afirmar que natildeo eacute somente a variaccedilatildeo copiosa das sentenccedilas que eacute capaz de tornar um

discurso eloquente mas tambeacutem a concisatildeo de modo que a parcimocircnia eacute um fator relevante

para um discurso retoricamente constituiacutedo

Natildeo raro temos de dizer a mesma coisa vaacuterias vezes mas nesse caso se faltar

variaccedilatildeo ou perderemos ou faremos como o cuco de modo que repitamos as

mesmas palavras repetidas vezes sendo incapaz de dar diferente forma ou

color para a sentenccedila de maneira que nossa falta de eloquecircncia pareceraacute

ridiacutecula a noacutes mesmos e esgotaraacute totalmente o nosso puacuteblico de miseraacutevel

cansaccedilo (De Copia I 130-134 p 32)

Nota-se o uso da expressatildeo color com um sentido semelhante agravequele utilizado por

Secircneca o Velho em suas declamaccedilotildees as quais haviam sido editadas por Erasmo um ano

antes da publicaccedilatildeo da Querela e que segundo Knott (1988 p 12) tiveram influecircncia direta

sobre a declamaccedilatildeo e a coleccedilatildeo de adaacutegios erasmiana Embora natildeo trate exatamente da

sentenccedila senequiana enquanto proveacuterbio ao longo do capiacutetulo XVII do De copia Erasmo

aborda um tema que possui certa analogia com o criteacuterio para a seleccedilatildeo das sentenccedilas Ao

75

discorrer sobre a importacircncia da metaacutefora ou das similitudines como recurso retoacuterico capaz de

conferir ao discurso ornamento gravidade sublimidade e humor (De Copia I 801-803 p

64) apresenta a coleccedilatildeo de adaacutegios (De conscribendis epistolis p 240 ll 15-16) que

enriquecem o texto mas que devem ser selecionados com criteacuterio ldquoa metaacutefora natildeo ser dura

ou baixa ou mais exagerada do que eacute adequado ou dessemelhante ou demasiado frequente

especialmente a que eacute da mesma espeacutecierdquo (De Copia I 817-818 p 64) Ao que parece

Erasmo se refere ao uso moderado natildeo repetitivo no tocante agrave forma e ao conteuacutedo da

sentenccedila

O proacuteprio roterdamecircs colecionou centenas de adaacutegios na ediccedilatildeo expandida publicada

em 1508 e que satildeo utilizados (De Copia I 812-814 p 64) segundo Knott (1988 p 12) natildeo

somente como meras traduccedilotildees para o latim quando advindos do grego ou meras citaccedilotildees

literais quando originaacuterios do latim mas em alguns casos satildeo parafraseadas ou ao menos

demonstram certa semelhanccedila justamente para dar variedade e elegacircncia agraves diversas

sentenccedilas muito embora a maioria delas seja apenas recolhida dos escritos antigos com a

finalidade de ornamentar o discurso como eacute o caso da ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo natildeo se

absteacutem do uso de adaacutegios com finalidade retoacuterica Nesse particular podemos constatar que

tais adaacutegios possuem trecircs fontes especiacuteficas e em muitos casos grafadas na ediccedilatildeo criacutetica da

Queixa da Paz e que de certo modo coincidem com a lista supracitada de Knott (1988 p

12) ao serem classificadas em quatro fontes as antigas as biacuteblicas as patriacutesticas e os

proacuteprios adaacutegios de Erasmo

Algumas destas referecircncias se configuram apenas como citaccedilotildees diretas ou indiretas

dos autores Algumas podem ser expliacutecitas como eacute o caso de Platatildeo (linhas 9 da epiacutestola-

prefaacutecio e (551) enquanto outras satildeo alusotildees como Liacutevio (1-3)16

de Homero (7517

) de

Oviacutedio (16218

) de Siacutelio Itaacutelico (21019

) de Ciacutecero (21820

e 75821

) de Virgiacutelio (46722

e 67023

) e

16

ldquoundique se suosque profligante fortunardquo (Livio 3319)

17 ldquoCirces pharmacisrdquo (Homero Odisseia X 235ss)

18 ldquovestes candidae meo colorerdquo (Ovidio Arte Amatoacuteria 3 502)

19 ldquopax optima rerumrdquo (Silio Puacutenicas XI 592ss)

20 ldquoa viro laudatordquo (Ciacutecero Disputas Tusculanas IV 31 67)

21 ldquosilent leges inter armardquo (Cicero Mil 4 10)

22 ldquoignobile vulgusrdquo (Virgiacutelio Aeneida I 149)

23 ldquoquae maacutexima turba estrdquo (Virgiacutelio Aeneida VI 611)

76

de Plauto (76424

) Haacute citaccedilotildees de adaacutegios recolhidos e selecionados por Erasmo em sua

proacutepria coletacircnea (linhas 1825

2226

6227

7728

9129

15530

50531

553-55632

803-80433

86634

e 90635

) Alguns satildeo inspirados em fontes antigas como o de Pliacutenio (5736

) de Horaacutecio (15237

)

ou de Aristoacuteteles (391)38

Erasmo de modo algum aconselha a seleccedilatildeo de sentenccedilas de um

uacutenico autor mas a imitaccedilatildeo e a coleccedilatildeo destas retiradas das mais variadas fontes inclusive as

de origem ou inspiraccedilatildeo biacuteblica e patriacutestica chegando inclusive a ridicularizar no ldquoDiaacutelogo

Ciceronianordquo (p 617 ll 9-12) mais especificamente no diaacutelogo entre as personagens

Nosoacutepono e Buleacuteforo os autores que se aferravam unicamente agrave coleccedilatildeo das sentenccedilas e

adaacutegios oriundos ou inspirados na obra atribuiacuteda a Ciacutecero Erasmo eacute ecleacutetico no elenco das

fontes mas foi constantemente acusado de falta de cuidado no uso das sentenccedilas

Conforme lecirc-se no ldquoPlano de estudosrdquo o estiacutemulo aos estudantes de retoacuterica para o

cultivo da coleccedilatildeo e o conhecimento de adaacutegios e sentenccedilas dos antigos eacute imprescindiacutevel para

o enriquecimento do discurso em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica antiga pois satildeo fontes

da invenccedilatildeo da abundacircncia e da variaccedilatildeo das sentenccedilas (De ratione studii p 149 ll 18-27)

Por fim Erasmo chega a afirmar explicitamente no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo a

necessaacuteria imitaccedilatildeo das sentenccedilas colecionadas entre os autores citando inclusive as

declamaccedilotildees de Luciano a Aulo Geacutelio (De conscribendis epistolis p 532 ll 8-12)

24

ldquoparietum perfossorrdquo (Plauto Pseud 9 8 6)

25 ldquoPax omnium bonarum rerum et parens est et nutrixrdquo (Erasmo Adagia 3001)

26 ldquoigens malorum pelagusrdquo (Erasmo Adagia 3001)

27 ldquoFuremque fur cognoscitrdquo (Erasmo Adagia 1263)

28 ldquouni lachrymas clementiar et misericordiae symbolumrdquo (Erasmo Adagia 3001)

29 ldquosolum hominem nundum produxitrdquo (Erasmo Adagia 3001)

30 ldquodentata chartardquo (Erasmo Adagia 87)

31 ldquoe suggesto sacrordquo (Erasmo Adagia 3001)

32 ldquordquoEthnicorum leges parriciacutediordquo (Erasmo Adagia 3918)

33 ldquoad Cares viliacutessimosrdquo (Erasmo Adagia 514)

34 ldquoActa est fabulardquo (Erasmo Adagia 239)

35 ldquoBellum e bello seriturrdquo (Erasmo Adagia 3001)

36 ldquoLeonum feritas inter se non dimicat serpentium morsus non petit serpentes ne maris quidem beluae ac pisces

nisi in diversar genera sacuiuntrdquo (Plinio Histoacuteria VII 5)

37 ldquode lana caprinardquo (Erasmo Adag 253 Horaacutecio Espiacutestulas I 1815)

38 ldquoConciliant homines malardquo ou ldquomala conciliant et malosrdquo (Erasmo Adagia 1071)

77

211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes

Se a declamaccedilatildeo desde o iniacutecio possuiu uma relaccedilatildeo estreita com outros gecircneros

como a oraccedilatildeo (oratio) e o diaacutelogo (sermocinatio) identificamos outro correlato o espelho

dos priacutencipes Ora natildeo somente o tema aproxima a ldquoQueixa da Pazrdquo da ldquoInstituiccedilatildeo do

priacutencipe cristatildeordquo mas tambeacutem sobretudo em algumas de suas partes que aconselham o

suserano Herding (1974 p 6) aponta que ainda o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInsituiccedilatildeo do

priniacutencipe cristatildeordquo se caracterizam como obras erasmianas pertencentes a esse gecircnero

literaacuterio Por outro lado os argumentos utilizados na ldquoQueixa da Pazrdquo ao parecer de Herding

(1974 p 9) configuram a proacutepria ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo como um tratado de iacutendole

irecircnica O autor (1975 p 98) tambeacutem observou que Plutarco cuja obra moral tinha sido

editada e publicada por Erasmo em 1514 pode ter influenciado o roterdamecircs na redaccedilatildeo de

seus escritos suasoacuterios e pedagoacutegicos dirigidos especificamente aos priacutencipes O proacuteprio

Erasmo jaacute na carta a Felipe aquela que introduz a ldquoQueixa da Pazrdquo dirige-se a membros da

nobreza e em epiacutestola a Joatildeo Botzheim datada do ano de 1523 afirma sua declamaccedilatildeo como

um escrito cujos destinataacuterios satildeo justamente membros governantes Herding (1974 p 100)

levanta a hipoacutetese de que tal como esta tambeacutem seu mais ceacutelebre espelho do priacutencipe tenha

sido encomendada pelo chanceler Joatildeo Sauvage Esse escrito entatildeo seria de suasoacuterio e

pedagoacutegico no sentido de sugerir atitudes moralizadoras das relaccedilotildees entre os priacutencipes e os

seus congecircneres entre estes e o povo

Em todo o texto da ldquoQueixa da Pazrdquo haacute cinquenta e seis repeticcedilotildees da palavra

ldquopriacutenciperdquo muitas vezes em uma funccedilatildeo apelativa atraveacutes do uso do vocativo Para Erasmo o

gecircnero speculum segue um modelo Cristo que eacute o ldquoPriacutencipe da pazrdquo (Queixa da Paz 205-

214) Erasmo trata do regente bom (614 e 770) ou pio (770) e se propotildee aconselhaacute-los a

deliberar em favor da Paz em nome de princiacutepios eacuteticos tal como eacute tiacutepico das suasoacuterias

(Queixa da Paz 205-214) Ateacute mesmo na peroraccedilatildeo a Paz novamente volta-se a eles (Queixa

da Paz 872-876) As dezenas de refecircncias ao governante e a semelhanccedila de alguns trechos

com o gecircnero espelho de priacutencipes natildeo desautorizam a classificar a ldquoQueixa da Pazrdquo como

declamaccedilatildeo pois o tema sobre a paz tiacutepico do gecircnero deliberativo e o objetivo de aconselhar

proacuteprio das suasoacuterias satildeo elementos correntes nas antigas declamaccedilotildees

Por fim deve-se considerar que Gaeta (1969) notou semelhanccedilas evidentes entre o

diaacutelogo filosoacutefico presente no exoacuterdio do ldquoSobre a Clemecircnciardquo do Jovem Secircneca com o da

78

ldquoQueixa da Pazrdquo Notei que grande semelhanccedila da Queixa da Paz com o exoacuterdio de Secircneca

(Sobre a clemecircncia 1-4) Aquele foi um escrito filosoacutefico-moral destinado ao jovem

imperador Nero de modo a contribuir com a formaccedilatildeo deste (Manjarreacutes 2001 p 85) e que

de modo fictiacutecio simula discursos diretos de Nero (ver I2) ao passo que na declamaccedilatildeo em

estudo a locuccedilatildeo direta eacute proferida pela proacutepria Paz Secircneca o Jovem inicia sua

argumentaccedilatildeo apresentando o proacuteprio Nero como fonte dos dons virtudes e bens e o contrasta

com a humanidade ldquobriguenta intriguenta e apaixonadardquo capaz de causar ldquoa ruiacutena para si

mesmardquo Secircneca instrui o imperador a se auto-apresentar como aquele que cumpre o ofiacutecio de

Deus sobre a terra como o aacuterbitro da vida e da morte Cabe ao governante decidir as posses

do homem pois a fortuna de cada um proveacutem da sua boca Ele deve decidir sobre qual

inimigo deve ser tratado com rigor ou clemecircncia pois cidades e civilizaccedilotildees florescem pelas

suas palavras Mas Nero prefere promover a paz para benefiacutecio dos povos que lhe satildeo

submetidos Jaacute consideramos e ainda aprofundaremos como a paz se apresenta de modo

anaacutelogo e com argumentos semelhantes Em ambos os discursos elaborados em primeira

pessoa usam-se as imagens da prosperidade para a paz e da destruiccedilatildeo para a guerra em

ambos embora a paz seja apresentada como agradaacutevel aos ceacuteus ou seja aos deuses e aos

homens esta natildeo eacute aceita e perde seu lugar para a guerra

212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio

Ao estudar a ldquoQueixa da Pazrdquo sob a perspectiva dos trecircs gecircneros notamos novamente

a ocorrecircncia especial de traccedilos destes gecircneros o deliberativo ou suasoacuterio e o demonstrativo

ou epidiacutetico O primeiro ocorre sobretudo nos trechos em que a Paz se configura como

beneacutevola conselheira (Queixa da Paz 595-597) A Paz volta-se ao suserano a fim de

aconselhaacute-lo referindo-se na forma da terceira pessoa do singular

A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os afetos privados e estimar todas as coisas

segundo o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe evite viagens a terras

longiacutenquas ou antes que nunca cruze os limites territoriais do seu reino

(Queixa da Paz 646-647)

A Paz tambeacutem utiliza a segunda pessoa do singular ao dirigir-se diretamente ao

cristatildeo a fim de defender sua causa tal como se verificou em jaacute citada parte da peroraccedilatildeo

(Queixa da Paz 872-876) Entretanto esta natildeo se dirige como conselheira apenas do poder

laico mas tenta persuadir o proacuteprio Sumo Pontiacutefice

79

Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice Romano Entretanto no momento em que os

povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras perversas ndash e isto por longos

anos ndash onde estaacute a autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde estaacute o seu

poder proacuteximo ao de Cristo Era nesse ponto e entatildeo que a autoridade papal

certamente deveria ser exercida a natildeo ser que os papas tambeacutem compartilhem

as mesmas ambiccedilotildees (Queixa da Paz 583-586)

Os conselhos deliberativos assumem a construccedilatildeo do futuro mas tambeacutem o

subjuntivo como por exemplo nesse trecho no qual a Paz sugere regras com finalidade

paciacutefica no tocante ao direito de sucessatildeo de territoacuterios

Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas possibilidades para governar sua

regiatildeo da melhor forma possiacutevel Pois quando estiver totalmente concentrado

no cuidado de um soacute reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus filhos

enriquecido por melhorias E desta forma como eacute evidente tudo floresceraacute

Que sejam aliados natildeo apenas por viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas

contratuais mas sim unidos por amizade sincera e pura e acima de tudo por

um idecircntico e comum amor por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei

seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais proacuteximo por consanguinidade quer

agravequele que pelos votos do povo for considerado o mais capaz Quanto aos

demais que lhes baste estar entre o nuacutemero dos nobres mais honrados (Queixa

da Paz 639-645)

Ao comentar o ldquoElogio ao matrimocircniordquo (1518) publicado um ano apoacutes a publicaccedilatildeo

da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517) Leushuis (2004 p 1287) estabelece uma definiccedilatildeo que parece

adequada agrave declamaccedilatildeo que estudamos

Primeiramente publicada em marccedilo de 1518 sob o tiacutetulo de Declamatio in

genere suasorio de laude matrimonii o texto combina elementos da

declamaccedilatildeo (declamatio) e do elogio (laus) Ao considerar a natureza geral da

declamaccedilatildeo pode-se dizer que o objetivo deste texto eacute discutir os argumentos

a favor e contra (in utramque partem) a tese (thesis) em um modo suasoacuterio

(genus suasorium) Na linha da tradiccedilatildeo claacutessica ciceroniana na qual o gecircnero

era usado para discutir uma questatildeo abstrata ou filosoacutefica [] as declamaccedilotildees

do iniacutecio do seacuteculo XVI expressam o valor dos julgamentos dos seus autores

sobre problemas morais ou eacuteticos por meio da retoacuterica do louvor ou do

vitupeacuterio (laus e vituperatio) (Leushuis 2004 p 1287)

Aleacutem disso Querela pode ser traduzido por queixa lamento ou queixume mas

tambeacutem possui um sentido muito proacuteximo a vitupeacuterio ou reclamaccedilatildeo pois quem se queixa

vitupera reclama ou lamenta algo39

Verificou-se alguns trechos da declamaccedilatildeo que

apresentam traccedilos do gecircnero epidiacutetico como quando Erasmo empresta a voz para a Paz fazer

sua proacutepria exaltaccedilatildeo na primeira pessoa do singular (Queixa da Paz 18-21) Em outra parte

a Paz exalta-se a si mesma com o uso da terceira pessoa do singular ldquoCom tatildeo grande nuacutemero

39

Cf Gaffiot F Latin Dictionnaire Latin-Franccedilais Paris Hachette 2000 Voz Querela

80

de argumentos a natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela nos convida com tatildeo grande

nuacutemero de seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com tantos laccedilos e razotildeesrdquo (Queixa da

Paz 103-104) Erasmo tambeacutem utiliza o arqueacutetipo de Cristo como argumento para exaltaacute-la

(Queixa da Paz 203-222)

Em vaacuterios trechos a Paz se auto-elogia por meio de uma comparaccedilatildeo com Cristo a

fim de exaltar seu proacuteprio ecircthos e de associar-se a sua autoridade assim como agravequela de Davi

e Salomatildeo monarcas biacuteblicos que favoreceram Israel com a prosperidade gerada pela paz

Erasmo estabelece um contraste tiacutepico do gecircnero epidiacutetico que satildeo as vituperaccedilotildees agrave causa

contraacuteria sucessivas aos elogios agrave causa que se estaacute defendendo (Queixa da Paz 237-248)

Em outro excerto o paralelismo entre vituperaccedilatildeo e elogio eacute alternado Comeccedila-se

pela censura e passa-se ao encocircmio e vice-versa

Que os mortais desculpem com sua fraqueza o que quiserem mas se de fato

natildeo amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo entre si com batalhas

contiacutenuas Olhai para o Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que outra

coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o

cumprimento da paz ldquoa paz esteja convoscordquo e lhes prescreveu essa forma de

saudaccedilatildeo como a uacutenica digna dos cristatildeos Os Apoacutestolos natildeo se esqueceram

desses preceitos e recomendavam a paz em suas cartas e desejavam paz

agravequeles a que amavam de forma especial Escolhe coisa importante quem faz

votos pela sauacutede mas estaacute desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha

recomentado durante toda a sua vida nunca deixou de a recomendar Vede

com quatildeo grande solicitude a recomenda quando estava prestes a morrer

ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos tenho amadordquo E novamente ldquoeu vos

deixo a paz eu vos dou a minha pazrdquo (Queixa da Paz 259-268)

A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem pode ser vista como pertencente agrave espeacutecie do epidiacutetico

chamada lamentaccedilatildeo Tal fenocircmeno corre logo no exordium (Queixa da Paz 4-17)

Destacam-se no trecho supracitado alguns verbos que denotam a lamentaccedilatildeo deplorare e

deflendi sunt assim como a expressatildeo mea iniuria Esse formato de lamento ocorre em

vaacuterios trechos esparsos pela obra como o iniacutecio do primeiro argumento no qual Erasmo

defende que a guerra contraria a natureza humana (Queixa da Paz 30-31) Em um longo

periacuteodo a personificaccedilatildeo da Paz lamenta ou vitupera o fato de ter sido destruiacuteda pelos

homens inclusive pelos cristatildeos pois foi de fato destruiacuteda ldquoem toda parterdquo como se declara

no tiacutetulo da declamaccedilatildeo (Queixa da Paz 122-123) O lamento da Paz se volta contra os

governantes

81

Entretanto oacute coisa indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar sequer a

sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute fingido e simulado natildeo haacute nada que

natildeo seja corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por divergecircncias e

rivalidades ocultas No final natildeo encontro o trono da paz entre eles mas antes

eacute aiacute que mais estatildeo as fontes e origens de todas as guerras (Queixa da Paz

136-140 )40

A personificaccedilatildeo da Paz amplifica a lamentaccedilatildeo ao descrever suas decepccedilotildees junto a

diversas classes da sociedade os eruditos o clero secular e mesmo entre aqueles que mais

deveriam primar pela ldquoperfeiccedilatildeo da caridaderdquo ou seja que deveriam se destacar pela virtude e

pelo exemplo aos demais atraveacutes da vida humilde no interior de um convento (Queixa da

Paz 184-189)

A Paz natildeo encontrou seu lugar junto aos governantes nem junto agrave hierarquia

eclesiaacutestica dos altos graus ateacute os mais iacutenfimos Nota-se a decepccedilatildeo para com a estrutura

institucional da igreja Essa lamentaccedilatildeo ocupa consideraacutevel espaccedilo dentro da declamaccedilatildeo e

parece ser o objeto principal da queixa uma vez que outros setores da sociedade satildeo

mencionados em trechos comparativamente reduzidos como eacute o caso da destruiccedilatildeo da paz na

famiacutelia Esta vitupera com veemecircncia sobretudo contra os cleacuterigos bispos e papas como eacute o

caso de Juacutelio II os quais apesar do ofiacutecio eclesiaacutestico passaram para a histoacuteria como

guerreiros (Shaw 1993 p 15) Esse Papa havia inclusive conferido o estandarte da cruz aos

suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute (Queixa da Paz 520-540)

Tal recurso ocorre na peroratio construiacuteda por Erasmo na qual se evoca natildeo somente

o principado ou o sacerdoacutecio mas tambeacutem o povo (Queixa da Paz 867-888) Deve-se

pontuar contudo que sendo um texto escrito em latim em uma eacutepoca na qual grassava o

analfabetismo significaria uma exclusatildeo do povo Potanto a restriccedilatildeo do puacuteblico-alvo agravequeles

que sabiam ler natildeo exclui o apelo universal que a Paz se julga no direito de proferir Esta eacute

chamada a habitar em toda parte muito embora tenha sido injuriada e perseguida

213 Conclusotildees do capiacutetulo

No capiacutetulo segundo caracterizamos o gecircnero declamaccedilatildeo segundo Erasmo

definindo-o como um discurso fictiacutecio escrito em prosa com caraacuteter de exerciacutecio da

40

At o rem indignam apud hos nec umbram verae concordiae licuit cernere Fucata fictaque omniafactionibus

apertis clanculariis dissidiis ac simultatibus corrupta sunt universa Denique adeo apud hos non esse sedem paci

comperio ut hinc potius omnium bellorum fontes ac seminaria (Erasmo Queixa da Paz 136-140)

82

eloquecircncia cuja finalidade eacute simultaneamente educativa no sentido de ser formativa do ponto

de vista eacutetico ao aconselhar valores humanos condizentes com os ideais irecircnicos e literaacuteria

ao apresentar-se como um divertimento na medida em que procura comprazer o leitor atraveacutes

de formas elegantes e metaacuteforas que visam provocar o riso

Verificou-se que restaram ao menos onze declamaccedilotildees de autoria de Erasmo e que

algumas se assemelham ao diaacutelogo por apresentarem mais de uma personagem que emitem

discursos diretos reciprocamente direcionados As declamaccedilotildees erasmianas divergem das

senequianas e equiparam-se agraves gregas no sentido de que eram escritas integralmente ou seja

tal como haveriam de ser pronunciadas Em oposiccedilatildeo a estas estatildeo as controveacutersias de

Secircneca que eram redigidas de modo fragmentaacuterio e que possivelmente natildeo eram lidas em voz

alta da mesma forma que eram escritas muito embora tivessem a finalidade de exercitar a

actio entendida como o exerciacutecio da modulaccedilatildeo da voz tal como a declamaccedilatildeo mencionada

em Ciacutecero ou na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo

A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem apresentou traccedilos caracteriacutesticos de outros gecircneros antigos

retomados pelos humanistas tais como a oratoacuteria o espelho dos priacutencipes o panegiacuterico o

tratado moral a epiacutestola suasoacuteria e o diaacutelogo Aleacutem disso verificou-se que de modo

semelhante ao praticado nas declamaccedilotildees gregas os humanistas apresentavam elementos do

gecircnero epidiacutetico e deliberativo no primeiro caso haacute elogios agrave paz tanto em suas

autodescriccedilotildees como na enumeraccedilatildeo dos benefiacutecios que esta concede aos mortais mas

tambeacutem haacute trechos nos quais ela vitupera contra a guerra seus propugnadores e os vaacuterios

malefiacutecios desta sobre os homens em particular e sobre a sociedade Elogiar e vituperar

configuram-se entatildeo como traccedilos do gecircnero epidiacutetico no discurso irecircnico da Paz Contudo o

tema da paz eacute tiacutepico do deliberativo e alguns trechos apresentam uma forma de deliberaccedilatildeo a

favor de sua proacutepria causa apresentando os argumentos a favor da guerra somente na medida

em que satildeo imprescindiacuteveis para a confutaccedilatildeo ou o desaconselhamento

83

CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ

O presente capiacutetulo tem o objetivo de tratar da caracterizaccedilatildeo da prosopopeia realizada

na ldquoQueixa da Pazrdquo A partir da anaacutelise sobretudo do exordium da declamaccedilatildeo (1-29) e de

outras partes que se fizerem pertinentes o estudo visa a apresentar os traccedilos da personificaccedilatildeo

por meio de seu proacuteprio discurso uma vez que esta declamaccedilatildeo se caracteriza como um uacutenico

discurso o da Paz e natildeo apresenta qualquer narrativa introdutoacuteria em terceira pessoa

31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo

Para Erasmo a prosopopeia eacute o discurso de um ente humanizado uma personificaccedilatildeo

que estando longe ausente ou morta estabelece uma fala um discurso direto (De copia II

389-397) Sua definiccedilatildeo recupera a antiga tradiccedilatildeo retoacuterica presente em manuais e autores

renomados entre outros possiacuteveis exemplos como na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (IV 53 66) O

exemplo de Platatildeo como prosopopeia tambeacutem estaacute presente em Ciacutecero (Fin IV 22 61) Para

Erasmo uma prosopopeia deve parecer verossiacutemil aos leitores (De copia II 388-389)

Permite ademais tratar de assuntos seacuterios ou graves sobretudo quando simula o discurso da

paacutetria da natureza da repuacuteblica ou da proviacutencia Erasmo chega a citar as proacuteprias

ldquoCatilinaacuteriasrdquo e a locuccedilatildeo de Soacutecrates no diaacutelogo ldquoCriacutetonrdquo de Platatildeo para fundamentar seu

ponto de vista (De Copia II 389-405) Para ele a prosopopeia permite dar voz ldquomuitas vezes

aos proacuteprios deuses aos locais e a muitas coisas mudas com as quais ornamos o discursordquo (De

copia II 406-407) Conveacutem contudo consignar que Erasmo natildeo distingue entre uma

prosopopeia no sentido de uma pessoa ausente que toma a voz e uma personificaccedilatildeo

entendida como uma abstraccedilatildeo ndash como eacute o caso da paz ndash ou um objeto ou animal que

usualmente natildeo tem a habilidade da fala

32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas

Erasmo aleacutem de leitor tradutor e editor de escritos antigos tambeacutem era exegeta e

teoacutelogo e portanto dispunha para a invenccedilatildeo do corpus biacuteblico escrito em grego em pleno

periacuteodo heleniacutestico ou da sua versatildeo latina a ldquoVulgatardquo revisada por Jerocircnimo datada do

seacuteculo IV d C Sem duacutevida estas fontes contribuiacuteram para a forma de alguns trechos da

ldquoQueixa da Pazrdquo Em 1517 fazia cerca de um ano que ele havia publicado sua traduccedilatildeo para o

84

latim do Novo Testamento grego apoacutes um amplo trabalho de criacutetica dos manuscritos e

seleccedilatildeo das variantes possivelmente mais originais estabelecendo criteacuterios ainda hoje

utilizados nas ediccedilotildees criacuteticas de escritos antigos

No texto biacuteblico entre outras significativas personificaccedilotildees abstratas femininas tem-

se a ἀγάπη a caridade (Ad Corinthios I 134-13) e a Γσνὴ ἄθρων a mulher louca ou senhora

loucura (Proverbia 913-18) Destaca-se no ldquoLivro da Sabedoriardquo escrito por volta do seacuteculo

II a C no Egito o qual conteacutem a personificaccedilatildeo da sabedoria como uma mulher bela uma

matildee rica fonte de ciecircncia e ldquocriadorardquo de todas as coisas de uma forma semelhante agrave paz Ela

seria a antiacutetese da Loucura que seria a matildee de todas as maldades e contradiccedilotildees humanas O

autor biacuteblico imagina-se inclusive em desponsoacuterio com a sabedoria a qual se enamorou de

modo anaacutelogo a uma ninfa

A sabedoria eacute radiante e imarcesciacutevel Aqueles que a amam a contemplam

com facilidade e os que a procuram a encontram Ela se antecipa e se faz

conhecer aos que a desejam quem madruga por ela natildeo se cansaraacute pois a

encontraraacute sentada agrave sua porta Meditar nela eacute a perfeiccedilatildeo da prudecircncia e o

que vigia por sua causa logo se encontraraacute sem perigo Com efeito ela vai agrave

procura dos que a merecem nos caminhos mostra-se benigna e os precede em

cada pensamento Seu verdadeiro princiacutepio eacute o desejo da instruccedilatildeo empenho

da instruccedilatildeo eacute o amor e o amor a observaccedilatildeo das leis mas a guarda das leis eacute

a confirmaccedilatildeo da incorruptibilidade a incorruptibilidade verdadeiramente faz

estar proacuteximo de Deus Portanto o desejo de sabedoria conduz agrave realeza Oacute

tiranos dos povos se vos deleitais com tronos e cetros honrai pois a

sabedoria a fim de que reineis eternamente Anunciarei-vos o que eacute a

sabedoria e como ela se originou e natildeo vos esconderei os misteacuterios poreacutem

desde o iniacutecio de sua origem investigarei e farei manifesto o seu

conhecimento e natildeo me apartarei da verdade nem farei caminho com inveja

corruptora porque ela jamais comungaraacute com a sabedoria (Sapientia 6 12-

23)

Outra personificaccedilatildeo biacuteblica que certamente influenciou o caraacuteter amaacutevel da Paz seria

a caridade usada por Paulo autor explicitamente citado na ldquoQueixa da Pazrdquo em seis trechos

(169 215 710 712 735 835) Esta estaacute presente em uma de suas cartas redigidas

originariamente em grego koineacute Nota-se que a antiacutetese loucura-sabedoria utilizada por

Erasmo no ldquoElogio da Loucurardquo pode ter muito provavelmente sua origem ou inspiraccedilatildeo nos

escritos sapienciais biacuteblicos sejam veterotestamentaacuterios sejam paulinos A grande diferenccedila

contudo das ficccedilotildees de Erasmo para com aqueles textos consiste no uso da primeira pessoa

do singular numa estrutura de monoacutelogo no qual a personagem fala de si mesma e discorre

85

longamente sobre o tema em questatildeo abrangendo inclusive a totalidade do discurso e natildeo

somente alguns trechos

Na literatura biacuteblica aleacutem da primeira pessoa do singular verificam-se descriccedilotildees

dessas prosopopeias abstratas na terceira pessoa do singular o que eacute evitado no ldquoElogio da

Loucurardquo e na ldquoQueixa da Pazrdquo Esta seria a grande novidade que Erasmo proporcionou agrave

declamaccedilatildeo enquanto gecircnero antigo recebido no Renascimento (Chomarat 1981 p 940

Kennedy 1978 p 85) Ao comentar genericamente as personificaccedilotildees da Loucura e da Paz

Kennedy (1978 p 79) afirma que Erasmo ldquoincorporou usos da voz e intensidade que

romperam os limites da locuccedilatildeo e as proacuteprias barreiras linguiacutesticas transcendendo as

convenccedilotildees ciceronianas ou aacuteticas que no periacuteodo se procuravam associarrdquo Nesse sentido

rompeu os paradigmas biacuteblicos ao conceder a suas personificaccedilotildees simulaccedilatildeo de um discurso

direto de um monoacutelogo na integralidade do opuacutesculo Diferenciam-se inclusive dos diaacutelogos

presentes em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo com as personificaccedilotildees do amado e da amada embora

sejam apresentados em discursos diretos Estas tambeacutem se distinguem das declamaccedilotildees

erasmianas pois entatildeo em forma de diaacutelogo inclusive com a presenccedila de outros personagens

natildeo protagonistas e tais discursos diretos do casal natildeo ocupam a integralidade do livro

33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio

Se quanto agrave personificaccedilatildeo simulada a ldquoQueixa da Pazrdquo muito se assemelha a alguns

trechos biacuteblicos a forma de um monoacutelogo inteiramente atribuiacutedo a uma prosopopeia feminina

eacute encontrada poreacutem nos poemas elegiacuteacos das epiacutestolas que Oviacutedio escreveu e denominou

posteriormente como ldquoHeroidesrdquo Embora esta natildeo contenha personificaccedilotildees conveacutem aqui

consideraacute-la Trata-se de uma coleccedilatildeo de vinte e uma cartas de amor escritas e dirigidas a seus

amados por personagens femininas da mitologia e da literatura com exceccedilatildeo de trecircs cartas

que satildeo dirigidas por homens agraves suas amantes A ausecircncia o esquecimento a distacircncia o

abandono ou a perda funcionam como pontos de partida para que as heroiacutenas dediquem cartas

e se lamentem dos seus amores insatisfeitos por diversas causas As heroiacutenas procedem de

diferentes mitos e gecircneros literaacuterios como os poemas homeacutericos a trageacutedia a liacuterica a eacutepica

entre outros Oviacutedio adapta as personagens femininas agrave sua sensibilidade elegiacuteaca com a qual

desenvolve o tema do amor por exemplo na epiacutestola de Peneacutelope a qual expressa em sua

carta a Ulisses sentimentos amorosos (Heroides 1) apenas esboccedilados na ldquoOdisseiardquo Soto

86

(2012 p 52) nota que Oviacutedio caracterizou as amantes e concubinas de forma mais atraente e

beneacutevola que a empregada para descrever as esposas que muitas vezes causavam problemas

aos seus esposos Esta ideia contrariava frontalmente a moral de Augusto que visava por

meio de decretos a proteger os ldquobons costumesrdquo na sociedade romana Soto (2012 p 51)

tambeacutem nota que as personagens mitoloacutegicas caracterizadas por Oviacutedio correspondem mais agraves

mulheres do seu tempo do que agraves proacuteprias narrativas mitoloacutegicas Ao comentar as ldquoHeroidesrdquo

observa Margolin (1971 p 224 nota 8) os discursos diretos ldquoaplicam as liccedilotildees de retoacuterica

que ele [Oviacutedio] teria recebido junto aos mestres Aureacutelio Fusco e Porcio Latro Oviacutedio natildeo

procura nelas a verossimilhanccedila histoacuterica Elas pertencem agrave tradiccedilatildeo das suasoriaerdquo

Verificaram-se referecircncias de Erasmo agraves ldquoHeroidesrdquo nos ldquoAdaacutegiosrdquo no ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo

(p 42 ll 538-543) e no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo eacute justamente no trecho desta terceira

obra cujo subtiacutetulo Peculiaris epistolae character em que Erasmo trata da caracterizaccedilatildeo das

personificaccedilotildees que se deu a referecircncia agraves ldquoHeroidesrdquo agraves quais natildeo hesitou em chamar de

ldquopequenas declamaccedilotildeesrdquo (declamatiuncula) (De conscribendis epistolis p 224 ll 5-10)41

Em algumas das ediccedilotildees revisadas pelo autor o exordium da declamaccedilatildeo irecircnica de

Erasmo eacute precedido pela indicaccedilatildeo da pessoa que fala no monoacutelogo declamatoacuterio pax

loquitur Esse subtiacutetulo visa a salientar que a declamaccedilatildeo seraacute feita pela proacutepria Paz que

personificada se queixa lamenta ou manifesta sua inconformidade com a injusta perseguiccedilatildeo

que os homens fazem contra ela embora ela por sua natureza beneacutevola seja capaz de

comunicar aos homens todos os bens naturais e sobrenaturais individuais e coletivos Eis

assim que a ldquoQueixa da pazrdquo se tornaraacute como o proacuteprio Erasmo mais tarde afirmou o

ldquoEpitaacutefio da Pazrdquo tatildeo rejeitada ao longo da Histoacuteria e sobretudo naquele iniacutecio do seacuteculo

XVI (na Epiacutestola a Joatildeo Botzheim) Trata-se de um traccedilo de ligaccedilatildeo com a elegia que teve

iniacutecio como canto fuacutenebre O uso da personificaccedilatildeo se baseava no princiacutepio defendido pelo

roterdamecircs ldquoa personificaccedilatildeo eacute variaacutevel de diversas formas o escritor pode selecionar a que

deseja que se deve fazer Assim como eacute o homem assim deve ser sua accedilatildeordquo (De Copia I

13) Esta teoria remonta agrave construccedilatildeo de caracteres (ἦθος) jaacute presente nas poeacuteticas de

Aristoacuteteles (Poeacutetica 6 12-15) e Horaacutecio (Ars Poetica 153-178)

41

Margolin (1971 p 253 nota 6) tambeacutem visualizou uma referecircncia indireta agraves heroidas no seguinte trecho ldquoIn

hoc argumenta poterit et illud admoneri blandiorem oportere flngi epistolam quam adolescens adolescenti

congerro congerroni amans scrihit amantirdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 253 ll 5-7) como tambeacutem

no seguinte trecho ao se falar do retorno de Ulisses agrave proximidade de Peneacutelope descrita nas Heroidas de Oviacutedio

ldquoQuum ad vxores ventum est tum jiunt seneserdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 269 l 17)

87

34 Personificaccedilotildees femininas

Chomarat (1981 p 1000) afirma que a personificaccedilatildeo da Paz possui duas

caracteriacutesticas essenciais eacute feminina e abstrata Isso natildeo somente porque pax em latim eacute um

substantivo feminino mas por sua proacutepria caracterizaccedilatildeo por Erasmo Aristoacuteteles apontou que

haacute caracteres adequados e distintos agrave personificaccedilatildeo masculina e agrave feminina ldquosem duacutevida

existem caracteres viris entretanto a coragem desta espeacutecie de caracteres natildeo conveacutem agrave

natureza femininardquo (Poeacutetica 15 4) Se o Estagirita aponta a coragem como um elemento

proacuteprio ao homem para Mendelson (1994 p 94) Quintiliano recomendava que a actio

considerasse no caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava e em seu auditoacuterio alguns fatores

relevantes como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade sexo idade partido e

acima de tudo seu caraacuteter moral (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 37-38) Tambeacutem no ldquoDe copiardquo

(II 384-389) ele se refere agrave consideraccedilatildeo do gecircnero da pessoa que emite o discurso Deste

modo verifica-se que o recurso agrave caracterizaccedilatildeo do feminino eacute um fator relevante dentre as

estrateacutegias de persuasatildeo exploradas por Erasmo ao personificar a Paz como uma saacutebia e

compassiva mulher (Spierling 2008 p 119) que se dirige a todos os mortais para convencecirc-

los das vantagens individuais e sociais da paz apresentando razotildees naturais tais como a

incompatibilidade entre a natureza e a guerra e as consequecircncias inconvenientes da guerra no

plano poliacutetico e soacutecio-econocircmico Do ponto de vista religioso a guerra natildeo corresponde ao

ideal da cavalaria medieval e da propagaccedilatildeo da feacute Erasmo denuncia a incoerecircncia com a

doutrina cristatilde por parte de bispos e pregadores agentes da guerra ainda que por motivos

ldquojustosrdquo ou ldquosantosrdquo mas muitas vezes insignificantes

Embora a personificaccedilatildeo erasmiana natildeo seja uma prosopopeia feminina isto eacute

representasse a ficccedilatildeo de uma mulher ldquoem concretordquo ndash como encontramos nas ldquoHeroidesrdquo ndash

mas sim de uma abstraccedilatildeo ou alegoria como no caso da paz ou da loucura ou por exemplo

como encontramos em Ciacutecero ao atribuir uma voz agrave paacutetria e agrave repuacuteblica no iniacutecio das

ldquoPrimeiras Catilinaacuteriasrdquo (718 11 27) eacute justamente nesse ponto entre outros que

encontramos mais uma inovaccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana

Erasmo escreveu vaacuterias de suas obras tendo a figura da mulher dentro do contexto do

matrimocircnio seja na fase anterior (virgens) durante este (casadas) ou posterior (viuvez) tais

como o ldquoElogio do matrimocircniordquo (1518) o ldquoPretendentes e meninasrdquo (1523) o ldquoVirgem

misoacutegamardquo (1523) o ldquoVirgem penitenterdquo (1523) o ldquoEsposa mempsigama ou casamentordquo

88

(1523) e alguma trechos do ldquoInstituiccedilatildeo do matrimocircnio cristatildeordquo (1526) Sua declamaccedilatildeo

ldquoElogio do matrimocircniordquo e o seu tratado sobre a viuvez assim como vaacuterios de seus coloacutequios

lidam com a virgindade o namoro o casamento a criaccedilatildeo de filhos e a viuvez (Chomarat

1981 p 894) assuntos que tocam diretamente em questotildees da relaccedilatildeo entre os gecircneros

masculino e feminino Sowards (1982 p 88) apresenta alguns pontos especiacuteficos na

concepccedilatildeo erasmiana acerca da mulher a necessidade de lhes prestar a educaccedilatildeo em

conformidade com os humanistas italianos que julgavam ser esta essencial para uma formaccedilatildeo

moral que preserve a virgindade preacute-matrimonial aleacutem disso compreendia a liberdade da

mulher na escolha do cocircnjuge Este enfoque em questotildees de castidade deve-se agraves discussotildees

acerca da exaltaccedilatildeo do celibato sobre ao matrimocircnio que Erasmo confuta promovendo um

elogio e uma suasoacuteria do matrimocircnio (Leushuis 2004 p 1287-1307) Se de um lado a Paz

se reveste dos caracteres femininos Erasmo tambeacutem cita uma frase paulina afirmando que

natildeo se pode fazer distinccedilatildeo ldquoentre grego e baacuterbaro entre homem e mulherrdquo onde se nota

abertura para a consideraccedilatildeo de certa igualdade entre os gecircneros ldquoA partir daiacute natildeo haacute mais

servos e homens livres baacuterbaros e gregos homens e mulheres mas todos satildeo o mesmo em

Cristo que tudo conduziu agrave concoacuterdiardquo (Queixa da Paz 369-370)

Em alguns trechos escritos por Erasmo haacute a transcriccedilatildeo de alguns estereoacutetipos do sexo

feminino

O sexo feminino eacute afligido por dois viacutecios Elas vivem para agradar na

aparecircncia Este desejo eacute originaacuterio na vangloacuteria Segundo elas natildeo podem

tolerar injuacuterias e satildeo propensas agrave vinganccedila Isso se deve agrave fraqueza dos seus

intelectos e agrave sua ignoracircncia para com a verdadeira nobreza Uma mente

realmente nobre releva a injuacuteria Ademais como a mulher eacute levada pelas

emoccedilotildees elas medem a honra pelos padrotildees exteriores e natildeo podem tolerar ser

superadas nessas mateacuterias (Epistola V p 704 F-5A)

Se Erasmo afirma a ldquopeculiar inconstacircncia da mulherrdquo (De Copia II 758)

reconheceo mesmo em relaccedilatildeo agrave crianccedila ao povo e inclusive ao proacuteprio homem Para

Rummel (1996 p 4) o holandecircs reproduz em seus escritos os defeitos dos estereoacutetipos

masculino e o feminino Os homens satildeo como feras mas como estatildeo no controle patriarcal

satildeo mimados facilmente enganados A mulher eacute rancorosa vatilde ignoacutebil atrasada

intelectualmente e manhosa mas tal leitura do texto conforme a proacutepria autora claramente se

propotildee a explicar deve ser entendida no gecircnero proacuteprio dos textos erasmianos sobre o

matrimocircnio que abordam os dois lados da questatildeo embora tais estereoacutetipos sejam por vezes

refutados logo em seguida por ele Leushuis (2004 p 1288) tambeacutem constata que as

89

declamaccedilotildees erasmianas que tratam do casamento apresentam probatio e confutatio a favor da

instituiccedilatildeo Entretanto apesar do comprometimento de Erasmo para a defesa do matrimocircnio

o autor submetido agrave forma do gecircnero natildeo deixa de apresentar por exemplo em uma carta de

genere dissuasorio uma lista de argumentos teoloacutegicos contra o matrimocircnio como a

virgindade e o celibato como meios de felicidade e o desejo sexual como pecado assim como

alguns prejuiacutezos do contato entre os gecircneros Se o matrimocircnio eacute uma armadilha a mulher

seria um ser trapaceiro que envolve o noivo em seus laccedilos (2004 p 1288) mas conveacutem

entender tais afirmaccedilotildees como os argumentos que Erasmo pretende refutar a ponto de aleacutem

do elogio agrave beleza agrave gentileza das francesas e a Margareth More nos proacuteprios escritos sobre o

matrimocircnio a mulher tambeacutem ser apresentada como mais do que uma companheira

agradaacutevel

O que eacute pois mais doce do que viver com uma mulher com quem tu estaacutes

mais intimamente ligado natildeo apenas pelos laccedilos de afeto mas tambeacutem pela

uniatildeo fiacutesica Se tirar o grande deleite espiritual da bondade dos outros

parentes proacuteximos e conhecidos como eacute muito mais agradaacutevel ter algueacutem com

quem compartilhar os sentimentos secretos do coraccedilatildeo com quem tu podes

falar como consigo mesmo Com essa lealdade obtens seguranccedila com quem

conduz as tuas fortunas como proacuteprias Que felicidade existe na uniatildeo de

marido e mulher Em comparaccedilatildeo com isto naotilde existe nada maior nem mais

duradouro em toda a natureza Enquanto estamos ligados com os nossos

outros amigos pela benevolecircncia do espiacuterito com uma esposa estamos unidos

pelo maior carinho pela uniatildeo fiacutesica pelo viacutenculo do sacramento e pela

partilha comum de todas as fortunas (De conscribendis epistolis Collected

Works Erasmus 25 p 139)

Basta ler o exordium da ldquoQueixa da Pazrdquo para a clara percepccedilatildeo de que o feminino

caracterizado pelo roterdamecircs se coaduna com uma visatildeo positiva da mulher e natildeo com o

estereoacutetipo negativo utilizado por ele nas confutaccedilotildees retoacutericas de alguns trechos de seus

escritos Dificilmente se podem esperar demonstraccedilotildees inequiacutevocas sobre questotildees

complexas como o papel da mulher de um homem que afirma que ldquoassuntos humanos

podem tomar tantas formas que respostas definitivas natildeo podem ser fornecidas para todos

elesrdquo (Rummel 1996 p 12 Terpstra 1997 p 696) Margolin (2000 p 10) com argumentos

anaacutelogos demonstra como os elogios e as criacuteticas agrave mulher presentes nos escritos de Erasmo

natildeo podem ser inferidos como seu ldquopensamento expliacutecitordquo devido agrave transposiccedilatildeo do eu

discursivo para uma personificaccedilatildeo diversa do autor e que era proacutepria do gecircnero literaacuterio por

ele utilizado

90

Entretanto estas afirmaccedilotildees ao levarem em conta apenas os escritos sobre o

matrimocircnio e a personificaccedilatildeo da Loucura podem natildeo ter explicitado a caracterizaccedilatildeo do

feminino presente na ldquoQueixa da Pazrdquo que apresenta exatamente as qualidades contraacuterias ao

estereoacutetipo dos defeitos da mulher a Paz eacute amorosa saacutebia sublime intelectualmente superior

aos homens e delicada Eacute a mulher perfeita que oferece a si mesma para o benefiacutecio da

humanidade Ela eacute imortal face aos homens mortales Representa a mulher em seu esplendor

conforme os criteacuterios do que era considerado belo naquele contexto histoacuterico Veremos

ademais que aleacutem de mulher a Paz figura de um modo tatildeo elevado que mais se assemelha a

uma ninfa ou a uma deusa embora mantenha seus caracteres femininos segundo os moldes

predominantes no seacuteculo XVI adaptando seu ecircthos ao que o puacuteblico espera de quem

argumente sobre ela Sloane (2004 p 113) ao comentar os antigos fundamentos retoacutericos

para os autores do Renascimento escreveu

Em termos retoacutericos a questatildeo gira em torno do ecircthos ou seja os meios pelos

quais um falante ou escritor projeta uma autoimagem Eacute bem sabido que a

absorccedilatildeo com a retoacuterica ndash uma arte sobre a qual os pagatildeos como Ciacutecero

tinham muito a dizer ndash eacute uma das marcas do humanismo renascentista Ecircthos

identidade ou individualidade eacute um princiacutepio fundamental da retoacuterica E

caraacuteter por sua vez foi um dos principais temas do proacuteprio Renascimento um

periacuteodo em que personalidades altamente individualizadas colocaram seu selo

sobre as maravilhas artiacutesticas e intelectuais da eacutepoca O Renascimento foi um

tempo por outro lado em que a autoconstruccedilatildeo tornou-se possiacutevel em que o

passado e a linhagem se tornaram um pouco menos funcional ou louvaacutevel do

que a identidade que cada um era capaz de forjar para si mesmo

Autoconstruccedilatildeo bem como o ethos capturou a imaginaccedilatildeo dos leitores ndash por

meio de peccedilas de prosa curtas chamadas ldquocaraacuteteresrdquo atraveacutes das ldquoCaraacuteteresrdquo

receacutem-impressas de Teofrasto atraveacutes da retoacuterica revivida de Aristoacuteteles com

sua descriccedilatildeo de vaacuterias personagens que o orador pode encontrar em sua

audiecircncia Como estes uacuteltimos exemplos indicam ecircthos em particular teve

uma aplicaccedilatildeo praacutetica e comunicativa (Sloane 2004 p 113)

O discurso de uma personagem feminina natildeo ocupa somente algumas partes do

discurso como em algumas das antigas declamaccedilotildees mas de modo semelhante agraves ldquoHeroidesrdquo

ocupam a totalidade do discurso O discurso inteiro ao menos no ldquoElogio da Loucurardquo e na

ldquoQueixa da Pazrdquo satildeo caracteriacutesticos de uma personificaccedilatildeo feminina Vejamos agora por

meio de alguns trechos do discurso como a Paz se caracteriza como ela delineia seu proacuteprio

ecircthos retoacuterico

Jaacute no exordium (Queixa da Paz 18-21) percebe-se natildeo somente a divindade e o

feminino mas tambeacutem o exerciacutecio das tiacutepicas funccedilotildees maternas ldquofonte progenitora

91

aleitadora fomentadorardquo Note-se que natildeo somente substantivos e adjetivos deste gecircnero satildeo

utilizados para a caracterizaccedilatildeo da paz O discurso estaacute coerente com o caraacuteter feminino

sobretudo pela atribuiccedilatildeo da maternidade mais especificamente com o ato de amamentar ou

nutrir assim como o ato de tutelar ou cuidar que naquele tempo era praticado quase

exclusivamente pela figura feminina dentro da estrutura familiar tiacutepica da Antiguidade Se o

uso de substantivos com a terminaccedilatildeo trix pertence ao gecircnero feminino nos substantivos

utilizados por Erasmo nota-se ademais o campo semacircntico da maternidade Essa Paz se volta

ao homem suplicante pelo dom da concoacuterdia demonstrando como ela nutre alimenta protege

e enriquece o homem que eacute tratado como uma espeacutecie de filho pequeno lactente e

dependente A Paz de Erasmo eacute pois uma verdadeira matildee Esta tambeacutem eacute sedutora

perspicaz argumentiva o que se coaduna exatamente com a finalidade da retoacuterica persuadir

Os trechos que elevam o feminino contrastam com oque vitupera o masculino Se este

eacute honrado lento forte reflete o antigo ideal medieval de cavalaria ou mesmo da

combatividade masculina dos antigos heroacuteis da Greacutecia e de Roma Erasmo poreacutem ironiza

essa espeacutecie de honradez que defende ideal da guerra Afronta demonstrando que a

masculinidade atrelada ao heroiacutesmo agravada pelo fato de ser praticada por homens jaacute

maduros estaacute ligada a um caraacuteter sanguinaacuterio contraacuterio agrave proacutepria natureza humana

essencialmente paciacutefica

Ateacute aquilo que outrora era consenso entre os pagatildeos de que natildeo se devia

cobrir os cabelos brancos com um elmo como diz o poeta esse costume hoje

entre os cristatildeos tornou-se motivo de louvor Para Nasatildeo eacute coisa infame um

soldado velho enquanto para estes ser um guerreiro septuagenaacuterio eacute algo

magniacutefico (Queixa da Paz 474-476)

Eacute justamente o contraacuterio do ideal de cavalaria das ldquoChansonsrdquo ou mesmo da ldquoMorte

do Lidadorrdquo de Alexandre Herculano entre outras manifestaccedilotildees ideoloacutegicas presentes na

literatura do Romantismo o idoso ldquohonradordquo pelo fato de ir agrave guerra apesar da idade O

combatente idoso eacute aqui uma figura indigna merecedora de saacutetira ou vitupeacuterio Jaacute a Paz eacute

caracterizada como matildee procura proteger seus filhos os mortais pois ldquonatildeo haacute nada mais

infeliz para os homens do que ela [a guerra]rdquo (Queixa da Paz 25) Na terceira parte da obra

em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica grega (Retoacuterica 1360a) Erasmo desenvolve

argumentos de conveniecircncia econocircmica ou de honra para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia A

maternidade desta se exerce ao garantir o bom desenvolvimento da sociedade Voltaremos a

esse ponto ao tratarmos da Paz enquanto saacutebia e proficiente em assuntos praacuteticos como

92

economia poliacutetica e diplomacia Se de um lado esta eacute caracterizada como mulher deve-se

observar que a declamaccedilatildeo de Erasmo tambeacutem a caracteriza como uma divindade uma deusa

35 A deusa Pax

Para Ciacutecero (De natura deorum II 70) os deuses e deusas estavam caracterizados de

modo a representar as paixotildees e os temperamentos humanos Afrodite por exemplo era a

mais bela das deusas aquela que se deixa levar pelo amor pelo poder da beleza e pelos

impulsos da sexualidade (Ibid II 69) Perseacutefone eacute aquela atraiacuteda pelo mundo espiritual

misteriosa miacutestica que vivia dividida entre o mundo sensiacutevel e o superior e capaz de ser

macabra e ter pensamentos sombrios (Ibid II 66) Ceres eacute a deusa matildee que se deleita com as

crianccedilas exalta a geraccedilatildeo da vida de sentimentos emoccedilotildees e experiecircncias Eacute a deusa do

cereal a nutriz e a matildee (Ibid I 40) Juno seria a mulher do poder a irmatilde e esposa de Zeus

Ciumenta vinga-se em filhos de outras mulheres ou nos espectadores Embora estabeleccedila

relaccedilotildees de fidelidade e lealdade reage agrave frustaccedilotildees com ira e natildeo com depressatildeo (Ibid II

66) Vesta permanecendo virgem revela a mulher em um espiacuterito de integridade Atena

deusa da sabedoria e da vitoacuteria eacute praacutetica desinibida e segura (Ibid II 67) Diana a deusa

atleacutetica ama e protege a natureza (Ibid II 68-69) Nesse sentido a mitologia seria uma

espeacutecie de cataacutelogo de caracteres Essas paixotildees estavam em harmonia com os seus atos de

modo que muitas vezes imitavam as paixotildees humanas fossem as boas chamadas virtudes

fossem as maacutes chamadas viacutecios Assim as deusas possuiacuteam seu proacuteprio ἦθος (caraacuteter) Seu

ἦθος admitia as paixotildees e as accedilotildees harmocircnicas como preceituavam as normas das antigas

poeacuteticas (Aristoacuteteles Poeacutetica VI 12-15 Horaacutecio Arte Poetica 153-178) Van der Poel

(1987) concebe que os criteacuterios horacianos sobre a caracterizaccedilatildeo das personagens foram

influentes e determinantes nas declamaccedilotildees renascentistas

Observe-se entatildeo a deusa Pax correspondente agrave deusa grega Εἰρήνη Esta foi

reconhecida oficialmente como deusa no governo de Otaacutevio Augusto que edificou no

Campus Martius o templo chamado de Ara Pacis e outro chamado de Forum Pacis Desse

modo natildeo havia sido objeto de culto oficial no periacuteodo republicano Filha de Juacutepiter e da

Iustitia era representada com um ramo de oliveiras um cetro e uma cornucoacutepia siacutembolos

associados agrave primavera eacutepoca da florescecircncia da harmonia e da abundacircncia Nota-se que

Erasmo ao caracterizaacute-la em seu exoacuterdio parece ter claramente a figura dessa deusa greco-

93

romana em sua imaginaccedilatildeo sobretudo ao afirmar que nada floresce no mundo sem a proteccedilatildeo

da paz (Queixa da Paz 1-29) A imagem da cornucoacutepia torna-se evidente no seguinte trecho

ldquosem mim natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro

ou santo e nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20) Nos

antigos seu caraacuteter era descrito como gentil (Epigrama atribuiacutedo a Homero 15) doce (Greek

Lyric V Anonymous Fragmento 1021) administradora das riquezas da humanidade (Piacutendaro

Odes oliacutempicas 13 6ss) por fim a deusa da prosperidade (Virgiacutelio Georgicae 2 425ss) Agrave

Paz juntamente com a Justiccedila e a Lei cabe ldquovigiar as obras dos mortaisrdquo (Hesiacuteodo Teogonia

901-903) Como veremos mais detidamente Erasmo caracteriza a Paz ldquolouvada a uma soacute voacutes

pelos deuses e pelos homensrdquo (Queixa da Paz 17) ora como uma deusa ora como uma musa

ao modo antigo pois a pax fala se si mesma como necessaacuteria em relaccedilatildeo ao humano-

contigente (Queixa da Paz 20-21)

Aleacutem da relaccedilatildeo da deusa latina Pax com a grega Εἰρήνη a Paz conclama sua

audiecircncia como mortales entendido basicamente como uma forma de denominar a raccedila

humana mas que no contexto insinua uma oposiccedilatildeo a sua proacutepria imortalidade (Queixa da

Paz 259-260) Se os homens satildeo mortais a Paz os trata como tal afirmando-se como imortal

pois tal como na concepccedilatildeo antiga somente os deuses podem ser imortais (Ciacutecero De natura

deorum II 153) Outro exemplo desse lugar comum eacute encontrado em Saluacutestio que

costumava usar este vocaacutebulo para a diferenciaccedilatildeo dos homens em relaccedilatildeo agraves bestas e aos

deuses (Saluacutestio Bellum catilinae 1 5) Por outro lado haacute a concepccedilatildeo cristatilde predominante

no seacuteculo XVI de que somente as criaturas espirituais podem ser imortais tais como a alma

humana o ser angeacutelico e a essecircncia divina em conformidade com o cristianismo atraveacutes de

numerosas passagens do Novo Testamento (Cf Matheus 1028 Acta Apostolorum 227)

Quando Erasmo utiliza esta expressatildeo no contexto cristatildeo parece querer exaltar a

figura do que fala no caso da Paz uma vez que ao chamar aos homens ldquomortaisrdquo ela se

exclui desse conjunto e como a imortalidade eacute uma caracteriacutestica divina sugere os termos de

sua superioridade conferindo-lhe autoridade para invectivar de quem quer que seja ainda que

sejam altos dignitaacuterios eclesiaacutesticos ou mundanos Chamar de mortais seria entatildeo uma

maneira muito suave de entendecirc-la como dotada de uma autoridade divina A Paz toma o

papel da origem da benevolecircncia como ser divino que infunde sentimentos misericordiosos de

uns para com os outros tal como a divindade cristatilde Para isso utiliza a anaacutefora ldquosem mim

94

natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro ou santo e

nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20)

Desprende-se aleacutem disso em outro trecho a dependecircncia do homem apontada pela

pax A noccedilatildeo de contingente e necessaacuterio no cristianismo eacute anaacuteloga agrave do homem para com

Deus Se aquele depende da Paz ela eacute uma deusa Esta eacute quem faz florescer quem torna tudo

puro e santo quem torna qualquer coisa que ja agradaacutevel aos ceacuteus Natildeo sem razatildeo logo no

exordium esta atribui a si mesma a honra de ser louvada pelos deuses e pelos homens como

administradora dos bens celestiais e terrenos (Queixa da Paz 18-21)

A deusa Paz ousa tratar o proacuteprio Cristo como seu arauto ou mensageiro ldquoCristo fora

enviado por minha causa e tomava conta de mimrdquo (Queixa da Paz 240-241) Nesse ponto a

Paz afirma ter sido anunciada por Cristo Ao tomar a natureza divina usa a autoridade dele

para se dignificar pois os cristatildeos sobretudo em uma sociedade que ainda natildeo havia se

cindido com as variantes confessionais da Reforma acredita que Jesus era um ser

misteriosamente idecircntico e distinto de Deus Pai Este teria encarnado para anunciar o Pai mas

a Paz se afirma como anunciada por ele Esta se identifica entatildeo com o proacuteprio ser que

deveria ser anunciado Esta tambeacutem se apresenta com a missatildeo dele enquanto pacificadora e

mediadora pois o proacuteprio sacrifiacutecio da missa para ser bem aceito pela divindade deve ser

oferecido em seu nome

Quando ordena que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo seja

oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com o irmatildeo porventura natildeo ensina

abertamente que a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e que nenhuma

oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo for recomendada por mim (Queixa da

Paz 318-322)

Nota-se a insinuaccedilatildeo de referir-se ao sacrifiacutecio da missa e comparar o papel da Pax ao

de Cristo Justifica-se esse artifiacutecio no lugar da explicitaccedilatildeo clara e direta devido agrave

interpretaccedilatildeo que alguns cristatildeos costumavam ter em comparaccedilotildees com a pessoa de Cristo

considerada pela teologia catoacutelica como intocaacutevel e incomparaacutevel Insinuar sem afirmar era

necessaacuterio para proteger-se contra possiacuteveis invectivas de teoacutelogos aacutevidos de inuacuteteis e

rancorosas controveacutersias teoloacutegicas lamentadas pela Paz Em oposiccedilatildeo agrave supracitada

referecircncia a duas suasoacuterias senequianas (Suasoacuteria I II e IV) nas quais encontram as questotildees

da guerra e dos combatentes como sujeitos de uma causa honesta Diante da honorabilidade

da guerra natildeo eacute dimimnuiacuteda nem pelo poder do auguacuterio ou pela verdade de feacute Entretanto

95

Erasmo procura tratar a paz como uma causa honesta respandando-se na Biacuteblia contra

aqueles que querem a guerra Desse modo enfraque o argumento juriacutedico filosoacutefico e

teoloacutegico da ldquoguerra justardquo com o poder da retoacuterica

36 A Paz enquanto saacutebia

Natildeo eacute de se estranhar que em sua caracterizaccedilatildeo a Paz aleacutem de feminina e ldquodivinardquo

seja delineada como saacutebia De fato esta desenvolve os seus argumentos poliacuteticos em seu

proacuteprio favor Nota-se a amplitude de aspectos abordados por ela a fim de reforccedilar o

argumento tal como recomendava Aristoacuteteles na defesa de uma causa nos discursos

deliberativos

Quanto agrave paz e agrave guerra eacute preciso conhecer o poder da cidade quanta forccedila jaacute

tem e a quanta pode chegar a natureza das forccedilas que tem agrave sua disposiccedilatildeo e

as que pode acrescentar e aleacutem disso que guerras travou e como planejou Eacute

necessaacuterio saber estas coisas natildeo soacute sobre a proacutepria cidade mas tambeacutem sobre

as cidades vizinhas Eacute necessaacuterio ainda saber com que povos se pode esperar

fazer a guerra a fim de manter a paz com as mais fortes e fazer a guerra contra

as mais fracas Eacute tambeacutem necessaacuterio saber se os recursos militares da cidade

satildeo iguais ou desiguais aos dos vizinhos pois nisto tambeacutem pode ser superior

ou inferior Aleacutem disso eacute necessaacuterio ter estudado natildeo soacute as guerras da proacutepria

cidade mas tambeacutem as das outras em funccedilatildeo dos seus resultados pois de

causas semelhantes resultam efeitos semelhantes (Retoacuterica I 4 9)

Tais lugares comuns sugeridos por Aristoacuteteles e recorrentes em diversos autores

antigos satildeo utilizados pela Paz entre os quais destaca-se logo de iniacutecio o argumento que

ocupa a primeira sessatildeo segundo o qual os animais devem ser imitados como exemplo uma

vez que os homens providos de razatildeo natildeo se comportam como tal mas sim como se presume

dos irracionais (Queixa da Paz 45-50)

Se na Antiguidade a piedade para com os deuses era um lugar-comum uacutetil para defesa

de uma causa (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 8) Erasmo aplica tal recurso retoacuterico agrave cultura cristatilde

utilizando-se de referecircncias dos Evangelhos a Cristo como modelo a ser emulado (Queixa da

Paz 261-268) A Paz natildeo somente o relembra como exemplum mas traz elementos da histoacuteria

greco-romana a serem admirados pelos seus leitores a fim de evitar-se os conflitos armados

(Queixa da Paz 618-621) Partindo dos argumentos de natureza religiosa para os praacuteticos

esta ousa apresentar motivaccedilotildees econocircmicas a favor do irenismo completando assim sua

oniciecircncia acerca de vaacuterias aacutereas do conhecimento (Queixa da Paz 782-797)

96

A segunda estrateacutegia de Erasmo para caracterizar a pax como apta a aconselhar os

homens em seus negoacutecios poliacuteticos sobretudo em defesa de si mesmo seria que este eacute

violento contra sua proacutepria raccedila A sabedoria desta se demonstra tambeacutem pelos argumentos

deliberativos que estimulam accedilotildees concretas para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia e para evitar a

guerra Deve-se salientar ademais a proposta de um esquema jurisdicional entre os priacutencipes

europeus a fim de resolver conflitos dinaacutesticos territoriais e poliacuteticos (Rodrigues 2012 p

275-276)

Segundo Mack (1993 p 307-308) ao comentar o De Copia a analogia que eacute possiacutevel

identificar nos argumentos apresentados pela Paz em seu favor estaacute presente em alguns dos

paradigmas que Erasmo propocircs Colocaremos em paralelo esses meacutetodos com alguns dos

argumentos retoacutericos apresentados

Princiacutepio do De Copia 1 6 Ocorrecircncia na Querela

Apoacutes afirmar sumariamente

prosseguir com uma

explicaccedilatildeo mais ampla

(75A)

O tema do livro estaacute expliacutecito em seu tiacutetulo quando se fala

que a Paz foi rejeitada e perseguida em toda parte pelas

naccedilotildees Demonstra-se cada parte dessa proposiccedilatildeo ao longo

da Queixa da Paz

Enumerar singularmente as

causas do argumento (77A)

A Paz enumera as consequecircncias maleacuteficas da guerra e as

suas proacuteprias benesses como por exemplo ao confrontar o

incremento da cultura e da economia proporcionados por sua

influecircncia e o decliacutenio das duas durante a guerra

Perseguir as causas mais

elevadas (77C)

A Paz acredita que a guerra nasce nos coraccedilotildees humanos

atraveacutes da discoacuterdia dos interesses egosiacutesticos sobretudo de

certas classes mais influentes mas tambeacutem eacute sustentada com

argumentos incoerentes com a pietas cristatilde e o ensinamento

paciacutefico de Cristo

Enumerar as causas que

corroboram com o

argumento (77D)

A Paz enumera as diversas consequecircncias da guerra como o

estupro a peste a decadecircncia moral e econocircmica entre

outros mas tambeacutem enumera as benesses de sua lavra como

a ordem a tranquilidade a prosperidade e a concoacuterdia

universal

Propor e colorir com ricas Erasmo descreve coisas lugares pessoas e periacuteodos

97

descriccedilotildees a favor do

argumento (77E)

histoacutericos a fim de convencer seu leitor como por exemplo

ao descrever a Paz entre os animais ou na repuacuteblica romana

ou ainda entre os anjos ao passo que apresenta a guerra

entre os democircnios os eruditos e os religiosos assim como

se refere aos tempos de Roma ao passado proacuteximo da

guerra dos uacuteltimos doze anos entre outros

Incluir digressotildees quando

conveniente (77F)

Eacute possiacutevel identificar diversas digressotildees na declamaccedilatildeo

tais como sobre a natureza dos animais a legislaccedilatildeo de

sucessatildeo as consequecircncias econocircmicas entre outras

Amplificar argumentos

(77G)

A amplificaccedilatildeo tambeacutem eacute um recurso utilizado pela Paz

como no caso de citar os diversos animais que satildeo capazes

de viver em harmonia Erasmo tambeacutem amplifica o assunto

de Cristo Paciacutefico ao trazer agrave tona diversas passagens

irecircnicas atribuiacutedas a Cristo

A sabedoria da deusa Paz tambeacutem compreende a arte retoacuterica que atraveacutes da sua

declamaccedilatildeo tal como os antigos reacutetores apresenta seu discurso como um modelo de suasoacuteria

a favor da paz e vitupeacuterio contra a guerra

37 A Paz enquanto teoacuteloga

Erasmo utiliza argumentos teoloacutegicos na ldquoQueixa da Pazrdquo de forma separada e

complementar dedicando uma sessatildeo deles aos de origem biacuteblica e outra aos de inspiraccedilatildeo

antiga Hoffman (1994 p 227) defende a hipoacutetese de que ele tratava desses assuntos cristatildeos

inclusive com as antigas teacutecnicas retoacutericas

Nosso estudo sobre a hermenecircutica biacuteblica demonstrou como ele introduzia a

retoacuterica a serviccedilo da teologia Utilizava o meacutetodo alegoacuterico e tropoloacutegico de

forma a coordenar cristologia eclesiologia e eacutetica em um uacutenico caminho

humanista Seu meacutetodo exegeacutetico natildeo somente revela seus princiacutepios

hermenecircuticos mas tambeacutem sua teologia retoacuterica

Ele por exemplo coloca o ldquoCristo paciacuteficordquo como exemplo a ser seguido pelos

leitores Se este se diz cristatildeo deve zelar pela paz da mesma forma como Jesus o havia

recomendado aos seus disciacutepulos Nota-se poreacutem que no caso da Queixa da Paz o holandecircs

98

natildeo usa as passagens da Biacuteblia de modo a fazer uma verdadeira exegese como o realizou nas

diversas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos escritos antigos e biacuteblicos mas delimita alguns trechos para

defender o ponto de vista irecircnico refutando alguns passos sobretudo do Antigo Testamento

que servem de fundamento para seus opositores e de incocircmodo para seu argumento Eacute

justamente nesses pontos que a Paz estabelece uma confutaccedilatildeo (Queixa da Paz 253-259)

A Paz antepotildee o Deus dos judeus com o Deus dos cristatildeos como forma de refutar o

Antigo Testamento com passos do Novo comportamento que se insere no contexto mais

amplo como ponto inequiacutevoco da teologia cristocecircntrica de Erasmo de que natildeo trataremos na

presente dissertaccedilatildeo por tema e pertinecircncia Ele parte de uma expressatildeo tiacutepica das canccedilotildees

medievais de exortaccedilatildeo agrave ldquoguerra santardquo inspiradas em excertos do Antigo Testamento como a

referecircncia ao Deus dos Exeacutercitos (Queixa da Paz 224-236)

Erasmo natildeo discute diretamente a natureza da expressatildeo ldquoDeus dos Exeacutercitosrdquo Prefere

passar pela questatildeo sem aprofundaacute-la com longas digressotildees filoloacutegicas e teoloacutegicas como os

teoacutelogos costumavam fazer nas questotildees sobre a guerra justa ao discutir as passagens a favor

e contra a guerra presentes na Biacuteblia (Cf Isaiacuteas 3218 Salmo 1245 Salmo 1276 Gaacutelatas

616 Isaiacuteas 527) Chomarat (1981 p 938) aponta a necessidade de sobrevivecircncia no meio

poliacutetico e eclesiaacutestico no qual Erasmo atuava como erudito como motivo significativo para a

escolha de um gecircnero que poderia dar liberdade para falar sem ser censurado ou punido

embora as reaccedilotildees contraacuterias ao ldquoElogio da Loucurardquo mostrem que ele natildeo estava totalmente

imune Ao comentar a caracterizaccedilatildeo da personagem emissora do discurso Sloane (2004 p

116) afirma ldquotratava-se de algo como uma maacutescara para o autorrdquo

A personificaccedilatildeo da Paz tambeacutem seria uma espeacutecie de camuflagem para Erasmo pois

embora natildeo se saiba se Erasmo previa que os teoacutelogos se voltariam contra seu irenismo eacute

certo que apoacutes a publicaccedilatildeo desse escrito somado sem duacutevida aos acontecimentos e

polecircmicas posteriores contextualizados na Reforma ocorreram reaccedilotildees contra a ldquoQueixa da

Pazrdquo especialmente na Espanha e na Franccedila

No primeiro paiacutes Zuntildeiga teria encontrado trechos ldquoluteranosrdquo (Bataillon 2007 p

124) No que se refere ao segundo Telle (1978 p 35) aponta que esta declamaccedilatildeo irecircnica

reacendeu justamente a ceacutelebre controveacutersia teoloacutegica ldquoacerca de guerra justardquo atacada por

Erasmo e por outros teoacutelogos catoacutelicos (Ibid p 33) inclusive protestantes como Calvino

99

(Ibid p 36) e defendida pelos teoacutelogos e juristas da Universidade de Paris A polecircmica

chegou a tal ponto que a traduccedilatildeo francesa da Querela publicada por Chevalier de Berquin foi

censurada pela Faculdade de Teologia da Sorbonne em 1ordm de junho de 1525 (Ibid p 32) e

renovada em 1527 (Phillips 1971 p 247)

Natildeo era a primeira polecircmica de Berquin Antes de traduzir para o francecircs as obras de

Erasmo ele havia se dedicado agraves obras de Lutero (Bataillon 2007 p 153) Tambeacutem natildeo era a

primeira polecircmica de Erasmo com os teoacutelogos da Sorbonne pois jaacute havia disputado com estes

por ocasiatildeo das suas traduccedilotildees biacuteblicas (Rodrigues 2012 p 338) Natildeo se deve desconsiderar

ademais os inconvenientes poliacuteticos que a defesa da paz poderia fazer surgir com os priacutencipes

cristatildeos tais como Henrique VIII e Francisco I ciosos das incursotildees militares e ceacutelebres pelos

seus feitos guerreiros (Telle 1978 p 35)

Erasmo com sua ldquoQueixa da Pazrdquo entrava em conflito direto e em plena polecircmica

com teoacutelogos escolaacutesticos e com poliacuteticos influentes e beligerantes a ponto de se verificar a

condenaccedilatildeo sistemaacutetica da Universidade de Lovaina contra toda sua obra literaacuteria e a

mudanccedila de Erasmo para Basileia Suiacuteccedila (Moya Bedoya 2008 p 203) Se natildeo se pode

conceber que o roterdamecircs teria previsto as controveacutersias suscitadas pelos seus escritos

inclusive por uma de suas traduccedilotildees natildeo seria exagero afirmar que este expunha os priacutencipes

e sua hipocrisia de um modo incisivo convincente e em certos trechos satiacuterico

Deve-se por fim considerar que na Queixa da Paz Erasmo natildeo eacute um pacifista a

ponto de negar qualquer forma de conflito armado (Kinsella e Carr 2007 p 55-56) Sua

praacutetica de expor em seus escritos ldquoutramque partemrdquo ou seja os dois lados da questatildeo

(Remer 1994 p 313) como correu no caso da guerra entre os cristatildeos considerada cruel e a

guerra dos cristatildeos contra os turcos considerada justa aleacutem de muitos fatores sobretudo

quando este assume posiccedilotildees ldquohumanistas-cristatildesrdquo contribuiu para que sustentasse a fama de

vir duplex tal como o alcunhou Lutero (Weiler 1997 p 11)

Em termos teoloacutegicos pouca diferenccedila se verifica entre os teoacutelogos pregadores das

cruzadas contra o islatilde nos seacuteculos XII e XIII e alguns trechos do escrito de Erasmo que

argumenta acerca da oportunidade da guerra contra os turcos e da sua inconveniecircncia entre os

cristatildeos (Queixa da Paz 681-685)

100

38 A Paz enquanto viacutetima

Essa matildee zelosa saacutebia divina apresenta-se tambeacutem como viacutetima da guerra e do

instinto sanguinaacuterios dos homens Nota-se assim outra estrateacutegia de persuasatildeo sugerida pela

tradiccedilatildeo dos manuais de retoacuterica pois falar em primeira pessoa de seus proacuteprios males atrai a

compaixatildeo ou o amor dos ouvintes (Retoacuterica a Herecircnio I 8 2) Dessa forma o paacutethos

movido pela Pax no leitor eacute a piedade tal como Aristoacuteteles o explicava em sua ldquoRetoacutericardquo (II

8 2) ldquoa piedade consiste numa certa pena causada pela apariccedilatildeo de um mal destruidor e

aflitivo que afeta quem natildeo merece ser prejudicado que pode prejudicar-nos as noacutes mesmos

ou a algum dos nossos principalmente quando esse mal nos ameaccedila de pertordquo Eacute o que

transparece no exordium sobretudo no seguinte trecho ao estabelecer a antiacutetese entre o seu

amor e a maldade dos homens

E embora eu preferisse somente irar-me contra eles sou antes compelida a me

condoer deles a ter misericoacuterdia deles Eacute decerto desumano afastar de si

aquele que de alguma forma nos ama eacute ingrato hostilizar aquele que merece o

bem eacute iacutempio afligir a progenitora e servidora de todos (Queixa da Paz 8-11)

Aristoacuteteles (Retoacuterica I 12 1) tambeacutem afirmava que convinha que se caracterizassem

os injusticcedilados em primeiro lugar pelo fato de serem necessitados A paz eacute extremamente

necessaacuteria ao homem logo persegui-la se configura como injusto e digno de censura A

intenccedilatildeo seria natildeo somente produzir a piedade para com ela mas a indignaccedilatildeo contra quem

persegue e destroacutei aquela que a tantos beneficia Aristoacuteteles apresenta a indignaccedilatildeo como o

contraacuterio da piedade A primeira muitas vezes nasce da segunda pois quem se indigna contra

os reveses imerecidos tem piedade de quem imerecidamente foi prejudicado (Ibid II 9 2)

Logo no iniacutecio da primeira parte que trata do homem guerreiro como inferior agraves feras a Paz

retoma a estrateacutegia de apresentar-se como viacutetima a fim de mover o pathos da compaixatildeo dos

leitores e acrescenta em seu caraacuteter a capacidade de perdoar ldquoSe feras me desprezassem desse

modo eu o suportaria mais facilmente e atribuiria essa ofensa agrave natureza que inserira nelas

uma iacutendole selvagemrdquo (Queixa da Paz 31-32)

Apoacutes descrever longamente a onipresenccedila dos litiacutegios clericais inclusive entre os

religiosos que deveriam primar pela perfeiccedilatildeo dos conselhos evangeacutelicos a Paz chega ao

cuacutemulo de mostrar-se sem lugar para morar entre os homens como uma desabrigada e

desamparada em razatildeo da onipresenccedila da guerra

101

Mas pobre de mim Tambeacutem aqui verifico que a cidade estaacute totalmente

maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a tal ponto que quase natildeo se

pode achar uma uacutenica casa na qual exista um lugar para mim por alguns dias

Entretanto deixo de lado o povo que tal como o mar eacute arrebatado por seus

ardores e me recolho (Queixa da Paz 127-130)

Apela pois agrave clemecircncia do coraccedilatildeo humano Como viacutetima exige compaixatildeo e

procura convencer o homem atraveacutes de um discurso que move agraves emoccedilotildees sobretudo agrave

comiseraccedilatildeo ao atrair a simpatia expondo os proacuteprios males

39 Conclusatildeo do capiacutetulo

Erasmo inovou ao trazer para a declamaccedilatildeo uma personificaccedilatildeo feminina A Paz

poreacutem natildeo eacute somente caracterizada como uma mulher com as qualidades e defeitos

estereotipados nos escritos retoacutericos erasmianos que uma visatildeo simplista poderia taxar como

preconceituosa uma vez que reproduz uma valorizaccedilatildeo negativa da mulher Se eacute verdede que

Erasmo tambeacutem reproduz estereoacutetipos masculino com tons natildeo menos severos eacute certo de que

para ele o declamador deve estabelecer o caraacuteter da personagem que fala de um modo

adequado agraves expectativas da audiecircncia fictiacutecia e dos leitores reais a fim de que o discurso

cumpra a finalidade persuasiva que eacute proacutepria do gecircnero Sem a caracterizaccedilatildeo adequada

simultaneamente agrave audiecircncia e agrave personificaccedilatildeo a declamaccedilatildeo natildeo seria persuasiva pois iria

contrariar o princiacutepio retoacuterico da verossimilhanccedila

A Paz eacute abstrata feminina mais precisamente maternal mas tambeacutem eacute uma espeacutecie de

divindade Deve-se poreacutem considerar que sua caracterizaccedilatildeo como deusa natildeo contemplaria

as paixotildees tiacutepicas da mitologia greco-romana mas uma deusa sem defeitos como o Deus

cristatildeo Esta natildeo eacute somente anunciada por Cristo mas eacute capaz de disputar pela sua proacutepria

causa com todos os argumentos possiacuteveis e sugeridos pela antiga tradiccedilatildeo retoacuterica

Parafraseando Quintiliano a Paz entatildeo segue aquele ditame de ser uma ldquomulier divina bona

dicendi peritardquo Esta argumenta baseada em lugares comuns extraiacutedos da natureza (rerum

natura) da teologia biacuteblica e patriacutestica da economia da poliacutetica e de questotildees diplomaacuteticas

pertinentes no seacuteculo XVI como uma ldquoseguidorardquo daquele conselho de Ciacutecero segundo o

qual o orador deve ser proficiente tambeacutem nas leis na histoacuteria e na filosofia para bem

argumentar Aleacutem de saacutebia a paz eacute bondosa como uma deusa ao modo cristatildeo Configurada

como uma abstraccedilatildeo feminina a paz se dirige ao clero e aos priacutencipes com a autoridade de

uma deusa com a estrateacutegia feminina com a bondade de uma matildee com argumentos de uma

102

saacutebia com a piedade de uma teoacuteloga a fim de persuadir com autoridade suficiente a favor de

sua proacutepria causa Esta seria natildeo a doutrina escolaacutestica da ldquoguerra justardquo mas retoacuterica

humanista (erasmiana) da ldquopaz justardquo

103

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A presente dissertaccedilatildeo de mestrado teve por objeto de pesquisa o estudo da

declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em 1517 por Erasmo de Rotterdam Como resultado

foram apresentados um estudo introdutoacuterio sobre o gecircnero antigo declamaccedilatildeo sua recepccedilatildeo

no Renascimento e a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o portuguecircs brasileiro O texto

fonte utilizado foi extraiacutedo da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi Roterodami

Opera Omnia Amsterdam 1978)

Ao longo do estudo introdutoacuterio discorremos sobre a definiccedilatildeo e as principais

propriedades da declamaccedilatildeo Delineamos esse gecircnero discursivo como originaacuterio na Greacutecia

onde se chamava meleteacute recebido pelos latinos com o nome de declamaccedilatildeo Distinguimos

dois ambientes nos quais era praticada primeiro nas escolas de retoacuterica quando nos

manuais estava situada entre os uacuteltimos exerciacutecios das progymnaacutesmata caracterizado como

um treinamento da performance ou da pronuacutencia e a simulaccedilatildeo do discurso de uma

personagem histoacuterica ou mitoloacutegica segundo em reuniotildees sociais ou seja a praacutetica de

discursos fictiacutecios tambeacutem atribuiacutedos a personagens histoacutericas ou mitoloacutegicas em um

ambiente restrito e de niacutevel cultural e econocircmico elevado praticado por pessoas que jaacute tinham

o haacutebito da oratoacuteria puacuteblica seja judicial seja deliberativa a fim de exercitar-se ou mesmo

deleitar os convivas Tal praacutetica assemelhava-se ao haacutebito da recitatio na qual os antigos

divulgavam em leituras puacuteblicas a uma audiecircncia seleta novos escritos em prosa ou em

versos

Verificamos que nos dois ambientes nos quais se praticava a declamaccedilatildeo o principal

objetivo e desafio do gecircnero seria a caracterizaccedilatildeo adequada da personagem fictiacutecia

selecionada onde a representaccedilatildeo do ecircthos discursivo deveria adequar-se agrave personalidade agrave

ocasiatildeo ao tema agrave audiecircncia de modo que o discurso fosse maximamente persuasivo e

verossiacutemil Desse modo a principal figura de linguagem contemplada na declamaccedilatildeo seria a

prosopopeia

Quanto agraves personagens correntemente utilizadas nas antigas declamaccedilotildees

predominavam as masculinas muito embora tambeacutem se utilizassem as femininas conquanto

em posiccedilotildees inferiores ou subalternas Embora natildeo fosse usual a utilizaccedilatildeo de personificaccedilotildees

104

no sentido de abstraccedilotildees ou coisas que tomam a voz nota-se o uso de personagens femininas

em posiccedilatildeo de protagonista em discursos que ocupavam a integridade da obra nas ldquoHeroidesrdquo

de Oviacutedio muito embora estas natildeo pertencessem ao gecircnero declamaccedilatildeo mas ao epistolar

Tais dados foram significativos ao constatar esta adiccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana ao

apresentar uma personificaccedilatildeo feminina como remetente do discurso

Quanto ao uso de personagens histoacutericas como eacute habitual em vaacuterios gecircneros

discursivos natildeo era preocupaccedilatildeo primordial da declamaccedilatildeo a exposiccedilatildeo histoacuterica exata dos

eventos ou das pessoas mas sim a caracterizaccedilatildeo adequada e verossiacutemil das personagens

atraveacutes do discurso direto pois o objetivo natildeo era narrar a histoacuteria mas apresentar o discurso

adequado de determinado personagem para determinada audiecircncia segundo as sensibilidades

desta para com os estereoacutetipos jaacute consignados a respeito das prosopopeias selecionadas

Atestamos que a defesa dos dois lados contraacuterios da causa ou a escolha de apenas um

dos lados variou de acordo com a ocasiatildeo mas era costume apresentar os dois lados da causa

nas escolas de retoacuterica a fim de exercitar o aluno o que natildeo era predominante na declamaccedilatildeo

praticada pelos oradores mais experientes ou em algumas declamaccedilotildees escritas

Quanto agraves espeacutecies da declamaccedilatildeo constatamos a existecircncia de escritos em gecircnero

demonstrativo como elegias e panegiacutericos sobretudo em grego filosoacutefico praticados nas

escolas de retoacuterica deliberativo tambeacutem chamados de suasoacuterias e nos ambientes de discussatildeo

puacuteblica e na simulaccedilatildeo de temas tiacutepicos do gecircnero deliberativo por ocasiatildeo de temas

histoacutericos com a finalidade de suadir os cidadatildeos a optarem entre outros assuntos pela paz

ou pela guerra pelo aumento ou diminuiccedilatildeo de impostos e outras decisotildees de interesse

puacuteblico judicial tambeacutem chamados de causae ou controuersiae por simularem temas e

ocasiotildees proacuteprias dos tribunais

Ainda sobre a declamaccedilatildeo antiga percebemos que essa durante a transiccedilatildeo de regime

poliacutetico da repuacuteblica para o impeacuterio tomou paulatinamente o lugar da antiga oratoacuteria

tornando-se o gecircnero apropriado para a praacutetica da emissatildeo dos discursos em forma oral e

escrita

Os atuais corpora das declamaccedilotildees gregas e latinas mais amplos datam justamente do

periacuteodo imperial e foram escritos em latim e grego dependendo da localizaccedilatildeo dos seus

produtores assim Quintiliano Secircneca que viveram na parte latina escreveram sobre a

105

declamaccedilatildeo ou declamaccedilotildees nessa liacutengua ao passo que Plutarco Heacutelio Aristides Luciano de

Samosata Libacircnio de Antioquia e Coriacutecio de Gaza as escreveram em grego Portanto

embora as origens do termo e das referecircncias agrave declamaccedilatildeo contidas nos manuais de retoacuterica

remontem a periacuteodos anteriores as principais fontes da declamaccedilatildeo grega e a latina que

chegaram ateacute noacutes datam da eacutepoca imperial

A renovaccedilatildeo deste gecircnero durante o Renascimento estaacute diretamente relacionada agrave

recuperaccedilatildeo e reediccedilatildeo nos seacuteculos XV e XVI dos corpora antigos que continham

declamaccedilotildees ou que tratavam do gecircnero como eacute o caso da reediccedilatildeo do texto completo da

ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano em 1416 Tal recuperaccedilatildeo partiu do norte da Itaacutelia

primeiramente com Salutati e posteriormente com Lourenccedilo Valla A partir deste chegou ao

norte da Europa sendo praticada nos dois primeiros dececircnios do seacuteculo XVI por Erasmo e

More A partir desses dois humanistas sobretudo pela influecircncia do roterdamecircs foi utilizada

por outros contemporacircneos como Vives Cardano e Agrippa

O contato com as declamaccedilotildees antigas por Erasmo deu-se basicamente sob quatro

formas que classificamos natildeo necessariamente em ordem cronoloacutegica primeiro como leitor

no periacuteodo em que ainda era estudante de teologia ao ter conhecimento das obras que

tratavam a respeito como eacute as de Quintiliano e Ciacutecero (Chomarat 1981) segundo como

editor ao publicar em forma impressa as declamaccedilotildees de Secircneca o Velho terceiro como

tradutor ao transpor do grego para o latim algumas das declamaccedilotildees de Luciano Libacircnio e

Plutarco quarto como escritor ao publicar onze declamaccedilotildees tratadas explicitamente por ele

jaacute no tiacutetulo das obras ou classificadas por ele como tal em epiacutestola a Joatildeo Botzheim (1523)

entre as quais as mais ceacutelebres satildeo o ldquoElogio da Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo

A escrita desta natildeo foi posterior a novembro de 1516 e foi publicada em 1517 quando

Erasmo era conselheiro de Carlos V e residia em Lovaina Beacutelgica A obra foi dedicada ao

Abade Antocircnio van Bergen e foi possivelmente redigida a pedido do chanceler Joatildeo Sauvage

O evento histoacuterico proacuteximo que teria motivado a redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz

foram as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e por fim da

alianccedila franco-veneziana (1513-1516) cujos conflitos dispersos pela Europa tambeacutem

atingiam os locais de residecircncia ou frequentados pelo roterdamecircs

106

A caracteriacutestica mais marcante desta declamaccedilatildeo de Erasmo eacute que natildeo apresenta

qualquer introduccedilatildeo ou conclusatildeo narrativa como por exemplo costuma ocorrer em algumas

das declamaccedilotildees senequianas mas transcrevia o discurso direto emitido por uma

personificaccedilatildeo abstrata Trata-se de uma repeticcedilatildeo da praacutetica registrada no ldquoElogio da

Loucurardquo Natildeo haacute diaacutelogos no texto como aliaacutes eacute proacuteprio de uma declamaccedilatildeo entendida

geralmente como um monoacutelogo muito embora o roterdamecircs classificasse na epiacutestola a Joatildeo

Botzheim (1523) o diaacutelogo ldquoAntibaacuterbarosrdquo como uma declamaccedilatildeo ainda que este apresente

mais de uma personagem cada qual com vaacuterios discursos diretos reciprocamente

direcionados

A disposiccedilatildeo retoacuterica da obra segue a tradiccedilatildeo antiga quanto agrave estrutura baacutesica

proecircmio narratio confirmaccedilatildeo e epiacutelogo Mais especificamente podemos dividir a Queixa

da Paz nas seguintes partes com a numeraccedilatildeo correspondente (os nuacutemeros se referem agraves

linhas da jaacute mencionada ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo) proecircmio (προοίμιονexordium) (4-

29) Narratio (διήγηζις narratio) (30-112) a primeira parte trata da paz entre os animais (30-

112) a segunda parte descreve a destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) a confirmaccedilatildeo

(πίζηις probatio) cuja primeira parte apresenta o exemplo de Cristo paciacutefico modelo a ser

seguido pelos que se dizem cristatildeos (203-401) a segunda parte apresenta o exemplo dos

pagatildeos (402-435) a terceira parte argumenta como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo

prejudicados pela guerra (436-594) a quarta parte sugere accedilotildees para que o priacutencipe evite a

guerra (595-871) e por fim finaliza-se com o epiacutelogo constituiacutedo de vaacuterios vocativos

(επίλογοςperoratio) (872-918)

Em conformidade com a tradiccedilatildeo antiga das declamaccedilotildees senequianas notou-se a

utilizaccedilatildeo por Erasmo de sentenccedilas ao longo do discurso com o objetivo de tornar o texto

mais expressivo Quanto agraves fontes das sentenccedilas podemos classificaacute-las em trecircs grupos

primeiro as antigas como Platatildeo (9 e 551) Liacutevio (1-3) Homero (75) Oviacutedio (162) Siacutelio

Itaacutelico (210) Ciacutecero (218 e 758) Virgiacutelio (467 e 670) Plauto (764) Pliacutenio (57) Horaacutecio

(152) e Aristoacuteteles (391) segundo as citaccedilotildees de adaacutegios selecionados e remodelados pelo

roterdamecircs em sua proacutepria coletacircnea de ldquoAdaacutegiosrdquo (linhas 18 22 62 77 91 155 505 553-

556 803-804 866 e 906) terceiro as de origem biacuteblica e patriacutestica especialmente ao tratar de

Cristo Paciacutefico A versatildeo latina da biacuteblia citada ao longo da declamaccedilatildeo eacute a Vulgata de

Jerocircnimo

107

Em harmonia com Herding (1974 p 6) nota-se em algumas partes da obra

semelhanccedilas com o gecircnero espelho do priacutencipe e a repeticcedilatildeo de alguns argumentos irecircnicos jaacute

apresentados por Erasmo em escritos como o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInstituiccedilatildeo do

priacutencipe cristatildeordquo A semelhanccedila averiguada aleacutem da dimensatildeo temaacutetica (paz e guerra)

tambeacutem contempla o objetivo suasoacuterio de certas partes do discurso da paz ao dirigir-se ao

governante como quem pretende ensinar ou aconselhar baseado em valores eacuteticos tiacutepicos dos

humanistas colocando os interesses humanos acima de quaisquer outros princiacutepios Em

Erasmo mais especificamente satildeo evocados os princiacutepios cristatildeos tratados como perfeitos

muito embora ao longo do discurso a praacutetica apontada para os seguidores de Cristo natildeo seja

concorde com os valores cristatildeos elogiados pela Paz Ao que parece os proacuteprios argumentos

teoloacutegicos seguem esta finalidade ao omitir os argumentos biacuteblicos e filosoacuteficos favoraacuteveis agrave

guerra justa O texto sobrepotildee a vida humana acima de qualquer outro princiacutepio seja a honra

seja a proteccedilatildeo dos interesses dinaacutesticos ou estatais Inclusive os argumentos econocircmicos satildeo

alinhavados segundo esta finalidade de proteccedilatildeo do indiviacuteduo sobretudo o indefeso ao

mencionar explicitamente as possiacuteveis ofensas contra a mulher e os camponeses (povo)

Conveacutem ainda ressaltar que o humanismo erasmiano eacute essencialmente cristatildeo pois

fundamenta seus argumentos harmonicamente com as fontes biacuteblicas e patriacutesticas mas eacute

tenazmente contraacuterio agraves incoerecircncias para com a feacute e a eacutetica cristatilde por parte daqueles que mais

especialmente deveriam propagaacute-la ou praticaacute-la o clero e os governantes

A obra em estudo apresentou ainda traccedilos do gecircnero deliberativo o aconselhar

(suadere) o auditoacuterio (os priacutencipes e os cleacuterigos) a favor da paz e a evitar a guerra mas

tambeacutem algumas carateriacutesticas do gecircnero demonstrativo ou epidiacutetico ao elogiar a paz e

vituperar contra a guerra Tal constataccedilatildeo aproxima simultaneamente este escrito aos

panegiacutericos e algumas declamaccedilotildees escritas em grego pertences ao gecircnero demonstrativo e

agraves suasoacuterias senequianas especialmente as que tratam da paz e da guerra (Suasoacuterias I II e

IV) A mescla dos trecircs gecircneros discursivos (demonstrativo deliberativo e judicial) natildeo era

novidade e era mesmo reconhecida na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo uma vez que ateacute no gecircnero

judicial como se lecirc na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo era comum o orador vituperar contra os defeitos

morais do oponente ou elogiar as virtudes do seu cliente a fim de angariar a simpatia ou a

antipatia do juiz ou do juacuteri conforme o seu interesse

108

Quanto agrave personificaccedilatildeo da paz aleacutem de sua jaacute mencionada semelhanccedila com as

prosopoeias femininas das ldquoHeroidesrdquo verificamos ainda certa semelhanccedila com as

personagens femininas abstratas biacuteblicas da Sabedoria e da Loucura Poreacutem a Paz

caracterizada por Erasmo se diferencia destas por apresentar um discurso direto que ocupa a

integralidade do livro e natildeo somente uma parte diminuta Ademais a Paz se assemelha agrave

prosopopeiaa da amada presente em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo pelo fato de tambeacutem emitir

discursos diretos e ser protagonista do gecircnero feminino mas por outro lado se diferencia na

medida em que a amada dialoga com outras personagens ao longo do livro

Em relaccedilatildeo agrave Antiguidade a adiccedilatildeo verificada da declamaccedilatildeo erasmiana tanto no

ldquoElogio da Loucurardquo como na ldquoQueixa da Pazrdquo eacute a atribuiccedilatildeo da integralidade do discurso

direto a uma personificaccedilatildeo feminina Esta eacute caracterizada como matildee por nutrir os homens

como filhos como viacutetima de uma atroz perseguiccedilatildeo em toda parte como saacutebia que aconselha

os priacutencipes ao modo do gecircnero Espelho dos Priacutencipes a que conservem a paz e evitem de

todos os modos a guerra O discurso utiliza-se de argumentos filosoacuteficos como eacute o caso do

lugar comum segundo o qual se o homem eacute racional deve ser tatildeo ou mais paciacutefico do que os

animais os quais natildeo satildeo dotados de razatildeo e por consequecircncia de palavra Por outro lado

utiliza-se de argumentos teoloacutegicos biacuteblicos ao apresentar os exemplos de Davi Salomatildeo e

de Cristo Paciacutefico como modelos da opccedilatildeo pela paz proacutepria aos seguidores da religiatildeo cristatilde

A paz utiliza-se ainda de argumentos de ordem poliacutetica social e econocircmica primeiro no que

tange agrave poliacutetica eacute mantenedora da estabilidade do reino e da sucessatildeo hereditaacuteria monaacuterquica

assim como do livre tracircnsito entre as fronteiras dos paiacuteses europeus segundo no que diz

respeito aos aspectos sociais aponta a desestruturaccedilatildeo da vida da cidade por causa da

manutenccedilatildeo de um corpo de mercenaacuterios habituados agrave violecircncia junto a uma populaccedilatildeo

indefesa terceiro com argumentos de dimensatildeo econocircmica indica os diminutos gastos da

resoluccedilatildeo paciacutefica das controveacutersias interestatais em comparaccedilatildeo com o modo beacutelico e os

empecilhos naturais ao comeacutercio em situaccedilotildees de guerra ou siacutetio

A paz mostra-se assim como portadora do ideal da tradiccedilatildeo retoacuterica antiga recebida e

imitada no Renascimento ao caracterizar-se como aquilo a que poderiacuteamos chamar mulier

bona dicendi perita Ela utiliza-se dos diversos recursos retoacutericos proporcionados pela

declamaccedilatildeo especialmente a simulaccedilatildeo de um discurso fictiacutecio em formato de prosopopeia

para mover seus leitores a sentimentos e atitudes paciacuteficas Utiliza-se da comiseratio ao

109

colocar-se como viacutetima e evoca a injusta reaccedilatildeo dos homens para com seus inumeraacuteveis e

incontestes benefiacutecios O homem guerreiro contraria a razatildeo mostra-se sem compaixatildeo para

com seus semelhantes e contradiz a proacutepria essecircncia do cristianismo que apresenta o Priacutencipe

da Paz como ideal a ser seguido e imitado No caso dos detentores de influecircncia social como

cleacuterigos e eruditos a paz estimula que propaguem o ideal da paz Por fim ao dirigir-se aos

governantes propotildee a si mesma como o esteio mestre de uma poliacutetica proacutespera e humana

110

111

NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA

COMENTADA

Quinhentos anos depois da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 suas palavras

ecoam em pleno seacuteculo XXI com surpreendente atualidade Esta declamaccedilatildeo natildeo somente se

apresenta como um primor da recepccedilatildeo e da imitaccedilatildeo dos antigos claacutessicos Nela a

personificaccedilatildeo da paz lamenta contra a guerra e argumenta a favor de si mesma com aquele

estilo elegante irocircnico e incisivo de Erasmo Suas argumentaccedilotildees contemplam praticamente

todas as dimensotildees de relacionamento humano no interior do coraccedilatildeo humano na famiacutelia

nas relaccedilotildees interpessoais e entre os estados Se de um lado muitos pensadores jaacute discorreram

sobre a paz que tal a ouvirmos falar de si mesma Eacute exatamente este o grande presente que

Erasmo proporcionou aos seus leitores naquele iniacutecio do seacuteculo XVI e cuja primeira traduccedilatildeo

para o portuguecircs brasileiro o leitor tem em matildeos

Esta traduccedilatildeo estaacute precedida da carta-proecircmio de Erasmo a Felipe que foi publicada

juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo As notas parcas em extensatildeo e quantidade tecircm o objetivo

de esclarecer algumas variantes entre as ediccedilotildees expressotildees que remetem aos antigos

dificuldades de traduccedilatildeo e informaccedilotildees pertinentes sobre lugares adaacutegios e personagens

citados no texto natildeo evidentes para muitos leitores modernos Algumas destas referecircncias

foram baseadas nas notas da ediccedilatildeo criacutetica propostas por Herding (1977) nas notas das

traduccedilotildees publicadas por Margolin (1992) e Pinto (1999) e no estudo de Tunberg (1996) Os

comentaacuterios em nota estatildeo redigidos de forma que sejam explicativos para pessoas natildeo

especializadas nos estudos claacutessicos ou nas referecircncias histoacutericas ou eclesiaacutesticas utilizadas

por Erasmo em uma possiacutevel publicaccedilatildeo desta traduccedilatildeo O texto latino e a numeraccedilatildeo entre

colchetes das linhas contidas seguem a ediccedilatildeo criacutetica da presente na Desiderii Erasmi Opera

Omnia (IV-2 1977 p 59-101) Utilizamo-nos do dicionaacuterio de Gaffiot como material de

consulta aleacutem de outras traduccedilotildees da obra para outras liacutenguas conforme listamos na

bibliografia Esta traduccedilatildeo natildeo visa simplificar o texto de Erasmo a fim de adaptaacute-lo ao

mercado livresco O puacuteblico-alvo de nossa traduccedilatildeo assemelha-se agravequele do roterdamecircs ou

seja o leitor erudito em geral e ao acadecircmico em particular Nossa traduccedilatildeo visa ser o mais

fiel possiacutevel agrave declamaccedilatildeo Essa fidelidade ao gecircnero exige entatildeo o cuidado em relaccedilatildeo ao

niacutevel de linguagem utilizado a fim de manter natildeo somente a extensatildeo dos paraacutegrafos os

112

quiasmos e as anaacuteforas utilizadas mas tambeacutem as imagens retiradas da cultura claacutessica e

biacuteblica

113

Texto latino da ediccedilatildeo criacutetica

[1] Clarissimo praesuli traiectensi

Philippo Erasmo Roteramus S D

[3] Gratularer tibi Philippe

praesul non minus vitae ornamentis

quam summorum ducum imaginibus

clarassime quod tanti muneris honore sis

auctus ni compertum [5] haberem quam

invitus susceperis quamque gravate

optimi maximique principis Caroli

autoritate fueris adactus cuius alioqui

charitati nihil non eras daturus

[7] Atque haec ipsa res spem

nobis certissimam facit fore ut cum laude

perfungaris suscepto quandoquidem

Plato vir exquisitissimi planeque divini

iudicii non alios existimat ad

rempublicam gerendam idoneos quam

eos qui [10] huc nolentes pertrahuntur

[10] Auget autem nostram de te

fiduciam quoties in mentem venit et cui

tu succedas fratri et quo patre sitis ambo

profecti

[11] Nam David vir eruditus iuxta

ac prudens permultis annis sic locum

istum tenuit ut suis ornamentis

Traduccedilatildeo

Erasmo de Roterdam a Felipe Bispo de

Utrecht saudaccedilotildees43

Distinto como tu eacutes bispo Felipe natildeo

menos pelo esplendor da vossa vida do que pela

grande e principesca linhagem eu me

congratularia contigo o acreacutescimo do seu novo e

mais honroso cargo se eu natildeo soubesse com que

relutacircncia o assumiste e com que dificuldade

foste impelido (a isso) pela autoridade do melhor

e maior dos priacutencipes Carlos pelo qual sentes

tal afeiccedilatildeo que concordarias com qualquer coisa

Eacute justamente isso que nos deu a segura

esperanccedila de que tu desempenhes teu encargo

com louvor Platatildeo44

varatildeo de excelente e

preciso juiacutezo quase divino julgou que ningueacutem

eacute mais apto a governar um corpo poliacutetico do que

aqueles que satildeo chamados a atuar contra a sua

vontade

Ora aumenta nossa confianccedila em ti toda

vez que temos em mente as qualidades do irmatildeo

que sucedeste e o pai do qual ambos voacutes

procedestes

Pois Davi45

varatildeo igualmente erudito e

saacutebio pelos muitos anos manteve essa posiccedilatildeo

43

Felipe de Borgonha eacute um filho bastardo de Felipe o Bom (1396-1467)

44 Platatildeo Repuacuteblica 7520D Erasmo Institutio Principis Christiani ASD IV-1 p 152 I 514ss

45 Como o destinataacuterio um filho bastardo de Felipe o Bom duque da Borgonha que foi bispo de Utrecht de

1455 ateacute sua morte em 1496 Segundo a ediccedilatildeo criacutetica em algumas ediccedilotildees encontramos a seguinte variante

Nam David germanus tuus vir eruditus Tal lectio foi considerada menos original no aparato criacutetico

114

plurimum splendoris ac dignitatis

addiderit ipsi muneri per se licet

amplissimo multis modis magnus ac

suspiciendus sed in hoc praecipue [15]

salutaris reipublicae quod nihil ducebat

antiquius sibi pace publica hac quoque in

parte patrem Philippum Burguindiae

ducem referens virum nulla non re

maximum sed tamen pacis artibus cum

primis insigem et aeternae hominum

memoriae commendatum

[18] Qui tibi hoc etiam impesius

erit exprimendus non tantum ut filius

patri sed ut Philippus Philippo

respondeas

[20] Intelligit iam dudum tua

prudentia quid abs te populus universus

expectet [21] Triplex onus humeris

sustines patris exemplum ac fratris tum

horum temporum fata (quid enim aliud

dicam) nescio quomodo ad bellum

pertrahentia [23] Vidimus ipsi nuper ut

quidam amicis quam hostibus graviores

nihil intentatum reliquerint ne bellorum

aliquando finis esset rursus ut vix

expresserint alii qui [25] reipublicae

principique ex animo bene volunt ut

pacem cum Francis semper optanda

de tal modo que acrescentou por seus proacuteprios

meacuteritos a dignidade e o esplendor ao proacuteprio

ofiacutecio por mais prestigioso que ele fosse em si

mesmo que a si como grande e admiraacutevel

homem convinha com grande e largueza e

variedade mais salutar agrave Repuacuteblica sobretudo

por isto pelo fato de que pensou nada ser mais

importante do que a paz puacuteblica tal como

evocou o teu pai Felipe duque da Borgonha um

grande homem em todas as mateacuterias mas insigne

sobretudo pelas artes da paz e confiado agrave eterna

memoacuteria dos homens46

Deveraacutes tomaacute-lo como modelo de modo

que satildeo sejas [para ele] somente o que um filho eacute

para o pai mas que respondas a Felipe como

[outro] Felipe

Entende haacute muito tempo a tua prudecircncia

o que todo o povo espera de ti Carregas um

triplo peso nos ombros o exemplo do teu pai do

teu irmatildeo e os destinos destes tempos (o que

mais poderia eu dizer) natildeo sei como atraiacutedos

para a guerra Noacutes mesmos vimos ultimamente47

como alguns nada deixaram de tentar embora

sendo mais severos aos seus amigos do que aos

seus inimigos a fim de assegurar que a guerra

jamais tenha fim a dificuldade encontrada pelos

outros que sinceramente desejam o bem para a

sociedade e ao priacutencipe que deve perseguir a paz

46

O reinado de Felipe de Borgonha foi paciacutefico em certo grau mas acima de tudo por obter uma reconciliaccedilatildeo

com a Franccedila ao final da guerra dos cem anos

47 A composiccedilatildeo da Queixa da Paz estaacute relacionada agrave poliacutetica de aproximaccedilatildeo com a Franccedila e de paz universal

promovida por Chiegravevres e Joatildeo Sauvage que emanaram os tratados de Noyon (augusto de 1516) e Cambrai

(marccedilo de 1517)

115

hisce vero temporibus etiam necessariam

amplecteremur

[26] Cuius sane rei indignitas

movit animum meum ut tum Pacis

undique profligatae Querimoniam

scriberem quo nimirum hac ratione

iustissimum animi mei dolorem vel

ulciscerer vel lenirem

[29] Libellum ad te ceu

primitiolas novo episcopo debitas [30]

mitto quo diligentius tueatur tua

celsitudo pacem utcunque partam si non

patiar eam obliuisci quanto negocio nobis

costiterit Bene Vale

[1] QUERELA PACIS UNDIQUE

GENTIUM EIECTAE

PROFLIGATAEQUE

AVTORE DESIDERIO ERASMO

ROTERODAMO

[4] Si me licet immerentem suo

tamen commodo sic aversarentur

eiicerent profligarentque [5] mortales

meam modo iniuriam et illorum

iniquitatem deplorarem Nunc cum me

profligatam protinus fontem omnis

humanae felicitatis ipsi a semet arceant

para com a Franccedila a qual sempre deve ser por

noacutes abraccedilada especialmente nesses dias

A indignaccedilatildeo com essas coisas moveu

completamente o meu espiacuterito a fim de escrever

a queixa da paz perseguida em toda parte de

modo que por este meio poderia vingar ou

pacificar a justiacutessima dor do meu espiacuterito

Envio entatildeo esta pequena obra como

uma espeacutecie de primiacutecia devida ao nosso bispo a

fim de que Vossa Alteza possa ser mais diligente

para preservar a paz se natildeo permito esquececirc-la

quanto trabalho nos custou

Passe bem

Queixa da paz perseguida e rejeitada em toda

parte pelas naccedilotildees

De autoria de Desideacuterio Erasmo de Rotterdam

Se mesmo que natildeo merecendo48

os

mortais ainda assim de tal modo me

hostilizassem perseguissem e rejeitassem tendo

em vista sua proacutepria vantagem eu deploraria

apenas a minha injuacuteria e a iniquidade deles Mas

uma vez que eles tendo me rejeitado impedem a

si mesmos de saciar-se na fonte de toda

felicidade humana e se precipitam no mar de

48

Cf Terecircncio Hec 5 1 14 ldquoinscitum afferre iniuriam tibi immerentirdquo

116

omniumque calamitatum pelagus sibi

accersant magis illorum mihi deflenda

est infelicitas quam mea iniuria et quibus

irasci tantum maluissem horum dolere

vicem hos commiserari compellor Nam

utcumque amantem [10] ab se propellere

inhumanum est bene merentem aversari

ingratum parentem ac servatricem

omnium affligere impium Caeterum tot

egregias commoditates quas mecum

adfero sibimetipsis invidere proque his

ultro tam tetram malorum omnium

lernam accersere an non hoc extremae

cuiusdam dementiae videtur Sceleratis

irasci par est at sic furiis actos quid aliud

quam deflere possumus [15] Qui non

alio sane nomine magis deflendi sunt

quam quod ipsi sese non deflent nec alio

magis infelices quam quod infelicitatem

suam non sentiunt quando nonnullus

gradus est ad sanitatem morbi sui

magnitudinem agnoscere Etenim si ego

sum Pax illa divorum simul et hominum

voce laudata fons parens altrix

ampliatrix tutatrix rerum bonarum

omnium quas vel caelum habet ve (sic)

[20] terra si sine me nihil usquam

florens nihil tutum nihil purum aut

sanctum nihil aut iucundum hominibus

aut gratum superis si contra haec omnia

bellum semel omnium malorum quicquid

usquam est in rerum natura oceanus

todas as calamidades entatildeo devo lamentar mais

a infelicidade deles do que a injuacuteria contra mim

E embora eu preferisse somente irar-me contra

eles sou antes compelida a me condoer deles a

ter misericoacuterdia deles Eacute certamente desumano

afastar de si o que de algum modo nos ama eacute

ingrato hostilizar o que merece o bem eacute iacutempio

afligir a progenitora e servidora de todos

Ademais acaso natildeo parece ser de uma demecircncia

extrema isso de recusar para si mesmos as

vantagens tatildeo grandes que comigo trago e no

lugar delas invocar a tatildeo terriacutevel Lerna de todos

males Eacute justo irar-se contra os criminosos mas

que mais podemos fazer senatildeo lamentar aqueles

que agiram assim por causa das Fuacuterias Estes

certamente devem ser lamentados natildeo por outro

motivo senatildeo justamente porque natildeo lamentam a

si mesmos nem por outro lado haacute homens mais

infelizes do que aqueles que natildeo percebem sua

proacutepria infelicidade uma vez que reconhecer o

tamanho da proacutepria doenccedila eacute um passo para a

cura Se eu pois sou aquela Paz louvada a uma

soacute voz pelos deuses e pelos homens fonte

progenitora aleitadora fomentadora tutora de

todas as coisas boas que existem quer no ceacuteu

quer na terra se sem mim natildeo haacute nada que

floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute

seguro nada eacute puro ou santo e nada eacute alegre

para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteus se em

contrapartida a tudo isto uma uacutenica guerra onde

quer que esteja na natureza das coisas eacute uma

espeacutecie de oceano de todos os males ao mesmo

117

quidam si huius vitio subito marcescunt

florentia dilabuntur aucta labascunt

fulta pereunt bene condita amarescunt

dulcia denique si res est adeo non sancta

ut omnis [25] pietatis ac religionis sit

maxime praesentanea pestis si nihil hoc

uno infelicius hominibus nihil invisius

superis quaeso per deum immortalem

quis credat istos homines esse quis

credat ullam sanae mentis micam inesse

qui me talem tantis impendiis tantis

studiis tanto molimine tot technis tot

curis tot periculis student eiicere

tantumque malorum velint tam chare

emere

[30] Si me ad istum modum

spernerent ferae levius ferrem et in me

admissam contumeliam naturae

imputarem quae ingenium immite

insevisset si mutis pecudibus essem

invisa condonarem inscitiae propterea

quod his ea vis animi negata sit quae sola

dotes meas queat perspicere At o rem

indignam ac plus quam prodigiosam

unum animal aedidit natura ratione

praeditum ac divinae [35] mentis capax

unum benevolentiae concordiaeque

genuit et tamen apud quantumlibet

efferas feras apud quantumvis brutas

pecudes mihi citius locus sit quam apud

homines Iam tot orbium coelestium licet

tempo se por influecircncia dela as coisas que

estavam florescendo subitamente murcham as

grandes se dissolvem os fundamentos ruem as

bem construiacutedas perecem as doces amargam em

suma se eacute algo a tal ponto sacriacutelego que eacute como

a peste venenosa de toda a piedade e religiatildeo se

natildeo haacute nada mais infeliz para os homens do que

ela se nada eacute mais odioso para os ceacuteus por

favor pelo Deus imortal quem acreditaraacute que

tais homens existam quem acreditaraacute que haacute

uma uacutenica migalha de bom senso em seres que

com tantos esforccedilos tantos trabalhos com tanto

peso com tantas teacutecnicas com tantos cuidados

tantos perigos empenhem-se em me lanccedilar fora

a mim que sou assim e prefiram pagar tatildeo caro

por uma quantidade tatildeo grande de males

Se feras me desprezassem desse modo eu

o suportaria mais facilmente e atribuiria essa

ofensa agrave natureza que inserira nelas uma iacutendole

selvagem Se eu fosse odiada pelo gado mudo

eu o perdoaria por sua ignoracircncia porque lhe foi

negada a faculdade do entendimento que eacute a

uacutenica capaz de perceber os meus dons Mas oacute

coisa indigna e mais que monstruosa a natureza

soacute produziu um animal dotado de razatildeo e capaz

da mente divina soacute gerou um ser capaz de

benevolecircncia e de concoacuterdia e no entanto eacute

mais faacutecil haver um lugar para mim junto agraves

feras por mais ferozes que sejam e agraves bestas

por mais brutas que sejam do que junto aos

homens Jaacute dentre os corpos celestes que satildeo

tantos embora seus movimentos natildeo sejam

118

nec motus sit idem nec vis eadem tamen

iis tot iam seculis constant vigentque

foedera Elementorum pugnantes inter se

vires aequabili libramine pacem aeternam

tuentur et in tanta [40] discordia consensu

commercioque mutuo concordiam alunt

In animantium corporibus quam fidus

membrorum inter ipsa consensus quam

parata defensio mutua Quid tam

dissimile quam corpus et anima Et

tamen quam arcta necessitudine

connexuerit haec duo natura nimirum

declarat ipsa divulsio Proinde ut vita

nihil aliud est quam corporis et animae

societas ita sanitas omnium [45] corporis

qualitatum concentus est Animantia

rationis expertia in suo quaeque genere

civiliter concorditerque degunt

Armentatim vivunt elephanti gregatim

pascuntur sues et oves turmatim volant

grues et graculi habent sua comitia

ciconiae pietatis etiam magistrae mutuis

officiis sese tuentur delphini Nota est

formicarum et apum inter ipsas concors

politia Sed quid de his loqui pergo [50]

quae tametsi ratione vacant sensu non

vacant

[51] In arboribus in herbis

amicitiam possis agnoscere Steriles sunt

quaedam nisi marem adiungas vitis

ulmum amplectitur vitem amat persica

iguais nem sua energia seja a mesma contudo

desde haacute muitos seacuteculos existem e vigoram entre

eles pactos As forccedilas dos elementos que lutam

entre si mantecircm a paz eterna atraveacutes de um

equiliacutebrio constante e em meio a tatildeo grande

discoacuterdia fomentam a concoacuterdia por meio do

consenso e do trato reciacuteproco Nos corpos dos

seres animados como eacute soacutelido o consenso dos

membros entre si e quatildeo preparado para a defesa

muacutetua Que existe de mais diferente do que o

corpo e a alma E contudo a proacutepria separaccedilatildeo

evidencia com quatildeo estreito laccedilo a natureza uniu

essas duas coisas De forma que assim como a

vida nada mais eacute que a associaccedilatildeo do corpo e da

alma assim tambeacutem a sauacutede do corpo eacute a

harmonia de todas as suas propriedades Os

animais desprovidos de razatildeo qualquer que seja

a espeacutecie convivem em harmonia e em

concoacuterdia Os elefantes vivem em manada

porcos e ovelhas satildeo apascentados em rebanhos

os grous e os estorninhos voam em bando as

cegonhas mestras de fidelidade tecircm seus

grupos os golfinhos ajudam-se uns aos outros

com cuidados muacutetuos e notoacuterio eacute o regime

cordial das formigas e das abelhas entre si Mas

para que continuo a falar dessas criaturas que

embora desprovidas de razatildeo natildeo satildeo

desprovidas de sentimento

Entre as aacutervores e as plantas poderias

reconhecer a amizade Algumas delas satildeo

esteacutereis a menos que lhes acrescentes o macho

o olmeiro eacute abraccedilado pela videira o pessegueiro

119

Usque adeo quae nihil sentiunt tamen

pacis beneficium sentire videntur Sed

haec rursum ut sentiendi vim non habent

ita quod vitam habeant iis quae sentiunt

finitima [55] sunt Quid aeque brutum

atque saxorum genus Dicas tamen his

quoque pacis et concordiae sensum

inesse Ita Magnes ferrum ad sese trahit

attractum tenet Quid quod inter

immanissimas etiam feras conuenit

Leonum inter ipsos feritas non dimicat

Aper in aprum non vibrat dentem

fulmineum Lynci cum lynce pax est

Draco non saevit in draconem Luporum

concordiam etiam proverbia nobilitarunt

[60] Addam quod magis etiam mirum

videatur impii spiritus per quos caelitum

atque hominum concordia primum

dirupta est et hodie rumpitur tamen inter

se foedus habent suamque illam

qualemcumque tyrannidem consensu

tuentur

[64] Solos homines quos omnium

maxime decebat unanimitas quibusque

cum [65] primis opus est ea neque natura

tam aliis in rebus potens et efficax

conciliat nec institutio coniungit nec tot

ex consensu profecturae commoditates

conglutinant nec tantorum denique

malorum sensus et experientia in mutuum

ama a videira Ateacute mesmo aqueles que nada

sentem parecem no entanto sentir o benefiacutecio

da paz Mais ainda se esses seres natildeo tecircm a

capacidade de sentir satildeo na medida em que tecircm

vida proacuteximos daqueles que sentem O que haacute

de tatildeo bruto quanto agrave raccedila das pedras Dizes

contudo que tambeacutem nestas estaacute contido o senso

da paz e da concoacuterdia Assim o imatilde atrai o ferro

para si e tendo-o atraiacutedo o reteacutem O que eacute isso

que congrega ateacute as feras mais selvagens entre

si A ferocidade dos leotildees entre eles natildeo

aparece49

Um javali natildeo vibra seu dente afiado

contra outro javali haacute paz de lince com lince a

serpente natildeo se enfurece com outra serpente e

ateacute os proveacuterbios elogiaram a concoacuterdia que

existe entre lobos Acrescentarei ainda algo que

parece mais espantoso os espiacuteritos iacutempios (por

meio dos quais a concoacuterdia entre os ceacuteus e os

homens se rompeu no comeccedilo e ainda hoje se

rompe) tecircm contudo um pacto entre si e

manteacutem aquela sua tirania atraveacutes do consenso

De todos os seres satildeo os homens aqueles

a quem mais convinha a uniatildeo e a que de longe

ela eacute mais necessaacuteria poreacutem de todos satildeo os

uacutenicos que nem a natureza tatildeo potente e eficaz

em outras coisas concilia nem a instruccedilatildeo une

nem associam as facilidades advindas de um

acordo a ser firmado nem enfim a percepccedilatildeo e

a experiecircncia de tatildeo grandes males reconduz ao

49

Margolin (1992 p 914) identifica uma recepccedilatildeo de Pliacutenio (Histoacuteria natural VII 5)

120

amorem redigit Figura communis

omnium vox eadem et cum caetera

animantium genera corporum formis

potissimum inter se differant uni homini

indita vis [70] rationis quae ita sit illis

inter ipsos communis ut cum nullo sit

reliquorum animantium communis uni

huic animanti sermo datus praecipuus

necessitudinum conciliator Insita sunt

communiter disciplinarum ac virtutum

semina ingenium mite placidumque et ad

mutuam benevolentiam propensum ut

per se iuvet amari et iucundum sit de aliis

benemereri nisi quis pravis cupiditatibus

[75] ceu Circes pharmacis corruptus ex

homine degenerarit in belluam Hinc est

videlicet quod vulgus quicquid ad

mutuam benevolentiam pertinet

humanum appellat Addidit lacrymas

exorabilis ingenii documentum quo si

quid forte inciderit offensae et amicitiae

serenitatem nubecula aliqua obfuscarit

facile redeant in gratiam

En quot rationibus natura

amor muacutetuo A aparecircncia eacute comum a todos a

voz eacute a mesma e embora as demais espeacutecies dos

animais se diferenciem umas das outras

sobretudo pelas formas dos corpos soacute ao homem

foi infundida a razatildeo que assim como eacute comum

entre eles mesmos natildeo eacute comum entre eles e os

demais animais50

Soacute a este ser animado foi

concedida a fala que eacute o principal conciliador

dos laccedilos sociais foram-lhe inseridas as

sementes dos saberes e das virtudes de um

temperamento doce plaacutecido e propenso a uma

muacutetua benevolecircncia de tal forma que lhe agrada

ser amado pelo que eacute e sente-se alegre em fazer

gratuitamente o bem a quem o merece a natildeo ser

que algueacutem corrompido por perversos desejos

como que pelos alucinoacutegenos de Circe51

se

degenere de homem em fera52

Eacute por isso que

natildeo sem razatildeo o vulgo chama humano a tudo

aquilo que diz respeito agrave benevolecircncia muacutetua53

Acrescentou-lhe as laacutegrimas comprovaccedilatildeo de

um espiacuterito sensiacutevel a pedidos de desculpas para

que facilmente se faccedilam as pazes caso ocorra

talvez um incidente ofensivo ou alguma

nuvenzinha ofusque a serenidade da amizade

Eis com quatildeo grande nuacutemero de

50

Cf Quintiliano Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 16 17-18 Segundo Margolin (1992 p 914) ldquotema banal da

superioridade do homem dotado de linguagem e de razatildeordquo

51 Herding (1978 p 65 nota 75) percebe a recepccedilatildeo de Homero (Odisseia X 235ss) ldquoCirces pharmacisrdquo

52 Alusatildeo ao trecho da Odisseia (X 310) segundo o qual a deusa feiticeira Circe filha do deus Heacutelio com a

feiticeira Heacutecate especialista em venenos acolhe primeiramente depois furiosamente Ulisses e seus

companheiros Segundo Margolin (1992 p 915) ldquotrata-se de um tema claacutessico da degenerescecircncia moral ou

fiacutesica dos homens metamorfoseados em bestas ferozes para a liberaccedilatildeo dos seus instintos brutaisrdquo

53 Noccedilatildeo capital entre os humanistas Erasmo natildeo pensa ser a humanitas um dom natural do homem pois ele se

torna humano A razatildeo bem formada deve fazer redescobrir a verdadeira natureza do homem que lhe permite

comandar e superar sua natureza instintiva

121

concordiam docuit Nec his tamen [80]

contenta pacis lenociniis amicitiam

homini non solam iucundam esse voluit

verum etiam necessariam Eoque tum

corporum tum animorum dotes ita partita

est ut nemo sit omnium tam instructus

quin infimorum etiam officio

nonnumquam adiuvetur nec eadem

attribuit omnibus nec paria ut haec

inaequalitas mutuis amicitiis aequaretur

Aliis in regionibus alia proveniunt quo

vel usus [85] ipse mutua doceret

commercia

[86] Caeteris animantibus sua

tribuit arma praesidiaque quibus sese

tuerentur unum hominem produxit

inermem atque imbecillum nec prorsus

aliter tutum quam foedere mutuaque

necessitudine Civitates repperit

necessitas et ipsarum inter se societatem

docuit necessitas quo ferarum ac

praedonum vim cunctis [90] viribus

propellerent Adeo nihil est in rebus

humanis quod ipsum sibi sufficiat In

ipsis statim vitae primordiis perisset

hominum genus nisi conditum

propagasset coniugalis concordia nec

enim nasceretur homo et mox natus

argumentos a natureza nos ensinou a concoacuterdia

Natildeo satisfeita contudo com esses encantos que

resultam da paz quis que a amizade fosse natildeo

somente agradaacutevel mas tambeacutem necessaacuteria para

o homem Por essa razatildeo repartiu de tal forma

os dotes tanto os dos corpos quanto os dos

espiacuteritos que natildeo haacute ningueacutem que seja tatildeo

dotado de todos eles que jamais necessite ser

socorrido pelo auxiacutelio dos subalternos tampouco

atribuiu a todos caracteriacutesticas idecircnticas e iguais

a fim de que essa desigualdade fosse equilibrada

atraveacutes de amizades muacutetuas As diferentes

regiotildees produzem coisas diferentes de modo que

a proacutepria utilidade ensinasse os muacutetuos

comeacutercios

Aos outros animais a natureza concedeu

armas e recursos a fim de se defenderem soacute o

homem ela produziu indefeso e fraco

dependente para sua seguranccedila inteiramente de

alianccedila muacutetua e dos laccedilos de solidariedade54

A

necessidade inventou as cidades e a necessidade

ensinou a sociedade entre elas a fim de unindo

forccedilas repelir o ataque das feras e dos ladrotildees

Mais ainda natildeo haacute nada nas coisas humanas que

baste a si mesma O gecircnero humano teria

perecido logo nos primeiros estaacutegios da vida se

uma vez criado a concoacuterdia conjugal natildeo o

tivesse propagado pois o homem nem nasceria

ou morreria logo ao nascer e expiraria no limiar

mesmo da vida se a matildeo amiga das parteiras e

54

Eacute o mito de Epimeteu que ao criar os animais com seus respectivos atributos concedeu ao homem o fogo dos

deuses ensinando-lhe tambeacutem como trabalhar com ele (Cf Platatildeo Protaacutegoras 320C-322C)

122

interiret atque in ipso vitae limine vitam

amitteret nisi obstetricum amica manus

nisi nutricum amica pietas succurreret

infantulo Atque in hunc usum

vehementissimos [95] illos pietatis

igniculos insevit ut parentes etiam illud

ament quod nondum viderunt Adiecit

mutuam liberorum erga parentes

pietatem ut illorum imbecillitas horum

praesidiis vicissim sublevaretur fieretque

illa cunctis quidem ex aequo plausibilis

sed Graecis aptissime dicta

ἀμηιπελάργωζις Accedunt huc

cognationum et affinitatum vincula

accedit in nonnullis ingeniorum

studiorum [100] formaeque similitudo

certissima benevolentiae conciliatrix in

multis arcanus quidam animorum sensus

ac mirus ad mutuum amorem stimulus

quem veteres admirati numini

adscribebant

[103] Tot argumentis natura

docuit pacem concordiamque tot

illecebris ad eam invitat tot laqueis

trahit tot rebus compellit Et post haec

quaenam ista tam ad [105] nocendum

efficax Erinnys his omnibus disruptis

disiectis discussis insatiabilem pugnandi

furiam insevit humanis pectoribus Nisi

se a piedade amiga das amas de leite natildeo

socorresse o bebezinho Mas tendo em vista sua

utilidade a natureza inseriu nos homens

fortiacutessimos estiacutemulos de piedade a fim de que os

pais amem ateacute aquilo que ainda nem sequer

viram Acrescentou a piedade muacutetua dos filhos

para com os pais para que a fraqueza destes seja

por sua vez amparada pelos cuidados daqueles e

a que se decirc aquele sentimento certamente vaacutelido

para todos mas a que os gregos chamaram mais

apropriadamente ἀμηιπελάργωζις55

Somam-se a

estes os viacuteculos das consanguinidades e das

afinidades Acrescente-se em alguns a

semelhanccedila de temperamento de feiccedilotildees e de

interesses a qual eacute a mais certa conciliadora da

benevolecircncia havendo tambeacutem em muitos

homens uma espeacutecie de sentido misterioso das

almas e uma maravilhosa tendecircncia para o amor

muacutetuo que os antigos admirados atribuiacuteam a

uma divindade

Com tatildeo grande nuacutemero de argumentos a

natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela

nos convida com tatildeo grande nuacutemero de

seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com

tantos laccedilos e razotildees E no entanto que Eriacutenia

foi essa tatildeo eficaz em prejudicar que tendo

todas aquelas coisas sido destruiacutedas destroccediladas

e arrasadas infundiu nos coraccedilotildees humanos a

55

O termo deriva de πελαργoacuteς e se refere agrave piedade da cegonha conforme a literatura grega Margolin (1992 p

916) sugere a traduccedilatildeo como ldquoreconhecimento filialrdquo ou de ldquopiedade filialrdquo com a ideia de uma piedade que

ldquoretornardquo

123

primum admirationem deinde sensum

etiam mali adimeret assuetudo quis

crederet humana mente praeditos istos

qui sic iugibus dissidiis litibus bellis

inter sese certant rixantur tumultuantur

Postremo rapinis sanguine cladibus

ruinis sacra profanaque [110] miscent

omnia nec ulla tam sancta foedera quae

illos in mutuam perniciem debacchantes

queant dirimere Ut nihil etiam accesserit

satis erat commune hominis vocabulum

ut inter homines conveniret

[113] Sed esto nihil apud

homines profecerit natura quae

plurimum valet ut in beluis Itane nihil et

apud Christianos valuit Christus Parum

efficax sit doctrina [115] naturae quae

maximam vim habet in his quoque quae

sensu vacant Caeterum cum hac multo

praestantior sit doctrina Christi cur ea se

profitentibus non persuadet id quod unum

omnium maxime suadet nempe pacem

mutuamque benevolentiam Aut saltem

hanc tam impiam efferamque belligerandi

insaniam dedocet Cum hominis

vocabulum audio mox accurro velut ad

animal mihi [120] proprie natum

confidens fore ut illic liceat acquiescere

cum Christianorum audio titulum magis

etiam advolo apud hos certe regnaturam

insaciaacutevel fuacuteria de fazer a guerra Se o costume

natildeo tivesse feito desaparecer primeiro o espanto

depois ateacute a emoccedilatildeo diante do mal quem

acreditaria que satildeo providos de razatildeo humana

esses que lutam entre si se confrontam e se

combatem com constantes dissensotildees litiacutegios e

guerras Finalmente com pilhagens sangue

assassinatos e destruiccedilotildees misturam todas as

coisas sagradas e profanas nem haacute alianccedilas por

mais sagradas que eles natildeo sejam capazes de

romper inebriados para sua muacutetua destruiccedilatildeo

Para que nada disso uma vez mais ocorresse

seria suficiente a simples palavra ldquohomemrdquo para

que os homens se unissem

Mas que seja A natureza que tem tatildeo

grande poder entre os animais nada pode junto

aos homens mas seraacute que Cristo tambeacutem natildeo

pocircde nada entre os cristatildeos Que seja pouco

eficaz a doutrina da natureza a qual tem maacutexima

forccedila ateacute para os seres privados de sentidos mas

sendo a doutrina de Cristo muito superior por

que esta natildeo eacute capaz de persuadir os que a

professam aquilo que ela ensina sobre todas as

coisas a saber a paz e a muacutetua benevolecircncia

Ou pelo menos natildeo os dissuade de tatildeo iacutempia e

selvagem insacircnia de guerrear Quando ouccedilo a

palavra homem logo acudo como a um animal

nascido de mim confiante de que nele

encontrarei o lugar do meu repouso quando

ouccedilo a designaccedilatildeo de cristatildeos voo mais ainda

na esperanccedila de que entre eles certamente hei de

reinar Entretanto aqui tambeacutem me envergonha e

124

etiam me sperans Sed hic quoque pudet

ac piget dicere fora basilicae curiae

templa sic undique litibus perstrepunt ut

nusquam apud ethnicos aeque adeo ut

cum bona pars humanae calamitatis sit

advocatorum turba tamen haec etiam ad

litigantium [125] undas paucitas sit ac

solitudo Civitatem adspicio spes illico

oboritur inter hos saltem convenire quos

eadem cingunt moenia eaedem

moderantur leges et velut una vectos

navi commune continet periculum Sed o

me miseram quae hic quoque dissidiis

omnia vitiata comperio adeo ut vix

domum ullam reperire liceat in qua mihi

sit vel dies aliquot locus Sed plebem

omitto quae maris ritu [130] suis aestibus

rapitur

[131] In principum aulas velut in

portum quemdam me recipio Erit

inquam certe apud hos locus paci plus hi

sapiunt quam vulgus ut qui sint plebis

animus atque oculus populi tum eius

vices gerunt qui doctor est et princeps

concordiae a quo quidem cum omnibus

tum his praecipue sum commendata Et

[135] omnia bene pollicentur Video

blandas consalutationes amicos

angustia dizer os foacuteruns as basiacutelicas os

tribunais e as igrejas ressoam por todos os lados

com tal violecircncia como nunca houve igual entre

os gentios A tal ponto que embora boa parte da

calamidade humana esteja na turba dos

advogados esta no entanto em relaccedilatildeo agraves ondas

dos litigantes eacute um nada um deserto Olho para

a cidade e imediatamente renasce minha

esperanccedila de que exista uniatildeo ao menos entre

aqueles que as mesmas muralhas circundam e

satildeo regidos pelas mesmas leis e que como que

navegam num mesmo navio unidas por um

perigo em comum Mas pobre de mim Tambeacutem

aqui verifico que a cidade estaacute totalmente

maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a

tal ponto que quase natildeo se pode achar uma uacutenica

casa na qual exista um lugar para mim por

alguns dias Entretanto deixo de lado o povo

que tal como o mar eacute arrebatado por sua proacutepria

agitaccedilatildeo56

Voltei-me agraves cortes dos priacutencipes como a

uma espeacutecie de porto Digo que certamente

existiraacute junto a estes um lugar para a paz pois

eles sabem mais que o vulgo de forma que satildeo a

alma e os olhos do povo Eles fazem pois agraves

vezes deste que eacute o doutor e o priacutencipe da

concoacuterdia natildeo soacute por este fui recomendada mas

tambeacutem por eles E tudo isso eles prometem

Vejo saudaccedilotildees suaves abraccedilos amigaacuteveis

alegres banquetes assim como todos os demais

56

A ldquoagitaccedilatildeordquo como traduccedilatildeo de aestibus referencia agraves aacuteguas agitadas agrave agitaccedilatildeo do mar sentido registrado nos

dicionaacuterios (Agradeccedilo ao Prof Paulo Vasconcellos essa sugestatildeo por ocasiatildeo do exame de qualificaccedilatildeo)

125

complexus hilares compotationes

caeteraque officia humanitatis At o rem

indignam apud hos nec umbram verae

concordiae licuit cernere Fucata fictaque

omnia factionibus apertis clanculariis

dissidiis ac simultatibus corrupta sunt

universa Denique adeo apud hos non

esse sedem paci comperio ut hinc potius

omnium bellorum [140] fontes ac

seminaria Quo me posthac conferam

infelix posteaquam toties fefellit spes

At principes magni sunt potius quam

eruditi magisque ducuntur cupiditatibus

quam recto animi iudicio

[143] Ad eruditorum greges

confugiam Bonae litterae reddunt

homines philosophia plusquam homines

theologia reddit divos Apud hos certe

dabitur conquiescere [145] tot actae

ambagibus Verum proh dolor en hic

quoque bellorum aliud genus minus

quidem cruentum sed tamen non minus

insanum Schola cum schola dissidet et

ceu rerum veritas loco commutetur ita

quaedam scita non traiiciunt mare

quaedam non superant Alpes quaedam

non tranant Rhenum immo in eadem

academia cum rhetore bellum est

dialectico cum iureconsulto [150]

deveres da civilidade Entretanto oacute coisa

indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar

sequer a sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute

fingido e simulado natildeo haacute nada que natildeo seja

corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por

divergecircncias e rivalidades ocultas No final natildeo

encontro o trono da paz entre eles mas antes eacute aiacute

que mais estatildeo as fontes e origens de todas as

guerras Depois de tantas vezes ver perdida a

esperanccedila para onde eu infeliz devo acorrer

Mas os priacutencipes talvez satildeo mais importantes

que eruditos e mais se deixam conduzir pelas

paixotildees do que pelo reto juiacutezo da alma

Refugiar-me-ei na grei dos eruditos as

boas letras formam os homens a filosofia os

torna mais do que homens e a teologia torna-os

santos Junto a eles certamente ser-me-aacute dado

repousar depois de me ter enredado em tantas

digressotildees Entretanto oacute dor Aqui tambeacutem haacute

outro tipo de guerra de fato menos cruenta

contudo natildeo menos insana Escolas se digladiam

com escolas e como se a verdade mudasse com

os lugares certos conceitos natildeo atravessam o

mar outros natildeo transpotildeem os Alpes outros

enfim natildeo cruzam o Reno e ateacute na mesma

Academia o retoacuterico disputa com o dialeacutetico ou

o jurista discorda do teoacutelogo Chega-se ao ponto

de que no mesmo gecircnero de profissatildeo o tomista

luta contra o escotista 57

o realista contra o

57

Cf ldquoOs traccedilos do labirinto satildeo menos complicados do que as tortuosas voltas dos realistas nominalistas

tomistas albertistas occamistas escotistasrdquo (Elogio da Loucura 53) Erasmo buscou o fundamento de sua

doutrina nas fontes do cristianismo natildeo nas ldquosutilezasrdquo dos comentaacuterios variados e contraditoacuterios dos filoacutesofos

medievais (cf Margolin1992 p 918)

126

dissidet theologus Atque adeo in eodem

professionis genere cum Thomista pugnat

Scotista cum Reali Nominalis cum

Peripatetico Platonicus adeo ut ne in

minutissimis quidem rebus inter hos

conveniat ac saepenumero de lana

caprina atrocissime digladientur donec

disputationis calor ab argumentis ad

convitia a convitiis ad pugnos

incrudescat et si res pugionibus aut

lanceis non [155] agitur stilis veneno

tinctis sese confodiunt dentata charta

dilacerant invicem alter in alterius

famam letalia linguarum vibrant spicula

Quo me vertam toties experta mihi data

verba

[158] Quid superest nisi una

veluti sacra ancora religio Huius

professio licet sit Christianorum omnium

communis tamen eam isti peculiariter

profitentur titulo [160] cultu cerimoniis

qui vulgo Sacerdotum cognomento

commendantur Hos itaque procul

intuenti cuncta spem faciunt portum mihi

paratum esse Arrident vestes candidae

meoque colore insignes video cruces

pacis symbola audio dulcissimum illud

fratris cognomen eximiae caritatis

nominalista o platocircnico contra o peripateacutetico

de tal forma que nem sequer concordam em

ninharias e muitas vezes se digladiam

violentamente por latilde de caprina58

ateacute que o calor

do debate recrudesce e dos argumentos se passa

agraves ofensas das ofensas aos safanotildees59

e se o

assunto natildeo se resolver com adagas e lanccedilas

trespassam-se com penas envenenadas

dilaceram-se com papeacuteis que mordem e um vibra

o dardo mortal da liacutengua contra o renome do

outro 60

Para onde me voltarei depois de tantas

palavras enganosas que me foram dirigidas

Que me resta senatildeo a religiatildeo uacutenica

acircncora sagrada Embora todos os cristatildeos em

geral a professem contudo alguns a professam

de um modo peculiar tanto pelo nome como

pelo tipo de vida e cerimocircnias que praticam e

que satildeo aqueles a que vulgarmente se daacute o nome

de sacerdotes Estes observados assim agrave

distacircncia tudo daacute a esperanccedila de que seja ali o

porto preparado para mim Suas vestes brancas

sorriem famosas pela minha cor 61

vejo as

cruzes siacutembolos da paz ouccedilo aquele dulciacutessimo

cognome de irmatildeos demonstraccedilatildeo de um amor

58

Herding (1978 p 67 nota 152-153) nota-se referecircncia a Horaacutecio (Epiacutestola I 18 15)

59 Nota-se a referecircncia a Ciacutecero (Ad Quintum fratem 2 15 6)

60 A expressatildeo ldquocharta dentatardquo eacute um expressatildeo ciceroniana (cf Cicero Ad Quintum fratem 2141)

61 Cf Oviacutedio Ars amatoria 3502

127

argumentum audio salutationes pacis

laeto omine felices cerno rerum omnium

communionem [165] coniunctum

collegium templum idem leges easdem

conventus quotidianos Quis hic non

confidat paci locum fore Sed o rem

indignam nusquam fere collegio

convenit cum episcopo parum hoc nisi

et ipsi inter sese factionibus scinderentur

Quotusquisque sacerdos est cui non sit

cum aliquo sacerdote lis Paulus rem non

ferendam censet quod Christianus litiget

adversus Christianum [170] Et sacerdos

cum sacerdote episcopus cum episcopo

certat Verum his quoque forsitan

ignoscat aliquis quod longo iam usu

propemodum in prophanorum consortium

abierunt posteaquam eadem cum illis

coeperunt possidere Age fruantur hii

sane suo iure quod ceu praescriptione

sibi vindicant Unum hominum genus

superest qui sic adstricti sunt religioni ut

etiam si cupiant [175] nullo pacto queant

excutere non magis profecto quam

testudo domum Sperarem apud hos mihi

fore locum nisi toties frustrata spes me

prorsus desperare docuisset Et tamen ne

quid intentatum relinquam experiar

Quaeris exitum A nullis resilii magis

exiacutemio ouccedilo as saudaccedilotildees de paz cheias de

votos de felicidade vejo a comunhatildeo de todos os

bens um colegiado unido o mesmo templo as

mesmas leis e as reuniotildees diaacuterias Quem natildeo

acreditaria ser este o lugar da paz Mas oacute coisa

indigna Quase natildeo haacute uma ordem que concorde

com o bispo e pior cindem-se em facccedilotildees Quatildeo

poucos satildeo os sacerdotes que natildeo estejam em

litiacutegio com ao menos outro sacerdote Paulo62

natildeo concorda que um cristatildeo tenha disputas

contra outro cristatildeo 63

e o sacerdote discute com

o sacerdote o bispo com o bispo Mas haacute talvez

quem os desculpe jaacute que desde haacute muito tempo

quase se aproximaram do consoacutercio com o

profano depois de comeccedilarem a possuir as

mesmas coisas que eles Pois seja Que

usufruam como se fosse direito seu aquilo que

reivindicam como privileacutegio Haacute ainda uma

espeacutecie de homems que estatildeo de tal forma

ligados a uma religiatildeo que ainda que o

quisessem natildeo conseguiriam deixaacute-la por nada

exatamente como ocorre com a tartaruga e seu

casco Esperaria encontrar junto a eles um lugar

se tantas esperanccedilas frustadas natildeo tivessem me

ensinado a desesperar completamente Mas

enfim para natildeo deixe algo a tentar

experimentarei Queres saber o resultado De

ningueacutem tive de fugir mais raacutepido Pois o que se

poderia esperar de um lugar onde uma ordem

62

Cf II Ad Corinthum 67

63 Cf II Ad Corinthum 67

128

Nam quid sperem ubi religio cum

religione dissidet Tot factiones sunt

quot sunt sodalitia Dominicales dissident

cum Minoritis [180] Benedictini cum

Bernardinis tot nomina tot cultus tot

cerimoniae studio diversae ne quid

omnino conveniret sua cuique placent

aliena damnat et oditque quisque Quin

idem sodalitium factionibus scinditur

Observantes insectantur Coletas utrique

tertium genus quod a conventu

cognomen habet cum nihil inter istos

conveniat

Iam ut par est omnibus rebus

diffisa optabam vel [185] in uno

quopiam monasteriolo latitare quod vere

tranquillum esset Invita dicam quod

utinam non esset verissimum nullum

adhuc reperi quod non intestinis odiis ac

religiosa64

discorda da outra Tantas satildeo as

facccedilotildees quantas satildeo as irmandades os

dominicanos65

disputam com os minoritas66

os

beneditinos67

com os bernardinos68

tantos

nomes tantos cultos tantas cerimocircnias

diferentes de modo que natildeo concordam em coisa

alguma cada um satisfeito com o que eacute seu cada

um condenando e odiando o que eacute dos outros

Aleacutem disso a mesma irmandade estaacute dividida

em facccedilotildees69

os observantes70

perseguem os

recoletas71

e uma terceira ordem deles que tem

o nome de conventual72

quando nada entre eles

conveacutem

Jaacute que eacute assim desconfiada de todas as

coisas dispunha-me a ocultar-me em um

mosteirozinho qualquer que fosse

verdadeiramente tranquilo Direi relutante aquilo

que quem dera natildeo fosse muito verdadeiro ateacute

hoje ainda natildeo encontrei nenhum que natildeo

64

No original religio Natildeo se pode traduzir nesse caso religio por religiatildeo No tempo de Erasmo chamava-se

religiatildeo uma ordem religiosa especiacutefica diferentemente do sentido moderno que usa esse termo para outras

religiotildees acatoacutelicas Erasmo chamava de religio o que hoje os teoacutelogos chamam de carisma Carisma eacute o

vocaacutebulo que se refere agraves caracteriacutesticas especiacuteficas dos indiviacuteduos ou das ordens religiosas Ademais na

teologia catoacutelica do seacuteculo XVI soacute existia uma religiatildeo a catoacutelica Eacute preciso lembrar que natildeo havia acontecido

ainda o simboacutelico feito de Lutero que desencadeou a ruptura das igrejas reformadas com Roma

65 Margolin (1992920) comenta que neste trecho ldquoErasmo logo aproveita a ocasiatildeo de se queixar dos

dominicanos sobretudo os espanhoacuteis cuja estrita ortodoxia natildeo se acomoda ao seu espiacuterito reformistardquo

66 Menores ou freis menores cuja ordem foi fundada em 1223 por Satildeo Francisco de Assis

67 Ordem religiosa fundada por Satildeo Bento por volta do ano 528 sobre o Monte Cassino Itaacutelia

68 Religiosos cistercienses cuja ordem foi fundada em 1098 por Roberto de Citeaux posteriormente reforma em

1119 pelo seu sucessor Satildeo Bernardo de Claraval

69 Dissensatildeo da ordem franciscana instituiacuteda pelo Papa Leatildeo X atraveacutes da bula Ite vos in vineam meam (1517)

70 Ordem fundada durante o Conciacutelio de Constanccedila (1415) e confirmada pelo Papa Martinho V (1420) A regra eacute

mais restrita do que dos conventuais

71 Ordem fundada por Nicollete Boylet ao norte da Franccedila

72 Ordem dos Frades Menores Conventuais surgida entre os anos de 1249 e 1250 que predicava uma vida

mendicante dentro dos conventos em oposiccedilatildeo ao modo de vida itinerante

129

iurgiis esset infectum Pudor sit

recensere quam nihili de nugis tricisque

quantas cieant pugnas viri senes barba

pallioque verendi postremo ut sibi

videntur impense tum eruditi tum sancti

Arridebat spes nonnulla [190] fore ut

alicubi inter tot coniugia qualiscumque

daretur locus

Quid enim non pollicetur domus

communis fortuna communis lectus

communis liberi communes Denique

corporum ipsorum ius mutuum ut unum

potius hominem credas e duobus

conflatum quam duos Huc quoque

sceleratissima illa Eris irrepsit totque

vinculis copulatos dirimit dissidiis

animorum Et tamen inter [195] hos citius

contingat locus quam inter eos qui tot

titulis tot insignibus tot cerimoniis

absolutam caritatem profitentur Tandem

illud in votis esse coepit ut saltem in

unius hominis pectore daretur locus Ne

id quidem contigit idem homo secum

pugnat Ratio belligeratur cum affectibus

et insuper affectus cum affectu

conflictatur dum alio vocat pietas alio

trahit cupiditas Rursum aliud [200]

suadet libido aliud ira aliud ambitio

aliud avaritia Et huiusmodi cum sint non

pudet tamen illos appellari Christianos

cum modis omnibus dissideant ab eo

estivesse contaminado por essas discoacuterdias e

oacutedios intestinos Eacute uma vergonha contar quantas

lutas por causa de bagatelas e futilidades

totalmente insignificantes satildeo causadas por

anciatildeos venerandos em suas barbas e haacutebitos e

que persistem em se ver a si mesmos tatildeo

eruditos tatildeo santos Sorria-me a esperanccedila de

que haveria de encontrar um abrigo em algum

lugar entre tantos casais

Que outra coisa poderia prometer-me um

lar comum de uma sorte comum de um leito

comum e de filhos comuns Enfim do direito

muacutetuo aos proacuteprios corpos a tal ponto que nos eacute

permitido crer que em lugar de dois seres se

trata mais propriamente de um formado a partir

de dois Tambeacutem aqui penetrou aquela tatildeo

perversa Eacuteris e separou com dissensotildees pessoas

que estavam ligadas por muitos viacutenculos E

contudo com mais rapidez se consegue um lugar

entre estes do que entre aqueles outros que com

tantos tiacutetulos tantas insiacutegnias tantas cerimocircnias

professam uma caridade absoluta Finalmente

comecei a ter o desejo de que ao menos fosse

dado um lugar no coraccedilatildeo de um uacutenico homem

Mas tambeacutem aiacute natildeo fui bem sucedida pois o

mesmo homem luta contra si mesmo A razatildeo

luta contra os sentimentos e ademais os

sentimentos lutam entre si se a piedade impele

numa direccedilatildeo o desejo arrasta para outra

ademais a libido aconselha uma coisa a ira

outra a ambiccedilatildeo outra a avareza outra Mas

mesmo assim natildeo se envergonham de chamar-se

130

quod Christo praecipuum est ac

peculiare

[203] Universam eius vitam

contemplare quid aliud est quam

concordiae mutuique amoris doctrina

Quid aliud inculcant eius praecepta quid

parabolae nisi [205] pacem nisi

caritatem mutuam Egregius ille vates

Esaias cum coelesti afflatus spiritu

Christum illum rerum omnium

conciliatorem venturum annunciaret num

satrapam pollicetur num urbium

eversorem num bellatorem num

triumphatorem Nequaquam Quid

igitur Principem Pacis siquidem cura

omnium optimum principem intelligi

vellet ab ea re denotavit quam omnium

[210] optimam iudicasset Neque mirum

ita visum Esaiae cum Silius Ethnicus

Poeta hunc in modum de me scripserit

Pax optima rerum quas homini natura

dedit Concinit huic mysticus ille

citharoedus et factus est inquiens in

pace locus eius In pace dixit non in

tentoriis non in castris princeps est

pacis pacem amat offenditur dissidio

Rursum Esaias opus iustitiae pacem

cristatildeos embora se afastem daquilo que eacute

principal e peculiar em Cristo

Contempla toda a vida dele que outra

coisa eacute ela senatildeo um ensinamento de concoacuterdia

e de amor muacutetuo Que outra coisa inculcam os

seus preceitos e suas paraacutebolas a natildeo ser a paz a

natildeo ser a muacutetua caridade O grande profeta

Isaiacuteas ao anunciar inspirado pelo Espiacuterito

Celeste que Cristo haveria de vir como

conciliador de todas as criaturas teria por acaso

prometido um saacutetrapa ou um agitador de cidades

ou um guerreiro ou um triunfador De modo

algum O quecirc entatildeo O priacutencipe da Paz Pois

como tinha a intenccedilatildeo de referir-se ao priacutencipe

por excelecircncia descreveu-o por aquela coisa que

eacute a mais excelente de todas Natildeo admira que tal

tenha sido a opiniatildeo de Isaiacuteas porque ateacute um

poeta pagatildeo Siacutelio escreveu deste modo sobre

mim ldquoa paz eacute o dom mais excelente que a

natureza concedeu ao homemrdquo73

Aquele famoso

miacutestico citarista cantou a meu respeito ao dizer

ldquoE fez seu assento na pazrdquo 74

ldquoNa pazrdquo disse ele

natildeo em tendas natildeo em acampamentos Eacute o

Priacutencipe da paz Ele ama a paz ofende-se com a

discoacuterdia E novamente Isaiacuteas ldquoagrave justiccedila chama-

se obra da pazrdquo 75

pensando se eacute que natildeo me

engano o mesmo que pensou Paulo que outrora

74 Erasmo cita o texto biacuteblico do Psalmo 753 da Vulgata (seacutec IV) atribuiacutedo a Eusebius Sophronius Hieronymus

(347-420) mais conhecido como Satildeo Jerocircnimo ldquoEt factus est in pace locus eiusrdquo Para os textos citados do Novo

Testamento Erasmo cita sua proacutepria traduccedilatildeo latina

75 Erasmo parafraseia a traduccedilatildeo de Jerocircnimo ldquoOpus iustitiae paxrdquo de um trecho de Isaiah 3217

131

appellat idem sentiens [215] ni fallor

quod sensit Paulus ille et ipse e Saulo

turbulento redditus tranquillus et pacis

doctor Cum caritatem caeteris omnibus

arcani spiritus dotibus anteponens quo

pectore qua facundia meum encomium

detonuit Corinthiis Cur enim non glorier

sic laudari a viro tam laudato Is alias

deum pacis appellat alias pacem dei

vocat palam indicans haec duo sic inter

sese cohaerere ut ibi pax esse non possit

ubi deus non adsit nec illic esse deus

possit ubi pax non [220] adsit Itidem et

pacis angelos in divinis libris vocatos

legimus pios ac dei ministros ut per se

liqueat quos belli Angelos oporteat

accipi

[223] Audite strenui bellatores

Videte sub cuius signis militetis nimirum

illius qui primus dissidium sevit inter

deum et hominem Quicquid calamitatum

sentit mortalitas huic dissidio debet

violento Saulo76

converteu-se em paciacutefico e

mestre da paz sobrepondo a caridade acima de

todos os outros dons do Espiacuterito Santo com que

coraccedilatildeo com que eloquecircncia entoou meu elogio

aos coriacutentios77

Por que eu natildeo me gloriaria de

ser elogiada por um varatildeo tatildeo louvado Ora me

chama ldquoo Deus da pazrdquo 78

ora invoca ldquoa paz de

Deusrdquo 79

indicando claramente que esses dois

conceitos estatildeo interligados de tal forma que

onde haacute paz Deus se faz presente e Deus natildeo se

faz presente onde natildeo existe paz Do mesmo

modo podemos ler nas Escrituras Sagradas que

os homens piedosos e os ministros de Deus satildeo

chamados mensageiros da paz80

a fim de que por

si mesmo fique evidente quais satildeo aqueles que

devemos entender como mensageiros da guerra

Ouvi isto poderosos guerreiros Vede

sob que estandarte militais Sem duacutevida daquele

que primeiro semeou a discoacuterdia entre Deus e o

homem81

A este primeiro conflito devem ser

atribuiacutedas todas as calamidades que a

humanidade sofre Eacute ridiacuteculo o que alguns

argumentam de que nas Sagradas Escrituras se

76

Paulo entatildeo chamado de Saulo ldquorespirava ameaccedilas e oacutedio contra os cristatildeosrdquo (Acta apostolorum 91)

77 ldquoNon enim est dissensionis Deus sed pacis sicut in omnibus ecclesiis sanctorumrdquo (Prima ad Corinthians

1433) ldquoin pace autem vocavit nos Deusrdquo (Prima ad Corinthians 715) ldquosapite pacem habete et Deus dilectionis

et pacis erit vobiscumrdquo (Secunda ad Corinthians 13 11)

78 Deus Pacis Erasmo recorre mais uma vez agrave traduccedilatildeo de Jerocircnimo para Prima ad Thessalonicenses 523 e Ad

Philipenses 49 Segundo Margolin (1992 p 922) Paulo utilizada a expressatildeo Deus pacis em vaacuterias passagens

(Ad Romanos 1533 1620 Ad Corinthios I 1433 Ad Corinthios II 1311 Ad Philipenses 49 Ad

Tessalonicenses I 523 Ad Hebraeos 1320)

79 ldquoPax Deirdquo (Ad Philipenses 47)

80 ldquoEcce praecones clamabunt foris angeli pacis amare flebuntrdquo (Isaiah 337)

81 Erasmo parece evocar a metaacutefora da serpente do paraiacuteso descrita nos capiacutetulos iniciais do Genesis

132

acceptum ferre Frivolum est enim quod

argutantur quidam in arcanis litteris

deum exercituum et deum ultionum dici

Permultum enim interest inter Iudaeorum

deum et Christianorum deum etiamsi

suapte natura unus et idem deus est Aut

si nobis quoque placent tituli veteres age

sit exercituum deus modo acies intelligas

virtutum concentum quarum [230]

praesidio vitia demoliuntur homines pii

Sit ultionum Deus modo vindictam

accipias vitiorum correctionem ut

cruentas strages quibus Hebraeorum libri

referti sunt non ad laniandos homines

sed ad impios affectus e pectore

profligandos referas Sed ut quod

institutum erat persequamur quoties

absolutam felicitatem significant arcanae

litterae pacis nomine id faciunt velut

Esaias [235] Sedebit inquit populus

meus in pulcritudine pacis Et alius Pax

inquit super Israel Rursum Esaias

admiratur pedes annunciantium pacem

annunciantium bona

Quisquis Christum annunciat

pacem annunciat Quisquis bellum

fala do Deus dos exeacutercitos82

ou do Deus das

vinganccedilas 83

Grande diferenccedila haacute entre o Deus

dos judeus e o Deus dos cristatildeos embora pela

natureza seja um uacutenico e mesmo Deus Se

poreacutem os epiacutetetos antigos nos agradam que seja

o Deus dos exeacutercitos contanto que se entenda

por exeacutercito a uniatildeo das virtudes com cuja forccedila

os homens piedosos demolem os viacutecios Que seja

o Deus das vinganccedilas desde que aceites como

vinganccedila a correccedilatildeo dos viacutecios e queiras dizer

que as matanccedilas sangrentas de que os livros dos

hebreus estatildeo repletos visavam natildeo a dilacerar

os homens mas a expulsar-lhes do peito as

paixotildees iacutempias Mas prossigamos naquilo que

haviacuteamos decidido Todas as vezes que as

Sagradas Escrituras querem dizer felicidade

absoluta elas o expressam pelo nome de paz

Por exemplo como disse Isaiacuteas ldquosentar-se-aacute o

meu povo na beleza da pazrdquo 84

E em outro

lugar que diz ldquoHaja Paz sobre Israelrdquo 85

E o

mesmo Isaiacuteas se admira com os peacutes dos que

anunciam a paz dos que anunciam as coisas

boas86

Quem quer que anuncie a Cristo anuncia

a paz Quem quer que pregue a guerra prega

aquele que eacute o que mais se diferencia de Cristo

Pois vejamos Que outra coisa buscou o Filho de

82

Na Vulgata de Jerocircnimo a expressatildeo Deus exercituum consta sessenta e cinco vezes todas no Antigo

Testamento

83 Na Vulgata a expressatildeo Deus ultionum soacute eacute usada uma vez no Salmo 931

84 ldquoSedebit inquit populus meus in pulcritudine pacisrdquo (Isaiah 3218)

85 ldquoPax super Israelrdquo (Psalmus 1245 Psalmus 1276 Ad Galatas 616)

86 ldquoQuam pulchri super montes pedes adnuntiantis et praedicantis pacem bonum praedicantisrdquo (Isaiah 527)

133

praedicat illum praedicat qui Christi

dissimillimus est Age iam quae res dei

filium pellexit in terras nisi ut mundum

patri reconciliaret ut homines inter se

mutua et [240] indissolubili caritate

conglutinaret postremo ut ipsum

hominem sibi faceret amicum Mea igitur

gratia legatus erat meum agebat

negotium Atque ob id Solomonem sui

typum ferre voluit qui nobis εἰρηνοποιός

id est pacificus dicitur Quantumuis

magnus erat David tamen quia bellator

erat quia sanguine fuerat impiatus non

sinitur exstruere domum domini Non

meretur hac [240] parte gerere typum

Christi pacifici Iam illud interim

perpende bellator si profanant bella

numinis iussu suscepta gestaque quid

facient quae suasit ambitio quae ira quae

furor Si pium regem polluit effusus

sanguis ethnicorum quid faciet tam

ingens effusio sanguinis Christiani

[249] Obsecro te Christiane

Deus nesta terra senatildeo que o mundo se

reconciliasse com o Pai Que os homens se

unissem entre si por uma muacutetua e indissoluacutevel

caridade Em suma para fazer-se amigo do

proacuteprio homem Assim portanto Cristo fora

enviado por minha causa e tomava conta de

mim Por isso constituiu como sua imagem o rei

Salomatildeo87

chamado de εἰρηνοποιός88

ou seja ldquoο

paciacuteficordquo Grandioso e ilustre era Davi89

mas

porque era guerreiro porque tinha sido maculado

pelo sangue natildeo lhe foi autorizado construir a

casa do Senhor nem foi merecedor por isso de

ser a imagem do Cristo Paciacutefico Presta bem

atenccedilatildeo oacute homem guerreiro Se as guerras que

foram feitas e perpretadas por ordem da

divindade profanam que faratildeo aquelas que a

ambiccedilatildeo a ira e a loucura aconselharam Se o

sangue dos pagatildeos que derramou foi capaz de

macular um rei tatildeo piedoso o que poderaacute fazer

este enorme derramamento de sangue cristatildeo 90

Imploro-te oacute Priacutencipe Cristatildeo se

verdadeiramente eacutes cristatildeo que contemples o

exemplo do priacutencipe por excelecircncia observa

87

Erasmo evoca a etimologia do nome Solomon paciacutefico que de acordo com o livro dos Reis e das Crocircnicas

seria filho do rei Davi Reinou sobre Israel entre 970 e 931 a C Construiu o primeiro templo de Jerusaleacutem teria

sido o autor de alguns livros biacuteblicos e ceacutelebre pelo dom de sabedoria

88 ldquoFilius qui nascetur tibi et erit vir quietissimus faciam enim eum requiescere ab omnibus inimicis suis per

circuitum et ob hanc causam pacificus vocabitur et pacem et otium dabo in Israhel cunctis diebus eiusrdquo (Primus

Paralipomenon 22 9)

89 David reinou sobre Judaacute entre 1010 e 1002 a C e sobre o reino unido de Israel entre 1002 e 970 a C Tronou-

se ceacutelebre como guerreiro comandante muacutesico e poeta se lhe atribui a autoria da maioria dos salmos Teria sido

castigado pelo adulteacuterio com Bersabeia seguido do assassinato do esposo dela Urias

90 Percebe-se que Erasmo fala de uma guerra inserida em seu presente ou em passado muito proacuteximo Segundo

evidecircncias histoacutericas ele se refere agrave guerra da Liga de Cambrai ou Liga Santa que envolveu os principais estados

europeus durante os anos de 1508 a 1516

134

Princeps si modo vere Christianus es

contemplare [250] tui principis

imaginem observa quomodo regnum

suum inierit quomodo progressus sit

quomodo hinc decesserit et mox

intelliges quomodo abs te geri velit

nimirum ut summa curarum tuarum pax

sit et concordia Nato iam Christo num

bellicis tubis insonant angeli Clangorem

tubarum audiere Iudaei quibus bellare

permissum est Haec congruebant

auspicia quibus fas erat odisse [255]

inimicos At genti pacificae longe aliam

cantionem canunt pacis angeli Num

classicum canunt num victorias

triumphos trophaeaque pollicentur

Minime Quid tandem Pacem

annunciant congruentes cum prophetarum

oraculis et annunciant non iis qui caedes

spirant ac bella qui feroces ad arma

gestiunt sed qui bona voluntate propensi

sint ad concordiam Praetexant quae

velint suo [260] morbo mortales ni

bellum amarent non sic iugibus bellis

inter se conflictarentur Age Christus ipse

iam adultus quid aliud docuit quid aliud

expressit quam pacem Pacis omine suos

subinde salutat Pax vobis eamque

salutandi formam suis praescribit veluti

unice dignam Christianis Atque huius

como ele iniciou e desenvolveu o seu reinado

como ele daqui partiu e imediatamente

aprenderaacutes como eacute necessaacuterio que o administres

de forma que sem duacutevida alguma a paz e a

concoacuterdia sejam o principal objeto de tuas

preocupaccedilotildees Assim que o Cristo nasceu os

Anjos por acaso tocaram as trombetas de

guerra Somente os judeus a quem era

permitido guerrear ouviam os sons das

trombetas Estes auspiacutecios eram compreenssiacuteveis

na eacutepoca em que a lei mosaica legitimava o oacutedio

aos inimigos mas os anjos da paz devem entoar

um canto totalmente diferente para os povos

paciacuteficos Por acaso tocam o clarim Por acaso

prometem vitoacuterias triunfos e trofeacuteus Jamais O

quecirc entatildeo Anunciam a paz conforme os

oraacuteculos dos profetas e a anunciam natildeo agravequeles

que aspiram a assassinatos e guerras e que

anseiam ferozmente pelas armas mas agravequeles

que com boa vontade satildeo propensos agrave

concoacuterdia Que os mortais desculpem com sua

fraqueza o que quiserem mas se de fato natildeo

amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo

entre si com batalhas contiacutenuas Olhai para o

Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que

outra coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso

ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o cumprimento

da paz ldquoa paz esteja convoscordquo91

e lhes

prescreveu essa forma de saudaccedilatildeo como a uacutenica

digna dos cristatildeos Os apoacutestolos natildeo se

91

ldquoPax vobisrdquo (Ioannes20192126 Lucas 2436)

135

praecepti non immemores apostoli pacem

praefantur in suis epistolis pacem optant

iis quos [265] unice diligunt Rem

praeclaram optat qui salutem optat sed

felicitatis summam precatur Hanc ille

toties in omni vita commendatam vide

quanta sollicitudine commendet

moriturus Diligatis inquit invicem sicut

dilexi vos Ac rursum Pacem meam do

vobis pacem relinquo vobis

[269] Auditis quid relinquat suis

Num equos num satellitium num

imperium num opes Nihil horum Quid

igitur Pacem dat pacem relinquit

pacem cum amicis pacem cum inimicis

Iam illud mihi consyderes velim quid a

coena mystica iam imminente mortis

tempore supremis illis precibus flagitarit

a patre Rem opinor haud vulgarem

poposcit qui se sciebat impetraturum

quicquid peteret Pater inquit sancte

serva eos in nomine tuo ut sint unum

sicut et nos Vide quaeso quam

insignem concordiam exigat in suis

Christus Non dixit ut sint unanimes sed

ut sint unum neque id quocumque modo

esqueceram desses preceitos e recomendavam a

paz em suas cartas e desejavam paz agravequeles a

que amavam de forma especial Escolhe coisa

importante quem faz votos pela sauacutede mas estaacute

desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha

recomendado durante toda a sua vida nunca

deixou de a recomendar Veja com quatildeo grande

solicitude a recomenda quando estava prestes a

morrer ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos

tenho amadordquo 92

E novamente ldquoeu vos deixo

a paz eu vos dou a minha pazrdquo93

Ouvis o que Cristo deixou para os seus

Cavalos Escoltas Poder Riquezas Nada

disso O quecirc entatildeo Cristo lhes daacute a paz lhes

deixa a paz Paz com os amigos paz com os

inimigos Gostaria tambeacutem que considerasses

comigo o que jaacute no tempo em que a sua morte

era iminente ele suplicou ao Pai com aquelas

suas uacuteltimas preces na miacutestica ceia Suponho

que natildeo pediu algo usual pois sabia que haveria

de obter qualquer coisa que pedisse Disse ldquoPai

santo guarda-os em teu nome para que sejam

um como noacutesrdquo Veja por favor quatildeo insiacutegne eacute a

concoacuterdia que Cristo solicita para seus

disciacutepulos ele natildeo disse ldquopara que eles sejam

unacircnimesrdquo mas ldquoque sejam um soacuterdquo e isso natildeo

de qualquer forma mas ldquocomo noacutes somos um

noacutes que de maneira perfeita e inefaacutevel somos o

mesmordquo94

indicando assim que soacute alimentando

92

ldquoSicut dilexit me Pater et ego dilexi vos manete in dilectione meardquo (Ioannes 159)

93 ldquoPacem relinquo vobis pacem meam do vobisrdquo (Ioannes 1427)

94 ldquoPater sancte serva eos in nomine tuo quos dedisti mihi ut sint unum sicut et nosrdquo (Ioannes 1711)

136

sed sicuti nos inquit unum sumus qui

perfectissima et ineffabili ratione sumus

idem et illud obiter indicans hac una via

servandos esse mortales si mutuam inter

sese pacem aluerint Porro quod huius

mundi principes insigni quopiam suos

notant [280] quo possint a caeteris

dignosci praesertim in bello vide qua

tandem nota Christus insignierit suos

non alia videlicet quam mutuae caritatis

Hoc inquiens argumento cognoscent

homines vos esse meos discipulos non si

sic aut sic vestiamini non si his aut his

vescamini cibis non si tantum ieiunetis

non si tantum psalmorum exhauseritis

sed si dilexeritis invicem neque id sane

vulgari [285] modo sed quemadmodum

ego dilexi vos Innumera sunt

philosophorum praecepta varia sunt

Moysi plurima regum edicta unicum est

inquit praceptum meum ut ametis

invicem Idem orandi formam suis

praescribens nonne in ipso statim initio

mire admonet concordiae Christianae

Pater inquit noster Unius est precatio

una communis omnium est postulatio

una domus eademque [290] familia sunt

omnes ab uno patre pendent omnes Et

qui convenit eos iugibus bellis inter sese

entre si uma paz reciacuteproca eacute que os mortais

poderatildeo se salvar Da mesma forma que os

priacutencipes deste mundo assinalam seus suacuteditos

com uma marca a fim de que possam reconhececirc-

los de imediato entre os demais sobretudo na

guerra vecirc com que sinal Cristo distinguiu os

seus com o da muacutetua caridade ldquoPor este sinalrdquo

disse ldquoos homens reconheceratildeo que sois meus

disciacutepulos natildeo se vos vestirdes deste ou daquele

modo natildeo se comerdes deste ou daquele

alimento natildeo se jejuardes muito natildeo se

recitardes grande nuacutemero de salmos mas se vos

amardes uns aos outros e natildeo de uma forma

usual mas assim como eu vos ameirdquo95

Incontaacuteveis satildeo os preceitos dos filoacutesofos

numerosos satildeo os de Moiseacutes muitos os eacuteditos

dos reis mas diz ele ldquoo meu preceito eacute um soacute

amai-vos uns aos outrosrdquo96

Por isso ao ensinar a

seus disciacutepulos a foacutermula da oraccedilatildeo Cristo jaacute

natildeo quis logo de iniacutecioadvogar para a concoacuterdia

cristatilde Diz ldquoPai Nossordquo 97

A oraccedilatildeo eacute de um soacute

um uacutenico pedido comum de todos um soacute lar e

todos satildeo uma mesma famiacutelia todos dependem

de um soacute Pai Como eacute possiacutevel que em guerras

perpeacutetuas se combatam entre si Como eacute

possiacutevel que interpeles o Pai comum se

atravessas com a espada as viacutesceras do teu

irmatildeo Por que quis arraigar nas mentes dos seus

disciacutepulos sobretudo isso Com quantos

95

Cf Ioannes 1512

96 ldquoHoc est praeceptum meum ut diligatis invicem sicut dilexi vosrdquo (Ioannes 1512)

97 ldquoPater Nosterrdquo (Matheus 69)

137

conflictari Quo ore compellas

communem patrem si in fratris tui

viscera ferrum stringis Iam quoniam

unum hoc voluit altissime insidere

suorum animis quot symbolis quot

parabolis quot praeceptis concordiae

studium inculcavit Se pastorem vocat

suos oves Et obsecro quis umquam

[295] vidit oves pugnantes cum ovibus

Aut quid faciunt lupi si grex ipse semet

invicem lacerat Cum se vitis stirpem

vocat suos vero palmites quid aliud

quam expressit unanimitatem Portentum

videatur piaculis procurandum si in

eadem vite palmes cum palmite bellet et

ostentum non est si Christianus pugnet

cum Christiano Postremo si quid

omnino Christianis sacrosanctum est

[300] certe sacrosanctum esse debet ac

penitus animis illorum insidere quae

Christus extremis illis mandatis tradidit

veluti testamentum condens ac filiis ea

commendans quae cuperet illis

numquam venire in oblivionem Aut quid

aliud in his docet mandat praecipit orat

nisi mutuum inter ipsos amorem Quid

illa sacrosancti panis et calicis philotesii

communio nisi novam quamdam et

indissolubilem [305] concordiam sanxit

Caeterum quando sciebat non posse

constare pacem ubi de magistratu de

gloria de opibus de vindicta certamen

siacutembolos com quantas paraacutebolas com quantos

preceitos instruiu o amor da concoacuterdia Cristo

chama-se a si mesmo pastor e aos seus ovelhas

Ora eu pergunto algueacutem porventura jaacute viu

ovelhas lutando com ovelhas O que fariam os

lobos se o rebanho comeccedilasse a lutar entre si

Quando se chama a si mesmo a Videira e aos

seus ramos natildeo quis dizer unidade Se na

mesma videira um ramo guerreasse contra outro

ramo natildeo pareceria isso espantoso que deveria

ser conjurado com sacrifiacutecios expiatoacuterios e por

acaso natildeo se trata de um prodiacutegio que um cristatildeo

lute com cristatildeo Por fim haacute algo de mais

sagrado para os cristatildeos certamente deve ser

sagrado e penetrar no interior das almas o que

Cristo lhes transmitiu atraveacutes daqueles uacuteltimos

mandamentos como que fazendo um testamento

aquilo que recomendou como a filhos e desejou

que jamais caiacutesse no esquecimento Que outra

coisa Cristo ensina ordena preceitua e roga ao

Pai senatildeo que exista o amor muacutetuo entre os

homens Que outra coisa aquela comunhatildeo do

patildeo consagrado e do caacutelice do amor sancionou

senatildeo uma nova concoacuterdia indissoluacutevel

Ademais uma vez que sabia natildeo ser possiacutevel

contar com a paz onde haacute lutas por causa de

cargos de gloacuteria de riquezas de litiacutegios e de

processos arranca paixotildees dessa espeacutecie

completamente das almas dos seus proiacutebe que

eles sobretudo resistam ao mal ordena que eles

faccedilam o bem agravequeles que lhes fazem o mal e

ainda que desejem o bem daqueles que lhes

138

est ut penitus affectus eiusmodi revellit

ex animis suorum vetat in totum ne

malo resistant iubet ut de male

merentibus bene mereantur si possint

bene precentur male precantibus Et

Christiani sibi videntur qui ob

quantumuis levem iniuriolam [310]

magnam orbis partem in bellum

pertrahunt Praecipit ut qui in suo

populo sit princeps is ministrum agat nec

alia re praecellat aliis nisi quod melior

sit et pluribus prosit Et non pudet

quosdam ob pusillam accessiunculam

regni pomoeriis addendam tantos ciere

tumultus Docet avium et liliorum ritu in

diem vivere Vetat sollicitudinem in

posterum diem extendere vult totos e

caelo [315] pendere divites omnes

excludit a regno caelorum et non

verentur quidam ob pecuniolam non

exsolutam fortasse nec debitam tantum

humani sanguinis effundere Atque his

temporibus hae vel iustissimae

suscipiendi belli causae videntur

Profecto haud aliud agit Christus iubens

ut unum quiddam a se discant miti esse

animo minimeque feroci cum iubet

relinqui donarium ad aram nec [320]

prius offerri quam cum fratre reditum sit

desejam o mal E veem-se como cristatildeos aqueles

que por causa de uma leve injuriazinha levam agrave

guerra uma grande parte do mundo Ordena que

o priacutencipe se comporte como um servo e que em

nada supere os outros a natildeo ser por ser o melhor

e o mais uacutetil para a maioria E os priacutencipes deste

mundo por pequeninas aquisiccedilotildees territoriais ou

para acrescentar ao reino alguns pomeacuterios natildeo

se envergonham de criar tamanha turbaccedilatildeo

Ensina a viver o dia como as aves e os liacuterios

Proiacutebe-nos de preocupar-nos de forma

demasiada com o dia de amanhatilde98

quer que

todos dependamos apenas do ceacuteu exclui todos

os ricos do reino dos ceacuteus e haacute quem por uma

pequena diacutevida natildeo saldada talvez nem mesmo

devida derrame tanto sangue humano Ora

estes talvez pareccedilam hoje em dia motivos

justiacutessimos para se fazer a guerra Mas acaso

Cristo natildeo age de forma contraacuteria ordenando

que cada qual aprenda dele uma soacute coisa a ter

um espiacuterito manso nada feroz Quando ordena

que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo

seja oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com

o irmatildeo porventura natildeo ensina abertamente que

a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e

que nenhuma oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo

for recomendada por mim Deus rejeitava as

oferendas judaicas que eram bodes ou ovelhas

porque eram oferecidas por homens que viviam

98

A paz relembra o capiacutetulo sexto do Evangelho de Marcos no qual Cristo teria enviado os Doze dois a dois

ordenando-lhes que natildeo levassem coisa alguma para o caminho nem patildeo nem mochila nem dinheiro no cinto

mas somente um bordatildeo como calccedilado unicamente sandaacutelias e que se natildeo revestissem de duas tuacutenicas

139

in gratiam nonne palam docet rebus

omnibus anteponendam esse concordiam

nec ullam victimam esse deo gratam nisi

commendante me Respuebat deus

Iudaicum munus fortassis haedum aut

ovem quod a dissidentibus offerretur et

Christiani sic inter sese belligerantes

sacrosanctam illam victimam audent

offerre Iam cum se gallinae pullos sub

[325] alas aggreganti facit adsimilem

quam apto symbolo depinxit concordiam

Ille congregator est et qui convertit

Christianos esse milvios Eodem pertinet

quod lapis dictus est angularis utrumque

parietem committens et continens et qui

convenit ut huius vicarii totum orbem ad

arma commoveant regnaque regnis

committant Summum illum

conciliatorem habent principem ut

iactant et [330] nullis rationibus ipsi sibi

possunt reconciliari Conciliavit ille

Pilatum et Herodem et suos in

concordiam redigere non potest Petrum

adhuc semiiudaeum qui in praesentis

capitis discrimine dominum ac

praeceptorem tueri parabat obiurgat ipse

qui defendebatur gladiumque iubet

recondere et Christianis ob levissimas

causas numquam non expromptus

districtusque est gladius idque in [335]

em discoacuterdia e como ousam os cristatildeos que

guerreiam entre si ofertar aquele sacrifiacutecio

sagrado Quatildeo apropriada eacute a imagem com que

ele retratou a concoacuterdia ao fazer uma

comparaccedilatildeo entre si mesmo e a galinha que junta

os pintinhos sob as asas Ele eacute o congregador e

os cristatildeos seratildeo aves de rapina Pelo mesmo

motivo eacute chamado pedra angular que ao mesmo

tempo une e manteacutem duas paredes e seratildeo

aqueles que ocupam o lugar dele na terra os que

movem todo orbe agraves armas e incitam reinos

contra reinos Jactam-se de que tecircm como

Priacutencipe aquele sumo conciliador mas se

mostram incapazes de ser por ele reconciliados

Ele conciliou Pilatos e Herodes e natildeo pode

conduzir os seus agrave concoacuterdia E ainda a Pedro

(um meio judeu que diante de um perigo

mortal quis defender o seu Senhor e Mestre)

Cristo repreendeu e ordenou agravequele que o

defendia que a espada fosse guardada99

E os

cristatildeos por causa de questotildees ligeiriacutessimas tecircm

sempre a espada desembainhada e pronta contra

os proacuteprios cristatildeos Por acaso desejaria ser

defendido pela proteccedilatildeo da espada aquele que ao

morrer pediu perdatildeo pelos autores do crime

Todos os livros sagrados do cristianismo

99

Erasmo se refere ao episoacutedio no qual Pedro atacou com uma espada um dos soldados que prendiam Jesus (Cf

Matheus 2651 Marcus 1447 Lucas 2250-51 Ioannes 1810)

140

Christianos An ille se gladii praesidio

defensum velit qui moriens deprecatur

pro necis auctoribus

[337] Omnes Christianorum

litterae sive vetus legas testamentum

sive novum nihil aliud quam pacem et

unanimitatem crepant et omnis

Christianorum vita nihil aliud quam bella

tractat Quaenam est haec plusquam

ferina feritas [340] quae tot rebus nec

vinci potest nec leniri Quin potius aut

Christianorum titulo gloriari desinant aut

Christi doctrinam exprimant concordia

Quousque vita pugnabit cum nomine

Insignite quantumlibet aedes vestesque

crucis imagine non agnoscet Christus

symbolum nisi quod ipse praescripsit

videlicet concordiae Congregati vident

euntem in caelum congregati iubentur

operiri spiritum [345] caelestem Et inter

congregatos se semper versaturum

promiserat ne quis speraret usquam in

bellis adesse Christum Iam igneus ille

spiritus quid aliud est quam caritas

Nihil igne communius citra dispendium

ullum ignis igni accenditur Vis autem

cognoscere spiritum illum concordiae

parentem esse Exitum vide Erat inquit

cunctis cor unum et anima una

[350] Tolle spiritum e corpore

se lecircs o Antigo Testamento ou o Novo clamam

nada mais do que a paz e a unidade e a vida toda

dos cristatildeos nada mais eacute do que ocupar-se da

guerra Que ferocidade mais que bestial eacute esta

que nem pode ser vencida nem ser amenizada

com tatildeo grande nuacutemero de antiacutedotos Eacute melhor

que optem ou desistem de se gloriar do tiacutetulo de

cristatildeos ou imitam vivendo em concoacuterdia a

doutrina de Cristo Ateacute quando a vida contradiraacute

o nome Ainda que ornamenteis e assinaleis com

a imagem da cruz os templos e as vestes Cristo

natildeo reconheceraacute como seu sinal senatildeo aquele

que ele mesmo prescreveu ou seja o sinal da

concoacuterdia Congregados viram-no subir ao Ceacuteu

congregados foram chamados a receber o

Espiacuterito Santo E havia prometido que sempre

haveria de encontrar-se no meio daqueles que

estivessem congregados para ningueacutem esperar

que Cristo esteja presente nas guerras Jaacute aquele

espiacuterito iacutegneo que outra coisa eacute senatildeo amor

Nada eacute mais comum do que o fogo pois sem

demora fogo eacute aceso pelo fogo Queres saber

como aquele espiacuterito gerava a concoacuterdia Vecirc o

resultado Ele diz ldquoeram todos um soacute coraccedilatildeo e

uma soacute almardquo 100

Tira o espiacuterito do corpo e imediatamente

dissolve-se toda aquela ligaccedilatildeo dos membros

Tira a paz e pereceraacute toda a sociedade cristatilde Os

teoacutelogos afirmam que hoje o Espiacuterito Celeste se

100

ldquoMultitudinis autem credentium erat cor et anima unardquo (Acta Apostolorum 4 32)

141

continuo dilabitur omnis illa membrorum

compago tolle pacem et perit omnis

Christianae vitae societas Tot hodie

sacramentis infundi caelestem spiritum

affirmant theologi Si verum praedicant

ubi peculiaris spiritus illius effectus cor

unum et anima una Sin fabulae sunt cur

tantam honoris hisce rebus defertur

Atque haec sane dixerim quo magis

Christianos [355] suorum morum pudeat

non quo sacramentis aliquid detraham

Nam quod populum Christianum

ecclesiam vocari placuit quid aliud quam

unanimitatis admonet Qui convenit

castris et ecclesiae Haec aggregationem

sonat illa dissidium Si pars Ecclesiae

gloriaris esse quid tibi cum bellis Si ab

Ecclesia semotus es quid tibi cum

Christo Si eadem omnes habet domus si

communem [360] habetis principem si

eidem militatis omneis (sic) si

sacramentis iisdem estis initiati si iisdem

gaudetis donativis si iisdem alimini

stipendiis si commune petitur praemium

quid ita inter vos tumultuamini Videmus

inter impios istos commilitones qui

mercede ad caedis peragendae

ministerium conducti veniunt tantam esse

concordiam non ob aliud nisi quod sub

iisdem militant signis et [365] pietatem

profitentes tot res non conglutinant Itane

nihil agitur tot sacramentis Baptismus

infunde em noacutes por um grande nuacutemero de

sacramentos Se de fato pregam a verdade onde

estaacute o efeito particular daquele espiacuterito a saber

um soacute coraccedilatildeo e uma soacute alma Se os

sacramentos natildeo passam de faacutebulas por que se

lhes confere tanta honra Se o disse assim dessa

maneira natildeo foi para depreciar em coisa alguma

os sacramentos mas a fim de que os cristatildeos

mais possam envergonhar-se de seus maus

costumes Aquilo que o povo cristatildeo agradou-se

em chamar Igreja natildeo foi para aconselhar a

unidade Como conciliar exeacutercito e Igreja Esta

soa uniatildeo aquele divisatildeo se te glorias de ser

parte da Igreja que tens tu a ver com as guerras

Se te afastaste da Igreja que tens tu com Cristo

Se todos possuiacutes o mesmo lar se tendes um

Priacutencipe comum se militais todos sob o mesmo

estandarte se fostes iniciados nos mesmos

sacramentos se vos alegrais com os mesmos

dons se sois alimentados graccedilas aos mesmos

recursos se buscais o mesmo precircmio por que

vos enfrentais assim entre voacutes Vemos enorme

concoacuterdia entre os iacutempios mercenaacuterios que satildeo

levados pela esperanccedila de precircmio ao serviccedilo de

perpetrar assassinatos isso ocorre natildeo por outra

coisa senatildeo porque lutam sob os mesmos

estandartes por que entatildeo tatildeo grande nuacutemero

de benefiacutecios natildeo une aqueles que professam a

piedade Seratildeo tatildeo ineficazes tantos

sacramentos O batismo comum a todos atraveacutes

do qual renascemos com Cristo e libertados do

mundo somos inseridos como membros de

142

communis omnium per hunc Christo

renascimur et exsecti mundo Christi

membris inserimur Quid autem tam idem

esse potest quam eiusdem corporis

membra Ab hoc igitur neque servus est

quisquam neque liber neque barbarus

neque Graecus neque vir neque foemina

sed omnes idem in Christo [370] sunt qui

omnia redigit in concordiam

[371] Scythas ita iungit paululum

sanguinis utrimque gustati e calice ut pro

amico nihil cunctentur et mortem

oppetere Ethnicis etiam sancta est

amicitia quam mensa communis

conciliavit et Christianos caelestis ille

panis ac mysticus ille calix non continet

in amicitia quam ipse sanxit Christus

quam illi quotidie [375] renovant ac

repraesentant sacrificiis Si nihil illic egit

Christus quorsum opus hodie tot

cerimoniis Si rem seriam egit cur sic a

vobis negligitur quasi rem ludicram ac

scenicam egerit Audet quisquam ad

sacram illam mensam amicitiae

symbolum audet ad pacis convivium

accedere qui bellum destinat in

Christianos et eos parat perdere pro

quibus servandis mortuus est Christus

Cristo Ora que comunhatildeo maior pode haver que

a dos membros do mesmo corpo A partir daiacute

natildeo haacute mais servos e homens livres baacuterbaros e

gregos homens e mulheres mas todos satildeo o

mesmo em Cristo 101

que tudo conduziu agrave

concoacuterdia102

Um pouco de sangue bebido de um

mesmo caacutelice une de tal modo os citas que pelo

amigo natildeo vacilam perante nenhum sacrifiacutecio

ainda enfrentar a morte 103

tambeacutem entre os

pagatildeos existe uma amizade sagrada que nasceu

de uma mesa em comum e aquele patildeo do ceacuteu

aquele caacutelice consagrado que o proacuteprio Cristo

santificou e que eles mesmos renovam

diariamente nas missas natildeo mantecircm na amizade

os cristatildeos Se Cristo natildeo tinha nenhuma

intenccedilatildeo com isso para que servem hoje em dia

tantas cerimocircnias Mas se tinha uma finalidade

seacuteria por que voacutes o negligenciais tanto como se

fosse uma brincadeira e uma encenaccedilatildeo Algueacutem

ousa aproximar-se daquela mesa sagrada

siacutembolo da amizade ousa aceder ao banquete da

paz quem trama a guerra contra cristatildeos e

prepara para destruir aqueles que Cristo morreu

para salvar e se apressa a beber o sangue

daqueles em favor dos quais o Cristo derramou o

seu sangue Oacute coraccedilotildees mais duros que

diamantes Haacute harmonia em negoacutecios tatildeo

101

ldquonon est Iudaeus neque Graecus non est servus neque liber non est masculus et femina omnes enim vos

unus estis in Christo Iesurdquo (Ad Galatas 328)

102 ldquoInstaurare omnia in Christordquo (Ad Ephesios 110)

103 Cf Isoacutecrates Panegiacuterico 21 ll 12-16 Erasmo compocircs o adaacutegio 2494 ldquoScytharum solitudordquo (LB II 849 B-

C) Na epiacutestola 809 (5 de abril de 1518) mencionou a solitudo Scytha

143

[380] eorum haurire sanguinem pro

quibus suum sanguinem fudit Christus O

pectora plus quam adamantina in rebus

tam multis consortium est et in vita tam

inexplicabile dissidium Eadem nascendi

lex omnibus eadem senescendi

moriendique necessitas Eumdem generis

Principem habent omnes eumdem

religionis auctorem eodem omnes

redempti sanguine iisdem omnes initiati

sacris iisdem [385] aluntur sacramentis

Quicquid ex his redit muneris ab eodem

proficiscitur fonte et ex aequo commune

est omnibus Eadem omnium Ecclesia

denique praemium idem omnium Quin

caelestis illa Hierusalem ad quam

suspirant vere Christiani a pacis visione

nomen habet cuius interim ecclesia

typum sustinet Et qui fit ut haec

tantopere discrepet ab exemplari Adeo

nihil promovit tot [390] viis solers natura

nihil ipse Christus perfecit tot praeceptis

tot mysteriis tot symbolis Vel ipsa mala

conciliant et malos iuxta proverbium

Christianos inter se nec bona nec mala

ulla conciliant Quid humana vita

fragilius quid brevius Quot ea morbis

quot casibus obnoxia Et tamen cum plus

habeat ex sese malorum quam ut ferri

variados e na vida uma tatildeo inexplicaacutevel divisatildeo

Se a lei de nascer eacute a mesma para todos eacute a

mesma para todos a necessidade de envelhecer e

morrer Todos tecircm o mesmo antepassado da

espeacutecie todos tecircm o mesmo mestre de religiatildeo

todos foram redimidos com o mesmo sangue

todos foram iniciados nos mesmos ritos todos

satildeo alimentados com os mesmos sacramentos e

quaisquer que sejam os benefiacutecios que destes

procedem satildeo obtidos da mesma fonte e por

direito satildeo comuns a todos Todos tecircm a mesma

Igreja e no fim o precircmio seraacute igual para todos

Mais ainda aquela Jerusaleacutem Celeste pela qual

os cristatildeos verdadeiros suspiram possui o nome

de ldquovisatildeo da pazrdquo e durante esta vida terrena a

Igreja se apresenta como uma figura sua O que

se passou para que esta se discrepe de tal

maneira do modelo Ateacute que ponto eles nada

conseguem nem a natureza tatildeo industriosa por

tantos caminhos nem o poacuteprio Cristo com tantos

preceitos tantos misteacuterios tantos siacutembolos

Segundo o proveacuterbio ateacute as maldades unem os

maus 104

soacute para os cristatildeos eacute que natildeo haacute coisas

boas nem maacutes capazes de uni-los uns aos outros

O que pode haver de mais fraacutegil do que a vida

humana O que haacute de mais breve A quantas

doenccedilas e acidentes fatais se expotildee E no

entanto ainda que por sua natureza jaacute tenha

uma cota de males mais pesada do que se pode

104

O proveacuterbio citado por Erasmo seria de sua proacutepria autoria conciliant homines mala (Erasmo Adagia 1071)

mas tem origem aristoteacutelica ldquoo criminoso se une ao criminoso por prazerrdquo (Aristoacuteteles Retoacuterica I e Eacutetica a

Eudemo 1238a e 1239b)

144

possit tamen maximam malorum partem

ipsi sibi accersunt [395] dementes Tanta

caecitas humanos animos occupat ut

nihil horum perspiciant sic praecipites

aguntur ut omnia naturae Christique

vincula omnia foedera rumpant

dissecent diffringant Pugnant passim

atque assidue nec modus nec finis

Colliditur gens cum gente civitas cum

civitate factio cum factione princeps

cum principe et ob duorum

homuncionum qui mox velut ephemera

sint [400] interituri seu stulticiam seu

ambitionem res humanae sursum

deorsum miscentur

[402] Missas faciam veterum

bellorum tragoedias Repetamus decem

ab hinc annis acta ubi non gentium

crudelissime pugnatum est terra marique

Quae regio non Christiano sanguine

commaduit Quod flumen quod mare

non humano [405] cruore tinctum est

Et o pudor pugnant immanius quam

Iudaei quam ethnici quam ferae

Quicquid bellorum Iudaeis gestum est

suportar mesmo assim os homens dementes

produzem para si mesmos a maior parte dos

males A cegueira das mentes humanas eacute tatildeo

grande que natildeo percebem nada Agem de modo

tatildeo precipitado que rompem rasgam e infrinjem

todos os viacutenculos da natureza e de Cristo

esquecendo todas as alianccedilas Combatem

assiduamente e em toda parte a ponto de

tumultuar sem medida nem fim Um povo

combate outro povo uma cidade com outra

cidade uma facccedilatildeo com outra facccedilatildeo um

priacutencipe com outro priacutencipe e por causa da

burrice ou da ambiccedilatildeo de dois homenzinhos que

hatildeo de perecer como coisas efecircmeras

subvertem-se de cima a baixo as coisas humanas

Natildeo contarei as trageacutedias das guerras

antigas Contemos somente as dos uacuteltimos dez

anos105

Onde natildeo encontraremos a crudeliacutessima

luta das naccedilotildees por terra e mar Que regiatildeo natildeo

derramou sangue cristatildeo Que rio e que mar natildeo

estatildeo tingidos com sangue humano106

Oacute

vergonha lutam de modo mais feroz do que os

judeus do que os pagatildeos e do que as feras

Todas as guerras que os judeus moveram contra

os estrangeiros (ἀλλόθσλος) os cristatildeos

deveriam direcionar contra os viacutecios mas com

estes os homens encontram-se de bem eacute contra

os homens que se faz a guerra Os judeus

poreacutem se faziam guerra era porque uma ordem

105

Erasmo poderia estar se referindo agrave guerra franco-espanhola A batalha de Cerignoles e a de Garigliano por

exemplo datam respectivamente de 2804 e 2712 de 1503

106 Herding (1978 p 79 nota 404) percebe a recepccedilatildeo de Horaacutecio (Carm II I 29-36)

145

adversus Allophylos (ἀλλόθσλος) id

Christianis gerendum adversus vitia

quibus nunc cum vitiis convenit cum

hominibus bellum est Et tamen Iudaeos

divina iussio ducebat ad pugnam

Christianos si praetextibus detractis rem

vere aestimes transversos rapit ambitio

agit ira [410] pessimus consultor

pertrahit habendi numquam satiata

cupiditas Atque his fere cum exteris res

erat Christianis cum Turcis foedus est

inter ipsos bellum Iam ethnicos tyrannos

fere gloriae sitis ad bellum exstimulabat

atque hi tamen sic barbaras atque efferas

nationes subigebant ut vinci expediret et

victor de victis bene mereri studeret

Dabant operam ut quam fieri posset

incruenta esset victoria [415] quo simul

et victori honesta fama praemium esset et

victis solatium victoris benignitas

[417] At pudet meminisse quam

pudendis quam frivolis de causis

Christiani Principes orbem ad arma

concitent Hic obsoletum ac putrem

aliquem titulum aut reperit aut

commentus est quasi vero ita magni

referat quis regnum administret [420]

modo publicis commodis reste

consulatur Ille causatur omissum nescio

divina os levava agrave batalha Os cristatildeos se

deixarmos de lado os pretextos e pensarmos as

coisas com retidatildeo a ambiccedilatildeo eacute que os empurra

para o mal a ira o pior dos conselheiros age

arrasta-os o desejo insaciaacutevel de possuir No

mais aqueles em geral tinham litiacutegios com os

estrangeiros enquanto que os cristatildeos fazem

alianccedila com os turcos e guerra entre eles

mesmos Jaacute os tiranos pagatildeos sede de gloacuteria era

o que em geral os estimulava agrave guerra e seja

como for subjugavam assim naccedilotildees baacuterbaras e

selvagens de tal forma que ser vencido era

proveitoso e o vencedor esforccedilava-se para cuidar

bem dos vencidos107

Tomavam providecircncias

para que a vitoacuteria fosse o menos cruenta

possiacutevel de forma que a fama honrada fosse o

precircmio para o vencedor e a benignidade do

vencedor consolo dos vencidos

Mas envergonha lembrar quatildeo

vergonhosos e quatildeo friacutevolos satildeo os motivos

pelos quais os priacutencipes cristatildeos levam o mundo

agraves armas108

Este ou encontra ou inventa algum

tiacutetulo qualquer obsoleto ou esquecido como se

realmente importasse muito quem eacute que

administra o reino desde que vele inteiramente

pelos interesses puacuteblicos Aquele alega natildeo sei

que claacuteusula foi omitida em um contrato de cem

107

Segundo Margolin (1992 p 931) Erasmo se refere a um tratado de paz entre o sultatildeo e Veneza datado de

1503 renovado em 1514 e em setembro de 1517

108 Cf Horaacutecio Carm I 35 15

146

quid in foedere centum capitum Hic illi

privatim infensus est ob sponsam

interceptam aut scomma liberius dictum

Et quod est omnium sceleratissimum

sunt qui tyrannica arte quod populi

concordia potestatem suam labefactari

sentiant dissidio stabiliri subornent qui

data opera bellum excitent quo simul et

coniunctos dirimant et infelicem populum

licentius expilent scelestissimi quidam

qui populi malis aluntur et quibus pacis

tempore non multum est quod agant in

republica Quae tartarea furia venenum

hoc in pectus Christianum potuit

immittere Quis hanc tyrannidem docuit

Christicolas quam nec Dionysius ullus

nec Mezentius ullus novit Belluae verius

quam homines et sola tyrannide nobiles

[430] nec usquam cordati nisi ad

nocendum nec umquam concordes nisi

ad opprimendam rempublicam Et haec

qui gerunt pro Christianis habentur

audent humano sanguine undique polluti

ad sacras aedes ad sacras aras accedere

O pestes in extremas insulas deportandas

capiacutetulos Este eacute inimigo pessoal daquele por

causa de uma esposa que natildeo lhe foi entregue ou

por algum sarcasmo mais licencioso E o que eacute

mais criminoso de tudo eacute que haacute aqueles que por

meio de uma artimanha tiracircnica porque os povos

em concoacuterdia arruinam sua autoridade enquanto

que as divisotildees a solidificam subornam outros

para que excitem a guerra a fim de que ao

mesmo tempo e em acordo muacutetuo possam

desunir e pilhar mais livremente o povo infeliz

Isso eacute o que procuram os priacutencipes mais

criminosos que se alimentam com males do

povo e que em tempo de paz natildeo haacute muito que

faccedilam por suas repuacuteblicas Que fuacuteria infernal foi

capaz de infundir este veneno nos peitos

cristatildeos Quem ensinou aos seguidores de Cristo

essa tirania que nem Dioniacutesio109

nem

Mezecircncio110

conheceram jamais Satildeo

verdadeiramente mais feras do que homens

nobres somente pela tirania sagazes apenas para

matar e concordes apenas para oprimir a

repuacuteblica E os dessa laia satildeo tidos por cristatildeos e

contaminados por sangue humano ousam

aproximar-se dos edifiacutecios e altares sagrados Oacute

flagelos Que sejam deportados para as ilhas

109

Erasmo natildeo se refere ao Deus do Vinho mas aos reis de Siracusa Dioniacutesio I o Antigo (430-367 a C)

tirano de Siracusa por trinta e oito anos ateacute a sua morte Segundo Deodoro Siacuteculo (90-30 a C) Dioniacutesio era de

origem humilde mas tomou conta do poder por ocasiatildeo da guerra de Cartago em 405 a C Apoacutes lutas e alianccedilas

militares foi derrotado pelos cartagineses em 383 a C (Cf Diodoro Siacuteculo Histoacuteria XIII 96 4)

110 Mezecircncio foi um rei de origem etrusca que governou a cidade de Cere Destacado personagem da Eneida de

Virgiacutelio (70-19 a C) toma parte da guerra contra os troianos Virgiacutelio em discordacircncia com os autores mais

antigos transmitiu a figura de Mezecircncio como um terriacutevel tirano Narra que entre outras torturas hediondas

Mezecircncio permitia que seus prisioneiros fossem amarrados face a face com outros criminosos vivos ou mortos

os quais teriam cometido tantos excessos que os proacuteprios habitantes de Cere o expulsaram (Virgiacutelio Eneida XI

7-16) Catatildeo registrou a prepotecircncia do tirano Mezecircncio ao exigir para si as primiacutecias do vinho destinadas a

Juacutepiter(Origines I 12)

147

Si Christiani corporis unius membra sunt

cur non gratulatur quisque alienae

felicitati Nunc prope iusta movendi

[435] belli causa videtur regnum

finitimum rebus omnibus paulo

florentius

[436] Etenim si verum fateri

volumus quid aliud commovit et hodie

commovet tam multos ad armis

lacessendum Franciae regnum nisi quod

est unum omnium florentissimum

Nullum latius patet nusquam senatus

augustior nusquam academia celebrior

nusquam concordia maior et ob hoc

ipsum potestas summa

[440] Nusquam aeque florent

leges nusquam illibatior religio nec

Iudaeorum commercio corrupta velut

apud Italos nec Turcarum aut

Maranorum vicinia infecta

quemadmodum apud Hispanos et

Hungaros Germania ne quid dicam de

Bohoemis in tot regulos dissecta est ac

regni ne species quidem ulla Sola

Francia ceu flos illibatus Christianae

ditionis et velut arx quaedam tutissima si

qua fors [445] tempestas ingruat tot

modis impetitur tot artibus incessitur

nec ob aliud nisi cuius gratia conveniebat

gratulari si qua vena Christianae mentis

mais remotas Se satildeo membros de um soacute corpo

cristatildeo por que cada um natildeo se congratula com a

felicidade alheia Hoje em dia quase parece que

eacute uma justa causa para mover a guerra que o

reino vizinho seja um pouco mais florescente em

todas os aspectos

E de fato se queremos reconhecer a

verdade que outra coisa impeliu e impele hoje

em dia tantos povos agraves armas contra o Reino da

Franccedila senatildeo o fato de este ser o mais proacutespero

de todos Nenhum eacute tatildeo grande em nenhum

lugar o senado eacute mais respeitaacutevel em nenhum

lugar a universidade eacute mais ceacutelebre em nenhum

paiacutes a concoacuterdia eacute maior e por isso mesmo o

poder tatildeo supremo111

Em nenhum lugar as leis florescem como

ali em nenhum lugar a religiatildeo eacute mais pura jaacute

que natildeo estaacute corrompida pelo comeacutercio com os

judeus como entre os italianos nem as fronteiras

estatildeo repletas de turcos e marranos como entre

os espanhoacuteis e os huacutengaros A Alemanha para

natildeo mencionar os Boecircmios foi dividida em

pedaccedilos por tantos reizinhos e natildeo tem sequer a

aparecircncia de um reino Soacute a Franccedila eacute como uma

flor intacta da cristandade como sua mais segura

cidadela mas se por acaso surge alguma

tempestade ela eacute de tantos modos atacada eacute

combatida com tantas artes pelo uacutenico motivo

pelo qual deveria ser celebrada se nos seus

inimigos houvesse um pouco de espiacuterito cristatildeo

111

Segundo Margolin (1992 p 933) ldquoErasmo idealiza a ambiccedilatildeo do imperialismo francecircs por motivaccedilotildees de

ordem poliacutetica sobretudo pela francofilia da poliacutetica borgonhesardquo

148

esset in istis Atque his tam impiis factis

praetexitur titulus pius sic sternunt viam

ad propagandum imperium Christi O

rem monstrosam parum consultum

putant reipublicae Christianae nisi

pulcerrimam ac felicissimam ditionis

christianae partem [450] subverterint

[451] Quid quod in his tractandis

feras etiam ipsas feritate praecedunt Non

omnes pugnant belluae nec ferarum nisi

in diversum genus conflictatio est

quemadmodum et ante diximus saepius

inculcandum quo magis inhaereat

animis Vipera non mordet viperam nec

lynx lyncem discerpit Ac rursum illae

cum [455] pugnant suis pugnant armis

Illas armavit natura Homines inermes

natos o Deum immortalem qualibus

armis armat ira Tartareis machinis

impetunt Christiani Christianos Quis

enim credat bombardas hominis

inventum esse Nec ille tam densis

agminibus in mutuum exitium ruunt

Quis unquam vidit decem leones cum

decem tauris congredi At quoties viginti

millia Christianorum cum [460] totidem

Christianis ferro decertant Tanti est

laedere tanti est haurire sanguinem

fratrum Nec illis fere bellum est nisi

cum fames aut cura sobolis in rabiem

agit At Christianis quae tam levis iniuria

est ut non videatur idonea bellandi

E estes atos tatildeo perversos satildeo justificados por

alegaccedilotildees tatildeo pias Eacute assim que se abre o

caminho para propagar o impeacuterio de Cristo Oacute

ato monstruoso Acham que cuidam pouco dos

interesses da repuacuteblica cristatilde a natildeo ser que

ponham a perder a parte mais bela e mais feacutertil

da cristandade

Que nos resta dizer senatildeo que os homens

com esses seus empreendimentos superam em

selvageria as proacuteprias feras Nem todos os

animais selvagens satildeo agressivos e aqueles que

satildeo ferozes o satildeo apenas contra espeacutecies

diferentes como jaacute dissemos anteriormente e

conveacutem repetir vaacuterias vezes para inculcaacute-lo e

fixaacute-lo nas mentes A viacutebora natildeo morde a viacutebora

e lince natildeo devora o lince E repito quando

lutam lutam com as suas armas aquelas com

que a natureza os armou mas aos homens que

nasceram desarmados oacute Deus imortal com que

armas a ira os arma Cristatildeos atacam cristatildeos

com maacutequinas infernais Quem acreditaria que o

canhatildeo eacute uma invenccedilatildeo do homem Tampouco

aquelas buscando destruiccedilatildeo muacutetua se atiram

umas contra as outras em fileiras cerradas Ou

algueacutem jaacute viu dez leotildees formados em pelotatildeo

contra dez touros Mas quantas vezes vinte mil

cristatildeos desembainharam a espada contra outros

tantos cristatildeos Tatildeo importante eacute ferir e derramar

o sangue dos irmatildeos E mais as feras impelem

ao furor a natildeo ser quando haacute fome ou por

cuidado da prole Para os cristatildeos contudo

quase natildeo existe uma injuacuteria por mais leve que

149

occasio Si faceret ista plebes utcumque

praetexi poterat inscitia si iuvenes

excusari poterat aetatis imperitia si

prophani nonnihil elevaret atrocitatem

facti [465] personae qualitas Nunc ab iis

potissimum videmus oriri bellorum

semina quorum consilio moderationeque

populi motus componi conveniebat

Contentum illud et ignobile vulgus condit

egregias urbes conditas civiliter

administrat administrando locupletat In

has irrepunt satrapae et ceu fuci quod

aliena partum est industria surripiunt et

quod a plurimis bene congestum est a

paucis [470] male dissipatur quod recte

conditum crudelissime diruitur Quod si

prisca non meminerunt repetat qui volet

secum hisce duodecim annis gesta bella

Causas expendat comperiet omnia

principum gratia suscepta magno populi

malo gesta cum ne tantillum quidem ad

populum attineret

[474] Iam quod olim foedum

habebatur apud ethnicos caniciem galea

premere ut [475] inquit ille id apud

Christianos laudi ducitur Turpe senex

seja que natildeo lhes pareccedila ocasiatildeo para guerrear

Se fosse a plebe a fazer isso poder-se-ia de uma

forma ou de outra pretender ignoracircncia Se os

jovens podia excusaacute-los a imperiacutecia da idade Se

os leigos a condiccedilatildeo da pessoa em certa medida

relevaria a atrocidade do feito Mas hoje vemos

que as sementes da guerra satildeo lanccediladas

exatamente por aqueles cujo conselho e

moderaccedilatildeo conviria que as agitaccedilotildees fossem

contidas Aquele vulgo ignoacutebil desprezado e

sem nobreza edifica cidades egreacutegias uma vez

edificadas administra-as civilizadamente e ao

administraacute-las as enriquece Irrompem nelas os

saacutetrapas e como se fossem zangotildees roubam o

que eacute produto do trabalho alheio e o que foi

poupado por muitos eacute dissipado por poucos e o

que havia sido construiacutedo retamente eacute destruiacutedo

com crueldade A esse respeito se natildeo haacute

recordaccedilatildeo dos tempos antigos que aquele que o

desejar repasse consigo mesmo a memoacuteria das

guerras feitas nos uacuteltimos dozes anos pondere

suas causas e descobriraacute que todas se deram por

culpa dos priacutencipes realizadas para grande

prejuiacutezo do povo uma vez que suas motivaccedilotildees

nem um tantinho sequer se aproveitassem ao

povo

Ateacute aquilo que outrora era consenso entre

os pagatildeos de que natildeo se devia cobrir os cabelos

brancos com um elmo como diz o poeta112

esse

costume hoje entre os cristatildeos tornou-se motivo

112

Cf Virgiacutelio Aeneida IX 612 Oviacutedio Trist IV 1 74

150

miles Nasoni et istis magnifica res est

bellator septuagenarius Imo ne

sacerdotes quidem ipsos pudet quos olim

deus nec in sanguinaria illa et inclementi

lege Moysi voluit ullo sanguine pollui

non pudet theologos Christianae vitae

magistros non pudet absolutae religionis

professores non pudet episcopos non

pudet cardinales et [480] Christi vicarios

eius rei auctores ac faces esse quam

Christus tantopere detestatus est Qui

convenit mitrae et galeae Quid pedo

cum gladio Quid evangelico codici cum

clypeo Qui convenit pacis omine

salutare populum et orbem ad

turbulentissimas pugnas concitare pacem

dare lingua re bellum immittere Tun

eodem ore quo Christum pacificum

praedicas bellum laudas eademque

[485] tuba Deum canis et Satanam Tun

apud concionem sacram cuculla tectus ad

caedem incitas simplicem populum qui

ex ore tuo doctrinam exspectabat

evangelicam Tun apostolorum occupans

locum pugnantia doces cum apostolorum

praeceptis An non vereris ne quod de

Christi praeconibus dictum est Quam

speciosi pedes nunciantium pacem

nunciantium bona nunciantium salutem

in diversum [490] vertatur Quam foeda

lingua sacerdotum adhortantium ad

de louvor Para Nasatildeo

eacute coisa infame um

soldado velho enquanto para estes ser um

guerreiro septuagenaacuterio eacute algo magniacutefico

Ademais nem os proacuteprios sacerdotes se

envergonham justamente eles aos quais outrora

Deus natildeo permitiu nenhuma contaminaccedilatildeo pelo

sangue nem naquela sanguinaacuteria e inclemente

lei de Moiseacutes113

natildeo se envergonham os

teoacutelogos mestres da vida cristatilde natildeo se

envergonham os professores de uma religiatildeo

perfeita natildeo se envergonham os bispos natildeo se

envergonham os cardeais e os vigaacuterios de Cristo

de serem os autores e incitadores de algo que

Cristo detestou tanto Que relaccedilatildeo existe entre a

mitra e o elmo Entre a docecircncia e a espada

Entre Evangelho e o escudo Que relaccedilatildeo haacute

entre saudar o povo com o sinal da paz e incitar

o mundo a lutas turbulentiacutessimas Desejar a paz

com a liacutengua mas na realidade provocar a

guerra Eacute possiacutevel que pregues o Cristo paciacutefico

com a mesma boca com que louvas a guerra e

que cantes Deus e Satanaacutes com o mesmo

instrumento Eacute possiacutevel que coberto com o

capuz do haacutebito incites no sagrado puacutelpito o

povo simples que esperava da tua boca a

doutrina evangeacutelica ao assassinato Eacute possiacutevel

que tu ocupando o lugar dos Apoacutestolos ensines

a violecircncia em contradiccedilatildeo com os preceitos dos

Apoacutestolos Acaso natildeo temes aquilo que eacute dito

sobre os arautos de Cristo ldquocomo satildeo belos os

peacutes dos que anunciam a paz dos que anunciam o

113

Erasmo provavelmente se refere agraves leis do Pentateuco que se assemelham agrave Lei de Taliatildeo

151

bellum incitantium ad mala

provocantium ad perniciem Apud

Romanos adhuc impie pios qui

pontificium maximum iniret ex more

confirmabat iureiurando se manus ab

omni sanguine puras servaturum adeo ut

ne laesus quidam ulcisceretur Atque

huius sacramenti fidem constanter

praestitit Titus Vespasianus imperator

ethnicus [495] idque laudi datur a

scriptore ethnico At o prorsus sublatam

e rebus humanis frontem apud

Christianos Deo dicati Sacerdotes et qui

his quoque sanctius aliquid prae se ferunt

monachi ad caedes ad strages

inflammant et Evangelii tubam Martis

tubam faciunt obliti dignitatis suae

sursum ac deorsum cursitant nihil non

tum faciunt tum patiuntur dum bellum

excitent et per hos Principes [500]

alioqui fortassis quieturi ad pugnam

inflammantur quorum auctoritate

tumultuantes sedari conveniebat Imo

quod est prodigiosius belligerantur ipsi

idque earum rerum gratia quas et apud

impios contempsere philosophi

bem dos que anunciam a salvaccedilatildeordquo 114

se mude

em seu contraacuterio ldquocomo eacute destestaacutevel a liacutengua

dos sacerdotes que exortam agrave guerra que incitam

ao mal que provocam a agressatildeordquo Entre os

romanos ateacute entatildeo impiamente pios aquele que

tomava posse como pontiacutefice maacuteximo era

obrigado por juramento a conservar suas matildeos

limpas de todo sangue de tal forma que mesmo

que fosse ferido por algueacutem natildeo se vingaria

Tito Vespasiano115

imperador pagatildeo manteve a

fidelidade a este sacramento com zelo fiel e por

isso foi louvado por um escritor pagatildeo116

Entre

os cristatildeos poreacutem oacute vergonha inteiramente

removida das accedilotildees humanas Os sacerdotes

cristatildeos consagrados a Deus e os monges que

se gabam de superar aqueles em santidade

inflamam os acircnimos dos priacutencipes e da plebe aos

assassinatos e ao massacre Transformam o

clarim do Evangelho em trombeta de Marte e

esquecidos de sua dignidade correm para cima e

para baixo tudo fazendo e tudo suportando ateacute

que consigam incitar agrave guerra e por causa desses

priacutencipes que satildeo inflamados agrave luta sem sua

intervenccedilatildeo talvez se inclinassem para a paz

precisamente deles a quem convinha acalmar

com sua autoridade E ateacute o que eacute ainda mais

114

ldquoQuam pulchri super montes pedes annuntiantis praedicantis pacem annuntiantis bonum praedicantis

salutemrdquo (Isaiah 521)

115 Tito Vespasiano imperador romano entre 79 e 81 d C fez um juramento de guardar suas matildeos puras da

efusatildeo de sangue humano Com a pacificaccedilatildeo das revoltas judaicas culminada com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem

(70 d C) obteve durante seu governo grande popularidade ao assumir o Impeacuterio a ponto de ser louvado pelo

historiador Suetocircnio e outros historiadores contemporacircneos especialmente pela benignidade para com as viacutetimas

da erupccedilatildeo do Vesuacutevio em 79 d C e o incecircndio de Roma em 80 d C

116 Erasmo se refere agraves palavras de Suetocircnio (As vidas dos doze ceacutesares Vida de Tito 91)

152

quarumque contemptus proprius ac

peculiaris est viris apostolicis

[504] Ante paucos annos cum

fatali quodam morbo mundus ad arma

raperetur [505] evangelici praecones

hoc est Minores ac Praedicatores e

suggesto sacro classicum canebant et

ultro ad furiam propensos magis

accendebant Apud Britannos animabant

in Gallos apud Gallos animabant in

Britannos omnes ad bellum instigabant

Ad pacem nemo provocabat praeter unum

aut alterum quibus pene capitale fuit me

vel nominasse Cursitabant ultro citroque

sacrosancti praesules [510] et dignitatis et

professionis suae obliti publicum orbis

morbum opera sua exacerbantes tum hinc

Iulium pontificem Romanum hinc Reges

ad maturandum bellum instigantes

perinde quasi non satis ipsi sua sponte

insanirent et tamen hanc manifestariam

insaniam magnificis titulis praeteximus

Huc patrum leges huc piorum hominum

scripta huc arcanae scripturae verba

prodigioso eles mesmos guerreiam por causa de

coisas que ateacute entre pagatildeos os filoacutesofos votaram

ao desprezo os quais devem ser objeto do

desprezo mais rpoacuterpio e peculiar dos varotildees

apostoacutelicos

Haacute alguns anos quando certa febre fatal

fez com que o mundo inteiro acorresse agraves armas

os pregadores evangeacutelicos isto eacute alguns

minoritas e dominicanos cantavam o claacutessico

toque de guerra do alto do puacutelpito sagrado117

e

acendiam ainda mais aqueles jaacute propensos agrave

fuacuteria Entre os ingleses inflamavam contra os

franceses entre os franceses inflamavam contra

os ingleses Instigavam todos agrave guerra Agrave paz

ningueacutem incitava a natildeo ser um ou outro que

pouco faltou para que fossem condenados agrave pena

capital por terem mencionado meu nome Os

santiacutessimos prelados corriam de um lado para o

outro e esquecidos de sua dignidade e de sua

profissatildeo exarcebavam com seus atos a miseacuteria

do mundo instigando ora de um lado o proacuteprio

Juacutelio 118

Pontiacutefice Romano ora do outro esses

tantos reis a preparar a guerra como se eles por

si mesmos e por sua proacutepria vontade jaacute natildeo

estivessem suficientemente loucos Mas

adornamos esta loucura manifesta com tiacutetulos

pomposos Com essa finalidade deturpamos de

117

Suggestus sacro era um lugar alto ou tribuna no qual os oradores romanos falavam ao povo Cf Erasmo

Dulce bellum LB II 956 F

118 O papa Juacutelio II (1443- 1513) foi conhecido como Il Papa Terribile ou Il Papa Guerriero Chamava-

se Giuliano della Rovere e foi Papa entre 1503 e 1513 Seu papado foi marcado por atividades poliacuteticas projetos

arquitetocircnicos e cultivo das artes Entre 1509 e 1513 inclsuive com a convocaccedilatildeo de um conciacutelio em Latratildeo deu

apoio agrave Liga Santa ou Liga de Cambrai com Luiacutes XII da Franccedila Maximiliano I Imperador Alematildeo Fernando II

Rei de Aragatildeo e Henrique VIII da Inglaterra contra a Repuacuteblica de Veneza a fim de conquistar a Romagna

153

impudentissime [515] detorquemus ne

dicam impie Imo iam eo prope rediit res

ut stultum et impium sit adversus bellum

hiscere et id laudare quod sole ore

Christi laudatum est Parum consulere

populo parum favere Principi videtur

qui suaserit rem omnium saluberrimam et

ab omnium pestilentissima dehortetur

Iam ipsa castra sequuntur sacrifici

praesunt in castris episcopi et relictis

ecclesiis suis [520] Bellonae rem agunt

Imo gignit iam bellum sacerdotes gignit

episcopos gignit cardinales quibus

campi legatus honorificus titulus et

apostolorum successoribus dignus

habetur Quo minus mirum si Martem

spirant quos Mars genuit Et quo malum

sit insanabilius tantam impietatem

pietatis specie praetexunt Vexilla crucem

habent Miles impius et nummis aliquot

ad lanienam ac caedem [525] conductus

crucis insigne praefert et belli symbolum

est quod solum dedocere bellum poterat

Quid tibi cum cruce scelerate miles Istis

animis istis factis dracones tigrides ac

lupi conveniebant Istud signum eius est

qui non pugnando sed moriendo vicit

forma desavergonhada para natildeo dizer iacutempia as

leis dos nossos antepassados119

os escritos dos

homens piedosos e as palavras da Sagrada

Escritura E mais chegou-se ao ponto em que ser

contra a guerra e louvar aquilo que Cristo

valorizou e louvou acima de tudo eacute considerado

prova de loucura e de impiedade Parece que

aquele que aconselhar a mais salutar e dissuadir

da mais pestilenta de todas as coisas este zela

pouco pelos interesses do povo e favorece pouco

ao priacutencipe Os sacerdotes acompanham os

locais da guerra os bispos tomam a frente nos

acampamentos militares e abandonadas suas

igrejas fazem sacrifiacutecios a Belona120

E jaacute se

chegou ao ponto de a guerra gerar sacerdotes

gerar bispos gerar Cardeais em relaccedilatildeo aos

quais se considera digno dos sucessores dos

apoacutestolos e sumamente honoriacutefico o tiacutetulo de

embaixador da guerra Natildeo eacute de se admirar

aqueles a quem Marte gerou respiram Marte E

para que o mal seja mais incuraacutevel revestem tatildeo

grande impiedade com aparecircncia de piedade Os

estandartes ostentam a cruz 121

O soldado iacutempio

contratado por algumas moedas para esquartejar

e matar porta diante de si o siacutembolo da cruz e

torna-se estandarte de guerra a uacutenica coisa que

poderia dissuadir da guerra O que tu soldado

119

A expressatildeo tem um sentido duplo primeiro pode-se referir aos Padres da Igreja ou seja aqueles padres

antigos que na Histoacuteria da Igreja que se tornaram ceacutelebres segundo a Tradiccedilatildeo catoacutelica pela vida virtuosa

ortodoxia e antiguidade (viveram entre os seacuteculos I e VIII d C) e segundo aos Patriarcas hebreus cujas

histoacuterias se encontram no livro do Gecircnesis

120 Bellona foi uma antiga deusa romana da Guerra correspondente agrave deusa grega Enyo

121 O papa Juacutelio II havia dado o estandarte da cruz aos suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute

154

qui servavit non perdidit quodque cum

primis admonere te poterat cum quibus

hostibus tibi res sit si modo Christianus

es et qua [530] ratione vincendum sit Tu

salutis insigne gestas ad fratris perniciem

properans et cruce perdis eum qui cruce

servatus est Quid quod ab arcanis illis et

adorandis sacris nam haec quoque

pertrahuntur in castra in quibus inprimis

summa Christianorum concordia

repraesentatur curritur in aciem dirum

ferrum in fratris viscera stringitur et

facinoris omnium sceleratissimi quo non

aliud esse [535] potest impiis spiritibus

gratius Christum faciunt spectatorem si

tamen illic dignatur adesse Christus

Denique quod est omnium

absurdissimum in utrisque castris in

utraque acie crucis signum relucet in

utrisque sacra Quid hoc monstri est

pugnat crux cum cruce Christus adversus

Christum belligeratur Hoc signum

Christiani nominis hostes terrere solet

Cur nunc oppugnant quod adorant [540]

Homines non una digni cruce sed vera

Quaeso quid in hisce sacris orat miles

pater noster Os durum audes eum

appellare patrem qui fratris tui iugulum

petis Sanctificetur nomen tuum qui

magis dehonestari poterat nomen dei

quam istiusmodi inter vos tumultibus

Adveniat regnum tuum sic oras qui tanto

celerado fazes com a cruz Esse modo de pensar

e de agir conveacutem mais a serpentes tigres e lobos

Esta insiacutegnia eacute daquele que natildeo venceu ao lutar

mas ao morrer que salvou natildeo fez perecer Ele

veio te ensinar se eacutes cristatildeo contra que inimigos

tu deverias lutar e como deverias fazer para

vencer Tu portas contigo o emblema da salvaccedilatildeo

e ao mesmo tempo te precipitas ao assassinato

do teu irmatildeo e destroacuteis com a cruz aquele que

foi salvo pela cruz E que dizer dos sacramentos

misteriosos e solenes Eacute fato que eles tambeacutem

levam para os acampamentos militares aquelas

cerimocircnias nas quais se representa sobretudo a

suma concoacuterdia dos cristatildeos Corre-se para a

linha de batalha e com crueacuteis espadas rasgam-

se as viacutesceras do irmatildeo Isso obriga Cristo a se

tornar espectador do mais celerado de todos os

crimes ndash que eacute ao mesmo tempo o mais grato

aos espiacuteritos mais iacutempios ndash se eacute que Cristo

consente em estar presente num acampamento

Por fim o mais absurdo de tudo eacute que em ambos

os acampamentos e em ambas linhas de batalha

se ergue e brilha o sinal da cruz e em ambos os

ritos sagrados satildeo celebrados Pode haver algo

mais monstruoso A cruz luta contra a cruz e

Cristo guerreia contra Cristo Este sinal costuma

aterrorizar os inimigos do nome cristatildeo Por que

os cristatildeos atacam aquilo que adoram Os

homens natildeo satildeo dignos de somente portar o

siacutembolo da cruz mas sim uma cruz verdadeira

Por favor por que durante a missa o soldado

recita o Pai Nosso Como te atreves boca

155

sanguine tyrannidem tuam moliris Fiat

voluntas tua quemadmodum in coelo ita

[545] et in terra pacem vult ille et tu

bellum paras Panem quotidianum a

communi Patre petis qui fraternas exuris

segetes et tibi quoque mavis perire quam

illi prodesse Iam quonam ore dices illud

et dimitte nobis debita nostra sicut et nos

dimittimus debitoribus nostris qui ad

parricidium festinas Deprecaris

periculum tentationis qui tuo periculo

fratrem in periculum pertrahis A malo

liberari postulas [550] cuius instinctu

summum malum fratri machinaris

[551] Plato negat appellandum

bellum quod Graeci moveant adversus

Graecos Seditio est inquit Et istis

sanctum etiam bellum est quod ob

quamlibet causam tali milite talibus

armis cum Christiano gerit Christianus

Ethnicorum leges culeo insutum in

profluentem abiiciunt qui ferrum fraterno

desavergonhada a chamar de Pai agravequele a quem

pedes auxiacutelio para cortares a garganta do teu

irmatildeo ldquoSantificado seja o teu nomerdquo o que

poderia macular de forma mais completa o nome

de Deus senatildeo esse tipo de disputa entre voacutes

ldquoVenha a noacutes o vosso reinordquo fazes este pedido

tu que com tatildeo grande derramamento de sangue

te empenhas em tua tirania ldquoSeja feita a vossa

vontade assim na terra como no ceacuteurdquo Cristo

quer a paz e tu preparas guerra ldquoO patildeo de cada

diardquo pedes ao Pai comum tu que queimas as

plantaccedilotildees do teu irmatildeo e preferes morrer a

beneficiar o proacuteximo Pois como eacute possiacutevel que

rezeis aquilo ldquoE perdoai as nossas diacutevidas

assim como noacutes perdoamos os nossos

devedoresrdquo tu que te apressas para o fratriciacutedio

Oras que Ele te proteja no ldquoperigo da tentaccedilatildeordquo

tu que com perigo para ti mesmo conduzes o

teu irmatildeo para o perigo Tu pedes para seres

livrado do mal e instigado por ele maquinas

contra teu irmatildeo o pior dos males

Ao ver gregos moverem guerra contra

outros gregos Platatildeo afirmou que natildeo se deve

chamar essa luta de ldquoguerrardquo denominando-a

antes ldquosediccedilatildeordquo122

Enquanto para os cristatildeos eacute

ldquosantardquo a guerra em que com tal tipo de

soldados e com tais armas uns cristatildeos brandem

armas contra outros cristatildeos por qualquer

pretexto insignificante Segundo as leis dos

pagatildeos quem manchasse sua espada com sangue

122

Cf Platatildeo Repuacuteblica V 470

156

sanguine imbuerit [555] An minus

fratres sunt quos Christus copulavit

quam quos sanguinis propinquitas Et

tamen hic praemium est parricidio O

miseram bellantium sortem Qui vincit

parricida est qui vincitur perit nihilo

secius parricidio obnoxius quod

parricidium conatus est Et post haec

exsecrantur Turcas velut impios et a

Christo alienos quasi vero cum haec

agunt ipsi Christiani sint aut quasi

Turcis [560] ullum spectaculum exhiberi

possit iucundius quam si conspiciant

illos mutuis telis sese confodientes

Immolant ut aiunt Turcae daemonibus

At cum his nulla victima sit acceptior

quam si Christianus mactet Christianum

quaeso quid aliud facis quam illi Tum

enim gemina fruuntur hostia spiritus

impii cum pariter et qui mactat et qui

mactatur fit victima Si quis Turcis favet

si quis amicus est [565] daemonibus

hostias huiusmodi frequenter offerat Sed

audio iamdudum quid excusent homines

in suum ipsorum malum ingeniosi Cogi

se queruntur et invitos ad bellum

pertrahi Detrahe personam istam abiice

fucos tuum ipsius pectus consule

reperies iram ambitionem stultitiam huc

fraterno deveria ser fechado em um saco e

jogado no rio da cidade123

Seratildeo menos irmatildeos

aqueles que Cristo uniu do que aqueles unidos

pela consanguinidade E contudo entre voacutes daacute-

se precircmio ao fratriciacutedio Oacute triste sorte dos

beligerantes Quem vence eacute fratricida mas quem

eacute vencido morre igualmente culpado de

fratriciacutedio pois tentou praticaacute-lo Aleacutem disso os

turcos satildeo execrados como iacutempios e alheios a

Cristo como se na verdade fossem cristatildeos

aqueles que agem desse modo e se proclamam

cristatildeos ou como se houvesse um espetaacuteculo

mais agradaacutevel aos turcos do que verem os

cristatildeos se ferirem uns aos outros com lanccedilas Os

cristatildeos dizem que os turcos oferecem imolaccedilotildees

aos democircnios mas como para esses nenhuma

oferenda sacrificial lhes eacute mais agradaacutevel do que

um cristatildeo imolado por outro pergunto e voacutes

Em que sois diferentes dos turcos De fato os

espiacuteritos iacutempios apoderam-se de duas oferendas

sacrificiais pois tanto aquele que imola quanto

aquele que eacute imolado tornam-se viacutetimas suas do

mesmo jeito Se algueacutem visa a favorecer os

turcos se algueacutem eacute amigo dos democircnios que

ofereccedila com frequecircncia semelhante hoacutestia Haacute

muito tempo ouvi o que dizem alguns homens

engenhosos em se excusar de suas maldades

Estes se queixam de serem constrangidos

arrastados agrave guerra a contragosto Arranca essa

123

A expressatildeo culleo insutus (costurado em um saco) foi recebido no Adaacutegio 3978 Agostinho (Contra

Faustum XXII 22) jaacute tratava dessa pena imposta aos parricidas ocorrente tambeacutem em Secircneca (Dial 3165)

Quintiliano (Inst 786) e Justiniano (Institutiones 1816)

157

pertraxisse non necessitatem nisi forte

hac fini necessitatem metiris si non per

omnia satisfiat [570] animo Ad populum

phaleras deus fucis non deluditur Atque

interea solennes aguntur supplicationes

magnis clamoribus petitur pax

vociferantur immani boatu ut pacem

nobis dones te rogamus audi nos

Nonne iure optimo Deus istis responderit

quid me ridetis Rogatis ut depellam

quod ipsi vobis accersitis volentes

Deprecamini cuius ipsi vobis estis

auctores Si quaelibet offensa [575]

bellum parit cui tandem non est quod

queratur Inter uxorem et maritum

incidunt ad quae sit connivendum nisi

malis dirimi benevolentiam Quod si quid

eiusmodi sit ortum inter principes quid

opus erat mox ad arma rapi

[578] Sunt leges sunt hommes

eruditi sunt venerandi abbates sunt

reverendi episcopi quorum salubri

maacutescara joga fora esses disfarces e consulta o

teu proacuteprio coraccedilatildeo E encontraraacutes que foram a

ira a ambiccedilatildeo e a loucura que te arrastaram para

a guerra e natildeo a necessidade A natildeo ser que

chames de necessidade aquele insaciaacutevel desejo

da avareza Guarda os adornos para o povo Deus

natildeo se ilude com disfarces124

E enquanto isso

realizam-se suacuteplicas solenes pedem paz com

grande clamor gritam com ruiacutedo gigantesco

ldquorogamos-te que nos decircs a paz noacutes te

suplicamos ouve-nosrdquo125

Com todo direito natildeo

poderia Deus responder-lhes ldquopor que vos rides

de mim Rogais que eu afaste de voacutes aquilo que

voacutes mesmos procurastes de livre vontade

Suplicais-me que vos livre daquilo de que voacutes

mesmos sois os autoresrdquo Se uma ofensa

qualquer provoca uma guerra quem natildeo teria

motivos para se queixar Entre marido e mulher

surgem agraves vezes alguns conflitos para os quais

conveacutem fechar os olhos a menos que a

gravidade dos males impeccedila a benevolecircncia Ora

se atritos desse tipo surgirem entre priacutencipes por

que motivo recorrer sem demora agraves armas

Existem leis existem homens eruditos

existem abades venerandos e existem bispos

reverendos com cujo conselho salutar poder-se-

ia remediar o conflito Por que natildeo tornar

124

Cf Peacutersio Saacutetiras 330

125 Erasmo se refere a uma das invocaccedilotildees da Litania Sanctorum uma antiga oraccedilatildeo de formato litacircnico cujo

texto latino foi estabelecido em 590 pelo Papa Gregoacuterio I o Magno Sua versatildeo grega eacute ainda mais antiga e

remonta a Gregoacuterio Taumaturgo (213-270) ldquoUt regibus et principibus christianis pacem et veram concordiam

donare digneris Te rogamus audi nos Ut cuncto populo christiano pacem et unitatem largiri digneris Te

rogamus audi nosrdquo (Vauchez 1994 p 27)

158

consilio tumultus rerum componi poterat

Cur non hos [580] potius arbitros faciunt

quos haud possint tam iniquos nancisci

quin minore malo discessuri sint quam si

armis experiantur Vix ulla tam iniqua

pax quin bello vel aequissimo sit potior

Prius expende singula quae bellum vel

postulat vel adducit et quantum lucri

feceris intelliges Summa Romani

pontificis auctoritas Ast cum gentes cum

principes impiis bellis tumultuantur

idque annos [585] aliquot ubi tum

pontificum auctoritas ubi potestas

Christo proxima Hic certe erat

expromenda nisi ipsi similibus tenerentur

cupiditatibus Vocat Pontifex ad bellum

paretur Vocat idem ad pacem cur non

obtemperatur itidem Si pacem malunt

cur Iulio bellandi auctori tam alacriter

obeditum est Leoni ad pacem et

concordiam provocanti vix quisquam

obtemperat Si vere sacrosancta est

Romani [590] pontificis auctoritas certe

maxime valere par est quoties ad id

provocat quod unice docuit Christus

Caeterum quos Iulius ad bellum exitiale

potuit excitare cum Leo sanctissimus

aacuterbitros homens que de modo algum possa ser

tatildeo perversos que natildeo estejam a desertar por um

mal menor do que experimentar armas

Dificilmente uma paz eacute tatildeo iniacutequa que natildeo seja

preferiacutevel agrave mais justa das guerras Faz bem os

caacutelculos de cada artigo que a guerra exige e por

outro lado acarreta e teraacutes previsto quanto lucro

te renderaacute Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice

Romano Entretanto no momento em que os

povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras

perversas ndash e isto por longos anos ndash onde estaacute a

autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde

estaacute o seu poder proacuteximo ao de Cristo Era

nesse ponto que a autoridade papal certamente

deveria ser exercida se tambeacutem os papas natildeo

compartilhassem as mesmas ambiccedilotildees Se o

pontiacutefice conclama para a guerra logo eacute

obedecido Se ele mesmo apela agrave paz por que

natildeo se lhe obedece da mesma forma Se

preferem a paz entatildeo por que a ordem para

guerrear de Juacutelio126

foi obedecida com

entusiasmo mas quando Leatildeo127

apelou para a

paz e a concoacuterdia quase ningueacutem obedeceu Se

a autoridade do Pontiacutefice Romano eacute

verdadeiramente sagrada e santa deveria valer

de modo certo e absoluto todas as vezes que

visasse ao que Cristo quis ensinar de modo

126

Referecircncia ao Papa Juacutelio II

127 Papa Leatildeo X (1475-1521) cujo nome de batismo era Giovanni di Lorenzo de Medici que sucedeu Juacutelio II em

11031513 e presidiu a Seacute de Pedro tinha concluiacutedo um tratado de paz com os franceses vitoriosos na Batalha

de Marignan (Viterbo 13101515) Margolin (1992 p 940) informa que ldquoapoacutes a guerra de Urbino o Papa havia

defendido uma treacutegua na Europa em vista de uma eventual cruzadardquo Erasmo por diplomacia mitifica a figura

do Papa Leatildeo como conciliador Os registros histoacutericos poreacutem natildeo escusam esse pontiacutefice de atividades e

alianccedilas guerreiras

159

pontifex non idem possit tot modis ad

Christianam concordiam provocans

declarant sese ecclesiae praetextu suis

servisse cupiditatibus ne quid dicam

acerbius

[595] Si ex animo taedet

bellorum dabo consilium quo

concordiam tueri possitis Solida pax

haud constat affinitatibus haud

foederibus hominum ex quibus

frequenter exoriri bella videmus

Repurgandi fontes ipsi unde malum hoc

scatet pravae cupiditates tumultus istos

pariunt Et dum quisque suis inservit

adfectibus interim affligitur respublica

nec tamen adsequitur hoc ipsum quisque

[600] quod malis rationibus adfectat

Sapiant principes et populo sapiant non

sibi ac vere sapiant ut maiestatem suam

ut felicitatem ut opes ut splendorem his

rebus metiantur quae vere magnos et

excellentes faciunt Sint eo animo erga

rempublicam quo pater erga familiam

Ita se magnum existimet rex si quam

optimis imperet ita felicem si suos

felices reddiderit ita sublimem si quam

[605] maxime liberis imperet ita

opulentum si populum habeat

opulentum ita florentem si civitates

muito especial A partir disso eacute justo concluir

que os mesmos que foram incitados pelo apelo agrave

guerra de Juacutelio natildeo foram igualmente obedientes

aos numerosos argumentos baseados na

concoacuterdia cristatilde do Santiacutessimo Papa Leatildeo assim

agiram com o pretexto de servir agrave Igreja mas ndash

para natildeo dizer algo mais duro ndash buscaram isto

sim suas proacuteprias ambiccedilotildees

Se estais sinceramente cansados da

guerra darei um conselho com o qual podeis

cultivar a paz Uma paz soacutelida natildeo nasce de laccedilos

de parentesco nem de alianccedilas entre os homens

dos quais muitas vezes vemos nascer a guerra

Eacute preciso purificar as fontes de onde nascem

esses males e que datildeo agrave luz esses conflitos as

suas perversas ambiccedilotildees Entatildeo enquanto o

priacutencipe submete-se a suas paixotildees natildeo apenas

aflige-se a repuacuteblica como ele tampouco

consegue aquilo a que visava obter em seus vis

propoacutesitos Que os priacutencipes sejam saacutebios e que

sejam saacutebios em prol do povo e natildeo somente

para si e que sejam verdadeiramente saacutebios de

tal forma que a sua majestade a sua felicidade a

sua riqueza e o seu esplendor sejam avaliados

por aquelas coisas que os fazem verdadeiramente

poderosos e superiores na sociedade Que

tenham para com a repuacuteblica a mesma

disposiccedilatildeo do pai para com a famiacutelia Que o Rei

soacute se considere grande se governar sobre os

melhores homens que seja feliz se tornar seus

suacuteditos felizes glorioso se bem governar

homens livres opulento se o povo for opulento

160

perpetua pace florentes habeat Atque

hunc Principes animum imitentur

proceres ac magistratus omnia

reipublicae commodis metiantur et hac

via rectius suis consuluerint commodis

Rex qui hoc sit animo num is facile

commovebitur ut pecuniam a suis

extorqueat quam barbaro militi numeret

[610] Suos ad famem adiget ut impios

aliquot Duces ditet Num is suorum

vitam tot periculis obiiciet Non opinor

Hactenus exerceat imperium ut

meminerit se hominem imperare

hominibus liberum liberis postremo

Christianum Christianis Huic vicissim

tantum deferat populus quatenus ad

publicam utilitatem conducit Non aliud

exiget bonus princeps mali vero

cupiditates retundet civium [615]

consensus absit utrimque privati

commodi ratio Plurimum honoris

habeatur iis qui bellum excluserint qui

concordiam restituerint ingenio

consiliove suo denique qui hoc modis

omnibus moliatur non ut maximam

militum ac machinarum vim comparet

sed ut iis non sit opus Quod pulcerrimum

facinus tot imperatorum unus

Diocletianus animo concepisse legitur

Quod si bellum [620] vitari non potest

ita geratur ut summa malorum in eorum

capita recidat qui belli dedere causas

e proacutespero se por uma paz perpeacutetua reinar

sobre cidades proacutesperas E que essa disposiccedilatildeo

dos priacutencipes seja imitada pelos seus proacuteceres

assim como pelos magistrados Que avaliem

tudo segundo a medida do bem-estar da

repuacuteblica e dessa maneira teratildeo assegurado com

mais seguranccedila seu proacuteprio bem-estar Se o rei

tiver essa disposiccedilatildeo acaso se sentiraacute levado a

extorquir o dinheiro dos suacuteditos para contratar

mercenaacuterios baacuterbaros Acaso levaraacute os seus agrave

fome para que enriqueccedila alguns generais iacutempios

Acaso exporaacute a vida dos seus a tatildeo grandes

perigos Natildeo o creio Que o priacutencipe impere de

tal modo que se lembre sempre de que eacute um

homem que governa homens um homem livre

que governa homens livres e em uacuteltima anaacutelise

um cristatildeo que governa cristatildeos O povo por sua

vez que o aceite somente na medida em que seja

em benefiacutecio da utilidade puacuteblica O bom

priacutencipe natildeo exige nada mais que isso As

ambiccedilotildees do mau satildeo derrubadas pelo consenso

dos cidadatildeos Que a loacutegica do interesse privado

esteja ausente em ambas as partes Maior honra

tenham aqueles que evitaram a guerra e cujo

engenho e conselho restituiacuteram a concoacuterdia Em

suma aqueles que por todos os meios se

esforccedilaram natildeo para obter o maior nuacutemero

possiacutevel de soldados e maacutequinas de guerra mas

em tornar tudo isso desnecessaacuterio Dentre tatildeo

grande nuacutemero de imperadores que existiram

Diocleciano segundo se lecirc foi o uacutenico que

concebeu em seu coraccedilatildeo esta accedilatildeo a mais nobre

161

Nunc Principes tuti belligerantur

ductores hinc crescunt maxima malorum

pars in agricolas ac plebem effunditur ad

quos nec attinet bellum nec ipsi belli

causam ullam dederunt Ubi principis

sapientia si haec non perpendit ubi

principis animus si haec levia ducit

Invenienda ratio qua [625] fiat ne toties

mutentur ac velut obambulent imperia

quod omnis rerum novatio tumultum

gignat tumultus bellum Id facile fiet si

Regum liberi intra ditionis fines

elocentur aut si quem libeat finitimis

adiungere spes omnibus successionis

praecisa esto Nec fas sit Principi ditionis

portionem ullam vendere aut alienare

perinde quasi privata sint praedia liberae

civitates Nam liberae sunt quibus rex

[630] imperat serviunt quos tyrannus

premit Nunc huiusmodi matrimoniorum

vicibus fit ut apud Hybernos natus

repente imperet Indis aut qui modo Syris

imperabat subito Rex sit Britanniae

Fitque ut neutra regio Principem habeat

dum priorem relinquit et a posteriore non

agnoscitur nimirum ignotus alioque

mundo natus Atque interim dum illud

parit dum evincit dum stabilit alterum

[635] exhaurit proteritque nonnumquam

amittit utrumque dum utrumque

complecti studet vix alteri administrando

idoneus Semel inter principes conveniat

dentre todas Agora se natildeo se pode evitar uma

guerra que seja travada de tal forma que ao

menos a maior parte dos males caia sobre as

cabeccedilas daqueles que causaram a guerra Hoje

em dia poreacutem os priacutencipes combatem

esmerando em sua seguranccedila e por isso o

aumento de poder de seus generais enquanto

isso a maior parte dos males atinge os

camponeses e o povo justamente aqueles que

natildeo tiraram qualquer proveito da guerra nem

deram qualquer motivo para que ela se

realizasse Onde estaacute a sabedoria do priacutencipe se

natildeo considera essas coisas Onde estaacute o coraccedilatildeo

do priacutencipe se pensa que isso eacute algo sem

importacircncia Deve-se encontrar um modo de

evitar que um reino mude de dinastia e como que

passe de matildeo em matildeo pois inovaccedilotildees desse tipo

sempre geram confusatildeo e confusatildeo gera guerras

Isso pode ser realizado de forma simples se os

filhos do rei tiverem seu poder dentro dos limites

de seu feudo Se houver algum que se interessar

em acrescentar territoacuterio aos seus domiacutenios que

este seja excluiacutedo dos direitos de sucessatildeo Que

natildeo lhe seja liacutecito vender ou alienar nem a menor

porccedilatildeo de seu feudo como se as cidades livres

fossem propriedades privadas Daacute-se pois o

nome de cidades livres agravequelas governadas por

um rei enquanto que aquelas que um tirano

oprime vivem sob servidatildeo Hoje em dia pelos

acasos de casamentos desse tipo acontece de um

irlandecircs passar de repente a reinar sobre os

indianos ou de algueacutem haacute pouco governante dos

162

quid quisque debeat administrare ac

ditionis fines semel datos nulla proferat

aut contrahat affinitas nulla convellant

foedera ita suam quisque portionem

enitetur quam potest ornatissimam

reddere dum in unam omne studium

intendet [640] hanc conabitur rebus

optimis locupletatam suis liberis

relinquere Atque hoc sane pacto futurum

est ut ubique floreant omnia Caeterum

inter sese non affinitatibus aut factitiis

sodalitatibus sed syncera puraque

amicitia copulentur maximeque simili

communique studio bene merendi de

rebus humanis Principi vero succedat vel

qui genere proximus vel qui populi

suffragiis maxime iudicabitur [645]

idoneus Caeteris sat sit inter honestos

haberi proceres

siacuterios tornar-se rei da Inglaterra128

E enquanto

isso as duas regiotildees ficam sem priacutencipe o

primeiro porque ele a abandonou o segundo

porque natildeo passa de um estrangeiro vindo de

outro lugar e natildeo o reconhece como soberano

Enquanto o priacutencipe se preocupa em obter esse

reconhecimento conquistaacute-lo e consolidaacute-lo

empobrece e drena o outro reino e por vezes

perde os dois quando tenta abraccedilar a ambos pois

dificilmente eacute capaz de governar um soacute Que de

uma vez por todas os priacutencipes estejam de

acordo sobre o territoacuterio que cada um deve

governar e que nenhum laccedilo de parentesco

aumente ou diminua essas fronteiras que foram

estabelecidas que nenhuma alianccedila as destrua

Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas

possibilidades para governar sua regiatildeo da

melhor forma possiacutevel Pois quando estiver

totalmente concentrado no cuidado de um soacute

reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus

filhos enriquecido por melhorias E desta

forma como eacute evidente tudo em toda parte

floresceraacute Que sejam aliados natildeo apenas por

viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas contratuais

mas sim unidos por amizade sincera e pura e

acima de tudo por um idecircntico e comum amor

por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei

seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais

proacuteximo por consanguinidade quer agravequele que

128

Margolin (1992 p 942) afirma que essa frase de Erasmo ldquopoderia invocar ainda Maximiliano que declarou

guerra a Hungria (em 1490) pois a viuacuteva de Matias Corvin rei da Hungria havia desposado Ladislau da

Boecircmia ferindo seus pretenciosos direitos de sucessatildeordquo

163

[646] Regium est nescire privatos

adfectus et omnia publicis commodis

aestimare Ad haec longinquas

peregrinationes vitet Princeps imo

pomoeria regni numquam transire velit

memineritque dicti longo seculorum

consensu probati Frons occipitio prior

est Locupletatum se existimet non si

quid aliis ademerit [650] sed si sua

reddiderit meliora Cum de bello agitur

ne adhibeat in consilium iuvenes quibus

ideo bellum placet quod experti non sunt

quantum habeat malorum neve eos

quibus expedit turbari publicam

tranquillitatem quique populi

calamitatibus aluntur ac saginantur Senes

cordatos et integros accersat et quorum

pietas patriae spectata sit Nec temere ad

unius aut alterius libidinem [655] bellum

moveatur quod semel coeptum haud

facile finitur Res omnium

periculosissima non nisi totius populi

consensu suscipiatur Belli causae statim

praecidendae sunt Ad quaedam

connivendum comitas comitatem

invitabit Nonnumquam emenda pax Ea

si ratione subduxeris quid bellum fuerit

exhausturum et quot cives ab exitio

serves parvo empta videbitur etiamsi

magno [660] emeris quando praeter

pelos votos do povo for considerado o mais

capaz Quanto aos demais que lhes baste estar

entre o nuacutemero dos nobres mais honrados

A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os

afetos privados e estimar todas as coisas segundo

o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe

evite viagens a terras longiacutenquas ou antes que

nunca cruze os limites territoriais do seu reino

Que se recorde do ditado comprovado pelo longo

consenso dos seacuteculos ldquoeacute preciso que o mestre

tenha os olhos sobre seu ofiacuteciordquo Que o priacutencipe

considere que enriqueceu natildeo se tirar algo dos

outros mas aperfeiccediloando o que lhe pertence Se

haacute uma questatildeo de guerra que natildeo convoque a

conselho os jovens aos quais a guerra sempre

agrada pois natildeo experimentaram os muitos

males que ela causa nem consulte aqueles a

quem interessa perturbar a tranquilidade puacuteblica

e que satildeo alimentados e engordados pela

calamidade do povo Que convoque um conselho

de anciatildeos sensatos e iacutentegros cuja piedade para

com a paacutetria eacute comprovada E que natildeo inicie a

guerra temerariamente movido pelo desejo deste

ou daquele porque uma vez iniciada ela natildeo se

extingue com facilidade E uma vez que a guerra

eacute o assunto mais perigoso de todos que natildeo seja

decidida sem o consenso de todo o povo As

causas da guerra devem ser imediatamente

extirpadas Conveacutem deixar passar certas coisas a

cortesia convidaraacute agrave cortesia Haacute ocasiotildees em

que a paz deveraacute ser comprada Se fizeres os

caacutelculos pesando quanto a guerra haveria de ser

164

civium tuorum sanguinem plus erat bello

impendendum Ineas rationem quantum

malorum vitaris quantum bonorum

tuearis et impendii non poenitebit

Fungantur interim suo officio praesules

sacerdotes vere sint sacerdotes monachi

professionis suae meminerint theologi

quod Christo dignum est doceant

Conspirent omnes adversus bellum in

hoc latrent [665] omnes Pacem publice

privatimque praedicent efferant

inculcent Tum si minus possint efficere

ne ferro decernatur certe ne probent ne

intersint ne rei vel tam sceleratae vel

certe tam suspectae ipsis auctoribus

honos habeatur Satis sit in bello caesis

in prophano sepulcrum dari Si qui boni

sunt in hoc genere qui certe paucissimi

sunt non ob haec fraudabuntur suo

praemio caeterum impii [670] quae

maxima turba est minus sibi placebunt

honore detracto

[671] De his bellis loquor quae

vulgo Christiani cum Christianis

commitunt Nec enim idem sentio de his

custosa e o grande nuacutemero de cidadatildeos que

salvas seu preccedilo seraacute considerado iacutenfimo

mesmo que pagues um valor alto visto que natildeo

era soacute o sangue dos teus suacuteditos que haveria de

perder-se com a guerra Calcula quanto dos

males evitaste e quanto dos bens protegeste e

natildeo te arrependeraacutes do gasto Que nesse iacutenterim

os prelados cumpram sua tarefa que os

sacerdotes sejam verdadeiramente sacerdotes

que os monges se lembrem da sua profissatildeo e

que os teoacutelogos ensinem aquilo que eacute digno de

Cristo Que todos conspirem contra a guerra e

contra ela todos declamem Que preguem

promovam e inculquem a paz quer em puacuteblico

quer em privado E se porventura natildeo

conseguirem fazer com que as disputas natildeo se

resolvam pela espada que ao menos demonstrem

sua desaprovaccedilatildeo e natildeo compareccedilam para evitar

que por sua presenccedila se considere honrosa uma

coisa tatildeo odiosa ou pelo menos tatildeo duvidosa

Que aos que tombaram na guerra seja suficiente

que lhes seja dada sepultura em solo profano Se

haacute algumas pessoas boas entre os guerreiros ndash e

certamente satildeo pouquiacutessimas ndash natildeo por isso

seratildeo defraudadas em seu precircmio Por outro

lado os iacutempios que satildeo a maioria129

estes se

sentiratildeo menos contentes nas armas com a

retirada da honraria do sepulcro cristatildeo

Refiro-me agraves guerras que os cristatildeos

fazem contra os cristatildeos Natildeo tenho poreacutem

129

Virgiacutelio Aeneis VI 6 I 1

165

qui simplici pioque studio vim

incursantium barbarorum depellunt et

suo periculo publicam tranquillitatem

tuentur Nunc trophaea sanguine tincta

eorum pro quorum salute Christus suum

fudit sanguinem [675] reponuntur in

templis inter apostolorum ac martyrum

statuas quasi posthac pium sit futurum

non fieri martyres sed facere Abunde

magnum erat haec in foro aut armario

quopiam reposita servari In sacras aedes

quas purissimas esse decet nihil recipi

convenit quod sanguine sit inquinatum

Sacerdotes deo sacri nusquam adsint nisi

ad dirimenda bella In haec si

consentiant [680] si eadem ubique

inculcent plurimum habitura momenti

est Quod si hic fatalis est humani ingenii

morbus ut prorsus absque bellis durare

nequeat quin potius malum hoc in Turcas

effunditur tametsi praestabat et hos

doctrina bene factis vitaeque innocentia

ad Christi religionem allicere quam

armis adoriri Attamen si bellum ut

diximus omnino vitari non potest illud

certe levius [685] sit malum quam sic

impie Christianos inter se committi

collidique Si mutua caritas illos non

adglutinat certe coniunget utcumque

communis hostis et qualiscumque

syncretismus erit ut absit vera concordia

igual julgamento sobre aquelas com as quais

tomados por um sentimento puro e piedoso

enfrentam as incursotildees dos baacuterbaros e com

perigo da proacutepria vida protegem a tranquilidade

puacuteblica Hoje nas igrejas colocam-se trofeacuteus de

guerra tingidos com o sangue daqueles por cuja

salvaccedilatildeo Cristo derramou o seu sangue por entre

as estaacutetuas dos apoacutestolos e dos maacutertires como se

depois disso fosse considerado piedoso natildeo

tornar-se maacutertires mas fazecirc-los Jaacute seria o

bastante que esses troacutefeus fossem exibidos no

foacuterum ou em um armaacuterio qualquer mas natildeo

devem expocirc-los os templos sagrados que devem

ser os mais puros e de forma alguma conveacutem que

recebam qualquer objeto manchado de sangue

Que os sacerdotes natildeo se apresentem pelo Deus

sagrado a natildeo ser para dirimir as guerras Se

nisso concordarem se em todos os lugares

inculcarem o mesmo enorme influecircncia hatildeo de

ter Ora se a guerra eacute uma fatal e doentia

propensatildeo do engenho humano de modo que

natildeo lhe eacute possiacutevel viver absolutamente sem ela

por que natildeo se dirige esse mal inevitaacutevel contra

os turcos embora fosse preferiacutevel atraiacute-los para a

religiatildeo de Cristo por meio da doutrina dos bons

costumes e de uma vida de inocecircncia do que

atacaacute-los com armas Se contudo como

dissemos a guerra natildeo pode ser completamente

evitada de todo modo atacar os turcos eacute um mal

menor do que os cristatildeos se enfrentarem e se

colidirem mutuamente de maneira tatildeo perversa

Se o amor muacutetuo natildeo os une pelo menos de

166

[688] Postremo magna pars pacis

est ex animo velle pacem Quibus enim

pax vere cordi est hi omnes pacis

occasiones arripiunt quae obstant aut

negligunt aut [690] amoliuntur permulta

ferunt dum tantum bonum sit incolume

Nunc ipsi bellorum seminaria quaerunt

quod ad concordiam facit elevant aut

dissimulant etiam quod ad bellum tendit

ultro exaggerant exulcerantque Pudet

referre ex cuiusmodi nugis quantas

excitent tragoedias et ex quam minuta

scintillula quae rerum tempestates

exoriantur Tunc illud iniuriarum agmen

venit in mentem [695] et suum quisque

malum sibi exaggerat at benefactorum

interim profunda oblivio ut iures

adfectari bellum Et saepe principum

privatum quiddam est quod orbem ad

arma compellit at plus quam publicum

esse debet ob quod bellum suscipiatur

Quin ubi nihil subest causae ipsi

dissidiorum causas sibi fingunt regionum

vocabulis ad odiorum alimoniam

abutentes et hunc stultae plebis [700]

errorem alunt magnates et in suum

abutuntur compendium alunt sacerdotes

quidam Anglus hostis est Gallo nec ob

aliud nisi quod Gallus est Scoto

alguma forma um inimigo comum poderia uni-

los e haveria ao menos uma espeacutecie de

harmonia ainda que longe de ser a verdadeira

concoacuterdia

Finalmente o primeiro e primordial

passo para a paz se realiza ao desejar

sinceramente a paz De fato quem tem o coraccedilatildeo

realmente repleto do desejo de paz aproveita

todas as oportunidades para estabelececirc-la diante

dos obstaacuteculos negligencia-os ou elimina-os

resigna-se a suportar muita coisa contanto que

se consiga manter incoacutelume um tatildeo grande bem

Atualmente entretanto satildeo os proacuteprios priacutencipes

que buscam disseminar as guerras enfraquecem

e ateacute dissimulam tudo o que promove a

concoacuterdia por iniciativa proacutepria exageram e

instigam tudo o que leva agrave guerra Envergonho-

me de mencionar com que tipo de ninharia

instigam tatildeo grandes trageacutedias e de quatildeo

diminutas centelhazinhas nascem tatildeo grandes

tempestades Entatildeo ressurge-lhes na mente

aquela ruptura provocada por uma tropa de

injuacuterias e cada qual exagera para si mesmo o

mal anteriormente sofrido mas esquece de todos

os benefiacutecios recebidos de forma a que endosses

o direito a fazer a guerra Muitas vezes um

interesse particular qualquer dos priacutencipes eacute

capaz de levar o mundo inteiro agraves armas Ora

aquilo que ocasiona a guerra deve ser mais do

que eacute puacuteblico Mais ainda onde natildeo haacute uma

causa real para o conflito eles mesmos inventam

motivos para divisotildees pronunciando os nomes

167

Britannus infensus est nec aliam ob rem

nisi quod Scotus est Germanus cum

Franco dissidet Hispanus cum utroque O

pravitatem disiungit inane loci

vocabulum Cur non potius tot res

conciliant Male vis Britannus Gallo cur

non potius [705] bene vis homo homini

Christianus Christiano Cur res frivola

plus apud istos potest quam tot naturae

nexus tot Christi vincula Locus corpora

dirimit non animos Separabat olim

Rhenus Gallum a Germano at Rhenus

non separat Christianum a Christiano

Pyrenaei montes Hispanos a Gallis

seiungunt at iidem non dirimunt

Ecclesiae communionem Mare dirimit

Anglos a Gallis at non dirimit [710]

religionis societatem Paulus Apostolus

indignatur audire inter Christianos has

voces Ego sum Apollo ego sum Cephae

ego sum Pauli nec impia cognomina sinit

secare Christum omnia conciliantem et

nos commune patriae vocabulum gravem

causam iudicamus cur gens in gentis

internecionem tendat Ne id quidem satis

nonnullorum animis bellorum avidis

prave dataque opera dissidiorum [715]

ansas quaerunt ipsam dividunt Galliam

et ea vocabulis distrahunt quae nec maria

nec montes nec vera regionum nomina

da regiatildeo inimiga de tal forma que alimentem os

oacutedios e natildeo apenas os magnatas como tambeacutem

alguns sacerdotes nutrem esse engodo da plebe

estulta para seu proveito pessoal Dizem que o

inglecircs eacute inimigo do francecircs sem qualquer outra

razatildeo exceto pelo simples fato de ser francecircs O

escocecircs eacute odioso para o bretatildeo natildeo por outro

motivo senatildeo por ser escocecircs O alematildeo discorda

do francecircs e o espanhol dos dois Oacute

perversidade O vatildeo vocaacutebulo de lugar desune

Por que natildeo podem antes tantas coisas unir Tu

bretatildeo queres mal ao francecircs Por que natildeo

podes como ser humano querer bem a outro ser

humano como cristatildeo a um outro cristatildeo Por

que uma tolice como essa tem mais poder sobre

os homens do que tatildeo grande nuacutemero de elos da

natureza de tantos viacutenculos instituiacutedos por

Cristo A geografia eacute capaz de separar os corpos

natildeo as almas O Reno separava antigamente o

territoacuterio gaulecircs do germacircnico mas o Reno natildeo

separa o cristatildeo do cristatildeo Os Pirineus separam

os espanhoacuteis dos franceses mas natildeo os separam

da comunhatildeo da Igreja Se o mar separa os

ingleses dos franceses natildeo rompe a unidade da

religiatildeo O apoacutestolo Paulo indigna-se ao ouvir

entre os cristatildeos as seguintes palavras Eu sou

de Apolos eu sou de Cefas eu sou de Paulordquo 130

e natildeo tolera que cognomes iacutempios dissolvam a

conciliaccedilatildeo universal realizada por Cristo Como

podemos julgar que o nome da paacutetria de cada um

130

ldquoEgo quidem sum Pauli ego autem Apollo ego vero Cephae ego autem Christi divisus est Christusrdquo (Prima ad

Corinthios 112-13)

168

distrahunt E Gallis Germanos faciunt ne

vel nominis consortio coalescat amicitia

Si in actionibus odiosis velut divortii

nec litem facile recipit iudex nec

quamlibet admittit probationem cur isti

in re omnium odiosissima quamlibet

frivolam causam admittunt [720]

Quinpotius id quod res est cogitant

mundum hunc communem esse patriam

omnium si patriae titulus conciliat ab

iisdem maioribus ortos omneis si facit

amicos sanguinis affinitas Ecclesiam

unam esse familiam ex aequo communem

omnibus Si domus eadem copulat

necessitudines in hanc partem ingeniosos

esse par est Toleras quaedam in socero

non ob aliud nisi quod socer est et nihil

toleras [725] in eo qui religionis

consortio frater est Multa condonas

generis propinquitati et nihil condonas

affinitati religionis Certe nullum

vinculum arctius alligat quam Christi

sodalitas Cur id solum ob oculos

obversatur quod animum exulcerat Si

paci faves sic cogita potius in hoc

laesit sed saepe alias profuit aut alieno

impulsu laesit

seja justificativa para que um povo se esforce por

exterminar outro povo Mas nem isso basta para

alguns espiacuteritos aacutevidos de guerras que de forma

perversa e acintosa se empenham em achar

pretextos para dissensotildees Procuram inclusive

dividir a Franccedila e a desagregam atraveacutes de

palavras que nem os mares nem os montes nem

as diferentes proviacutencias tecircm poder para desunir

Chamam a franceses ldquoalematildeesrdquo para impedir

que a amizade se fortaleccedila ainda que seja pela

comunhatildeo de nome Se nos processos litigiosos

como por exemplo o divoacutercio o juiz natildeo aceita

facilmente a causa nem admite irrestritamente

qualquer prova por que os homens admitem

qualquer causa friacutevola para a guerra que eacute a

mais litigiosa de todas as coisas Por que natildeo

pensam antes no seguinte Se a mera designaccedilatildeo

a paacutetria eacute capaz de unir os concidadatildeos este

mundo eacute a paacutetria comum de todos se a afinidade

de sangue eacute capaz de estabelecer relaccedilotildees de

amizade todos nascemos dos mesmos

antepassados se o lar em comum forma laccedilos de

parentesco a Igreja eacute uma soacute famiacutelia comum a

todos por igual Eacute justo que se mostrem

engenhosos tambeacutem nesse sentido Toleras algo

desagradaacutevel em teu sogro pelo simples fato de

ele ser teu sogro e natildeo toleras o quer for naquele

que pela comunidade de religiatildeo eacute teu irmatildeo

Se perdoas muitas coisas pelo parentesco

consanguiacuteneo natildeo perdoas os que satildeo teus

parentes pela religiatildeo Ora o fato eacute que nenhum

viacutenculo liga com maior forccedila do que a

169

[730] Postremo quemadmodum

apud Homerum dissidii causas quod

inter Agamemnonem et Achillem

intercesserat in Aten Deam reiiciunt qui

vocant ad concordiam ita quae excusari

non possunt aliquando fatis imputentur

aut malo cuipiam si libet genio et in

haec odium ab ipsis hominibus

transferatur Cur magis ad perniciem

suam sapiunt quam ad tuendam

felicitatem Cur ad [735] malum quam

ad bonum sunt oculatiores Qui paulo

cordatiores sunt expendunt consyderant

circumspiciunt priusquam privatum

quoque negotium aggrediantur Et clausis

oculis praecipites in bellum ipsi sese

coniiciunt praesertim cum semel

admissum excludi non possit quin e

pusillo fit maximum ex uno plura ex

incruento cruentum maxime cum haec

procella non unum aut alterum [740]

affligat sed universos pariter involvat

Quod si vulgus haec parum expendit

certe principis et optimatum partes sunt

fraternidade em Cristo Por que soacute se apresenta

aos olhos aquilo que a mente abomina Se tu

procuras a paz eacute melhor que tu cogites contigo

mesmo ldquose nisso ele me magoou talvez incitado

por algueacutem em outros casos poreacutem ele me tem

sido uacutetilrdquo

Finalmente assim como em Homero131

aqueles que aconselham a concoacuterdia lanccedilaram

toda culpa do atrito entre Agamenon e Aquiles

em Ates deusa da vinganccedila da mesma forma se

imponha aos fados ou talvez a algum mau

gecircnio a culpa daquelas ofensas que satildeo

indesculpaacuteveis transferindo para esses seres

imaginaacuterios o oacutedio contra os homens Por que os

homens satildeo mais inteligentes para sua proacutepria

destruiccedilatildeo do que para a preservaccedilatildeo do seu bem

estar Por que satildeo mais cuidadosos com o mal

do que com o bem Aqueles que tecircm um pouco

de sensatez preferem pesar considerar e

observar antes de se lanccedilarem a qualquer

negoacutecio privado Mas ainda assim eles se

lanccedilam de cabeccedila na guerra com os olhos

fechados apesar de a guerra ser um tipo de mal

que uma vez criado natildeo pode ser extirpado

facilmente Antes a partir de um pequeno

conflito faz-se um enorme de uma soacute batalha

muitas de um ataque incruento uma carnificina

chega-se ao cuacutemulo com esta procela que natildeo

abate apenas um ou dois mas atinge a todos por

igual Se o povo natildeo compreende essas coisas

131

Cf Homero Iliacuteada IX 505 XIX 91

170

haec secum reputare Sacerdotum est ista

rationibus omnibus infulcire volentibus

ac nolentibus ingerere Haerebunt tandem

si nusquam non audiantur

[744] Ad bellum gestis Primum

inspice cuiusmodi res sit pax cuiusmodi

bellum [745] quid illa bonorum quid

hoc malorum secum vehat atque ita

rationem ineas num expediat pacem

bello permutare Si res quaedam

admirabilis est regnum undique rebus

optimis florens bene conditis urbibus

bene cultis agris optimis legibus

honestissimis disciplinis sanctissimis

moribus cogita tecum haec felicitas mihi

perturbanda est si bello Contra si

quando conspexisti ruinas urbium [750]

dirutos vicos exusta fana desolatos

agros et id spectaculum miserandum ut

est visum est cogita hunc esse belli

fructum Si grave iudicas sceleratam

conductitiorum militum colluviem in

tuam regionem inducere hos civium

tuorum malo alere his inservire his

blandiri immo horum arbitrio te ipsum ac

tuam incolumitatem committere fac

cogites hanc esse belli conditionem Si

abominaris [755] latrocinia haec docet

bellum Si exsecraris parricidium hoc in

cabe aos priacutencipes e aos liacutederes refletir sobre

tudo isso consigo mesmos Com maior razatildeo

ainda cabe aos sacerdotes querendo ou natildeo

defender com todos os argumentos a causa

paciacutefica Obteratildeo o seu precircmio no final mesmo

que em nenhuma parte sejam ouvidos

Anseias pela guerra Primeiro observa

bem que eacute a paz e que eacute a guerra que bens traz

consigo a primeira e que males porta consigo a

segunda e assim ponderaraacutes se vale a pena

trocar a paz pela guerra Se um reino florescente

em toda parte com tudo o que haacute de melhor com

cidades bem construiacutedas com campos bem

cultivados com oacutetimas leis com o ensino mais

honesto e com os costumes mais santos eacute algo

admiraacutevel considera contigo mesmo se faccedilo a

guerra essa minha felicidade deve ser

perturbada Por outro lado se ao contemplares

as ruiacutenas das cidades as aldeias destruiacutedas os

templos em chamas e os campos desolados isso

te pareceu tal como de fato eacute um espetaacuteculo

lastimaacutevel pensa que satildeo estes os frutos da

guerra Se julgas perigoso a turba criminosa dos

mercenaacuterios ser conduzida para teu paiacutes com a

desgraccedila dos teus suacuteditos tu os alimentares ao

servi-los e bajulaacute-los e mais entregares a ti

mesmo e a tua seguranccedila ao arbiacutetrio desses

homens dedica-te a pensar que essa eacute a condiccedilatildeo

da guerra Se abominas os latrociacutenios a guerra eacute

que os ensina se execras os parriciacutedios na

guerra eacute que se aprendem De fato que hesitaccedilatildeo

vai sentir quando levado por forte emoccedilatildeo a

171

bello discitur Nam qui vereatur unum

occidere commotus qui levi

auctoramento conductus tot homines

iugulat Si praesentissima Reipublicae

pestis est legum neglectus silent leges

inter arma Si foedum existimas stuprum

incestum et his turpiora horum omnium

bellum magister est Si fons omnium

malorum est impietas [760] et religionis

neglectus haec belli procellis prorsus

obruitur Si iudicas pessimum esse

reipublicae statum cum plurimum

possunt qui pessimi sunt in bello

regnant sceleratissimi et quos in pace

suffigas in crucem horum in bellis

primaria est opera Quis enim melius per

devia ducet copias quam latro

exercitatus Quis fortius diripiet aedes

aut spoliabit templa quam parietum

perfossor aut sacrilegus [765] Quis

animosius feriet hostem et hauriet ferro

vitalia quam gladiator aut parricida

Quis aeque idoneus ad iniiciendum ignem

urbibus aut machinis quam incendiarius

Quis aeque contemnet fluctus marisque

discrimina ac pirata diutinis

praedationibus exercitus Vis palam

cernere quam res sit impia bellum

matar um soacute homem quem em troca de um

pequeno soldo degola tatildeo grande nuacutemero de

homens Se a praga se abate sobre a repuacuteblica

haacute indeferenccedila pela justiccedila porque as leis

silenciam132

em meio agraves armas

133 Se o estupro a

violecircncia e coisas ainda mais nefandas que estas

te parecem torpes lembra-te de que eacute justamente

a guerra a mestra de todas as accedilotildees mais

horrendas Se a impiedade e a negligecircncia para

com a religiatildeo satildeo a fonte de todos os males

considera que ela eacute totalmente destruiacuteda pelas

procelas da guerra Se julgas que a pior situaccedilatildeo

da repuacuteblica eacute quando muito podem os que satildeo

peacutessimos na guerra reinam os mais criminosos e

tecircm proeminecircncia aqueles que em tempos de

paz condenas agrave cruz Pois quem pode guiar as

tropas por caminhos tortuosos melhor do que um

experiente assaltante de estradas Quem estaacute

mais seguro em roubar casas ou pilhar templos

do que o arrombador ou o sacriacutelego 134

Quem eacute

mais valente em debelar o inimigo e furar-lhe as

entranhas com a espada do que o gladiador e o

parricida Quem eacute mais haacutebil em tocar fogo nas

cidades ou nas maacutequinas de guerra do que o

incendiaacuterio Quem poderia suportar melhor as

ondas e os perigos do mar do que o pirata

exercitado dia e noite nos saques Queres ver

com clareza quanto eacute iacutempia uma guerra

132

Cicero Mil 4 10

133 A expressatildeo ldquosilent leges inter armardquo remonta a Ciacutecero (Pro Milone 410) e Luciano (Pharsade 1277)

ldquoleges bello siluere coactaerdquo

134 Plauto Pseud 9 8 6

172

animadverte per quos geritur

[770] Si pio principi nihil

antiquius esse debet quam suorum

incolumitas huic bellum in primis

invisum sit oportet Si principis felicitas

est imperare felici pacem potissimum

amplecti debet Si praecipue optandum

bono principi ut imperet quam optimis

bellum detestetur oportet unde scatet

omnis impietatis sentina Si suas opes

esse putat quidquid cives possident

bellum omnibus rationibus [775] vitet

Quod ut felicissime cadat certe facultates

omnium atterit et quod honestis artibus

partum est in immanes quosdam

carnifices erogandum Iam illud etiam

atque etiam perpendant suam cuique

blandiri causam et suam cuique spem

arridere cum illa saepenumero pessima

sit quae commoto videatur aequissima

Et haec non raro fallit Sed finge causam

iustissimam finge exitum [780] belli

prosperrimum rationem fac ineas

omnium incommodorum quibus gestum

est bellum et commoditatum quas peperit

victoria et vide num tanti fuerit vincere

Vix umquam victoria contingit incruenta

Iam habes tuos humano sanguine

pollutos Ad haec supputa morum

publicaeque disciplinae iacturam nullo

compendio sarciendam Exhauris tuum

fiscum expilas populum oneras bonos

Observa quem as faz

Se para um priacutencipe piedoso nada deve

ser mais precioso do que a seguranccedila dos seus

suacuteditos eacute necessaacuterio que a guerra lhe seja

detestaacutevel acima de todas as coisas Se a

felicidade do priacutencipe consiste em governar para

a felicidade do seu povo ele deve optar

preferencialmente pela paz Se o principal

objetivo do bom priacutencipe consiste em governar

sobre os melhores eacute necessaacuterio que odeie a

guerra da qual jorra o esgoto de todo tipo de

impiedade Se o priacutencipe pensa que satildeo riquezas

suas os bens que seus suacuteditos possuam entatildeo

que evite a guerra por todas as razotildees pois eacute

certo que esta ainda que venha a ser vencida

arruiacutena os recursos de todos e as riquezas

conquistadas pelo trabalho honesto tecircm de ser

gastas com o sustento de certos carrascos

selvagens Eacute necessaacuterio ainda que considerem

mais e mais que todo homem lisonjeia-se com

sua proacutepria causa e a proacutepria esperanccedila que

acalenta lhe parece mais risonha a qual ainda

que muitas vezes se torne a pior das realidades

induz ao erro e parece justiacutessima a quem estaacute

perturbado Supotildee a mais legiacutetima das causas

considera o mais feliz desfecho para uma guerra

calcula todos os prejuiacutezos inerentes ao estado de

guerra e o lucro gerado pela vitoacuteria E vecirc se a

vitoacuteria compensou o investimento Quase nunca

ocorre uma vitoacuteria sem sanguinolecircncia o que

conquistaste estaraacute contaminado de sangue

humano Soma a isso que para obter a vitoacuteria os

173

[785] ad facinus excitas iacutemprobos neque

vero confecto bello protinus et belli

reliquiae sopitae sunt Obsolescunt artes

includuntur negociatorum commercia Ut

hostem includas prius temet ipsum a tot

regionibus cogeris excludere Ante

bellum omnes finitimae regiones tuae

erant pax enim rerum commerciis facit

omnia communia Vide quantam rem

egeris nunc vix tua est quae maxime tua

[790] est ditio Ut oppidulum excindas

quot machinis quot tentoriis opus est

Imitatitiam urbem facias oportet ut

veram evertas at minoris aliud verum

oppidum exstrui poterat Ne liceat hosti

prodire ex oppido tu exsul a patria sub

dio dormis Minoris constaturum erat

aedificare nova moenia quam aedificata

machinis demoliri Ut ne computem hic

quod pecuniarum effluit inter exigentium

[795] recipientium ac ducum digitos

quae sane pars est non minima Quod si

horum singula ad verum calculum

revoces ni compereris decima

impendiorum parte pacem redimi

potuisse patiar aequo animo me

profligari undique Sed parum excelsi

animi tibi videare si quid remittas

iniuriarum Immo nullum est certius

argumentum humilis animi minimeque

regii quam ulcisci Maiestati tuae [800]

non nihil decedere putas si cum finitimo

costumes e a ordem puacuteblica satildeo devastados e

isso estaacute perdido sem possibilidade de reparo

Exaures o teu tesouro expolias o povo oneras os

bons incitas os iacutemprobos para o crime E

acabada a guerra natildeo creias que as suas

consequecircncias se esvairiam imediatamente As

artes fragilizam-se os tratos comerciais cessam

Para sitiares o inimigo eacutes forccedilado a abandonar

primeiro muitas regiotildees Antes da guerra todos

os territoacuterios vizinhos eram teus pois com as

trocas comerciais a paz torna todos os bens

comuns Presta atenccedilatildeo no que fizeste Com a

guerra mal se pode dizer agora que te pertence o

teu proacuteprio territoacuterio Quantas maacutequinas de

guerra e quantas tendas satildeo necessaacuterias para

destruir uma cidadezinha Eacute preciso que

construas quase uma cidade falsa para

conquistares uma verdadeira quando seria

possiacutevel por preccedilo menor construir outra cidade

verdadeira Para impedir que o inimigo saia da

cidade sitiada dormes ao ar livre exilado da tua

paacutetria Sairia muito mais barato levantar novas

muralhas do que demolir as jaacute construiacutedas com

maacutequinas de guerra Isso sem contar a

quantidade de dinheiro que deve ser repassado agraves

matildeos dos cobradores dos recebedores e dos

generais que aliaacutes natildeo eacute de modo algum a

menor parte de teus gastos Se depois de

calculares um orccedilamento exato de cada um

desses itens natildeo chegares agrave conclusatildeo de que a

paz poderia ter sido comprada pela deacutecima parte

do que a guerra custou darei de bom grado

174

principe agens et fortasse cognato aut

affini fortassis alias bene de te merito de

tuo iure decedas aliquantulum At quanto

humilius deiicis maiestatem tuam dum

barbaris cohortibus et infimae

sceleratorum feci numquam explendae

auro subinde litare cogeris dum ad Cares

vilissimos simul ac nocentissimos

blandus ac supplex mittis legatos dum

[805] tuum ipsius caput dum tuorum

fortunas illorum credis fidei quibus nihil

est neque pensi neque sancti Quod siquid

iniquitatis videbitur habere pax cave sic

cogites hoc perdo sed tanti pacem emo

[808] At dixerit argutior aliquis

Facile donarim si res ad me privatim

pertineat Princeps sum negotium

publicum velim nolim ago Non facile

permissatildeo para que me expulsem de toda parte

Contudo a ti pareccedila pouca grandeza de espiacuterito

se retribuiacuteres alguma das ofensas Na verdade

eu te asseguro que natildeo haacute prova mais certa de

um espiacuterito mesquinho e nada reacutegio do que o

desejo de vinganccedila Julgas rebaixar tua

majestade se de modo magnacircnimo renuncias a

um pouquinho de teu direito quando tens uma

pendecircncia com um priacutencipe vizinho que aliaacutes

bem pode ser teu parente ou chegado por

afinidade e que talvez em outra ocasiatildeo te

tenha feito o bem Mas como humilhas a tua

majestade muito mais quando eacutes forccedilado a

aplacar com ouro os insaciaacuteveis esquadrotildees de

baacuterbaros ou ainda pior a mais vil raleacute dos

criminosos quando numa posiccedilatildeo de lisonja e

suacuteplica envias embaixadores para contratar os

mais vis e perversos mercenaacuterios135

quando

fazes a tua proacutepria cabeccedila e a sorte dos teus

suacuteditos depender da lealdadade desses teus

aliados para quem natildeo existe nada de sagrado ou

respeitaacutevel Quanto a isso se parecer que a paz

tem algo de iniacutequo evita pensar assim ldquoEu

perco istordquo mas pensa antes ldquopor tanto compro

a pazrdquo

Mas algum priacutencipe mais arguto poderia

objetar ldquose dependesse soacute de mim perdoaria

com facilidade Como sou priacutencipe queira ou

natildeo queira devo cuidar de um interesse

135

Segundo Diodoro Siacuteculo Careacutes teria sido um general ateniense que viveu no seacuteculo IV a C Careacutes passou

para a histoacuteria como traidor porque estando os gregos em guerra contra os argivos Careacutes evitou atacar os

inimigos e feriu os aliados de Atenas promoveu uma guerra civil e desacreditou seu povo diante de seus aliados

(Diodoro Siacuteculo Biblioteca Histoacuterica Livro XV 73)

175

bellum suscipiet [810] qui nihil nisi

publicum spectat atqui contra videmus

omneis belli causas ex his rebus nasci

quae nihil ad populum pertineant Vis

hanc aut illam ditionis partem vindicare

quid istud ad populi negotium Vis

ulcisci qui filiae renunciavit quid hoc ad

rempublicam Haec expendere haec

perspicere vere sapientis vereque magni

est principis Quis umquam aut latius

imperavit aut splendidius [815] Octavio

Augusto42

At is cupiebat etiam deponere

imperium si quem vidisset reipublicae

magis salutarem principem Merito

laudata est ab egregiis auctoribus vox illa

cuiusdam imperatoris Pereant inquit

filii mei si quis alius melius sit

reipublicae consulturus Hos animos

reipublicae praestiterunt homines impii

quod ad Christi religionem attinet et

Christiani principes usque [820] adeo

vilem ducunt populum Christianum ut

gravissimo orbis incendio privatas suas

cupiditates vel ulcisci velint vel explere

puacuteblicordquo Ora quem atende exclusivamente ao

interesse puacuteblico natildeo aceitaraacute a guerra com

facilidade A verdade eacute que tambeacutem aqui vemos

que quase todas as causas da guerra nascem de

interesses que em nada concernem ao povo

Queres reivindicar teu domiacutenio sobre este ou

aquele feudo Pois que proveito tira o povo

desse projeto Queres tirar a desforra do priacutencipe

que necusou desposar a tua filha136

Mas o que

isto tem a ver com os interesses da repuacuteblica

Refletir sobre essas questotildees e observar todas

essas circunstacircncias eacute proacuteprio de um priacutencipe

saacutebio e grande Quem eacute que reinou de modo

mais esplecircndido e por tanto tempo do que Otaacutevio

Augusto Mas ele proacuteprio desejava vivamente

renunciar ao impeacuterio caso encontrasse algueacutem

que pudesse vir a ser um priacutencipe mais capaz de

promover a repuacuteblica137

Com meacuterito foi louvado

pelos autores egreacutegios aquela fala do imperador

ldquoPereccedilam os meus filhos se houver algueacutem que

cuide melhor da repuacuteblicardquo138

Homens iacutempios

do ponto de vista da religiatildeo de Cristo foram

capazes de cultivar esses pensamentos acerca da

repuacuteblica e agora priacutencipes cristatildeos desprezam

42

deponere imperium (cf Suet Aug 28)

136 Segundo Margolin (1992 p 950) alusatildeo agrave filha do Imperador Maximiliano Margarida da Aacuteustria noiva de

Carlos VIII mas rejeitada por seu pai em 1492

137 Como tradutor tenho convicccedilatildeo de que Erasmo utiliza a palavra repuacuteblica em um sentido muito proacuteximo ao

que hoje denominamos estado O priacutencipe natildeo protege a repuacuteblica entendida como sistema de governo oposto agrave

monarquia mas o estado como um aparato que visa o bem comum Conforme Suetocircnio (Iulius 83) Ceacutesar

Augusto foi o fundador do Impeacuterio Romano e primeiro Imperador que administrou o impeacuterio por mais de 40

anos Augusto iniciou o periacuteodo de paz relativa chamado de Pax Romana Embora tenha expandido o impeacuterio

estabeleceu relaccedilotildees paciacuteficas com outros reinos e reformou o sistema tributaacuterio desenvolveu as vias romanas

com um sistema oficial de correio e outras obras arquitetocircnicas em Roma obtendo grande popularidade

138 Cf Hist Aug Auid Cast 2 8

176

[822] Iam audio quosdam ita

tergiversantes ut negent se tutos esse

posse nisi vim improborum acriter

propellant Cur igitur inter innumeros

imperatores Romanos soli Antonini pius

et philosophus petiti non sunt Nisi quod

nemo tutius [825] regnat quam qui

paratus est et deponere utpote quod

reipublicae gerat non sibi Quod si nihil

vos movet neque naturae sensus neque

pietatis respectus neque tanta calamitas

certe Christiani nominis probrum animos

vestros in concordiam redigat Quota

mundi portio tenetur a Christianis Atque

haec tamen est illa civitas in aedito monte

sita spectaculum facta deo et hominibus

[830] At quid sentire putandum est quid

loqui quae probra in Christum evomere

Christiani nominis hostes ubi vident

Christianos sic inter sese concertare

levioribus de causis quam ethnici

crudelius quam impii machinis

tetrioribus quam ipsi Quorum inventum

est bombarda Nonne Christianorum Et

quo res sit indignior his induuntur

apostolorum nomina insculpuntur

o povo cristatildeo a tal ponto que incendeiam o

mundo inteiro para saciar sua sede de cobiccedila ou

seu desejo de vinganccedila

Jaacute ouccedilo o argumento de alguns que me

criticam Negam que se possa conservar sua

seguranccedila se natildeo lutarem de forma acerba contra

o iacutempeto dos iacutemprobos Por que entatildeo dentre os

inuacutemeros imperadores romanos somente os

Antoninos139

o Pio e o Filoacutesofo natildeo foram

atacados Natildeo seraacute porque ningueacutem reina com

maior seguranccedila do que aquele que estaacute

preparado para renunciar sabendo que serve aos

interesses da repuacuteblica e natildeo a seus proacuteprios

caprichos Se nada disso vos comove nem o

bom senso da natureza nem o respeito oriundo

da piedade nem a visatildeo de tantas calamidades

que ao menos o oproacutebrio que recai sobre o nome

cristatildeo conduza as vossas mentes agrave concoacuterdia

Qual eacute a porccedilatildeo do mundo pertencente aos

cristatildeos Esta eacute no entanto aquela cidade

edificada sobre um monte elevado espetaacuteculo

para Deus e para os homens Mas que se deve

julgar que pensam O que dizem Que espeacutecie

de ofensas se espera que vomitem contra Cristo

os inimigos do nome cristatildeo ao verem o modo

como os cristatildeos lutam entre si movidos por

causas mais insignificantes do que as dos

pagatildeos de modo mais cruel do que os iacutempios e

com maacutequinas mais terriacuteveis do que aquelas que

139

O Antonino Pio mencionado por Erasmo seria o imperador romano da dinastia Nerva-Antonina que governou

entre os anos de 138 e 161 e Marcus Antonius philosophus que foi imperador conhecido sob o nome de Marcus

Aurelius Antoninus (161-180) (Historia Augusta Ant Pius 133 Marc Ant Philos 185)

177

imagines O crudelis [835] irrisio Paulus

ille pacis hortator perpetuus tartaream

machinam torquet in Christianum Si

cupimus Turcas ad Christi religionem

adducere prius ipsi simus Christiani

Numquam hoc illi credent si quod est

perspiciant nusquam magis saevire quam

apud Christianos id quod Christus unum

omnium maxime detestatus est Et quod

Homerus ethnicus demiratur in ethnicis

cum suavium [840] etiam rerum satietas

sit somni cibi potus choreae musices

belli infelicis nullam esse satietatem id

apud eos verissimum est quibus ipsum

etiam belli vocabulum abominandum

esse oportuit Roma furiosa quondam illa

bellatrix tamen Iani sui templum

aliquoties vidit clausum Et qui convenit

apud vos nullas esse bellandi ferias

Quonam ore praedicabitis eis Christum

pacis auctorem ipsi [845] perpetuis

dissidiis inter vos tumultuantes Iam quos

putatis animos addit Turcis vestra

discordia Nihil enim facilius quam

vincere dissidentes Vultis illis esse

formidabiles Concordes estote Cur ultro

vobis et praesentis vitae iucunditatem

invidetis et a futura felicitate vultis

excidere Multis malis per se obnoxia est

vita mortalium magnam molestiae

eles mesmos usam Quem inventou os canhotildees

Acaso natildeo foram os cristatildeos E para tornar isso

ainda mais indigno revestem as armas de

destruiccedilatildeo com os nomes dos Apoacutestolos e

esculpem sobre elas imagens de santos Oacute cruel

escaacuternio Que o nome de Paulo o perpeacutetuo

arauto da paz seja dado a uma maacutequina infernal

apontada contra os cristatildeos Se desejamos

converter os turcos agrave religiatildeo de Cristo eacute

necessaacuterio que primeiro noacutes mesmos sejamos

cristatildeos Nunca eles acreditaratildeo se constatarem

em toda parte ndash e isto eacute inegaacutevel ndash que grassa em

nenhum lugar mais que entre os cristatildeos aquilo

que Cristo destestou acima de todas as coisas E

aquilo que um poeta pagatildeo como Homero140

espanta a pagatildeos quando constata que haacute

saciedade ateacute para as coisas agradaacuteveis da vida

como o sono a comida a bebida as danccedilas e a

muacutesica mas natildeo para a infeliz guerra antes

deveria tecirc-lo espantado ver que era a coisa mais

verdadeira do mundo para homens que deveriam

abominar ateacute o vocaacutebulo guerra Ateacute mesmo a

outrora impetuosa Roma aquela cidade

guerreira viu muitas vezes fechado o seu templo

de Jano141

E natildeo haacute entre voacutes algueacutem que

concorde que se faccedila uma treacutegua na guerra

Como podereis abrir a boca para pregar aos

turcos sobre Cristo o autor da paz se voacutes

mesmos vos confrontais em perpeacutetuas divisotildees

internas Jaacute pensastes que reaccedilatildeo vossa discoacuterdia

140

Cf Hom Il XIII 636-639

141 Cf Suet Aug 22

178

partem adimet concordia [850] dum

mutuis officiis alius alium aut consolatur

aut iuvat Si quid boni obtinget id tum

suavius tum communius reddet

concordia dum amicus impertit amico et

benevolus benevolo gratulatur Quam

frivola sunt quamque mox peritura pro

quibus inter vos tumultus est Mors

omnibus imminet non minus Regibus

quam plebeiis Quos tumultus ciet

animalculum mox fumi in morem

evaniturum [855] In foribus adest

aeternitas Quorsum attinet pro rebus

istis umbraticis perinde moliri quasi vita

haec esset immortalis O miseros qui

felicem illam piorum vitam non credunt

aut non sperant impudentes qui sibi

pollicentur e bellis ad eam iter esse cum

illa nihil sit aliud quam ineffabilis

quaedam felicium animorum communio

cum iam ad plenum continget quod

Christus tam enixe [860] rogaverat

patrem coelestem ut sic inter se

iungerentur illi quemadmodum ipse patri

iunctus esset Ad hanc summam

concordiam qui possitis esse idonei nisi

eam interim pro virili meditemini Ut

non subito ex spurco helluone fit angelus

ita non subito ex bellatore sanguinario

martyrum et divorum socius Eia satis

iam superque fusum est Christiani si

parum est humani sanguinis satis in

produz nos turcos Pois nada mais faacutecil do que

vencer aqueles que natildeo se entendem Quereis

tornar-vos temiacuteveis para eles Ponde-vos de

acordo Por que recusais deliberadamente os

prazeres da vida presente e quereis perder os da

felicidade futura Por si soacute a vida dos mortais

estaacute repleta de muitos males mas grande parte

desse incocircmodo seria aliviada pela concoacuterdia que

faz que uns aos outros se ajudem ou ao menos

consolem-se com serviccedilos muacutetuos Se algum

benefiacutecio for dado a algueacutem a concoacuterdia faraacute tal

bem tanto mais agradaacutevel quanto mais for

extensivo aos demais o amigo partilhando-o

com o amigo e sentindo alegria com a alegria do

outro Como as guerras satildeo friacutevolas e por quatildeo

levianas questotildees se promove o conflito entre

voacutes A morte ameaccedila a todos e natildeo menos aos

reis que aos plebeus Quantas discoacuterdias produz

um animalzinho despreziacutevel que logo

desapareceraacute como fumaccedila ao vento Ao sair da

vida a eternidade estaacute agraves portas Que proveito haacute

em construir suas aspiraccedilotildees em coisas tatildeo vatildes

como se a vida presente fosse imortal Oacute

miseraacuteveis que natildeo acreditam ou natildeo esperam

aquela vida feliz dos homens piedosos Homens

impudicos que se persuadem de que existe um

caminho que leva das guerras agravequela vida

quando ela natildeo eacute senatildeo a inefaacutevel comunhatildeo de

todas as almas bem-aventuradas quando se

realizar finalmente em toda a plenitude aquilo

que Cristo havia pedido tatildeo assiduamente ao Pai

Celeste que todos se unissem como o Filho estaacute

179

[865] mutua debacchatum exitia satis

hactenus Furiis Orcoque litatum satis diu

quae Turcarum pascat oculos Acta est

fabula Saltem aliquando post nimium diu

toleratas bellorum miserias resipiscite

Quicquid hactenus insanitum est fatis

imputetur Placeat Christianis quae

quondam profanis placuit superiorum

malorum oblivio Posthac communibus

consiliis in pacis studium incumbite

[870] Et sic incumbite ut non stupeis sed

solidis atque adamantinis vinculis coeat

numquam dirumpenda

[872] Vos appello principes de

quorum nutu potissimum pendent res

mortalium qui Christi principis

imaginem inter mortales geritis

Agnoscite regis vestri vocem ad pacem

vocantis existimate totum orbem diutinis

fessum malis hoc a vobis [875] flagitare

unido ao Pai Natildeo podeis ser dignos de gozar

essa suma concoacuterdia a natildeo ser que a prepareis o

mais possiacutevel Assim como eacute impossiacutevel que

subitamente um glutatildeo sujo se transforme em um

anjo assim tambeacutem natildeo eacute de repente que de um

guerreiro sanguinaacuterio surge um amigo dos

maacutertires e dos divinos Eia Basta Jaacute se

derramou muito sangue cristatildeo como se fosse

pouco dizer sangue humano Basta de os homens

se deixarem tomar por essa loucura de

destruiccedilotildees muacutetuas Decirc-se agora um basta de

fazer oferendas agraves fuacuterias e ao Orco Basta o que

haacute muito divirte os olhos dos turcos Depois de

tolerar as miseacuterias das guerras por tanto tempo

arrependei-vos ao menos uma vez Que sejam

imputados aos fados as insanidades todas

praticadas ateacute hoje Que os cristatildeos natildeo se

envergonhem em fazer como outrora os pagatildeos

esquecer os males passados Depois por

deliberaccedilotildees comuns aplicai-vos agrave preservaccedilatildeo

da paz E aplicai-vos de tal forma que ela se

firme com laccedilos natildeo de tecido mas soacutelidos e

mais inquebraacuteveis que o diamante que jamais

romper-se-atildeo

Apelo a voacutes priacutencipes que com um

miacutenimo gesto alteram a sorte dos mortais voacutes

que representais entre os homens o exemplo do

Cristo Priacutencipe Reconhecei a voz do vosso

Mestre que vos chama agrave paz Convencei-vos de

que o mundo todo fatigado de demasiados

males suplica isso de voacutes Se haacute algueacutem a quem

uma ofensa ainda machuque parece justo que a

180

Si quid cui dolet etiam aequum est hoc

publicae omnium felicitati donare Maius

est negotium quam ut levibus causis

debeat retardari Appello vos sacerdotes

deo sacri hoc studiis omnibus exprimite

quod deo gratissimum esse scitis Hoc

depellite quod illi maxime invisum

Appello vos theologi pacis evangelium

praedicate hanc semper popularibus

auribus occinite [880] Appello vos

episcopi aliique dignitate Ecclesiastica

praeminentes ad pacem aeternis vinculis

adstringendam vestra valeat auctoritas

Appello vos primates et magistratus ut

sapientiae regum ut pietati pontificum

vestra voluntas sit adiutrix Vos appello

promiscue quicumque Christiano nomine

censemini consentientibus animis in hoc

conspirate Hic ostendite quantum valeat

adversus potentum [885] tyrannidem

multitudinis concordia Huc pariter

omnes omnia sua consilia conferant

Iungat aeterna concordia quos tam multis

rebus coniunxit natura pluribus Christus

Communibus studiis agant omnes quod

ad omnium ex aequo felicitatem pertinet

[889] Huc invitant omnia primum

ipse naturae sensus atque ipsa ut ita

dicam humanitas [890] Deinde totius

humanae felicitatis Princeps et Auctor

Christus Ad haec tam multa pacis

perdoe em nome da felicidade puacuteblica de todos

Este assunto eacute da maior prioridade para ser

protelado por motivos insignificantes Apelo a

voacutes sacerdotes consagrados para Deus

Empenhai-vos zelosamente em pregar aquilo que

sabeis que eacute a coisa mais grata a Deus e em

dissuadir daquilo que Ele mais detesta Apelo a

voacutes teoacutelogos Pregai o Evangelho da paz

trombeteai sempre isto nos ouvidos do povo

Apelo a voacutes bispos e demais dignataacuterios

eclesiaacutesticos que a vossa autoridade sirva para

atar a paz com viacutenculos eternos Apelo a voacutes

nobres e magistrados para que auxilies com a

vossa vontade a sabedoria dos reis e a piedade do

pontiacutefice Apelo a todos voacutes quem quer que

sejais que vos designeis com o nome de cristatildeo

para que vos coloqueis de acordo e sejais

unacircnimes no projeto da paz Mostrai aqui que a

concoacuterdia dos povos vale mais que tirania dos

poderosos Que todos ofereccedilam por igual todos

os seus conselhos para essa finalidade Que a

concoacuterdia eterna una aqueles a quem a natureza

uniu por muitos viacutenculos mas que Cristo uniu

por muitos mais Que todos em suas atividades

cotidianas procurem o que por igual interessa agrave

felicidade de todos

Tudo nos convida a isso Em primeiro

lugar o proacuteprio instinto da natureza e se assim

posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo

lugar o proacuteprio Cristo priacutencipe e autor de toda

felicidade humana Depois as incontaacuteveis

vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero

181

commoda tot belli calamitates Vocant

huc ipsi principum animi iam velut

adflante deo ad concordiam propensi En

pacificus ille placidusque Leo signum

omnibus extulit ad pacem invitans

vereque Christi vicarium agens Si vere

oves estis sequimini pastorem Si filii

audite patrem Vocat huc [895] ille non

titulo tantum Christianissimus Galliarum

rex Franciscus qui pacem nec emere

gravatur nec usquam suae maiestatis

habet rationem modo publicae paci

consulat hoc denique vere splendidum ac

regium esse docens de genere humano

quam optime mereri Vocat huc

clarissimus princeps Carolus incorruptae

indolis adolescens Nec abhorret Caesar

Maximilianus nec detractat [900]

inclytus Angliae rex Henricus Tantorum

principum exemplum caeteros libenter

imitari par est Maxima plebis pars

bellum detestatur pacem orat Pauculi

quidam modo quorum impia felicitas a

publica pendet infelicitate bellum optant

Quorum improbitas ut plus valeat quam

imenso das calamidades da guerra Convidam agrave

paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que

como que inspirados por Deus jaacute estatildeo

propensos agrave concoacuterdia Eis aquele paciacutefico e

tranquilo Leatildeo142

que diante de todos ergueu o

estandarte a fim de convidar agrave paz e agiu como

autecircntico Vigaacuterio de Cristo Se verdadeiramente

sois ovelhas segui o pastor Se sois filhos

escutai o pai Convida agrave paz o celebrado

Francisco143

rei da Franccedila cristianiacutessimo natildeo

apenas de tiacutetulo o qual natildeo soacute natildeo se

envergonha de comprar a paz como tambeacutem natildeo

se mostra demasiadamente zeloso de sua

majestade contanto que seja para cuidar da paz

puacuteblica ensinando enfim que eacute proacuteprio de um

espiacuterito realmente esplecircndido e reacutegio ser

merecedor da maior gratidatildeo do gecircnero humano

Convida agrave paz o preclariacutessimo Priacutencipe

Carlos144

jovem de iacutendole incorruptiacutevel E natildeo

descuida de mim o Imperador Maximiliano145

assim como natildeo deprecia Henrique o iacutenclito rei

da Inglaterra146

Eacute justo que os demais imitem

com toda alegria o exemplo de tatildeo grandes

priacutencipes O povo em sua maioria detesta a

guerra e faz votos pela paz Reduzido eacute o nuacutemero

142

Papa Leatildeo X

143 Francisco I (1494-1547) Rei da Franccedila de 1515 ateacute a sua morte Queixa da Paz foi publicada em 1517 dois

anos apoacutes Francisco herdar o governo

144 Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano Alematildeo com apenas 17 anos de

idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio Habsburgo em 1519

145 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela morreria dois anos

depois

146 Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia a catolicidade do rei

inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536

182

bonorum omnium voluntas aequum sit

nec ne vos ipsi expendite Videtis

hactenus nihil actum foederibus nihil

[905] promotum affinitatibus nihil vi

nihil ulciscendo Nunc contra periculum

facite quid possit placabilitas quid

beneficentia Bellum e bello seritur ultio

trahit ultionem Nunc gratia gratiam

pariat et beneficium beneficio invitetur

isque regalior videatur qui plus de suo

iure concesserit Non successit quod

humanis studiis gestum est At fortunabit

ipse Christus pia consilia quae se [910]

autore et auspice viderit suscipi Aderit

dexter adspirabit favebitque faventibus

ei rei cui favit ipse plurimum privatos

adfectus publica vincat utilitas

Quamquam dum huic consulitur et sua

cuique fortuna melior reddetur

principibus regnum erit augustius si piis

ac felicibus imperent ut legibus regnent

magis quam armis proceribus maior

veriorque dignitas sacerdotibus otium

tranquillius [915] populo quies uberior

et ubertas quietior nomen Christianum

formidabilius crucis hostibus Denique

singuli singulis et omnes omnibus cari

simul [917] et iucundi eritis super omnia

Christo grati cui placuisse summa

felicitas est [918] Dixi

daqueles que optam pela guerra porque sua

felicidade iacutempia depende da infelicidade puacuteblica

Ponderai voacutes mesmos se eacute justo que a maldade

destes tenha mais forccedila do que a vontade de

todos os homens bons Vedes que ateacute o presente

momento nada se conseguiu com tratados nada

foi feito com a promoccedilatildeo de matrimocircnios

poliacuteticos nada se obteve pela forccedila nada se

construiu com a vinganccedila Fazei entatildeo a

experiecircncia do poder da clemecircncia e da boa

vontade Guerra semeia guerra vinganccedila atrai

vinganccedila Que agora a indulgecircncia decirc agrave luz a

indulgecircncia e um favor feito a algueacutem convide a

outro favor Que se avalie como possuidor de

realeza aquele que mais conceder os seus

proacuteprios direitos em benefiacutecio da paz Natildeo se

realizou aquilo que foi tentado apenas com as

providecircncias humanas mas o proacuteprio Cristo traraacute

ecircxito agraves decisotildees piedosas que vir que satildeo

concebidas tendo-o como autor e guia supremo

Estaraacute presente de forma propiacutecia inspiraraacute e

favoreceraacute aqueles que favorecem aquilo a que

ele favoreceu sobremaneira Que a utilidade

puacuteblica supere as paixotildees privadas Ateacute porque

enquanto cada um se ocupa desta torna melhor

sua proacutepria sorte os priacutencipes seratildeo mais

augustos se governarem suacuteditos piedosos e

felizes reinando sob a eacutegide das leis mais do que

pelas armas Os nobres gozaratildeo de maior e mais

autecircntica dignidade os sacerdotes usufruiratildeo de

um repouso mais tranquilo o povo teraacute uma

tranquilidade mais proacutespera ou uma

183

prosperidade mais tranquila O nome cristatildeo seraacute

mais temido pelos inimigos da cruz Em suma

todos e cada um de voacutes sereis em tudo mais

amados e agradaacuteveis uns para os outros e cada

um de todos e sobretudo sereis mais gratos a

Cristo a quem agradar consiste a suma

felicidade dessa vida Tenho dito

184

185

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  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • SUMAacuteRIO
  • INTRODUCcedilAtildeO
    • Estrutura do estudo introdutoacuterio
    • Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa
      • CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO RENASCIMENTO
        • 11 Origem grega
          • 111 Definiccedilatildeo
          • 112 Principais autores e escritos em grego
            • 12 A praacutetica latina
            • 13 As fontes latinas
              • 131 Discussatildeo terminoloacutegica
              • 132 O contexto republicano e o imperial
                • 14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos
                  • 141 A Retoacuterica a Herecircnio
                  • 142 Ciacutecero
                  • 143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho
                  • 144 A suasoacuteria em Secircneca
                  • 145 Quintiliano
                    • 15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento
                    • 16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos
                    • 17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas
                      • 171 Lourenccedilo Valla
                      • 172 Thomas More
                        • 18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas
                        • 19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas
                        • 110 Conclusotildees do capiacutetulo
                          • CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ
                            • 21 Definiccedilotildees erasmianas
                            • 22 Temas
                            • 23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes
                              • 231 Isoacutecrates
                              • 232 Plutarco
                              • 233 Luciano
                                • 24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo
                                • 25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas
                                • 26 Declamaccedilatildeo escrita e integral
                                • 27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico
                                • 28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz
                                • 29 A disposiccedilatildeo retoacuterica
                                • 210 As sentenccedilas e os adaacutegios
                                • 211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes
                                • 213 Conclusotildees do capiacutetulo
                                  • CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ
                                    • 31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo
                                    • 32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas
                                    • 33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio
                                    • 34 Personificaccedilotildees femininas
                                    • 35 A deusa Pax
                                    • 36 A Paz enquanto saacutebia
                                    • 37 A Paz enquanto teoacuteloga
                                    • 38 A Paz enquanto viacutetima
                                    • 39 Conclusatildeo do capiacutetulo
                                      • CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                      • NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA COMENTADA
                                      • BIBLIOGRAFIA
                                        • Fontes primaacuterias
                                        • Traduccedilotildees da Queixa da Paz em ordem cronoloacutegica
                                        • Outras fontes e traduccedilotildees
                                        • Dicionaacuterios
                                        • Estudos
Page 4: A declamação Queixa da Paz de Erasmo de Rotterdam: …...É objetivo desta dissertação apresentar a primeira tradução direta do latim para o português brasileiro da declamação

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar aos meus pais Emanuel e Luiza Agrave minha esposa Susana meu

filho Felipe e aos meus irmatildeos Emanuel Luiz e Hugo

Agrave Professora Doutora Elaine Cristine Sartorelli que orientou incansavelmente cada

etapa do trabalho e sempre permitiu a liberdade para adoccedilatildeo ou natildeo de suas sugestotildees Devo

reconhecer todo seu empenho Guardarei admiraccedilatildeo pela sua competecircncia e gratidatildeo por tudo

que com ela aprendi

Natildeo poderia deixar ainda de manifestar minha gratidatildeo a tudo que o Professor Doutor

Pablo Schwartz Frydman e a Doutoranda Baacuterbara Costa e Silva ambos dedicados

pesquisadores das antigas declamaccedilotildees contribuiacuteram para o aprofundamento e a correccedilatildeo do

estudo introdutoacuterio Aos professores Paulo Vasconcellos e Pablo Schwartz Frydman que

fizeram vaacuterias sugestotildees pertinentes durante o exame de qualificaccedilatildeo tanto no texto

introdutoacuterio quanto na traduccedilatildeo

Ao corpo docente da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da

Universidade de Satildeo Paulo que com muito esmero excelecircncia e solicitude me

acompanharam nessa etapa especialmente aos Professores Doutores Joseacute Eduardo Lohner

Pablo Schwartz Frydman Maacutercio Suzuki Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Luiz Antocircnio

Lindo que tambeacutem concederam indicaccedilotildees durante o trabalho de conclusatildeo da disciplina que

com eles cursei ao longo do mestrado Natildeo poderia ser omisso em agradecer agrave banca

examinadora que com gentileza e competecircncia arguiram e indicaram modificaccedilotildees no

trabalho

Agrave amiga Professora Doutora Vanessa Guimaratildees Monteiro Ferreira da Costa que

tambeacutem fez observaccedilotildees significativas no que se refere agrave traduccedilatildeo Ao Professor Doutor Marc

van der Poel que gentilmente enviou por correio seus artigos e livros sobre a declamaccedilatildeo natildeo

disponiacuteveis agrave venda a fim de contribuir com esta pesquisa Aos professores de Liacutengua

Portuguesa meus amigos que incansavelmente me auxiliaram na redaccedilatildeo revisatildeo e

discussotildees de opccedilotildees de redaccedilatildeo nomeadamente Letiacutecia Mendes Ferri Luiz Santos Susana

Aparecida da Silva Regina Berti Sarah Barbosa e Weber Suhett

RESUMO

SANTOS Marcos Eduardo Melo dos A declamaccedilatildeo Queixa da paz de Erasmo de

Rotterdam estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue) 2017 228 f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo 2017

Este trabalho propotildee a primeira traduccedilatildeo feita diretamente do latim para o portuguecircs

brasileiro de uma das obras mais importantes do humanista Erasmo de Rotterdam a Querela

Pacis undique gentium eiectae profligataeque publicada em 1517 Tal obra constitui-se ao

lado de outros escritos como uma das mais importantes declamaccedilotildees realizadas durante o

Renascimento Nossa transposiccedilatildeo para o portuguecircs consideraraacute os recursos retoacutericos escritos

em latim aleacutem de conter notas explicativas e referecircncias histoacutericas mitoloacutegicas e

bibliograacuteficas sempre que estas se fizerem necessaacuterias para melhor compreensatildeo do texto

aleacutem de referecircncias a autores da Antiguidade assim como a outras obras do proacuteprio autor No

estudo introdutoacuterio dessa obra de gecircnero declamatio renascentista procurar-se-aacute analisar o

texto erasmiano segundo a conceituaccedilatildeo da retoacuterica tradicional antiga sobretudo dos autores

do periacuteodo imperial quando a praacutetica das declamaccedilotildees escritas em grego e latim se sobrepocircs agrave

oratoacuteria sem espaccedilo em razatildeo do decliacutenio senatorial Com base nas fontes antigas e nos

estudos recentes pretendemos identificar as semelhanccedilas e diferenccedilas entre a retoacuterica dos

autores romanos e a erasmiana nela concretizada Tambeacutem seratildeo investigadas as estrateacutegias

da argumentaccedilatildeo persuasiva sejam epidiacuteticas sejam deliberativam em favor da paz e em sua

polecircmica diatribe contra a guerra

Palavras-chave retoacuterica recepccedilatildeo dos claacutessicos humanismo Erasmo de Rotterdam

declamaccedilatildeo

ABSTRACT

SANTOS Marcos Eduardo Melo dos The Complaint of Peace declamation by

Desiderius Erasmus introduction and translation (Bilingual edition) 2017 228 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo

2017

This paper proposes the first translation directly from Latin into Brazilian Portuguese

of one of the most important works by the humanist Desiderius Erasmus Querela Pacis

undique gentium eiectae profligataeque published in 1517 This work constitutes one of the

most important declamations written during the Renaissance Our transposition to Portuguese

will consider rhetorical resources as well as containing explanatory notes about historical

mythological and bibliographical references whenever these are necessary for a better

understanding of the text such as references to direct or indirect allusions to writings of

Antiquity or other works by the author himself In the introductory study of this work of the

Renaissance declamatio genre we will analyze the Erasmian text according to the ancient

traditional Greco-Roman concept of Rethoric especially in the authors of the imperial period

when the practice of declamations written in Greek and Latin overlapped the oratory without

the ancient status because of the senatorial decline Based on ancient sources and recent

studies we intend to identify the similarities and differences between the rhetoric of classic

Latin authors and the erasmian rhetoric embodied in the Complaint of Peace We will also

investigate the strategies of persuasive argumentation whether epididical or deliberative in

favor of peace and in its controversial diatribe against war

Keywords rhetoric classical reception humanism Desiderius Erasmus declamation

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 1

Estrutura do estudo introdutoacuterio 4

Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa 5

CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO

RENASCIMENTO 11

11 Origem grega 11

111 Definiccedilatildeo 11

112 Principais autores e escritos em grego 14

12 A praacutetica latina 15

13 As fontes latinas 17

131 Discussatildeo terminoloacutegica 18

132 O contexto republicano e o imperial 19

14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos 22

141 A Retoacuterica a Herecircnio 22

142 Ciacutecero 22

143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho 23

144 A suasoacuteria em Secircneca 28

145 Quintiliano 30

15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento 35

16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos 39

17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas 42

171 Lourenccedilo Valla 42

172 Thomas More 44

18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas 45

19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas 47

110 Conclusotildees do capiacutetulo 48

CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ 51

21 Definiccedilotildees erasmianas 51

22 Temas 53

23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes 56

231 Isoacutecrates 56

232 Plutarco 57

233 Luciano 57

234 Libacircnio 58

24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo 60

25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas 62

26 Declamaccedilatildeo escrita e integral 63

27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico 64

28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz 68

29 A disposiccedilatildeo retoacuterica 69

210 As sentenccedilas e os adaacutegios 73

211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes 77

212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio 78

213 Conclusotildees do capiacutetulo 81

CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ 83

31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo 83

32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas 83

33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio 85

34 Personificaccedilotildees femininas 87

35 A deusa Pax 92

36 A Paz enquanto saacutebia 95

37 A Paz enquanto teoacuteloga 97

38 A Paz enquanto viacutetima 100

39 Conclusatildeo do capiacutetulo 101

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 103

NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA

COMENTADA 111

BIbLIOGRAFIA 185

Fontes primaacuterias 185

Traduccedilotildees da Queixa da Paz em ordem cronoloacutegica 185

Outras fontes e traduccedilotildees 187

Dicionaacuterios 189

Estudos 189

1

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute objetivo desta dissertaccedilatildeo apresentar a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o

portuguecircs brasileiro da declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo (Querela Pacis) obra de autoria do

humanista holandecircs Erasmo de Rotterdam1 escrita ao longo do ano de 1516 e publicada em

novembro de 1517 Esta seraacute precedida de um estudo introdutoacuterio que procuraraacute ressaltar o

uso de recursos retoacutericos em defesa da paz e de criacutetica agrave guerra Aleacutem de identificar o modo

pelo qual se fez uso dos autores antigos na ldquoQueixa da Pazrdquo verificaremos as colaboraccedilotildees

mais relevantes de Erasmo para a retoacuterica segundo a antiga tradiccedilatildeo escrita em grego e e

latim Como objetivos especiacuteficos o presente trabalho visa aleacutem de propor uma nova

traduccedilatildeo apresentar uma introduccedilatildeo e notas atualizadas segundo os recentes estudos

acadecircmicos assinalar a ocorrecircncia de referecircncias a oradores latinos assim como daqueles

declamadores do periacuteodo imperial romano que escreveram em grego identificar os elementos

da retoacuterica deliberativa erasmiana em defesa da paz do ponto de vista do gecircnero declamaccedilatildeo

(declamatio)

Este trabalho de pesquisa justifica-se pela contribuiccedilatildeo da primeira traduccedilatildeo direta do

latim para o portuguecircs brasileiro da ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em versatildeo biliacutengue ou seja

com o texto latino em paralelo com a traduccedilatildeo e a uacutenica precedida de um estudo introdutoacuterio

especiacutefico acerca do ponto de vista do gecircnero a que o texto pertence Essa traduccedilatildeo fornece a

aos pesquisadores lusoacutefonos um texto para o entendimento da concepccedilatildeo e do uso da

declamaccedilatildeo por Erasmo que aleacutem de ser um dos mais destacados autores humanistas que

ldquodirecionaram suas obras mais importantes para a educaccedilatildeo literaacuteriardquo (Mack 1993 p 303)

escreveu quatorze obras nesse gecircnero inclusive dentre elas algumas de suas mais lidas

traduzidas e comentadas como eacute o caso do ldquoElogio da Loucurardquo Essa traduccedilatildeo

disponibilizaraacute aos pesquisadores lusoacutefonos a traduccedilatildeo de uma das mais difundidas obras de

Erasmo de Rotterdam em diversos pontos de vista tais como recepccedilatildeo dos antigos pelos

autores cristatildeos renascentistas a permanecircncia dos gecircneros antigos na prosa neolatina e sua

atualizaccedilatildeo por meio da imitatio recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga no seacuteculo XVI uso de

1 Sobre a referecircncia agrave cidade de Erasmo (Rotterdam Roterdatildeo Roterdatilde Roterdam) encontrei variantes

ortograacuteficas em textos acadecircmicos lusos e brasileiros Optei pela versatildeo ldquoRotterdamrdquo com base no ldquoManual de

Redaccedilatildeo Oficial e Diplomaacutetica do Itamaratyrdquo (Brasil Ministeacuterio das Relaccedilotildees Exteriores Manual de redaccedilatildeo

oficial e diplomaacutetica do Itamaraty 2016 p 166)

2

recursos retoacutericos no gecircnero deliberativo e finalmente trata-se de um texto fundamental para

a compreensatildeo da filosofia irecircnica de Erasmo ou seja ao conjunto de argumentos filosoacuteficos

que Erasmo alinha a favor da paz e do qual deriva a moderna concepccedilatildeo de paz em sua

dimensatildeo interestatal

O texto latino por noacutes utilizado foi o ldquoQuerela Pacis undique gentium eictae

profiligataequerdquo disponiacutevel na ediccedilatildeo criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera

omnia recognita et adnotatione critica instructa notisque illustrata Amsterdam North-

Holland 1969-2001) coleccedilatildeo cujo volume com o texto em estudo foi publicado em 1977

Como fontes de conceituaccedilatildeo da arte retoacuterica servimo-nos das obras dos autores latinos e

gregos que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo especialmente aqueles que

foram certamente conhecidos por Erasmo Conforme Chomarat (1981 p 990) devem-se

considerar alguns autores que influenciaram Erasmo na redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

especialmente os que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo Especial atenccedilatildeo

deve ser dada aos autores que aleacutem de teorizarem sobre o gecircnero tambeacutem o praticaram

Conforme a observaccedilatildeo de Franco Gaeta (1968 p 13) procurar-se-aacute a fundamentaccedilatildeo em

ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano assim como nas ldquoControveacutersiasrdquo e ldquoSuasoriasrdquo de

Secircneca o velho e no ldquoSobre a Clemecircnciardquo de Secircneca o Jovem Nesse grupo de autores

antigos devemos ainda acrescer Ciacutecero Plutarco Libacircnio e Luciano Os textos destes autores

foram citados por Erasmo que aleacutem de tradutor tambeacutem era editor e que teve uma

contribuiccedilatildeo significativa para a introduccedilatildeo dos meacutetodos criacuteticos na histoacuteria da filologia

conforme o consenso de vaacuterios autores da aacuterea (Bentley 1977 p 9 Prete 1965 p 259 Prete

1970 p 18 Payne 1974 p 54)

Segundo evidecircncias internas e externas apontadas em um estudo das epiacutestolas

erasmianas realizado por Beauduin (1991 p 35) essa obra foi escrita em Lovaina Beacutelgica

entre novembro e dezembro do ano de 1516 a pedido do grande chanceler da Borgonha Joatildeo

Sauvage e dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Nesse mesmo ano

Erasmo havia sido nomeado conselheiro do priacutencipe Carlos de Borgonha que logo se tornaria

Carlos de Espanha (Margolin 1992 p 909) Foi publicada em 1517 e reeditada em 1518

Como evento histoacuterico proacuteximo que pode ser considerado o principal motivo da redaccedilatildeo desse

manifesto em favor da paz deve-se destacar que estava em curso a guerra da Liga de

Cambrai a qual se estendeu ateacute os enfrentamentos das guerras da Liga Santa (1508-1516)

3

Que este tenha sido de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa

ldquoQueixa da Pazrdquo prova-o a menccedilatildeo a tais fatos histoacutericos em uma de suas correspondecircncias a

Joatildeo Botzheim (1523)2 Da mesma forma Erasmo alude indiretamente ao tema no final da

declamaccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo afirmava na epiacutestola a Joatildeo

Botzheim que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma declamaccedilatildeo (Chomarat 1987 p 997) pretendemos

discutir no estudo introdutoacuterio sobre as caracteriacutesticas desse gecircnero Para isto natildeo somente

verificaremos sua gecircnese atribuiacuteda aos autores gregos (como μελέηη) e sua recepccedilatildeo pelos

autores latinos (como declamatio) mas em que medida a declamaccedilatildeo erasmiana enquadra-se

nesse gecircnero antigo

Em geral seu formato antigo foi definido por Bonner (1949 p 13) Wintterboton

(1980 p 24) e Schwartz (2004 p 21) como um discurso escrito como exerciacutecio escolar

acerca de uma causa fictiacutecia com a finalidade de treino em temas da retoacuterica deliberativa ou

judiciaacuteria Dentre suas caracteriacutesticas o presente estudo ressalta a personificaccedilatildeo que nas

declamationes renascentistas especialmente em Erasmo foi praticada de uma forma

inovadora em comparaccedilatildeo com as antigas Enquanto que naquelas antigas ou seja produzidas

nos seacuteculos I a C a I d C As personagens satildeo humanas e fictiacutecias o que denota certa

modificaccedilatildeo para o gecircnero em estudo A novidadade das declamaccedilotildees renascentistas

especialmente em Erasmo seria a inserccedilatildeo da fala (prosopopeia) de personagens abstratas

como a Paz na ldquoQueixa da Pazrdquo e a Loucura em seu ldquoElogiordquo

Por outro lado destaca-se a ficccedilatildeo como estrateacutegia para expressar ideias de forma livre

em uma sociedade que natildeo prezava a liberdade de expressatildeo e a caracterizaccedilatildeo com atributos

sociais e psicoloacutegicos do universo feminino nessas personificaccedilotildees erasmianas Tal

caracterizaccedilatildeo sem o uso de voz narrativa como eacute natural na declamaccedilatildeo mas atraveacutes do

discurso direto apresenta a paz como mulher e matildee apelando agraves emoccedilotildees do leitor a fim de

cativaacute-lo para a causa irecircnica pretendida pelo autor Conveacutem portanto analisar a ldquoQueixa da

Pazrdquo sob a perspectiva da recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo de um modo semelhante ao que

era praticado pelos autores antigos e predicado nos manuais de retoacuterica latina

2 Cf Erasmo de Rotterdam A Johann von Botzheim in Correspondence of Erasmus Letters 1252 to 1355

1522 to 1523 Trad James Martin Estes Toronto University Toronto Press 1989 p 319

4

Estrutura do estudo introdutoacuterio

O estudo introdutoacuterio estaacute composto de trecircs capiacutetulos os quais procuram apresentar a

ldquoQueixa da Pazrdquo em sua relaccedilatildeo com o gecircnero literaacuterio que inspirou sua forma a declamaccedilatildeo

Assim o primeiro capiacutetulo o caracteriza entre alguns autores antigos que escreveram sobre o

ele ou utilizaram-se dele no periacuteodo compreendido entre os seacuteculos I a C e I d C Aleacutem do

recorte do periacuteodo e dos autores seraacute dada atenccedilatildeo especial agraves referecircncias agrave declamaccedilatildeo nas

obras de Ciacutecero na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo nos Prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o

Velho e na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano que ilustram as discussotildees das

caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo que presentemente consideramos

O segundo capiacutetulo discorre sobre a praacutetica deste gecircnero por Erasmo A discussatildeo se

inicia com uma descriccedilatildeo do seu uso entre os autores do Renascimento sobretudo daqueles

que podem ter influenciado o roterdamecircs na escrita das suas declamaccedilotildees Seguir-se-aacute um

elenco das declamaccedilotildees erasmianas e um estudo da questatildeo de espeacutecies de declamaccedilotildees suas

relaccedilotildees diretas com outros gecircneros e a ocorrecircncia de prosopopeias a fim de estabelecermos

comparaccedilotildees

O terceiro capiacutetulo trata da ldquoQueixa da Pazrdquo em comparaccedilatildeo com o gecircnero

declamaccedilatildeo praticado e teorizado pelos autores antigos conforme se discorreu no capiacutetulo

primeiro assim como algumas datadas do Renascimento ou de autoria do proacuteprio Erasmo

Aqui procuraremos ainda demonstrar como e em que medida esta obra pertence agrave linhagem

da declamaccedilatildeo tal como esta era prescrita e praticada pelos autores dos seacuteculos XV e XVI

Tais comparaccedilotildees visam sobretudo a dois pontos primeiro tratar a respeito do subgecircnero da

ldquoQueixa da Pazrdquo ao analisar os argumentos a favor de classificaacute-la como do epidiacutetico ou

como do deliberativo segundo uma vez que os autores do Renascimento utilizavam

intencionalmente os princiacutepios da retoacuterica antiga para a invenccedilatildeo de seus escritos

discutiremos a caracterizaccedilatildeo da Paz enquanto prosopopeia abstrata e feminina como

estrateacutegia de persuasatildeo em conformidade com as regras de retoacuterica antiga recebida no

Renascimento

5

Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa

Antes de entrar no objeto proposto conveacutem pontuar o estado dos estudos acadecircmicos

acerca do gecircnero declamaccedilatildeo e mais especificamente da sua recepccedilatildeo entre os escritores

humanistas A produccedilatildeo de artigos acadecircmicos ou dissertaccedilotildees nesse recorte temaacutetico natildeo eacute

numericamente ampla mas tem sido enriquecida por especialistas voltados para pesquisas

sobre a declamaccedilatildeo ou os autores que a ela se dedicaram Ao iniciarmos o cotejo das versotildees

da ldquoQueixa da Pazrdquo verificamos que se encontram disponiacuteveis para consulta on-line seis das

vinte e cinco ediccedilotildees desta obra datadas do seacuteculo XVI Aleacutem dessas ediccedilotildees latinas foi

possiacutevel encontrar uma traduccedilatildeo francesa do seacuteculo XVI La Complainte de la Paix

Tradution de le Chevalier de Berquin (1525) Verificou-se ademais que haacute uma ediccedilatildeo

criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera omnia recognita et adnotatione critica instructa

notisque illustrata Amsterdam North-Holland 1969-2001) e dezenas de traduccedilotildees em inglecircs

francecircs italiano alematildeo e portuguecircs cuja lista encontra-se na bibliografia e da qual

salientamos a existecircncia de doze ediccedilotildees nos uacuteltimos quinze anos em cinco vernaacuteculos

ocidentais Deve-se dizer que muitas destas natildeo parecem ser traduzidas diretamente do latim

Dessa profusatildeo de fontes e traduccedilotildees infere-se que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma obra que natildeo

somente obteve grande difusatildeo durante o seacuteculo XVI Ainda hoje eacute umas das obras de

Erasmo mais difundidas equiparavelmente ao ldquoElogio da Loucurardquo e o ldquoDe Copiardquo O

primeiro dispensa apresentaccedilatildeo no caso do segundo conveacutem lembrar que ldquoseguindo os

modelos de Ciacutecero e Quintiliano e tendo como principal objetivo a invenccedilatildeo foi

provavelmente o manual mais estudado de todo o Renascimentordquo (Mack 1993 p 305)

contando com mais de cento e cinquenta ediccedilotildees somente na centuacuteria de sua publicaccedilatildeo Esta

difusatildeo denota a relevacircncia e a influecircncia desse autor para a recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga em

seu tempo Muitos dos princiacutepios retoacutericos consignados nesse manual satildeo postos em praacutetica

na declamaccedilatildeo que pretendemos analisar Haacute tambeacutem a ediccedilatildeo das epiacutestolas de Erasmo

realizada sob a direccedilatildeo de Allen (1906) e que satildeo uacuteteis para o entendimento da compreensatildeo

do proacuteprio autor acerca da sua obra das circunstacircncias histoacutericas que inspiraram a redaccedilatildeo do

discurso da Paz e dos conceitos que potildee em praacutetica nessa declamaccedilatildeo

Embora muitas destas ediccedilotildees (Bagdat 1924 Von Balthasar 1945 Dolan 1964

Philip 1967 Gaeta 1968 Christian 1968 Radice 1968 Telle 1978 Hannermann 1985

Van Leeuwen 1986 Levi 1986 Chomarat 1991 e 1974 Margolin 1992 Carena 1995

6

Pinto 1999 Cinti 2005 Labre 2005 Jovella 2008 Bellacasa 2008 Hoffmann 2013)

apresentem introduccedilotildees agrave ldquoQueixa da Pazrdquo ou a outras obras de Erasmo (Sartorelli 2013

Saacutenchez Salor 2011 King e Rix 2007) deve-se dizer que embora estas apresentem alguns

dados que natildeo podem ser preteridos e que foram considerados no presente estudo estes textos

introdutoacuterios estatildeo muitas vezes limitados agraves regras e aos objetivos editoriais restringindo-se

a informaccedilotildees biograacuteficas ou histoacutericas sem anaacutelises aprofundadas do texto seu gecircnero ou

recepccedilatildeo

Aleacutem das introduccedilotildees das traduccedilotildees verificou-se a existecircncia de apenas um estudo

acadecircmico na aacuterea de literatura especiacutefico sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo (Bagdat 1924) assim

como o artigo de Chomarat (1974) e um dos capiacutetulos do seu livro ldquoGrammaire et Rheacutetorique

chez Erasmerdquo (1981) Foi entatildeo necessaacuterio incrementar a pesquisa com artigos acadecircmicos e

livros publicados mais recentemente por editoras universitaacuterias que tratam sobre temas

indiretamente relacionados com o objeto de pesquisa ou seja sobre o autor (Erasmo de

Rotterdam) sobre a obra em estudo sobre o gecircnero no qual foi escrita a obra (declamaccedilatildeo) e

sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga entre os humanistas Dada a falta de estudos que tratam

diretamente sobre a Queixa da Paz natildeo foi possiacutevel apresentar um estado da questatildeo no

sentido a que se estaacute habituado na academia mas apenas algumas obras que apresentam

relaccedilatildeo parcial com nosso objetivo

Tendo diante de si estes livros ou artigos eacute possiacutevel classificaacute-los nos seguintes

grupos (grupo 1) sobre a retoacuterica e a declamaccedilatildeo antiga (grupo 2) sobre a recepccedilatildeo da

retoacuterica e da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 3) sobre estas em Erasmo Dadas as

limitaccedilotildees temporais do mestrado assim como a dificuldade de acesso a alguns livros natildeo

disponiacuteveis nas bibliotecas brasileiras os livros capiacutetulos de livros e artigos abaixo

catalogados natildeo esgotam a bibliografia sobre as mateacuterias em questatildeo como eacute o caso de

muitas obras de origem francesa que natildeo foi possiacutevel acessar mas que natildeo satildeo pertinentes

para o presente estudo uma vez que tratam da recepccedilatildeo da obra de holandecircs em outros autores

a partir do seacuteculo XVI

Ainda que nossa intenccedilatildeo primeira fosse atentar para a declamaccedilatildeo latina natildeo era

possiacutevel preterir alguns estudos sobre a grega (Russell 2009) e sobre a caracterizaccedilatildeo da

mulher nesta (Gruber 2008) uma vez que se fazem pertinentes natildeo somente para a

consideraccedilatildeo da romana mas tambeacutem daquela praticada por Erasmo que as conhecia ainda

7

na forma de manuscrito Entre os estudos sobre a declamaccedilatildeo latina destacam-se o de Wolf

(2013) Van Mal-Maeder (2007) Winterbottom (1980 e 2006) Shenk (1982) Mendelson

(1994) Clarke (1996) Bonner (1949 e 1966) e Schwartz (2000 e 2004) Tambeacutem se tornam

pertinentes alguns estudos especiacuteficos sobre as declamaccedilotildees como o de Bonner (1966) sobre

Luciano o artigo de Schwartz (2000) sobre esse gecircnero sob Augusto os dois artigos de

Bayley sobre as ldquoDeclamationes maioresrdquo e ldquominoresrdquo atribuiacutedas a Quintiliano (1984 e

1989) os artigos de Clark (1957) e Dupont (1997) sobre sua praacutetica escolar e os estudos de

Marrou (1948) de Vasconcelos (2000 e 2002) de Gibson (2004) e de Manoel (2014) sobre as

progymnasmata o estudo acerca da relaccedilatildeo do contexto histoacuterico com as controveacutersias escrito

por Mendelson (1994) o artigo com o recorte sobre as ldquocrianccedilas abandonadasrdquo nas

declamaccedilotildees (Bernstein 2009) o artigo sobre a declamaccedilatildeo em Secircneca (Edward 1928

Sussman 1972 Fairweather 1981 Schwartz 2004 Bloomer 2010 Costrino 2010) ou

ainda outros autores como em Taacutecito (Pereira 2013) em Quintiliano (Reali e Turazza 2012)

e em Luciano (Thompson 1965 e 1974) Dentre este alguns natildeo somente foram lidos por

Erasmo mas tambeacutem traduzidos por ele do grego para o latim

Sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 2) destacam-se os artigos

de Kinney (1976) e Vasoli (2008) sobre a retoacuterica humanista Devem-se ressaltar ainda os

textos sobre as declamaccedilotildees de Erasmo analisados por Giazzi (2008) Tunberg (1996 2006 e

2013) os jaacute mencionados escritos de Chomarat (1974 e 1981) e Van der Poel (1987 e 1989)

Aleacutem disso Van der Poel publicou artigos sobre a declamaccedilatildeo em Agripa e Erasmo (Van der

Poel 1994 e 1997) e em Cardano (Vander Poel 2005) Entre os estudos sobre as declamaccedilotildees

de Erasmo em particular destaca-se a referecircncia de Grimal (1994) sobre a declamaccedilatildeo

ldquoSobre a morterdquo de Erasmo as introduccedilotildees ao ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo (Pigman 1977

Sartorelli 2015) ao ldquoElogio do Matrimocircniordquo de Leushuis (2004) e Sowards (1958 e 1982)

sobre o ldquoElogio da Loucurardquo (Sartorelli 2013 Moya Bedoya 1994) Sobre a influecircncia de

Valla em Erasmo haacute o artigo de Bentley (1977) assim como os estudos de Schwahn (1928) e

Ginzburg (2004) sobre a declamaccedilatildeo ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo Temos ainda os estudos de

Fox (1983) Baumann (1985) e Corral (2012) sobre o ldquoTiranicidardquo de More os de Logan

(2003) e Miller (1994) sobre a ldquoUtopiardquo e por fim sobre o ldquoElogio de Nerordquo de Cardano o

estudo de Biffino (2002)

8

Sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga em Erasmo (grupo 3) verificamos a existecircncia de

capiacutetulos de livros e artigos de Murphy (1974 1983 2005 e 2012) Bataillon (1977 e 1982)

Margolin (1973 1977 1992 1987 1993 1995 1997 e 1998) Chomarat (1974 e 1981)

Pigman (1980 e 1990) Green e Murphy (2006) Mack (1993 1996 e 2011) Sartorelli (2001

2009 2012 2013 e 2015) Rummel (1985 1990 1996 1998 1999 e 2000) Weiland (1988)

Pinto (2006) e Logan (1994) Haacute alguns estudos sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga no

Renascimento que se referem marginalmente sobre Erasmo como o de Burke (2003) e os

artigos de Kinneyy (2004) Goacutemez Cervantes (2007) Alexandre Juacutenior (2008) Hernaacutendez

Guerrero e Garciacutea Tejera (1992) e Gianotti (2008) Ainda nesse grupo destaca-se o artigo

sobre ldquodeclamaccedilatildeo e retoacutericardquo de Gunderson (2009) Tendo como recorte a obra de Erasmo

temos Sloane (1991 e 2004) e Pinto (2006) Haacute ainda sobre a saacutetira em Erasmo feita por Story

(2012) Kennedy (1980) Hoffmann (1994) e Boyle (2004) tambeacutem apresentam artigos sobre

a relaccedilatildeo da filologia e da retoacuterica erasmiana com a teologia e a filologia biacuteblica Ainda no

recorte do Renascimento destaca-se o estudo filosoacutefico sobre a paz feito por Cailes (2012)

no qual compara as teorias de Erasmo e Machiavel e os estudos filosoacuteficos acerca do

pacifismo de Erasmo realizados por Meulen (1990) Hoffmann (2000) Kinsella e Carr

(2007) Martiacuten (2007) Dungen (2008) e Christi (2009) A respeito de outras questotildees

filosoacuteficas ou literaacuterias podemos citar as dissertaccedilotildees ou teses defendidas na proacutepria

Universidade de Satildeo Paulo a de Salum (2009) a de Nassaro (2010) e a de Rodrigues (2012)

Embora natildeo seja o foco principal da pesquisa tivemos o cuidado de consultar algumas

biografias Entre estas acessamos duas por Bainton (1969) e Faludy (1970) Minnich e

Meissner (1978) Boeft (1989) Bietenholz (1985 e 2009) e Vredeveld (1993) escrevem textos

de iacutendole histoacuterico-biograacutefica Meacutenager (2000) redigiu um artigo acerca da posiccedilatildeo poliacutetica

neutra de Erasmo face agrave poliacutetica francesa e espanhola Merece especial destaque o trabalho

biograacutefico de Beauduin (1991) com base na epistolografia erasmiana Haacute tambeacutem estudos

histoacutericos sobre a influecircncia erasmiana no seacuteculo XVI (Rowland 1987)

No tocante agrave recepccedilatildeo que os escritos de Erasmo obtiveram sem pretender esgotar o

universo desse gecircnero de pesquisa e que natildeo se configura como essencial para na pesquisa

como eacute o caso da ampla produccedilatildeo francesa tivemos acesso ao artigo sobre sua influecircncia em

Joatildeo Fletcher escrito por Waith (1951) em Joatildeo Bodin conforme artigo de Remer (1994)

em Bartolomeu de las Casas segundo Torres (1993) na Alemanha do seacuteculo XVI por Tracy

9

(1969) na literatura francesa em artigo de Phillips (1971) no seacuteculo XIX por Mansfiel

(1968) e sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo romana no seacuteculo XX por Gunderson (2003)

Destacam-se alguns estudos temaacuteticos como o texto de Whers (2004) sobre a eacutetica

erasmiana sobre a recepccedilatildeo do ldquoAdversus Jovianumrdquo em Erasmo escrito por Pabel (2002)

sobre a influecircncia de Jerocircnimo no holandecircs em artigo de Sloane (2004) e sobre a influecircncia

da ldquoArte Poeacuteticardquo de Horaacutecio sobre os ldquoAdaacutegiosrdquo publicado por Magnien (2012) Como

analisaremos a caracterizaccedilatildeo da paz enquanto personagem feminina eacute necessaacuterio considerar

o livro de Rummel (1996) sobre a mulher em Erasmo e os artigos sobre a educaccedilatildeo feminina

publicado por Soward (1982) por Cousins (2004) e por Leushuis (2004) Sobre a ficccedilatildeo nas

declamaccedilotildees temos o estudo de van Mal-Maeder (2007) que inclusive foi comentada em

resenha por Bloomer (2009) Entre estes trabalhos deve-se levar em consideraccedilatildeo a questatildeo

sobre a oposiccedilatildeo dos humanistas aos escolaacutesticos (Bejczy 2001 Rummel 1998)

Esta pesquisa verificou portanto com a exceccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de Bagdat (1924) e o

artigo de Chomarat (1974) o qual tratou especificamente sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto

de vista da aacuterea de Letras a inexistecircncia de artigo acadecircmico ou livro especiacutefico sobre o tema

em questatildeo ou seja sobre a recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo Encontramos apenas seu

tratamento de modo sucinto em Chomarat (1981) e Van der Poel (1989) Por outro lado

verificou-se a necessidade e a relevacircncia acadecircmica do estudo das declamaccedilotildees de Erasmo e

de consideraccedilotildees mais especiacuteficas sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto de vista da recepccedilatildeo dos

antigos Como vaacuterios autores mencionam este gecircnero e a proacutepria declamaccedilatildeo como exemplo

deve-se considerar que devido ao caraacuteter marginal de muitos comentaacuterios sem a

especificidade de uma referecircncia direta agrave declamaccedilatildeo em comento ou ao tratar do pacifismo

erasmiano sem muitas vezes levar em consideraccedilatildeo o gecircnero literaacuterio da obra torna-se

pertinente um texto especiacutefico sobre o gecircnero literaacuterio sua personificaccedilatildeo feminina da paz

sob o enfoque da recepccedilatildeo dos autores antigos a qual ainda eacute ineacutedita no mundo acadecircmico

Ademais com exceccedilatildeo do capiacutetulo de Chomarat (1981) e apesar da importacircncia da retoacuterica

antiga para os autores do Renascimento verificamos a inexistecircncia de textos acadecircmicos

especiacuteficos sobre a retoacuterica na ldquoQueixa da Pazrdquo motivo pelo qual se verifica mais um ponto

de novidade no presente estudo

10

11

CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO

RENASCIMENTO

O presente capiacutetulo trata da definiccedilatildeo conceitual e das diferenccedilas essenciais e

terminoloacutegicas do gecircnero declamaccedilatildeo (em latim declamatio em grego μελέηη) entre alguns

autores antigos gregos e latinos especialmente nos tempos finais da Repuacuteblica e do iniacutecio do

Impeacuterio Entre esses autores antigos daremos atenccedilatildeo especial agrave forma como o assunto

aparece nas obras de Ciacutecero na passagem pertinente da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo em alguns

prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o Velho e por fim em Quintiliano em razatildeo da

influecircncia da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo sobre os humanistas a partir da redescoberta de um de

seus manuscritos na iacutentegra no iniacutecio do seacuteculo XV Apoacutes uma descriccedilatildeo do uso da

declamaccedilatildeo entre as ediccedilotildees dos autores antigos que escreveram declamaccedilotildees ou teorias sobre

a declamaccedilatildeo e foram editados ou traduzidos no Renascimento nosso enfoque recairaacute

especialmente sobre aqueles autores humanistas que precederam Erasmo na recuperaccedilatildeo do

gecircnero

11 Origem grega

111 Definiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo em carta a Joatildeo Botzheim datada de

1523 classificou a Queixa da Paz como uma declamaccedilatildeo e de que haacute consenso entre

estudiosos como Chomarat (1981 p 997) que confirmam esta classificaccedilatildeo eacute oportuno

considerar o que vem a ser exatamente uma declamaccedilatildeo segundo a conceituaccedilatildeo dos autores

antigos imitados pelos humanistas Em conferecircncia ainda natildeo publicada Sartorelli assim

define a declamaccedilatildeo in genere

Na Antiguidade as declamationes eram discursos escritos como exerciacutecio

escolar acerca de uma causa fictiacutecia apenas para aquecimento ou treino nos

cursos de oratoacuteria Tratava-se portanto de preparaccedilatildeo para a ocasiatildeo em que a

fala de fato se faria necessaacuteria (o tribunal a assembleia) e uma demonstraccedilatildeo

de habilidade O exercitar-se era o essencial para manter-se bdquoem forma‟ para

um puacuteblico cujos ouvidos estavam acostumados ao mais alto niacutevel de

eloquecircncia e que natildeo deixaria passar um deslize por parte daquele que

discursava (Sartorelli 2013 reproduccedilatildeo de conferecircncia)

12

Deve-se recordar que alguns poucos exerciacutecios similares agrave declamaccedilatildeo (a μελέηη)

ainda que tais discursos sejam duvidosos em relaccedilatildeo agrave sua finalidade escolar teriam sido

praticados pelos sofistas entre os quais podem-se citar o Elogio a Helena ou a Defesa de

Palemedes cuja autoria foi atribuiacuteda a Goacutergias e que satildeo datados do seacuteculo IV a C ou ainda

as Tetralogias de Antifonte (Winterbottom 2006 p 76 Costrino 2010 p 12 Kennedy

1980 p 28) Conservaram-se ainda alguns papiros de declamaccedilotildees gregas datadas do seacuteculo

III a C consideradas as mais antigas declamaccedilotildees conservadas (Russel 2009 p 6)

Nesse particular Kennedy (1980 p 103) ressaltou a importacircncia do manual sobre

declamaccedilotildees do gecircnero epidiacutetico Este eacute composto de oito capiacutetulos preservados entre as obras

de Dioniacutesio de Halicarnaso mas escrito por um autor anocircnimo do terceiro seacuteculo traz

orientaccedilotildees retoacutericas para a composiccedilatildeo de Elogios para os festivais casamentos aniversaacuterios

e exortaccedilotildees para os jogos oliacutempicos Entretanto ldquoos mais extensos tratados com a forma

epidiacutetica da declamaccedilatildeo se concentram em dois trabalhos atribuiacutedos a Menandro de

Laodiceia um reacutetor do terceiro seacuteculordquo (Kennedy 1980 p 103)

Apesar da heterogeneidade dos corpora declamatoacuterios gregos aquelas declamaccedilotildees

tecircm em comum o fato de simularem a defesa de uma causa fictiacutecia baseada em

acontecimentos histoacutericos ou mitoloacutegicos Contudo no que se refere agrave precisatildeo das datas dos

nomes e a situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se

ali imprecisotildees pois sua principal finalidade era como dissemos a praacutetica da oratoacuteria e a

persuasatildeo dos ouvintes (Wolf 2013 p 270) Gibson (2004 p 105-106) todavia demonstra

que ao menos no manual de Heacutelio Teatildeo havia certa preocupaccedilatildeo com a historicidade das

declamaccedilotildees (Winterbottom 1980 v) pois o discurso deveria ser adequado como um

ldquoexerciacutecio histoacutericordquo harmocircnico com a caracterizaccedilatildeo das personagens e com os dados

narrativos (Gibson 2004 p 105-106)

Usando as tradicionais categorias dos trecircs gecircneros tambeacutem presentes em Aristoacuteteles

(Retoacuterica 14) algumas dessas declamaccedilotildees foram classificadas como judiciais uma vez que

tinham como meta defender ou atacar algueacutem no ambiente forense procurando influenciar na

elaboraccedilatildeo de uma sentenccedila de culpa ou absolviccedilatildeo (Fairwethear 1981 p 545) Outras por

outro lado poderiam pertencer aos gecircneros epidiacutetico e deliberativo jaacute que tambeacutem versavam

sobre temas histoacuterico-mitoloacutegicos seja para aconselhar ou desaconselhar em uma deliberaccedilatildeo

seja para elogiar ou vituperar (Gibson 2004 p 103) Segundo o estudo de Russell (2009 p

13

4) como exemplos de declamaccedilotildees gregas do gecircnero deliberativo (suasoacuteria) podem-se

mencionar as de Polemon de Laodiceia e Adriano de Tiro Para ele (2009 p 6) as

declamaccedilotildees de Coriacutecio de Gaza teriam sido ldquoas melhores desses autoresrdquo pois apresentam

ldquoum estilo virtuoso capaz de escrever com elegacircncia e com um aacutetico claacutessico em total

observacircncia das claacuteusulas do seu proacuteprio tempordquo

Alguns pontos gerais na declamaccedilatildeo claacutessica grega merecem ser considerados em

detalhes em razatildeo da relevacircncia do uso da personificaccedilatildeo no discurso irecircnico erasmiano No

tocante agrave caracterizaccedilatildeo das personagens envolvidas nas declamaccedilotildees gregas Russell (2009

p 87-90) afirma que os elementos do ecircthos retoacuterico estavam presentes nas declamaccedilotildees pois

estas levavam em conta a adequaccedilatildeo da imagem de si mesmo as particularidades da audiecircncia

e a situaccedilatildeo psicoloacutegica e social dos oponentes O autor (Ibid p 92-93) apresenta a

declamaccedilatildeo 33 de Libacircnio como um dos exemplos de caracterizaccedilatildeo completa de uma

personagem feminina atraveacutes da narraccedilatildeo (katastasis) minuciosa dos elementos da vida

domeacutestica Aleacutem disso Russell (Ibid p 83) percebeu uma relaccedilatildeo estreita de alguns

elementos da declamaccedilatildeo grega com os da comeacutedia tendo ainda notado (Ibid p 102) que as

declamaccedilotildees gregas tambeacutem tinham um epiacutelogo harmonioso com o tema presente nos

primeiros paraacutegrafos demonstrando que esta deveria ser uma das suas virtudes Por fim

conveacutem destacar sempre segundo Russel (Ibid p 4-5) que algumas delas eram realizadas

tanto a favor de somente um dos lados da questatildeo quanto a favor dos dois lados

sucessivamente como se verificou na ldquoVida dos sofistasrdquo de Filoacutestrato

Eacute preciso considerar que os principais corpora de declamaccedilotildees gregas foram escritos

no periacuteodo histoacuterico em que Roma dominava politicamente a parte oriental do Mediterracircneo

onde predominava o grego como liacutengua franca por isso algumas coleccedilotildees natildeo foram escritas

em latim Natildeo sem razatildeo no parecer de Kennedy (1980 p 103) ldquoa declamaccedilatildeo foi o maior

fenocircmeno retoacuterico do Impeacuterio Romano escrito em latim e gregordquo Para Bloomer (2010 p

297) ldquoa declamaccedilatildeo eacute o primeiro grande movimento literaacuterio do Impeacuterio Romanordquo Embora

existam outros gecircneros literaacuterios cuja difusatildeo tambeacutem tenha sido comparaacutevel ou talvez

superior em sofisticaccedilatildeo agrave declamaccedilatildeo deve-se poreacutem destacar que a praacutetica declamatoacuteria

natildeo se limitava aos ceacutelebres ciacuterculos eruditos mas tambeacutem estava presente no ciacuterculo escolar

e filosoacutefico

14

112 Principais autores e escritos em grego

Entre os principais nomes da declamaccedilatildeo grega sobretudo na praacutetica da suasoacuteria e das

controveacutersias histoacutericas devem-se destacar Plutarco Aristides Luciano Libacircnio e Coriacutecio

Historicamente tais autores se concentram em periacuteodo posterior ao que eacute correntemente

denominado como Segunda Sofiacutestica cuja delimitaccedilatildeo apesar de controversa eacute geralmente

compreendida entre os seacuteculos I e IV d C Coriacutecio estaria situado no periacuteodo da Terceira

Sofiacutestica (Silva 2015)

Plutarco escreveu apenas seis obras morais que satildeo especificamente identificadas

como declamaccedilotildees entre as quais se destacam ldquoSe os atenienses satildeo melhores nas armas do

que nas letrasrdquo e o discurso ldquoSobre a fortuna e a virtude de Alexandrerdquo no qual consta um

elogio ao monarca (Boulet 2013 p 61)

Entre os discursos de Heacutelio Aristides destacam-se aqueles com temas histoacutericos

propostos aos estudantes tambeacutem conhecidos como declamaccedilotildees histoacutericas O mais ceacutelebre o

ldquoLeuctrianrdquo apresenta as controveacutersias de apoio e neutralidade em relaccedilatildeo a Tebas Atenas e

Esparta (Russell 1983 p 4)

Quanto a Luciano de Samosata (125-181 d C) temos nomeadamente os discursos a

favor e contra a aceitaccedilatildeo do touro Phalaris em Delfos e o discurso cocircmico ldquoTribunal das

vogaisrdquo em que o Sigma cobra o Tau pelo roubo de todas as palavras soletradas com duplo

Tau

Entre os mais profiacutecuos produtores de declamaccedilotildees Libacircnio de Antioquia (314-394 d

C) escreveu cinquenta e uma declamaccedilotildees ainda conservadas das quais poucas satildeo

questionadas quanto agrave autenticidade Entre as histoacutericas destacam-se a ldquoApologia de Soacutecratesrdquo

e alguns plasmata que satildeo casos fictiacutecios entre os quais alguns explicitamente cocircmicos

(Russel 1983 p 4)

Por fim devemos mencionar Coriacutecio de Gaza (primeira metade do seacuteculo VI) autor

que jaacute pertence ao periacuteodo denominado como Terceira Sofiacutestica Escreveu doze discursos que

tratam desde temas e locais comuns imitados de textos gregos antigos como Homero e

Heroacutedoto ateacute elogios ao Bispo Marciano e a apologia dos mimos um gecircnero popular de

15

Gaza Digno de nota eacute o discurso no qual simula a tentativa de Paacutetroclo em persuadir Aquiles

a retornar ao campo de batalha apoacutes o ultraje de Agamecircmnon (Silva 2015 p 75)

Dada a relevacircncia da caracterizaccedilatildeo de personificaccedilotildees femininas para o presente

estudo conveacutem destacar desde jaacute que no tocante ao estudo destas nas declamaccedilotildees gregas os

papeacuteis representados pela mulher eram em menor nuacutemero em comparaccedilatildeo com o de

personagens masculinas (Gruber 2008 p 138-140) Estas poderiam ser a filha a matildee a

madrasta a mulher a esposa a concubina e a meretriz Todavia natildeo costumavam receber as

variaccedilotildees de caraacuteter atribuiacutedas ao homem como ser rico pobre velho filoacutesofo entre outros

Segundo Gruber (ibid p 139) as mulheres eram caracterizadas como ldquoceacuteticas proacutedigas

extravagantes invejosas orgulhosas incocircmodas e maacutesrdquo Para exemplificar em qual tipo de

declamaccedilotildees as personificaccedilotildees femininas costumavam ocorrer Gruber (ibid p 140)

considerou que nas declamaccedilotildees de Menandro as mulheres estavam envolvidas

principalmente em casos de adulteacuterio (41 de 89 declamaccedilotildees) e rapto (13) Disto se pode

concluir que as mulheres ocupavam um papel secundaacuterio nas declamaccedilotildees gregas natildeo

somente por serem caracterizadas com menor variedade e especificidade quando comparadas

agraves masculinas mas tambeacutem por estarem na maioria das vezes em posiccedilotildees sociais

consideradas inferiores como eacute o caso de uma mulher indefesa sujeita ao rapto ou ainda de

modo a angaria a antipatia dos leitores como eacute o caso da aduacuteltera

12 A praacutetica latina

Com efeito Winterbottom (1980 p 10) observa que as personagens habituais

presentes nas declamaccedilotildees latinas tambeacutem parecem ser inspiradas no ambiente cultural

helecircnico ou ao menos recebidas do contato com as declamaccedilotildees gregas talvez pela leitura

das proacuteprias declamaccedilotildees ou atraveacutes dos manuais de retoacuterica de origem grega que circulavam

em Roma

satildeo personagens caracteriacutesticas com as quais simpatizamos (jovens

violadas filhos deserdados tiranicidas) ou com as quais natildeo se simpatiza

(piratas pais severos tiranos) [] Destarte as raiacutezes desse mundo satildeo

helecircnicas e remontam pelo menos ateacute o quarto seacuteculo antes de Cristo

(Winterbottom 1980 p 10)

16

Incontestavelmente trata-se de mais um gecircnero literaacuterio originado entre os gregos e

transmitido aos autores latinos os quais o modificaram segundo as circunstacircncias do seu

tempo

o uso de exerciacutecios retoacutericos sobre temas judiciais e deliberativos havia sido

praticado por reacutetores gregos e por seus disciacutepulos seacuteculos antes do tempo de

Secircneca o velho e haviam entrado no programa escolar latino durante a

infacircncia de Ciacutecero pelo menos (Fairweather 1981 p 543-4)

Ao se referir a Crasso e Antocircnio mencionados no ldquoSobre o Oradorrdquo Vasconcellos

(2000 p 180) afirma ldquoa educaccedilatildeo nas escolas dos reacutetores de tradiccedilatildeo sofiacutestica consistia

sobretudo em ensinar ao aluno de oratoacuteria os preceitos teacutecnicos sobre o dizer por meio de

manuais chamados de ldquoArte Retoacutericardquo ensino demasiadamente formal e pouco eficiente na

visatildeo dos dois oradores do diaacutelogordquo O objetivo primaacuterio da declamaccedilatildeo latina era sobretudo

o exerciacutecio da eloquecircncia o tirociacutenio do discurso persuasivo (Kennedy 1980 p 108) natildeo

obstante sua praacutetica fosse mais abrangente

Com efeito como indicamos acima os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eram apenas

parte integrante do programa das escolas retoacutericas situados geralmente apoacutes as

progymnaacutesmata mas tambeacutem eram praticados nas escolas filosoacuteficas por meio do que

passaram a ser chamados de ldquothesisrdquo (Winterbottom 2006 p 94 Kennedy 1980 p 37)

Uma vez que a educaccedilatildeo retoacuterica era realizada com o intuito de obter crescimento gradual da

dificuldade ou da complexidade do discurso (Costrino 2010 p 13) as teses de temaacutetica

filosoacutefica estavam localizadas sempre ao final dos manuais de retoacuterica como os de Heacutelio

Teatildeo Hermoacutegenes Nicolau e Aftocircnio (Kennedy 1994 p 16) indicando que deveriam ser os

exerciacutecios mais complexos Segundo Marrou (1975 p 439) ldquouma vez concluiacuteda a longa seacuterie

de exerciacutecios preparatoacuterios o aluno era solicitado a redigir discursos fictiacutecios sobre um tema

dado pelo mestre e segundo as prescriccedilotildees e conselhos desterdquo

Taacutecito expressa a opiniatildeo de que as controuersiae ou seja as declamaccedilotildees do gecircnero

judicial eram mais difiacuteceis ou complexas do que as do gecircnero deliberativo

Duas espeacutecies de mateacuterias satildeo tratadas entre os reacutetores as suasoacuterias e as

controveacutersias Dessas delegam-se as suasoacuterias aos meninos jaacute que satildeo

claramente mais faacuteceis e menos exigentes quanto ao conhecimento as

controveacutersias satildeo designadas para os mais maduros (Taacutecito Diaacutelogo dos

oradores 35)

17

Tambeacutem Quintiliano apresenta sua opiniatildeo a respeito do grau de dificuldade entre os

exerciacutecios escolares de retoacuterica apresentando a prosopopeia um exerciacutecio retoacuterico anterior agrave

declamaccedilatildeo presente nos manuais de retoacuterica e componente significativo da proacutepria

declamaccedilatildeo como um dos exerciacutecios mais complexos

as prosopopeias me parecem de longe as mais difiacuteceis pois nestas a todo

trabalho da suasoacuteria acrescenta-se ainda a dificuldade da personagem pois a

mesma coisa deve ser aconselhada por Ceacutesar de um modo por Ciacutecero de

outro por Catatildeo de outro (Inst Orat III 8 49)

Pode-se dizer que a dificuldade inerente da praacutetica da suasoacuteria entendida como uma

espeacutecie de declamaccedilatildeo deliberativa a que se refere Quintiliano reside justamente na

configuraccedilatildeo do ecircthos retoacuterico apropriado para as personagens contidas no discurso e na

formulaccedilatildeo deste de modo convincente Deveria ademais ser adequado segundo o decorum

exigido pela plateia que o assiste Mas em razatildeo do conhecimento profundo das

particularidades dos preceitos que as controveacutersias envolviam somados agrave aplicaccedilatildeo da

caracterizaccedilatildeo do ecircthos o gecircnero judicial deveria ser o mais complexo Pode-se entatildeo

concluir que as declamaccedilotildees se configuravam como o uacuteltimo estaacutegio da formaccedilatildeo retoacuterica de

um cidadatildeo romano Eram esta os exerciacutecios das suasoriae e por fim das controuersiae ou

vice-versa

Ademais deve-se dizer que uma vez que a precisatildeo histoacuterica das datas nomes e

situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se imprecisotildees

(Wolf 2013 p 270) pode-se dizer que o principal virtuosismo do declamador residia na

capacidade de adequar os diversos elementos da declamaccedilatildeo como o tema com o caraacuteter

(ethos) da assembleia e das personagens fictiacutecias envolvidas pois o foco da praacutetica

declamatoacuteria era o exerciacutecio da eloquecircncia segundo os ditames dos manuais de retoacuterica

13 As fontes latinas

Diversos autores latinos trataram da declamaccedilatildeo ou dos declamadores subdividos

genericamente em dois grupos aqueles do periacuteodo republicano como Ciacutecero e aqueles do

periacuteodo imperial como Oviacutedio (Arte amatoacuteria) Juvenal (Saacutetira 10 165-169) Taacutecito

(Diaacutelogo sobre os oradores 35) Calpurnio Flaco (Declamaccedilotildees) Suetocircnio (Sobre os reacutetores

e Sobre os gramaacuteticos e os reacutetores) Secircneca e Quintiliano Em Oviacutedio (Arte amatoacuteria 1 465-

469) por exemplo declamare ocorre com o sentido de falar com algueacutem em tom

18

declamatoacuterio O discurso do amante teraacute a eloquecircncia persuasiva que convence o povo (nas

assembleias) o juiz (nos tribunais) e os senadores (no senado) Mas essa eloquecircncia natildeo deve

trair afetaccedilatildeo como mero artifiacutecio Oviacutedio prega aqui a retoacuterica cuja arte se esconde (lateant

uires) O amante natildeo deve parecer estar fazendo um discurso para a amada

Entretanto a anaacutelise das ocorrecircncias do radical do substantivo declamatio ou do verbo

declamare denota que algumas obras contecircm maior nuacutemero e relevacircncia para o estudo da

evoluccedilatildeo histoacuterica da declamaccedilatildeo latina enquanto gecircnero Eacute justamente a consideraccedilatildeo do seu

conteuacutedo e do seu contexto histoacuterico que sugerem a hipoacutetese de que a declamaccedilatildeo do tempo

de Ciacutecero natildeo era idecircntica a de Quintiliano e Secircneca o Velho

131 Discussatildeo terminoloacutegica

A terminologia com a qual se denominavam os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eacute uniacutevoca

entre os escritores que trataram de exerciacutecios idecircnticos ou equiparaacuteveis agrave declamaccedilatildeo na

literatura latina entre o seacuteculo I a C e o seacuteculo I d C Mendelson (1994 p 96) discorre sobre

um desses problemas terminoloacutegicos

No tempo de Ciacutecero a declamaccedilatildeo forense ou caso legal era conhecida

simplesmente como causa enquanto que posteriormente jaacute sob o Imperium

passou a ser conhecida como scholastica ou tema-escolar a fim de indicar o

modo por assim dizer restrito nos quais surgiam tais discursos artificiais

Schwartz (2004 p 65-66) sintetiza esta controveacutersia

No que diz respeito ao periacuteodo preacute-ciceroniano cuja caracteriacutestica segundo

Secircneca eram os exerciacutecios que recebem o nome grego de thesis (tese) o

material de que dispomos para nos referir a ele eacute bem escasso e portanto

torna-se difiacutecil chegar a conclusotildees definitivas Quintiliano define as theseis

ou quaestiones infinitae (questotildees indefinidas) em oposiccedilatildeo agraves causae (causas)

ou quaestiones finitae (questotildees definidas) proacuteprias do acircmbito judicial As

questotildees indefinidas eram discussotildees dialeacuteticas em que os participantes

defendiam uma ou outra das posiccedilotildees em conflito (in utramque partem) sem

referecircncia a pessoas tempos lugares e outras circunstacircncias (cf Quint III

55) Tratava-se de temas gerais de natureza abstrata especulativa ou

filosoacutefica Tais exerciacutecios desenvolvidos com frequecircncia nas escolas dos

filoacutesofos eram adequados agrave elaboraccedilatildeo de loci communes que tambeacutem eram

utilizados na oratoacuteria forense na declamaccedilatildeo e ateacute em gecircneros poeacuteticos como

a saacutetira Quintiliano afirma que a questatildeo indefinida eacute mais ampla que a causa

que eacute derivada dela Assim a questatildeo indefinida ldquodeve o homem casarrdquo (an

uxor ducenda) eacute logicamente preacutevia agrave questatildeo definida ldquodeve Catatildeo casarrdquo (an

Catoni ducenda) (cf Quint III 5 8) Haacute na definiccedilatildeo de Quintiliano portanto

uma antecedecircncia loacutegica da tese a respeito da causa mas nada obriga a pensar

que tal deva ter sido a ordem histoacuterica em que sucederam essas classes de

19

exerciacutecios Ao contraacuterio haacute evidecircncias de que exerciacutecios de tipo judicial

devem ter existido bem antes da eacutepoca de Ciacutecero Talvez o problema seja

sobretudo terminoloacutegico Com efeito eacute possiacutevel que Secircneca ao falar em

ldquotesesrdquo estivesse pensando em outros exerciacutecios diferentes dos praticados em

escolas de filosofia

No tocante agrave comparaccedilatildeo das declamaccedilotildees latinas supeacuterstites que haviam sido

realizadas ao longo dos seacuteculos I a C e I d C com os trecircs gecircneros de discurso presentes na

tradiccedilatildeo retoacuterica greco-romana pode-se dizer que tratavam basicamente de dois tipos de

causae deliberativa (suasoria) ou juriacutedica (controuersia) (Mendelson 1994 p 93) Quanto

ao epidiacutetico ao menos em Secircneca o Velho natildeo se encontram exemplos de declamaccedilotildees

realizadas com predominacircncia deste gecircnero Como veremos Quintiliano admitiraacute o uso do

demonstrativo ou laudativo entendido como tendo por objetivo principal o elogio ou a

vituperaccedilatildeo como um recurso argumentativo nas declamaccedilotildees deliberativas ou judiciais

132 O contexto republicano e o imperial

Ao comparar a praacutetica da declamaccedilatildeo no final da repuacuteblica e no iniacutecio do Impeacuterio

identificou-se que este gecircnero sofreu algumas alteraccedilotildees no tocante agrave terminologia e agrave forma

Ela havia deixado de ser um mero exerciacutecio das escolas de retoacuterica ou um termo aplicado agrave

praacutetica privada de um exerciacutecio oratoacuterio para tornar-se nos primeiros anos de Augusto uma

performance puacuteblica atraente em todas as classes sociais inclusive nas mais elevadas

A partir de Augusto as salas de declamaccedilatildeo constituem um espaccedilo que reuacutene

oradores reconhecidos assim como personalidades da vida puacuteblica (Contr II

412-13) Conveacutem distinguir aqui entre a declamaccedilatildeo como praacutetica escolar dos

jovens na aula do reacutetor e a declamaccedilatildeo como espetaacuteculo puacuteblico Com efeito

nas proacuteprias escolas de declamaccedilatildeo se realizavam periodicamente exibiccedilotildees

puacuteblicas das declamaccedilotildees jaacute preparadas por alunos e o reacutetor Natildeo era raro que

nestas ocasiotildees participassem ativamente convidados alheios agrave escola (Contr

III praef 16 Contr X praef) Desse modo a declamaccedilatildeo comeccedila

progressivamente a se tornar independente da finalidade de preparar para a

oratoacuteria e se converte em um fim em si mesmo (Schwartz 2000 p 275)

Esta fase antecedeu o decliacutenio por assim dizer do prestiacutegio desse gecircnero na virada do

I ao II seacuteculo d C conforme as criacuteticas de Taacutecito que identificava poucos ldquoautecircnticos

oradoresrdquo (Diaacutelogo sobre os oradores 14 4) Mas essa criacutetica pode ser relativizada se

considerarmos a popularidade da declamaccedilatildeo na Roma Imperial pois embora fosse uma arte

nascida na escola Suetocircnio (Vida de Antocircnio 84 Vida de Nero 10) atesta sua presenccedila e

exerciacutecio inclusive por imperadores Por outro lado durante o I seacuteculo a C embora Pisatildeo e

20

Pompeu tivessem se exercitado na declamaccedilatildeo (Ciacutecero Brutus 309-310) seu status natildeo era

comparaacutevel ao da oratoacuteria uma vez que ao contraacuterio do que se daria um seacuteculo mais tarde a

declamaccedilatildeo no tempo de Ciacutecero era contestada por aristocratas como Messala ou Poacutelio que

a assemelhavam agraves praacuteticas do tatro cocircmico desprezadas pela alta sociedade romana (Conte

1999 p 405) Destarte identifica-se entatildeo uma ascensatildeo da declamaccedilatildeo puacuteblica que teria

chegado a um apogeu de prestiacutegio nos primeiros dececircnios do seacuteculo I d C natildeo somente pelo

proacuteprio desenvolvimento do gecircnero mas pela ldquodecadecircnciardquo da oratoacuteria apoacutes seu afastamento

dos padrotildees ciceronianos (Schwartz 2004 p 2) A teoria segundo a qual o auge da oratoacuteria se

refletiu na accedilatildeo e nos escritos de Ciacutecero sendo este o padratildeo adequado para a praacutetica

declamatoacuteria eacute encontrada nas ldquoDeclamaccedilotildeesrdquo de Secircneca o Velho e no ldquoDiaacutelogordquo de Taacutecito

A declamaccedilatildeo seria por assim dizer a herdeira e a substituta da oratoacuteria um gecircnero cujo

sentido original soacute poderia ser vivido e praticado na Repuacuteblica devido agrave falta de liberdade de

expressatildeo durante o periacuteodo imperial

Segundo Edward (1928 p xvi-xvii) essa ascensatildeo teve origem na transformaccedilatildeo do

sistema poliacutetico romano

Como eacute que aquilo que fora primeiramente um mero exerciacutecio das escolas de

retoacuterica ou um termo aplicado agrave praacutetica privada de um orador distinto tornou-

se nos primeiros anos do reinado de Augusto uma performance puacuteblica e

atraente uma coisa praticada por si mesma e de certo modo algo pelo qual

todas as classes sociais se animavam O motivo deve ser encontrado na

mudanccedila de condiccedilotildees poliacuteticas A repuacuteblica estava extinta desde Filipos uma

vez estabelecido finalmente o poder de Augusto no Aacutecio o priacutencipe

concentrou todo o poder em suas proacuteprias matildeos as assembleias do povo eram

entatildeo desorganizadas ou de relevacircncia poliacutetica insignificante as deliberaccedilotildees

do senado perderam significado e efetividade suas decisotildees poderiam ser

revogadas a qualquer momento pela intervenccedilatildeo individual do Imperador A

oratoacuteria livre sobre temas relevantes tais como aqueles que inspiraram a

eloquecircncia ciceroniana jaacute natildeo podia ser ouvida Pleitos autecircnticos em que a

decisatildeo poderia ser desenvolvida por um advogado estavam confinados agraves

cortes centuriais e a causas natildeo se prestavam agrave oratoacuteria

A mudanccedila do regime republicano para o imperial eacute comparaacutevel agrave transformaccedilatildeo

gradual da declamaccedilatildeo e da sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria Um dos reflexos dessa interferecircncia

do sistema poliacutetico sobre a oratoacuteria daacute-se justamente segundo Schwartz (2004 p 2) na

ldquoreduccedilatildeo significativa do terreno para o desenvolvimento do gecircnero deliberativo uma vez

que sob o principado o senado perde sua independecircncia efetiva e junto com ela restringem-

se consideravelmente as possibilidades tradicionais do discurso oratoacuteriordquo

21

Natildeo sem razatildeo a declamaccedilatildeo tinha por modelo supremo de eloquecircncia a proacutepria

oratoacuteria mais especificamente a ciceroniana (Secircneca Contr I praef 6) e que deveria ser

imitado Quintiliano por exemplo aleacutem de tratar das declamaccedilotildees em sua ldquoInstituiccedilatildeo

Oratoacuteriardquo cita ou menciona Ciacutecero 362 vezes Tal padratildeo de imitaccedilatildeo persistiria ao longo dos

seacuteculos entre os reacutetores latinos desde o seacuteculo I d C com Quintiliano ateacute a polecircmica do

Ciceronianismo durante o seacuteculo XVI

Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as reais

necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de temas

mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Para ele a declamaccedilatildeo era o ldquomais uacutetil de todos os

exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) Assim esta natildeo era apenas um treino

para jovens aprendizes da eloquecircncia pois

seria um erro julgar que na Antiguidade a declamaccedilatildeo estava restrita agraves

escolas de retoacuterica Os adultos inclusive os homens de accedilatildeo jaacute ceacutelebres mas

afastados provisoriamente da vida poliacutetica ou dos tribunais se exercitavam

com as declamaccedilotildees a fim de natildeo perderem o haacutebito da eloquecircncia Em 46 a

C quando Ceacutesar era ditador Ciacutecero lecionava oratoacuteria a Hiacutercio e a Dolabella

(Kennedy 1980 p 37)

A declamaccedilatildeo antiga tinha portanto um puacuteblico alvo anaacutelogo agravequele humanista que

surgiraacute depois De fato a importacircncia da oratoacuteria e por consequecircncia das teorias retoacutericas

na vida romana eacute determinante Poliacutetica jurisprudecircncia ndash e inclusive o comando militar ndash

dependiam do modo pelo qual os dirigentes articulavam a palavra O homem poliacutetico era

justamente aquele capaz de comunicar-se com o puacuteblico ao qual cabia tomar decisotildees seja no

contexto judicial seja no contexto deliberativo Eacute por essa razatildeo que o puacuteblico-alvo do

declamador era a classe dominante seja a parte que ainda estava em formaccedilatildeo no contexto

escolar seja aquela jaacute ldquoformadardquo que se exercitava ou se deleitava com o exerciacutecio em

ciacuterculos de maior intimidade Se a declamaccedilatildeo latina visava os magistrados no primeiro caso

ou se no segundo caso simulava o senado no regime republicano ou no regime imperial o

discurso visava justamente agraves pessoas que deveriam decidir pela deliberaccedilatildeo poliacutetica Sobre

os destinataacuterios da declamaccedilatildeo romana afirma Bernstein (2009 p 332)

Os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da alta

classe romana do imperador cuja presenccedila eacute mencionada por Secircneca (Contr

II412ndash13) aos estudantes que poderiam ter usado essa literatura como

material pedagoacutegico

22

14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos

141 A Retoacuterica a Herecircnio

Haacute trecircs referecircncias ao vocaacutebulo declamatio na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (III 20) Estas satildeo

as mais antigas na literatura latina pois esta obra teria sido escrita por um autor desconhecido

na primeira metade do seacuteculo I a C (Caplan1954 XVII)3 Para Bonner (1949 p 20) existe

uma conexatildeo proacutexima com o termo grego ἀναθώνηζις e o gecircnero declamaccedilatildeo De fato nesse

escrito por muito tempo equivocadamente atribuiacutedo a Ciacutecero mas cuja paternidade

ciceroniana jaacute era posta em duacutevida durante o Renascimento apresenta-se o termo declamaccedilatildeo

como um verdadeiro exerciacutecio oral justamente por tratar da pronuntiatio ou seja da forma

da locuccedilatildeo adequada a persuadir e a agradar a audiecircncia especialmente ao abordar os pontos

da firmeza (firmitudo) e da suavidade (mollitudo) da voz Caplan (ibid xvII) em sua

introduccedilatildeo agrave ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo comenta que as escolas retoacutericas latinas realizavam a

declamaccedilatildeo conforme os manuais os quais refletem a praacutetica escolar O texto apresenta os

exerciacutecios de forma enfaacutetica na forma de progymnaacutesmata estabelece as formas proacuteprias de

vaacuterios gecircneros discursivos o epidiacutetico (demonstratiuum) o deliberativo (deliberatiuum

deliberationes suαsoriae) e judiciaacuterio (iudiciale causae controuersiae) Deve-se notar que o

autor desenvolve alguns exemplos de declamaccedilotildees certamente inspiradas nas declamaccedilotildees

gregas Algumas destas discutem sobre o tema da paz e da guerra

142 Ciacutecero

Erasmo considerava Ciacutecero entre outros autores uma autoridade no que diz respeito agrave

composiccedilatildeo em prosa (Epiacutestola 20 Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31) Segundo

Chomarat (1981 p 935) Mendelson (1994 p 94) e Winterbottom (2006 p 76) na eacutepoca de

Ciacutecero havia duas noccedilotildees essenciais de declamaccedilatildeo que a caracterizam como portadora de

3 Quanto agrave data conveacutem citar tambeacutem outras opiniotildees como a do editor da obra para a Belles Lettres Achard

que palpita ldquoElle paraicirct donc se situer entre le mi de 86 et la fin de 83 Une telle datation s‟accorde parfaitement

avec l‟intention de l‟auteur et le contenu du livrerdquo (Achard 1997 p vii) E mais adiante ldquoPour toutes ces

raisons on peut consideacuterer comme assureacute que la Rheacutetorique agrave Herennius a eacuteteacute eacutecrite entre la mi-86 et le deacutebut de

82rdquo (Ibid p xii)

23

temas fictiacutecios ou como praacutetica de um exerciacutecio da elocuccedilatildeo (Kennedy 1980 p 37)

conforme o sentido escolar do termo μελέηη4

Na obra de Ciacutecero (Bonner 1949 p 27) haacute dez referecircncias agrave declamaccedilatildeo seja na

forma de substantivo seja na forma de verbo nas ldquoDisputas tusculanasrdquo (17) a palavra

ocorre como o sentido de exerciacutecio da palavra mas na oraccedilatildeo ldquoPor Placircnciordquo (47) em sentido

depreciativo eacute atribuiacuteda a um discurso banal ou proposiccedilatildeo refutaacutevel um protesto barulhento

Nota-se tambeacutem o sentido de invectivar contra ou sobre uma pessoa (Contra Verres 4 49

Epiacutestulas aos Familiares 3 11 2) Ciacutecero tambeacutem fala do declamator (Por Placircncio 83) ou

do exerciacutecio declamatorius (Orador 47) Haacute em Ciacutecero uma variante para o verbo declamar

declamitare (Epiacutestola LX a Papirio Paeto) Este uacuteltimo lido no contexto parece ter o sentido

como exerciacutecio veemente da declamaccedilatildeo ou da execuccedilatildeo reiterada de exerciacutecios de locutio

(Brutus 310 Sobre o orador 1251) Pode ser exercido para desprestigiar um contendor

(Filiacutepicas 5 19) ou para agradar os ouvintes (Disputas Tusculanas 1 7) Eacute em Ciacutecero que

ocorre a primeira distinccedilatildeo dos subgecircneros da declamaccedilatildeo quanto ao tipo de causa ou tema

deliberativa ou suasoacuteria (Por Rocio Amerino 82) juriacutedica ou causae (Disputas Tusculanas

1 7)

143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho

Manoel (2014 p 37) contudo ao tratar dos exerciacutecios de declamaccedilatildeo nos tempos de

Ciacutecero em comparaccedilatildeo com as declamaccedilotildees do periacuteodo imperial reconheceu que ldquofoi apoacutes o

fim da Repuacuteblica que teve iniacutecio a era das declamaccedilotildeesrdquo ou seja o periacuteodo no qual sua

praacutetica talvez tenha atingido uma espeacutecie de apogeu devido ao grau de difusatildeo da sua praacutetica

na sociedade romana e agrave maior quantidade e qualidade de registros escritos ainda

conservados Segundo Schwartz (2004 p 8) e Russel (2009 p 2) para a compreensatildeo das

caracteriacutesticas fundamentais desse gecircnero no periacuteodo imperial eacute fundamental considerar as

ldquoControveacutersiasrdquo (em dez livros) e as ldquoSuasoacuteriasrdquo de Secircneca o Velho Este discorreu sobre o

gecircnero declamatoacuterio nos prefaacutecios agraves controveacutersias escritos provavelmente nas deacutecadas de 20

ou 30 d C A importacircncia desse autor se verifica por ter vivido em uma eacutepoca na qual a

declamaccedilatildeo passou a ser realizada publicamente a fim de deleitar a audiecircncia e tomando o

4 Deve-se ainda acrescentar que aleacutem do sentido de exerciacutecio o termo tinha o sentido de cuidar Era usado

inclusive no contexto militar e medicinal (Cf Bailly Anatole Le Grand Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris

Hachette 2000 Voz μελέηη)

24

lugar da antiga oratoacuteria (Conte 1999 p 404) Redigidas em idade avanccedilada suas

declamaccedilotildees judiciais podem ser entendidas como escritas a pedido de seus filhos ou para a

instruccedilatildeo destes (Schwartz 2004 p 80) dadas as diversas referecircncias e locuccedilotildees direcionadas

explicitamente a estes em vaacuterios prefaacutecios (Secircneca Contr Pr 1 3 4 6 9 10 13 19 20 22)

Segundo Bloomer (1997 p 204) esta indicaccedilatildeo de destinataacuterios consanguiacuteneos natildeo deve ser

entendida senatildeo como uma estrateacutegia retoacuterica com um significado social a fim de simular

uma recomendaccedilatildeo agrave comunidade ou um ensino a disciacutepulos Sobre os destinataacuterios desta

declamaccedilatildeo conforme afirma Bernstein (2009 p 332) baseando-se em Secircneca (Contr II 4

12-13) os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da classe alta

conforme acima mecionamos

As ldquoControveacutersiasrdquo abordam setenta e quatro casos legais imaginaacuterios nos quais o

autor estabelece pareceres dos reacutetores sobre cada caso a partir de diferentes pontos de vista

(Salum 2010 p 119) Nos prefaacutecios apresentam-se as caracteriacutesticas individuais dos reacutetores

as quais satildeo discutidas de forma irocircnica eou pedagoacutegica As controveacutersias de Secircneca poreacutem

natildeo satildeo escritas de forma completa tal como foram ou teriam sido pronunciadas mas de

forma sintetizada (Schwartz 2004 p 8) Estas se diferenciam das declamaccedilotildees escritas em

grego cuja transcriccedilatildeo era integral sendo redigidas tais como haveriam de ser pronunciadas

a exemplo de Libacircnio Coriacutecio e Plutarco

A obra de Secircneca goza de eminente autoridade para a histoacuteria da oratoacuteria e da

declamaccedilatildeo Na opiniatildeo de Salum (2010 p 119) as ldquoControveacutersiasrdquo apresentam uma espeacutecie

de galeria de declamadores os quais personificam compreensotildees retoacutericas diversificadas

Aleacutem disso tambeacutem evoca uma distinccedilatildeo da declamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria e procura

estabelecer as qualidades imprescindiacuteveis do gecircnero conforme consta no prefaacutecio da terceira

controveacutersia (Contr III pr 7)

Segundo a leitura dos prefaacutecios denota-se que seu orador ldquoidealrdquo era Ciacutecero o qual eacute

apresentado inclusive como o primeiro dos declamadores latinos (Schwartz 2004 p 12)

embora essa afirmaccedilatildeo possa contrariar o que o proacuteprio Secircneca pensava a respeito da

declamaccedilatildeo no final da Repuacuteblica ldquoCiacutecero poreacutem natildeo declamava entatildeo estas a que

chamamos controveacutersias nem aquelas outras que eram pronunciadas antes de Ciacutecero e que

se chamavam thesis Noacutes dizemos controveacutersias mas Ciacutecero lhes chamava causasrdquo (Secircneca

Contr I pr 12) Aleacutem do problema de que algumas das causas ciceronianas poderiam ser

25

reais (histoacutericas) e natildeo fictiacutecias deve-se afirmar que o texto supracitado de Secircneca

problematiza a terminologia acerca da declamaccedilatildeo como ao afirmar que Cicero causas

vocabat

Secircneca cujos prefaacutecios estabelecem a declamaccedilatildeo como um gecircnero literaacuterio

autocircnomo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria apresenta alguns conceitos imprescindiacuteveis para sua

caracterizaccedilatildeo tais como a noccedilatildeo de sententia entendida como frase epigramaacutetica utilizada

para impressionar o leitor ou os ditados ou aforismos geralmente conclusivos do argumento

a diuisio que seria uma breve apresentaccedilatildeo do esquema argumentativo proposto era

fundamentada nas noccedilotildees de iustitia (justiccedila) no ius (direito) e na utilitas (interesse) e o

color entendido como ldquoo estilo com o qual o declamador apresenta a situaccedilatildeo ou seja

contava-se a acumulaccedilatildeo de figuras retoacutericas o ritmo do periacuteodo etcrdquo (Conte 1999 p 405)

Por outro lado Schwartz (2004 p 9) entende que o color seria ldquoo motivo imaginado para

justificar uma accedilatildeo de uma personagem em uma controveacutersiardquo O color concebido segundo a

conceituaccedilatildeo de Secircneca no contexto de uma controveacutersia era atribuiacutedo ao ato passado do

personagem descrito no thema (Fairweather 1981 p 32) por vezes no iniacutecio ldquoeste color foi

usado e logo atribui a ele desde o princiacutepiordquo (Contr I 1 24) ou ao longo desta ldquoAlbuacutecio

natildeo narrou mas erigiu este color desde o iniacuteio ateacute o finalrdquo (Contr I 1 24) Secircneca descreve o

color do discurso como sendo prudente temperado duro aacutespero ou severo Caracteres

anaacutelogos eram atribuiacutedos a um ou a todos os personagens da controveacutersia (Winterbottom

1980 p 171) Muitas vezes estava presente logo na narratio entendida como ldquouma descriccedilatildeo

sobre os principais atos cometidosrdquo (Van Mal-Maeder 2007 p 71) e que fornecem o cerne da

questatildeo a ser discutida na declamaccedilatildeo

Apesar do testemunho equivocado de Secircneca o Velho a respeito da origem da

declamaccedilatildeo ao mencionaacute-la como rem post me natam (Contr I 12) o estudo deste gecircnero

com base em seu escritos se faz importante natildeo somente em razatildeo das suas consideraccedilotildees

acerca das caracteriacutesticas essenciais acima mencionadas mas tambeacutem porque descreveu o

contexto histoacuterico e a praacutetica desta forma de discurso em seu tempo como uma espeacutecie de

retrocesso qualitativo (Secircneca Contr I pr 6) Conte (1999 p 404) observa que justamente a

mudanccedila de regime poliacutetico da Repuacuteblica ao Impeacuterio fez com que a declamaccedilatildeo se alterasse

pois a praacutetica oratoacuteria natildeo gozava da mesma liberdade de expressatildeo de antes com a

decadecircncia do Senado e a ausecircncia de praacutetica oratoacuteria na formaccedilatildeo do orador Os oradores

26

passaram a ser vistos com desconfianccedila por uma administraccedilatildeo que natildeo tolerava criacuteticas Natildeo

sem razatildeo os autores notam a decadecircncia da eloquentia apoacutes a morte de Ciacutecero natildeo pela falta

de gecircnios mas pela falta de liberdade de expressatildeo da opiniatildeo poliacutetica individual (Schwartz

2004 p 91) Entretanto a praacutetica das declamaccedilotildees se tornou um espetaacuteculo puacuteblico e

paulatinamente foi tomando o lugar da ldquorobusta oratoacuteria expressa pelos tempos de Ciacutecerordquo

(Sussman 1972 p 197) Schwartz sintetiza o papel e as incongruecircncias da praacutetica da

declamaccedilatildeo no periacuteodo republicano e sua heranccedila para a literatura latina

[as declamaccedilotildees] pelo fato de natildeo fazerem parte do campo tradicionalmente

mais livre da poesia nem de serem tampouco redutiacuteveis agrave simples funccedilatildeo

ancilar de exerciacutecio escolar colocava-as em um ldquonatildeo-lugarrdquo Essa orfandade

no entanto resultou em um vazamento da retoacuterica escolar sobre os outros

gecircneros discursivos Nesse processo eacute todo o campo da eloquecircncia que se

torna ldquodeclamatoacuteriordquo (Schwartz 2004 p 10)

Nos prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo Secircneca desaprovava as tendecircncias floridas da

oratoacuteria de seu tempo ou conforme supotildee Salum (2010 p 119) apresenta personagens como

portadores de defeitos e virtudes da declamaccedilatildeo a fim de teorizar sobre caracteriacutesticas

essenciais desta Para citar um exemplo uma passagem do prefaacutecio da segunda controuersia

expressa uma criacutetica ao estilo asiaacutetico de um aluno de Areacutellio Fusco que tinha certa propensatildeo

agrave filosofia Fabiano Papiacuterio ldquoseu arranjo de palavras efeminado demais para que um espiacuterito

que se prepara com preceitos tatildeo santos e rigorosos pudesse suportaacute-lardquo (Contr II 1) Secircneca

criticou a atividade de alguns declamadores aos quais atribuiacutea o anseio impreteriacutevel de

impressionar o puacuteblico atraveacutes de vazias frases de efeito pelo uso inapropriado das sententiae

marca essencial do gecircnero declamatoacuterio A sentenccedila eacute um silogismo incompleto mas natildeo

iloacutegico que prestigia as informaccedilotildees de interesse do declamador e que visa a impressionar o

ouvinte natildeo tanto pelo silogismo mas pela beleza ou forccedila da expressatildeo Nessa estrutura a

noccedilatildeo de sententia era fundamental pois ldquoesta procurava produzir o efeito mais do que a

loacutegica do periacuteodordquo (Salum 2010 p 119) ainda que natildeo abstraiacuteda a dimensatildeo retoacuterica do

logos Utilizava no entanto o entimema que segundo a conceituaccedilatildeo aristoteacutelica natildeo era

iloacutegico mas apenas apresentava o raciociacutenio de um modo incompleto e essencial a fim de ser

compreendido de forma mais direta pelo ouvinte ou mesmo enganaacute-lo e tornar o argumento

irresistivelmente persuasivo em contraponto com o raciociacutenio dialeacutetico desenvolvido em

todas as suas premissas poreacutem menos convincente

Entre as provas fornecidas pelo discurso distinguem-se trecircs espeacutecies umas

residem no caraacuteter moral do orador outras nas disposiccedilotildees que se criaram no

27

ouvinte outras no proacuteprio discurso pelo que ele demonstra ou parece

demonstrar Obteacutem-se a persuasatildeo por efeito do caraacuteter moral quando o

discurso procede de maneira que deixa a impressatildeo de o orador ser digno de

confianccedila [] Obteacutem-se a persuasatildeo nos ouvintes quando o discurso os leva a

sentir uma paixatildeo [] Enfim eacute pelo discurso que persuadimos sempre que

demonstramos a verdade ou o que parece ser a verdade de acordo com o que

sobre cada assunto eacute suscetiacutevel de persuadir (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 3-8

traduccedilatildeo Antocircnio de Carvalho 1999 p 33-34)

Silogismo significa basicamente calcular ou raciocinar em conexatildeo Uma das

caracteriacutesticas desse tipo de discurso eacute a formaccedilatildeo completa da sentenccedila loacutegica que atraveacutes de

proposiccedilotildees compostas atribuem verdade ou falsidade ao conceito exposto No discurso

dialeacutetico essas proposiccedilotildees compostas satildeo muitas vezes interligadas por conectivos

conformando assim oraccedilotildees coordenadas ou subordinadas Por isso Aristoacuteteles atribuiacutea ao

discurso retoacuterico a necessidade do conhecimento adequado das emoccedilotildees e das paixotildees

humanas O homem natildeo eacute persuadido pelo mero raciociacutenio Eacute necessaacuterio apelar agraves emoccedilotildees

Tal propoacutesito foi perseguido pela oratoacuteria sobretudo no ambiente republicano e sua

ldquoherdeirardquo nos tempos imperiais a declamaccedilatildeo

Por outro lado segundo Conte (1999 p 405)

Dado o caraacuteter fictiacutecio das situaccedilotildees e as muitas premissas o anseio do orator

natildeo eacute tanto persuadir mas sim deixar a audiecircncia atocircnita e ele para isso

recorre aos mais engenhosos truques da linguagem e da imaginaccedilatildeo O

maneirismo das formas torna exagerado o uso dos colores o termo teacutecnico

que indica a manipulaccedilatildeo inteligente de uma situaccedilatildeo ou de um conceito e

capaz de apresentar a mateacuteria em matildeos sob o aspecto mais surpreendente Na

busca do efeito e dos aplausos do auditoacuterio o orator tambeacutem faz uso de um

estilo precioso brilhante aquele que recorre a todos os artifiacutecios de asianismo

do acuacutemulo de figuras retoacutericas a uma expressatildeo densamente epigramaacutetica a

fim de cuidar do ritmo do periacuteodo

Secircneca tambeacutem caracteriza a declamaccedilatildeo com dois traccedilos distintivos em primeiro

lugar ao tratar da puacuteblica afirmava que esta visava a dar impressatildeo de improviso por meio da

velocidade (Contr IV 7) Em segundo lugar aleacutem da aparecircncia de algo natildeo preparado

deveria ter especial cuidado com o tom de voz tal como os manuais como a ldquoRetoacuterica a

Herecircniordquo preceituavam Um orator ou um ou um rhetor era desprestigiado caso seu trabalho

fosse assemelhado ao teatro cocircmico (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 7-8) uma vez que em

Roma os costumes dos artistas que atuavam na comeacutedia eram extremamente mal vistos E de

fato a comeacutedia era exercida por profissionais desprezados na alta sociedade romana Desse

modo muitas vezes atribuiacutea-se agravequele que atuava uma depravaccedilatildeo moral contra os costumes e

28

o mos maiorum A sua accedilatildeo (actio) se caracterizava exagerada e a modulaccedilatildeo no volume da

voz a fim de se fazer ouvir e entender adequadamente pela assembleia eram desagradaacuteveis em

comparaccedilatildeo agrave oratoacuteria ldquoprofissionalrdquo dos oradores do Foacuterum e do Senado Como a recitaccedilatildeo

da declamaccedilatildeo implicava no uso de uma locutio por vezes enfaacutetica somada ao uso da

prosopopeia os declamadores procuravam fugir do perigo de serem considerados meros

comediantes Disso resulta a grave criacutetica ao perigo de incorrer no ridiacuteculo como Secircneca

impunha agravequeles que natildeo regulavam bem a tonalidade da voz (Contr IV 10)

144 A suasoacuteria em Secircneca

Como dissemos as declamaccedilotildees de Secircneca estavam subdivididas em dois tipos as

controuersiae e as suasoriae As controveacutersias pertencem ao gecircnero judicial e consistiam no

julgamento de um caso fictiacutecio que se baseava na legislaccedilatildeo romana ou em leis fictiacutecias

(Bonner 1949 p 258) Jaacute as suasoacuterias fazem parte do gecircnero deliberativo e versavam sobre

temas mitoloacutegicos e histoacutericos Nelas o aluno tinha a finalidade de simular adequadamente o

discurso de uma personagem convencer a assembleia fictiacutecia segundo o propoacutesito de sua

causa e deleitar o puacuteblico real por meio de uma simulaccedilatildeo de discurso estruturado com uma

prosopopeia Esta personificaccedilatildeo deveria simultaneamente se adaptar ao objeto (res) ao

puacuteblico e agrave personagem que representa Daiacute se conclui a relaccedilatildeo da personificaccedilatildeo com a

noccedilatildeo aristoteacutelica de ecircthos mencionada acima e a sermocinatio tal como comenta Schenk

(1982 p 115-116)

A suasoria uma declamaccedilatildeo ensinada nas escolas de retoacuterica mais do que um

exerciacutecio elementar lecionado na escola de gramaacutetica exigia um auditoacuterio e

sua finalidade era preponderantemente a persuasatildeo Toda suasoacuteria era em

parte uma interpretaccedilatildeo pois o disciacutepulo ao compocirc-la tinha de assumir um

papel de preceptor ou conselheiro e portanto tinha de adaptar seus

ldquoargumentos seu modo sua tonalidade ao tipo de ouvinte quem quer que

fosse seja um cidadatildeo comum um soldado um senador um membro do

conselho militar um mensageiro em conformidade com as circunstacircncias do

debaterdquo (Bonner 1949 p 285) Mas o disciacutepulo tambeacutem tinha de convencer a

figura histoacuterica ou mitoloacutegica especiacutefica que eles estavam aconselhando ao

modo de actio O jovem aluno deveria aconselhar por assim dizer os

espartanos a resistir nas Termoacutepilas ou Agamenon a sacrificar sua filha

Ifigecircnia ou natildeo

Merecem especial destaque as suasoacuterias I II IV que tratam sobre a deliberaccedilatildeo da

conquista dos mares e da guerra com argumentos a favor e contra A primeira ldquoSuasoacuteriardquo

mencionada na Controuersia (VII 7 19) trata sobre Alexandre o Grande rei da Macedocircnia

29

O declamador coloca-se no lugar de um dos membros do conselho e discute se apoacutes a

conquista da Aacutesia e da Iacutendia o monarca deve atravessar o oceano Jaacute na segunda ldquoSuasoacuteriardquo

que eacute intitulada ldquoOs trezentos espartanos enviados contra Xerxes uma vez que os grupos de

trezentos enviados de toda a Greacutecia fugiram deliberam se tambeacutem eles proacuteprios fugiratildeordquo

trata sobre o episoacutedio dos 300 espartanos que haviam enfrentado os persas comandados por

Xerxes por ocasiatildeo da segunda invasatildeo (480 a C) em Termoacutepilas (Cf Heroacutedoto Histoacuteria

VII) Nesta suasoacuteria vaacuterios declamadores apresentam argumentos a favor e contra a fuga dos

espartanos Destaca-se o discurso de Fusco segundo Secircneca

Nesta suasoacuteria Fusco usou aquela divisatildeo popular dizendo que natildeo era

honroso fugir mesmo que fosse seguro em seguida que era igualmente

perigoso fugir ou lutar e por uacuteltimo que era mais perigoso fugir Os inimigos

deviam ser temidos por aqueles que lutam tanto os inimigos quanto os aliados

deviam ser temidos por aqueles que fogem (Suas II 11 Traduccedilatildeo de

Costrino p 2010 p 58)

A segunda ldquoSuasoacuteriardquo traz como tema tipicamente deliberativo questotildees que evocam a

guerra e o ofiacutecio do combatente como algo digno vendo-a como algo positivo honesto

Alguns declamadores vituperam aqueles que fogem da guerra apresentando o fato como algo

desonroso para os antepassados e que diminui a fama dos gregos

Na quarta ldquoSuasoacuteriardquo cujo tiacutetulo ldquoAlexandre o grande delibera sobre se invadiraacute a

Babilocircnia uma vez que lhe fora anunciado o perigo pela previsatildeo do aacuteugurerdquo encontramos o

episoacutedio da vitoacuteria de Alexandre sobre Daacuterio na batalha de Galgamela ocorrida no ano de

331 a C Com esta conquista o comandante grego vislumbrou a oportunidade de apoderar-

se da cidade mesopotacircmica Nesta suasoacuteria mais uma vez a guerra eacute tratada como algo

beneacutefico sobretudo para a imagem do comandante O auguacuterio natildeo quer senatildeo incutir o medo

no combate pois tanto a vida de cada homem quanto o destino dos conquistadores ldquosatildeo

forjadas para cada um por causa do engenho natildeo a partir da feacuterdquo (Suas IV 3) Por essas duas

passagens percebe-se natildeo somente que a questatildeo da guerra e por oposiccedilatildeo da paz eacute proacutepria

do gecircnero da declamaccedilatildeo suasoacuteria mas que a guerra pode ser tratada como uma causa

honesta no sentido de que eacute admiraacutevel e justa que predica a virilidade a legiacutetima defesa da

pessoa e da naccedilatildeo e que argumentos baseados na mitologia natildeo poderiam tornaacute-la uma causa

torpe Em outras palavras a guerra seria uma deliberaccedilatildeo necessaacuteria justa e admiraacutevel em

certos casos

30

145 Quintiliano

Erasmo qualificava a ldquoInstituiccedilotildees Oratoacuteriasrdquo de Quintiliano como escritos de

autoridade no que diz respeito agrave composiccedilatildeo em prosa (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p

31) Dentre as sessenta e quatro ocorrecircncias de substantivos e verbos com o radical declama-

(declamator declamare declamatio)5 foi oportuno selecionar quatro aspectos significativos

da declamaccedilatildeo primeiro sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 49)

segundo sua praacutetica escolar (Ibid II 1 1) terceiro a presenccedila nela de aspectos teoacutericos do

gecircnero deliberativo (Ibid III 4 7) e por uacuteltimo a ocorrecircncia nela do vitupeacuterio e do elogio

(Ibid II 4 22) Natildeo sem propoacutesito a prolixidade de Quintiliano a respeito fez com que lhe

fossem atribuiacutedas agraves coleccedilotildees de declamaccedilotildees maiores hoje comprovadamente espuacuterias dada

a presenccedila nelas do asianismo ausente dos demais escritos dele As declamaccedilotildees minores

entretanto poderiam ser atribuiacutedas a ele sem maiores dificuldades (Reali e Turazza 2012 p

7)

Do ponto de vista histoacuterico Quintiliano compartilha a supracitada ideia de Taacutecito

(Dialogo de Oratoribus 351) segundo a qual a declamaccedilatildeo seria uma pobre e mera imitaccedilatildeo

da antiga e ceacutelebre oratoacuteria romana em razatildeo de sua natureza fictiacutecia

De fato o que tomamos como exemplo possui uma natureza e forccedila reais ao

contraacuterio toda imitaccedilatildeo eacute construiacuteda e se acomoda a um propoacutesito alheio De

onde sucede que as declamaccedilotildees tenham muito menos sangue e forccedila que os

discursos pois a mateacuteria que eacute verdadeira nestes eacute imitada naquelas Acrescente-se

que o que eacute oacutetimo na oratoacuteria satildeo as coisas imitaacuteveis natildeo satildeo o engenho a invenccedilatildeo a

forccedila a desenvoltura e o que quer que seja concedido pela arte (Quintiliano

Instituiccedilatildeo Oratoacuteria X 2 11-12)

Quintiliano comenta que a ascensatildeo do gecircnero declamatoacuterio significou a decadecircncia

da oratoacuteria romana segundo os elevados moldes ciceronianos em uma relaccedilatildeo causal

(Schwartz 2004 p 2) pelas seguintes razotildees o caraacuteter fantasioso dos temas selecionados

que ele rejeitava veementemente e o estilo exagerado dos declamadores (Quintiliano

Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-15) que segundo ele quanto menos preocupados com a causa

que discutiam mais pensavam ldquoem deleitar os ouvidos da audiecircncia mesmo agrave custa das mais

iacutenfimas distraccedilotildeesrdquo (Ibid II 12 6) Natildeo devemos contudo ver nessas afirmaccedilotildees algo como

o estado histoacuterico das declamaccedilotildees em seu tempo pois muitas dessas declaraccedilotildees tecircm

5 As ocorrecircncias do radical escolhido (declama-) foram contadas numa versatildeo digitalizada da ediccedilatildeo da Institutio

Oratoria publicada pela Harvard University Press em 2006

31

finalidade pedagoacutegica dada a natureza da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria podendo ser tambeacutem

interpretadas como uma apresentaccedilatildeo de um modelo ou exemplum negativo e que natildeo deve

ser seguido ou imitado

De fato Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as

reais necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de

temas mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Sua preocupaccedilatildeo se explica pois pela proacutepria

finalidade didaacutetica de seus escritos Como considerava a declamaccedilatildeo o ldquomais uacutetil de todos os

exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) forneceu um bom retrato de como

estes exerciacutecios eram realizados em sua eacutepoca (Ibid II 10 1-15) Por fim deve-se dizer

tambeacutem que menciona a praacutetica de prover seus alunos com subsiacutedios escritos a fim de que

estes auxiliassem seus disciacutepulos em suas declamaccedilotildees (Ibid II 6 2) e chega a afirmar que

ldquoo exerciacutecio da escrita facilitava a locuccedilatildeo e o exerciacutecio da locuccedilatildeo incrementava a escritardquo

(Ibid X 7 29) Assim se era um exerciacutecio essencialmente oral cuja finalidade era a praacutetica

da locutio eacute justamente em Quintiliano (Ibid X 3 10) que surgem alguns indiacutecios de uma

declamaccedilatildeo escrita no contexto escolar (Murphy 2012 p 69) Esse processo corresponde agrave

tendecircncia de transcriccedilatildeo dos discursos forenses que tambeacutem passaram a ser concebidos para a

leitura e natildeo somente para a audiccedilatildeo em decorrecircncia talvez da decadecircncia da oratoacuteria entatildeo

mal vista pelo regime imperial (Williams 2009) Esse fenocircmeno denominado literalizaccedilatildeo

foi um processo que transparece numa praacutetica que se estabeleceu naquela tempo e que se

assemelha agrave praacutetica declamatoacuteria as recitationes (Conte 1999 p 405) Estas costumavam

anteceder a publicaccedilatildeo das obras natildeo se restringindo aos gecircneros poeacuteticos como os

epigramas de Marcial e as saacutetiras de Juvenal mas abrangiam tambeacutem prosas de historiadores

e epiacutestolas como as de Pliacutenio o Jovem entre outros gecircneros discursivos (Dupont1997 p 45)

As declamationes e as recitationes implicavam em um contexto oral de emissatildeo e recepccedilatildeo

pois embora minuciosamente preparadas e escritas natildeo visavam a convencer mas

sobretudo a deleitar (Schwartz 2004 p 15)

Quintiliano informa que em seu tempo a declamaccedilatildeo tambeacutem poderia versar sobre

temas deliberativos ou suasoacuterios (Insituticcedilatildeo Oratoacuteria III 8 61) ou sobre as causas judiciais

(Ibid II 1 9) Eacute ele tambeacutem quem trata do lugar do elogio e da censura dentro da

declamaccedilatildeo e relaciona esses elementos tiacutepicos do gecircnero epidiacutetico como lugar comum

32

Lugares-comuns (falo daqueles em que natildeo se especificam pessoas e eacute usual

declamar contra viacutecios como contra aqueles do aduacuteltero do jogador do

licencioso) satildeo da proacutepria natureza dos discursos em exerciacutecios e se tu

acrescentas o nome da parte acusada satildeo autecircnticas acusaccedilotildees Estes no

entanto geralmente satildeo tratados a partir de temas gerais para algo especiacutefico

como quando o assunto de uma declamaccedilatildeo eacute um aduacuteltero cego um jogador

pobre ou um velho licencioso Agraves vezes tambeacutem tecircm a sua utilizaccedilatildeo na

defesa quando ocasionalmente falamos em favor do luxo ou da licenciosidade

ou de um degenerado ou parasita eacute por vezes defendido da forma que

defendemos natildeo a pessoa mas o viacutecio (Ibid II 4 22)

Aleacutem de tratar da inadequaccedilatildeo da declamaccedilatildeo com a comeacutedia ao exemplicar com as

figuras antiteacuteticas do aduacuteltero cego do jogador pobre e do velho licencioso Quintiliano

discute sobre algumas formas de distinguir os tradicionais trecircs gecircneros de discurso

(deliberativo judicial e epidiacutetico) e afirma a interpenetraccedilatildeo que pode haver entre estes

Haacute entatildeo como eu disse um gecircnero que conteacutem o louvor e o vitupeacuterio mas

que eacute chamado pelos melhores de laudativum outros no entanto chamam-

no de demonstrativo Acredita-se que ambos os nomes sejam derivados do

grego respectivamente ἐγκωμιαζηικόν e ἐπιδεκηικόν Entretanto me parece

que a palavra ἐπιδεκηικόν tem o significado natildeo tanto de demonstraccedilatildeo mas

sim de ostentaccedilatildeo a fim de distinguir do termo ἐγκωμιαζηικόν pois embora

ela inclua em si o gecircnero laudativum natildeo consiste somente nesse tipo

Algueacutem pode negar que os discursos panegiacutericos satildeo ἐπιδεκηικόν No entanto

eles tomam a forma suasoacuteria e geralmente tratam dos interesses da Greacutecia De

modo que haacute de fato trecircs gecircneros mas em cada um deles haacute uma parte

dedicada ao objeto e outra parte agrave ostentaccedilatildeo Mas quando natildeo traduzindo do

grego chamam de demonstrativo satildeo simplesmente levados pela

consideraccedilatildeo de que o elogio e a censura demonstram o que eacute a coisa O

segundo tipo eacute o deliberativo e o terceiro o judicial Outras espeacutecies

incorreratildeo nestes gecircneros sem haver encontrado uma espeacutecie qualquer em que

natildeo deve elogiar ou censurar persuadir ou dissuadir para impor uma carga ou

repeli-la Nelas eacute comum conciliar narrar ensinar aumentar diminuir a fim

de influenciar o julgamento do puacuteblico excitando ou dissipando as paixotildees

Eu natildeo poderia concordar mesmo com aqueles que ao adotar segundo meu

parecer uma divisatildeo mais faacutecil e ilusoacuteria do que verdadeira consideram que o

laudativo diz respeito ao que eacute honesto (honroso) o deliberativo ao que eacute

conveniente (uacutetil) e o judicial ao que eacute justo todos satildeo em certo ponto

auxiliados uns pelos outros uma vez que no elogio satildeo consideradas a justiccedila

e a oportunidade e nas deliberaccedilotildees a honra e raramente encontraraacutes uma

peccedila processual judicial na qual natildeo ocorra em alguma parte algo do que

mencionei acima (Ibid III 4 12-16)

Para Quintiliano os trecircs gecircneros natildeo satildeo categorias estanques completamente

separadas mas um auxilia o outro na medida em que compartilham elementos e recursos de

argumentaccedilatildeo como eacute o caso da utilidade da justiccedila e da honra atribuiacuteda ao ato ou agrave pessoa

de um determinado personagem que se ataca ou defende em uma causa Ao gecircnero epidiacutetico

embora esteja inserido na tradicional triparticcedilatildeo geneacuterica estaacute reservado ldquoum papel residual

33

na organizaccedilatildeo do sistemardquo (Schwartz 2004 p 147) Quanto ao lugar do demonstrativo

trata-se de um dos assuntos mais controversos da retoacuterica antiga mas prevalece que estaacute

inserido como lugares comuns dentro dos demais gecircneros de modo que caso fosse assumida

a definiccedilatildeo a partir de uma orientaccedilatildeo discursiva (laudare ou vituperare) seria loacutegico que

tambeacutem fossem acrescentados outros gecircneros segundo este criteacuterio como a repreensatildeo

(obiurgatio) a exortaccedilatildeo (cohortatio) a consolaccedilatildeo (consolatio) entre outros (Ciacutecero Sobre

o Orador II 47 50) Quintiliano (Ibid III 4 9-14) antepotildee uma caracteriacutestica do gecircnero

epidiacutetico em relaccedilatildeo aos gecircneros deliberativo e forense O primeiro visa ao deleite e natildeo exige

de seus ouvintes a tomada de uma decisatildeo como o realizar ou natildeo um ato ou estabelecer a

culpabilidade ou a inocecircncia em um caso mas sim o assentimento O demonstrativo visa a

deleitar a fim de persuadir Segundo Schwartz (2004 p 149) ldquoa caracteriacutestica universalmente

aceita do gecircnero [eacute] o caraacuteter passivo do puacuteblico que soacute conta como apreciador esteacutetico dos

discursosrdquo

Eacute de Quintiliano por fim a referecircncia teoacuterica escrita em latim mais antiga da figura

prosopopeia aplicada ao gecircnero declamaccedilatildeo para ele os discursos suasoacuterios que envolvem a

prosopopeia satildeo ldquoos mais difiacuteceis de pronunciarrdquo (Ibid II 1 2) Segundo Van Mal-Maeder

(2007 p 53) uma vez que a principal finalidade da caracterizaccedilatildeo das personagens era ldquode

despertar a simpatia ou ao contraacuterio de suscitar a indignaccedilatildeo elas tecircm uma capacidade

ilustrativa que os declamadores se compraziam em usar na demonstraccedilatildeordquo Autores como

Clark (1957 p 218) e Bonner (1949 p 285) identificaram essa figura de linguagem que

tambeacutem eram progymnaacutesmata (Heacutelio Teatildeo Progymnaacutesmata 60) com uma caracteriacutestica

essencial da declamaccedilatildeo conforme acima citamos (Ibid III 8 49)

Segundo Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco I 3) os jovens por carecerem de experiecircncia

de vida natildeo eram aptos agrave poliacutetica Justamente em razatildeo deste particular Clark (1957 p 218)

observa que os disciacutepulos eram exercitados em declamaccedilotildees de temas histoacuterico-mitoloacutegicos

fictiacutecios e que deveriam simular um diaacutelogo em proximidade com personagens importantes da

histoacuteria e da mitologia greco-romana tais como fatos biograacuteficos de Sula Soacutecrates

Alexandre Ceacutesar ou Ciacutecero (Mendelson 1994 p 94) Note-se que a utilizaccedilatildeo de temas

mitoloacutegicos e histoacutericos natildeo tem a finalidade de distinguir entre o caraacuteter histoacuterico e

mitoloacutegico mas sim simular adequadamente o discurso segundo o estereoacutetipo corrente

formado a respeito dessas personagens Desse modo os estudantes eram estimulados a

34

compor prosopopeias no sentido em que uma personagem ausente geralmente inspirada na

histoacuteria ou na mitologia greco-romana toma a palavra para fazer um discurso Shenk (1982

p 116-118) tambeacutem observa a ocorrecircncia relevante do uso da prosopopeia nas declamaccedilotildees

deliberativas ou suasoriae ldquomuitas controveacutersias assim como todas as suasoacuterias foram

compostas como prosopopeias nas escolas de declamaccedilatildeordquo Segundo Winterbottom (1974 p

52) estas no sentido de um discurso do personagem simulado seriam uma espeacutecie de

suasoacuteria Dessa forma averigua como no gecircnero declamatoacuterio deliberativo ou suasoacuterio a

prosopopeia era um elemento essencial da declamaccedilatildeo Isso ocorre talvez devido ao poder

persuasivo dessa figura Quintiliano identifica a prosopopeia das causas fictiacutecias com os

diaacutelogos tatildeo utilizados pelos autores greco-romanos em temas filosoacuteficos

Entre aquelas coisas que satildeo ainda mais audaciosas e como pensa Ciacutecero que

exigem maior empenho estaacute a personificaccedilatildeo ou προζωποποιΐα Este recurso

fornece agrave oratoacuteria maravilhosa variedade e animaccedilatildeo Por esse meio exibimos

os pensamentos mais iacutentimos dos nossos adversaacuterios como se estivessem

falando com eles mesmos (mas ela soacute convenceraacute se os representarmos no que

eacute verossiacutemil presumir que ocorra em suas mentes) ou ainda sem sacrifiacutecio de

credibilidade pode introduzir conversas entre noacutes e os outros ou de outras

pessoas entre si e colocar palavras de conselho reprovaccedilatildeo reclamaccedilatildeo

elogio ou pena na boca de pessoas apropriadas ademais por meio destas

prosopopeias eacute possiacutevel trazer dos ceacuteus os deuses evocar a morte e dar vozes

a cidades e Estados Haacute autores que datildeo o nome de prosopopeia soacute agravequelas em

que haacute ficccedilatildeo de personagens e de discursos Quanto agraves outras em que haacute

homens a falar datildeo-lhe o nome de diaacutelogos preferindo o termo grego ao

latino utilizado por muitos que quer dizer conversaccedilatildeo (sermocinatio) Eu

poreacutem seguindo o uso dei o mesmo nome a uma coisa e a outra pois natildeo eacute

possiacutevel imaginar locuccedilotildees sem imaginar as pessoas que falam (Ibid IX 2

29-32)

Dessa forma segundo o argumento de Quintiliano os limites entre a declamaccedilatildeo

suasoacuteria ou epidiacutetica natildeo estariam definidos de modo suficiente em razatildeo da ocorrecircncia de

personagens com discursos diretos cujo conteuacutedo e estilo estatildeo adequados com o ethos de

cada personagem Natildeo se poderia entatildeo falar de declamaccedilatildeo latina epidiacutetica mas de

contextos epidiacuteticos

Por outro lado para Mendelson (1994 94) Quintiliano recomendava que a actio

considerasse natildeo somente o caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava mas tambeacutem aquele de seu

auditoacuterio como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade especificidade partido e

acima de tudo seu caraacuteter moral (Ibid III 8 37-38) Quintiliano o exemplifica com as

35

Catilinaacuterias na qual Ciacutecero daacute voz agrave Paacutetria e agrave Repuacuteblica (Catilinaacuterias 718 11 27) entes

figurados seres abstratos que tambeacutem tomam a voz na declamaccedilatildeo Embora Quintiliano

apenas pareccedila apresentar a prosopopeia como um fator de dificuldade e por consequecircncia

algo que atribui maior meacuterito para aquele que soubesse adaptar de modo adequado os

caracteres das personagens evocadas agrave temaacutetica em causa e aos gostos do auditoacuterio parece-

nos ponderado afirmar que ela eacute uma caracteriacutestica essencial da declamaccedilatildeo suasoacuteria pois

adaptar a figura fictiacutecia com o tema e a assembleia seria a finalidade mais especiacutefica do

exerciacutecio declamatoacuterio (Bonner 1949 p 285) Parece ser incoerente pensar em uma

declamaccedilatildeo sem a prosopopeia ou mesmo sem uma personificaccedilatildeo

15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento

Segundo Mack (2004 p 261) ldquoo renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser

caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo A recuperaccedilatildeo pode ser

entendida entre outros sentidos como a retomada de um corpus de textos greco-romanos

antigos muitos desaparecidos e desconhecidos pelos autores cristatildeos medievais e que

constituem basicamente o corpo de escritos com os quais ainda hoje se toma contato com a

Antiguidade greco-romana A adiccedilatildeo teria sido o acreacutescimo de novos recursos literaacuterios

oriundos do acuacutemulo cultural ao longo dos seacuteculos Trata-se de uma espeacutecie de simbiose entre

a cultura greco-romana e a cristatilde com seus diversos contatos com o oriente A renovaccedilatildeo seria

justamente esse adaptar-se aos novos tempos agraves novas aptidotildees e sensibilidades artiacutesticas

com a conformaccedilatildeo de um movimento cultural ampliacutessimo capaz de penetrar em

praticamente todas as artes e ciecircncias o Renascimento

Como se verificaraacute na recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo enquanto gecircnero literaacuterio e

pedagoacutegico faz-se necessaacuterio pontuar que o Renascimento surge basicamente a partir de dois

fenocircmenos de iacutendole literaacuteria primeiro com a recuperaccedilatildeo de textos antigos que natildeo tinham

sido conhecidos ou difundidos ao longo da chamada Idade Meacutedia e em segundo lugar com o

surgimento da imprensa que permitiu a difusatildeo desses textos nos ciacuterculos letrados em escala

ateacute entatildeo impensaacutevel (Sartorelli 2009 p 3) Para Murphy (2003 p 227) Se de um lado

havia o acreacutescimo de fontes agravequelas chamadas ldquocristatildesrdquo verifica-se uma mudanccedila de visatildeo de

mundo que natildeo tratava das coisas segundo uma visatildeo teocecircntrica mas que colocava o

homem no centro de tudo

36

O Renascimento conteve duas tendecircncias histoacutericas o Humanismo e o cientificismo

aspectos marcantes do periacuteodo histoacuterico que passava a chamar-se ldquomodernordquo O primeiro

movimento atribuiacutedo a uma classe de pessoas denominadas como humanistas consolidou-se

na peniacutensula itaacutelica e caracterizava-se por um conjunto de ideais ou princiacutepios que

valorizavam a razatildeo e as accedilotildees humanas segundo determinados valores morais como o

respeito a justiccedila a honra o amor a liberdade entre outros O movimento se se afirmava em

contraposiccedilatildeo ao ldquoteocentrismordquo da ldquoIdade das Trevasrdquo atribuiacuteda ao medievo em uma visatildeo

que embora se assemelhe ao iluminismo eacute contrariada pela historiografia contemporacircnea

Como decorrecircncia desse antropocentrismo o desenvolvimento das artes tambeacutem foi uma

caracteriacutestica desse movimento que no acircmbito das Letras a partir da recuperaccedilatildeo dos gecircneros

antigos se pautou no interesse crescente pelos princiacutepios da antiga retoacuterica entendida como

um conjunto de princiacutepios explicitados pelos autores gregos e latinos especialmente da

Antiguidade que abordavam a arte da eloquecircncia ou da argumentaccedilatildeo tendo em vista a

persuasatildeo e o deleite de um auditoacuterio

Dois dados apresentados por Murphy (2003 p 231) exemplificam esse interesse

crescente em relaccedilatildeo agrave Retoacuterica entre a ediccedilatildeo da primeira obra de Ciacutecero (o Sobre o

Orador) datada de 1465 e o ano de 1500 contabilizaram-se 332 publicaccedilotildees impressas ao

passo que houve apenas 154 ediccedilotildees das obras de Aristoacuteteles cujo predomiacutenio de temaacuteticas

filosoacuteficas eacute notoacuterio (Murphy 2003 p 231) Tendo em conta que muitas das obras

ciceronianas abordavam principalmente temas tiacutepicos da retoacuterica e que ao final de 1485 estas

jaacute tinham sido editadas e impressas (Revard Raumldle e Di Cesare 1988 p 522) sua figura

cresceu em importacircncia de modo que muitos elementos retoacutericos geralmente atribuiacutedos a

outros autores antigos foram recebidos pelos humanistas por intermeacutedio da leitura de seus

escritos (Sartorelli 2015 p 7)

Por outro lado a invenccedilatildeo da imprensa fez necessaacuteria a entrada de um nuacutemero ainda

maior de leigos para os trabalhos tipograacuteficos

Uma das principais consequecircncias da invenccedilatildeo da prensa tipograacutefica foi

ampliar as oportunidades de carreira abertas aos letrados Alguns deles se

tornaram letrados-impressores como Aldo Manutius em Veneza Outros

trabalhavam para impressores por exemplo corrigindo provas fazendo

iacutendices traduzindo ou mesmo escrevendo por encomenda de editores-

impressores Ficou mais faacutecil embora ainda fosse difiacutecil seguir a carreira de

ldquohomem de letrasrdquo (Burke 2003 p 28-29)

37

Nem mesmo apoacutes as controveacutersias teoloacutegicas acentuadas pela Reforma Protestante

que teve seu marco inicial com as teses de Lutero afixadas nas portas da catedral de

Winterberg em 1517 ndash mesmo ano de publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo ndash e a crescente

oposiccedilatildeo entre os vaacuterios credos cristatildeos as trocas epistolares se restringiram entre as

confissotildees religiosas (Vasoli 2008 p 6 Hernaacutendez Guerrero e Garciacutea Tejera 1994 p 102-

105) Sartorelli (2009 p 4) observa que este ciacuterculo de literatos manteve o latim como liacutengua

veicular utilizando-a como uma liacutengua internacional de comunicaccedilatildeo

eacute preciso ter em conta que esse movimento foi em uma medida de que

talvez natildeo nos apercebamos hoje um movimento essencialmente latino ou

seja em liacutengua latina Humanistas mesmo os helenistas escreviam sobretudo

em latim e foi em latim que Pico della Mirandola por exemplo divulgou

Platatildeo Assim sendo quando falamos aqui em imitatio elocutio etc estamos

sempre falando da liacutengua latina

Em contraste com os seacuteculos anteriores nos quais as letras estavam majoritariamente

restritas ao conhecimento dos cleacuterigos e embora o volgarizzamento com a literatura

ldquoficcionalrdquo como a de Dante ou Bocaccio entre outros escritos natildeo estritamente considerados

filosoacuteficos e teoloacutegicos essa nova classe de intelectuais chamados na Itaacutelia de humanistae

situava sua atenccedilatildeo em questotildees linguiacutesticas poeacuteticas e estiliacutesticas ao privilegiar a arte a

beleza e a persuasatildeo do discurso mais do que a abstraccedilatildeo e a pretensa precisatildeo e uso dos

termos muitas vezes repetitivos do texto filosoacutefico (Murphy 2003 p 241) Contudo a

maioria dos autores mais eminentes eram membros de ordens religiosas muito embora os

leigos ocupassem um espaccedilo cada vez maior nas escolas ou nas universidades atuando como

professores privados ou ainda como dependentes da liberalidade de patronos ou mecenas

especialmente durante o Renascimento (Vasoli 2008 p 6) Esses intelectuais trocavam

correspondecircncias e estabeleciam ciacuterculos de relaccedilotildees ou centros eruditos com a finalidade de

compartilhamento das suas atividades literaacuterias que posteriormente passaram a chamar-se de

academias e se espalharam por toda a Europa Ocidental a ponto de no final do seacuteculo XV

para designar essa corrente cunhou-se a expressatildeo Repuacuteblica das Letras (Moya Bedoya

2008 p 192)

A inserccedilatildeo de outros autores fontes para a inventio ndash aleacutem da Biacuteblia e dos Padres da

Igreja os autores antigos ndash fez com que a arte de ldquoencontrarrdquo argumentos a favor de uma

causa fosse praticada com a leitura de textos de autoridade largamente difundidos pela

imprensa e neste sentido satildeo os autores greco-latinos antigos que erasm privilegiados Estes

38

deveriam ser lidos para deles se extrair por meio do sistema de lugares e toacutepicos os criteacuterios

que podem ajudar a argumentar com um discurso agradaacutevel harmonioso e realmente

persuasivo tal como predicava a retoacuterica Assim o sistema de lugares (loci) se converte em

um meio primordial para ler e ao mesmo tempo para produzir o discurso (Mack 1993 p

130)

Aleacutem da invenccedilatildeo havia o fenocircmeno da imitaccedilatildeo (imitatio) dos antigos modelos

greco-romanos a qual contemplava principalmente preceitos de estilo ou seja as

habilidades verificadas em determinado texto a fim de efetivar a finalidade para a qual foi

escrito Estas habilidades seriam adquiridas atraveacutes de exerciacutecios baseados em textos latinos e

gregos antigos (Cobett e Connors 1999 p 411) A polecircmica em torno da imitaccedilatildeo procurava

discutir se esta teacutecnica se restringia somente ao reproduzir foacutermulas frasais opccedilotildees lexicais e

lugares comuns proacuteprios dos antigos modelos greco-romanos nos escritos dos humanistas As

discussotildees a respeito ocuparam um lugar central ao longo do final do seacuteculo XIV e no iniacutecio

do seacuteculo XV Os autores antigos eram considerados e inclusive venerados como os

possuidores do latim por excelecircncia e deveriam servir de modelo para que os humanistas

praticassem o ldquoverdadeirordquo latim (Sloane 2004 p 112) muito diverso do latim praticado

pelos autores medievais mais ocupados em questotildees dialeacuteticas filosoacuteficas do que com as

questotildees de estilo

Embora houvesse um certo consenso geral acerca da imitaccedilatildeo dos antigos no

Renascimento esse fenocircmeno natildeo foi de modo algum paciacutefico ao considerar as

particularidades desta imitaccedilatildeo Uma das querelas mais encarniccediladas foi o debate em torno do

ciceronianismo Os intelectuais europeus antagonizavam-se em uma tendecircncia de imitaccedilatildeo

estrita agraves obras de Ciacutecero e outra forma mais ecleacutetica que tambeacutem consideravam outros

autores antigos (Sartorelli 2015 p 13) Erasmo foi protagonista nessa polecircmica sobretudo

ao publicar o seu ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo no ano de 15286 Nesse escrito o holandecircs

antagonizou a imitaccedilatildeo estrita e exclusiva de Ciacutecero realizada por autores que se

denominavam como ciceronianos e que visavam imitar com exclusividade o leacutexico a

meacutetrica as declinaccedilotildees e as foacutermulas presentes nos textos ciceronianos a despeito da

qualidade dos demais latinos antigos e do contexto histoacuterico e cultural do seacuteculo XV Os

6 Recentemente traduzido diretamente do latim para o portuguecircs pela orientadora do presente estudo (Sartorelli

2014 e 2015)

39

ciceronianos antagonizavam com os humanistas ldquoecleacuteticosrdquo que defendiam a imitaccedilatildeo de

outros autores e que embora reconhecessem o valor das obras ciceronianas tambeacutem

procuravam imitar os demais reconhecendo inclusive a necessidade de incorporar novas

palavras e foacutermulas ao leacutexico latino Erasmo defendeu publicamente uma imitaccedilatildeo ecleacutetica ou

composta isto eacute que considerasse os autores antigos em peacute de igualdade e inclusive definiu a

imitaccedilatildeo a partir do ecletismo necessaacuterio para atender agraves diferenccedilas entre oradores por meio

da locuccedilatildeo de uma das personagens do ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo

Eu abraccedilo a imitaccedilatildeo mas aquela que ajudar a natureza natildeo a que a violar a

que corrigir os dotes naturais natildeo a que os destruir aprovo a imitaccedilatildeo mas a

que conforme o exemplo estaacute de acordo com o teu talento ou que ao menos

natildeo te opotildees a ele para que natildeo pareccedila um theomachein contra os gigantes

De novo aprovo a imitaccedilatildeo mas natildeo a dedicada a uma soacute prescriccedilatildeo de cujos

traccedilos natildeo se atreve a separar-se mas aquela que de todos os autores ou ao

menos dos mais importantes toma aquele que mais se destaca e o que mais

conveacutem a teu proacuteprio talento colhendo e natildeo acrescentando imediatamente ao

discurso tudo de belo que se lhe apresente mas fazendo-o passar a teu proacuteprio

coraccedilatildeo como se fosse ao estocircmago para quem uma vez transfundido agraves

veias pareccedila nascido do teu proacuteprio talento e natildeo mendigado de outra parte

Inspiraraacute assim o vigor e a iacutendole de tua mente e de tua natureza para que

quem lecirc natildeo reconheccedila o emblema tirado de Ciacutecero mas sim um feto nascido

de teu ceacuterebro da mesma forma que dizem Palas saiu do ceacuterebro de Juacutepiter

refletindo a imagem viva de seu pai e teu discurso natildeo pareccedila a ningueacutem um

mosaico mas a imagem viva de teu peito ou um rio emanado da fonte do teu

coraccedilatildeo Mas seja tua primeira e principal preocupaccedilatildeo a de conhecer a

mateacuteria que te propotildees tratar Ela prover-se-aacute copiosidade oratoacuteria prover-te-aacute

afetos verdadeiros e genuiacutenos Assim enfim dar-se-aacute que teu discurso viva

respire aja comova e arrebate e reflita todo teu ser (Erasmo Diaacutelogo

Ciceroniano Traduccedilatildeo por Sartorelli 2015 p 16)

Veremos como a ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem se apresenta como um discurso que recebe

e imita expressotildees lugares comuns e metaacuteforas correntes em autores antigos natildeo se limitando

a Ciacutecero mas colocando em praacutetica esta imitaccedilatildeo ecleacutetica defendida por Erasmo

16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos

Conveacutem considerar as mais importantes ediccedilotildees realizadas pelos humanistas

diretamente relacionadas ao gecircnero declamaccedilatildeo Por outro lado dado o nuacutemero inabordaacutevel

de ediccedilotildees obras e tiacutetulos do periacuteodo a ponto de Murphy (1983 p 20-36) enumerar quase

dois mil nomes que estatildeo contidos dentro do epiacuteteto de humanista ou renascentista deve-se

considerar a dificuldade de catalogar a praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo

40

Ao selecionar portanto algumas declamaccedilotildees entre os humanistas elegemos aquelas

que (grupo 1) os estudiosos de Erasmo consideram que foram conhecidas por ele e portanto

o teriam influenciado de modo direto e inconteste ou aquelas que foram inequivocamente

influenciadas por ele (grupo 2) Aleacutem desse criteacuterio deve-se considerar evidentemente certo

prestiacutegio desses autores em relaccedilatildeo a outros menos conhecidos a ponto de serem mais

habitualmente levados em conta pela academia7

A declamaccedilatildeo apoacutes seu esquecimento quase completo durante o periacuteodo bizantino

(Kennedy 1980 p 166) e apoacutes uma tiacutemida praacutetica das controveacutersias por alguns eruditos do

seacuteculo XI entre os quais destaca-se Anselmo de Cantuaacuteria (Kennedy 1980 p 185) passou a

ser praticada especialmente pelos humanistas do norte da Itaacutelia muito em razatildeo da

redescoberta dos mencionados manuscritos de Secircneca Quintiliano e Ciacutecero A retomada da

praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista tem seu iniacutecio delimitado na Itaacutelia do seacuteculo

XIV e coincide segundo o estudo de Giazzi (2008 p 315-317) com a existecircncia de

manuscritos de declamaccedilotildees sob os moldes antigos realizados e encontrados em Milatildeo e

anexados ao exempla epistolarum de Visconti datados nos anos da virada do seacuteculo XIV para

o XV Segundo Boulet (2013 p 9)

Um grande nuacutemero destas declamaccedilotildees foi pronunciado em situaccedilatildeo de

aprendizagem em contexto escolar como indica o imponente trabalho

pioneiro realizado por Van der Poel (1987) sob a orientaccedilatildeo de Jean-Claude

Margolin Os textos destas declamaccedilotildees pedagoacutegicas foram perdidos ou satildeo

lacunares ou de um interesse mediacuteocre

Mas estes autores natildeo gozavam de vaacuterios escritos fundamentais para a teorizaccedilatildeo e

exemplificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo antiga por exemplo a redescoberta de um dos manuscritos

integrais da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo no mosteiro suiacuteccedilo de Saint Gall pelo humanista italiano

Poggio Braccioloni deu-se apenas em setembro de 1416 (Enos 1990 p 177 Goacutemez

Cervantes 2007 p 424) Este manuscrito ateacute entatildeo soacute era conhecido parcialmente por

intermeacutedio do texto chamado de mutilatus Jaacute as declamaccedilotildees mais antigas consideradas como

pertencentes ao humanismo satildeo as quatro declamaccedilotildees de Coluccio Salutati (1331-1406)

intituladas em latim ldquoDeclamaccedilatildeo de Lucreacuteciardquo ldquoDeclamaccedilatildeo de Priacuteamordquo ldquoQuestatildeo contra

os decemvirirdquo e ldquoSobre o reinordquo (Enos 1990 p 177) A redescoberta do diaacutelogo ldquoSobre o

7 A segunda ediccedilatildeo do cataacutelogo de Murphy e Green apresentou 1717 autores 3842 tiacutetulos de retoacuterica em 12325

impressotildees publicadas em 310 cidades por 3340 editores da Finlacircndia ao Meacutexico (Green e Murphy 2006 p

IX)

41

oradorrdquo por Landriani veio alguns anos depois em 1421 (Strayer 1989 p 24) Data do

mesmo periacuteodo ademais o acesso agraves ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca pelos humanistas uma vez

que alguns excertos teriam sido publicados em Naacutepoles em 1475 e o texto integral que

incluiu as ldquoSuasoacuteriasrdquo foi editado em Veneza em 1490 (Grafton Most e Settis 2010 p

872) O proacuteprio Erasmo foi o responsaacutevel por duas ediccedilotildees da obra de Secircneca datadas de

1515 e 1529 sendo que a primeira ediccedilatildeo eacute anterior ao ano de redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

(1516) (Grafton Most e Settis 2010 p 872) Desta forma o conhecimento de Erasmo acerca

da declamaccedilatildeo natildeo se restringia mais ao manual da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e ao ldquoSobre a

invenccedilatildeordquo como nos tempos de Salutati mas tambeacutem passaria a contar com a influecircncia dos

demais textos ciceronianos assim como outros escritos retoacutericos de Secircneca o Velho

Isoacutecrates Platatildeo entre outros que ou natildeo eram conhecidos pelos autores cristatildeos no iniacutecio do

seacuteculo XV ou natildeo eram largamente valorizados ou difundidos antes da entrada em cena da

imprensa que sem duacutevida potencializou a difusatildeo dos escritos dos autores antigos da Greacutecia

e de Roma (Murphy 2005 p 3)

A redescoberta das declamaccedilotildees e dos textos que teorizam sobre ela aleacutem das

traduccedilotildees de Erasmo de algumas delas escritas em grego especialmente as de Libacircnio e

Luciano certamente influenciaram a praacutetica desse gecircnero pelo holandecircs uma vez que a

declamaccedilatildeo preconizada na retoacuterica ciceroniana na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e no ldquoSobre a

invenccedilatildeordquo que eram consideradas durante os seacuteculos como os escritos retoacutericos por

antonomaacutesia (Kennedy 1980 p 195) Aleacutem dessas obras Knott (1988 p 8-9) percebe a

influecircncia no ldquoSobre a abundacircnciardquo (De copia) de parte do livro I e d o II livro da ldquoInstituiccedilatildeo

Oratoacuteriardquo de Quintiliano justamente as partes que trazem vaacuterias referecircncias teoacutericas sobre o

gecircnero aleacutem das proacuteprias declamaccedilotildees atribuiacutedas a ele talvez atraveacutes da leitura de Valla

Aleacutem da produccedilatildeo de diversos manuais em que constava a praacutetica da declamaccedilatildeo em

ambiente escolar com finalidade explicitamente pedagoacutegica Van der Poel (1987 p 984)

salienta a produccedilatildeo desse gecircnero exterior ao ambiente e ao processo educacional em forma

escrita e literaacuteria tal como praticada por vaacuterios autores entre os quais se destaca a atividade

do ldquopriacutencipe dos humanistasrdquo Em seu ldquoPlano de estudosrdquo (De ratione Studii) por exemplo

Erasmo citava algumas obras fundamentais para a formaccedilatildeo de um humanista na qual se nota

a presenccedila expliacutecita das declamaccedilotildees traduzidas por ele dos temas proacuteprios a tais exerciacutecios e

dos escritos que tratavam sobre a declamaccedilatildeo como os de Secircneca (Kennedy 1980 p 196)

42

Apoacutes ser introduzida no norte da Europa a declamaccedilatildeo foi produzida pelos autores

renascentistas exclusivamente na forma escrita (Murphy 2012 p 69) com entusiasmo natildeo

menor do que a recepccedilatildeo do puacuteblico conforme se denota pelo alcance editorial que

obtiveram pois algumas das mais relevantes obras literaacuterias do Renascimento foram escritas

no formato declamatoacuterio tais como o ldquoElogio da Loucurardquo (1511) de Erasmo e as

declamaccedilotildees de Thomas More A declamaccedilatildeo chamada ldquoliteraacuteriardquo entendida aquela que era

exclusivamente escrita e visava o deleite dos eruditos e natildeo somente a escolar-pedagoacutegica

estava por assim dizer ldquona modardquo entre os autores do seacuteculo XVI

17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas

Entre os autores do Renascimento Van der Poel (2007 p 128-129) e Tunberg (2006

p 9) destacam as seguintes obras algumas das quais anteriores outras contemporacircneas agraves de

Erasmo e outras por fim posteriores agrave Querela como exemplos de declamaccedilotildees

paradigmaacuteticas segundo os preceitos herdados da retoacuterica antiga Apresentamos uma siacutentese

dessas declamaccedilotildees ressaltando os elementos particulares que satildeo pertinentes para uma

comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo antiga consideradas no primeiro capiacutetulo e

a ldquoQueixa da Pazrdquo objeto principal do presente estudo Dentre estas se destacam a

declamaccedilatildeo de Valla (Constatini donatione) e a de More que foram certamente conhecidas

por Erasmo dada a admiraccedilatildeo de Erasmo pelo primeiro e sua amizade pessoal para com o

segundo

171 Lourenccedilo Valla

Em uma de suas epiacutestolas a Cornelis Gerard (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31)

Erasmo afirma que a ldquoElegacircncias da liacutengua latinardquo (Elegantiae linguae latinae) escrito por

Valla o influenciou significativamente Para Gianotti (2008 p 65) os autores humanistas

tomavam o italiano como guia ldquona escolha lexical e estiliacutesticardquo Nessa mesma epiacutestola apoacutes

enumerar Ciacutecero Quintiliano Saluacutestio e Terecircncio como autoridades no tocante agrave prosa

Erasmo tambeacutem admitia a superioridade de Valla

Com efeito quanto agraves observaccedilotildees das elegacircncias em ningueacutem eu tenho tanta

confianccedila quanto em Lourenccedilo Valla pois natildeo temos nenhum outro a atribuir

tanta pertinaacutecia de engenho e tenacidade de memoacuteria Natildeo ousarei pois em

qualquer mateacuteria contrariar o que nas letras aconselhou

43

Conforme explicam Bentley (1977 p 11) e Weiler (1997 p 9) a influecircncia de Valla

sobre Erasmo tem um papel especial em sua formaccedilatildeo intelectual pois jaacute em 1489 o

holandecircs o louvava por restaurar a eloquecircncia em forma escrita e em latim Como veremos o

italiano tambeacutem foi um autor profiacutecuo de declamaccedilotildees que foram conhecidas e emuladas por

Erasmo Bentley (1977 p 28) inclusive afirma a insistecircncia de Valla na submissatildeo da

filosofia agrave retoacuterica e agrave filologia sendo que o holandecircs o seguiu pelo mesmo caminho ldquocom o

objetivo de renovar a moral e a religiosidade da cristandaderdquo (Bentley 1977 p 28) de um

modo muito semelhante e que seraacute explorado ao longo da presente dissertaccedilatildeo nas

declamaccedilotildees erasmianas

Entre as declamaccedilotildees de Valla conta-se a ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo (De falso credita

et ementita Constantini donatione) escrita em 1440 e publicada em 1517 Nesta declamaccedilatildeo

muito provavelmente conhecida por Erasmo o autor com argumentaccedilatildeo histoacuterica e

filoloacutegica demonstrou a falsidade da Doaccedilatildeo de Constantino um documento apoacutecrifo com o

qual a igreja justifica seu poder temporal Constantino e o Papa satildeo as personagens histoacutericas

que atuam no discurso ficcional tal como ocorria em diversas declamaccedilotildees latinas

De fato a palavra declamaccedilatildeo natildeo teria sido inserida por Valla no tiacutetulo mas pelo

editor Uacuterico Von Huten de forma que o autor parece natildeo ter tido a intenccedilatildeo clara de escrever

uma ldquodeclamaccedilatildeordquo (Ginzburg 2004 p xv) pois se pode dizer que a ldquoDoaccedilatildeo de

Constantinordquo se assemelha ao gecircnero diaacutelogo com tema histoacuterico natildeo filosoacutefico Esta

semelhanccedila remonta ao jaacute citado texto de Quintiliano jaacute considerado no capiacutetulo primeiro

que dirimia uma sinoniacutemia corrente entre os a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo devido ao caraacuteter

fictiacutecio e a presenccedila comum de personificaccedilotildees Aleacutem disso segundo o argumento de

Bowersock (2008 p ix) a declamaccedilatildeo de Valla natildeo poderia ser considerada uma declamaccedilatildeo

por natildeo apresentar os dois lados da questatildeo Como vimos no entanto nem todas as

declamaccedilotildees antigas tinham esse formato Ao comparar-se a ldquoQueixa da Pazrdquo com a ldquoDoaccedilatildeo

de Constantinordquo verificou-se que a primeira ao contraacuterio da segunda apresenta uma

descriccedilatildeo narrativa no exordium e apresenta em algumas partes caracteres semelhantes da

sermocinatio conforme consideramos no capiacutetulo primeiro a fim de desenvolver digressotildees e

amplificaccedilotildees de caraacuteter filosoacutefico ou teoloacutegico Ademais segundo Colemann e Perry (2001

p 3-4) tal como a Querela a ldquodeclamaccedilatildeordquo de Valla tem uma finalidade poliacutetica ao influir na

disputa territorial entre o papa Eugecircnio IV e o rei Afonso de Aragatildeo Siciacutelia e Naacutepoles para o

44

qual Valla trabalhava como conselheiro (Bowersock 2008 p vii) Deve-se salientar por fim

que Erasmo concede a voz agrave Paz ao passo o proacuteprio Valla toma a voz do discurso

172 Thomas More

A declamaccedilatildeo ldquoTiranicidardquo (Declamatione qua Luciani Tyrannicidae respondetur) foi

escrita por Thomas More (1478-1535) provavelmente em 1506 em emulaccedilatildeo a uma

declamaccedilatildeo erasmiana que tambeacutem refutava os argumentos do ldquoTiranicidardquo de Luciano

(Rummel 1985 p 50) Como eacute caracteriacutestico do humanismo a obra entra pois em diaacutelogo

extemporacircneo e fictiacutecio com uma ceacutelebre declamaccedilatildeo antiga (Baumann 1985 p 113) Na

obra antiga Luciano defende a causa do tiranicida em uma controveacutersia com argumentos do

gecircnero forense ou judicial (Thompson 1974 xviii) More que tambeacutem traduziu para o latim

a declamaccedilatildeo de Luciano (Logan e Adams 2003 xv) tal como o proacuteprio Erasmo (Chomarat

1981) natildeo quis apenas respondecirc-la como tambeacutem Erasmo o fizera mas expocircs suas proacuteprias

ideias de modo que os dois textos se relacionam formalmente e divergem em alguns pontos

de vista (Fox 1983 p 44) O autor inglecircs defende o argumento de que o tirano seraacute aceitaacutevel

se permitir que a cidade recupere a paz e a ordem de Direito Assim enquanto Luciano

satirizava com ironia a causa do tiranicida More a vitupera seguindo a praacutetica da declamaccedilatildeo

que selecionava apenas um lado da contenda

Erasmo relata a amizade com More e a praacutetica da declamaccedilatildeo realizada juntamente

com o autor inglecircs

Proponho-me agora a falar sobre o assunto daqueles estudos que foram o

principal meio de unir-nos a More e a mim Na sua primeira juventude seus

principais exerciacutecios literaacuterios foram em verso Depois disso More lutou para

tornar a sua prosa mais suave praticando todo tipo de escrita para formar um

estilo o caraacuteter do qual seraacute desnecessaacuterio lembrar especialmente a ti que

estaacute sempre com os seus livros nas matildeos Tinha o maior prazer em participar

de declamaccedilotildees escolhendo sempre algum tema polecircmico por envolver um

exerciacutecio mental importante Enquanto ainda jovem tentou redigir um

diaacutelogo em que desenvolvia a defesa da comunidade de Platatildeo ateacute mesmo na

questatildeo do tratamento das esposas Escreveu uma resposta ao Tiranicida de

Luciano em cuja argumentaccedilatildeo quis ter-me como rival para testar sua

proficiecircncia nesse tipo de escrita More publicou sua Utopia para mostrar o

que provoca o mal na vida das comunidades tendo em vista particularmente a

constituiccedilatildeo inglesa que conhece e entende muito bem Escreveu o Livro II

aos poucos e depois quando viu que um outro era necessaacuterio acrescentou o

Livro I de improviso daiacute uma certa desigualdade que se nota no estilo

(Clarissimo Equiti Ulricho Hutteno Epistolae Allen [ed] Vol 4 1922

Epiacutestola 999 traduccedilatildeo de Ana de Melo Franco)

45

A partir deste texto erasmiano distingue-se a praacutetica da declamaccedilatildeo renascentista

como um exerciacutecio escrito em prosa e um meio de obtenccedilatildeo de um estilo proacuteprio Verifica-se

ademais neste trecho conforme consideramos anteriormente um exemplo tiacutepico das relaccedilotildees

entre os humanistas e o compartilhamento de prosas em gecircneros recebidos da Antiguidade

entre os quais a declamaccedilatildeo com seu espaccedilo significativo praticado simultaneamente como

exerciacutecio e divertimento

Em epiacutestola a Erasmo (26 de maio de 1520) cerca de trecircs anos apoacutes a publicaccedilatildeo da

ldquoQueixa da Pazrdquo More se reporta agraves declamaccedilotildees de Luiacutes de Vives (Thomas More Corr

9335) Destaca o modo como o discurso que versava sobre temas de primeira ordem

utilizava-se do apelo agrave emoccedilatildeo a fim de que o leitor pudesse como que ldquoverrdquo e ldquosentirrdquo

aspectos do que era tratado A declamaccedilatildeo entatildeo tambeacutem eacute entendida como um modo de

expressar e transmitir sentimento em relaccedilatildeo a determinada causa situando-se como um

discurso retoacuterico que sem desprezar as dimensotildees do loacutegos e do ecircthos se dirige

especialmente ao paacutethos ao tocar as emoccedilotildees do leitor Tal troca epistolar entre More e

Erasmo denota a clareza com a qual esses autores entendiam o papeis retoacutericos do ethos e do

pathos e sua respectiva relevacircncia na declamaccedilatildeo

18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas

Van der Poel (2007 p 128-129) depois de apresentar duas formas nas quais as

declamaccedilotildees escritas eram apresentadas durante o Renascimento (ou seja as declamaccedilotildees

destinadas agrave circulaccedilatildeo em manuscrito para um ciacuterculo restrito de amigos mas ainda assim

escritas como os ldquoTiranicidasrdquo de More e Erasmo e as demais destinadas agrave publicaccedilatildeo

editorial) afirma que natildeo haacute uma distinccedilatildeo essencial entre elas mas que se pode observar

que no primeiro tipo predominam os temas histoacutericos enquanto que no segundo daacute-se uma

renovaccedilatildeo da antiga praacutetica oratoacuteria com escritos de gecircnero deliberativo

Um primeiro grupo constitui-se de declamaccedilotildees sobre temas histoacutericos da

Antiguidade ou sobre personagens ceacutelebres que acima de tudo eram vistas

como meros exerciacutecios retoacutericos mas pela escolha do tema e do tratamento

devem ser interpretadas como discussotildees dissimuladas sobre temas

contemporacircneos especialmente da natureza poliacutetica Entatildeo como alguns

discursos cerimoniais certas declamaccedilotildees podem ser categorizadas como

parcialmente ldquoclaacutessicasrdquo e parcialmente ldquomodernasrdquo Exemplos satildeo as

declamaccedilotildees sobre o tiranicida de Tomas More (1478-1535) escrita em

resposta agrave declamaccedilatildeo de Luciano em defesa do tiranicida (Tyrannicida) ou as

46

cinco declamaccedilotildees de Vives as Declamationes Syllanae (1520) na qual os

poliacuteticos romanos argumentam a favor e contra a retenccedilatildeo do poder pelo

ditador de Roma enquanto Sula apresenta seu discurso de abdicaccedilatildeo

Finalmente haacute um grupo de oraccedilotildees ou declamaccedilotildees entre a categoria de

discursos natildeo escritos para a performance mas para a publicaccedilatildeo exclusiva em

forma impressa que a meu ver pode ser considerada completamente como

ldquomodernardquo [hellip] Seus autores claramente tem a ambiccedilatildeo da praacutetica da

verdadeira retoacuterica de Ciacutecero e Quintiliano a quem atribuem um papel

importante para o orador na praacutetica do discurso puacuteblico na esfera civil [hellip]

Quando algum humanista toma a pena para escrever um discurso anunciado

explicitamente como retoacuterico (oraccedilatildeo declamaccedilatildeo elogio ou outro tipo de

denominaccedilatildeo retoacuterica) eacute provaacutevel que ele esteja apresentando sua opiniatildeo

sobre um tema que ele considera relevante para a sociedade como um todo e

apresentando seu ponto de vista com especial assentimento e convicccedilatildeo (Van

der Poel 2007 p 128-129)

Segundo o argumento de Connolly (2009 p 139) as fontes das antigas declamaccedilotildees

inclusive das gregas eram segundo o jaacute citado elenco de temas proposto por Aristoacuteteles as

causas poliacuteticas as quais discutiam a paz e a guerra a guerra civil os impostos as relaccedilotildees

internacionais e outros temas poliacuteticos todos do gecircnero deliberativo e que natildeo deixaram de

estar em voga no Renascimento Quando um reacutetor ou um declamador argumentava a favor da

paz discutiam-se alguns princiacutepios que poderiam confrontar os tiranos de todos os tempos

como a liberdade a virtude da lei e a paz (Ibid p 140) Estas faziam com que a declamaccedilatildeo

natildeo fosse antiga ou moderna mas em um sentido ainda mais amplo e menos restritivo quase

atemporal na medida em que eram valores que perpassavam vaacuterias eacutepocas histoacutericas mas

tambeacutem se mantinha em comum uma espeacutecie de tradiccedilatildeo dada a invenccedilatildeo e a imitaccedilatildeo

ambas baseadas em padrotildees estabelecidos por autores antigos

De fato tanto o locutor de um exerciacutecio declamatoacuterio nos tempos do Impeacuterio quanto

um humanista que escrevia sua ldquodeclamaccedilatildeordquo em que tocava pontos de interesse para a

sociedade tinham em vista assuntos que chamariam a atenccedilatildeo dos seus ouvintes e que se

mostrariam uacuteteis (utilitas) conforme os princiacutepios basilares do deliberativo

Nesse sentido verifica-se que agrave semelhanccedila das declamaccedilotildees romanas que inseridas

nas tiacutepicas atividades dos reacutetores foram entendidas como ofensivas ao despotismo imperial

as declamaccedilotildees renascentistas abordavam temas uacuteteis e muitas vezes polecircmicos diante das

autoridades Jaacute citamos acima a afirmaccedilatildeo de Mack (2004 p 261) segundo a qual ldquoo

renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo

adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo Se a recuperaccedilatildeo eacute evidente com a retomada da antiga declamaccedilatildeo a

adiccedilatildeo (additon) e a renovaccedilatildeo (change) datildeo-se justamente na atualizaccedilatildeo deste gecircnero em

47

relaccedilatildeo ao contexto histoacuterico social no qual estaacute inserido Esta adaptaccedilatildeo ao contexto era

exigida tanto na chamada declamaccedilatildeo que o autor denomina como ldquoclaacutessicardquo como na dita

ldquomodernardquo uma vez que a audiecircncia ou os leitores precisam ser convencidos segundo as

paixotildees que lhes satildeo sensiacuteveis conforme os argumentos que lhes satildeo verossiacutemeis e em

concordacircncia com sua compreensatildeo da moral e dos costumes A mudanccedila se alinha agrave eacutepoca

mas ela proacutepria jaacute era prevista pelos claacutessicos de modo que eacute uma das caracteriacutesticas

imprescindiacuteveis para um discurso efetivamente persuasivo

19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas

Consideramos anteriormente que a imitaccedilatildeo do gecircnero da declamaccedilatildeo nos primoacuterdios

do seacuteculo XIV entre os humanistas do norte da Itaacutelia das declamaccedilotildees de autores antigos que

escreveram em grego e latim e a redescoberta do texto completo da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria de

Quintiliano foram passos determinantes para a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo feita por Erasmo

Chomarat (1981 p 934) observa que os princiacutepios teoacutericos claacutessicos da declamaccedilatildeo

chegaram ao Renascimento por meio dos escritos desse autor romano Sobretudo com

Lourenccedilo Valla o orator era denominado como ldquoaquele que fala diante de uma tribuna ou

assembleiardquo e o rhetor ldquoeacute o professor de retoacutericardquo Jaacute o declamador eacute

aquele que estudando com o reacutetor executa uma causa fictiacutecia diante dos

alunos reunidos a fim de poder em seguida exercitar-se nas causas reais O

reacutetor que mesmo fora da escola pratica esse gecircnero seja para exercitar outras

pessoas seja para exercitar-se a si mesmo eacute denominado declamador (Valla

Elegacircncias da liacutengua latina IV 81)

Um contemporacircneo de Erasmo Henricus Cornelius Agrippa (1486-1535) que

tambeacutem produziu diversas declamaccedilotildees com temas semelhantes agraves erasmianas assim

conceitua a declamaccedilatildeo

por conseguinte a declamaccedilatildeo natildeo julga natildeo dogmatiza mas () fala por

vezes como brincadeira por vezes seriamente agraves vezes com falsidade agraves

vezes com rigor ela fala agraves vezes segundo meu proacuteprio pensamento agraves vezes

segundo o pensamento de outrem ela propotildee verdades falsidades afirmaccedilotildees

duacutebias () ela aduz a muitos argumentos sem valor (Cornelius Agrippa

Apologia adversus calumnias propter declamationem de Vanitate scientiarum

1533) (apud Chomarat 1981 p 941)

Como vimos tanto na definiccedilatildeo de Valla como na de Agripa permanecem duas

caracteriacutesticas principais da declamaccedilatildeo tal como fora entendida e praticada pelos autores

antigos especialmente Quintiliano ou seja trata-se de um exerciacutecio de elocutio e de um

48

discurso fictiacutecio Van der Poel (1997 p 128-129) comenta que a definiccedilatildeo de Agripa e dos

humanistas em geral inclusive de Erasmo era a de um discurso de uma personagem fictiacutecia

Mas devido ao fato de que a declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista natildeo tem mais a finalidade

de ser meramente um exerciacutecio escolar e eacute praticada de forma escrita Surtz (1957 p 9)

propotildee que esta seja ldquouma composiccedilatildeo escrita para o divertimento e para o prazer a fim de

exercitar o talento nativo do autor e desenvolver seu poder literaacuteriordquo

110 Conclusotildees do capiacutetulo

O presente capiacutetulo teve a finalidade de expor alguns elementos sobre a recepccedilatildeo do

gecircnero da declamaccedilatildeo entre os humanistas As declamaccedilotildees antigas se classificam de dois

modos eram privadas ou puacuteblicas (Kennedy 1980 p 103) isto eacute natildeo podem ser reduzidas

somente a exerciacutecios escolares executados para a educaccedilatildeo dos jovens oradores mas tinham

tambeacutem um caraacuteter performaacutetico uma vez que costumavam ser praticadas por adultos com a

finalidade de produzir deleite em reuniotildees sociais ou como tirociacutenios privados da eloquecircncia

(Schwartz 2004 p 68-69 Edward 1928 p xiv Fairweather 1981 p 544) Contudo

Winterbottom (1980 p 13) baseado em um texto de Quintiliano que trata do panegiacuterico e do

demosntrativo no contexto das declamaccedilotildees escolares (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 11)

afirma que algumas das declamaccedilotildees puacuteblicas eram por assim dizer do epidiacutetico uma vez

que visavam muitas vezes a estabelecer um elogio ou um vitupeacuterio ao contraacuterio das demais

declamaccedilotildees ldquodidaacuteticasrdquo Baseado em Quintiliano Winterbottom (1980 p 26-27) reconhece

o gecircnero judiciaacuterio como a principal finalidade da declamaccedilatildeo mas distingue na

Controuersiae 276-9 de Secircneca o Reacutetor elementos caracteriacutesticos do gecircnero epidiacutetico

demonstrando que o elogio e o vitupeacuterio tambeacutem eram recursos retoacutericos correntes nas

declamaccedilotildees de gecircnero judicial pois muitas vezes era necessaacuterio qualificar a viacutetima ou uma

testemunha atraveacutes do elogio e desqualificar o reacuteu ou uma testemunha atraveacutes do vitupeacuterio

Como vimos o proacuteprio Ciacutecero afirmou declamar entre os seus amigos e familiares

justamente para exercitar-se para os momentos mais importantes de sua accedilatildeo poliacutetica Na

Roma Imperial difundiu-se na alta sociedade o costume de fazecirc-lo de modo que a

historiografia romana registrou na vida de alguns imperadores ao longo do periacuteodo

contemplado o costume de executar declamaccedilotildees (Schwartz 2004 p 68-69) Embora se

possa discutir acerca da real historicidade desses relatos pode-se dizer que a atribuiccedilatildeo da

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praacutetica declamatoacuteria pelos textos historiograacuteficos a respeito da vida dos imperadores denota

que essa praacutetica gozava de certo prestiacutegio ao menos no periacuteodo imperial muito embora

alguns textos critiquem os declamadores e suas performances O proacuteprio fato de dedicar

espaccedilo para criacutetica escrita numa eacutepoca em que a produccedilatildeo de texto natildeo era tatildeo simples atesta

o alcance que a declamaccedilatildeo teve na sociedade romana

Verificou-se que a recepccedilatildeo e a praacutetica do gecircnero no Renascimento teve seu iniacutecio no

norte da Itaacutelia e coincidiram ndash ou foram causadas ndash com a redescoberta de manuscritos suas

traduccedilotildees e reediccedilotildees impressas de algumas das obras retoacutericas mais importantes e que

tratavam sobre a declamaccedilatildeo de autores como Ciacutecero Quintiliano e Secircneca Vaacuterios

humanistas como Salutati e Valla (situados no seacuteculo XV) e Erasmo de Rotterdam Thomas

More Corneacutelio Agrippa entre outros cuja atividade puacuteblica data da primeira metade do

seacuteculo XVI produziram declamaccedilotildees escritas como exerciacutecio o que eacute caracteriacutestico desse

tempo e o que as diferencia da Antiguidade vimos ainda que as definiccedilotildees das caracteriacutesticas

essenciais da declamaccedilatildeo propostas por Valla e Agripa satildeo concordes com as antigas no

sentido de afirmaacute-la como exerciacutecio retoacuterico escrito de um discurso fictiacutecio sobre temas

suasoacuterios ou epidiacuteticos com ao menos duas finalidades expliacutecitas divertir atraveacutes de formas

e referecircncias que provocam o riso e instruir atraveacutes da persuasatildeo e da defesa de valores

eacuteticos abandonados ou marginalizados pela sociedade

50

51

CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ

O presente capiacutetulo tem como finalidade apresentar agumas caracteriacutesticas gerais da

declamaccedilatildeo erasmiana tais como suas definiccedilotildees temas classificaccedilotildees e o contato de Erasmo

com outras declamaccedilotildees de seu tempo Aleacutem disso procura salientar os argumentos a favor e

contra a classificaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo enquanto pertencente a esse gecircnero em uma

comparaccedilatildeo com algumas das declamaccedilotildees do final do periacuteodo republicano e do iniacutecio do

impeacuterio

21 Definiccedilotildees erasmianas

A definiccedilatildeo de declamaccedilatildeo proposta por Erasmo abrange a proposiccedilatildeo principal das

definiccedilotildees de Valla e Agripa ou seja do exerciacutecio-fictiacutecio O holandecircs distingue entre

declamador reacutetor e orador na sua paraacutefrase ao Elegantias de Valla ldquodeclamador eacute aquele

que a soacutes ou na escola de retoacuterica defende uma causa fictiacutecia a fim de melhor executar uma

causa verdadeira Declamar eacute exercitar-se em um discurso sobre um tema fictiacuteciordquo (Opera

Omnia Erasmi I-4 ll 313923) Erasmo parecia estar bem ciente dos limites e das

caracteriacutesticas essenciais do gecircnero como se depreende por exemplo de uma citaccedilatildeo extraiacuteda

de seus Adaacutegios a qual natildeo deixa de ser tambeacutem uma autocriacutetica feita a partir da

classificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo presente em um escrito de Jerocircnimo (Erasmo Adagia 2500 III

V 100 Nec aures habeo nec tango) Tal comentaacuterio aparece na explicaccedilatildeo do adaacutegio 100

cujo significado pode ser entendido como ldquonatildeo tenho ouvidos nem tocordquo e se insere no

contexto de algueacutem que pegou algo de outro e diante do protesto deste dissimula a posse Ao

explicar o proveacuterbio o holandecircs cita uma epiacutestola que Jerocircnimo qualifica como declamaccedilatildeo

(Epiacutestola 117 12) cujo tema seria sobre a reconciliaccedilatildeo de uma matildee com sua filha

Justamente ao denominar como tal esse escrito e talvez percebendo que a causa natildeo eacute

deliberativa nem judicial nem mesmo um elogio ou sequer um caso fictiacutecio mas tendo

permanecido o caraacuteter de exerciacutecio Erasmo manteacutem a denominaccedilatildeo de declamaccedilatildeo talvez

por respeito agrave autoridade do Padre da Igreja que tambeacutem era reacutetor muito embora esta

classificaccedilatildeo possa ser facilmente contestada Erasmo portanto estaria consciente de que a

declamaccedilatildeo tem seus limites proacuteprios e que Jerocircnimo poderia ser criticado ao extrapolaacute-los

ao denominar assim neste texto em particular

52

Com base na definiccedilatildeo erasmiana Akkerman (1995 p 53-54) procura diferenciar a

declamaccedilatildeo da oraccedilatildeo ldquoEm um sentido mais restrito oratio eacute um discurso que eacute na verdade

realizado em resposta a um evento social ou cerimonial e declamaccedilatildeo um exerciacutecio fictiacutecio

que se executa na escola ou a soacutesrdquo Erasmo tambeacutem entendia como declamaccedilatildeo ldquoum tema

imaginaacuterio que se trata a favor e contra a fim de exercitar a eloquecircnciardquo Essa definiccedilatildeo

segundo Chomarat (1981 p 937) seria ldquoa que mais distingue a declamaccedilatildeo da

bdquodeterminaccedilatildeo‟ dos teoacutelogos escolaacutesticosrdquo conforme consta em vaacuterias passagens do ldquoSobre a

liacutenguardquo (De liacutengua) o primeiro equiacutevoco estiliacutestico mencionado por ele seria o fato de atribuir

palavras ou expressotildees que inflam a importacircncia das coisas de modo que o tom do discurso

solene inclusive na declamaccedilatildeo natildeo condiz com o assunto tratado Assim este torna-se

tedioso falso e inclusive ridiacuteculo Tal modo de proceder o holandecircs o entende como uma

ldquotagarelice declamatoacuteriardquo que corrompe a verdadeira finalidade da eloquecircncia Embora

afirmasse que para julgar as declamaccedilotildees ldquonatildeo se deve considerar a verdade objetiva das

mateacuterias mas o talento natural e o poder persuasivo do escritorrdquo (Apologia Adversus

Monachos Quosdam Hispanos Opera IX 1089) estava ciente do poder persuasivo deste

gecircnero e dos incocircmodos que seu uso para fins poliacuteticos poderia gerar Por isso Erasmo

utilizou-se dele ao tratar sobre assuntos poliacuteticos nem um pouco unacircnimes como eacute o caso da

querela da paz e da guerra

Por fim haacute referecircncias agrave declamaccedilatildeo tambeacutem no Diaacutelogo Ciceroniano Nosoacutepono o

ciceroniano inveterado que defendia a imitaccedilatildeo restrita dos escritos de Marco Tuacutelio afirmava

praticar com alegria (feliciter) a declamaccedilatildeo (Erasmo Ciceroniano 644[21]) mas recusava a

sugestatildeo de Buleacuteforo de receber as contribuiccedilotildees de Quintiliano a esse gecircnero (Erasmo

Ciceroniano 657[35]) Deste trecho em contraste com o que defendiam os chamados

ciceronianos se percebe que a declamaccedilatildeo erasmiana natildeo se restringe agrave imitaccedilatildeo de Ciacutecero

mas era um gecircnero que se fundamentava essencialmente na recepccedilatildeo de outros autores que

praticaram ou teorizaram acerca deste gecircnero com maior ecircnfase do que ele tais como os

declamadores latinos e gregos do periacuteodo imperial Secircneca Quintiliano Plutarco Luciano

Libacircnio entre outros Erasmo aliaacutes sem distinguir a autenticidade da atribuiccedilatildeo de autoria

das ldquoDeclamaccedilotildees Maioresrdquo e ldquoMenoresrdquo a Quintiliano elogiava no ldquoSobre a abundacircnciardquo

(De copia 204-205 [246-247]) ldquoas descriccedilotildees das coisasrdquo apontando este elemento localizado

geralmente logo apoacutes o proecircmio da declamaccedilatildeo como um artifiacutecio para a captaccedilatildeo da

benevolecircncia e da atenccedilatildeo do leitor Por outro lado no Cap 12 [504-507] analisa o uso que

53

Ciacutecero fazia do termo declamare em passagem que evoca o livro II da ldquoRetoacutericardquo aristoteacutelica

ao relacionaacute-lo com a caracterizaccedilatildeo adequada ou apropriada de cada personagem de acordo

com a sua idade Entre os vaacuterios elementos a serem exercitados com a praacutetica declamatoacuteria

Erasmo apresenta em seu ldquoPlano de Estudosrdquo o ecircthos representado nas prosopopeias como um

dos pontos fundamentais as descriccedilotildees dos lugares do tempo e das coisas assim como a

dequaccedilatildeo das personificaccedilotildees agrave idade (jovens ou idosos) ou agrave profissatildeo (prostitutas soldados)

entre outros (Opera Omnia I-II 143[1-9] 1971 p 143)

22 Temas

Erasmo eacute muito expliacutecito ao tratar da declamaccedilatildeo e dos exerciacutecios (note-se o uso de

progymnasmata) em seu De ratione Para ele haacute necessidade de tratar de temas atuais uacuteteis

para a sociedade (respublica) que natildeo tenham somente a simples finalidade de exerciacutecio

retoacuterico ou de rememoraccedilatildeo de dados mitoloacutegicos e histoacutericos nem mesmo meras

elucubraccedilotildees inuacuteteis da dialeacutetica atribuiacuteda pelos humanistas aos escolaacutesticos Neste sentido a

declamaccedilatildeo erasmiana eacute praacutetica visa influenciar o leitor educaacute-lo natildeo somente no sentido de

aplicar na vida cotidiana os ditames da retoacuterica antiga mas tambeacutem de instruiacute-lo em valores

como a justiccedila a paz a coerecircncia dos costumes e o combate aos haacutebitos considerados

ridiacuteculos e que se fundamentavam numa tradiccedilatildeo cristatilde teologicamente mal entendida Se por

um lado algumas partes do discurso provocam reflexotildees seacuterias outras partes poreacutem apesar

da gravidade do assunto (por exemplo quando se fala de paz e guerra) deleitam o leitor sem

deixar de ser uacutetil por ser pertencente ao gecircnero deliberativo

Desse modo era necessaacuterio que este jogo [elocutoacuterio] fosse apresentado de

modo elegante para que o jovem se exercitasse nas escolas atraveacutes das

declamaccedilotildees muito embora Quintiliano tivesse com razatildeo preceituado que a

simulaccedilatildeo da declamaccedilatildeo acontecesse de uma forma mais proacutexima possiacutevel

com as verdadeiras accedilotildees pois os temas a se declamar costumavam ser

escolhidos entre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeis Com

efeito aqueles exerciacutecios satildeo importantes para os jovens porque tem o

objetivo de instrui-los sobretudo quando o argumento eacute tirado da Histoacuteria e eacute

adaptado agraves palavras e agraves sentenccedilas daqueles tempos contudo seraacute ainda mais

instrutivo atuar sobre as causas verdadeiras que tratam de questotildees envoltas

em circunstacircncias do tempo presente como se algueacutem as desenvolvesse para

que se aperfeiccediloe a repuacuteblica (Erasmo De ratione Studii Desiderii Erasmi

Opera Omnia I-II 1971 p 695[28-33] ndash p 696[1-2])

Quando Erasmo menciona que os ldquotemas a se declamar costumavam ser escolhidos

dentre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeisrdquo podemos entender que o autor

54

visava um discurso que natildeo fosse somente uma espeacutecie de reproduccedilatildeo saudosa dos antigos

gecircneros discursivos gregos e romanos mas uma discussatildeo incisiva sobre os costumes das

pessoas de seu tempo Quando pertencente ao deliberativo abordaria temas que seriam

pertinentes para a sociedade como aliaacutes o era a polecircmica a respeito dos benefiacutecios da paz e

dos malefiacutecios da guerra inclusive sob o aspecto individual A Paz apresenta argumentos

praacuteticos contra a guerra como as dificuldades para o comeacutercio os gastos com mercenaacuterios e

armamentos e inclusive a inseguranccedila provocada pelo acuacutemulo destes em relaccedilatildeo ao

patrimocircnio dos cidadatildeos e possiacuteveis abusos contra a honra das mulheres

Neste sentido se as declamaccedilotildees erasmianas tratavam dos temas mais diversos tais

como a guerra a paz a infacircncia a loucura o matrimocircnio a vida monaacutestica e a medicina

entre outros Nelas era corrente o elogio e o vitupeacuterio seja nos escritos em que predominava

o Encomium seja nos deliberativos abordavam-se posiccedilotildees consideradas absolutas ou

irrefutaacuteveis por parte de teoacutelogos e filoacutesofos No lugar de privilegiar a loacutegica e o exaurimento

dos argumentos como eacute proacuteprio da dialeacutetica considerava esse temas poreacutem de modo a

privilegiar o que era uacutetil ao ser humano e afrontava os argumentos contraacuterios aos seus ideais

atraveacutes da retoacuterica Erasmo natildeo negava a verdade mas valorizava o que favorecia a

humanidade ulizando-se da retoacuterica para uma finalidade que considerava justa Erasmo estava

ciente de que ldquonatildeo existe nada tatildeo bom por natureza que natildeo possa ser distorcido por um

declamador astutordquo (Liber utilissimus de Conscribendis Epistolis 1670 p 267) mas estava

certo tambeacutem de que o declamador competente deveria primiar pela justiccedila e pela utilidade

mais do que pela mera busca da verdade abstrata e muitas vezes inuacutetil para o bem comum

muito embora fosse conveniente para os propugnadores da guerra

O caso concreto das discussotildees sobre a guerra justa ndash tatildeo defendida e inclusive

promovida por teoacutelogos alinhados aos interesses temporais de conquistas feudais ou mesmo

das guerras contra o islatilde ndash era um tema polecircmico uma vez que nem sempre a paz era do

convinha aos priacutencipes inclusive neste contubardo iniacutecio do seacuteculo XVI Em outras palavras

segundo esse trecho do texto supracitado o declamador astuto tem o poder de reunir a favor

do seu argumento uma apresentaccedilatildeo da realidade afim agrave sua causa Os argumentos eram

alinhavados em vista da finalidade prevista e poderiam distorcer ldquoverdadesrdquo incontestes

Trata-se natildeo somente da possibilidade de selecionar e dispor de argumentos mas de um modo

de apresentar que rompe ou desconstroacutei paradigmas a fim de construir outros talvez

55

esquecidos ou postos de lado como o eacute no caso em questatildeo a causa da paz e oposiccedilatildeo agrave

doutrina da guerra justa

Erasmo advoga pela paz e o faz como cristatildeo mas natildeo se apresenta ao menos no texto

da ldquoQueixa da Pazrdquo como um filoacutesofo ou um teoacutelogo compromissado com o que chama de

verdade a ponto de apresentar os dois lados da questatildeo ou seja os argumentos a favor e

contra a paz e a guerra mas defendia aquela sem considerar as objeccedilotildees contra o irenismo

dispondo sua razotildees com a finalidade de fazer bem ao auditoacuterio no sentido de instruiacute-lo com

valores eacuteticos como eacute o caso daqueles que fundamentam a opccedilotildees pela paz Neste sentido

Erasmo natildeo seria um sofista que alinha argumentos contra a guerra mas um ceacutetico em relaccedilatildeo

agrave sua eficaacutecia na resoluccedilatildeo dos problemas Acreditava que a concoacuterdia era mais adequada e

duradoura para a resoluccedilatildeo de qualquer espeacutecie de conflito em contraste com a guerra uma

espeacutecie de multiplicadora dos males

Conveacutem entatildeo demonstrar as incoerecircncias dos propugnadores da guerra apontando

os malefiacutecios desconsiderados pelos que defendiam o princiacutepio da guerra justa conforme

estudaremos ao caracterizar a Paz como saacutebia e teoacuteloga no uacuteltimo capiacutetulo da presente

dissertaccedilatildeo Essa afirmativa natildeo nega poreacutem uma espeacutecie de outra finalidade pedagoacutegica da

declamaccedilatildeo erasmiana natildeo menos relevante que a primeira como consta em uma passagem

da epiacutestola a Ulrico de Hutten Nesta ao comentar a declamaccedilatildeo sobre o ldquoTiranicidardquo de

Luciano e a ldquoUtopiardquo de More Erasmo estava ciente da finalidade de deleitar ou comprazer

proacutepria ao gecircnero conforme o texto supracitado no qual mencionada o percurso da formaccedilatildeo

retoacuterica do seu amigo More

Conveacutem notar que as declamaccedilotildees humanistas de modo anaacutelogo ao que se verificou

naquelas praticadas em ciacuterculos de adultos e amigos no periacuteodo republicano e imperial

tambeacutem visavam ao deleite situando-se entatildeo como uma autecircntica produccedilatildeo artiacutestica Desse

modo natildeo parece absurdo afirmar que a declamaccedilatildeo segundo a concepccedilatildeo erasmiana tem

um a dupla finalidade formativa (eacutetica situada nos valores e retoacuterica como aplicaccedilatildeo praacutetica

de princiacutepios em um discurso concreto) com toda a seriedade imposta pela gravidade dos

temas mas com o intuito de natildeo menosprezar a finalidade propriamente artiacutestica de deleitar

ou divertir o leitor Nesse ponto verifica-se a qualidade das declamaccedilotildees erasmianas que

sabem ser seacuterias jogando com temas graves sem deixar de formar os valores considerados

56

humanos justos e uacuteteis Desse modo o roterdamecircs parece evocar o ceacutelebre preceito

horaciano unir o uacutetil ao agradaacutevel (utile dulci)

23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes

Erasmo teve contato direto com as declamaccedilotildees e teorizaccedilotildees sobre este gecircnero

escritas em grego ou em latim por Isoacutecrates Plutarco Luciano e Libacircnio O proacuteprio holandecircs

atuou como editor e tradutor de algumas delas em um periacuteodo imediatamente anterior agrave

publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 entre as quais se destacam aquelas elencadas por

Rummel (1985 p 171-172) e cujos fac-siacutemiles estatildeo disponiacuteveis para consulta on-line no site

oficial8 da Biblioteca Nacional da Franccedila e que tambeacutem foram reeditadas na ediccedilatildeo criacutetica da

obra de Erasmo

231 Isoacutecrates

De fato Erasmo durante sua juventude traduziu alguns panegiacutericos de Isoacutecrates os

pertencentes ao gecircnero demonstrativo sobretudo no tocante agrave vituperaccedilatildeo e ao elogio a ponto

de publicar o Ad Nicolem juntamente com a ldquoInstituiccedilatildeo do Priacutencipe Cristatildeordquo em Basileia no

ano de 15169 Um princiacutepio pedagoacutegico atribuiacutedo por Erasmo a Isoacutecrates citado no ldquoSobre os

meninosrdquo (De pueris) e que parece se coadunar com as duas finalidades pedagoacutegicas da

declamaccedilatildeo (eacutetica e retoacuterica) eacute justamente o princiacutepio segundo o qual o recurso ao paacutethos

proacuteprio do exerciacutecio retoacuterico predispotildee o aluno a aprender quando seu afeto eacute movido ao

conteuacutedo proposto Trata-se do aprendizado atraveacutes do delectare ou seja do prazer que eacute

inerente agrave declamaccedilatildeo de alto niacutevel Os discursos escritos entatildeo neste gecircnero teriam o poder

de fazer com que o leitor amasse os valores eacuteticos e os recursos retoacutericos apresentados durante

o discurso A vituperaccedilatildeo tambeacutem age sobre a vontade do aluno uma vez que produz a

repulsa agraves atitudes e aos princiacutepios natildeo considerados eacuteticos pelo retoacuterico e a ridicularizaccedilatildeo

destes no interior do discurso visa entatildeo desconstruir a pretensa legitimidade de tais accedilotildees

que muitas vezes se atribuiacuteam agrave tradiccedilatildeo ou agrave justiccedila como eacute o caso da guerra

8 Disponiacutevel em httpwwwbnffrfraccxaccueilhtml Acesso 17 nov 2015

9 Aleacutem do panegiacuterico de Isoacutecrates e das declamaccedilotildees de Luciano e Libacircnio diretamente relacionadas com as

declamaccedilotildees erasmianas Erasmo tambeacutem editou outras obras no mesmo dececircnio que a Queixa da Paz tal como

a Institutiones grammaticae uma gramaacutetica grega escrita no seacuteculo XV escrita por Teodoro de Gaza e publicada

em dois volumes em Lovaina (1516 e 1518) e as traduccedilotildees de Rodolfo Agriacutecola de Isoacutecrates (Ad Demonicum)

publicada na mesma cidade em 1517

57

232 Plutarco

A influecircncia de Isoacutecrates eacute reduzida ao comparar-se com aquela de Plutarco Na

epiacutestola a Thomas Grey (Epiacutestola 64 Paris agosto de 1497 l 81 Allen 1974 p 137)

Erasmo jaacute mencionava a personagem Gryllard o que denota seu acesso agrave Moralia (985D-

992A) e a alguns discursos em grego entre os quais aqueles que satildeo explicitamente

classificados como declamaccedilotildees O mais significativo deles eacute sem duacutevida o ldquoSobre a

educaccedilatildeo dos meninosrdquo que influenciou diretamente o ldquoSobre os meninosrdquo do roterdamecircs

Natildeo sem razatildeo discursos de Plutarco foram vertidos por ele ao latim e editados em 1515

cerca de dois anos antes da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517)

233 Luciano

Segundo Boulet (2015 p 69) em recente estudo sobre as declamaccedilotildees renascentistas

Ao lado de Plutarco Luciano parece um autor particularmente interessante no

movimento que leva de Aristoacuteteles a Ciacutecero e de Erasmo a Boeacutecio Ambos os

autores satildeo constantemente mencionados direta ou indiretamente nas

declamaccedilotildees que nos interessam eles eram constantemente traduzidos e

comentados Eles satildeo exemplos para os autores que noacutes estudaremos

considerados como guias e modelos Certo nuacutemero de tratados de Luciano foi

traduzido para o latim por More e quatro por Erasmo

O roterdamecircs natildeo se debruccedilou em escritos de temas poliacuteticos ou naqueles atribuiacutedos

ao gecircnero judiciaacuterio mas aleacutem dos escritos no gecircnero demonstrativo dedicou-se ao estudo e

agrave traduccedilatildeo de vaacuterias declamaccedilotildees como as de Luciano (Rummel1985 p 21)

Erasmo dedicou-se de modo especial ao esforccedilo de traduzir do grego para o latim

diversas obras de Luciano (125-180 d C) reacutetor que se destacou por suas obras satiacutericas

conforme o proacuteprio holandecircs afirma na ldquoEpiacutestola a Joatildeo Botzheimrdquo10

Luciano foi ainda um

dos autores explicitamente prestigiado no ldquoPlano de Estudosrdquo erasmiano muito embora

alguns autores quinhentistas criticassem o valor de suas obras conforme se lecirc na introduccedilatildeo agrave

traduccedilatildeo ao ldquoTimeurdquo de Platatildeo realizada por Erasmo (Robinson 1969 p 365) Dentre as

traduccedilotildees das declamaccedilotildees de Luciano realizadas e publicadas em dois volumes ao longo do

10

Erasmo enumera As saturnais Cronosolon Algumas epiacutestolas saturnais Sobre o luto Icaromenipo

Toxaris O pseudomante O sonho ou o galo Tiacutemon O abdicante o Tiranicida Sobre aqueles que satildeo

conduzidos aos palaacutecios dos poderosos por mercecirc

58

ano de 1506 algumas foram publicadas sob o tiacutetulo de Luciani compluria opuscula (Toxaris

Tyrannicida Timon Gallus De mercede conductis e Longaevi) e outra parte foi dada a

conhecer com o tiacutetulo de Opuscula (Dialogi Mortuorum Dialogi Deorum Dialogi naturam

Hercules Eunuchus De Sacrificiis e Convivium) Erasmo retornou entre os anos de 1511 e

1512 agrave traduccedilatildeo e ediccedilatildeo de um terceiro grupo de escritos de Luciano (Icaromenippus

Saturnalia Astrologia Cronosolon Espistolae Saturnale De luctu e Abdicatus) publicados

com as traduccedilotildees anteriores sob o tiacutetulo de ldquoLuciani Erasmo interprete dialogirdquo em Paris

no ano de 1514 Essas obras jaacute foram republicadas pela ediccedilatildeo criacutetica de Amsterdam (1969-

atual) Thompson (1974 p 92) reafirma o consenso dos pesquisadores acerca da influecircncia do

estilo das declamaccedilotildees de Luciano sobre as erasmianas entre outros fatores pelo recurso agrave

ironia o sarcasmo elegante e a forma de ridicularizar costumes sociais incoerentes ou

supersticiosos conforme escreveu More que atribuiu ao holandecircs seu contato com as

declamaccedilotildees lucianescas Aliaacutes um dos toacutepos da primeira parte da ldquoQueixa da Pazrdquo reafirma

justamente alguns dos princiacutepios atribuiacutedos por Erasmo a Luciano na epiacutestola introdutoacuteria ao

ldquoSobre a Liacutenguardquo como eacute o caso da comparaccedilatildeo dos animais com o homem em tom de

superioridade justamente pelo fato de que embora sejam tidos como irracionais natildeo se

inferiorizam ao homem subjugado pelas paixotildees e pelos vis interesses pois a troca de lugar

entre homem e animal para desnudar a sociedade eacute um lugar comum da saacutetira lucianesca

(Erasmo Epiacutestola a Cristoacutevatildeo de Schiidlovietz p 19 ll 9-13) Para Erasmo o grande meacuterito

dos diaacutelogos de Luciano era fazer com que os mais jovens se deleitassem com o estilo e a

liacutengua (De conscribendis epistolis I 353B) Tal afirmativa ainda se verifica no ldquoSobre a

abundacircnciardquo no qual natildeo se absteacutem de elogiar a capacidade descritiva do caraacuteter viril

realizada por Luciano em Hamocircnidas (De copia II 198 ll 51-54-70-75)

234 Libacircnio

Quanto a Libacircnio (314-394 d C) filoacutesofo e professor de retoacuterica que escreveu em

grego Erasmo prefaciou a traduccedilatildeo da Declamatiuncula versa e graeco Libanio cum

thematis aliquot versis que foi publicada sob o tiacutetulo de Libanii aliquot declamatiuncula em

1503 Essas declamaccedilotildees merecem destaque dentro da obra de Erasmo e do Projeto

Humanista (Rummel1985 p 21) por assim dizer de recuperaccedilatildeo dos autores greco-

romanos uma vez que o proacuteprio Libacircnio teve inclusive parte de sua formaccedilatildeo realizada na

59

Greacutecia tendo facilitado acesso a autores gregos antigos apesar da dificuldade de transmissatildeo e

leitura de textos inclusive na atiguidade tardia

Sua atividade como reacutetor inclusive participando de competiccedilotildees puacuteblicas foi

realizada junto aos imperadores que visavam a uma recuperaccedilatildeo da antiga religiatildeo romana

Estes estavam em franco antagonismo com os cristatildeos que por sua vez tentavam suprimir a

antiga religiatildeo e a proacutepria mitologia contida nas tradiccedilotildees de escritos greco-romanos

consideradas meros rituais maacutegicos que prejudicavam a feacute cristatilde (Williams 2009 p 420)

Embora as declamaccedilotildees de Libacircnio fossem datadas da era cristatilde tinham talvez a preferecircncia

de Erasmo por portarem relevantes elementos da retoacuterica claacutessica segundo Kennedy

(1983162-163) tais discursos se diferenciavam dos antigos entre os quais predominavam os

temas judiciais e deliberativos ao apresentarem principalmente temas mitoloacutegicos ou

histoacutericos gregos com a finalidade de discutir assuntos pertinentes para o seu tempo

Libacircnio escreveu cerca de sessenta e quatro oraccedilotildees dentre as quais muitas (cf

oraccedilotildees 48 49 e 50) possuem temas deliberativos em razatildeo de sua proacutepria atividade no

acircmbito poliacutetico Outro atributo de suas declamaccedilotildees eacute o fato de iniciar algumas delas com

narrativas (katastasis) o que foi adotado por Erasmo em muitas de suas declamaccedilotildees Em

Erasmo a Loucura e a Paz por exemplo natildeo estabelecem uma narrativa em terceira pessoa

mas se caracterizam na abertura dos seus discursos atraveacutes de uma locuccedilatildeo direta Libacircnio

contudo se mostrava coerente com os manuais antigos de retoacuterica que apresentavam a

declamaccedilatildeo enquanto exerciacutecio que defendia os dois lados de uma questatildeo pois muitas das

suas declamaccedilotildees eram seguidas de uma ou vaacuterias antitheses finalizadas por um epilogo

(Williams 2009 p 424) Tal princiacutepio natildeo era seguido por Erasmo que apresentava somente

um lado da questatildeo

Conveacutem salientar o fato de que uma das declamaccedilotildees de Libacircnio traduzidas por

Erasmo tem justamente uma personagem feminina como sujeito ou remetente do discurso

Medeia Eacute bastante problemaacutetico comparar a Paz de Erasmo agrave Medeia dos claacutessicos mas

ainda assim verifica-se alguns traccedilos de semelhanccedila entre aquela matildee indignada pela morte

dos filhos e que se apresenta como viacutetima Haacute algumas passagens das declamaccedilotildees

erasmianas nas quais a Paz demonstra sua indignaccedilatildeo para os propugnadores da guerra que

maltratavam os mortais a quem esta dedicou seus cuidados maternais Note-se que a Paz

como veremos mais detidamente nos uacuteltimo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo invoca em seu

60

caraacuteter feminino e maternal as injusticcedilas feitas contra as viacutetimas da guerra a quem trata como

verdadeiros filhos

24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo

Segundo Chomarat as obras do gecircnero declamaccedilatildeo na obra de Erasmo podem ser

classificadas em duas categorias primeiro as declamaccedilotildees em sentido restrito que listaremos

abaixo e em seguida as obras que conteacutem elementos essenciais do gecircnero sem no entanto

receberem esta denominaccedilatildeo Muito embora Erasmo tivesse afirmado a dificuldade de

delinear os limites entre a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo nota-se que possuiacutea noccedilotildees claras a

respeito dos gecircneros retoacutericos e suas subespeacutecies como descreve no Brevissima

Confidendarum Epistolarum Formula acerca do deliberatiuum genus no contexto epistolar

mas que por analogia tambeacutem se aplica a uma declamaccedilatildeo de espeacutecie deliberativa e agraves

declamaccedilotildees de elogio e vitupeacuterio pertencentes ao gecircnero demonstrativo

Entatildeo passemos ao gecircnero deliberativo ocorrente em muitas espeacutecies de

epiacutestolas haacute epiacutestolas suasoacuterias e dissuasoacuterias exortatoacuterias peticcedilotildees

monitoacuterias as quais depois seratildeo consideradas em sua ordem Em primeiro

lugar deve-se definir no gecircnero deliberativo que pode ser chamado de

suasoacuterio a utilidade e a honestidade Quando chamamos algo de uacutetil tambeacutem

queremos denominar como honesto quando natildeo se pode dizer que eacute uacutetil

igualmente natildeo pode ser honesto Porque nesse gecircnero deve-se maximamente

esperar por essa utilidade que estaacute conjugada com a honestidade sem as quais

natildeo podemos suadir persuadir dissuadir exortar desencorajar pedir

aconselhar nem direcionar (como assim disseram) todas as flechas do estilo

ao alvo (Erasmo Brevissima maximaque compendiaria confidendarum

epistolarum formula Paris Apud Christianum Wechelum 1551 p 13)

De modo anaacutelogo nos textos jaacute citados de Quintiliano e Erasmo acerca da semelhanccedila

da declamaccedilatildeo com o diaacutelogo Chomarat (1981 p 932) reconhece a dificuldade em

diferenciar uma declamaccedilatildeo de uma oratio como eacute o caso do ldquoManual do soldado cristatildeordquo

(Enchiridion militis christiani) ou mesmo com uma diatribe segundo a denominaccedilatildeo do

proacuteprio Erasmo (Rummel 1995 p 60) como se verifica no ldquoSobre olivre arbiacutetriordquo (De libero

arbiacutetrio) a ponto de Chomarat (1981 p 932) denominaacute-los ldquoquasi-deacuteclamationsrdquo ou seja

obras que conteacutem um dos elementos essenciais da declamaccedilatildeo a prosopopeia Outra obra

erasmiana natildeo citada pelo estudioso francecircs constituiacuteda em estrutura de diaacutelogo merece

destaque especial uma vez que no caso do ldquoSobre o livre arbiacutetriordquo aleacutem de outras

personagens Erasmo entra no diaacutelogo ao atribuir discursos ao seu proacuteprio nome Mas a

61

grande objeccedilatildeo para sua inserccedilatildeo no gecircnero eacute o fato de natildeo cumprir o quesito de que o texto

deve simular uma causa fictiacutecia

Baseando-se na epiacutestola de Erasmo a Botzheim eacute possiacutevel estabelecer o elencode onze

declamaccedilotildees escritas e publicadas pelo holandecircs e que se conservaram

1 Elogio da vida monaacutestica

2 Resposta ao bispo

3 Louvor e vituperaccedilatildeo do matrimocircnio

4 Elogio da medicina

5 Contra o tiranicida

6 Antibaacuterbaros

7 Sobre o desprezo do mundo11

8 Sobre a prematura morte do filho

9 Sobre os meninos

10 Elogio da Loucura

11 Queixa da Paz

Chomarat (1981 p 932) apresenta dois possiacuteveis tiacutetulos de declamaccedilotildees compostas

por Erasmo cujos textos foram perdidos primeiro ldquoVitupeacuterio agrave vida dos mongesrdquo que teria

sido escrita em Bolonha entre 1506 e 1507 e duas declamaccedilotildees com argumentaccedilotildees

mutuamente opostas sobre a guerra do Papado contra Veneza presumivelmente escrita em

Bolonha em 1508 Dada a temaacutetica os argumentos descritos neste texto provavelmente estatildeo

presentes na ldquoQueixa da Pazrdquo e no ldquoA guerra eacute doce para os inexperientesrdquo Erasmo tambeacutem

mencionou em epiacutestola datada de 1509 e enviada de Paris a intenccedilatildeo de escrever duas

declamaccedilotildees (Encomium naturae e Encomium gratiae) que foram sugeridas por ocasiatildeo da

redaccedilatildeo do ldquoElogio da Loucurardquo12

11

Essa obra foi curiosamente classificada pelo proacuteprio Erasmo como uma epiacutestola declamatoacuteria suasoacuteria

12 Ainda segundo Chomarat (1981 p 934) grande parte das declamaccedilotildees de Erasmo foram escritas por pedido

ldquoformalrdquo de algueacutem que lhe era proacuteximo (Laus vitae monasticae Encomium artis medicae Contra tyrannidam

as duas declamaccedilotildees perdidas escritas em Roma De pueris e Querela Pacis) ou para seus alunos (Episcopi

Responsio Laus ac vituperatio matrimonii e De morte filii praemature praerepti) como modelos praacuteticos dos

conselhos teoacutericos do De Copia (Chomarat 1981 p 935) Esse uacuteltimo grupo pode caber na definiccedilatildeo de

declamaccedilatildeo como exerciacutecio escolar Quanto agravequelas feitas a pedidos com evidente finalidade poliacutetica (como a

Queixa da Paz) ou laudatoacuteria ou ainda como publicaccedilotildees que visavam debater assuntos literaacuterios e que

ilustravam os conselhos contidos no De Copia (Chomarat 1981 p 934)

62

25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas

Van der Poel (2007 p 129) classifica as declamaccedilotildees erasmianas em trecircs espeacutecies

pedagoacutegicas moralizantes e poliacuteticas

Nas numerosas declamaccedilotildees de Erasmo sobre mateacuterias morais e pedagoacutegicas

como tambeacutem nas de assunto poliacutetico como o Encomium moriae De pueris

instituendis Querela Pacis e tambeacutem o Encomium matrimonii tambeacutem

encontramos referecircncias tiacutepicas do vir bonus dicendi peritus Suas

declamaccedilotildees satildeo manifestamente discursos escritos nos quais natildeo somente

critica as condiccedilotildees da sociedade e do interior da Igreja que ele acha

repreensiacutevel mas nas quais tambeacutem defende suas proacuteprias ideias de sociedade

cristatilde civilizada ideal que prova ser na verdade bastante controverso Na sua

carta a Joatildeo Botzheim de 1523 Erasmo assume que o propoacutesito de muitas de

suas declamaccedilotildees pertinent ad institutionem vitae (visam a prover a instruccedilatildeo

do modo de viver)

Desse modo cabe agraves declamaccedilotildees deliberativas e inclusive algumas laudatoacuterias a

finalidade de mouere mas em Erasmo haacute uma especificidade pois o movimento da vontade

do seu interlocutor eacute impulsionado pela tomada de atitudes em conformidade com valores

humanos considerados bons Nesse sentido apresenta uma finalidade pedagoacutegica atraveacutes da

defesa de princiacutepios eacuteticos edificantes O que tambeacutem eacute uma forma de suadere uma vez que a

declamaccedilatildeo erasmiana entendida como um discurso que natildeo defende as duas partes de uma

causa mas opta por uma delas considerada melhor leva a escolher uma entre as opccedilotildees

disponiacuteveis Desse modo o discurso tem um objetivo bem determinado e o mouere e o

suadere estatildeo agrave disposiccedilatildeo do declamador para sugerir accedilotildees consideradas uacuteteis (conveniente)

e honrosas (honestum)

De fato segundo Tunberg (2006 p 9) as obras de Erasmo especialmente o ldquoElogio a

Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo visam a indicar um caminho eacutetico e se ocupam do modo de

agir humano Para Chomarat (1981 p 937) o humanista visava a uma accedilatildeo poliacutetica marginal

ldquoconstituir-se propagandista de uma escolha poliacutetica feita por outros a fim de exercer uma

influecircncia moral sobre a opiniatildeo ou sobre os governantes que o honram mais do que o

escutamrdquo O proacuteprio Erasmo apontou essa intenccedilatildeo explicitamente ao inserir vaacuterias de suas

declamaccedilotildees inclusive a que estudamos no quarto volume da ediccedilatildeo de suas obras

completas publicadas em sua vida com o sugestivo tiacutetulo ldquoObras que visam agrave instruccedilatildeo dos

costumesrdquo (Cantos 2006 p 285) Tal propoacutesito eacute verificado por Tunberg (2006 p 17) ao

comentar a prosopopeia erasmiana da Paz

63

Nas declamaccedilotildees de Erasmo natildeo somente no que se refere ao Elogio da

Loucura mas tambeacutem agrave Queixa da Paz ambas apresentam uma noccedilatildeo vaga

ou abstrata de uma espeacutecie de mulher divina na qual se vecirc a capacidade de

falar e apontar com o dedo de que maneiras certos costumes humanos devem

ser emendados

Corrigir os costumes eacute tambeacutem tarefa do riso No ldquoElogio da Loucurardquo o lado satiacuterico

eacute evidente Na ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo parece querer moralizar a sociedade natildeo por meio da

saacutetira mas sobretudo da ironia da comparaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude entre o belo e o feio

Trata-se do uso do elogio e do vitupeacuterio como instrumentos de moralizaccedilatildeo Este recurso se

insere em uma concepccedilatildeo estrateacutegica ainda mais ampla de Erasmo segundo a qual a educaccedilatildeo

nos claacutessicos seria um instrumento para a moralizaccedilatildeo da sociedade de caraacuteter catequeacutetico

natildeo para sua paganizaccedilatildeo Para Sloane (2004 p 112) predominavam no Renascimento duas

formas de recepccedilatildeo dos claacutessicos a primeira prezava os autores antigos como fontes do prazer

da elocutio e a segunda como fonte de inspiraccedilatildeo para a imitatio Como vimos

anteriormente as declamaccedilotildees de Luciano aos olhos de Erasmo e More realizavam tal

propoacutesito com excelecircncia No caso do ldquoElogio da Loucurardquo o recurso agrave saacutetira eacute evidente mas

natildeo se deve deixar de observar tal aspecto nas demais declamaccedilotildees erasmianas nas quais

Margolin (1992 p 911) ao comentar a ldquoQueixa da Pazrdquo notou diversos recursos retoacutericos

como ldquoa ironia mas com mais coacutelera emoccedilatildeo e piedade em defesa do povo atingido pelos

reveses da guerrardquo Dessa forma pretende mostrar em quatro seccedilotildees de argumentos a

incoerecircncia dos humanos que defendem a guerra dos cristatildeos que guerreiam e dos priacutencipes

que governam com base na guerra e sobretudo a incongruecircncia da missatildeo clerical com o

ofiacutecio das armas

26 Declamaccedilatildeo escrita e integral

A ldquoQueixa da Pazrdquo foi concebida em forma escrita para ser publicada e natildeo haacute

evidecircncias de que existisse alguma espeacutecie de actio das declamaccedilotildees de Erasmo ou de outro

humanista ou seja de que elas fossem lidas em voz alta e na presenccedila de uma audiecircncia

ainda que em contexto familiar Nesse aspecto nota-se uma diferenccedila fundamental entre esta

declamaccedilatildeo e muitas das declamaccedilotildees antigas pois os humanistas natildeo visavam mais ao

deleite e agrave persuasatildeo do seu puacuteblico-alvo atraveacutes da modulaccedilatildeo da voz mas concentravam sua

atenccedilatildeo ao efeito agradaacutevel que a ordenaccedilatildeo e a escolha adequada das palavras e aos diversos

64

recursos retoacutericos poderiam causar em algueacutem que lia a obra na solidatildeo em pronunciar em voz

alta

Contudo o deleite produzido por um discurso no leitor solitaacuterio ou no ouvinte da

assembleia puacuteblica ou de um contexto iacutentimo ou familiar natildeo estaacute localizado apenas na

finalidade formal de que este teria sido escrito ldquopara ser pronunciadordquo ou ldquopara ser lido

individualmenterdquo mas sim na riqueza de figuras nos jogos de palavras e imagens e nos

diversos recursos que a retoacuterica disponibiliza de modo que a mera forma de veiculaccedilatildeo no

sentido de que ele deve ser lido individualmente ou em puacuteblico natildeo seria um fator suficiente

para descaracterizar um gecircnero Deve-se considerar que primeiro ainda que escrita a

declamaccedilatildeo imitava a forma dos textos falados Segundo porque ainda se praticava muito a

leitura puacuteblica Talvez Erasmo natildeo tenha ele mesmo lido seu texto em voz alta mas eacute bem

provaacutevel que ciacuterculos de amigos ou seguidores se reunissem para que um lesse para os outros

os ldquolanccedilamentosrdquo do mestre

27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico

Assim como ocorria na declamaccedilatildeo antiga a humanista tinha por audiecircncia a elite

letrada capaz de ler latim com naturalidade a ponto de compreender as ironias os sacarmos e

as entrelinhas contidas nos textos erasmianos Era esse puacuteblico que se deleitava com os jogos

e os exerciacutecios declamatoacuterios

Tais recursos retoacutericos estavam inseridos tambeacutem em um contexto poliacutetico de modo

anaacutelogo agrave praacutetica da declamaccedilatildeo imperial conforme jaacute analisamos Segundo evidecircncias

internas e externas apontadas por Beauduin (1991 Introduccedilatildeo) essa obra foi escrita em

Lovaina Beacutelgica em uma data e ocasiatildeo incerta natildeo posterior a novembro de 1516 quando

Erasmo ldquovisitou a corte por ocasiatildeo de uma assembleia dos maiores priacutencipes da eacutepocardquo

(Cantos 2006 p 23 Herding 1977 p 7) e estabeleceu contatos com pessoas influentes

como o Chanceler Montjoy (Erasmo Ep 516 Linhas 17-18 Carta a Pierre Gilles de 20 de

janeiro de 1517 1977 p 187) A ldquoQueixa da Pazrdquo foi publicada no decorrer do ano de 1517

tendo sido dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Note-se que Erasmo entre

os anos de 1515 e 1521 (Rummel 1996 p 243) era Conselheiro do Rei Carlos V (Herding

1977 p 8) da dinastia dos Habsburgos Rei dos Paiacuteses Baixos terra de Erasmo da Espanha

de Naacutepoles Siciacutelia e Jerusaleacutem e Duque da Borgonha cujo ducado haveria de ser anexado

65

pela Espanha no dia 23 de janeiro de 1517 (Bataillon 2007 p 81) A partir de 1519 o Rei

Carlos seria tambeacutem o Imperador dos Romanos (1519-1558) A famiacutelia dos Habsburgos cujo

centro de atividades era a Espanha jaacute era a mais poderosa dinastia europeia por volta da

publicaccedilatildeo da Queixa da Paz (1517) Bataillon (2007 p 81) com base nas cartas de Erasmo

informa que em virtude do cargo de conselheiro este chegou a receber rendimentos

espanhoacuteis mas natildeo aceitou o bispado de Zaragoza nem mudar-se para a corte espanhola a

fim de evitar o ambiente dividido em facccedilotildees e contaminado por posiccedilotildees poliacuteticas contraacuterias

a seus proacuteprios valores Erasmo desculpou-se de aceitar a prebenda episcopal e passou a

frequentar a Universidade de Lovaina onde esteve mais assiduamente entre os anos de 1515 e

1521 (Rummel 1996 p 243) dedicando-se ao estudo dos escritos biacuteblicos natildeo sem

aproveitar os recursos da ceacutelebre biblioteca (Bataillon 2007 p 82) Essa foi a fase de sua

vida que precedeu agraves mais acirradas controveacutersias teoloacutegicas que aos poucos foram minando

seu prestiacutegio de preceptor da Europa No ano de 1516 natildeo seria exagero afirma que o

holandecircs era o epicentro intelectual desse mundo fluente no latim A situaccedilatildeo duacutebia em que se

posicionou em relaccedilatildeo ao cargo de conselheiro oferecido pelo rei natildeo somente demonstra o

prestiacutegio e a influecircncia dos seus escritos mas tambeacutem uma espeacutecie de autonomia com a qual

o escritor pretendia apresentar suas ideias inclusive a despeito de prebendas e posiccedilotildees

poliacuteticas

Segundo Herding (1977 p 13) como evento histoacuterico proacuteximo que se pode

considerar o principal motivo da redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz deve-se destacar que

estavam em curso as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e

por fim da alianccedila franco-veneziana (1513-1516) Como alguns desses paiacuteses ou seus

soberanos satildeo explicitamente mencionados na Queixa da Paz13

uma tabela pode esclarecer o

intrincado jogo poliacutetico de interesses de naccedilotildees que essas ligas envolviam

13

Erasmo menciona os reis de modo respeitoso de modo a natildeo contrariaacute-los Sua menccedilatildeo poreacutem para os

conhecedores dos fatos poderiam soar como ironia ldquoPriacutencipe Carlos adolescente de iacutendole incorrupta E natildeo

descuida de mim o Imperador Maximiliano Nem a isso se recusa Henrique o iacutenclito rei da Inglaterrardquo (Erasmo

de Rotterdam Queixa da Paz) Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano

Alematildeo com apenas 17 anos de idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo do Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio

Habsburgo em 1519 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela

morreria dois anos depois Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia

a catolicidade do rei inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536

66

Alianccedilas durante as guerras posteriores agrave Liga de Cambrai

Liga de Cambrai (1508ndash10)

Estados Pontifiacutecios

Franccedila

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Coroa de Aragatildeo

Ducado de Ferrara

Repuacuteblica de Veneza

Alianccedila veneziana-papal (1510ndash11)

Estados Pontifiacutecios

Repuacuteblica de Veneza

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Franccedila

Ducado de Ferrara

Santa Liga contra Franccedila (1511ndash13)

Estados Pontifiacutecios

Repuacuteblica de Veneza

Espanha

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Inglaterra

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Franccedila

Ducado de Ferrara

Repuacuteblica de Florenccedila

Alianccedila franco-veneziana (1513ndash16)

Estados Pontifiacutecios

Espanha

Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico

Inglaterra

Ducado de Milatildeo

Mercenaacuterios Suiacuteccedilos

Repuacuteblica de Veneza

Franccedila

Escoacutecia

Ducado de Ferrara

67

Erasmo em sua Querela critica nominalmente o jaacute falecido Papa Juacutelio II que no

governo dos Estados Pontifiacutecios e por causa de suas alianccedilas militares passou para a Histoacuteria

como o ldquoPapa Guerreirordquo e que ele havia chamado de Julius Exclusus (1968 p 27)

expulsando-o do paraiacuteso por intermeacutedio de um Pedro que via no papa acompanhado de

soldados ldquoum espetaacuteculo nunca visto antes para natildeo dizer um monstrordquo Que este tenha sido

de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa ldquoQueixa da Pazrdquo prova-

o natildeo somente a alusatildeo aos paiacuteses ao final deste escrito mas o proacuteprio autor informou acerca

das circunstacircncias da redaccedilatildeo desse texto em uma carta endereccedilada a Joatildeo Botzheim

Escrevi a Queixa da paz haacute cerca de sete anos quando fui convidado pela

primeira vez para a corte do priacutencipe Faziam-se entatildeo grandes preparativos

em Cambrai para uma conferecircncia que reuniria os maiores priacutencipes do mundo

ndash o imperador o rei da Franccedila o rei de Inglaterra o nosso Carlos ndash a fim de

selarem entre si a paz com laccedilos de accedilo como eacute costume dizer-se Agrave frente

desta accedilatildeo diplomaacutetica achavam-se o ilustre Guilherme de Chiegravevres e Joatildeo

Sauvage grande chanceler vocacionado para o serviccedilo do Estado Opunham-

se a este projeto aqueles que natildeo viam nenhuma vantagem em que reinasse a

tranquilidade aqueles que segundo a expressatildeo de Filoacutexeno () preferem de

longe uma paz que natildeo seja uma paz uma guerra que natildeo seja uma guerra Foi

assim que a pedido de Joatildeo Sauvage escrevi a Queixa da Paz As coisas de

fato encaminharam-se de tal sorte que teria sido mais acertado escrever

Epitaacutefio da paz pois natildeo restam quaisquer esperanccedilas de que ela possa

escapar com vida (Erasmo de Rotterdam Epistola a Joatildeo Botzheim 1523

Correspondence of Eramus Toronto University Toronto Press 1989 p 319)

Nesta carta Erasmo poderia estar se referindo aos diversos conflitos ocorridos entre

1517 e 1523 como a Sexta Guerra da Itaacutelia (1521-1526) tambeacutem conhecida pela disputa

entre Valois e Habsburgos as duas mais importantes dinastias da Europa

Na epiacutestola introdutoacuteria publicada juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo

concebe o escrito como em defesa da Franccedila (Carta ao Bispo Felipe de Utrecht 1917 ll 23-

35) Contudo para Rodrigues Erasmo visava diretamente os interesses holandeses

a Queixa da Paz escrita jaacute tendo em vista Carlos de Gent como soberano dos

reinos espanhoacuteis enfatizava a necessidade de natildeo insistir na poliacutetica

antifrancesa da qual os Paiacuteses Baixos eram viacutetimas tradicionais Assim a

poliacutetica erasmiana assumia de acordo com Mesnarde os anseios dos corpos

sociais neerlandeses (Rodrigues 2012 p 154-155)

De fato alguns dos argumentos contidos no texto em estudo abordam as dificuldades

impostas agrave circulaccedilatildeo de mercadorias que era o motor econocircmico dos paiacuteses baixos e da

regiatildeo renana Entretanto pode-se dizer que natildeo seria correto afirmar Erasmo como defensor

dos interesses particulares da Franccedila dos Paiacuteses Baixos ou de qualquer dos contendores das

68

Guerras da Liga de Cambrai uma vez que seus argumentos a favor da paz satildeo aplicaacuteveis a

qualquer naccedilatildeo visam o bem da humanidade como eacute proacuteprio do irenismo defendido por ele

28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz

Erasmo seraacute o autor cujas obras foram mais difundidas comentadas e a partir de certo

momento tambeacutem contestadas como se pode averiguar pelas diversas reediccedilotildees traduccedilotildees e

referecircncias a estas em outros autores do periacuteodo Por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da

Pazrdquo o roterdamecircs recebeu algumas cartas de elogio conforme se denota do seu epistolaacuterio

(Allen Ep 95 n 1 II) ateacute o final da segunda deacutecada de 1500 nessa fase anterior agrave Reforma

em que o prestiacutegio de Erasmo o entatildeo ldquopreceptor da Europardquo era intocaacutevel Impressionam

ademais as inuacutemeras ediccedilotildees em latim e as diversas traduccedilotildees para os vernaacuteculos Margolin

(1992 p 911) informa a existecircncia de pelo menos vinte seis ediccedilotildees nos dozes anos

subsequentes agrave primeira ediccedilatildeo perfazendo a soma de mais de trinta ediccedilotildees tendo como

recorte o seacuteculo XVI (Rummel 1990 p 288) Contam-se ademais diversas traduccedilotildees para as

principais liacutenguas europeias ocidentais por exemplo duas traduccedilotildees para o alematildeo em 1521

uma para o francecircs e para outros vernaacuteculos incluindo o holandecircs cuja primeira apariccedilatildeo se

deu em 1567 (Augustijn 1995 p 73) Radice (1968 p 290) observa que embora Erasmo jaacute

houvesse falado contra a guerra em obras como ldquoPanegiacutericordquo (1504) e nos ldquoAdaacutegiosrdquo (1515)

deve-se considerar a Queixa da Paz ldquocomo o mais citado e celebrado apelo pela paz

universalrdquo Natildeo eacute de se admirar que seus principais trabalhos ateacute entatildeo publicados

especialmente sua traduccedilatildeo do ldquoNovo Testamentordquo e suas declamaccedilotildees ldquoElogio da Loucurardquo e

ldquoQueixa da Pazrdquo tenham-no tornado um pensador do norte prestigiado em toda a Europa

cujo centro cultural era a Itaacutelia a ponto de em 1522 Vives afirmar ldquoeacute de pasmar a admiraccedilatildeo

inspirada por Erasmo a todos os espanhoacuteis saacutebios ignorantes homens de igreja e secularesrdquo

(Epiacutestola de 6 de setembro de 1522 apud Bataillon 2007 p 156) Este testemunho pode ser

entendido como beneacutevolo e parcial uma vez que desconsidera os inuacutemeros ataques sofridos

por Erasmo na peniacutensula ibeacuterica sobretudo apoacutes as traduccedilotildees biacuteblicas e os acontecimentos da

Reforma Na verdade o proacuteprio ataque direto e polecircmico efetuado contra as traduccedilotildees soacute

atesta o alcance de sua influecircncia

69

29 A disposiccedilatildeo retoacuterica

Chomarat (1981 p 931) ao longo do capiacutetulo III de seu Grammaire et Rheacutetorique

chez Eacuterasme denominado La Declamation fornece uma lista de declamaccedilotildees e analisa esse

gecircnero tal como exercido pelo humanista holandecircs especialmente no ldquoElogio da Loucurardquo

No entanto o pesquisador dedicou apenas alguns paraacutegrafos agrave ldquoQueixa da Pazrdquo sem se

estender na explicaccedilatildeo de sua forma da sua disposiccedilatildeo segundo os ditames da retoacuterica e da

natureza dos seus argumentos limitando-se a estruturaacute-la em trecircs partes principais

A argumentaccedilatildeo desenvolve trecircs ideias sucessivas a natureza constituiu o

homem para a benevolecircncia e para a concoacuterdia a doutrina de Cristo consiste

na paz concorda com o amor muacutetuo a guerra eacute uma fonte de calamidades na

segunda parte bem mais longa apoacutes ter demonstrado a discoacuterdia que reina em

toda parte ateacute mesmo entre os monges e entre os esposos apesar do

ensinamento de Cristo a Paz descreve a presenccedila da guerra sobretudo nos

uacuteltimos dez anos com o aumento das agruras e do escacircndalo guerra entre os

cristatildeos guerra das quais participam os padres e mesmo os papas enfim oacute

dor guerras travadas em nome de Cristo a religiatildeo da paz foi pervertida ao

serviccedilo da guerra nos dois campos se recita o Pater Noster esta progressatildeo eacute

seguida de uma confutatio do argumento invocado por certos cristatildeos

segundo o qual os beligenrates obedecem a uma certa necessidade coagidos agrave

guerra apesar da sua proacutepria vontade Esta confutatio analisa as fontes reais

da guerra (as paixotildees) e afirma que a condiccedilatildeo primeira da paz eacute a vontade da

paz entre certos priacutencipes mas tambeacutem no clero e no povo Na terceira parte

salienta entre as consequecircncias dos conflitos armados natildeo somente as ruiacutenas

e a miseacuteria dos povos mas as liccedilotildees de infraccedilatildeo agraves leis o viacutecio e a impiedade

que daacute agrave guerra ldquoa desonra do nome cristatildeordquo [] A indignaccedilatildeo a dor a

piedade inspiram Erasmo a belas passagens os conselhos praacuteticos o apelo agrave

regularizaccedilatildeo dos conflitos atraveacutes de negociaccedilotildees a insistecircncia sobre a

responsabilidade destes diretores de opiniatildeo que satildeo os pregadores e os

conjuramentos aos priacutencipes cristatildeos que fazem perceber que esta declamaccedilatildeo

natildeo seria somente um exerciacutecio somente o artifiacutecio da prosopopeia manteacutem

ainda a Querela Pacis ao gecircnero que ilustraram obras precedentes [as demais

declamaccedilotildees] (Chomarat 1981 p 999-1000)

No ldquoSobre a abundacircnciardquo de 1512 Erasmo havia afirmado que ldquona ordem ou

disposiccedilatildeo eacute sumamente necessaacuterio o meacutetodordquo ou seja a loacutegica e a clareza da argumentaccedilatildeo

devem evitar uma sensaccedilatildeo de perturbaccedilatildeo ou confusatildeo (De Copia Liber II p 280 ll 95-99)

Deve-se distinguir nisso que o roterdamecircs tambeacutem chama de ordo ou constructio a sequecircncia

das palavras dentro de uma frase (De Copia Liber I p 75 ll 47-49) Para ele eacute necessaacuterio

selecionar as proposiccedilotildees de modo adequado justamente pelo criteacuterio do que se acha

conveniente ou agradaacutevel Deve-se pois hierarquizaacute-las e transitar entre elas tomando por

regra aquelas que satildeo mais proacuteximas umas das outras de modo que se evitem saltos temaacuteticos

natildeo adequados (De Copia Liber II p 228 ll 781-787) Erasmo preceituava no ldquoSobre

70

abundacircnciardquo assim como no subtiacutetulo ldquoSobre a ordemrdquo do seu ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo

(De conscribendi epistolis p 301 ll 2-15) que a ordem ou disposiccedilatildeo devem partir do

criteacuterio do que eacute ldquonaturalrdquo e do que eacute ldquoartiacutesticordquo aconselhando que deve ser menos frequente

o caraacuteter artiacutestico uma vez que os leitores natildeo satildeo do vulgo mas eruditos e que tais epiacutestolas

natildeo satildeo ouvidas mas lidas Ademais embora a disposiccedilatildeo seja necessaacuteria para a clareza em

alguns gecircneros como eacute o caso do epistolar essa disposiccedilatildeo deve ser dissimulada e natildeo

ostensiva Contudo o que Erasmo mais recomenda evitar eacute um texto confuso por falta de

disposiccedilatildeo adequada Ainda nesse escrito encontram-se no subtiacutetulo ldquoSobre o gecircnero

dissuasoacuteriordquo algumas afirmaccedilotildees pertinentes a respeito da suasoacuteria como eacute o caso da ldquoQueixa

da Pazrdquo no sentido de que recomenda a paz e desaconselha a guerra Para ele o ato de

desaconselhar algo a algueacutem implica na seleccedilatildeo de argumentos que satildeo desagradaacuteveis para

aquele que pretendemos dissuadir As proposiccedilotildees devem ser dispostas de modo que sua

compreensatildeo seja simplificada atraveacutes de exemplos e comparaccedilotildees sem deixar evidente a

disposiccedilatildeo (De conscribendi epistolis p 429 ll 5-20)

Do ponto de vista da disposiccedilatildeo a ldquoQueixa da Pazrdquo parece seguir uma subdivisatildeo

concorde com a tradiccedilatildeo retoacuterica (Silva 2015 p 60) que o proacuteprio Erasmo propunha que

fosse ensinada aos alunos em seu ldquoPlano de estudosrdquo (p 134 l 10-135 ll 1-5) Basicamente

ela se subdivide em

- Proecircmio (προοίμιονexordium)

- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio)

- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)

- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio)

No caso especiacutefico da declamaccedilatildeo irecircnica as ediccedilotildees inclusive aquelas revisadas por

Erasmo apresentam uma epiacutestola a Felipe Bispo de Utrecht (Carta ao Bispo Felipe de

Utrecht 1917 ll 23-35) que se assemelha agravequilo a que hoje correntemente se intitula como

dedicatoacuteria na qual o autor sauacuteda o bispo pelo novo cargo desejando-lhe o mesmo sucesso de

seus antepassados Em certo trecho desta epiacutestola menciona ainda a situaccedilatildeo de seu tempo

como motivaccedilatildeo para a redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo

71

Jaacute no tiacutetulo da declamaccedilatildeo Erasmo explicita o tema ldquoQueixa da Paz perseguida e

rejeitada em toda parte pelas naccedilotildeesrdquo (Querela Pacis undique gentium eiectae

profligataeque) assim como ocorria nas controveacutersias senequianas que apresentavam a

temaacutetica de forma clara logo na primeira frase ou em um breve texto que introduzia a causa

em discussatildeo (Schwartz 2004 p 71) O tiacutetulo apresenta o tema principal do discurso (a Paz)

cuja causa eacute tiacutepica do gecircnero deliberativo e das antigas suasoriae a Paz eacute tratada tambeacutem

como uma personificaccedilatildeo ofendida a personagem principal e remetente do discurso tal como

ocorre na sexta suasoacuteria de Secircneca na qual Ciacutecero eacute o interlocutor fictiacutecio (Schwartz 2004 p

110) Esta apresenta sua queixa Trata-se do lamento da injuacuteria e da tentativa de destruiccedilatildeo

contra a Paz As declamaccedilotildees costumavam antepor suas personagens geralmente fictiacutecias em

uma disputa No caso da Querela jaacute no tiacutetulo da obra haacute personagens expliacutecitas (a Paz como

protagonista com voz ativa e as naccedilotildees sem voz ativa) e uma indicaccedilatildeo geneacuterica de lugar

(em toda parte) Todo o universo em todo lugar conspira contra a paz e esta apresenta sua

queixa com argumentos jaacute explorados pelo roterdamecircs no ldquoA guerra eacute doce para os

inexperientesrdquo (1515) e na ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo (1516) Contudo natildeo satildeo os

argumentos que diferenciam esta declamaccedilatildeo dos demais escritos em favor da paz ou

contraacuterios agrave guerra mas sim sua forma ou seja seu gecircnero assim como os recursos retoacutericos

presentes no texto

Aplicando a tradiccedilatildeo de disposiccedilatildeo retoacuterica agraves declamaccedilotildees podemos dividi-la nas

seguintes partes

- Proecircmio (προοίμιονexordium) (4- 29)14

- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio) (30-112)

- a primeira parte trata da paz entre os animais (30-112)

- a segunda parte trata da destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202)

- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)

- a primeira parte trata de Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido pelos que se

dizem cristatildeos (203-401)

14

Os nuacutemeros araacutebicos se referem agraves linhas da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi

Roterodami Opera Omnia Amsterdam 1978)

72

- a segunda parte trata do exemplo dos pagatildeos (402-435)

- a terceira parte trata de como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados

pela guerra (436-594)

- a quarta parte trata de sugestotildees para o priacutencipe evitar a guerra (595-871)

- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio) (872-918)

Em algumas ediccedilotildees a indicaccedilatildeo pax loquitur excluiacuteda da ediccedilatildeo criacutetica daacute iniacutecio ao

proecircmio (προοίμιονexordium) este localizado logo apoacutes a epiacutestola ao bispo Felipe e ao tiacutetulo

(1-3) Vem a seguir uma espeacutecie de auto-apresentaccedilatildeo da Paz (4-29) a qual fala na primeira

pessoa do singular descreve a si mesma e aos males que os homens injustamente cometem

contra ela e contra si mesmos

A narratio (διήγηζις) (30-202) pode ser dividida em duas partes a primeira trata da

paz entre os animais (30-112) cujo objetivo talvez seja mostrar que esta eacute conforme a

natureza ao passo que a guerra contraacuteria Esta eacute peacutessima justamente porque se opotildee agrave

natureza das coisas (rerum natura) e nisso os proacuteprios animais apesar de seres irracionais e

natildeo dotados da palavra serviriam de exemplo a ser seguido pelo homem Quando este se faz

guerreiro torna-se abjeto pois contraria sua natureza racional Jaacute a segunda parte trata da

destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) entre as linhas 113-130 Erasmo indica os

cristatildeos e a cidade como adversaacuterios dela que natildeo pode obter uma ldquomoradardquo entre eles Em

seguida volta-se contra os priacutencipes (131-142) os eruditos (143-157) e os religiosos (158-

189) Inclusive se refere agrave famiacutelia como lugar no qual ela eacute maltratada (190-194) O proacuteprio

homem eacute um ser dividido pois a razatildeo luta contra as paixotildees e estas entre si (195-200)

A confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio) pode ser subdividida em pelo menos quatro grandes

blocos a primeira parte trata do Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido por todos aqueles que

se dizem cristatildeos (203-401) Erasmo recusa aqui que o epiacuteteto ldquoDeus dos exeacutercitosrdquo presente

em trechos do Antigo Testamento possa servir de argumento a favor da guerra (223-230)

Verifica-se que a fala dirigida ao priacutencipe cristatildeo (249) se assemelha em certas partes do

discurso ao gecircnero speculum principum15

tatildeo em voga no Renascimento a ponto de Erasmo

ter dedicado vaacuterios de seus escritos a esse objeto nos quais inclusive incorrem argumentos

73

irecircnicos comuns agrave ldquoQueixa da Pazrdquo e que seratildeo considerados em pormenor abaixo O gecircnero

ldquoEspelho dos priacutencipesrdquo eacute uma espeacutecie de manual eacutetico e poliacutetico em que se detalham as

virtudes e os deveres de um priacutencipe ideal Tratava-se de uma tentativa de promover um

priacutencipe justo e um governo anaacutelogo Acreditava-se desde a antiguidade ateacute no periacuteodo

medieval que a formaccedilatildeo moral do governante determinaria a felicidade dos suacuteditos Se

Cristo eacute o priacutencipe da Paz natildeo cabe aos priacutencipes que se dizem cristatildeos promover a guerra

Homens reais satildeo entatildeo retratados como mais crueacuteis que personagens da histoacuteria ou da

antiga mitologia como Dioniacutesio e Mezecircncio (428-429) Uma terceira parte aborda como o

Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados pela guerra (436-594) Note-se o trecho

elogioso agrave Franccedila (436-450) que justifica o tom francoacutefilo do discurso cofnroem o pedido do

chanceler Joatildeo Sauvage que teria encomendado a redaccedilatildeo desta declamaccedilatildeo Entre 451e 473

Erasmo retorna ao argumento de que os homens satildeo mais crueacuteis que as feras O bloco mais

extenso do discurso a quarta parte da confirmaccedilatildeo dirige-se diretamente ao priacutencipe

apresentando sugestotildees para que este evite a guerra (595-871) O epiacutelogo (επίλογοςperoratio)

(872-918) apresenta-se sob uma forma de apelo a todas as pessoas a comeccedilar pelos

poderosos para que promovam a paz Segue-se o princiacutepio da rememoratio sugerido pelas

tradiccedilotildees dos manuais de retoacuterica com a finalidade de retomar rapidamente os argumentos

desenvolvidos anteriormente Finalmente o proacuteprio autor resume o conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida por todo o texto

Tudo nos convida a isso Em primeiro lugar o proacuteprio instinto da natureza e

se assim posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo lugar o proacuteprio

Cristo Priacutencipe e Autor de toda felicidade humana Depois as incontaacuteveis

vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero imenso das calamidades da

guerra Convidam agrave paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que como

que inspirados por Deus jaacute estatildeo propensos agrave concoacuterdia (Queixa da Paz 889-

892)

210 As sentenccedilas e os adaacutegios

Sentenccedilas e adaacutegios satildeo recursos recorrentes nas declamaccedilotildees erasmianas assim como

o foram na obra senequiana segundo as tradiccedilotildees retoacutericas antigas transmitidas por

Quintiliano (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria XII 10 48) Em epiacutestola a Willian Blount embora natildeo se

refira expressamente ao uso delas no gecircnero que estudamos afirma Erasmo sobre o uso de

sentenccedilas em geral

74

O proveacuterbio melhora com a idade exatamente como os vinhos Eles natildeo se

limitam a ornamentar o seu estilo Eles satildeo igualmente uacuteteis para tambeacutem lhe

dar forccedila Por esta razatildeo Quintiliano natildeo soacute os incluiu entre os meios de

aliviar o teacutedio judicial entre as figuras de oratoacuteria mas considera que o

exemplo proverbial eacute um dos meacutetodos mais eficazes de prova se o seu

propoacutesito eacute convencer ou para refutar o seu adversaacuterio por meio de um ditado

espirituoso ou para defender a sua proacutepria posiccedilatildeo (Epiacutestola 125 ll 56-65

Steyn junho de 1500 I The Correspondence of Erasmus I 1974 p 255

traduccedilatildeo do inglecircs para o portuguecircs)

Logo no iniacutecio do ldquoSobre a abundacircnciardquo Erasmo pontua como as sententiae satildeo

recursos basilares da sua retoacuterica que tecircm o poder de conferir qualidade e elegacircncia ao

discurso ainda que tambeacutem tragam em si ldquoo perigo natildeo reduzido de deixaacute-lo afetadordquo (De

Copia I 9 p 26) Um dos erros apontados pelo holandecircs eacute a inadequaccedilatildeo com o tema ou

com o argumento proposto ou seja um adaacutegio que contrariasse o que a antiga tradiccedilatildeo

retoacuterica nomeava como decoro ou entatildeo o uso exagerado qualificado como ldquosententiarum

turbardquo que natildeo eacute capaz de reduzir a pobreza inerente ao discurso (Ibid)

Deve-se salientar a diferenccedila entre sententia no sentido de proveacuterbio e a sentenccedila no

sentido frase ou oraccedilatildeo que tambeacutem foi objeto de consideraccedilatildeo do roterdamecircs Relembrando

a ceacutelebre disputa entre Ciacutecero e Roacutescio sobre qual dos dois seria capaz de repetir uma mesma

ideia com o maior nuacutemero de formas sinoniacutemicas concebe a proposiccedilatildeo fundamental segundo

a qual a variaccedilatildeo das sentenccedilas enriquece o discurso (De Copia I 40-45 p 28) Erasmo ousa

ainda afirmar que natildeo eacute somente a variaccedilatildeo copiosa das sentenccedilas que eacute capaz de tornar um

discurso eloquente mas tambeacutem a concisatildeo de modo que a parcimocircnia eacute um fator relevante

para um discurso retoricamente constituiacutedo

Natildeo raro temos de dizer a mesma coisa vaacuterias vezes mas nesse caso se faltar

variaccedilatildeo ou perderemos ou faremos como o cuco de modo que repitamos as

mesmas palavras repetidas vezes sendo incapaz de dar diferente forma ou

color para a sentenccedila de maneira que nossa falta de eloquecircncia pareceraacute

ridiacutecula a noacutes mesmos e esgotaraacute totalmente o nosso puacuteblico de miseraacutevel

cansaccedilo (De Copia I 130-134 p 32)

Nota-se o uso da expressatildeo color com um sentido semelhante agravequele utilizado por

Secircneca o Velho em suas declamaccedilotildees as quais haviam sido editadas por Erasmo um ano

antes da publicaccedilatildeo da Querela e que segundo Knott (1988 p 12) tiveram influecircncia direta

sobre a declamaccedilatildeo e a coleccedilatildeo de adaacutegios erasmiana Embora natildeo trate exatamente da

sentenccedila senequiana enquanto proveacuterbio ao longo do capiacutetulo XVII do De copia Erasmo

aborda um tema que possui certa analogia com o criteacuterio para a seleccedilatildeo das sentenccedilas Ao

75

discorrer sobre a importacircncia da metaacutefora ou das similitudines como recurso retoacuterico capaz de

conferir ao discurso ornamento gravidade sublimidade e humor (De Copia I 801-803 p

64) apresenta a coleccedilatildeo de adaacutegios (De conscribendis epistolis p 240 ll 15-16) que

enriquecem o texto mas que devem ser selecionados com criteacuterio ldquoa metaacutefora natildeo ser dura

ou baixa ou mais exagerada do que eacute adequado ou dessemelhante ou demasiado frequente

especialmente a que eacute da mesma espeacutecierdquo (De Copia I 817-818 p 64) Ao que parece

Erasmo se refere ao uso moderado natildeo repetitivo no tocante agrave forma e ao conteuacutedo da

sentenccedila

O proacuteprio roterdamecircs colecionou centenas de adaacutegios na ediccedilatildeo expandida publicada

em 1508 e que satildeo utilizados (De Copia I 812-814 p 64) segundo Knott (1988 p 12) natildeo

somente como meras traduccedilotildees para o latim quando advindos do grego ou meras citaccedilotildees

literais quando originaacuterios do latim mas em alguns casos satildeo parafraseadas ou ao menos

demonstram certa semelhanccedila justamente para dar variedade e elegacircncia agraves diversas

sentenccedilas muito embora a maioria delas seja apenas recolhida dos escritos antigos com a

finalidade de ornamentar o discurso como eacute o caso da ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo natildeo se

absteacutem do uso de adaacutegios com finalidade retoacuterica Nesse particular podemos constatar que

tais adaacutegios possuem trecircs fontes especiacuteficas e em muitos casos grafadas na ediccedilatildeo criacutetica da

Queixa da Paz e que de certo modo coincidem com a lista supracitada de Knott (1988 p

12) ao serem classificadas em quatro fontes as antigas as biacuteblicas as patriacutesticas e os

proacuteprios adaacutegios de Erasmo

Algumas destas referecircncias se configuram apenas como citaccedilotildees diretas ou indiretas

dos autores Algumas podem ser expliacutecitas como eacute o caso de Platatildeo (linhas 9 da epiacutestola-

prefaacutecio e (551) enquanto outras satildeo alusotildees como Liacutevio (1-3)16

de Homero (7517

) de

Oviacutedio (16218

) de Siacutelio Itaacutelico (21019

) de Ciacutecero (21820

e 75821

) de Virgiacutelio (46722

e 67023

) e

16

ldquoundique se suosque profligante fortunardquo (Livio 3319)

17 ldquoCirces pharmacisrdquo (Homero Odisseia X 235ss)

18 ldquovestes candidae meo colorerdquo (Ovidio Arte Amatoacuteria 3 502)

19 ldquopax optima rerumrdquo (Silio Puacutenicas XI 592ss)

20 ldquoa viro laudatordquo (Ciacutecero Disputas Tusculanas IV 31 67)

21 ldquosilent leges inter armardquo (Cicero Mil 4 10)

22 ldquoignobile vulgusrdquo (Virgiacutelio Aeneida I 149)

23 ldquoquae maacutexima turba estrdquo (Virgiacutelio Aeneida VI 611)

76

de Plauto (76424

) Haacute citaccedilotildees de adaacutegios recolhidos e selecionados por Erasmo em sua

proacutepria coletacircnea (linhas 1825

2226

6227

7728

9129

15530

50531

553-55632

803-80433

86634

e 90635

) Alguns satildeo inspirados em fontes antigas como o de Pliacutenio (5736

) de Horaacutecio (15237

)

ou de Aristoacuteteles (391)38

Erasmo de modo algum aconselha a seleccedilatildeo de sentenccedilas de um

uacutenico autor mas a imitaccedilatildeo e a coleccedilatildeo destas retiradas das mais variadas fontes inclusive as

de origem ou inspiraccedilatildeo biacuteblica e patriacutestica chegando inclusive a ridicularizar no ldquoDiaacutelogo

Ciceronianordquo (p 617 ll 9-12) mais especificamente no diaacutelogo entre as personagens

Nosoacutepono e Buleacuteforo os autores que se aferravam unicamente agrave coleccedilatildeo das sentenccedilas e

adaacutegios oriundos ou inspirados na obra atribuiacuteda a Ciacutecero Erasmo eacute ecleacutetico no elenco das

fontes mas foi constantemente acusado de falta de cuidado no uso das sentenccedilas

Conforme lecirc-se no ldquoPlano de estudosrdquo o estiacutemulo aos estudantes de retoacuterica para o

cultivo da coleccedilatildeo e o conhecimento de adaacutegios e sentenccedilas dos antigos eacute imprescindiacutevel para

o enriquecimento do discurso em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica antiga pois satildeo fontes

da invenccedilatildeo da abundacircncia e da variaccedilatildeo das sentenccedilas (De ratione studii p 149 ll 18-27)

Por fim Erasmo chega a afirmar explicitamente no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo a

necessaacuteria imitaccedilatildeo das sentenccedilas colecionadas entre os autores citando inclusive as

declamaccedilotildees de Luciano a Aulo Geacutelio (De conscribendis epistolis p 532 ll 8-12)

24

ldquoparietum perfossorrdquo (Plauto Pseud 9 8 6)

25 ldquoPax omnium bonarum rerum et parens est et nutrixrdquo (Erasmo Adagia 3001)

26 ldquoigens malorum pelagusrdquo (Erasmo Adagia 3001)

27 ldquoFuremque fur cognoscitrdquo (Erasmo Adagia 1263)

28 ldquouni lachrymas clementiar et misericordiae symbolumrdquo (Erasmo Adagia 3001)

29 ldquosolum hominem nundum produxitrdquo (Erasmo Adagia 3001)

30 ldquodentata chartardquo (Erasmo Adagia 87)

31 ldquoe suggesto sacrordquo (Erasmo Adagia 3001)

32 ldquordquoEthnicorum leges parriciacutediordquo (Erasmo Adagia 3918)

33 ldquoad Cares viliacutessimosrdquo (Erasmo Adagia 514)

34 ldquoActa est fabulardquo (Erasmo Adagia 239)

35 ldquoBellum e bello seriturrdquo (Erasmo Adagia 3001)

36 ldquoLeonum feritas inter se non dimicat serpentium morsus non petit serpentes ne maris quidem beluae ac pisces

nisi in diversar genera sacuiuntrdquo (Plinio Histoacuteria VII 5)

37 ldquode lana caprinardquo (Erasmo Adag 253 Horaacutecio Espiacutestulas I 1815)

38 ldquoConciliant homines malardquo ou ldquomala conciliant et malosrdquo (Erasmo Adagia 1071)

77

211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes

Se a declamaccedilatildeo desde o iniacutecio possuiu uma relaccedilatildeo estreita com outros gecircneros

como a oraccedilatildeo (oratio) e o diaacutelogo (sermocinatio) identificamos outro correlato o espelho

dos priacutencipes Ora natildeo somente o tema aproxima a ldquoQueixa da Pazrdquo da ldquoInstituiccedilatildeo do

priacutencipe cristatildeordquo mas tambeacutem sobretudo em algumas de suas partes que aconselham o

suserano Herding (1974 p 6) aponta que ainda o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInsituiccedilatildeo do

priniacutencipe cristatildeordquo se caracterizam como obras erasmianas pertencentes a esse gecircnero

literaacuterio Por outro lado os argumentos utilizados na ldquoQueixa da Pazrdquo ao parecer de Herding

(1974 p 9) configuram a proacutepria ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo como um tratado de iacutendole

irecircnica O autor (1975 p 98) tambeacutem observou que Plutarco cuja obra moral tinha sido

editada e publicada por Erasmo em 1514 pode ter influenciado o roterdamecircs na redaccedilatildeo de

seus escritos suasoacuterios e pedagoacutegicos dirigidos especificamente aos priacutencipes O proacuteprio

Erasmo jaacute na carta a Felipe aquela que introduz a ldquoQueixa da Pazrdquo dirige-se a membros da

nobreza e em epiacutestola a Joatildeo Botzheim datada do ano de 1523 afirma sua declamaccedilatildeo como

um escrito cujos destinataacuterios satildeo justamente membros governantes Herding (1974 p 100)

levanta a hipoacutetese de que tal como esta tambeacutem seu mais ceacutelebre espelho do priacutencipe tenha

sido encomendada pelo chanceler Joatildeo Sauvage Esse escrito entatildeo seria de suasoacuterio e

pedagoacutegico no sentido de sugerir atitudes moralizadoras das relaccedilotildees entre os priacutencipes e os

seus congecircneres entre estes e o povo

Em todo o texto da ldquoQueixa da Pazrdquo haacute cinquenta e seis repeticcedilotildees da palavra

ldquopriacutenciperdquo muitas vezes em uma funccedilatildeo apelativa atraveacutes do uso do vocativo Para Erasmo o

gecircnero speculum segue um modelo Cristo que eacute o ldquoPriacutencipe da pazrdquo (Queixa da Paz 205-

214) Erasmo trata do regente bom (614 e 770) ou pio (770) e se propotildee aconselhaacute-los a

deliberar em favor da Paz em nome de princiacutepios eacuteticos tal como eacute tiacutepico das suasoacuterias

(Queixa da Paz 205-214) Ateacute mesmo na peroraccedilatildeo a Paz novamente volta-se a eles (Queixa

da Paz 872-876) As dezenas de refecircncias ao governante e a semelhanccedila de alguns trechos

com o gecircnero espelho de priacutencipes natildeo desautorizam a classificar a ldquoQueixa da Pazrdquo como

declamaccedilatildeo pois o tema sobre a paz tiacutepico do gecircnero deliberativo e o objetivo de aconselhar

proacuteprio das suasoacuterias satildeo elementos correntes nas antigas declamaccedilotildees

Por fim deve-se considerar que Gaeta (1969) notou semelhanccedilas evidentes entre o

diaacutelogo filosoacutefico presente no exoacuterdio do ldquoSobre a Clemecircnciardquo do Jovem Secircneca com o da

78

ldquoQueixa da Pazrdquo Notei que grande semelhanccedila da Queixa da Paz com o exoacuterdio de Secircneca

(Sobre a clemecircncia 1-4) Aquele foi um escrito filosoacutefico-moral destinado ao jovem

imperador Nero de modo a contribuir com a formaccedilatildeo deste (Manjarreacutes 2001 p 85) e que

de modo fictiacutecio simula discursos diretos de Nero (ver I2) ao passo que na declamaccedilatildeo em

estudo a locuccedilatildeo direta eacute proferida pela proacutepria Paz Secircneca o Jovem inicia sua

argumentaccedilatildeo apresentando o proacuteprio Nero como fonte dos dons virtudes e bens e o contrasta

com a humanidade ldquobriguenta intriguenta e apaixonadardquo capaz de causar ldquoa ruiacutena para si

mesmardquo Secircneca instrui o imperador a se auto-apresentar como aquele que cumpre o ofiacutecio de

Deus sobre a terra como o aacuterbitro da vida e da morte Cabe ao governante decidir as posses

do homem pois a fortuna de cada um proveacutem da sua boca Ele deve decidir sobre qual

inimigo deve ser tratado com rigor ou clemecircncia pois cidades e civilizaccedilotildees florescem pelas

suas palavras Mas Nero prefere promover a paz para benefiacutecio dos povos que lhe satildeo

submetidos Jaacute consideramos e ainda aprofundaremos como a paz se apresenta de modo

anaacutelogo e com argumentos semelhantes Em ambos os discursos elaborados em primeira

pessoa usam-se as imagens da prosperidade para a paz e da destruiccedilatildeo para a guerra em

ambos embora a paz seja apresentada como agradaacutevel aos ceacuteus ou seja aos deuses e aos

homens esta natildeo eacute aceita e perde seu lugar para a guerra

212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio

Ao estudar a ldquoQueixa da Pazrdquo sob a perspectiva dos trecircs gecircneros notamos novamente

a ocorrecircncia especial de traccedilos destes gecircneros o deliberativo ou suasoacuterio e o demonstrativo

ou epidiacutetico O primeiro ocorre sobretudo nos trechos em que a Paz se configura como

beneacutevola conselheira (Queixa da Paz 595-597) A Paz volta-se ao suserano a fim de

aconselhaacute-lo referindo-se na forma da terceira pessoa do singular

A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os afetos privados e estimar todas as coisas

segundo o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe evite viagens a terras

longiacutenquas ou antes que nunca cruze os limites territoriais do seu reino

(Queixa da Paz 646-647)

A Paz tambeacutem utiliza a segunda pessoa do singular ao dirigir-se diretamente ao

cristatildeo a fim de defender sua causa tal como se verificou em jaacute citada parte da peroraccedilatildeo

(Queixa da Paz 872-876) Entretanto esta natildeo se dirige como conselheira apenas do poder

laico mas tenta persuadir o proacuteprio Sumo Pontiacutefice

79

Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice Romano Entretanto no momento em que os

povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras perversas ndash e isto por longos

anos ndash onde estaacute a autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde estaacute o seu

poder proacuteximo ao de Cristo Era nesse ponto e entatildeo que a autoridade papal

certamente deveria ser exercida a natildeo ser que os papas tambeacutem compartilhem

as mesmas ambiccedilotildees (Queixa da Paz 583-586)

Os conselhos deliberativos assumem a construccedilatildeo do futuro mas tambeacutem o

subjuntivo como por exemplo nesse trecho no qual a Paz sugere regras com finalidade

paciacutefica no tocante ao direito de sucessatildeo de territoacuterios

Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas possibilidades para governar sua

regiatildeo da melhor forma possiacutevel Pois quando estiver totalmente concentrado

no cuidado de um soacute reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus filhos

enriquecido por melhorias E desta forma como eacute evidente tudo floresceraacute

Que sejam aliados natildeo apenas por viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas

contratuais mas sim unidos por amizade sincera e pura e acima de tudo por

um idecircntico e comum amor por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei

seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais proacuteximo por consanguinidade quer

agravequele que pelos votos do povo for considerado o mais capaz Quanto aos

demais que lhes baste estar entre o nuacutemero dos nobres mais honrados (Queixa

da Paz 639-645)

Ao comentar o ldquoElogio ao matrimocircniordquo (1518) publicado um ano apoacutes a publicaccedilatildeo

da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517) Leushuis (2004 p 1287) estabelece uma definiccedilatildeo que parece

adequada agrave declamaccedilatildeo que estudamos

Primeiramente publicada em marccedilo de 1518 sob o tiacutetulo de Declamatio in

genere suasorio de laude matrimonii o texto combina elementos da

declamaccedilatildeo (declamatio) e do elogio (laus) Ao considerar a natureza geral da

declamaccedilatildeo pode-se dizer que o objetivo deste texto eacute discutir os argumentos

a favor e contra (in utramque partem) a tese (thesis) em um modo suasoacuterio

(genus suasorium) Na linha da tradiccedilatildeo claacutessica ciceroniana na qual o gecircnero

era usado para discutir uma questatildeo abstrata ou filosoacutefica [] as declamaccedilotildees

do iniacutecio do seacuteculo XVI expressam o valor dos julgamentos dos seus autores

sobre problemas morais ou eacuteticos por meio da retoacuterica do louvor ou do

vitupeacuterio (laus e vituperatio) (Leushuis 2004 p 1287)

Aleacutem disso Querela pode ser traduzido por queixa lamento ou queixume mas

tambeacutem possui um sentido muito proacuteximo a vitupeacuterio ou reclamaccedilatildeo pois quem se queixa

vitupera reclama ou lamenta algo39

Verificou-se alguns trechos da declamaccedilatildeo que

apresentam traccedilos do gecircnero epidiacutetico como quando Erasmo empresta a voz para a Paz fazer

sua proacutepria exaltaccedilatildeo na primeira pessoa do singular (Queixa da Paz 18-21) Em outra parte

a Paz exalta-se a si mesma com o uso da terceira pessoa do singular ldquoCom tatildeo grande nuacutemero

39

Cf Gaffiot F Latin Dictionnaire Latin-Franccedilais Paris Hachette 2000 Voz Querela

80

de argumentos a natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela nos convida com tatildeo grande

nuacutemero de seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com tantos laccedilos e razotildeesrdquo (Queixa da

Paz 103-104) Erasmo tambeacutem utiliza o arqueacutetipo de Cristo como argumento para exaltaacute-la

(Queixa da Paz 203-222)

Em vaacuterios trechos a Paz se auto-elogia por meio de uma comparaccedilatildeo com Cristo a

fim de exaltar seu proacuteprio ecircthos e de associar-se a sua autoridade assim como agravequela de Davi

e Salomatildeo monarcas biacuteblicos que favoreceram Israel com a prosperidade gerada pela paz

Erasmo estabelece um contraste tiacutepico do gecircnero epidiacutetico que satildeo as vituperaccedilotildees agrave causa

contraacuteria sucessivas aos elogios agrave causa que se estaacute defendendo (Queixa da Paz 237-248)

Em outro excerto o paralelismo entre vituperaccedilatildeo e elogio eacute alternado Comeccedila-se

pela censura e passa-se ao encocircmio e vice-versa

Que os mortais desculpem com sua fraqueza o que quiserem mas se de fato

natildeo amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo entre si com batalhas

contiacutenuas Olhai para o Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que outra

coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o

cumprimento da paz ldquoa paz esteja convoscordquo e lhes prescreveu essa forma de

saudaccedilatildeo como a uacutenica digna dos cristatildeos Os Apoacutestolos natildeo se esqueceram

desses preceitos e recomendavam a paz em suas cartas e desejavam paz

agravequeles a que amavam de forma especial Escolhe coisa importante quem faz

votos pela sauacutede mas estaacute desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha

recomentado durante toda a sua vida nunca deixou de a recomendar Vede

com quatildeo grande solicitude a recomenda quando estava prestes a morrer

ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos tenho amadordquo E novamente ldquoeu vos

deixo a paz eu vos dou a minha pazrdquo (Queixa da Paz 259-268)

A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem pode ser vista como pertencente agrave espeacutecie do epidiacutetico

chamada lamentaccedilatildeo Tal fenocircmeno corre logo no exordium (Queixa da Paz 4-17)

Destacam-se no trecho supracitado alguns verbos que denotam a lamentaccedilatildeo deplorare e

deflendi sunt assim como a expressatildeo mea iniuria Esse formato de lamento ocorre em

vaacuterios trechos esparsos pela obra como o iniacutecio do primeiro argumento no qual Erasmo

defende que a guerra contraria a natureza humana (Queixa da Paz 30-31) Em um longo

periacuteodo a personificaccedilatildeo da Paz lamenta ou vitupera o fato de ter sido destruiacuteda pelos

homens inclusive pelos cristatildeos pois foi de fato destruiacuteda ldquoem toda parterdquo como se declara

no tiacutetulo da declamaccedilatildeo (Queixa da Paz 122-123) O lamento da Paz se volta contra os

governantes

81

Entretanto oacute coisa indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar sequer a

sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute fingido e simulado natildeo haacute nada que

natildeo seja corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por divergecircncias e

rivalidades ocultas No final natildeo encontro o trono da paz entre eles mas antes

eacute aiacute que mais estatildeo as fontes e origens de todas as guerras (Queixa da Paz

136-140 )40

A personificaccedilatildeo da Paz amplifica a lamentaccedilatildeo ao descrever suas decepccedilotildees junto a

diversas classes da sociedade os eruditos o clero secular e mesmo entre aqueles que mais

deveriam primar pela ldquoperfeiccedilatildeo da caridaderdquo ou seja que deveriam se destacar pela virtude e

pelo exemplo aos demais atraveacutes da vida humilde no interior de um convento (Queixa da

Paz 184-189)

A Paz natildeo encontrou seu lugar junto aos governantes nem junto agrave hierarquia

eclesiaacutestica dos altos graus ateacute os mais iacutenfimos Nota-se a decepccedilatildeo para com a estrutura

institucional da igreja Essa lamentaccedilatildeo ocupa consideraacutevel espaccedilo dentro da declamaccedilatildeo e

parece ser o objeto principal da queixa uma vez que outros setores da sociedade satildeo

mencionados em trechos comparativamente reduzidos como eacute o caso da destruiccedilatildeo da paz na

famiacutelia Esta vitupera com veemecircncia sobretudo contra os cleacuterigos bispos e papas como eacute o

caso de Juacutelio II os quais apesar do ofiacutecio eclesiaacutestico passaram para a histoacuteria como

guerreiros (Shaw 1993 p 15) Esse Papa havia inclusive conferido o estandarte da cruz aos

suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute (Queixa da Paz 520-540)

Tal recurso ocorre na peroratio construiacuteda por Erasmo na qual se evoca natildeo somente

o principado ou o sacerdoacutecio mas tambeacutem o povo (Queixa da Paz 867-888) Deve-se

pontuar contudo que sendo um texto escrito em latim em uma eacutepoca na qual grassava o

analfabetismo significaria uma exclusatildeo do povo Potanto a restriccedilatildeo do puacuteblico-alvo agravequeles

que sabiam ler natildeo exclui o apelo universal que a Paz se julga no direito de proferir Esta eacute

chamada a habitar em toda parte muito embora tenha sido injuriada e perseguida

213 Conclusotildees do capiacutetulo

No capiacutetulo segundo caracterizamos o gecircnero declamaccedilatildeo segundo Erasmo

definindo-o como um discurso fictiacutecio escrito em prosa com caraacuteter de exerciacutecio da

40

At o rem indignam apud hos nec umbram verae concordiae licuit cernere Fucata fictaque omniafactionibus

apertis clanculariis dissidiis ac simultatibus corrupta sunt universa Denique adeo apud hos non esse sedem paci

comperio ut hinc potius omnium bellorum fontes ac seminaria (Erasmo Queixa da Paz 136-140)

82

eloquecircncia cuja finalidade eacute simultaneamente educativa no sentido de ser formativa do ponto

de vista eacutetico ao aconselhar valores humanos condizentes com os ideais irecircnicos e literaacuteria

ao apresentar-se como um divertimento na medida em que procura comprazer o leitor atraveacutes

de formas elegantes e metaacuteforas que visam provocar o riso

Verificou-se que restaram ao menos onze declamaccedilotildees de autoria de Erasmo e que

algumas se assemelham ao diaacutelogo por apresentarem mais de uma personagem que emitem

discursos diretos reciprocamente direcionados As declamaccedilotildees erasmianas divergem das

senequianas e equiparam-se agraves gregas no sentido de que eram escritas integralmente ou seja

tal como haveriam de ser pronunciadas Em oposiccedilatildeo a estas estatildeo as controveacutersias de

Secircneca que eram redigidas de modo fragmentaacuterio e que possivelmente natildeo eram lidas em voz

alta da mesma forma que eram escritas muito embora tivessem a finalidade de exercitar a

actio entendida como o exerciacutecio da modulaccedilatildeo da voz tal como a declamaccedilatildeo mencionada

em Ciacutecero ou na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo

A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem apresentou traccedilos caracteriacutesticos de outros gecircneros antigos

retomados pelos humanistas tais como a oratoacuteria o espelho dos priacutencipes o panegiacuterico o

tratado moral a epiacutestola suasoacuteria e o diaacutelogo Aleacutem disso verificou-se que de modo

semelhante ao praticado nas declamaccedilotildees gregas os humanistas apresentavam elementos do

gecircnero epidiacutetico e deliberativo no primeiro caso haacute elogios agrave paz tanto em suas

autodescriccedilotildees como na enumeraccedilatildeo dos benefiacutecios que esta concede aos mortais mas

tambeacutem haacute trechos nos quais ela vitupera contra a guerra seus propugnadores e os vaacuterios

malefiacutecios desta sobre os homens em particular e sobre a sociedade Elogiar e vituperar

configuram-se entatildeo como traccedilos do gecircnero epidiacutetico no discurso irecircnico da Paz Contudo o

tema da paz eacute tiacutepico do deliberativo e alguns trechos apresentam uma forma de deliberaccedilatildeo a

favor de sua proacutepria causa apresentando os argumentos a favor da guerra somente na medida

em que satildeo imprescindiacuteveis para a confutaccedilatildeo ou o desaconselhamento

83

CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ

O presente capiacutetulo tem o objetivo de tratar da caracterizaccedilatildeo da prosopopeia realizada

na ldquoQueixa da Pazrdquo A partir da anaacutelise sobretudo do exordium da declamaccedilatildeo (1-29) e de

outras partes que se fizerem pertinentes o estudo visa a apresentar os traccedilos da personificaccedilatildeo

por meio de seu proacuteprio discurso uma vez que esta declamaccedilatildeo se caracteriza como um uacutenico

discurso o da Paz e natildeo apresenta qualquer narrativa introdutoacuteria em terceira pessoa

31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo

Para Erasmo a prosopopeia eacute o discurso de um ente humanizado uma personificaccedilatildeo

que estando longe ausente ou morta estabelece uma fala um discurso direto (De copia II

389-397) Sua definiccedilatildeo recupera a antiga tradiccedilatildeo retoacuterica presente em manuais e autores

renomados entre outros possiacuteveis exemplos como na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (IV 53 66) O

exemplo de Platatildeo como prosopopeia tambeacutem estaacute presente em Ciacutecero (Fin IV 22 61) Para

Erasmo uma prosopopeia deve parecer verossiacutemil aos leitores (De copia II 388-389)

Permite ademais tratar de assuntos seacuterios ou graves sobretudo quando simula o discurso da

paacutetria da natureza da repuacuteblica ou da proviacutencia Erasmo chega a citar as proacuteprias

ldquoCatilinaacuteriasrdquo e a locuccedilatildeo de Soacutecrates no diaacutelogo ldquoCriacutetonrdquo de Platatildeo para fundamentar seu

ponto de vista (De Copia II 389-405) Para ele a prosopopeia permite dar voz ldquomuitas vezes

aos proacuteprios deuses aos locais e a muitas coisas mudas com as quais ornamos o discursordquo (De

copia II 406-407) Conveacutem contudo consignar que Erasmo natildeo distingue entre uma

prosopopeia no sentido de uma pessoa ausente que toma a voz e uma personificaccedilatildeo

entendida como uma abstraccedilatildeo ndash como eacute o caso da paz ndash ou um objeto ou animal que

usualmente natildeo tem a habilidade da fala

32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas

Erasmo aleacutem de leitor tradutor e editor de escritos antigos tambeacutem era exegeta e

teoacutelogo e portanto dispunha para a invenccedilatildeo do corpus biacuteblico escrito em grego em pleno

periacuteodo heleniacutestico ou da sua versatildeo latina a ldquoVulgatardquo revisada por Jerocircnimo datada do

seacuteculo IV d C Sem duacutevida estas fontes contribuiacuteram para a forma de alguns trechos da

ldquoQueixa da Pazrdquo Em 1517 fazia cerca de um ano que ele havia publicado sua traduccedilatildeo para o

84

latim do Novo Testamento grego apoacutes um amplo trabalho de criacutetica dos manuscritos e

seleccedilatildeo das variantes possivelmente mais originais estabelecendo criteacuterios ainda hoje

utilizados nas ediccedilotildees criacuteticas de escritos antigos

No texto biacuteblico entre outras significativas personificaccedilotildees abstratas femininas tem-

se a ἀγάπη a caridade (Ad Corinthios I 134-13) e a Γσνὴ ἄθρων a mulher louca ou senhora

loucura (Proverbia 913-18) Destaca-se no ldquoLivro da Sabedoriardquo escrito por volta do seacuteculo

II a C no Egito o qual conteacutem a personificaccedilatildeo da sabedoria como uma mulher bela uma

matildee rica fonte de ciecircncia e ldquocriadorardquo de todas as coisas de uma forma semelhante agrave paz Ela

seria a antiacutetese da Loucura que seria a matildee de todas as maldades e contradiccedilotildees humanas O

autor biacuteblico imagina-se inclusive em desponsoacuterio com a sabedoria a qual se enamorou de

modo anaacutelogo a uma ninfa

A sabedoria eacute radiante e imarcesciacutevel Aqueles que a amam a contemplam

com facilidade e os que a procuram a encontram Ela se antecipa e se faz

conhecer aos que a desejam quem madruga por ela natildeo se cansaraacute pois a

encontraraacute sentada agrave sua porta Meditar nela eacute a perfeiccedilatildeo da prudecircncia e o

que vigia por sua causa logo se encontraraacute sem perigo Com efeito ela vai agrave

procura dos que a merecem nos caminhos mostra-se benigna e os precede em

cada pensamento Seu verdadeiro princiacutepio eacute o desejo da instruccedilatildeo empenho

da instruccedilatildeo eacute o amor e o amor a observaccedilatildeo das leis mas a guarda das leis eacute

a confirmaccedilatildeo da incorruptibilidade a incorruptibilidade verdadeiramente faz

estar proacuteximo de Deus Portanto o desejo de sabedoria conduz agrave realeza Oacute

tiranos dos povos se vos deleitais com tronos e cetros honrai pois a

sabedoria a fim de que reineis eternamente Anunciarei-vos o que eacute a

sabedoria e como ela se originou e natildeo vos esconderei os misteacuterios poreacutem

desde o iniacutecio de sua origem investigarei e farei manifesto o seu

conhecimento e natildeo me apartarei da verdade nem farei caminho com inveja

corruptora porque ela jamais comungaraacute com a sabedoria (Sapientia 6 12-

23)

Outra personificaccedilatildeo biacuteblica que certamente influenciou o caraacuteter amaacutevel da Paz seria

a caridade usada por Paulo autor explicitamente citado na ldquoQueixa da Pazrdquo em seis trechos

(169 215 710 712 735 835) Esta estaacute presente em uma de suas cartas redigidas

originariamente em grego koineacute Nota-se que a antiacutetese loucura-sabedoria utilizada por

Erasmo no ldquoElogio da Loucurardquo pode ter muito provavelmente sua origem ou inspiraccedilatildeo nos

escritos sapienciais biacuteblicos sejam veterotestamentaacuterios sejam paulinos A grande diferenccedila

contudo das ficccedilotildees de Erasmo para com aqueles textos consiste no uso da primeira pessoa

do singular numa estrutura de monoacutelogo no qual a personagem fala de si mesma e discorre

85

longamente sobre o tema em questatildeo abrangendo inclusive a totalidade do discurso e natildeo

somente alguns trechos

Na literatura biacuteblica aleacutem da primeira pessoa do singular verificam-se descriccedilotildees

dessas prosopopeias abstratas na terceira pessoa do singular o que eacute evitado no ldquoElogio da

Loucurardquo e na ldquoQueixa da Pazrdquo Esta seria a grande novidade que Erasmo proporcionou agrave

declamaccedilatildeo enquanto gecircnero antigo recebido no Renascimento (Chomarat 1981 p 940

Kennedy 1978 p 85) Ao comentar genericamente as personificaccedilotildees da Loucura e da Paz

Kennedy (1978 p 79) afirma que Erasmo ldquoincorporou usos da voz e intensidade que

romperam os limites da locuccedilatildeo e as proacuteprias barreiras linguiacutesticas transcendendo as

convenccedilotildees ciceronianas ou aacuteticas que no periacuteodo se procuravam associarrdquo Nesse sentido

rompeu os paradigmas biacuteblicos ao conceder a suas personificaccedilotildees simulaccedilatildeo de um discurso

direto de um monoacutelogo na integralidade do opuacutesculo Diferenciam-se inclusive dos diaacutelogos

presentes em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo com as personificaccedilotildees do amado e da amada embora

sejam apresentados em discursos diretos Estas tambeacutem se distinguem das declamaccedilotildees

erasmianas pois entatildeo em forma de diaacutelogo inclusive com a presenccedila de outros personagens

natildeo protagonistas e tais discursos diretos do casal natildeo ocupam a integralidade do livro

33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio

Se quanto agrave personificaccedilatildeo simulada a ldquoQueixa da Pazrdquo muito se assemelha a alguns

trechos biacuteblicos a forma de um monoacutelogo inteiramente atribuiacutedo a uma prosopopeia feminina

eacute encontrada poreacutem nos poemas elegiacuteacos das epiacutestolas que Oviacutedio escreveu e denominou

posteriormente como ldquoHeroidesrdquo Embora esta natildeo contenha personificaccedilotildees conveacutem aqui

consideraacute-la Trata-se de uma coleccedilatildeo de vinte e uma cartas de amor escritas e dirigidas a seus

amados por personagens femininas da mitologia e da literatura com exceccedilatildeo de trecircs cartas

que satildeo dirigidas por homens agraves suas amantes A ausecircncia o esquecimento a distacircncia o

abandono ou a perda funcionam como pontos de partida para que as heroiacutenas dediquem cartas

e se lamentem dos seus amores insatisfeitos por diversas causas As heroiacutenas procedem de

diferentes mitos e gecircneros literaacuterios como os poemas homeacutericos a trageacutedia a liacuterica a eacutepica

entre outros Oviacutedio adapta as personagens femininas agrave sua sensibilidade elegiacuteaca com a qual

desenvolve o tema do amor por exemplo na epiacutestola de Peneacutelope a qual expressa em sua

carta a Ulisses sentimentos amorosos (Heroides 1) apenas esboccedilados na ldquoOdisseiardquo Soto

86

(2012 p 52) nota que Oviacutedio caracterizou as amantes e concubinas de forma mais atraente e

beneacutevola que a empregada para descrever as esposas que muitas vezes causavam problemas

aos seus esposos Esta ideia contrariava frontalmente a moral de Augusto que visava por

meio de decretos a proteger os ldquobons costumesrdquo na sociedade romana Soto (2012 p 51)

tambeacutem nota que as personagens mitoloacutegicas caracterizadas por Oviacutedio correspondem mais agraves

mulheres do seu tempo do que agraves proacuteprias narrativas mitoloacutegicas Ao comentar as ldquoHeroidesrdquo

observa Margolin (1971 p 224 nota 8) os discursos diretos ldquoaplicam as liccedilotildees de retoacuterica

que ele [Oviacutedio] teria recebido junto aos mestres Aureacutelio Fusco e Porcio Latro Oviacutedio natildeo

procura nelas a verossimilhanccedila histoacuterica Elas pertencem agrave tradiccedilatildeo das suasoriaerdquo

Verificaram-se referecircncias de Erasmo agraves ldquoHeroidesrdquo nos ldquoAdaacutegiosrdquo no ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo

(p 42 ll 538-543) e no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo eacute justamente no trecho desta terceira

obra cujo subtiacutetulo Peculiaris epistolae character em que Erasmo trata da caracterizaccedilatildeo das

personificaccedilotildees que se deu a referecircncia agraves ldquoHeroidesrdquo agraves quais natildeo hesitou em chamar de

ldquopequenas declamaccedilotildeesrdquo (declamatiuncula) (De conscribendis epistolis p 224 ll 5-10)41

Em algumas das ediccedilotildees revisadas pelo autor o exordium da declamaccedilatildeo irecircnica de

Erasmo eacute precedido pela indicaccedilatildeo da pessoa que fala no monoacutelogo declamatoacuterio pax

loquitur Esse subtiacutetulo visa a salientar que a declamaccedilatildeo seraacute feita pela proacutepria Paz que

personificada se queixa lamenta ou manifesta sua inconformidade com a injusta perseguiccedilatildeo

que os homens fazem contra ela embora ela por sua natureza beneacutevola seja capaz de

comunicar aos homens todos os bens naturais e sobrenaturais individuais e coletivos Eis

assim que a ldquoQueixa da pazrdquo se tornaraacute como o proacuteprio Erasmo mais tarde afirmou o

ldquoEpitaacutefio da Pazrdquo tatildeo rejeitada ao longo da Histoacuteria e sobretudo naquele iniacutecio do seacuteculo

XVI (na Epiacutestola a Joatildeo Botzheim) Trata-se de um traccedilo de ligaccedilatildeo com a elegia que teve

iniacutecio como canto fuacutenebre O uso da personificaccedilatildeo se baseava no princiacutepio defendido pelo

roterdamecircs ldquoa personificaccedilatildeo eacute variaacutevel de diversas formas o escritor pode selecionar a que

deseja que se deve fazer Assim como eacute o homem assim deve ser sua accedilatildeordquo (De Copia I

13) Esta teoria remonta agrave construccedilatildeo de caracteres (ἦθος) jaacute presente nas poeacuteticas de

Aristoacuteteles (Poeacutetica 6 12-15) e Horaacutecio (Ars Poetica 153-178)

41

Margolin (1971 p 253 nota 6) tambeacutem visualizou uma referecircncia indireta agraves heroidas no seguinte trecho ldquoIn

hoc argumenta poterit et illud admoneri blandiorem oportere flngi epistolam quam adolescens adolescenti

congerro congerroni amans scrihit amantirdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 253 ll 5-7) como tambeacutem

no seguinte trecho ao se falar do retorno de Ulisses agrave proximidade de Peneacutelope descrita nas Heroidas de Oviacutedio

ldquoQuum ad vxores ventum est tum jiunt seneserdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 269 l 17)

87

34 Personificaccedilotildees femininas

Chomarat (1981 p 1000) afirma que a personificaccedilatildeo da Paz possui duas

caracteriacutesticas essenciais eacute feminina e abstrata Isso natildeo somente porque pax em latim eacute um

substantivo feminino mas por sua proacutepria caracterizaccedilatildeo por Erasmo Aristoacuteteles apontou que

haacute caracteres adequados e distintos agrave personificaccedilatildeo masculina e agrave feminina ldquosem duacutevida

existem caracteres viris entretanto a coragem desta espeacutecie de caracteres natildeo conveacutem agrave

natureza femininardquo (Poeacutetica 15 4) Se o Estagirita aponta a coragem como um elemento

proacuteprio ao homem para Mendelson (1994 p 94) Quintiliano recomendava que a actio

considerasse no caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava e em seu auditoacuterio alguns fatores

relevantes como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade sexo idade partido e

acima de tudo seu caraacuteter moral (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 37-38) Tambeacutem no ldquoDe copiardquo

(II 384-389) ele se refere agrave consideraccedilatildeo do gecircnero da pessoa que emite o discurso Deste

modo verifica-se que o recurso agrave caracterizaccedilatildeo do feminino eacute um fator relevante dentre as

estrateacutegias de persuasatildeo exploradas por Erasmo ao personificar a Paz como uma saacutebia e

compassiva mulher (Spierling 2008 p 119) que se dirige a todos os mortais para convencecirc-

los das vantagens individuais e sociais da paz apresentando razotildees naturais tais como a

incompatibilidade entre a natureza e a guerra e as consequecircncias inconvenientes da guerra no

plano poliacutetico e soacutecio-econocircmico Do ponto de vista religioso a guerra natildeo corresponde ao

ideal da cavalaria medieval e da propagaccedilatildeo da feacute Erasmo denuncia a incoerecircncia com a

doutrina cristatilde por parte de bispos e pregadores agentes da guerra ainda que por motivos

ldquojustosrdquo ou ldquosantosrdquo mas muitas vezes insignificantes

Embora a personificaccedilatildeo erasmiana natildeo seja uma prosopopeia feminina isto eacute

representasse a ficccedilatildeo de uma mulher ldquoem concretordquo ndash como encontramos nas ldquoHeroidesrdquo ndash

mas sim de uma abstraccedilatildeo ou alegoria como no caso da paz ou da loucura ou por exemplo

como encontramos em Ciacutecero ao atribuir uma voz agrave paacutetria e agrave repuacuteblica no iniacutecio das

ldquoPrimeiras Catilinaacuteriasrdquo (718 11 27) eacute justamente nesse ponto entre outros que

encontramos mais uma inovaccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana

Erasmo escreveu vaacuterias de suas obras tendo a figura da mulher dentro do contexto do

matrimocircnio seja na fase anterior (virgens) durante este (casadas) ou posterior (viuvez) tais

como o ldquoElogio do matrimocircniordquo (1518) o ldquoPretendentes e meninasrdquo (1523) o ldquoVirgem

misoacutegamardquo (1523) o ldquoVirgem penitenterdquo (1523) o ldquoEsposa mempsigama ou casamentordquo

88

(1523) e alguma trechos do ldquoInstituiccedilatildeo do matrimocircnio cristatildeordquo (1526) Sua declamaccedilatildeo

ldquoElogio do matrimocircniordquo e o seu tratado sobre a viuvez assim como vaacuterios de seus coloacutequios

lidam com a virgindade o namoro o casamento a criaccedilatildeo de filhos e a viuvez (Chomarat

1981 p 894) assuntos que tocam diretamente em questotildees da relaccedilatildeo entre os gecircneros

masculino e feminino Sowards (1982 p 88) apresenta alguns pontos especiacuteficos na

concepccedilatildeo erasmiana acerca da mulher a necessidade de lhes prestar a educaccedilatildeo em

conformidade com os humanistas italianos que julgavam ser esta essencial para uma formaccedilatildeo

moral que preserve a virgindade preacute-matrimonial aleacutem disso compreendia a liberdade da

mulher na escolha do cocircnjuge Este enfoque em questotildees de castidade deve-se agraves discussotildees

acerca da exaltaccedilatildeo do celibato sobre ao matrimocircnio que Erasmo confuta promovendo um

elogio e uma suasoacuteria do matrimocircnio (Leushuis 2004 p 1287-1307) Se de um lado a Paz

se reveste dos caracteres femininos Erasmo tambeacutem cita uma frase paulina afirmando que

natildeo se pode fazer distinccedilatildeo ldquoentre grego e baacuterbaro entre homem e mulherrdquo onde se nota

abertura para a consideraccedilatildeo de certa igualdade entre os gecircneros ldquoA partir daiacute natildeo haacute mais

servos e homens livres baacuterbaros e gregos homens e mulheres mas todos satildeo o mesmo em

Cristo que tudo conduziu agrave concoacuterdiardquo (Queixa da Paz 369-370)

Em alguns trechos escritos por Erasmo haacute a transcriccedilatildeo de alguns estereoacutetipos do sexo

feminino

O sexo feminino eacute afligido por dois viacutecios Elas vivem para agradar na

aparecircncia Este desejo eacute originaacuterio na vangloacuteria Segundo elas natildeo podem

tolerar injuacuterias e satildeo propensas agrave vinganccedila Isso se deve agrave fraqueza dos seus

intelectos e agrave sua ignoracircncia para com a verdadeira nobreza Uma mente

realmente nobre releva a injuacuteria Ademais como a mulher eacute levada pelas

emoccedilotildees elas medem a honra pelos padrotildees exteriores e natildeo podem tolerar ser

superadas nessas mateacuterias (Epistola V p 704 F-5A)

Se Erasmo afirma a ldquopeculiar inconstacircncia da mulherrdquo (De Copia II 758)

reconheceo mesmo em relaccedilatildeo agrave crianccedila ao povo e inclusive ao proacuteprio homem Para

Rummel (1996 p 4) o holandecircs reproduz em seus escritos os defeitos dos estereoacutetipos

masculino e o feminino Os homens satildeo como feras mas como estatildeo no controle patriarcal

satildeo mimados facilmente enganados A mulher eacute rancorosa vatilde ignoacutebil atrasada

intelectualmente e manhosa mas tal leitura do texto conforme a proacutepria autora claramente se

propotildee a explicar deve ser entendida no gecircnero proacuteprio dos textos erasmianos sobre o

matrimocircnio que abordam os dois lados da questatildeo embora tais estereoacutetipos sejam por vezes

refutados logo em seguida por ele Leushuis (2004 p 1288) tambeacutem constata que as

89

declamaccedilotildees erasmianas que tratam do casamento apresentam probatio e confutatio a favor da

instituiccedilatildeo Entretanto apesar do comprometimento de Erasmo para a defesa do matrimocircnio

o autor submetido agrave forma do gecircnero natildeo deixa de apresentar por exemplo em uma carta de

genere dissuasorio uma lista de argumentos teoloacutegicos contra o matrimocircnio como a

virgindade e o celibato como meios de felicidade e o desejo sexual como pecado assim como

alguns prejuiacutezos do contato entre os gecircneros Se o matrimocircnio eacute uma armadilha a mulher

seria um ser trapaceiro que envolve o noivo em seus laccedilos (2004 p 1288) mas conveacutem

entender tais afirmaccedilotildees como os argumentos que Erasmo pretende refutar a ponto de aleacutem

do elogio agrave beleza agrave gentileza das francesas e a Margareth More nos proacuteprios escritos sobre o

matrimocircnio a mulher tambeacutem ser apresentada como mais do que uma companheira

agradaacutevel

O que eacute pois mais doce do que viver com uma mulher com quem tu estaacutes

mais intimamente ligado natildeo apenas pelos laccedilos de afeto mas tambeacutem pela

uniatildeo fiacutesica Se tirar o grande deleite espiritual da bondade dos outros

parentes proacuteximos e conhecidos como eacute muito mais agradaacutevel ter algueacutem com

quem compartilhar os sentimentos secretos do coraccedilatildeo com quem tu podes

falar como consigo mesmo Com essa lealdade obtens seguranccedila com quem

conduz as tuas fortunas como proacuteprias Que felicidade existe na uniatildeo de

marido e mulher Em comparaccedilatildeo com isto naotilde existe nada maior nem mais

duradouro em toda a natureza Enquanto estamos ligados com os nossos

outros amigos pela benevolecircncia do espiacuterito com uma esposa estamos unidos

pelo maior carinho pela uniatildeo fiacutesica pelo viacutenculo do sacramento e pela

partilha comum de todas as fortunas (De conscribendis epistolis Collected

Works Erasmus 25 p 139)

Basta ler o exordium da ldquoQueixa da Pazrdquo para a clara percepccedilatildeo de que o feminino

caracterizado pelo roterdamecircs se coaduna com uma visatildeo positiva da mulher e natildeo com o

estereoacutetipo negativo utilizado por ele nas confutaccedilotildees retoacutericas de alguns trechos de seus

escritos Dificilmente se podem esperar demonstraccedilotildees inequiacutevocas sobre questotildees

complexas como o papel da mulher de um homem que afirma que ldquoassuntos humanos

podem tomar tantas formas que respostas definitivas natildeo podem ser fornecidas para todos

elesrdquo (Rummel 1996 p 12 Terpstra 1997 p 696) Margolin (2000 p 10) com argumentos

anaacutelogos demonstra como os elogios e as criacuteticas agrave mulher presentes nos escritos de Erasmo

natildeo podem ser inferidos como seu ldquopensamento expliacutecitordquo devido agrave transposiccedilatildeo do eu

discursivo para uma personificaccedilatildeo diversa do autor e que era proacutepria do gecircnero literaacuterio por

ele utilizado

90

Entretanto estas afirmaccedilotildees ao levarem em conta apenas os escritos sobre o

matrimocircnio e a personificaccedilatildeo da Loucura podem natildeo ter explicitado a caracterizaccedilatildeo do

feminino presente na ldquoQueixa da Pazrdquo que apresenta exatamente as qualidades contraacuterias ao

estereoacutetipo dos defeitos da mulher a Paz eacute amorosa saacutebia sublime intelectualmente superior

aos homens e delicada Eacute a mulher perfeita que oferece a si mesma para o benefiacutecio da

humanidade Ela eacute imortal face aos homens mortales Representa a mulher em seu esplendor

conforme os criteacuterios do que era considerado belo naquele contexto histoacuterico Veremos

ademais que aleacutem de mulher a Paz figura de um modo tatildeo elevado que mais se assemelha a

uma ninfa ou a uma deusa embora mantenha seus caracteres femininos segundo os moldes

predominantes no seacuteculo XVI adaptando seu ecircthos ao que o puacuteblico espera de quem

argumente sobre ela Sloane (2004 p 113) ao comentar os antigos fundamentos retoacutericos

para os autores do Renascimento escreveu

Em termos retoacutericos a questatildeo gira em torno do ecircthos ou seja os meios pelos

quais um falante ou escritor projeta uma autoimagem Eacute bem sabido que a

absorccedilatildeo com a retoacuterica ndash uma arte sobre a qual os pagatildeos como Ciacutecero

tinham muito a dizer ndash eacute uma das marcas do humanismo renascentista Ecircthos

identidade ou individualidade eacute um princiacutepio fundamental da retoacuterica E

caraacuteter por sua vez foi um dos principais temas do proacuteprio Renascimento um

periacuteodo em que personalidades altamente individualizadas colocaram seu selo

sobre as maravilhas artiacutesticas e intelectuais da eacutepoca O Renascimento foi um

tempo por outro lado em que a autoconstruccedilatildeo tornou-se possiacutevel em que o

passado e a linhagem se tornaram um pouco menos funcional ou louvaacutevel do

que a identidade que cada um era capaz de forjar para si mesmo

Autoconstruccedilatildeo bem como o ethos capturou a imaginaccedilatildeo dos leitores ndash por

meio de peccedilas de prosa curtas chamadas ldquocaraacuteteresrdquo atraveacutes das ldquoCaraacuteteresrdquo

receacutem-impressas de Teofrasto atraveacutes da retoacuterica revivida de Aristoacuteteles com

sua descriccedilatildeo de vaacuterias personagens que o orador pode encontrar em sua

audiecircncia Como estes uacuteltimos exemplos indicam ecircthos em particular teve

uma aplicaccedilatildeo praacutetica e comunicativa (Sloane 2004 p 113)

O discurso de uma personagem feminina natildeo ocupa somente algumas partes do

discurso como em algumas das antigas declamaccedilotildees mas de modo semelhante agraves ldquoHeroidesrdquo

ocupam a totalidade do discurso O discurso inteiro ao menos no ldquoElogio da Loucurardquo e na

ldquoQueixa da Pazrdquo satildeo caracteriacutesticos de uma personificaccedilatildeo feminina Vejamos agora por

meio de alguns trechos do discurso como a Paz se caracteriza como ela delineia seu proacuteprio

ecircthos retoacuterico

Jaacute no exordium (Queixa da Paz 18-21) percebe-se natildeo somente a divindade e o

feminino mas tambeacutem o exerciacutecio das tiacutepicas funccedilotildees maternas ldquofonte progenitora

91

aleitadora fomentadorardquo Note-se que natildeo somente substantivos e adjetivos deste gecircnero satildeo

utilizados para a caracterizaccedilatildeo da paz O discurso estaacute coerente com o caraacuteter feminino

sobretudo pela atribuiccedilatildeo da maternidade mais especificamente com o ato de amamentar ou

nutrir assim como o ato de tutelar ou cuidar que naquele tempo era praticado quase

exclusivamente pela figura feminina dentro da estrutura familiar tiacutepica da Antiguidade Se o

uso de substantivos com a terminaccedilatildeo trix pertence ao gecircnero feminino nos substantivos

utilizados por Erasmo nota-se ademais o campo semacircntico da maternidade Essa Paz se volta

ao homem suplicante pelo dom da concoacuterdia demonstrando como ela nutre alimenta protege

e enriquece o homem que eacute tratado como uma espeacutecie de filho pequeno lactente e

dependente A Paz de Erasmo eacute pois uma verdadeira matildee Esta tambeacutem eacute sedutora

perspicaz argumentiva o que se coaduna exatamente com a finalidade da retoacuterica persuadir

Os trechos que elevam o feminino contrastam com oque vitupera o masculino Se este

eacute honrado lento forte reflete o antigo ideal medieval de cavalaria ou mesmo da

combatividade masculina dos antigos heroacuteis da Greacutecia e de Roma Erasmo poreacutem ironiza

essa espeacutecie de honradez que defende ideal da guerra Afronta demonstrando que a

masculinidade atrelada ao heroiacutesmo agravada pelo fato de ser praticada por homens jaacute

maduros estaacute ligada a um caraacuteter sanguinaacuterio contraacuterio agrave proacutepria natureza humana

essencialmente paciacutefica

Ateacute aquilo que outrora era consenso entre os pagatildeos de que natildeo se devia

cobrir os cabelos brancos com um elmo como diz o poeta esse costume hoje

entre os cristatildeos tornou-se motivo de louvor Para Nasatildeo eacute coisa infame um

soldado velho enquanto para estes ser um guerreiro septuagenaacuterio eacute algo

magniacutefico (Queixa da Paz 474-476)

Eacute justamente o contraacuterio do ideal de cavalaria das ldquoChansonsrdquo ou mesmo da ldquoMorte

do Lidadorrdquo de Alexandre Herculano entre outras manifestaccedilotildees ideoloacutegicas presentes na

literatura do Romantismo o idoso ldquohonradordquo pelo fato de ir agrave guerra apesar da idade O

combatente idoso eacute aqui uma figura indigna merecedora de saacutetira ou vitupeacuterio Jaacute a Paz eacute

caracterizada como matildee procura proteger seus filhos os mortais pois ldquonatildeo haacute nada mais

infeliz para os homens do que ela [a guerra]rdquo (Queixa da Paz 25) Na terceira parte da obra

em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica grega (Retoacuterica 1360a) Erasmo desenvolve

argumentos de conveniecircncia econocircmica ou de honra para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia A

maternidade desta se exerce ao garantir o bom desenvolvimento da sociedade Voltaremos a

esse ponto ao tratarmos da Paz enquanto saacutebia e proficiente em assuntos praacuteticos como

92

economia poliacutetica e diplomacia Se de um lado esta eacute caracterizada como mulher deve-se

observar que a declamaccedilatildeo de Erasmo tambeacutem a caracteriza como uma divindade uma deusa

35 A deusa Pax

Para Ciacutecero (De natura deorum II 70) os deuses e deusas estavam caracterizados de

modo a representar as paixotildees e os temperamentos humanos Afrodite por exemplo era a

mais bela das deusas aquela que se deixa levar pelo amor pelo poder da beleza e pelos

impulsos da sexualidade (Ibid II 69) Perseacutefone eacute aquela atraiacuteda pelo mundo espiritual

misteriosa miacutestica que vivia dividida entre o mundo sensiacutevel e o superior e capaz de ser

macabra e ter pensamentos sombrios (Ibid II 66) Ceres eacute a deusa matildee que se deleita com as

crianccedilas exalta a geraccedilatildeo da vida de sentimentos emoccedilotildees e experiecircncias Eacute a deusa do

cereal a nutriz e a matildee (Ibid I 40) Juno seria a mulher do poder a irmatilde e esposa de Zeus

Ciumenta vinga-se em filhos de outras mulheres ou nos espectadores Embora estabeleccedila

relaccedilotildees de fidelidade e lealdade reage agrave frustaccedilotildees com ira e natildeo com depressatildeo (Ibid II

66) Vesta permanecendo virgem revela a mulher em um espiacuterito de integridade Atena

deusa da sabedoria e da vitoacuteria eacute praacutetica desinibida e segura (Ibid II 67) Diana a deusa

atleacutetica ama e protege a natureza (Ibid II 68-69) Nesse sentido a mitologia seria uma

espeacutecie de cataacutelogo de caracteres Essas paixotildees estavam em harmonia com os seus atos de

modo que muitas vezes imitavam as paixotildees humanas fossem as boas chamadas virtudes

fossem as maacutes chamadas viacutecios Assim as deusas possuiacuteam seu proacuteprio ἦθος (caraacuteter) Seu

ἦθος admitia as paixotildees e as accedilotildees harmocircnicas como preceituavam as normas das antigas

poeacuteticas (Aristoacuteteles Poeacutetica VI 12-15 Horaacutecio Arte Poetica 153-178) Van der Poel

(1987) concebe que os criteacuterios horacianos sobre a caracterizaccedilatildeo das personagens foram

influentes e determinantes nas declamaccedilotildees renascentistas

Observe-se entatildeo a deusa Pax correspondente agrave deusa grega Εἰρήνη Esta foi

reconhecida oficialmente como deusa no governo de Otaacutevio Augusto que edificou no

Campus Martius o templo chamado de Ara Pacis e outro chamado de Forum Pacis Desse

modo natildeo havia sido objeto de culto oficial no periacuteodo republicano Filha de Juacutepiter e da

Iustitia era representada com um ramo de oliveiras um cetro e uma cornucoacutepia siacutembolos

associados agrave primavera eacutepoca da florescecircncia da harmonia e da abundacircncia Nota-se que

Erasmo ao caracterizaacute-la em seu exoacuterdio parece ter claramente a figura dessa deusa greco-

93

romana em sua imaginaccedilatildeo sobretudo ao afirmar que nada floresce no mundo sem a proteccedilatildeo

da paz (Queixa da Paz 1-29) A imagem da cornucoacutepia torna-se evidente no seguinte trecho

ldquosem mim natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro

ou santo e nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20) Nos

antigos seu caraacuteter era descrito como gentil (Epigrama atribuiacutedo a Homero 15) doce (Greek

Lyric V Anonymous Fragmento 1021) administradora das riquezas da humanidade (Piacutendaro

Odes oliacutempicas 13 6ss) por fim a deusa da prosperidade (Virgiacutelio Georgicae 2 425ss) Agrave

Paz juntamente com a Justiccedila e a Lei cabe ldquovigiar as obras dos mortaisrdquo (Hesiacuteodo Teogonia

901-903) Como veremos mais detidamente Erasmo caracteriza a Paz ldquolouvada a uma soacute voacutes

pelos deuses e pelos homensrdquo (Queixa da Paz 17) ora como uma deusa ora como uma musa

ao modo antigo pois a pax fala se si mesma como necessaacuteria em relaccedilatildeo ao humano-

contigente (Queixa da Paz 20-21)

Aleacutem da relaccedilatildeo da deusa latina Pax com a grega Εἰρήνη a Paz conclama sua

audiecircncia como mortales entendido basicamente como uma forma de denominar a raccedila

humana mas que no contexto insinua uma oposiccedilatildeo a sua proacutepria imortalidade (Queixa da

Paz 259-260) Se os homens satildeo mortais a Paz os trata como tal afirmando-se como imortal

pois tal como na concepccedilatildeo antiga somente os deuses podem ser imortais (Ciacutecero De natura

deorum II 153) Outro exemplo desse lugar comum eacute encontrado em Saluacutestio que

costumava usar este vocaacutebulo para a diferenciaccedilatildeo dos homens em relaccedilatildeo agraves bestas e aos

deuses (Saluacutestio Bellum catilinae 1 5) Por outro lado haacute a concepccedilatildeo cristatilde predominante

no seacuteculo XVI de que somente as criaturas espirituais podem ser imortais tais como a alma

humana o ser angeacutelico e a essecircncia divina em conformidade com o cristianismo atraveacutes de

numerosas passagens do Novo Testamento (Cf Matheus 1028 Acta Apostolorum 227)

Quando Erasmo utiliza esta expressatildeo no contexto cristatildeo parece querer exaltar a

figura do que fala no caso da Paz uma vez que ao chamar aos homens ldquomortaisrdquo ela se

exclui desse conjunto e como a imortalidade eacute uma caracteriacutestica divina sugere os termos de

sua superioridade conferindo-lhe autoridade para invectivar de quem quer que seja ainda que

sejam altos dignitaacuterios eclesiaacutesticos ou mundanos Chamar de mortais seria entatildeo uma

maneira muito suave de entendecirc-la como dotada de uma autoridade divina A Paz toma o

papel da origem da benevolecircncia como ser divino que infunde sentimentos misericordiosos de

uns para com os outros tal como a divindade cristatilde Para isso utiliza a anaacutefora ldquosem mim

94

natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro ou santo e

nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20)

Desprende-se aleacutem disso em outro trecho a dependecircncia do homem apontada pela

pax A noccedilatildeo de contingente e necessaacuterio no cristianismo eacute anaacuteloga agrave do homem para com

Deus Se aquele depende da Paz ela eacute uma deusa Esta eacute quem faz florescer quem torna tudo

puro e santo quem torna qualquer coisa que ja agradaacutevel aos ceacuteus Natildeo sem razatildeo logo no

exordium esta atribui a si mesma a honra de ser louvada pelos deuses e pelos homens como

administradora dos bens celestiais e terrenos (Queixa da Paz 18-21)

A deusa Paz ousa tratar o proacuteprio Cristo como seu arauto ou mensageiro ldquoCristo fora

enviado por minha causa e tomava conta de mimrdquo (Queixa da Paz 240-241) Nesse ponto a

Paz afirma ter sido anunciada por Cristo Ao tomar a natureza divina usa a autoridade dele

para se dignificar pois os cristatildeos sobretudo em uma sociedade que ainda natildeo havia se

cindido com as variantes confessionais da Reforma acredita que Jesus era um ser

misteriosamente idecircntico e distinto de Deus Pai Este teria encarnado para anunciar o Pai mas

a Paz se afirma como anunciada por ele Esta se identifica entatildeo com o proacuteprio ser que

deveria ser anunciado Esta tambeacutem se apresenta com a missatildeo dele enquanto pacificadora e

mediadora pois o proacuteprio sacrifiacutecio da missa para ser bem aceito pela divindade deve ser

oferecido em seu nome

Quando ordena que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo seja

oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com o irmatildeo porventura natildeo ensina

abertamente que a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e que nenhuma

oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo for recomendada por mim (Queixa da

Paz 318-322)

Nota-se a insinuaccedilatildeo de referir-se ao sacrifiacutecio da missa e comparar o papel da Pax ao

de Cristo Justifica-se esse artifiacutecio no lugar da explicitaccedilatildeo clara e direta devido agrave

interpretaccedilatildeo que alguns cristatildeos costumavam ter em comparaccedilotildees com a pessoa de Cristo

considerada pela teologia catoacutelica como intocaacutevel e incomparaacutevel Insinuar sem afirmar era

necessaacuterio para proteger-se contra possiacuteveis invectivas de teoacutelogos aacutevidos de inuacuteteis e

rancorosas controveacutersias teoloacutegicas lamentadas pela Paz Em oposiccedilatildeo agrave supracitada

referecircncia a duas suasoacuterias senequianas (Suasoacuteria I II e IV) nas quais encontram as questotildees

da guerra e dos combatentes como sujeitos de uma causa honesta Diante da honorabilidade

da guerra natildeo eacute dimimnuiacuteda nem pelo poder do auguacuterio ou pela verdade de feacute Entretanto

95

Erasmo procura tratar a paz como uma causa honesta respandando-se na Biacuteblia contra

aqueles que querem a guerra Desse modo enfraque o argumento juriacutedico filosoacutefico e

teoloacutegico da ldquoguerra justardquo com o poder da retoacuterica

36 A Paz enquanto saacutebia

Natildeo eacute de se estranhar que em sua caracterizaccedilatildeo a Paz aleacutem de feminina e ldquodivinardquo

seja delineada como saacutebia De fato esta desenvolve os seus argumentos poliacuteticos em seu

proacuteprio favor Nota-se a amplitude de aspectos abordados por ela a fim de reforccedilar o

argumento tal como recomendava Aristoacuteteles na defesa de uma causa nos discursos

deliberativos

Quanto agrave paz e agrave guerra eacute preciso conhecer o poder da cidade quanta forccedila jaacute

tem e a quanta pode chegar a natureza das forccedilas que tem agrave sua disposiccedilatildeo e

as que pode acrescentar e aleacutem disso que guerras travou e como planejou Eacute

necessaacuterio saber estas coisas natildeo soacute sobre a proacutepria cidade mas tambeacutem sobre

as cidades vizinhas Eacute necessaacuterio ainda saber com que povos se pode esperar

fazer a guerra a fim de manter a paz com as mais fortes e fazer a guerra contra

as mais fracas Eacute tambeacutem necessaacuterio saber se os recursos militares da cidade

satildeo iguais ou desiguais aos dos vizinhos pois nisto tambeacutem pode ser superior

ou inferior Aleacutem disso eacute necessaacuterio ter estudado natildeo soacute as guerras da proacutepria

cidade mas tambeacutem as das outras em funccedilatildeo dos seus resultados pois de

causas semelhantes resultam efeitos semelhantes (Retoacuterica I 4 9)

Tais lugares comuns sugeridos por Aristoacuteteles e recorrentes em diversos autores

antigos satildeo utilizados pela Paz entre os quais destaca-se logo de iniacutecio o argumento que

ocupa a primeira sessatildeo segundo o qual os animais devem ser imitados como exemplo uma

vez que os homens providos de razatildeo natildeo se comportam como tal mas sim como se presume

dos irracionais (Queixa da Paz 45-50)

Se na Antiguidade a piedade para com os deuses era um lugar-comum uacutetil para defesa

de uma causa (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 8) Erasmo aplica tal recurso retoacuterico agrave cultura cristatilde

utilizando-se de referecircncias dos Evangelhos a Cristo como modelo a ser emulado (Queixa da

Paz 261-268) A Paz natildeo somente o relembra como exemplum mas traz elementos da histoacuteria

greco-romana a serem admirados pelos seus leitores a fim de evitar-se os conflitos armados

(Queixa da Paz 618-621) Partindo dos argumentos de natureza religiosa para os praacuteticos

esta ousa apresentar motivaccedilotildees econocircmicas a favor do irenismo completando assim sua

oniciecircncia acerca de vaacuterias aacutereas do conhecimento (Queixa da Paz 782-797)

96

A segunda estrateacutegia de Erasmo para caracterizar a pax como apta a aconselhar os

homens em seus negoacutecios poliacuteticos sobretudo em defesa de si mesmo seria que este eacute

violento contra sua proacutepria raccedila A sabedoria desta se demonstra tambeacutem pelos argumentos

deliberativos que estimulam accedilotildees concretas para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia e para evitar a

guerra Deve-se salientar ademais a proposta de um esquema jurisdicional entre os priacutencipes

europeus a fim de resolver conflitos dinaacutesticos territoriais e poliacuteticos (Rodrigues 2012 p

275-276)

Segundo Mack (1993 p 307-308) ao comentar o De Copia a analogia que eacute possiacutevel

identificar nos argumentos apresentados pela Paz em seu favor estaacute presente em alguns dos

paradigmas que Erasmo propocircs Colocaremos em paralelo esses meacutetodos com alguns dos

argumentos retoacutericos apresentados

Princiacutepio do De Copia 1 6 Ocorrecircncia na Querela

Apoacutes afirmar sumariamente

prosseguir com uma

explicaccedilatildeo mais ampla

(75A)

O tema do livro estaacute expliacutecito em seu tiacutetulo quando se fala

que a Paz foi rejeitada e perseguida em toda parte pelas

naccedilotildees Demonstra-se cada parte dessa proposiccedilatildeo ao longo

da Queixa da Paz

Enumerar singularmente as

causas do argumento (77A)

A Paz enumera as consequecircncias maleacuteficas da guerra e as

suas proacuteprias benesses como por exemplo ao confrontar o

incremento da cultura e da economia proporcionados por sua

influecircncia e o decliacutenio das duas durante a guerra

Perseguir as causas mais

elevadas (77C)

A Paz acredita que a guerra nasce nos coraccedilotildees humanos

atraveacutes da discoacuterdia dos interesses egosiacutesticos sobretudo de

certas classes mais influentes mas tambeacutem eacute sustentada com

argumentos incoerentes com a pietas cristatilde e o ensinamento

paciacutefico de Cristo

Enumerar as causas que

corroboram com o

argumento (77D)

A Paz enumera as diversas consequecircncias da guerra como o

estupro a peste a decadecircncia moral e econocircmica entre

outros mas tambeacutem enumera as benesses de sua lavra como

a ordem a tranquilidade a prosperidade e a concoacuterdia

universal

Propor e colorir com ricas Erasmo descreve coisas lugares pessoas e periacuteodos

97

descriccedilotildees a favor do

argumento (77E)

histoacutericos a fim de convencer seu leitor como por exemplo

ao descrever a Paz entre os animais ou na repuacuteblica romana

ou ainda entre os anjos ao passo que apresenta a guerra

entre os democircnios os eruditos e os religiosos assim como

se refere aos tempos de Roma ao passado proacuteximo da

guerra dos uacuteltimos doze anos entre outros

Incluir digressotildees quando

conveniente (77F)

Eacute possiacutevel identificar diversas digressotildees na declamaccedilatildeo

tais como sobre a natureza dos animais a legislaccedilatildeo de

sucessatildeo as consequecircncias econocircmicas entre outras

Amplificar argumentos

(77G)

A amplificaccedilatildeo tambeacutem eacute um recurso utilizado pela Paz

como no caso de citar os diversos animais que satildeo capazes

de viver em harmonia Erasmo tambeacutem amplifica o assunto

de Cristo Paciacutefico ao trazer agrave tona diversas passagens

irecircnicas atribuiacutedas a Cristo

A sabedoria da deusa Paz tambeacutem compreende a arte retoacuterica que atraveacutes da sua

declamaccedilatildeo tal como os antigos reacutetores apresenta seu discurso como um modelo de suasoacuteria

a favor da paz e vitupeacuterio contra a guerra

37 A Paz enquanto teoacuteloga

Erasmo utiliza argumentos teoloacutegicos na ldquoQueixa da Pazrdquo de forma separada e

complementar dedicando uma sessatildeo deles aos de origem biacuteblica e outra aos de inspiraccedilatildeo

antiga Hoffman (1994 p 227) defende a hipoacutetese de que ele tratava desses assuntos cristatildeos

inclusive com as antigas teacutecnicas retoacutericas

Nosso estudo sobre a hermenecircutica biacuteblica demonstrou como ele introduzia a

retoacuterica a serviccedilo da teologia Utilizava o meacutetodo alegoacuterico e tropoloacutegico de

forma a coordenar cristologia eclesiologia e eacutetica em um uacutenico caminho

humanista Seu meacutetodo exegeacutetico natildeo somente revela seus princiacutepios

hermenecircuticos mas tambeacutem sua teologia retoacuterica

Ele por exemplo coloca o ldquoCristo paciacuteficordquo como exemplo a ser seguido pelos

leitores Se este se diz cristatildeo deve zelar pela paz da mesma forma como Jesus o havia

recomendado aos seus disciacutepulos Nota-se poreacutem que no caso da Queixa da Paz o holandecircs

98

natildeo usa as passagens da Biacuteblia de modo a fazer uma verdadeira exegese como o realizou nas

diversas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos escritos antigos e biacuteblicos mas delimita alguns trechos para

defender o ponto de vista irecircnico refutando alguns passos sobretudo do Antigo Testamento

que servem de fundamento para seus opositores e de incocircmodo para seu argumento Eacute

justamente nesses pontos que a Paz estabelece uma confutaccedilatildeo (Queixa da Paz 253-259)

A Paz antepotildee o Deus dos judeus com o Deus dos cristatildeos como forma de refutar o

Antigo Testamento com passos do Novo comportamento que se insere no contexto mais

amplo como ponto inequiacutevoco da teologia cristocecircntrica de Erasmo de que natildeo trataremos na

presente dissertaccedilatildeo por tema e pertinecircncia Ele parte de uma expressatildeo tiacutepica das canccedilotildees

medievais de exortaccedilatildeo agrave ldquoguerra santardquo inspiradas em excertos do Antigo Testamento como a

referecircncia ao Deus dos Exeacutercitos (Queixa da Paz 224-236)

Erasmo natildeo discute diretamente a natureza da expressatildeo ldquoDeus dos Exeacutercitosrdquo Prefere

passar pela questatildeo sem aprofundaacute-la com longas digressotildees filoloacutegicas e teoloacutegicas como os

teoacutelogos costumavam fazer nas questotildees sobre a guerra justa ao discutir as passagens a favor

e contra a guerra presentes na Biacuteblia (Cf Isaiacuteas 3218 Salmo 1245 Salmo 1276 Gaacutelatas

616 Isaiacuteas 527) Chomarat (1981 p 938) aponta a necessidade de sobrevivecircncia no meio

poliacutetico e eclesiaacutestico no qual Erasmo atuava como erudito como motivo significativo para a

escolha de um gecircnero que poderia dar liberdade para falar sem ser censurado ou punido

embora as reaccedilotildees contraacuterias ao ldquoElogio da Loucurardquo mostrem que ele natildeo estava totalmente

imune Ao comentar a caracterizaccedilatildeo da personagem emissora do discurso Sloane (2004 p

116) afirma ldquotratava-se de algo como uma maacutescara para o autorrdquo

A personificaccedilatildeo da Paz tambeacutem seria uma espeacutecie de camuflagem para Erasmo pois

embora natildeo se saiba se Erasmo previa que os teoacutelogos se voltariam contra seu irenismo eacute

certo que apoacutes a publicaccedilatildeo desse escrito somado sem duacutevida aos acontecimentos e

polecircmicas posteriores contextualizados na Reforma ocorreram reaccedilotildees contra a ldquoQueixa da

Pazrdquo especialmente na Espanha e na Franccedila

No primeiro paiacutes Zuntildeiga teria encontrado trechos ldquoluteranosrdquo (Bataillon 2007 p

124) No que se refere ao segundo Telle (1978 p 35) aponta que esta declamaccedilatildeo irecircnica

reacendeu justamente a ceacutelebre controveacutersia teoloacutegica ldquoacerca de guerra justardquo atacada por

Erasmo e por outros teoacutelogos catoacutelicos (Ibid p 33) inclusive protestantes como Calvino

99

(Ibid p 36) e defendida pelos teoacutelogos e juristas da Universidade de Paris A polecircmica

chegou a tal ponto que a traduccedilatildeo francesa da Querela publicada por Chevalier de Berquin foi

censurada pela Faculdade de Teologia da Sorbonne em 1ordm de junho de 1525 (Ibid p 32) e

renovada em 1527 (Phillips 1971 p 247)

Natildeo era a primeira polecircmica de Berquin Antes de traduzir para o francecircs as obras de

Erasmo ele havia se dedicado agraves obras de Lutero (Bataillon 2007 p 153) Tambeacutem natildeo era a

primeira polecircmica de Erasmo com os teoacutelogos da Sorbonne pois jaacute havia disputado com estes

por ocasiatildeo das suas traduccedilotildees biacuteblicas (Rodrigues 2012 p 338) Natildeo se deve desconsiderar

ademais os inconvenientes poliacuteticos que a defesa da paz poderia fazer surgir com os priacutencipes

cristatildeos tais como Henrique VIII e Francisco I ciosos das incursotildees militares e ceacutelebres pelos

seus feitos guerreiros (Telle 1978 p 35)

Erasmo com sua ldquoQueixa da Pazrdquo entrava em conflito direto e em plena polecircmica

com teoacutelogos escolaacutesticos e com poliacuteticos influentes e beligerantes a ponto de se verificar a

condenaccedilatildeo sistemaacutetica da Universidade de Lovaina contra toda sua obra literaacuteria e a

mudanccedila de Erasmo para Basileia Suiacuteccedila (Moya Bedoya 2008 p 203) Se natildeo se pode

conceber que o roterdamecircs teria previsto as controveacutersias suscitadas pelos seus escritos

inclusive por uma de suas traduccedilotildees natildeo seria exagero afirmar que este expunha os priacutencipes

e sua hipocrisia de um modo incisivo convincente e em certos trechos satiacuterico

Deve-se por fim considerar que na Queixa da Paz Erasmo natildeo eacute um pacifista a

ponto de negar qualquer forma de conflito armado (Kinsella e Carr 2007 p 55-56) Sua

praacutetica de expor em seus escritos ldquoutramque partemrdquo ou seja os dois lados da questatildeo

(Remer 1994 p 313) como correu no caso da guerra entre os cristatildeos considerada cruel e a

guerra dos cristatildeos contra os turcos considerada justa aleacutem de muitos fatores sobretudo

quando este assume posiccedilotildees ldquohumanistas-cristatildesrdquo contribuiu para que sustentasse a fama de

vir duplex tal como o alcunhou Lutero (Weiler 1997 p 11)

Em termos teoloacutegicos pouca diferenccedila se verifica entre os teoacutelogos pregadores das

cruzadas contra o islatilde nos seacuteculos XII e XIII e alguns trechos do escrito de Erasmo que

argumenta acerca da oportunidade da guerra contra os turcos e da sua inconveniecircncia entre os

cristatildeos (Queixa da Paz 681-685)

100

38 A Paz enquanto viacutetima

Essa matildee zelosa saacutebia divina apresenta-se tambeacutem como viacutetima da guerra e do

instinto sanguinaacuterios dos homens Nota-se assim outra estrateacutegia de persuasatildeo sugerida pela

tradiccedilatildeo dos manuais de retoacuterica pois falar em primeira pessoa de seus proacuteprios males atrai a

compaixatildeo ou o amor dos ouvintes (Retoacuterica a Herecircnio I 8 2) Dessa forma o paacutethos

movido pela Pax no leitor eacute a piedade tal como Aristoacuteteles o explicava em sua ldquoRetoacutericardquo (II

8 2) ldquoa piedade consiste numa certa pena causada pela apariccedilatildeo de um mal destruidor e

aflitivo que afeta quem natildeo merece ser prejudicado que pode prejudicar-nos as noacutes mesmos

ou a algum dos nossos principalmente quando esse mal nos ameaccedila de pertordquo Eacute o que

transparece no exordium sobretudo no seguinte trecho ao estabelecer a antiacutetese entre o seu

amor e a maldade dos homens

E embora eu preferisse somente irar-me contra eles sou antes compelida a me

condoer deles a ter misericoacuterdia deles Eacute decerto desumano afastar de si

aquele que de alguma forma nos ama eacute ingrato hostilizar aquele que merece o

bem eacute iacutempio afligir a progenitora e servidora de todos (Queixa da Paz 8-11)

Aristoacuteteles (Retoacuterica I 12 1) tambeacutem afirmava que convinha que se caracterizassem

os injusticcedilados em primeiro lugar pelo fato de serem necessitados A paz eacute extremamente

necessaacuteria ao homem logo persegui-la se configura como injusto e digno de censura A

intenccedilatildeo seria natildeo somente produzir a piedade para com ela mas a indignaccedilatildeo contra quem

persegue e destroacutei aquela que a tantos beneficia Aristoacuteteles apresenta a indignaccedilatildeo como o

contraacuterio da piedade A primeira muitas vezes nasce da segunda pois quem se indigna contra

os reveses imerecidos tem piedade de quem imerecidamente foi prejudicado (Ibid II 9 2)

Logo no iniacutecio da primeira parte que trata do homem guerreiro como inferior agraves feras a Paz

retoma a estrateacutegia de apresentar-se como viacutetima a fim de mover o pathos da compaixatildeo dos

leitores e acrescenta em seu caraacuteter a capacidade de perdoar ldquoSe feras me desprezassem desse

modo eu o suportaria mais facilmente e atribuiria essa ofensa agrave natureza que inserira nelas

uma iacutendole selvagemrdquo (Queixa da Paz 31-32)

Apoacutes descrever longamente a onipresenccedila dos litiacutegios clericais inclusive entre os

religiosos que deveriam primar pela perfeiccedilatildeo dos conselhos evangeacutelicos a Paz chega ao

cuacutemulo de mostrar-se sem lugar para morar entre os homens como uma desabrigada e

desamparada em razatildeo da onipresenccedila da guerra

101

Mas pobre de mim Tambeacutem aqui verifico que a cidade estaacute totalmente

maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a tal ponto que quase natildeo se

pode achar uma uacutenica casa na qual exista um lugar para mim por alguns dias

Entretanto deixo de lado o povo que tal como o mar eacute arrebatado por seus

ardores e me recolho (Queixa da Paz 127-130)

Apela pois agrave clemecircncia do coraccedilatildeo humano Como viacutetima exige compaixatildeo e

procura convencer o homem atraveacutes de um discurso que move agraves emoccedilotildees sobretudo agrave

comiseraccedilatildeo ao atrair a simpatia expondo os proacuteprios males

39 Conclusatildeo do capiacutetulo

Erasmo inovou ao trazer para a declamaccedilatildeo uma personificaccedilatildeo feminina A Paz

poreacutem natildeo eacute somente caracterizada como uma mulher com as qualidades e defeitos

estereotipados nos escritos retoacutericos erasmianos que uma visatildeo simplista poderia taxar como

preconceituosa uma vez que reproduz uma valorizaccedilatildeo negativa da mulher Se eacute verdede que

Erasmo tambeacutem reproduz estereoacutetipos masculino com tons natildeo menos severos eacute certo de que

para ele o declamador deve estabelecer o caraacuteter da personagem que fala de um modo

adequado agraves expectativas da audiecircncia fictiacutecia e dos leitores reais a fim de que o discurso

cumpra a finalidade persuasiva que eacute proacutepria do gecircnero Sem a caracterizaccedilatildeo adequada

simultaneamente agrave audiecircncia e agrave personificaccedilatildeo a declamaccedilatildeo natildeo seria persuasiva pois iria

contrariar o princiacutepio retoacuterico da verossimilhanccedila

A Paz eacute abstrata feminina mais precisamente maternal mas tambeacutem eacute uma espeacutecie de

divindade Deve-se poreacutem considerar que sua caracterizaccedilatildeo como deusa natildeo contemplaria

as paixotildees tiacutepicas da mitologia greco-romana mas uma deusa sem defeitos como o Deus

cristatildeo Esta natildeo eacute somente anunciada por Cristo mas eacute capaz de disputar pela sua proacutepria

causa com todos os argumentos possiacuteveis e sugeridos pela antiga tradiccedilatildeo retoacuterica

Parafraseando Quintiliano a Paz entatildeo segue aquele ditame de ser uma ldquomulier divina bona

dicendi peritardquo Esta argumenta baseada em lugares comuns extraiacutedos da natureza (rerum

natura) da teologia biacuteblica e patriacutestica da economia da poliacutetica e de questotildees diplomaacuteticas

pertinentes no seacuteculo XVI como uma ldquoseguidorardquo daquele conselho de Ciacutecero segundo o

qual o orador deve ser proficiente tambeacutem nas leis na histoacuteria e na filosofia para bem

argumentar Aleacutem de saacutebia a paz eacute bondosa como uma deusa ao modo cristatildeo Configurada

como uma abstraccedilatildeo feminina a paz se dirige ao clero e aos priacutencipes com a autoridade de

uma deusa com a estrateacutegia feminina com a bondade de uma matildee com argumentos de uma

102

saacutebia com a piedade de uma teoacuteloga a fim de persuadir com autoridade suficiente a favor de

sua proacutepria causa Esta seria natildeo a doutrina escolaacutestica da ldquoguerra justardquo mas retoacuterica

humanista (erasmiana) da ldquopaz justardquo

103

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A presente dissertaccedilatildeo de mestrado teve por objeto de pesquisa o estudo da

declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em 1517 por Erasmo de Rotterdam Como resultado

foram apresentados um estudo introdutoacuterio sobre o gecircnero antigo declamaccedilatildeo sua recepccedilatildeo

no Renascimento e a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o portuguecircs brasileiro O texto

fonte utilizado foi extraiacutedo da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi Roterodami

Opera Omnia Amsterdam 1978)

Ao longo do estudo introdutoacuterio discorremos sobre a definiccedilatildeo e as principais

propriedades da declamaccedilatildeo Delineamos esse gecircnero discursivo como originaacuterio na Greacutecia

onde se chamava meleteacute recebido pelos latinos com o nome de declamaccedilatildeo Distinguimos

dois ambientes nos quais era praticada primeiro nas escolas de retoacuterica quando nos

manuais estava situada entre os uacuteltimos exerciacutecios das progymnaacutesmata caracterizado como

um treinamento da performance ou da pronuacutencia e a simulaccedilatildeo do discurso de uma

personagem histoacuterica ou mitoloacutegica segundo em reuniotildees sociais ou seja a praacutetica de

discursos fictiacutecios tambeacutem atribuiacutedos a personagens histoacutericas ou mitoloacutegicas em um

ambiente restrito e de niacutevel cultural e econocircmico elevado praticado por pessoas que jaacute tinham

o haacutebito da oratoacuteria puacuteblica seja judicial seja deliberativa a fim de exercitar-se ou mesmo

deleitar os convivas Tal praacutetica assemelhava-se ao haacutebito da recitatio na qual os antigos

divulgavam em leituras puacuteblicas a uma audiecircncia seleta novos escritos em prosa ou em

versos

Verificamos que nos dois ambientes nos quais se praticava a declamaccedilatildeo o principal

objetivo e desafio do gecircnero seria a caracterizaccedilatildeo adequada da personagem fictiacutecia

selecionada onde a representaccedilatildeo do ecircthos discursivo deveria adequar-se agrave personalidade agrave

ocasiatildeo ao tema agrave audiecircncia de modo que o discurso fosse maximamente persuasivo e

verossiacutemil Desse modo a principal figura de linguagem contemplada na declamaccedilatildeo seria a

prosopopeia

Quanto agraves personagens correntemente utilizadas nas antigas declamaccedilotildees

predominavam as masculinas muito embora tambeacutem se utilizassem as femininas conquanto

em posiccedilotildees inferiores ou subalternas Embora natildeo fosse usual a utilizaccedilatildeo de personificaccedilotildees

104

no sentido de abstraccedilotildees ou coisas que tomam a voz nota-se o uso de personagens femininas

em posiccedilatildeo de protagonista em discursos que ocupavam a integridade da obra nas ldquoHeroidesrdquo

de Oviacutedio muito embora estas natildeo pertencessem ao gecircnero declamaccedilatildeo mas ao epistolar

Tais dados foram significativos ao constatar esta adiccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana ao

apresentar uma personificaccedilatildeo feminina como remetente do discurso

Quanto ao uso de personagens histoacutericas como eacute habitual em vaacuterios gecircneros

discursivos natildeo era preocupaccedilatildeo primordial da declamaccedilatildeo a exposiccedilatildeo histoacuterica exata dos

eventos ou das pessoas mas sim a caracterizaccedilatildeo adequada e verossiacutemil das personagens

atraveacutes do discurso direto pois o objetivo natildeo era narrar a histoacuteria mas apresentar o discurso

adequado de determinado personagem para determinada audiecircncia segundo as sensibilidades

desta para com os estereoacutetipos jaacute consignados a respeito das prosopopeias selecionadas

Atestamos que a defesa dos dois lados contraacuterios da causa ou a escolha de apenas um

dos lados variou de acordo com a ocasiatildeo mas era costume apresentar os dois lados da causa

nas escolas de retoacuterica a fim de exercitar o aluno o que natildeo era predominante na declamaccedilatildeo

praticada pelos oradores mais experientes ou em algumas declamaccedilotildees escritas

Quanto agraves espeacutecies da declamaccedilatildeo constatamos a existecircncia de escritos em gecircnero

demonstrativo como elegias e panegiacutericos sobretudo em grego filosoacutefico praticados nas

escolas de retoacuterica deliberativo tambeacutem chamados de suasoacuterias e nos ambientes de discussatildeo

puacuteblica e na simulaccedilatildeo de temas tiacutepicos do gecircnero deliberativo por ocasiatildeo de temas

histoacutericos com a finalidade de suadir os cidadatildeos a optarem entre outros assuntos pela paz

ou pela guerra pelo aumento ou diminuiccedilatildeo de impostos e outras decisotildees de interesse

puacuteblico judicial tambeacutem chamados de causae ou controuersiae por simularem temas e

ocasiotildees proacuteprias dos tribunais

Ainda sobre a declamaccedilatildeo antiga percebemos que essa durante a transiccedilatildeo de regime

poliacutetico da repuacuteblica para o impeacuterio tomou paulatinamente o lugar da antiga oratoacuteria

tornando-se o gecircnero apropriado para a praacutetica da emissatildeo dos discursos em forma oral e

escrita

Os atuais corpora das declamaccedilotildees gregas e latinas mais amplos datam justamente do

periacuteodo imperial e foram escritos em latim e grego dependendo da localizaccedilatildeo dos seus

produtores assim Quintiliano Secircneca que viveram na parte latina escreveram sobre a

105

declamaccedilatildeo ou declamaccedilotildees nessa liacutengua ao passo que Plutarco Heacutelio Aristides Luciano de

Samosata Libacircnio de Antioquia e Coriacutecio de Gaza as escreveram em grego Portanto

embora as origens do termo e das referecircncias agrave declamaccedilatildeo contidas nos manuais de retoacuterica

remontem a periacuteodos anteriores as principais fontes da declamaccedilatildeo grega e a latina que

chegaram ateacute noacutes datam da eacutepoca imperial

A renovaccedilatildeo deste gecircnero durante o Renascimento estaacute diretamente relacionada agrave

recuperaccedilatildeo e reediccedilatildeo nos seacuteculos XV e XVI dos corpora antigos que continham

declamaccedilotildees ou que tratavam do gecircnero como eacute o caso da reediccedilatildeo do texto completo da

ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano em 1416 Tal recuperaccedilatildeo partiu do norte da Itaacutelia

primeiramente com Salutati e posteriormente com Lourenccedilo Valla A partir deste chegou ao

norte da Europa sendo praticada nos dois primeiros dececircnios do seacuteculo XVI por Erasmo e

More A partir desses dois humanistas sobretudo pela influecircncia do roterdamecircs foi utilizada

por outros contemporacircneos como Vives Cardano e Agrippa

O contato com as declamaccedilotildees antigas por Erasmo deu-se basicamente sob quatro

formas que classificamos natildeo necessariamente em ordem cronoloacutegica primeiro como leitor

no periacuteodo em que ainda era estudante de teologia ao ter conhecimento das obras que

tratavam a respeito como eacute as de Quintiliano e Ciacutecero (Chomarat 1981) segundo como

editor ao publicar em forma impressa as declamaccedilotildees de Secircneca o Velho terceiro como

tradutor ao transpor do grego para o latim algumas das declamaccedilotildees de Luciano Libacircnio e

Plutarco quarto como escritor ao publicar onze declamaccedilotildees tratadas explicitamente por ele

jaacute no tiacutetulo das obras ou classificadas por ele como tal em epiacutestola a Joatildeo Botzheim (1523)

entre as quais as mais ceacutelebres satildeo o ldquoElogio da Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo

A escrita desta natildeo foi posterior a novembro de 1516 e foi publicada em 1517 quando

Erasmo era conselheiro de Carlos V e residia em Lovaina Beacutelgica A obra foi dedicada ao

Abade Antocircnio van Bergen e foi possivelmente redigida a pedido do chanceler Joatildeo Sauvage

O evento histoacuterico proacuteximo que teria motivado a redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz

foram as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e por fim da

alianccedila franco-veneziana (1513-1516) cujos conflitos dispersos pela Europa tambeacutem

atingiam os locais de residecircncia ou frequentados pelo roterdamecircs

106

A caracteriacutestica mais marcante desta declamaccedilatildeo de Erasmo eacute que natildeo apresenta

qualquer introduccedilatildeo ou conclusatildeo narrativa como por exemplo costuma ocorrer em algumas

das declamaccedilotildees senequianas mas transcrevia o discurso direto emitido por uma

personificaccedilatildeo abstrata Trata-se de uma repeticcedilatildeo da praacutetica registrada no ldquoElogio da

Loucurardquo Natildeo haacute diaacutelogos no texto como aliaacutes eacute proacuteprio de uma declamaccedilatildeo entendida

geralmente como um monoacutelogo muito embora o roterdamecircs classificasse na epiacutestola a Joatildeo

Botzheim (1523) o diaacutelogo ldquoAntibaacuterbarosrdquo como uma declamaccedilatildeo ainda que este apresente

mais de uma personagem cada qual com vaacuterios discursos diretos reciprocamente

direcionados

A disposiccedilatildeo retoacuterica da obra segue a tradiccedilatildeo antiga quanto agrave estrutura baacutesica

proecircmio narratio confirmaccedilatildeo e epiacutelogo Mais especificamente podemos dividir a Queixa

da Paz nas seguintes partes com a numeraccedilatildeo correspondente (os nuacutemeros se referem agraves

linhas da jaacute mencionada ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo) proecircmio (προοίμιονexordium) (4-

29) Narratio (διήγηζις narratio) (30-112) a primeira parte trata da paz entre os animais (30-

112) a segunda parte descreve a destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) a confirmaccedilatildeo

(πίζηις probatio) cuja primeira parte apresenta o exemplo de Cristo paciacutefico modelo a ser

seguido pelos que se dizem cristatildeos (203-401) a segunda parte apresenta o exemplo dos

pagatildeos (402-435) a terceira parte argumenta como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo

prejudicados pela guerra (436-594) a quarta parte sugere accedilotildees para que o priacutencipe evite a

guerra (595-871) e por fim finaliza-se com o epiacutelogo constituiacutedo de vaacuterios vocativos

(επίλογοςperoratio) (872-918)

Em conformidade com a tradiccedilatildeo antiga das declamaccedilotildees senequianas notou-se a

utilizaccedilatildeo por Erasmo de sentenccedilas ao longo do discurso com o objetivo de tornar o texto

mais expressivo Quanto agraves fontes das sentenccedilas podemos classificaacute-las em trecircs grupos

primeiro as antigas como Platatildeo (9 e 551) Liacutevio (1-3) Homero (75) Oviacutedio (162) Siacutelio

Itaacutelico (210) Ciacutecero (218 e 758) Virgiacutelio (467 e 670) Plauto (764) Pliacutenio (57) Horaacutecio

(152) e Aristoacuteteles (391) segundo as citaccedilotildees de adaacutegios selecionados e remodelados pelo

roterdamecircs em sua proacutepria coletacircnea de ldquoAdaacutegiosrdquo (linhas 18 22 62 77 91 155 505 553-

556 803-804 866 e 906) terceiro as de origem biacuteblica e patriacutestica especialmente ao tratar de

Cristo Paciacutefico A versatildeo latina da biacuteblia citada ao longo da declamaccedilatildeo eacute a Vulgata de

Jerocircnimo

107

Em harmonia com Herding (1974 p 6) nota-se em algumas partes da obra

semelhanccedilas com o gecircnero espelho do priacutencipe e a repeticcedilatildeo de alguns argumentos irecircnicos jaacute

apresentados por Erasmo em escritos como o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInstituiccedilatildeo do

priacutencipe cristatildeordquo A semelhanccedila averiguada aleacutem da dimensatildeo temaacutetica (paz e guerra)

tambeacutem contempla o objetivo suasoacuterio de certas partes do discurso da paz ao dirigir-se ao

governante como quem pretende ensinar ou aconselhar baseado em valores eacuteticos tiacutepicos dos

humanistas colocando os interesses humanos acima de quaisquer outros princiacutepios Em

Erasmo mais especificamente satildeo evocados os princiacutepios cristatildeos tratados como perfeitos

muito embora ao longo do discurso a praacutetica apontada para os seguidores de Cristo natildeo seja

concorde com os valores cristatildeos elogiados pela Paz Ao que parece os proacuteprios argumentos

teoloacutegicos seguem esta finalidade ao omitir os argumentos biacuteblicos e filosoacuteficos favoraacuteveis agrave

guerra justa O texto sobrepotildee a vida humana acima de qualquer outro princiacutepio seja a honra

seja a proteccedilatildeo dos interesses dinaacutesticos ou estatais Inclusive os argumentos econocircmicos satildeo

alinhavados segundo esta finalidade de proteccedilatildeo do indiviacuteduo sobretudo o indefeso ao

mencionar explicitamente as possiacuteveis ofensas contra a mulher e os camponeses (povo)

Conveacutem ainda ressaltar que o humanismo erasmiano eacute essencialmente cristatildeo pois

fundamenta seus argumentos harmonicamente com as fontes biacuteblicas e patriacutesticas mas eacute

tenazmente contraacuterio agraves incoerecircncias para com a feacute e a eacutetica cristatilde por parte daqueles que mais

especialmente deveriam propagaacute-la ou praticaacute-la o clero e os governantes

A obra em estudo apresentou ainda traccedilos do gecircnero deliberativo o aconselhar

(suadere) o auditoacuterio (os priacutencipes e os cleacuterigos) a favor da paz e a evitar a guerra mas

tambeacutem algumas carateriacutesticas do gecircnero demonstrativo ou epidiacutetico ao elogiar a paz e

vituperar contra a guerra Tal constataccedilatildeo aproxima simultaneamente este escrito aos

panegiacutericos e algumas declamaccedilotildees escritas em grego pertences ao gecircnero demonstrativo e

agraves suasoacuterias senequianas especialmente as que tratam da paz e da guerra (Suasoacuterias I II e

IV) A mescla dos trecircs gecircneros discursivos (demonstrativo deliberativo e judicial) natildeo era

novidade e era mesmo reconhecida na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo uma vez que ateacute no gecircnero

judicial como se lecirc na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo era comum o orador vituperar contra os defeitos

morais do oponente ou elogiar as virtudes do seu cliente a fim de angariar a simpatia ou a

antipatia do juiz ou do juacuteri conforme o seu interesse

108

Quanto agrave personificaccedilatildeo da paz aleacutem de sua jaacute mencionada semelhanccedila com as

prosopoeias femininas das ldquoHeroidesrdquo verificamos ainda certa semelhanccedila com as

personagens femininas abstratas biacuteblicas da Sabedoria e da Loucura Poreacutem a Paz

caracterizada por Erasmo se diferencia destas por apresentar um discurso direto que ocupa a

integralidade do livro e natildeo somente uma parte diminuta Ademais a Paz se assemelha agrave

prosopopeiaa da amada presente em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo pelo fato de tambeacutem emitir

discursos diretos e ser protagonista do gecircnero feminino mas por outro lado se diferencia na

medida em que a amada dialoga com outras personagens ao longo do livro

Em relaccedilatildeo agrave Antiguidade a adiccedilatildeo verificada da declamaccedilatildeo erasmiana tanto no

ldquoElogio da Loucurardquo como na ldquoQueixa da Pazrdquo eacute a atribuiccedilatildeo da integralidade do discurso

direto a uma personificaccedilatildeo feminina Esta eacute caracterizada como matildee por nutrir os homens

como filhos como viacutetima de uma atroz perseguiccedilatildeo em toda parte como saacutebia que aconselha

os priacutencipes ao modo do gecircnero Espelho dos Priacutencipes a que conservem a paz e evitem de

todos os modos a guerra O discurso utiliza-se de argumentos filosoacuteficos como eacute o caso do

lugar comum segundo o qual se o homem eacute racional deve ser tatildeo ou mais paciacutefico do que os

animais os quais natildeo satildeo dotados de razatildeo e por consequecircncia de palavra Por outro lado

utiliza-se de argumentos teoloacutegicos biacuteblicos ao apresentar os exemplos de Davi Salomatildeo e

de Cristo Paciacutefico como modelos da opccedilatildeo pela paz proacutepria aos seguidores da religiatildeo cristatilde

A paz utiliza-se ainda de argumentos de ordem poliacutetica social e econocircmica primeiro no que

tange agrave poliacutetica eacute mantenedora da estabilidade do reino e da sucessatildeo hereditaacuteria monaacuterquica

assim como do livre tracircnsito entre as fronteiras dos paiacuteses europeus segundo no que diz

respeito aos aspectos sociais aponta a desestruturaccedilatildeo da vida da cidade por causa da

manutenccedilatildeo de um corpo de mercenaacuterios habituados agrave violecircncia junto a uma populaccedilatildeo

indefesa terceiro com argumentos de dimensatildeo econocircmica indica os diminutos gastos da

resoluccedilatildeo paciacutefica das controveacutersias interestatais em comparaccedilatildeo com o modo beacutelico e os

empecilhos naturais ao comeacutercio em situaccedilotildees de guerra ou siacutetio

A paz mostra-se assim como portadora do ideal da tradiccedilatildeo retoacuterica antiga recebida e

imitada no Renascimento ao caracterizar-se como aquilo a que poderiacuteamos chamar mulier

bona dicendi perita Ela utiliza-se dos diversos recursos retoacutericos proporcionados pela

declamaccedilatildeo especialmente a simulaccedilatildeo de um discurso fictiacutecio em formato de prosopopeia

para mover seus leitores a sentimentos e atitudes paciacuteficas Utiliza-se da comiseratio ao

109

colocar-se como viacutetima e evoca a injusta reaccedilatildeo dos homens para com seus inumeraacuteveis e

incontestes benefiacutecios O homem guerreiro contraria a razatildeo mostra-se sem compaixatildeo para

com seus semelhantes e contradiz a proacutepria essecircncia do cristianismo que apresenta o Priacutencipe

da Paz como ideal a ser seguido e imitado No caso dos detentores de influecircncia social como

cleacuterigos e eruditos a paz estimula que propaguem o ideal da paz Por fim ao dirigir-se aos

governantes propotildee a si mesma como o esteio mestre de uma poliacutetica proacutespera e humana

110

111

NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA

COMENTADA

Quinhentos anos depois da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 suas palavras

ecoam em pleno seacuteculo XXI com surpreendente atualidade Esta declamaccedilatildeo natildeo somente se

apresenta como um primor da recepccedilatildeo e da imitaccedilatildeo dos antigos claacutessicos Nela a

personificaccedilatildeo da paz lamenta contra a guerra e argumenta a favor de si mesma com aquele

estilo elegante irocircnico e incisivo de Erasmo Suas argumentaccedilotildees contemplam praticamente

todas as dimensotildees de relacionamento humano no interior do coraccedilatildeo humano na famiacutelia

nas relaccedilotildees interpessoais e entre os estados Se de um lado muitos pensadores jaacute discorreram

sobre a paz que tal a ouvirmos falar de si mesma Eacute exatamente este o grande presente que

Erasmo proporcionou aos seus leitores naquele iniacutecio do seacuteculo XVI e cuja primeira traduccedilatildeo

para o portuguecircs brasileiro o leitor tem em matildeos

Esta traduccedilatildeo estaacute precedida da carta-proecircmio de Erasmo a Felipe que foi publicada

juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo As notas parcas em extensatildeo e quantidade tecircm o objetivo

de esclarecer algumas variantes entre as ediccedilotildees expressotildees que remetem aos antigos

dificuldades de traduccedilatildeo e informaccedilotildees pertinentes sobre lugares adaacutegios e personagens

citados no texto natildeo evidentes para muitos leitores modernos Algumas destas referecircncias

foram baseadas nas notas da ediccedilatildeo criacutetica propostas por Herding (1977) nas notas das

traduccedilotildees publicadas por Margolin (1992) e Pinto (1999) e no estudo de Tunberg (1996) Os

comentaacuterios em nota estatildeo redigidos de forma que sejam explicativos para pessoas natildeo

especializadas nos estudos claacutessicos ou nas referecircncias histoacutericas ou eclesiaacutesticas utilizadas

por Erasmo em uma possiacutevel publicaccedilatildeo desta traduccedilatildeo O texto latino e a numeraccedilatildeo entre

colchetes das linhas contidas seguem a ediccedilatildeo criacutetica da presente na Desiderii Erasmi Opera

Omnia (IV-2 1977 p 59-101) Utilizamo-nos do dicionaacuterio de Gaffiot como material de

consulta aleacutem de outras traduccedilotildees da obra para outras liacutenguas conforme listamos na

bibliografia Esta traduccedilatildeo natildeo visa simplificar o texto de Erasmo a fim de adaptaacute-lo ao

mercado livresco O puacuteblico-alvo de nossa traduccedilatildeo assemelha-se agravequele do roterdamecircs ou

seja o leitor erudito em geral e ao acadecircmico em particular Nossa traduccedilatildeo visa ser o mais

fiel possiacutevel agrave declamaccedilatildeo Essa fidelidade ao gecircnero exige entatildeo o cuidado em relaccedilatildeo ao

niacutevel de linguagem utilizado a fim de manter natildeo somente a extensatildeo dos paraacutegrafos os

112

quiasmos e as anaacuteforas utilizadas mas tambeacutem as imagens retiradas da cultura claacutessica e

biacuteblica

113

Texto latino da ediccedilatildeo criacutetica

[1] Clarissimo praesuli traiectensi

Philippo Erasmo Roteramus S D

[3] Gratularer tibi Philippe

praesul non minus vitae ornamentis

quam summorum ducum imaginibus

clarassime quod tanti muneris honore sis

auctus ni compertum [5] haberem quam

invitus susceperis quamque gravate

optimi maximique principis Caroli

autoritate fueris adactus cuius alioqui

charitati nihil non eras daturus

[7] Atque haec ipsa res spem

nobis certissimam facit fore ut cum laude

perfungaris suscepto quandoquidem

Plato vir exquisitissimi planeque divini

iudicii non alios existimat ad

rempublicam gerendam idoneos quam

eos qui [10] huc nolentes pertrahuntur

[10] Auget autem nostram de te

fiduciam quoties in mentem venit et cui

tu succedas fratri et quo patre sitis ambo

profecti

[11] Nam David vir eruditus iuxta

ac prudens permultis annis sic locum

istum tenuit ut suis ornamentis

Traduccedilatildeo

Erasmo de Roterdam a Felipe Bispo de

Utrecht saudaccedilotildees43

Distinto como tu eacutes bispo Felipe natildeo

menos pelo esplendor da vossa vida do que pela

grande e principesca linhagem eu me

congratularia contigo o acreacutescimo do seu novo e

mais honroso cargo se eu natildeo soubesse com que

relutacircncia o assumiste e com que dificuldade

foste impelido (a isso) pela autoridade do melhor

e maior dos priacutencipes Carlos pelo qual sentes

tal afeiccedilatildeo que concordarias com qualquer coisa

Eacute justamente isso que nos deu a segura

esperanccedila de que tu desempenhes teu encargo

com louvor Platatildeo44

varatildeo de excelente e

preciso juiacutezo quase divino julgou que ningueacutem

eacute mais apto a governar um corpo poliacutetico do que

aqueles que satildeo chamados a atuar contra a sua

vontade

Ora aumenta nossa confianccedila em ti toda

vez que temos em mente as qualidades do irmatildeo

que sucedeste e o pai do qual ambos voacutes

procedestes

Pois Davi45

varatildeo igualmente erudito e

saacutebio pelos muitos anos manteve essa posiccedilatildeo

43

Felipe de Borgonha eacute um filho bastardo de Felipe o Bom (1396-1467)

44 Platatildeo Repuacuteblica 7520D Erasmo Institutio Principis Christiani ASD IV-1 p 152 I 514ss

45 Como o destinataacuterio um filho bastardo de Felipe o Bom duque da Borgonha que foi bispo de Utrecht de

1455 ateacute sua morte em 1496 Segundo a ediccedilatildeo criacutetica em algumas ediccedilotildees encontramos a seguinte variante

Nam David germanus tuus vir eruditus Tal lectio foi considerada menos original no aparato criacutetico

114

plurimum splendoris ac dignitatis

addiderit ipsi muneri per se licet

amplissimo multis modis magnus ac

suspiciendus sed in hoc praecipue [15]

salutaris reipublicae quod nihil ducebat

antiquius sibi pace publica hac quoque in

parte patrem Philippum Burguindiae

ducem referens virum nulla non re

maximum sed tamen pacis artibus cum

primis insigem et aeternae hominum

memoriae commendatum

[18] Qui tibi hoc etiam impesius

erit exprimendus non tantum ut filius

patri sed ut Philippus Philippo

respondeas

[20] Intelligit iam dudum tua

prudentia quid abs te populus universus

expectet [21] Triplex onus humeris

sustines patris exemplum ac fratris tum

horum temporum fata (quid enim aliud

dicam) nescio quomodo ad bellum

pertrahentia [23] Vidimus ipsi nuper ut

quidam amicis quam hostibus graviores

nihil intentatum reliquerint ne bellorum

aliquando finis esset rursus ut vix

expresserint alii qui [25] reipublicae

principique ex animo bene volunt ut

pacem cum Francis semper optanda

de tal modo que acrescentou por seus proacuteprios

meacuteritos a dignidade e o esplendor ao proacuteprio

ofiacutecio por mais prestigioso que ele fosse em si

mesmo que a si como grande e admiraacutevel

homem convinha com grande e largueza e

variedade mais salutar agrave Repuacuteblica sobretudo

por isto pelo fato de que pensou nada ser mais

importante do que a paz puacuteblica tal como

evocou o teu pai Felipe duque da Borgonha um

grande homem em todas as mateacuterias mas insigne

sobretudo pelas artes da paz e confiado agrave eterna

memoacuteria dos homens46

Deveraacutes tomaacute-lo como modelo de modo

que satildeo sejas [para ele] somente o que um filho eacute

para o pai mas que respondas a Felipe como

[outro] Felipe

Entende haacute muito tempo a tua prudecircncia

o que todo o povo espera de ti Carregas um

triplo peso nos ombros o exemplo do teu pai do

teu irmatildeo e os destinos destes tempos (o que

mais poderia eu dizer) natildeo sei como atraiacutedos

para a guerra Noacutes mesmos vimos ultimamente47

como alguns nada deixaram de tentar embora

sendo mais severos aos seus amigos do que aos

seus inimigos a fim de assegurar que a guerra

jamais tenha fim a dificuldade encontrada pelos

outros que sinceramente desejam o bem para a

sociedade e ao priacutencipe que deve perseguir a paz

46

O reinado de Felipe de Borgonha foi paciacutefico em certo grau mas acima de tudo por obter uma reconciliaccedilatildeo

com a Franccedila ao final da guerra dos cem anos

47 A composiccedilatildeo da Queixa da Paz estaacute relacionada agrave poliacutetica de aproximaccedilatildeo com a Franccedila e de paz universal

promovida por Chiegravevres e Joatildeo Sauvage que emanaram os tratados de Noyon (augusto de 1516) e Cambrai

(marccedilo de 1517)

115

hisce vero temporibus etiam necessariam

amplecteremur

[26] Cuius sane rei indignitas

movit animum meum ut tum Pacis

undique profligatae Querimoniam

scriberem quo nimirum hac ratione

iustissimum animi mei dolorem vel

ulciscerer vel lenirem

[29] Libellum ad te ceu

primitiolas novo episcopo debitas [30]

mitto quo diligentius tueatur tua

celsitudo pacem utcunque partam si non

patiar eam obliuisci quanto negocio nobis

costiterit Bene Vale

[1] QUERELA PACIS UNDIQUE

GENTIUM EIECTAE

PROFLIGATAEQUE

AVTORE DESIDERIO ERASMO

ROTERODAMO

[4] Si me licet immerentem suo

tamen commodo sic aversarentur

eiicerent profligarentque [5] mortales

meam modo iniuriam et illorum

iniquitatem deplorarem Nunc cum me

profligatam protinus fontem omnis

humanae felicitatis ipsi a semet arceant

para com a Franccedila a qual sempre deve ser por

noacutes abraccedilada especialmente nesses dias

A indignaccedilatildeo com essas coisas moveu

completamente o meu espiacuterito a fim de escrever

a queixa da paz perseguida em toda parte de

modo que por este meio poderia vingar ou

pacificar a justiacutessima dor do meu espiacuterito

Envio entatildeo esta pequena obra como

uma espeacutecie de primiacutecia devida ao nosso bispo a

fim de que Vossa Alteza possa ser mais diligente

para preservar a paz se natildeo permito esquececirc-la

quanto trabalho nos custou

Passe bem

Queixa da paz perseguida e rejeitada em toda

parte pelas naccedilotildees

De autoria de Desideacuterio Erasmo de Rotterdam

Se mesmo que natildeo merecendo48

os

mortais ainda assim de tal modo me

hostilizassem perseguissem e rejeitassem tendo

em vista sua proacutepria vantagem eu deploraria

apenas a minha injuacuteria e a iniquidade deles Mas

uma vez que eles tendo me rejeitado impedem a

si mesmos de saciar-se na fonte de toda

felicidade humana e se precipitam no mar de

48

Cf Terecircncio Hec 5 1 14 ldquoinscitum afferre iniuriam tibi immerentirdquo

116

omniumque calamitatum pelagus sibi

accersant magis illorum mihi deflenda

est infelicitas quam mea iniuria et quibus

irasci tantum maluissem horum dolere

vicem hos commiserari compellor Nam

utcumque amantem [10] ab se propellere

inhumanum est bene merentem aversari

ingratum parentem ac servatricem

omnium affligere impium Caeterum tot

egregias commoditates quas mecum

adfero sibimetipsis invidere proque his

ultro tam tetram malorum omnium

lernam accersere an non hoc extremae

cuiusdam dementiae videtur Sceleratis

irasci par est at sic furiis actos quid aliud

quam deflere possumus [15] Qui non

alio sane nomine magis deflendi sunt

quam quod ipsi sese non deflent nec alio

magis infelices quam quod infelicitatem

suam non sentiunt quando nonnullus

gradus est ad sanitatem morbi sui

magnitudinem agnoscere Etenim si ego

sum Pax illa divorum simul et hominum

voce laudata fons parens altrix

ampliatrix tutatrix rerum bonarum

omnium quas vel caelum habet ve (sic)

[20] terra si sine me nihil usquam

florens nihil tutum nihil purum aut

sanctum nihil aut iucundum hominibus

aut gratum superis si contra haec omnia

bellum semel omnium malorum quicquid

usquam est in rerum natura oceanus

todas as calamidades entatildeo devo lamentar mais

a infelicidade deles do que a injuacuteria contra mim

E embora eu preferisse somente irar-me contra

eles sou antes compelida a me condoer deles a

ter misericoacuterdia deles Eacute certamente desumano

afastar de si o que de algum modo nos ama eacute

ingrato hostilizar o que merece o bem eacute iacutempio

afligir a progenitora e servidora de todos

Ademais acaso natildeo parece ser de uma demecircncia

extrema isso de recusar para si mesmos as

vantagens tatildeo grandes que comigo trago e no

lugar delas invocar a tatildeo terriacutevel Lerna de todos

males Eacute justo irar-se contra os criminosos mas

que mais podemos fazer senatildeo lamentar aqueles

que agiram assim por causa das Fuacuterias Estes

certamente devem ser lamentados natildeo por outro

motivo senatildeo justamente porque natildeo lamentam a

si mesmos nem por outro lado haacute homens mais

infelizes do que aqueles que natildeo percebem sua

proacutepria infelicidade uma vez que reconhecer o

tamanho da proacutepria doenccedila eacute um passo para a

cura Se eu pois sou aquela Paz louvada a uma

soacute voz pelos deuses e pelos homens fonte

progenitora aleitadora fomentadora tutora de

todas as coisas boas que existem quer no ceacuteu

quer na terra se sem mim natildeo haacute nada que

floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute

seguro nada eacute puro ou santo e nada eacute alegre

para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteus se em

contrapartida a tudo isto uma uacutenica guerra onde

quer que esteja na natureza das coisas eacute uma

espeacutecie de oceano de todos os males ao mesmo

117

quidam si huius vitio subito marcescunt

florentia dilabuntur aucta labascunt

fulta pereunt bene condita amarescunt

dulcia denique si res est adeo non sancta

ut omnis [25] pietatis ac religionis sit

maxime praesentanea pestis si nihil hoc

uno infelicius hominibus nihil invisius

superis quaeso per deum immortalem

quis credat istos homines esse quis

credat ullam sanae mentis micam inesse

qui me talem tantis impendiis tantis

studiis tanto molimine tot technis tot

curis tot periculis student eiicere

tantumque malorum velint tam chare

emere

[30] Si me ad istum modum

spernerent ferae levius ferrem et in me

admissam contumeliam naturae

imputarem quae ingenium immite

insevisset si mutis pecudibus essem

invisa condonarem inscitiae propterea

quod his ea vis animi negata sit quae sola

dotes meas queat perspicere At o rem

indignam ac plus quam prodigiosam

unum animal aedidit natura ratione

praeditum ac divinae [35] mentis capax

unum benevolentiae concordiaeque

genuit et tamen apud quantumlibet

efferas feras apud quantumvis brutas

pecudes mihi citius locus sit quam apud

homines Iam tot orbium coelestium licet

tempo se por influecircncia dela as coisas que

estavam florescendo subitamente murcham as

grandes se dissolvem os fundamentos ruem as

bem construiacutedas perecem as doces amargam em

suma se eacute algo a tal ponto sacriacutelego que eacute como

a peste venenosa de toda a piedade e religiatildeo se

natildeo haacute nada mais infeliz para os homens do que

ela se nada eacute mais odioso para os ceacuteus por

favor pelo Deus imortal quem acreditaraacute que

tais homens existam quem acreditaraacute que haacute

uma uacutenica migalha de bom senso em seres que

com tantos esforccedilos tantos trabalhos com tanto

peso com tantas teacutecnicas com tantos cuidados

tantos perigos empenhem-se em me lanccedilar fora

a mim que sou assim e prefiram pagar tatildeo caro

por uma quantidade tatildeo grande de males

Se feras me desprezassem desse modo eu

o suportaria mais facilmente e atribuiria essa

ofensa agrave natureza que inserira nelas uma iacutendole

selvagem Se eu fosse odiada pelo gado mudo

eu o perdoaria por sua ignoracircncia porque lhe foi

negada a faculdade do entendimento que eacute a

uacutenica capaz de perceber os meus dons Mas oacute

coisa indigna e mais que monstruosa a natureza

soacute produziu um animal dotado de razatildeo e capaz

da mente divina soacute gerou um ser capaz de

benevolecircncia e de concoacuterdia e no entanto eacute

mais faacutecil haver um lugar para mim junto agraves

feras por mais ferozes que sejam e agraves bestas

por mais brutas que sejam do que junto aos

homens Jaacute dentre os corpos celestes que satildeo

tantos embora seus movimentos natildeo sejam

118

nec motus sit idem nec vis eadem tamen

iis tot iam seculis constant vigentque

foedera Elementorum pugnantes inter se

vires aequabili libramine pacem aeternam

tuentur et in tanta [40] discordia consensu

commercioque mutuo concordiam alunt

In animantium corporibus quam fidus

membrorum inter ipsa consensus quam

parata defensio mutua Quid tam

dissimile quam corpus et anima Et

tamen quam arcta necessitudine

connexuerit haec duo natura nimirum

declarat ipsa divulsio Proinde ut vita

nihil aliud est quam corporis et animae

societas ita sanitas omnium [45] corporis

qualitatum concentus est Animantia

rationis expertia in suo quaeque genere

civiliter concorditerque degunt

Armentatim vivunt elephanti gregatim

pascuntur sues et oves turmatim volant

grues et graculi habent sua comitia

ciconiae pietatis etiam magistrae mutuis

officiis sese tuentur delphini Nota est

formicarum et apum inter ipsas concors

politia Sed quid de his loqui pergo [50]

quae tametsi ratione vacant sensu non

vacant

[51] In arboribus in herbis

amicitiam possis agnoscere Steriles sunt

quaedam nisi marem adiungas vitis

ulmum amplectitur vitem amat persica

iguais nem sua energia seja a mesma contudo

desde haacute muitos seacuteculos existem e vigoram entre

eles pactos As forccedilas dos elementos que lutam

entre si mantecircm a paz eterna atraveacutes de um

equiliacutebrio constante e em meio a tatildeo grande

discoacuterdia fomentam a concoacuterdia por meio do

consenso e do trato reciacuteproco Nos corpos dos

seres animados como eacute soacutelido o consenso dos

membros entre si e quatildeo preparado para a defesa

muacutetua Que existe de mais diferente do que o

corpo e a alma E contudo a proacutepria separaccedilatildeo

evidencia com quatildeo estreito laccedilo a natureza uniu

essas duas coisas De forma que assim como a

vida nada mais eacute que a associaccedilatildeo do corpo e da

alma assim tambeacutem a sauacutede do corpo eacute a

harmonia de todas as suas propriedades Os

animais desprovidos de razatildeo qualquer que seja

a espeacutecie convivem em harmonia e em

concoacuterdia Os elefantes vivem em manada

porcos e ovelhas satildeo apascentados em rebanhos

os grous e os estorninhos voam em bando as

cegonhas mestras de fidelidade tecircm seus

grupos os golfinhos ajudam-se uns aos outros

com cuidados muacutetuos e notoacuterio eacute o regime

cordial das formigas e das abelhas entre si Mas

para que continuo a falar dessas criaturas que

embora desprovidas de razatildeo natildeo satildeo

desprovidas de sentimento

Entre as aacutervores e as plantas poderias

reconhecer a amizade Algumas delas satildeo

esteacutereis a menos que lhes acrescentes o macho

o olmeiro eacute abraccedilado pela videira o pessegueiro

119

Usque adeo quae nihil sentiunt tamen

pacis beneficium sentire videntur Sed

haec rursum ut sentiendi vim non habent

ita quod vitam habeant iis quae sentiunt

finitima [55] sunt Quid aeque brutum

atque saxorum genus Dicas tamen his

quoque pacis et concordiae sensum

inesse Ita Magnes ferrum ad sese trahit

attractum tenet Quid quod inter

immanissimas etiam feras conuenit

Leonum inter ipsos feritas non dimicat

Aper in aprum non vibrat dentem

fulmineum Lynci cum lynce pax est

Draco non saevit in draconem Luporum

concordiam etiam proverbia nobilitarunt

[60] Addam quod magis etiam mirum

videatur impii spiritus per quos caelitum

atque hominum concordia primum

dirupta est et hodie rumpitur tamen inter

se foedus habent suamque illam

qualemcumque tyrannidem consensu

tuentur

[64] Solos homines quos omnium

maxime decebat unanimitas quibusque

cum [65] primis opus est ea neque natura

tam aliis in rebus potens et efficax

conciliat nec institutio coniungit nec tot

ex consensu profecturae commoditates

conglutinant nec tantorum denique

malorum sensus et experientia in mutuum

ama a videira Ateacute mesmo aqueles que nada

sentem parecem no entanto sentir o benefiacutecio

da paz Mais ainda se esses seres natildeo tecircm a

capacidade de sentir satildeo na medida em que tecircm

vida proacuteximos daqueles que sentem O que haacute

de tatildeo bruto quanto agrave raccedila das pedras Dizes

contudo que tambeacutem nestas estaacute contido o senso

da paz e da concoacuterdia Assim o imatilde atrai o ferro

para si e tendo-o atraiacutedo o reteacutem O que eacute isso

que congrega ateacute as feras mais selvagens entre

si A ferocidade dos leotildees entre eles natildeo

aparece49

Um javali natildeo vibra seu dente afiado

contra outro javali haacute paz de lince com lince a

serpente natildeo se enfurece com outra serpente e

ateacute os proveacuterbios elogiaram a concoacuterdia que

existe entre lobos Acrescentarei ainda algo que

parece mais espantoso os espiacuteritos iacutempios (por

meio dos quais a concoacuterdia entre os ceacuteus e os

homens se rompeu no comeccedilo e ainda hoje se

rompe) tecircm contudo um pacto entre si e

manteacutem aquela sua tirania atraveacutes do consenso

De todos os seres satildeo os homens aqueles

a quem mais convinha a uniatildeo e a que de longe

ela eacute mais necessaacuteria poreacutem de todos satildeo os

uacutenicos que nem a natureza tatildeo potente e eficaz

em outras coisas concilia nem a instruccedilatildeo une

nem associam as facilidades advindas de um

acordo a ser firmado nem enfim a percepccedilatildeo e

a experiecircncia de tatildeo grandes males reconduz ao

49

Margolin (1992 p 914) identifica uma recepccedilatildeo de Pliacutenio (Histoacuteria natural VII 5)

120

amorem redigit Figura communis

omnium vox eadem et cum caetera

animantium genera corporum formis

potissimum inter se differant uni homini

indita vis [70] rationis quae ita sit illis

inter ipsos communis ut cum nullo sit

reliquorum animantium communis uni

huic animanti sermo datus praecipuus

necessitudinum conciliator Insita sunt

communiter disciplinarum ac virtutum

semina ingenium mite placidumque et ad

mutuam benevolentiam propensum ut

per se iuvet amari et iucundum sit de aliis

benemereri nisi quis pravis cupiditatibus

[75] ceu Circes pharmacis corruptus ex

homine degenerarit in belluam Hinc est

videlicet quod vulgus quicquid ad

mutuam benevolentiam pertinet

humanum appellat Addidit lacrymas

exorabilis ingenii documentum quo si

quid forte inciderit offensae et amicitiae

serenitatem nubecula aliqua obfuscarit

facile redeant in gratiam

En quot rationibus natura

amor muacutetuo A aparecircncia eacute comum a todos a

voz eacute a mesma e embora as demais espeacutecies dos

animais se diferenciem umas das outras

sobretudo pelas formas dos corpos soacute ao homem

foi infundida a razatildeo que assim como eacute comum

entre eles mesmos natildeo eacute comum entre eles e os

demais animais50

Soacute a este ser animado foi

concedida a fala que eacute o principal conciliador

dos laccedilos sociais foram-lhe inseridas as

sementes dos saberes e das virtudes de um

temperamento doce plaacutecido e propenso a uma

muacutetua benevolecircncia de tal forma que lhe agrada

ser amado pelo que eacute e sente-se alegre em fazer

gratuitamente o bem a quem o merece a natildeo ser

que algueacutem corrompido por perversos desejos

como que pelos alucinoacutegenos de Circe51

se

degenere de homem em fera52

Eacute por isso que

natildeo sem razatildeo o vulgo chama humano a tudo

aquilo que diz respeito agrave benevolecircncia muacutetua53

Acrescentou-lhe as laacutegrimas comprovaccedilatildeo de

um espiacuterito sensiacutevel a pedidos de desculpas para

que facilmente se faccedilam as pazes caso ocorra

talvez um incidente ofensivo ou alguma

nuvenzinha ofusque a serenidade da amizade

Eis com quatildeo grande nuacutemero de

50

Cf Quintiliano Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 16 17-18 Segundo Margolin (1992 p 914) ldquotema banal da

superioridade do homem dotado de linguagem e de razatildeordquo

51 Herding (1978 p 65 nota 75) percebe a recepccedilatildeo de Homero (Odisseia X 235ss) ldquoCirces pharmacisrdquo

52 Alusatildeo ao trecho da Odisseia (X 310) segundo o qual a deusa feiticeira Circe filha do deus Heacutelio com a

feiticeira Heacutecate especialista em venenos acolhe primeiramente depois furiosamente Ulisses e seus

companheiros Segundo Margolin (1992 p 915) ldquotrata-se de um tema claacutessico da degenerescecircncia moral ou

fiacutesica dos homens metamorfoseados em bestas ferozes para a liberaccedilatildeo dos seus instintos brutaisrdquo

53 Noccedilatildeo capital entre os humanistas Erasmo natildeo pensa ser a humanitas um dom natural do homem pois ele se

torna humano A razatildeo bem formada deve fazer redescobrir a verdadeira natureza do homem que lhe permite

comandar e superar sua natureza instintiva

121

concordiam docuit Nec his tamen [80]

contenta pacis lenociniis amicitiam

homini non solam iucundam esse voluit

verum etiam necessariam Eoque tum

corporum tum animorum dotes ita partita

est ut nemo sit omnium tam instructus

quin infimorum etiam officio

nonnumquam adiuvetur nec eadem

attribuit omnibus nec paria ut haec

inaequalitas mutuis amicitiis aequaretur

Aliis in regionibus alia proveniunt quo

vel usus [85] ipse mutua doceret

commercia

[86] Caeteris animantibus sua

tribuit arma praesidiaque quibus sese

tuerentur unum hominem produxit

inermem atque imbecillum nec prorsus

aliter tutum quam foedere mutuaque

necessitudine Civitates repperit

necessitas et ipsarum inter se societatem

docuit necessitas quo ferarum ac

praedonum vim cunctis [90] viribus

propellerent Adeo nihil est in rebus

humanis quod ipsum sibi sufficiat In

ipsis statim vitae primordiis perisset

hominum genus nisi conditum

propagasset coniugalis concordia nec

enim nasceretur homo et mox natus

argumentos a natureza nos ensinou a concoacuterdia

Natildeo satisfeita contudo com esses encantos que

resultam da paz quis que a amizade fosse natildeo

somente agradaacutevel mas tambeacutem necessaacuteria para

o homem Por essa razatildeo repartiu de tal forma

os dotes tanto os dos corpos quanto os dos

espiacuteritos que natildeo haacute ningueacutem que seja tatildeo

dotado de todos eles que jamais necessite ser

socorrido pelo auxiacutelio dos subalternos tampouco

atribuiu a todos caracteriacutesticas idecircnticas e iguais

a fim de que essa desigualdade fosse equilibrada

atraveacutes de amizades muacutetuas As diferentes

regiotildees produzem coisas diferentes de modo que

a proacutepria utilidade ensinasse os muacutetuos

comeacutercios

Aos outros animais a natureza concedeu

armas e recursos a fim de se defenderem soacute o

homem ela produziu indefeso e fraco

dependente para sua seguranccedila inteiramente de

alianccedila muacutetua e dos laccedilos de solidariedade54

A

necessidade inventou as cidades e a necessidade

ensinou a sociedade entre elas a fim de unindo

forccedilas repelir o ataque das feras e dos ladrotildees

Mais ainda natildeo haacute nada nas coisas humanas que

baste a si mesma O gecircnero humano teria

perecido logo nos primeiros estaacutegios da vida se

uma vez criado a concoacuterdia conjugal natildeo o

tivesse propagado pois o homem nem nasceria

ou morreria logo ao nascer e expiraria no limiar

mesmo da vida se a matildeo amiga das parteiras e

54

Eacute o mito de Epimeteu que ao criar os animais com seus respectivos atributos concedeu ao homem o fogo dos

deuses ensinando-lhe tambeacutem como trabalhar com ele (Cf Platatildeo Protaacutegoras 320C-322C)

122

interiret atque in ipso vitae limine vitam

amitteret nisi obstetricum amica manus

nisi nutricum amica pietas succurreret

infantulo Atque in hunc usum

vehementissimos [95] illos pietatis

igniculos insevit ut parentes etiam illud

ament quod nondum viderunt Adiecit

mutuam liberorum erga parentes

pietatem ut illorum imbecillitas horum

praesidiis vicissim sublevaretur fieretque

illa cunctis quidem ex aequo plausibilis

sed Graecis aptissime dicta

ἀμηιπελάργωζις Accedunt huc

cognationum et affinitatum vincula

accedit in nonnullis ingeniorum

studiorum [100] formaeque similitudo

certissima benevolentiae conciliatrix in

multis arcanus quidam animorum sensus

ac mirus ad mutuum amorem stimulus

quem veteres admirati numini

adscribebant

[103] Tot argumentis natura

docuit pacem concordiamque tot

illecebris ad eam invitat tot laqueis

trahit tot rebus compellit Et post haec

quaenam ista tam ad [105] nocendum

efficax Erinnys his omnibus disruptis

disiectis discussis insatiabilem pugnandi

furiam insevit humanis pectoribus Nisi

se a piedade amiga das amas de leite natildeo

socorresse o bebezinho Mas tendo em vista sua

utilidade a natureza inseriu nos homens

fortiacutessimos estiacutemulos de piedade a fim de que os

pais amem ateacute aquilo que ainda nem sequer

viram Acrescentou a piedade muacutetua dos filhos

para com os pais para que a fraqueza destes seja

por sua vez amparada pelos cuidados daqueles e

a que se decirc aquele sentimento certamente vaacutelido

para todos mas a que os gregos chamaram mais

apropriadamente ἀμηιπελάργωζις55

Somam-se a

estes os viacuteculos das consanguinidades e das

afinidades Acrescente-se em alguns a

semelhanccedila de temperamento de feiccedilotildees e de

interesses a qual eacute a mais certa conciliadora da

benevolecircncia havendo tambeacutem em muitos

homens uma espeacutecie de sentido misterioso das

almas e uma maravilhosa tendecircncia para o amor

muacutetuo que os antigos admirados atribuiacuteam a

uma divindade

Com tatildeo grande nuacutemero de argumentos a

natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela

nos convida com tatildeo grande nuacutemero de

seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com

tantos laccedilos e razotildees E no entanto que Eriacutenia

foi essa tatildeo eficaz em prejudicar que tendo

todas aquelas coisas sido destruiacutedas destroccediladas

e arrasadas infundiu nos coraccedilotildees humanos a

55

O termo deriva de πελαργoacuteς e se refere agrave piedade da cegonha conforme a literatura grega Margolin (1992 p

916) sugere a traduccedilatildeo como ldquoreconhecimento filialrdquo ou de ldquopiedade filialrdquo com a ideia de uma piedade que

ldquoretornardquo

123

primum admirationem deinde sensum

etiam mali adimeret assuetudo quis

crederet humana mente praeditos istos

qui sic iugibus dissidiis litibus bellis

inter sese certant rixantur tumultuantur

Postremo rapinis sanguine cladibus

ruinis sacra profanaque [110] miscent

omnia nec ulla tam sancta foedera quae

illos in mutuam perniciem debacchantes

queant dirimere Ut nihil etiam accesserit

satis erat commune hominis vocabulum

ut inter homines conveniret

[113] Sed esto nihil apud

homines profecerit natura quae

plurimum valet ut in beluis Itane nihil et

apud Christianos valuit Christus Parum

efficax sit doctrina [115] naturae quae

maximam vim habet in his quoque quae

sensu vacant Caeterum cum hac multo

praestantior sit doctrina Christi cur ea se

profitentibus non persuadet id quod unum

omnium maxime suadet nempe pacem

mutuamque benevolentiam Aut saltem

hanc tam impiam efferamque belligerandi

insaniam dedocet Cum hominis

vocabulum audio mox accurro velut ad

animal mihi [120] proprie natum

confidens fore ut illic liceat acquiescere

cum Christianorum audio titulum magis

etiam advolo apud hos certe regnaturam

insaciaacutevel fuacuteria de fazer a guerra Se o costume

natildeo tivesse feito desaparecer primeiro o espanto

depois ateacute a emoccedilatildeo diante do mal quem

acreditaria que satildeo providos de razatildeo humana

esses que lutam entre si se confrontam e se

combatem com constantes dissensotildees litiacutegios e

guerras Finalmente com pilhagens sangue

assassinatos e destruiccedilotildees misturam todas as

coisas sagradas e profanas nem haacute alianccedilas por

mais sagradas que eles natildeo sejam capazes de

romper inebriados para sua muacutetua destruiccedilatildeo

Para que nada disso uma vez mais ocorresse

seria suficiente a simples palavra ldquohomemrdquo para

que os homens se unissem

Mas que seja A natureza que tem tatildeo

grande poder entre os animais nada pode junto

aos homens mas seraacute que Cristo tambeacutem natildeo

pocircde nada entre os cristatildeos Que seja pouco

eficaz a doutrina da natureza a qual tem maacutexima

forccedila ateacute para os seres privados de sentidos mas

sendo a doutrina de Cristo muito superior por

que esta natildeo eacute capaz de persuadir os que a

professam aquilo que ela ensina sobre todas as

coisas a saber a paz e a muacutetua benevolecircncia

Ou pelo menos natildeo os dissuade de tatildeo iacutempia e

selvagem insacircnia de guerrear Quando ouccedilo a

palavra homem logo acudo como a um animal

nascido de mim confiante de que nele

encontrarei o lugar do meu repouso quando

ouccedilo a designaccedilatildeo de cristatildeos voo mais ainda

na esperanccedila de que entre eles certamente hei de

reinar Entretanto aqui tambeacutem me envergonha e

124

etiam me sperans Sed hic quoque pudet

ac piget dicere fora basilicae curiae

templa sic undique litibus perstrepunt ut

nusquam apud ethnicos aeque adeo ut

cum bona pars humanae calamitatis sit

advocatorum turba tamen haec etiam ad

litigantium [125] undas paucitas sit ac

solitudo Civitatem adspicio spes illico

oboritur inter hos saltem convenire quos

eadem cingunt moenia eaedem

moderantur leges et velut una vectos

navi commune continet periculum Sed o

me miseram quae hic quoque dissidiis

omnia vitiata comperio adeo ut vix

domum ullam reperire liceat in qua mihi

sit vel dies aliquot locus Sed plebem

omitto quae maris ritu [130] suis aestibus

rapitur

[131] In principum aulas velut in

portum quemdam me recipio Erit

inquam certe apud hos locus paci plus hi

sapiunt quam vulgus ut qui sint plebis

animus atque oculus populi tum eius

vices gerunt qui doctor est et princeps

concordiae a quo quidem cum omnibus

tum his praecipue sum commendata Et

[135] omnia bene pollicentur Video

blandas consalutationes amicos

angustia dizer os foacuteruns as basiacutelicas os

tribunais e as igrejas ressoam por todos os lados

com tal violecircncia como nunca houve igual entre

os gentios A tal ponto que embora boa parte da

calamidade humana esteja na turba dos

advogados esta no entanto em relaccedilatildeo agraves ondas

dos litigantes eacute um nada um deserto Olho para

a cidade e imediatamente renasce minha

esperanccedila de que exista uniatildeo ao menos entre

aqueles que as mesmas muralhas circundam e

satildeo regidos pelas mesmas leis e que como que

navegam num mesmo navio unidas por um

perigo em comum Mas pobre de mim Tambeacutem

aqui verifico que a cidade estaacute totalmente

maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a

tal ponto que quase natildeo se pode achar uma uacutenica

casa na qual exista um lugar para mim por

alguns dias Entretanto deixo de lado o povo

que tal como o mar eacute arrebatado por sua proacutepria

agitaccedilatildeo56

Voltei-me agraves cortes dos priacutencipes como a

uma espeacutecie de porto Digo que certamente

existiraacute junto a estes um lugar para a paz pois

eles sabem mais que o vulgo de forma que satildeo a

alma e os olhos do povo Eles fazem pois agraves

vezes deste que eacute o doutor e o priacutencipe da

concoacuterdia natildeo soacute por este fui recomendada mas

tambeacutem por eles E tudo isso eles prometem

Vejo saudaccedilotildees suaves abraccedilos amigaacuteveis

alegres banquetes assim como todos os demais

56

A ldquoagitaccedilatildeordquo como traduccedilatildeo de aestibus referencia agraves aacuteguas agitadas agrave agitaccedilatildeo do mar sentido registrado nos

dicionaacuterios (Agradeccedilo ao Prof Paulo Vasconcellos essa sugestatildeo por ocasiatildeo do exame de qualificaccedilatildeo)

125

complexus hilares compotationes

caeteraque officia humanitatis At o rem

indignam apud hos nec umbram verae

concordiae licuit cernere Fucata fictaque

omnia factionibus apertis clanculariis

dissidiis ac simultatibus corrupta sunt

universa Denique adeo apud hos non

esse sedem paci comperio ut hinc potius

omnium bellorum [140] fontes ac

seminaria Quo me posthac conferam

infelix posteaquam toties fefellit spes

At principes magni sunt potius quam

eruditi magisque ducuntur cupiditatibus

quam recto animi iudicio

[143] Ad eruditorum greges

confugiam Bonae litterae reddunt

homines philosophia plusquam homines

theologia reddit divos Apud hos certe

dabitur conquiescere [145] tot actae

ambagibus Verum proh dolor en hic

quoque bellorum aliud genus minus

quidem cruentum sed tamen non minus

insanum Schola cum schola dissidet et

ceu rerum veritas loco commutetur ita

quaedam scita non traiiciunt mare

quaedam non superant Alpes quaedam

non tranant Rhenum immo in eadem

academia cum rhetore bellum est

dialectico cum iureconsulto [150]

deveres da civilidade Entretanto oacute coisa

indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar

sequer a sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute

fingido e simulado natildeo haacute nada que natildeo seja

corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por

divergecircncias e rivalidades ocultas No final natildeo

encontro o trono da paz entre eles mas antes eacute aiacute

que mais estatildeo as fontes e origens de todas as

guerras Depois de tantas vezes ver perdida a

esperanccedila para onde eu infeliz devo acorrer

Mas os priacutencipes talvez satildeo mais importantes

que eruditos e mais se deixam conduzir pelas

paixotildees do que pelo reto juiacutezo da alma

Refugiar-me-ei na grei dos eruditos as

boas letras formam os homens a filosofia os

torna mais do que homens e a teologia torna-os

santos Junto a eles certamente ser-me-aacute dado

repousar depois de me ter enredado em tantas

digressotildees Entretanto oacute dor Aqui tambeacutem haacute

outro tipo de guerra de fato menos cruenta

contudo natildeo menos insana Escolas se digladiam

com escolas e como se a verdade mudasse com

os lugares certos conceitos natildeo atravessam o

mar outros natildeo transpotildeem os Alpes outros

enfim natildeo cruzam o Reno e ateacute na mesma

Academia o retoacuterico disputa com o dialeacutetico ou

o jurista discorda do teoacutelogo Chega-se ao ponto

de que no mesmo gecircnero de profissatildeo o tomista

luta contra o escotista 57

o realista contra o

57

Cf ldquoOs traccedilos do labirinto satildeo menos complicados do que as tortuosas voltas dos realistas nominalistas

tomistas albertistas occamistas escotistasrdquo (Elogio da Loucura 53) Erasmo buscou o fundamento de sua

doutrina nas fontes do cristianismo natildeo nas ldquosutilezasrdquo dos comentaacuterios variados e contraditoacuterios dos filoacutesofos

medievais (cf Margolin1992 p 918)

126

dissidet theologus Atque adeo in eodem

professionis genere cum Thomista pugnat

Scotista cum Reali Nominalis cum

Peripatetico Platonicus adeo ut ne in

minutissimis quidem rebus inter hos

conveniat ac saepenumero de lana

caprina atrocissime digladientur donec

disputationis calor ab argumentis ad

convitia a convitiis ad pugnos

incrudescat et si res pugionibus aut

lanceis non [155] agitur stilis veneno

tinctis sese confodiunt dentata charta

dilacerant invicem alter in alterius

famam letalia linguarum vibrant spicula

Quo me vertam toties experta mihi data

verba

[158] Quid superest nisi una

veluti sacra ancora religio Huius

professio licet sit Christianorum omnium

communis tamen eam isti peculiariter

profitentur titulo [160] cultu cerimoniis

qui vulgo Sacerdotum cognomento

commendantur Hos itaque procul

intuenti cuncta spem faciunt portum mihi

paratum esse Arrident vestes candidae

meoque colore insignes video cruces

pacis symbola audio dulcissimum illud

fratris cognomen eximiae caritatis

nominalista o platocircnico contra o peripateacutetico

de tal forma que nem sequer concordam em

ninharias e muitas vezes se digladiam

violentamente por latilde de caprina58

ateacute que o calor

do debate recrudesce e dos argumentos se passa

agraves ofensas das ofensas aos safanotildees59

e se o

assunto natildeo se resolver com adagas e lanccedilas

trespassam-se com penas envenenadas

dilaceram-se com papeacuteis que mordem e um vibra

o dardo mortal da liacutengua contra o renome do

outro 60

Para onde me voltarei depois de tantas

palavras enganosas que me foram dirigidas

Que me resta senatildeo a religiatildeo uacutenica

acircncora sagrada Embora todos os cristatildeos em

geral a professem contudo alguns a professam

de um modo peculiar tanto pelo nome como

pelo tipo de vida e cerimocircnias que praticam e

que satildeo aqueles a que vulgarmente se daacute o nome

de sacerdotes Estes observados assim agrave

distacircncia tudo daacute a esperanccedila de que seja ali o

porto preparado para mim Suas vestes brancas

sorriem famosas pela minha cor 61

vejo as

cruzes siacutembolos da paz ouccedilo aquele dulciacutessimo

cognome de irmatildeos demonstraccedilatildeo de um amor

58

Herding (1978 p 67 nota 152-153) nota-se referecircncia a Horaacutecio (Epiacutestola I 18 15)

59 Nota-se a referecircncia a Ciacutecero (Ad Quintum fratem 2 15 6)

60 A expressatildeo ldquocharta dentatardquo eacute um expressatildeo ciceroniana (cf Cicero Ad Quintum fratem 2141)

61 Cf Oviacutedio Ars amatoria 3502

127

argumentum audio salutationes pacis

laeto omine felices cerno rerum omnium

communionem [165] coniunctum

collegium templum idem leges easdem

conventus quotidianos Quis hic non

confidat paci locum fore Sed o rem

indignam nusquam fere collegio

convenit cum episcopo parum hoc nisi

et ipsi inter sese factionibus scinderentur

Quotusquisque sacerdos est cui non sit

cum aliquo sacerdote lis Paulus rem non

ferendam censet quod Christianus litiget

adversus Christianum [170] Et sacerdos

cum sacerdote episcopus cum episcopo

certat Verum his quoque forsitan

ignoscat aliquis quod longo iam usu

propemodum in prophanorum consortium

abierunt posteaquam eadem cum illis

coeperunt possidere Age fruantur hii

sane suo iure quod ceu praescriptione

sibi vindicant Unum hominum genus

superest qui sic adstricti sunt religioni ut

etiam si cupiant [175] nullo pacto queant

excutere non magis profecto quam

testudo domum Sperarem apud hos mihi

fore locum nisi toties frustrata spes me

prorsus desperare docuisset Et tamen ne

quid intentatum relinquam experiar

Quaeris exitum A nullis resilii magis

exiacutemio ouccedilo as saudaccedilotildees de paz cheias de

votos de felicidade vejo a comunhatildeo de todos os

bens um colegiado unido o mesmo templo as

mesmas leis e as reuniotildees diaacuterias Quem natildeo

acreditaria ser este o lugar da paz Mas oacute coisa

indigna Quase natildeo haacute uma ordem que concorde

com o bispo e pior cindem-se em facccedilotildees Quatildeo

poucos satildeo os sacerdotes que natildeo estejam em

litiacutegio com ao menos outro sacerdote Paulo62

natildeo concorda que um cristatildeo tenha disputas

contra outro cristatildeo 63

e o sacerdote discute com

o sacerdote o bispo com o bispo Mas haacute talvez

quem os desculpe jaacute que desde haacute muito tempo

quase se aproximaram do consoacutercio com o

profano depois de comeccedilarem a possuir as

mesmas coisas que eles Pois seja Que

usufruam como se fosse direito seu aquilo que

reivindicam como privileacutegio Haacute ainda uma

espeacutecie de homems que estatildeo de tal forma

ligados a uma religiatildeo que ainda que o

quisessem natildeo conseguiriam deixaacute-la por nada

exatamente como ocorre com a tartaruga e seu

casco Esperaria encontrar junto a eles um lugar

se tantas esperanccedilas frustadas natildeo tivessem me

ensinado a desesperar completamente Mas

enfim para natildeo deixe algo a tentar

experimentarei Queres saber o resultado De

ningueacutem tive de fugir mais raacutepido Pois o que se

poderia esperar de um lugar onde uma ordem

62

Cf II Ad Corinthum 67

63 Cf II Ad Corinthum 67

128

Nam quid sperem ubi religio cum

religione dissidet Tot factiones sunt

quot sunt sodalitia Dominicales dissident

cum Minoritis [180] Benedictini cum

Bernardinis tot nomina tot cultus tot

cerimoniae studio diversae ne quid

omnino conveniret sua cuique placent

aliena damnat et oditque quisque Quin

idem sodalitium factionibus scinditur

Observantes insectantur Coletas utrique

tertium genus quod a conventu

cognomen habet cum nihil inter istos

conveniat

Iam ut par est omnibus rebus

diffisa optabam vel [185] in uno

quopiam monasteriolo latitare quod vere

tranquillum esset Invita dicam quod

utinam non esset verissimum nullum

adhuc reperi quod non intestinis odiis ac

religiosa64

discorda da outra Tantas satildeo as

facccedilotildees quantas satildeo as irmandades os

dominicanos65

disputam com os minoritas66

os

beneditinos67

com os bernardinos68

tantos

nomes tantos cultos tantas cerimocircnias

diferentes de modo que natildeo concordam em coisa

alguma cada um satisfeito com o que eacute seu cada

um condenando e odiando o que eacute dos outros

Aleacutem disso a mesma irmandade estaacute dividida

em facccedilotildees69

os observantes70

perseguem os

recoletas71

e uma terceira ordem deles que tem

o nome de conventual72

quando nada entre eles

conveacutem

Jaacute que eacute assim desconfiada de todas as

coisas dispunha-me a ocultar-me em um

mosteirozinho qualquer que fosse

verdadeiramente tranquilo Direi relutante aquilo

que quem dera natildeo fosse muito verdadeiro ateacute

hoje ainda natildeo encontrei nenhum que natildeo

64

No original religio Natildeo se pode traduzir nesse caso religio por religiatildeo No tempo de Erasmo chamava-se

religiatildeo uma ordem religiosa especiacutefica diferentemente do sentido moderno que usa esse termo para outras

religiotildees acatoacutelicas Erasmo chamava de religio o que hoje os teoacutelogos chamam de carisma Carisma eacute o

vocaacutebulo que se refere agraves caracteriacutesticas especiacuteficas dos indiviacuteduos ou das ordens religiosas Ademais na

teologia catoacutelica do seacuteculo XVI soacute existia uma religiatildeo a catoacutelica Eacute preciso lembrar que natildeo havia acontecido

ainda o simboacutelico feito de Lutero que desencadeou a ruptura das igrejas reformadas com Roma

65 Margolin (1992920) comenta que neste trecho ldquoErasmo logo aproveita a ocasiatildeo de se queixar dos

dominicanos sobretudo os espanhoacuteis cuja estrita ortodoxia natildeo se acomoda ao seu espiacuterito reformistardquo

66 Menores ou freis menores cuja ordem foi fundada em 1223 por Satildeo Francisco de Assis

67 Ordem religiosa fundada por Satildeo Bento por volta do ano 528 sobre o Monte Cassino Itaacutelia

68 Religiosos cistercienses cuja ordem foi fundada em 1098 por Roberto de Citeaux posteriormente reforma em

1119 pelo seu sucessor Satildeo Bernardo de Claraval

69 Dissensatildeo da ordem franciscana instituiacuteda pelo Papa Leatildeo X atraveacutes da bula Ite vos in vineam meam (1517)

70 Ordem fundada durante o Conciacutelio de Constanccedila (1415) e confirmada pelo Papa Martinho V (1420) A regra eacute

mais restrita do que dos conventuais

71 Ordem fundada por Nicollete Boylet ao norte da Franccedila

72 Ordem dos Frades Menores Conventuais surgida entre os anos de 1249 e 1250 que predicava uma vida

mendicante dentro dos conventos em oposiccedilatildeo ao modo de vida itinerante

129

iurgiis esset infectum Pudor sit

recensere quam nihili de nugis tricisque

quantas cieant pugnas viri senes barba

pallioque verendi postremo ut sibi

videntur impense tum eruditi tum sancti

Arridebat spes nonnulla [190] fore ut

alicubi inter tot coniugia qualiscumque

daretur locus

Quid enim non pollicetur domus

communis fortuna communis lectus

communis liberi communes Denique

corporum ipsorum ius mutuum ut unum

potius hominem credas e duobus

conflatum quam duos Huc quoque

sceleratissima illa Eris irrepsit totque

vinculis copulatos dirimit dissidiis

animorum Et tamen inter [195] hos citius

contingat locus quam inter eos qui tot

titulis tot insignibus tot cerimoniis

absolutam caritatem profitentur Tandem

illud in votis esse coepit ut saltem in

unius hominis pectore daretur locus Ne

id quidem contigit idem homo secum

pugnat Ratio belligeratur cum affectibus

et insuper affectus cum affectu

conflictatur dum alio vocat pietas alio

trahit cupiditas Rursum aliud [200]

suadet libido aliud ira aliud ambitio

aliud avaritia Et huiusmodi cum sint non

pudet tamen illos appellari Christianos

cum modis omnibus dissideant ab eo

estivesse contaminado por essas discoacuterdias e

oacutedios intestinos Eacute uma vergonha contar quantas

lutas por causa de bagatelas e futilidades

totalmente insignificantes satildeo causadas por

anciatildeos venerandos em suas barbas e haacutebitos e

que persistem em se ver a si mesmos tatildeo

eruditos tatildeo santos Sorria-me a esperanccedila de

que haveria de encontrar um abrigo em algum

lugar entre tantos casais

Que outra coisa poderia prometer-me um

lar comum de uma sorte comum de um leito

comum e de filhos comuns Enfim do direito

muacutetuo aos proacuteprios corpos a tal ponto que nos eacute

permitido crer que em lugar de dois seres se

trata mais propriamente de um formado a partir

de dois Tambeacutem aqui penetrou aquela tatildeo

perversa Eacuteris e separou com dissensotildees pessoas

que estavam ligadas por muitos viacutenculos E

contudo com mais rapidez se consegue um lugar

entre estes do que entre aqueles outros que com

tantos tiacutetulos tantas insiacutegnias tantas cerimocircnias

professam uma caridade absoluta Finalmente

comecei a ter o desejo de que ao menos fosse

dado um lugar no coraccedilatildeo de um uacutenico homem

Mas tambeacutem aiacute natildeo fui bem sucedida pois o

mesmo homem luta contra si mesmo A razatildeo

luta contra os sentimentos e ademais os

sentimentos lutam entre si se a piedade impele

numa direccedilatildeo o desejo arrasta para outra

ademais a libido aconselha uma coisa a ira

outra a ambiccedilatildeo outra a avareza outra Mas

mesmo assim natildeo se envergonham de chamar-se

130

quod Christo praecipuum est ac

peculiare

[203] Universam eius vitam

contemplare quid aliud est quam

concordiae mutuique amoris doctrina

Quid aliud inculcant eius praecepta quid

parabolae nisi [205] pacem nisi

caritatem mutuam Egregius ille vates

Esaias cum coelesti afflatus spiritu

Christum illum rerum omnium

conciliatorem venturum annunciaret num

satrapam pollicetur num urbium

eversorem num bellatorem num

triumphatorem Nequaquam Quid

igitur Principem Pacis siquidem cura

omnium optimum principem intelligi

vellet ab ea re denotavit quam omnium

[210] optimam iudicasset Neque mirum

ita visum Esaiae cum Silius Ethnicus

Poeta hunc in modum de me scripserit

Pax optima rerum quas homini natura

dedit Concinit huic mysticus ille

citharoedus et factus est inquiens in

pace locus eius In pace dixit non in

tentoriis non in castris princeps est

pacis pacem amat offenditur dissidio

Rursum Esaias opus iustitiae pacem

cristatildeos embora se afastem daquilo que eacute

principal e peculiar em Cristo

Contempla toda a vida dele que outra

coisa eacute ela senatildeo um ensinamento de concoacuterdia

e de amor muacutetuo Que outra coisa inculcam os

seus preceitos e suas paraacutebolas a natildeo ser a paz a

natildeo ser a muacutetua caridade O grande profeta

Isaiacuteas ao anunciar inspirado pelo Espiacuterito

Celeste que Cristo haveria de vir como

conciliador de todas as criaturas teria por acaso

prometido um saacutetrapa ou um agitador de cidades

ou um guerreiro ou um triunfador De modo

algum O quecirc entatildeo O priacutencipe da Paz Pois

como tinha a intenccedilatildeo de referir-se ao priacutencipe

por excelecircncia descreveu-o por aquela coisa que

eacute a mais excelente de todas Natildeo admira que tal

tenha sido a opiniatildeo de Isaiacuteas porque ateacute um

poeta pagatildeo Siacutelio escreveu deste modo sobre

mim ldquoa paz eacute o dom mais excelente que a

natureza concedeu ao homemrdquo73

Aquele famoso

miacutestico citarista cantou a meu respeito ao dizer

ldquoE fez seu assento na pazrdquo 74

ldquoNa pazrdquo disse ele

natildeo em tendas natildeo em acampamentos Eacute o

Priacutencipe da paz Ele ama a paz ofende-se com a

discoacuterdia E novamente Isaiacuteas ldquoagrave justiccedila chama-

se obra da pazrdquo 75

pensando se eacute que natildeo me

engano o mesmo que pensou Paulo que outrora

74 Erasmo cita o texto biacuteblico do Psalmo 753 da Vulgata (seacutec IV) atribuiacutedo a Eusebius Sophronius Hieronymus

(347-420) mais conhecido como Satildeo Jerocircnimo ldquoEt factus est in pace locus eiusrdquo Para os textos citados do Novo

Testamento Erasmo cita sua proacutepria traduccedilatildeo latina

75 Erasmo parafraseia a traduccedilatildeo de Jerocircnimo ldquoOpus iustitiae paxrdquo de um trecho de Isaiah 3217

131

appellat idem sentiens [215] ni fallor

quod sensit Paulus ille et ipse e Saulo

turbulento redditus tranquillus et pacis

doctor Cum caritatem caeteris omnibus

arcani spiritus dotibus anteponens quo

pectore qua facundia meum encomium

detonuit Corinthiis Cur enim non glorier

sic laudari a viro tam laudato Is alias

deum pacis appellat alias pacem dei

vocat palam indicans haec duo sic inter

sese cohaerere ut ibi pax esse non possit

ubi deus non adsit nec illic esse deus

possit ubi pax non [220] adsit Itidem et

pacis angelos in divinis libris vocatos

legimus pios ac dei ministros ut per se

liqueat quos belli Angelos oporteat

accipi

[223] Audite strenui bellatores

Videte sub cuius signis militetis nimirum

illius qui primus dissidium sevit inter

deum et hominem Quicquid calamitatum

sentit mortalitas huic dissidio debet

violento Saulo76

converteu-se em paciacutefico e

mestre da paz sobrepondo a caridade acima de

todos os outros dons do Espiacuterito Santo com que

coraccedilatildeo com que eloquecircncia entoou meu elogio

aos coriacutentios77

Por que eu natildeo me gloriaria de

ser elogiada por um varatildeo tatildeo louvado Ora me

chama ldquoo Deus da pazrdquo 78

ora invoca ldquoa paz de

Deusrdquo 79

indicando claramente que esses dois

conceitos estatildeo interligados de tal forma que

onde haacute paz Deus se faz presente e Deus natildeo se

faz presente onde natildeo existe paz Do mesmo

modo podemos ler nas Escrituras Sagradas que

os homens piedosos e os ministros de Deus satildeo

chamados mensageiros da paz80

a fim de que por

si mesmo fique evidente quais satildeo aqueles que

devemos entender como mensageiros da guerra

Ouvi isto poderosos guerreiros Vede

sob que estandarte militais Sem duacutevida daquele

que primeiro semeou a discoacuterdia entre Deus e o

homem81

A este primeiro conflito devem ser

atribuiacutedas todas as calamidades que a

humanidade sofre Eacute ridiacuteculo o que alguns

argumentam de que nas Sagradas Escrituras se

76

Paulo entatildeo chamado de Saulo ldquorespirava ameaccedilas e oacutedio contra os cristatildeosrdquo (Acta apostolorum 91)

77 ldquoNon enim est dissensionis Deus sed pacis sicut in omnibus ecclesiis sanctorumrdquo (Prima ad Corinthians

1433) ldquoin pace autem vocavit nos Deusrdquo (Prima ad Corinthians 715) ldquosapite pacem habete et Deus dilectionis

et pacis erit vobiscumrdquo (Secunda ad Corinthians 13 11)

78 Deus Pacis Erasmo recorre mais uma vez agrave traduccedilatildeo de Jerocircnimo para Prima ad Thessalonicenses 523 e Ad

Philipenses 49 Segundo Margolin (1992 p 922) Paulo utilizada a expressatildeo Deus pacis em vaacuterias passagens

(Ad Romanos 1533 1620 Ad Corinthios I 1433 Ad Corinthios II 1311 Ad Philipenses 49 Ad

Tessalonicenses I 523 Ad Hebraeos 1320)

79 ldquoPax Deirdquo (Ad Philipenses 47)

80 ldquoEcce praecones clamabunt foris angeli pacis amare flebuntrdquo (Isaiah 337)

81 Erasmo parece evocar a metaacutefora da serpente do paraiacuteso descrita nos capiacutetulos iniciais do Genesis

132

acceptum ferre Frivolum est enim quod

argutantur quidam in arcanis litteris

deum exercituum et deum ultionum dici

Permultum enim interest inter Iudaeorum

deum et Christianorum deum etiamsi

suapte natura unus et idem deus est Aut

si nobis quoque placent tituli veteres age

sit exercituum deus modo acies intelligas

virtutum concentum quarum [230]

praesidio vitia demoliuntur homines pii

Sit ultionum Deus modo vindictam

accipias vitiorum correctionem ut

cruentas strages quibus Hebraeorum libri

referti sunt non ad laniandos homines

sed ad impios affectus e pectore

profligandos referas Sed ut quod

institutum erat persequamur quoties

absolutam felicitatem significant arcanae

litterae pacis nomine id faciunt velut

Esaias [235] Sedebit inquit populus

meus in pulcritudine pacis Et alius Pax

inquit super Israel Rursum Esaias

admiratur pedes annunciantium pacem

annunciantium bona

Quisquis Christum annunciat

pacem annunciat Quisquis bellum

fala do Deus dos exeacutercitos82

ou do Deus das

vinganccedilas 83

Grande diferenccedila haacute entre o Deus

dos judeus e o Deus dos cristatildeos embora pela

natureza seja um uacutenico e mesmo Deus Se

poreacutem os epiacutetetos antigos nos agradam que seja

o Deus dos exeacutercitos contanto que se entenda

por exeacutercito a uniatildeo das virtudes com cuja forccedila

os homens piedosos demolem os viacutecios Que seja

o Deus das vinganccedilas desde que aceites como

vinganccedila a correccedilatildeo dos viacutecios e queiras dizer

que as matanccedilas sangrentas de que os livros dos

hebreus estatildeo repletos visavam natildeo a dilacerar

os homens mas a expulsar-lhes do peito as

paixotildees iacutempias Mas prossigamos naquilo que

haviacuteamos decidido Todas as vezes que as

Sagradas Escrituras querem dizer felicidade

absoluta elas o expressam pelo nome de paz

Por exemplo como disse Isaiacuteas ldquosentar-se-aacute o

meu povo na beleza da pazrdquo 84

E em outro

lugar que diz ldquoHaja Paz sobre Israelrdquo 85

E o

mesmo Isaiacuteas se admira com os peacutes dos que

anunciam a paz dos que anunciam as coisas

boas86

Quem quer que anuncie a Cristo anuncia

a paz Quem quer que pregue a guerra prega

aquele que eacute o que mais se diferencia de Cristo

Pois vejamos Que outra coisa buscou o Filho de

82

Na Vulgata de Jerocircnimo a expressatildeo Deus exercituum consta sessenta e cinco vezes todas no Antigo

Testamento

83 Na Vulgata a expressatildeo Deus ultionum soacute eacute usada uma vez no Salmo 931

84 ldquoSedebit inquit populus meus in pulcritudine pacisrdquo (Isaiah 3218)

85 ldquoPax super Israelrdquo (Psalmus 1245 Psalmus 1276 Ad Galatas 616)

86 ldquoQuam pulchri super montes pedes adnuntiantis et praedicantis pacem bonum praedicantisrdquo (Isaiah 527)

133

praedicat illum praedicat qui Christi

dissimillimus est Age iam quae res dei

filium pellexit in terras nisi ut mundum

patri reconciliaret ut homines inter se

mutua et [240] indissolubili caritate

conglutinaret postremo ut ipsum

hominem sibi faceret amicum Mea igitur

gratia legatus erat meum agebat

negotium Atque ob id Solomonem sui

typum ferre voluit qui nobis εἰρηνοποιός

id est pacificus dicitur Quantumuis

magnus erat David tamen quia bellator

erat quia sanguine fuerat impiatus non

sinitur exstruere domum domini Non

meretur hac [240] parte gerere typum

Christi pacifici Iam illud interim

perpende bellator si profanant bella

numinis iussu suscepta gestaque quid

facient quae suasit ambitio quae ira quae

furor Si pium regem polluit effusus

sanguis ethnicorum quid faciet tam

ingens effusio sanguinis Christiani

[249] Obsecro te Christiane

Deus nesta terra senatildeo que o mundo se

reconciliasse com o Pai Que os homens se

unissem entre si por uma muacutetua e indissoluacutevel

caridade Em suma para fazer-se amigo do

proacuteprio homem Assim portanto Cristo fora

enviado por minha causa e tomava conta de

mim Por isso constituiu como sua imagem o rei

Salomatildeo87

chamado de εἰρηνοποιός88

ou seja ldquoο

paciacuteficordquo Grandioso e ilustre era Davi89

mas

porque era guerreiro porque tinha sido maculado

pelo sangue natildeo lhe foi autorizado construir a

casa do Senhor nem foi merecedor por isso de

ser a imagem do Cristo Paciacutefico Presta bem

atenccedilatildeo oacute homem guerreiro Se as guerras que

foram feitas e perpretadas por ordem da

divindade profanam que faratildeo aquelas que a

ambiccedilatildeo a ira e a loucura aconselharam Se o

sangue dos pagatildeos que derramou foi capaz de

macular um rei tatildeo piedoso o que poderaacute fazer

este enorme derramamento de sangue cristatildeo 90

Imploro-te oacute Priacutencipe Cristatildeo se

verdadeiramente eacutes cristatildeo que contemples o

exemplo do priacutencipe por excelecircncia observa

87

Erasmo evoca a etimologia do nome Solomon paciacutefico que de acordo com o livro dos Reis e das Crocircnicas

seria filho do rei Davi Reinou sobre Israel entre 970 e 931 a C Construiu o primeiro templo de Jerusaleacutem teria

sido o autor de alguns livros biacuteblicos e ceacutelebre pelo dom de sabedoria

88 ldquoFilius qui nascetur tibi et erit vir quietissimus faciam enim eum requiescere ab omnibus inimicis suis per

circuitum et ob hanc causam pacificus vocabitur et pacem et otium dabo in Israhel cunctis diebus eiusrdquo (Primus

Paralipomenon 22 9)

89 David reinou sobre Judaacute entre 1010 e 1002 a C e sobre o reino unido de Israel entre 1002 e 970 a C Tronou-

se ceacutelebre como guerreiro comandante muacutesico e poeta se lhe atribui a autoria da maioria dos salmos Teria sido

castigado pelo adulteacuterio com Bersabeia seguido do assassinato do esposo dela Urias

90 Percebe-se que Erasmo fala de uma guerra inserida em seu presente ou em passado muito proacuteximo Segundo

evidecircncias histoacutericas ele se refere agrave guerra da Liga de Cambrai ou Liga Santa que envolveu os principais estados

europeus durante os anos de 1508 a 1516

134

Princeps si modo vere Christianus es

contemplare [250] tui principis

imaginem observa quomodo regnum

suum inierit quomodo progressus sit

quomodo hinc decesserit et mox

intelliges quomodo abs te geri velit

nimirum ut summa curarum tuarum pax

sit et concordia Nato iam Christo num

bellicis tubis insonant angeli Clangorem

tubarum audiere Iudaei quibus bellare

permissum est Haec congruebant

auspicia quibus fas erat odisse [255]

inimicos At genti pacificae longe aliam

cantionem canunt pacis angeli Num

classicum canunt num victorias

triumphos trophaeaque pollicentur

Minime Quid tandem Pacem

annunciant congruentes cum prophetarum

oraculis et annunciant non iis qui caedes

spirant ac bella qui feroces ad arma

gestiunt sed qui bona voluntate propensi

sint ad concordiam Praetexant quae

velint suo [260] morbo mortales ni

bellum amarent non sic iugibus bellis

inter se conflictarentur Age Christus ipse

iam adultus quid aliud docuit quid aliud

expressit quam pacem Pacis omine suos

subinde salutat Pax vobis eamque

salutandi formam suis praescribit veluti

unice dignam Christianis Atque huius

como ele iniciou e desenvolveu o seu reinado

como ele daqui partiu e imediatamente

aprenderaacutes como eacute necessaacuterio que o administres

de forma que sem duacutevida alguma a paz e a

concoacuterdia sejam o principal objeto de tuas

preocupaccedilotildees Assim que o Cristo nasceu os

Anjos por acaso tocaram as trombetas de

guerra Somente os judeus a quem era

permitido guerrear ouviam os sons das

trombetas Estes auspiacutecios eram compreenssiacuteveis

na eacutepoca em que a lei mosaica legitimava o oacutedio

aos inimigos mas os anjos da paz devem entoar

um canto totalmente diferente para os povos

paciacuteficos Por acaso tocam o clarim Por acaso

prometem vitoacuterias triunfos e trofeacuteus Jamais O

quecirc entatildeo Anunciam a paz conforme os

oraacuteculos dos profetas e a anunciam natildeo agravequeles

que aspiram a assassinatos e guerras e que

anseiam ferozmente pelas armas mas agravequeles

que com boa vontade satildeo propensos agrave

concoacuterdia Que os mortais desculpem com sua

fraqueza o que quiserem mas se de fato natildeo

amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo

entre si com batalhas contiacutenuas Olhai para o

Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que

outra coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso

ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o cumprimento

da paz ldquoa paz esteja convoscordquo91

e lhes

prescreveu essa forma de saudaccedilatildeo como a uacutenica

digna dos cristatildeos Os apoacutestolos natildeo se

91

ldquoPax vobisrdquo (Ioannes20192126 Lucas 2436)

135

praecepti non immemores apostoli pacem

praefantur in suis epistolis pacem optant

iis quos [265] unice diligunt Rem

praeclaram optat qui salutem optat sed

felicitatis summam precatur Hanc ille

toties in omni vita commendatam vide

quanta sollicitudine commendet

moriturus Diligatis inquit invicem sicut

dilexi vos Ac rursum Pacem meam do

vobis pacem relinquo vobis

[269] Auditis quid relinquat suis

Num equos num satellitium num

imperium num opes Nihil horum Quid

igitur Pacem dat pacem relinquit

pacem cum amicis pacem cum inimicis

Iam illud mihi consyderes velim quid a

coena mystica iam imminente mortis

tempore supremis illis precibus flagitarit

a patre Rem opinor haud vulgarem

poposcit qui se sciebat impetraturum

quicquid peteret Pater inquit sancte

serva eos in nomine tuo ut sint unum

sicut et nos Vide quaeso quam

insignem concordiam exigat in suis

Christus Non dixit ut sint unanimes sed

ut sint unum neque id quocumque modo

esqueceram desses preceitos e recomendavam a

paz em suas cartas e desejavam paz agravequeles a

que amavam de forma especial Escolhe coisa

importante quem faz votos pela sauacutede mas estaacute

desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha

recomendado durante toda a sua vida nunca

deixou de a recomendar Veja com quatildeo grande

solicitude a recomenda quando estava prestes a

morrer ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos

tenho amadordquo 92

E novamente ldquoeu vos deixo

a paz eu vos dou a minha pazrdquo93

Ouvis o que Cristo deixou para os seus

Cavalos Escoltas Poder Riquezas Nada

disso O quecirc entatildeo Cristo lhes daacute a paz lhes

deixa a paz Paz com os amigos paz com os

inimigos Gostaria tambeacutem que considerasses

comigo o que jaacute no tempo em que a sua morte

era iminente ele suplicou ao Pai com aquelas

suas uacuteltimas preces na miacutestica ceia Suponho

que natildeo pediu algo usual pois sabia que haveria

de obter qualquer coisa que pedisse Disse ldquoPai

santo guarda-os em teu nome para que sejam

um como noacutesrdquo Veja por favor quatildeo insiacutegne eacute a

concoacuterdia que Cristo solicita para seus

disciacutepulos ele natildeo disse ldquopara que eles sejam

unacircnimesrdquo mas ldquoque sejam um soacuterdquo e isso natildeo

de qualquer forma mas ldquocomo noacutes somos um

noacutes que de maneira perfeita e inefaacutevel somos o

mesmordquo94

indicando assim que soacute alimentando

92

ldquoSicut dilexit me Pater et ego dilexi vos manete in dilectione meardquo (Ioannes 159)

93 ldquoPacem relinquo vobis pacem meam do vobisrdquo (Ioannes 1427)

94 ldquoPater sancte serva eos in nomine tuo quos dedisti mihi ut sint unum sicut et nosrdquo (Ioannes 1711)

136

sed sicuti nos inquit unum sumus qui

perfectissima et ineffabili ratione sumus

idem et illud obiter indicans hac una via

servandos esse mortales si mutuam inter

sese pacem aluerint Porro quod huius

mundi principes insigni quopiam suos

notant [280] quo possint a caeteris

dignosci praesertim in bello vide qua

tandem nota Christus insignierit suos

non alia videlicet quam mutuae caritatis

Hoc inquiens argumento cognoscent

homines vos esse meos discipulos non si

sic aut sic vestiamini non si his aut his

vescamini cibis non si tantum ieiunetis

non si tantum psalmorum exhauseritis

sed si dilexeritis invicem neque id sane

vulgari [285] modo sed quemadmodum

ego dilexi vos Innumera sunt

philosophorum praecepta varia sunt

Moysi plurima regum edicta unicum est

inquit praceptum meum ut ametis

invicem Idem orandi formam suis

praescribens nonne in ipso statim initio

mire admonet concordiae Christianae

Pater inquit noster Unius est precatio

una communis omnium est postulatio

una domus eademque [290] familia sunt

omnes ab uno patre pendent omnes Et

qui convenit eos iugibus bellis inter sese

entre si uma paz reciacuteproca eacute que os mortais

poderatildeo se salvar Da mesma forma que os

priacutencipes deste mundo assinalam seus suacuteditos

com uma marca a fim de que possam reconhececirc-

los de imediato entre os demais sobretudo na

guerra vecirc com que sinal Cristo distinguiu os

seus com o da muacutetua caridade ldquoPor este sinalrdquo

disse ldquoos homens reconheceratildeo que sois meus

disciacutepulos natildeo se vos vestirdes deste ou daquele

modo natildeo se comerdes deste ou daquele

alimento natildeo se jejuardes muito natildeo se

recitardes grande nuacutemero de salmos mas se vos

amardes uns aos outros e natildeo de uma forma

usual mas assim como eu vos ameirdquo95

Incontaacuteveis satildeo os preceitos dos filoacutesofos

numerosos satildeo os de Moiseacutes muitos os eacuteditos

dos reis mas diz ele ldquoo meu preceito eacute um soacute

amai-vos uns aos outrosrdquo96

Por isso ao ensinar a

seus disciacutepulos a foacutermula da oraccedilatildeo Cristo jaacute

natildeo quis logo de iniacutecioadvogar para a concoacuterdia

cristatilde Diz ldquoPai Nossordquo 97

A oraccedilatildeo eacute de um soacute

um uacutenico pedido comum de todos um soacute lar e

todos satildeo uma mesma famiacutelia todos dependem

de um soacute Pai Como eacute possiacutevel que em guerras

perpeacutetuas se combatam entre si Como eacute

possiacutevel que interpeles o Pai comum se

atravessas com a espada as viacutesceras do teu

irmatildeo Por que quis arraigar nas mentes dos seus

disciacutepulos sobretudo isso Com quantos

95

Cf Ioannes 1512

96 ldquoHoc est praeceptum meum ut diligatis invicem sicut dilexi vosrdquo (Ioannes 1512)

97 ldquoPater Nosterrdquo (Matheus 69)

137

conflictari Quo ore compellas

communem patrem si in fratris tui

viscera ferrum stringis Iam quoniam

unum hoc voluit altissime insidere

suorum animis quot symbolis quot

parabolis quot praeceptis concordiae

studium inculcavit Se pastorem vocat

suos oves Et obsecro quis umquam

[295] vidit oves pugnantes cum ovibus

Aut quid faciunt lupi si grex ipse semet

invicem lacerat Cum se vitis stirpem

vocat suos vero palmites quid aliud

quam expressit unanimitatem Portentum

videatur piaculis procurandum si in

eadem vite palmes cum palmite bellet et

ostentum non est si Christianus pugnet

cum Christiano Postremo si quid

omnino Christianis sacrosanctum est

[300] certe sacrosanctum esse debet ac

penitus animis illorum insidere quae

Christus extremis illis mandatis tradidit

veluti testamentum condens ac filiis ea

commendans quae cuperet illis

numquam venire in oblivionem Aut quid

aliud in his docet mandat praecipit orat

nisi mutuum inter ipsos amorem Quid

illa sacrosancti panis et calicis philotesii

communio nisi novam quamdam et

indissolubilem [305] concordiam sanxit

Caeterum quando sciebat non posse

constare pacem ubi de magistratu de

gloria de opibus de vindicta certamen

siacutembolos com quantas paraacutebolas com quantos

preceitos instruiu o amor da concoacuterdia Cristo

chama-se a si mesmo pastor e aos seus ovelhas

Ora eu pergunto algueacutem porventura jaacute viu

ovelhas lutando com ovelhas O que fariam os

lobos se o rebanho comeccedilasse a lutar entre si

Quando se chama a si mesmo a Videira e aos

seus ramos natildeo quis dizer unidade Se na

mesma videira um ramo guerreasse contra outro

ramo natildeo pareceria isso espantoso que deveria

ser conjurado com sacrifiacutecios expiatoacuterios e por

acaso natildeo se trata de um prodiacutegio que um cristatildeo

lute com cristatildeo Por fim haacute algo de mais

sagrado para os cristatildeos certamente deve ser

sagrado e penetrar no interior das almas o que

Cristo lhes transmitiu atraveacutes daqueles uacuteltimos

mandamentos como que fazendo um testamento

aquilo que recomendou como a filhos e desejou

que jamais caiacutesse no esquecimento Que outra

coisa Cristo ensina ordena preceitua e roga ao

Pai senatildeo que exista o amor muacutetuo entre os

homens Que outra coisa aquela comunhatildeo do

patildeo consagrado e do caacutelice do amor sancionou

senatildeo uma nova concoacuterdia indissoluacutevel

Ademais uma vez que sabia natildeo ser possiacutevel

contar com a paz onde haacute lutas por causa de

cargos de gloacuteria de riquezas de litiacutegios e de

processos arranca paixotildees dessa espeacutecie

completamente das almas dos seus proiacutebe que

eles sobretudo resistam ao mal ordena que eles

faccedilam o bem agravequeles que lhes fazem o mal e

ainda que desejem o bem daqueles que lhes

138

est ut penitus affectus eiusmodi revellit

ex animis suorum vetat in totum ne

malo resistant iubet ut de male

merentibus bene mereantur si possint

bene precentur male precantibus Et

Christiani sibi videntur qui ob

quantumuis levem iniuriolam [310]

magnam orbis partem in bellum

pertrahunt Praecipit ut qui in suo

populo sit princeps is ministrum agat nec

alia re praecellat aliis nisi quod melior

sit et pluribus prosit Et non pudet

quosdam ob pusillam accessiunculam

regni pomoeriis addendam tantos ciere

tumultus Docet avium et liliorum ritu in

diem vivere Vetat sollicitudinem in

posterum diem extendere vult totos e

caelo [315] pendere divites omnes

excludit a regno caelorum et non

verentur quidam ob pecuniolam non

exsolutam fortasse nec debitam tantum

humani sanguinis effundere Atque his

temporibus hae vel iustissimae

suscipiendi belli causae videntur

Profecto haud aliud agit Christus iubens

ut unum quiddam a se discant miti esse

animo minimeque feroci cum iubet

relinqui donarium ad aram nec [320]

prius offerri quam cum fratre reditum sit

desejam o mal E veem-se como cristatildeos aqueles

que por causa de uma leve injuriazinha levam agrave

guerra uma grande parte do mundo Ordena que

o priacutencipe se comporte como um servo e que em

nada supere os outros a natildeo ser por ser o melhor

e o mais uacutetil para a maioria E os priacutencipes deste

mundo por pequeninas aquisiccedilotildees territoriais ou

para acrescentar ao reino alguns pomeacuterios natildeo

se envergonham de criar tamanha turbaccedilatildeo

Ensina a viver o dia como as aves e os liacuterios

Proiacutebe-nos de preocupar-nos de forma

demasiada com o dia de amanhatilde98

quer que

todos dependamos apenas do ceacuteu exclui todos

os ricos do reino dos ceacuteus e haacute quem por uma

pequena diacutevida natildeo saldada talvez nem mesmo

devida derrame tanto sangue humano Ora

estes talvez pareccedilam hoje em dia motivos

justiacutessimos para se fazer a guerra Mas acaso

Cristo natildeo age de forma contraacuteria ordenando

que cada qual aprenda dele uma soacute coisa a ter

um espiacuterito manso nada feroz Quando ordena

que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo

seja oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com

o irmatildeo porventura natildeo ensina abertamente que

a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e

que nenhuma oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo

for recomendada por mim Deus rejeitava as

oferendas judaicas que eram bodes ou ovelhas

porque eram oferecidas por homens que viviam

98

A paz relembra o capiacutetulo sexto do Evangelho de Marcos no qual Cristo teria enviado os Doze dois a dois

ordenando-lhes que natildeo levassem coisa alguma para o caminho nem patildeo nem mochila nem dinheiro no cinto

mas somente um bordatildeo como calccedilado unicamente sandaacutelias e que se natildeo revestissem de duas tuacutenicas

139

in gratiam nonne palam docet rebus

omnibus anteponendam esse concordiam

nec ullam victimam esse deo gratam nisi

commendante me Respuebat deus

Iudaicum munus fortassis haedum aut

ovem quod a dissidentibus offerretur et

Christiani sic inter sese belligerantes

sacrosanctam illam victimam audent

offerre Iam cum se gallinae pullos sub

[325] alas aggreganti facit adsimilem

quam apto symbolo depinxit concordiam

Ille congregator est et qui convertit

Christianos esse milvios Eodem pertinet

quod lapis dictus est angularis utrumque

parietem committens et continens et qui

convenit ut huius vicarii totum orbem ad

arma commoveant regnaque regnis

committant Summum illum

conciliatorem habent principem ut

iactant et [330] nullis rationibus ipsi sibi

possunt reconciliari Conciliavit ille

Pilatum et Herodem et suos in

concordiam redigere non potest Petrum

adhuc semiiudaeum qui in praesentis

capitis discrimine dominum ac

praeceptorem tueri parabat obiurgat ipse

qui defendebatur gladiumque iubet

recondere et Christianis ob levissimas

causas numquam non expromptus

districtusque est gladius idque in [335]

em discoacuterdia e como ousam os cristatildeos que

guerreiam entre si ofertar aquele sacrifiacutecio

sagrado Quatildeo apropriada eacute a imagem com que

ele retratou a concoacuterdia ao fazer uma

comparaccedilatildeo entre si mesmo e a galinha que junta

os pintinhos sob as asas Ele eacute o congregador e

os cristatildeos seratildeo aves de rapina Pelo mesmo

motivo eacute chamado pedra angular que ao mesmo

tempo une e manteacutem duas paredes e seratildeo

aqueles que ocupam o lugar dele na terra os que

movem todo orbe agraves armas e incitam reinos

contra reinos Jactam-se de que tecircm como

Priacutencipe aquele sumo conciliador mas se

mostram incapazes de ser por ele reconciliados

Ele conciliou Pilatos e Herodes e natildeo pode

conduzir os seus agrave concoacuterdia E ainda a Pedro

(um meio judeu que diante de um perigo

mortal quis defender o seu Senhor e Mestre)

Cristo repreendeu e ordenou agravequele que o

defendia que a espada fosse guardada99

E os

cristatildeos por causa de questotildees ligeiriacutessimas tecircm

sempre a espada desembainhada e pronta contra

os proacuteprios cristatildeos Por acaso desejaria ser

defendido pela proteccedilatildeo da espada aquele que ao

morrer pediu perdatildeo pelos autores do crime

Todos os livros sagrados do cristianismo

99

Erasmo se refere ao episoacutedio no qual Pedro atacou com uma espada um dos soldados que prendiam Jesus (Cf

Matheus 2651 Marcus 1447 Lucas 2250-51 Ioannes 1810)

140

Christianos An ille se gladii praesidio

defensum velit qui moriens deprecatur

pro necis auctoribus

[337] Omnes Christianorum

litterae sive vetus legas testamentum

sive novum nihil aliud quam pacem et

unanimitatem crepant et omnis

Christianorum vita nihil aliud quam bella

tractat Quaenam est haec plusquam

ferina feritas [340] quae tot rebus nec

vinci potest nec leniri Quin potius aut

Christianorum titulo gloriari desinant aut

Christi doctrinam exprimant concordia

Quousque vita pugnabit cum nomine

Insignite quantumlibet aedes vestesque

crucis imagine non agnoscet Christus

symbolum nisi quod ipse praescripsit

videlicet concordiae Congregati vident

euntem in caelum congregati iubentur

operiri spiritum [345] caelestem Et inter

congregatos se semper versaturum

promiserat ne quis speraret usquam in

bellis adesse Christum Iam igneus ille

spiritus quid aliud est quam caritas

Nihil igne communius citra dispendium

ullum ignis igni accenditur Vis autem

cognoscere spiritum illum concordiae

parentem esse Exitum vide Erat inquit

cunctis cor unum et anima una

[350] Tolle spiritum e corpore

se lecircs o Antigo Testamento ou o Novo clamam

nada mais do que a paz e a unidade e a vida toda

dos cristatildeos nada mais eacute do que ocupar-se da

guerra Que ferocidade mais que bestial eacute esta

que nem pode ser vencida nem ser amenizada

com tatildeo grande nuacutemero de antiacutedotos Eacute melhor

que optem ou desistem de se gloriar do tiacutetulo de

cristatildeos ou imitam vivendo em concoacuterdia a

doutrina de Cristo Ateacute quando a vida contradiraacute

o nome Ainda que ornamenteis e assinaleis com

a imagem da cruz os templos e as vestes Cristo

natildeo reconheceraacute como seu sinal senatildeo aquele

que ele mesmo prescreveu ou seja o sinal da

concoacuterdia Congregados viram-no subir ao Ceacuteu

congregados foram chamados a receber o

Espiacuterito Santo E havia prometido que sempre

haveria de encontrar-se no meio daqueles que

estivessem congregados para ningueacutem esperar

que Cristo esteja presente nas guerras Jaacute aquele

espiacuterito iacutegneo que outra coisa eacute senatildeo amor

Nada eacute mais comum do que o fogo pois sem

demora fogo eacute aceso pelo fogo Queres saber

como aquele espiacuterito gerava a concoacuterdia Vecirc o

resultado Ele diz ldquoeram todos um soacute coraccedilatildeo e

uma soacute almardquo 100

Tira o espiacuterito do corpo e imediatamente

dissolve-se toda aquela ligaccedilatildeo dos membros

Tira a paz e pereceraacute toda a sociedade cristatilde Os

teoacutelogos afirmam que hoje o Espiacuterito Celeste se

100

ldquoMultitudinis autem credentium erat cor et anima unardquo (Acta Apostolorum 4 32)

141

continuo dilabitur omnis illa membrorum

compago tolle pacem et perit omnis

Christianae vitae societas Tot hodie

sacramentis infundi caelestem spiritum

affirmant theologi Si verum praedicant

ubi peculiaris spiritus illius effectus cor

unum et anima una Sin fabulae sunt cur

tantam honoris hisce rebus defertur

Atque haec sane dixerim quo magis

Christianos [355] suorum morum pudeat

non quo sacramentis aliquid detraham

Nam quod populum Christianum

ecclesiam vocari placuit quid aliud quam

unanimitatis admonet Qui convenit

castris et ecclesiae Haec aggregationem

sonat illa dissidium Si pars Ecclesiae

gloriaris esse quid tibi cum bellis Si ab

Ecclesia semotus es quid tibi cum

Christo Si eadem omnes habet domus si

communem [360] habetis principem si

eidem militatis omneis (sic) si

sacramentis iisdem estis initiati si iisdem

gaudetis donativis si iisdem alimini

stipendiis si commune petitur praemium

quid ita inter vos tumultuamini Videmus

inter impios istos commilitones qui

mercede ad caedis peragendae

ministerium conducti veniunt tantam esse

concordiam non ob aliud nisi quod sub

iisdem militant signis et [365] pietatem

profitentes tot res non conglutinant Itane

nihil agitur tot sacramentis Baptismus

infunde em noacutes por um grande nuacutemero de

sacramentos Se de fato pregam a verdade onde

estaacute o efeito particular daquele espiacuterito a saber

um soacute coraccedilatildeo e uma soacute alma Se os

sacramentos natildeo passam de faacutebulas por que se

lhes confere tanta honra Se o disse assim dessa

maneira natildeo foi para depreciar em coisa alguma

os sacramentos mas a fim de que os cristatildeos

mais possam envergonhar-se de seus maus

costumes Aquilo que o povo cristatildeo agradou-se

em chamar Igreja natildeo foi para aconselhar a

unidade Como conciliar exeacutercito e Igreja Esta

soa uniatildeo aquele divisatildeo se te glorias de ser

parte da Igreja que tens tu a ver com as guerras

Se te afastaste da Igreja que tens tu com Cristo

Se todos possuiacutes o mesmo lar se tendes um

Priacutencipe comum se militais todos sob o mesmo

estandarte se fostes iniciados nos mesmos

sacramentos se vos alegrais com os mesmos

dons se sois alimentados graccedilas aos mesmos

recursos se buscais o mesmo precircmio por que

vos enfrentais assim entre voacutes Vemos enorme

concoacuterdia entre os iacutempios mercenaacuterios que satildeo

levados pela esperanccedila de precircmio ao serviccedilo de

perpetrar assassinatos isso ocorre natildeo por outra

coisa senatildeo porque lutam sob os mesmos

estandartes por que entatildeo tatildeo grande nuacutemero

de benefiacutecios natildeo une aqueles que professam a

piedade Seratildeo tatildeo ineficazes tantos

sacramentos O batismo comum a todos atraveacutes

do qual renascemos com Cristo e libertados do

mundo somos inseridos como membros de

142

communis omnium per hunc Christo

renascimur et exsecti mundo Christi

membris inserimur Quid autem tam idem

esse potest quam eiusdem corporis

membra Ab hoc igitur neque servus est

quisquam neque liber neque barbarus

neque Graecus neque vir neque foemina

sed omnes idem in Christo [370] sunt qui

omnia redigit in concordiam

[371] Scythas ita iungit paululum

sanguinis utrimque gustati e calice ut pro

amico nihil cunctentur et mortem

oppetere Ethnicis etiam sancta est

amicitia quam mensa communis

conciliavit et Christianos caelestis ille

panis ac mysticus ille calix non continet

in amicitia quam ipse sanxit Christus

quam illi quotidie [375] renovant ac

repraesentant sacrificiis Si nihil illic egit

Christus quorsum opus hodie tot

cerimoniis Si rem seriam egit cur sic a

vobis negligitur quasi rem ludicram ac

scenicam egerit Audet quisquam ad

sacram illam mensam amicitiae

symbolum audet ad pacis convivium

accedere qui bellum destinat in

Christianos et eos parat perdere pro

quibus servandis mortuus est Christus

Cristo Ora que comunhatildeo maior pode haver que

a dos membros do mesmo corpo A partir daiacute

natildeo haacute mais servos e homens livres baacuterbaros e

gregos homens e mulheres mas todos satildeo o

mesmo em Cristo 101

que tudo conduziu agrave

concoacuterdia102

Um pouco de sangue bebido de um

mesmo caacutelice une de tal modo os citas que pelo

amigo natildeo vacilam perante nenhum sacrifiacutecio

ainda enfrentar a morte 103

tambeacutem entre os

pagatildeos existe uma amizade sagrada que nasceu

de uma mesa em comum e aquele patildeo do ceacuteu

aquele caacutelice consagrado que o proacuteprio Cristo

santificou e que eles mesmos renovam

diariamente nas missas natildeo mantecircm na amizade

os cristatildeos Se Cristo natildeo tinha nenhuma

intenccedilatildeo com isso para que servem hoje em dia

tantas cerimocircnias Mas se tinha uma finalidade

seacuteria por que voacutes o negligenciais tanto como se

fosse uma brincadeira e uma encenaccedilatildeo Algueacutem

ousa aproximar-se daquela mesa sagrada

siacutembolo da amizade ousa aceder ao banquete da

paz quem trama a guerra contra cristatildeos e

prepara para destruir aqueles que Cristo morreu

para salvar e se apressa a beber o sangue

daqueles em favor dos quais o Cristo derramou o

seu sangue Oacute coraccedilotildees mais duros que

diamantes Haacute harmonia em negoacutecios tatildeo

101

ldquonon est Iudaeus neque Graecus non est servus neque liber non est masculus et femina omnes enim vos

unus estis in Christo Iesurdquo (Ad Galatas 328)

102 ldquoInstaurare omnia in Christordquo (Ad Ephesios 110)

103 Cf Isoacutecrates Panegiacuterico 21 ll 12-16 Erasmo compocircs o adaacutegio 2494 ldquoScytharum solitudordquo (LB II 849 B-

C) Na epiacutestola 809 (5 de abril de 1518) mencionou a solitudo Scytha

143

[380] eorum haurire sanguinem pro

quibus suum sanguinem fudit Christus O

pectora plus quam adamantina in rebus

tam multis consortium est et in vita tam

inexplicabile dissidium Eadem nascendi

lex omnibus eadem senescendi

moriendique necessitas Eumdem generis

Principem habent omnes eumdem

religionis auctorem eodem omnes

redempti sanguine iisdem omnes initiati

sacris iisdem [385] aluntur sacramentis

Quicquid ex his redit muneris ab eodem

proficiscitur fonte et ex aequo commune

est omnibus Eadem omnium Ecclesia

denique praemium idem omnium Quin

caelestis illa Hierusalem ad quam

suspirant vere Christiani a pacis visione

nomen habet cuius interim ecclesia

typum sustinet Et qui fit ut haec

tantopere discrepet ab exemplari Adeo

nihil promovit tot [390] viis solers natura

nihil ipse Christus perfecit tot praeceptis

tot mysteriis tot symbolis Vel ipsa mala

conciliant et malos iuxta proverbium

Christianos inter se nec bona nec mala

ulla conciliant Quid humana vita

fragilius quid brevius Quot ea morbis

quot casibus obnoxia Et tamen cum plus

habeat ex sese malorum quam ut ferri

variados e na vida uma tatildeo inexplicaacutevel divisatildeo

Se a lei de nascer eacute a mesma para todos eacute a

mesma para todos a necessidade de envelhecer e

morrer Todos tecircm o mesmo antepassado da

espeacutecie todos tecircm o mesmo mestre de religiatildeo

todos foram redimidos com o mesmo sangue

todos foram iniciados nos mesmos ritos todos

satildeo alimentados com os mesmos sacramentos e

quaisquer que sejam os benefiacutecios que destes

procedem satildeo obtidos da mesma fonte e por

direito satildeo comuns a todos Todos tecircm a mesma

Igreja e no fim o precircmio seraacute igual para todos

Mais ainda aquela Jerusaleacutem Celeste pela qual

os cristatildeos verdadeiros suspiram possui o nome

de ldquovisatildeo da pazrdquo e durante esta vida terrena a

Igreja se apresenta como uma figura sua O que

se passou para que esta se discrepe de tal

maneira do modelo Ateacute que ponto eles nada

conseguem nem a natureza tatildeo industriosa por

tantos caminhos nem o poacuteprio Cristo com tantos

preceitos tantos misteacuterios tantos siacutembolos

Segundo o proveacuterbio ateacute as maldades unem os

maus 104

soacute para os cristatildeos eacute que natildeo haacute coisas

boas nem maacutes capazes de uni-los uns aos outros

O que pode haver de mais fraacutegil do que a vida

humana O que haacute de mais breve A quantas

doenccedilas e acidentes fatais se expotildee E no

entanto ainda que por sua natureza jaacute tenha

uma cota de males mais pesada do que se pode

104

O proveacuterbio citado por Erasmo seria de sua proacutepria autoria conciliant homines mala (Erasmo Adagia 1071)

mas tem origem aristoteacutelica ldquoo criminoso se une ao criminoso por prazerrdquo (Aristoacuteteles Retoacuterica I e Eacutetica a

Eudemo 1238a e 1239b)

144

possit tamen maximam malorum partem

ipsi sibi accersunt [395] dementes Tanta

caecitas humanos animos occupat ut

nihil horum perspiciant sic praecipites

aguntur ut omnia naturae Christique

vincula omnia foedera rumpant

dissecent diffringant Pugnant passim

atque assidue nec modus nec finis

Colliditur gens cum gente civitas cum

civitate factio cum factione princeps

cum principe et ob duorum

homuncionum qui mox velut ephemera

sint [400] interituri seu stulticiam seu

ambitionem res humanae sursum

deorsum miscentur

[402] Missas faciam veterum

bellorum tragoedias Repetamus decem

ab hinc annis acta ubi non gentium

crudelissime pugnatum est terra marique

Quae regio non Christiano sanguine

commaduit Quod flumen quod mare

non humano [405] cruore tinctum est

Et o pudor pugnant immanius quam

Iudaei quam ethnici quam ferae

Quicquid bellorum Iudaeis gestum est

suportar mesmo assim os homens dementes

produzem para si mesmos a maior parte dos

males A cegueira das mentes humanas eacute tatildeo

grande que natildeo percebem nada Agem de modo

tatildeo precipitado que rompem rasgam e infrinjem

todos os viacutenculos da natureza e de Cristo

esquecendo todas as alianccedilas Combatem

assiduamente e em toda parte a ponto de

tumultuar sem medida nem fim Um povo

combate outro povo uma cidade com outra

cidade uma facccedilatildeo com outra facccedilatildeo um

priacutencipe com outro priacutencipe e por causa da

burrice ou da ambiccedilatildeo de dois homenzinhos que

hatildeo de perecer como coisas efecircmeras

subvertem-se de cima a baixo as coisas humanas

Natildeo contarei as trageacutedias das guerras

antigas Contemos somente as dos uacuteltimos dez

anos105

Onde natildeo encontraremos a crudeliacutessima

luta das naccedilotildees por terra e mar Que regiatildeo natildeo

derramou sangue cristatildeo Que rio e que mar natildeo

estatildeo tingidos com sangue humano106

Oacute

vergonha lutam de modo mais feroz do que os

judeus do que os pagatildeos e do que as feras

Todas as guerras que os judeus moveram contra

os estrangeiros (ἀλλόθσλος) os cristatildeos

deveriam direcionar contra os viacutecios mas com

estes os homens encontram-se de bem eacute contra

os homens que se faz a guerra Os judeus

poreacutem se faziam guerra era porque uma ordem

105

Erasmo poderia estar se referindo agrave guerra franco-espanhola A batalha de Cerignoles e a de Garigliano por

exemplo datam respectivamente de 2804 e 2712 de 1503

106 Herding (1978 p 79 nota 404) percebe a recepccedilatildeo de Horaacutecio (Carm II I 29-36)

145

adversus Allophylos (ἀλλόθσλος) id

Christianis gerendum adversus vitia

quibus nunc cum vitiis convenit cum

hominibus bellum est Et tamen Iudaeos

divina iussio ducebat ad pugnam

Christianos si praetextibus detractis rem

vere aestimes transversos rapit ambitio

agit ira [410] pessimus consultor

pertrahit habendi numquam satiata

cupiditas Atque his fere cum exteris res

erat Christianis cum Turcis foedus est

inter ipsos bellum Iam ethnicos tyrannos

fere gloriae sitis ad bellum exstimulabat

atque hi tamen sic barbaras atque efferas

nationes subigebant ut vinci expediret et

victor de victis bene mereri studeret

Dabant operam ut quam fieri posset

incruenta esset victoria [415] quo simul

et victori honesta fama praemium esset et

victis solatium victoris benignitas

[417] At pudet meminisse quam

pudendis quam frivolis de causis

Christiani Principes orbem ad arma

concitent Hic obsoletum ac putrem

aliquem titulum aut reperit aut

commentus est quasi vero ita magni

referat quis regnum administret [420]

modo publicis commodis reste

consulatur Ille causatur omissum nescio

divina os levava agrave batalha Os cristatildeos se

deixarmos de lado os pretextos e pensarmos as

coisas com retidatildeo a ambiccedilatildeo eacute que os empurra

para o mal a ira o pior dos conselheiros age

arrasta-os o desejo insaciaacutevel de possuir No

mais aqueles em geral tinham litiacutegios com os

estrangeiros enquanto que os cristatildeos fazem

alianccedila com os turcos e guerra entre eles

mesmos Jaacute os tiranos pagatildeos sede de gloacuteria era

o que em geral os estimulava agrave guerra e seja

como for subjugavam assim naccedilotildees baacuterbaras e

selvagens de tal forma que ser vencido era

proveitoso e o vencedor esforccedilava-se para cuidar

bem dos vencidos107

Tomavam providecircncias

para que a vitoacuteria fosse o menos cruenta

possiacutevel de forma que a fama honrada fosse o

precircmio para o vencedor e a benignidade do

vencedor consolo dos vencidos

Mas envergonha lembrar quatildeo

vergonhosos e quatildeo friacutevolos satildeo os motivos

pelos quais os priacutencipes cristatildeos levam o mundo

agraves armas108

Este ou encontra ou inventa algum

tiacutetulo qualquer obsoleto ou esquecido como se

realmente importasse muito quem eacute que

administra o reino desde que vele inteiramente

pelos interesses puacuteblicos Aquele alega natildeo sei

que claacuteusula foi omitida em um contrato de cem

107

Segundo Margolin (1992 p 931) Erasmo se refere a um tratado de paz entre o sultatildeo e Veneza datado de

1503 renovado em 1514 e em setembro de 1517

108 Cf Horaacutecio Carm I 35 15

146

quid in foedere centum capitum Hic illi

privatim infensus est ob sponsam

interceptam aut scomma liberius dictum

Et quod est omnium sceleratissimum

sunt qui tyrannica arte quod populi

concordia potestatem suam labefactari

sentiant dissidio stabiliri subornent qui

data opera bellum excitent quo simul et

coniunctos dirimant et infelicem populum

licentius expilent scelestissimi quidam

qui populi malis aluntur et quibus pacis

tempore non multum est quod agant in

republica Quae tartarea furia venenum

hoc in pectus Christianum potuit

immittere Quis hanc tyrannidem docuit

Christicolas quam nec Dionysius ullus

nec Mezentius ullus novit Belluae verius

quam homines et sola tyrannide nobiles

[430] nec usquam cordati nisi ad

nocendum nec umquam concordes nisi

ad opprimendam rempublicam Et haec

qui gerunt pro Christianis habentur

audent humano sanguine undique polluti

ad sacras aedes ad sacras aras accedere

O pestes in extremas insulas deportandas

capiacutetulos Este eacute inimigo pessoal daquele por

causa de uma esposa que natildeo lhe foi entregue ou

por algum sarcasmo mais licencioso E o que eacute

mais criminoso de tudo eacute que haacute aqueles que por

meio de uma artimanha tiracircnica porque os povos

em concoacuterdia arruinam sua autoridade enquanto

que as divisotildees a solidificam subornam outros

para que excitem a guerra a fim de que ao

mesmo tempo e em acordo muacutetuo possam

desunir e pilhar mais livremente o povo infeliz

Isso eacute o que procuram os priacutencipes mais

criminosos que se alimentam com males do

povo e que em tempo de paz natildeo haacute muito que

faccedilam por suas repuacuteblicas Que fuacuteria infernal foi

capaz de infundir este veneno nos peitos

cristatildeos Quem ensinou aos seguidores de Cristo

essa tirania que nem Dioniacutesio109

nem

Mezecircncio110

conheceram jamais Satildeo

verdadeiramente mais feras do que homens

nobres somente pela tirania sagazes apenas para

matar e concordes apenas para oprimir a

repuacuteblica E os dessa laia satildeo tidos por cristatildeos e

contaminados por sangue humano ousam

aproximar-se dos edifiacutecios e altares sagrados Oacute

flagelos Que sejam deportados para as ilhas

109

Erasmo natildeo se refere ao Deus do Vinho mas aos reis de Siracusa Dioniacutesio I o Antigo (430-367 a C)

tirano de Siracusa por trinta e oito anos ateacute a sua morte Segundo Deodoro Siacuteculo (90-30 a C) Dioniacutesio era de

origem humilde mas tomou conta do poder por ocasiatildeo da guerra de Cartago em 405 a C Apoacutes lutas e alianccedilas

militares foi derrotado pelos cartagineses em 383 a C (Cf Diodoro Siacuteculo Histoacuteria XIII 96 4)

110 Mezecircncio foi um rei de origem etrusca que governou a cidade de Cere Destacado personagem da Eneida de

Virgiacutelio (70-19 a C) toma parte da guerra contra os troianos Virgiacutelio em discordacircncia com os autores mais

antigos transmitiu a figura de Mezecircncio como um terriacutevel tirano Narra que entre outras torturas hediondas

Mezecircncio permitia que seus prisioneiros fossem amarrados face a face com outros criminosos vivos ou mortos

os quais teriam cometido tantos excessos que os proacuteprios habitantes de Cere o expulsaram (Virgiacutelio Eneida XI

7-16) Catatildeo registrou a prepotecircncia do tirano Mezecircncio ao exigir para si as primiacutecias do vinho destinadas a

Juacutepiter(Origines I 12)

147

Si Christiani corporis unius membra sunt

cur non gratulatur quisque alienae

felicitati Nunc prope iusta movendi

[435] belli causa videtur regnum

finitimum rebus omnibus paulo

florentius

[436] Etenim si verum fateri

volumus quid aliud commovit et hodie

commovet tam multos ad armis

lacessendum Franciae regnum nisi quod

est unum omnium florentissimum

Nullum latius patet nusquam senatus

augustior nusquam academia celebrior

nusquam concordia maior et ob hoc

ipsum potestas summa

[440] Nusquam aeque florent

leges nusquam illibatior religio nec

Iudaeorum commercio corrupta velut

apud Italos nec Turcarum aut

Maranorum vicinia infecta

quemadmodum apud Hispanos et

Hungaros Germania ne quid dicam de

Bohoemis in tot regulos dissecta est ac

regni ne species quidem ulla Sola

Francia ceu flos illibatus Christianae

ditionis et velut arx quaedam tutissima si

qua fors [445] tempestas ingruat tot

modis impetitur tot artibus incessitur

nec ob aliud nisi cuius gratia conveniebat

gratulari si qua vena Christianae mentis

mais remotas Se satildeo membros de um soacute corpo

cristatildeo por que cada um natildeo se congratula com a

felicidade alheia Hoje em dia quase parece que

eacute uma justa causa para mover a guerra que o

reino vizinho seja um pouco mais florescente em

todas os aspectos

E de fato se queremos reconhecer a

verdade que outra coisa impeliu e impele hoje

em dia tantos povos agraves armas contra o Reino da

Franccedila senatildeo o fato de este ser o mais proacutespero

de todos Nenhum eacute tatildeo grande em nenhum

lugar o senado eacute mais respeitaacutevel em nenhum

lugar a universidade eacute mais ceacutelebre em nenhum

paiacutes a concoacuterdia eacute maior e por isso mesmo o

poder tatildeo supremo111

Em nenhum lugar as leis florescem como

ali em nenhum lugar a religiatildeo eacute mais pura jaacute

que natildeo estaacute corrompida pelo comeacutercio com os

judeus como entre os italianos nem as fronteiras

estatildeo repletas de turcos e marranos como entre

os espanhoacuteis e os huacutengaros A Alemanha para

natildeo mencionar os Boecircmios foi dividida em

pedaccedilos por tantos reizinhos e natildeo tem sequer a

aparecircncia de um reino Soacute a Franccedila eacute como uma

flor intacta da cristandade como sua mais segura

cidadela mas se por acaso surge alguma

tempestade ela eacute de tantos modos atacada eacute

combatida com tantas artes pelo uacutenico motivo

pelo qual deveria ser celebrada se nos seus

inimigos houvesse um pouco de espiacuterito cristatildeo

111

Segundo Margolin (1992 p 933) ldquoErasmo idealiza a ambiccedilatildeo do imperialismo francecircs por motivaccedilotildees de

ordem poliacutetica sobretudo pela francofilia da poliacutetica borgonhesardquo

148

esset in istis Atque his tam impiis factis

praetexitur titulus pius sic sternunt viam

ad propagandum imperium Christi O

rem monstrosam parum consultum

putant reipublicae Christianae nisi

pulcerrimam ac felicissimam ditionis

christianae partem [450] subverterint

[451] Quid quod in his tractandis

feras etiam ipsas feritate praecedunt Non

omnes pugnant belluae nec ferarum nisi

in diversum genus conflictatio est

quemadmodum et ante diximus saepius

inculcandum quo magis inhaereat

animis Vipera non mordet viperam nec

lynx lyncem discerpit Ac rursum illae

cum [455] pugnant suis pugnant armis

Illas armavit natura Homines inermes

natos o Deum immortalem qualibus

armis armat ira Tartareis machinis

impetunt Christiani Christianos Quis

enim credat bombardas hominis

inventum esse Nec ille tam densis

agminibus in mutuum exitium ruunt

Quis unquam vidit decem leones cum

decem tauris congredi At quoties viginti

millia Christianorum cum [460] totidem

Christianis ferro decertant Tanti est

laedere tanti est haurire sanguinem

fratrum Nec illis fere bellum est nisi

cum fames aut cura sobolis in rabiem

agit At Christianis quae tam levis iniuria

est ut non videatur idonea bellandi

E estes atos tatildeo perversos satildeo justificados por

alegaccedilotildees tatildeo pias Eacute assim que se abre o

caminho para propagar o impeacuterio de Cristo Oacute

ato monstruoso Acham que cuidam pouco dos

interesses da repuacuteblica cristatilde a natildeo ser que

ponham a perder a parte mais bela e mais feacutertil

da cristandade

Que nos resta dizer senatildeo que os homens

com esses seus empreendimentos superam em

selvageria as proacuteprias feras Nem todos os

animais selvagens satildeo agressivos e aqueles que

satildeo ferozes o satildeo apenas contra espeacutecies

diferentes como jaacute dissemos anteriormente e

conveacutem repetir vaacuterias vezes para inculcaacute-lo e

fixaacute-lo nas mentes A viacutebora natildeo morde a viacutebora

e lince natildeo devora o lince E repito quando

lutam lutam com as suas armas aquelas com

que a natureza os armou mas aos homens que

nasceram desarmados oacute Deus imortal com que

armas a ira os arma Cristatildeos atacam cristatildeos

com maacutequinas infernais Quem acreditaria que o

canhatildeo eacute uma invenccedilatildeo do homem Tampouco

aquelas buscando destruiccedilatildeo muacutetua se atiram

umas contra as outras em fileiras cerradas Ou

algueacutem jaacute viu dez leotildees formados em pelotatildeo

contra dez touros Mas quantas vezes vinte mil

cristatildeos desembainharam a espada contra outros

tantos cristatildeos Tatildeo importante eacute ferir e derramar

o sangue dos irmatildeos E mais as feras impelem

ao furor a natildeo ser quando haacute fome ou por

cuidado da prole Para os cristatildeos contudo

quase natildeo existe uma injuacuteria por mais leve que

149

occasio Si faceret ista plebes utcumque

praetexi poterat inscitia si iuvenes

excusari poterat aetatis imperitia si

prophani nonnihil elevaret atrocitatem

facti [465] personae qualitas Nunc ab iis

potissimum videmus oriri bellorum

semina quorum consilio moderationeque

populi motus componi conveniebat

Contentum illud et ignobile vulgus condit

egregias urbes conditas civiliter

administrat administrando locupletat In

has irrepunt satrapae et ceu fuci quod

aliena partum est industria surripiunt et

quod a plurimis bene congestum est a

paucis [470] male dissipatur quod recte

conditum crudelissime diruitur Quod si

prisca non meminerunt repetat qui volet

secum hisce duodecim annis gesta bella

Causas expendat comperiet omnia

principum gratia suscepta magno populi

malo gesta cum ne tantillum quidem ad

populum attineret

[474] Iam quod olim foedum

habebatur apud ethnicos caniciem galea

premere ut [475] inquit ille id apud

Christianos laudi ducitur Turpe senex

seja que natildeo lhes pareccedila ocasiatildeo para guerrear

Se fosse a plebe a fazer isso poder-se-ia de uma

forma ou de outra pretender ignoracircncia Se os

jovens podia excusaacute-los a imperiacutecia da idade Se

os leigos a condiccedilatildeo da pessoa em certa medida

relevaria a atrocidade do feito Mas hoje vemos

que as sementes da guerra satildeo lanccediladas

exatamente por aqueles cujo conselho e

moderaccedilatildeo conviria que as agitaccedilotildees fossem

contidas Aquele vulgo ignoacutebil desprezado e

sem nobreza edifica cidades egreacutegias uma vez

edificadas administra-as civilizadamente e ao

administraacute-las as enriquece Irrompem nelas os

saacutetrapas e como se fossem zangotildees roubam o

que eacute produto do trabalho alheio e o que foi

poupado por muitos eacute dissipado por poucos e o

que havia sido construiacutedo retamente eacute destruiacutedo

com crueldade A esse respeito se natildeo haacute

recordaccedilatildeo dos tempos antigos que aquele que o

desejar repasse consigo mesmo a memoacuteria das

guerras feitas nos uacuteltimos dozes anos pondere

suas causas e descobriraacute que todas se deram por

culpa dos priacutencipes realizadas para grande

prejuiacutezo do povo uma vez que suas motivaccedilotildees

nem um tantinho sequer se aproveitassem ao

povo

Ateacute aquilo que outrora era consenso entre

os pagatildeos de que natildeo se devia cobrir os cabelos

brancos com um elmo como diz o poeta112

esse

costume hoje entre os cristatildeos tornou-se motivo

112

Cf Virgiacutelio Aeneida IX 612 Oviacutedio Trist IV 1 74

150

miles Nasoni et istis magnifica res est

bellator septuagenarius Imo ne

sacerdotes quidem ipsos pudet quos olim

deus nec in sanguinaria illa et inclementi

lege Moysi voluit ullo sanguine pollui

non pudet theologos Christianae vitae

magistros non pudet absolutae religionis

professores non pudet episcopos non

pudet cardinales et [480] Christi vicarios

eius rei auctores ac faces esse quam

Christus tantopere detestatus est Qui

convenit mitrae et galeae Quid pedo

cum gladio Quid evangelico codici cum

clypeo Qui convenit pacis omine

salutare populum et orbem ad

turbulentissimas pugnas concitare pacem

dare lingua re bellum immittere Tun

eodem ore quo Christum pacificum

praedicas bellum laudas eademque

[485] tuba Deum canis et Satanam Tun

apud concionem sacram cuculla tectus ad

caedem incitas simplicem populum qui

ex ore tuo doctrinam exspectabat

evangelicam Tun apostolorum occupans

locum pugnantia doces cum apostolorum

praeceptis An non vereris ne quod de

Christi praeconibus dictum est Quam

speciosi pedes nunciantium pacem

nunciantium bona nunciantium salutem

in diversum [490] vertatur Quam foeda

lingua sacerdotum adhortantium ad

de louvor Para Nasatildeo

eacute coisa infame um

soldado velho enquanto para estes ser um

guerreiro septuagenaacuterio eacute algo magniacutefico

Ademais nem os proacuteprios sacerdotes se

envergonham justamente eles aos quais outrora

Deus natildeo permitiu nenhuma contaminaccedilatildeo pelo

sangue nem naquela sanguinaacuteria e inclemente

lei de Moiseacutes113

natildeo se envergonham os

teoacutelogos mestres da vida cristatilde natildeo se

envergonham os professores de uma religiatildeo

perfeita natildeo se envergonham os bispos natildeo se

envergonham os cardeais e os vigaacuterios de Cristo

de serem os autores e incitadores de algo que

Cristo detestou tanto Que relaccedilatildeo existe entre a

mitra e o elmo Entre a docecircncia e a espada

Entre Evangelho e o escudo Que relaccedilatildeo haacute

entre saudar o povo com o sinal da paz e incitar

o mundo a lutas turbulentiacutessimas Desejar a paz

com a liacutengua mas na realidade provocar a

guerra Eacute possiacutevel que pregues o Cristo paciacutefico

com a mesma boca com que louvas a guerra e

que cantes Deus e Satanaacutes com o mesmo

instrumento Eacute possiacutevel que coberto com o

capuz do haacutebito incites no sagrado puacutelpito o

povo simples que esperava da tua boca a

doutrina evangeacutelica ao assassinato Eacute possiacutevel

que tu ocupando o lugar dos Apoacutestolos ensines

a violecircncia em contradiccedilatildeo com os preceitos dos

Apoacutestolos Acaso natildeo temes aquilo que eacute dito

sobre os arautos de Cristo ldquocomo satildeo belos os

peacutes dos que anunciam a paz dos que anunciam o

113

Erasmo provavelmente se refere agraves leis do Pentateuco que se assemelham agrave Lei de Taliatildeo

151

bellum incitantium ad mala

provocantium ad perniciem Apud

Romanos adhuc impie pios qui

pontificium maximum iniret ex more

confirmabat iureiurando se manus ab

omni sanguine puras servaturum adeo ut

ne laesus quidam ulcisceretur Atque

huius sacramenti fidem constanter

praestitit Titus Vespasianus imperator

ethnicus [495] idque laudi datur a

scriptore ethnico At o prorsus sublatam

e rebus humanis frontem apud

Christianos Deo dicati Sacerdotes et qui

his quoque sanctius aliquid prae se ferunt

monachi ad caedes ad strages

inflammant et Evangelii tubam Martis

tubam faciunt obliti dignitatis suae

sursum ac deorsum cursitant nihil non

tum faciunt tum patiuntur dum bellum

excitent et per hos Principes [500]

alioqui fortassis quieturi ad pugnam

inflammantur quorum auctoritate

tumultuantes sedari conveniebat Imo

quod est prodigiosius belligerantur ipsi

idque earum rerum gratia quas et apud

impios contempsere philosophi

bem dos que anunciam a salvaccedilatildeordquo 114

se mude

em seu contraacuterio ldquocomo eacute destestaacutevel a liacutengua

dos sacerdotes que exortam agrave guerra que incitam

ao mal que provocam a agressatildeordquo Entre os

romanos ateacute entatildeo impiamente pios aquele que

tomava posse como pontiacutefice maacuteximo era

obrigado por juramento a conservar suas matildeos

limpas de todo sangue de tal forma que mesmo

que fosse ferido por algueacutem natildeo se vingaria

Tito Vespasiano115

imperador pagatildeo manteve a

fidelidade a este sacramento com zelo fiel e por

isso foi louvado por um escritor pagatildeo116

Entre

os cristatildeos poreacutem oacute vergonha inteiramente

removida das accedilotildees humanas Os sacerdotes

cristatildeos consagrados a Deus e os monges que

se gabam de superar aqueles em santidade

inflamam os acircnimos dos priacutencipes e da plebe aos

assassinatos e ao massacre Transformam o

clarim do Evangelho em trombeta de Marte e

esquecidos de sua dignidade correm para cima e

para baixo tudo fazendo e tudo suportando ateacute

que consigam incitar agrave guerra e por causa desses

priacutencipes que satildeo inflamados agrave luta sem sua

intervenccedilatildeo talvez se inclinassem para a paz

precisamente deles a quem convinha acalmar

com sua autoridade E ateacute o que eacute ainda mais

114

ldquoQuam pulchri super montes pedes annuntiantis praedicantis pacem annuntiantis bonum praedicantis

salutemrdquo (Isaiah 521)

115 Tito Vespasiano imperador romano entre 79 e 81 d C fez um juramento de guardar suas matildeos puras da

efusatildeo de sangue humano Com a pacificaccedilatildeo das revoltas judaicas culminada com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem

(70 d C) obteve durante seu governo grande popularidade ao assumir o Impeacuterio a ponto de ser louvado pelo

historiador Suetocircnio e outros historiadores contemporacircneos especialmente pela benignidade para com as viacutetimas

da erupccedilatildeo do Vesuacutevio em 79 d C e o incecircndio de Roma em 80 d C

116 Erasmo se refere agraves palavras de Suetocircnio (As vidas dos doze ceacutesares Vida de Tito 91)

152

quarumque contemptus proprius ac

peculiaris est viris apostolicis

[504] Ante paucos annos cum

fatali quodam morbo mundus ad arma

raperetur [505] evangelici praecones

hoc est Minores ac Praedicatores e

suggesto sacro classicum canebant et

ultro ad furiam propensos magis

accendebant Apud Britannos animabant

in Gallos apud Gallos animabant in

Britannos omnes ad bellum instigabant

Ad pacem nemo provocabat praeter unum

aut alterum quibus pene capitale fuit me

vel nominasse Cursitabant ultro citroque

sacrosancti praesules [510] et dignitatis et

professionis suae obliti publicum orbis

morbum opera sua exacerbantes tum hinc

Iulium pontificem Romanum hinc Reges

ad maturandum bellum instigantes

perinde quasi non satis ipsi sua sponte

insanirent et tamen hanc manifestariam

insaniam magnificis titulis praeteximus

Huc patrum leges huc piorum hominum

scripta huc arcanae scripturae verba

prodigioso eles mesmos guerreiam por causa de

coisas que ateacute entre pagatildeos os filoacutesofos votaram

ao desprezo os quais devem ser objeto do

desprezo mais rpoacuterpio e peculiar dos varotildees

apostoacutelicos

Haacute alguns anos quando certa febre fatal

fez com que o mundo inteiro acorresse agraves armas

os pregadores evangeacutelicos isto eacute alguns

minoritas e dominicanos cantavam o claacutessico

toque de guerra do alto do puacutelpito sagrado117

e

acendiam ainda mais aqueles jaacute propensos agrave

fuacuteria Entre os ingleses inflamavam contra os

franceses entre os franceses inflamavam contra

os ingleses Instigavam todos agrave guerra Agrave paz

ningueacutem incitava a natildeo ser um ou outro que

pouco faltou para que fossem condenados agrave pena

capital por terem mencionado meu nome Os

santiacutessimos prelados corriam de um lado para o

outro e esquecidos de sua dignidade e de sua

profissatildeo exarcebavam com seus atos a miseacuteria

do mundo instigando ora de um lado o proacuteprio

Juacutelio 118

Pontiacutefice Romano ora do outro esses

tantos reis a preparar a guerra como se eles por

si mesmos e por sua proacutepria vontade jaacute natildeo

estivessem suficientemente loucos Mas

adornamos esta loucura manifesta com tiacutetulos

pomposos Com essa finalidade deturpamos de

117

Suggestus sacro era um lugar alto ou tribuna no qual os oradores romanos falavam ao povo Cf Erasmo

Dulce bellum LB II 956 F

118 O papa Juacutelio II (1443- 1513) foi conhecido como Il Papa Terribile ou Il Papa Guerriero Chamava-

se Giuliano della Rovere e foi Papa entre 1503 e 1513 Seu papado foi marcado por atividades poliacuteticas projetos

arquitetocircnicos e cultivo das artes Entre 1509 e 1513 inclsuive com a convocaccedilatildeo de um conciacutelio em Latratildeo deu

apoio agrave Liga Santa ou Liga de Cambrai com Luiacutes XII da Franccedila Maximiliano I Imperador Alematildeo Fernando II

Rei de Aragatildeo e Henrique VIII da Inglaterra contra a Repuacuteblica de Veneza a fim de conquistar a Romagna

153

impudentissime [515] detorquemus ne

dicam impie Imo iam eo prope rediit res

ut stultum et impium sit adversus bellum

hiscere et id laudare quod sole ore

Christi laudatum est Parum consulere

populo parum favere Principi videtur

qui suaserit rem omnium saluberrimam et

ab omnium pestilentissima dehortetur

Iam ipsa castra sequuntur sacrifici

praesunt in castris episcopi et relictis

ecclesiis suis [520] Bellonae rem agunt

Imo gignit iam bellum sacerdotes gignit

episcopos gignit cardinales quibus

campi legatus honorificus titulus et

apostolorum successoribus dignus

habetur Quo minus mirum si Martem

spirant quos Mars genuit Et quo malum

sit insanabilius tantam impietatem

pietatis specie praetexunt Vexilla crucem

habent Miles impius et nummis aliquot

ad lanienam ac caedem [525] conductus

crucis insigne praefert et belli symbolum

est quod solum dedocere bellum poterat

Quid tibi cum cruce scelerate miles Istis

animis istis factis dracones tigrides ac

lupi conveniebant Istud signum eius est

qui non pugnando sed moriendo vicit

forma desavergonhada para natildeo dizer iacutempia as

leis dos nossos antepassados119

os escritos dos

homens piedosos e as palavras da Sagrada

Escritura E mais chegou-se ao ponto em que ser

contra a guerra e louvar aquilo que Cristo

valorizou e louvou acima de tudo eacute considerado

prova de loucura e de impiedade Parece que

aquele que aconselhar a mais salutar e dissuadir

da mais pestilenta de todas as coisas este zela

pouco pelos interesses do povo e favorece pouco

ao priacutencipe Os sacerdotes acompanham os

locais da guerra os bispos tomam a frente nos

acampamentos militares e abandonadas suas

igrejas fazem sacrifiacutecios a Belona120

E jaacute se

chegou ao ponto de a guerra gerar sacerdotes

gerar bispos gerar Cardeais em relaccedilatildeo aos

quais se considera digno dos sucessores dos

apoacutestolos e sumamente honoriacutefico o tiacutetulo de

embaixador da guerra Natildeo eacute de se admirar

aqueles a quem Marte gerou respiram Marte E

para que o mal seja mais incuraacutevel revestem tatildeo

grande impiedade com aparecircncia de piedade Os

estandartes ostentam a cruz 121

O soldado iacutempio

contratado por algumas moedas para esquartejar

e matar porta diante de si o siacutembolo da cruz e

torna-se estandarte de guerra a uacutenica coisa que

poderia dissuadir da guerra O que tu soldado

119

A expressatildeo tem um sentido duplo primeiro pode-se referir aos Padres da Igreja ou seja aqueles padres

antigos que na Histoacuteria da Igreja que se tornaram ceacutelebres segundo a Tradiccedilatildeo catoacutelica pela vida virtuosa

ortodoxia e antiguidade (viveram entre os seacuteculos I e VIII d C) e segundo aos Patriarcas hebreus cujas

histoacuterias se encontram no livro do Gecircnesis

120 Bellona foi uma antiga deusa romana da Guerra correspondente agrave deusa grega Enyo

121 O papa Juacutelio II havia dado o estandarte da cruz aos suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute

154

qui servavit non perdidit quodque cum

primis admonere te poterat cum quibus

hostibus tibi res sit si modo Christianus

es et qua [530] ratione vincendum sit Tu

salutis insigne gestas ad fratris perniciem

properans et cruce perdis eum qui cruce

servatus est Quid quod ab arcanis illis et

adorandis sacris nam haec quoque

pertrahuntur in castra in quibus inprimis

summa Christianorum concordia

repraesentatur curritur in aciem dirum

ferrum in fratris viscera stringitur et

facinoris omnium sceleratissimi quo non

aliud esse [535] potest impiis spiritibus

gratius Christum faciunt spectatorem si

tamen illic dignatur adesse Christus

Denique quod est omnium

absurdissimum in utrisque castris in

utraque acie crucis signum relucet in

utrisque sacra Quid hoc monstri est

pugnat crux cum cruce Christus adversus

Christum belligeratur Hoc signum

Christiani nominis hostes terrere solet

Cur nunc oppugnant quod adorant [540]

Homines non una digni cruce sed vera

Quaeso quid in hisce sacris orat miles

pater noster Os durum audes eum

appellare patrem qui fratris tui iugulum

petis Sanctificetur nomen tuum qui

magis dehonestari poterat nomen dei

quam istiusmodi inter vos tumultibus

Adveniat regnum tuum sic oras qui tanto

celerado fazes com a cruz Esse modo de pensar

e de agir conveacutem mais a serpentes tigres e lobos

Esta insiacutegnia eacute daquele que natildeo venceu ao lutar

mas ao morrer que salvou natildeo fez perecer Ele

veio te ensinar se eacutes cristatildeo contra que inimigos

tu deverias lutar e como deverias fazer para

vencer Tu portas contigo o emblema da salvaccedilatildeo

e ao mesmo tempo te precipitas ao assassinato

do teu irmatildeo e destroacuteis com a cruz aquele que

foi salvo pela cruz E que dizer dos sacramentos

misteriosos e solenes Eacute fato que eles tambeacutem

levam para os acampamentos militares aquelas

cerimocircnias nas quais se representa sobretudo a

suma concoacuterdia dos cristatildeos Corre-se para a

linha de batalha e com crueacuteis espadas rasgam-

se as viacutesceras do irmatildeo Isso obriga Cristo a se

tornar espectador do mais celerado de todos os

crimes ndash que eacute ao mesmo tempo o mais grato

aos espiacuteritos mais iacutempios ndash se eacute que Cristo

consente em estar presente num acampamento

Por fim o mais absurdo de tudo eacute que em ambos

os acampamentos e em ambas linhas de batalha

se ergue e brilha o sinal da cruz e em ambos os

ritos sagrados satildeo celebrados Pode haver algo

mais monstruoso A cruz luta contra a cruz e

Cristo guerreia contra Cristo Este sinal costuma

aterrorizar os inimigos do nome cristatildeo Por que

os cristatildeos atacam aquilo que adoram Os

homens natildeo satildeo dignos de somente portar o

siacutembolo da cruz mas sim uma cruz verdadeira

Por favor por que durante a missa o soldado

recita o Pai Nosso Como te atreves boca

155

sanguine tyrannidem tuam moliris Fiat

voluntas tua quemadmodum in coelo ita

[545] et in terra pacem vult ille et tu

bellum paras Panem quotidianum a

communi Patre petis qui fraternas exuris

segetes et tibi quoque mavis perire quam

illi prodesse Iam quonam ore dices illud

et dimitte nobis debita nostra sicut et nos

dimittimus debitoribus nostris qui ad

parricidium festinas Deprecaris

periculum tentationis qui tuo periculo

fratrem in periculum pertrahis A malo

liberari postulas [550] cuius instinctu

summum malum fratri machinaris

[551] Plato negat appellandum

bellum quod Graeci moveant adversus

Graecos Seditio est inquit Et istis

sanctum etiam bellum est quod ob

quamlibet causam tali milite talibus

armis cum Christiano gerit Christianus

Ethnicorum leges culeo insutum in

profluentem abiiciunt qui ferrum fraterno

desavergonhada a chamar de Pai agravequele a quem

pedes auxiacutelio para cortares a garganta do teu

irmatildeo ldquoSantificado seja o teu nomerdquo o que

poderia macular de forma mais completa o nome

de Deus senatildeo esse tipo de disputa entre voacutes

ldquoVenha a noacutes o vosso reinordquo fazes este pedido

tu que com tatildeo grande derramamento de sangue

te empenhas em tua tirania ldquoSeja feita a vossa

vontade assim na terra como no ceacuteurdquo Cristo

quer a paz e tu preparas guerra ldquoO patildeo de cada

diardquo pedes ao Pai comum tu que queimas as

plantaccedilotildees do teu irmatildeo e preferes morrer a

beneficiar o proacuteximo Pois como eacute possiacutevel que

rezeis aquilo ldquoE perdoai as nossas diacutevidas

assim como noacutes perdoamos os nossos

devedoresrdquo tu que te apressas para o fratriciacutedio

Oras que Ele te proteja no ldquoperigo da tentaccedilatildeordquo

tu que com perigo para ti mesmo conduzes o

teu irmatildeo para o perigo Tu pedes para seres

livrado do mal e instigado por ele maquinas

contra teu irmatildeo o pior dos males

Ao ver gregos moverem guerra contra

outros gregos Platatildeo afirmou que natildeo se deve

chamar essa luta de ldquoguerrardquo denominando-a

antes ldquosediccedilatildeordquo122

Enquanto para os cristatildeos eacute

ldquosantardquo a guerra em que com tal tipo de

soldados e com tais armas uns cristatildeos brandem

armas contra outros cristatildeos por qualquer

pretexto insignificante Segundo as leis dos

pagatildeos quem manchasse sua espada com sangue

122

Cf Platatildeo Repuacuteblica V 470

156

sanguine imbuerit [555] An minus

fratres sunt quos Christus copulavit

quam quos sanguinis propinquitas Et

tamen hic praemium est parricidio O

miseram bellantium sortem Qui vincit

parricida est qui vincitur perit nihilo

secius parricidio obnoxius quod

parricidium conatus est Et post haec

exsecrantur Turcas velut impios et a

Christo alienos quasi vero cum haec

agunt ipsi Christiani sint aut quasi

Turcis [560] ullum spectaculum exhiberi

possit iucundius quam si conspiciant

illos mutuis telis sese confodientes

Immolant ut aiunt Turcae daemonibus

At cum his nulla victima sit acceptior

quam si Christianus mactet Christianum

quaeso quid aliud facis quam illi Tum

enim gemina fruuntur hostia spiritus

impii cum pariter et qui mactat et qui

mactatur fit victima Si quis Turcis favet

si quis amicus est [565] daemonibus

hostias huiusmodi frequenter offerat Sed

audio iamdudum quid excusent homines

in suum ipsorum malum ingeniosi Cogi

se queruntur et invitos ad bellum

pertrahi Detrahe personam istam abiice

fucos tuum ipsius pectus consule

reperies iram ambitionem stultitiam huc

fraterno deveria ser fechado em um saco e

jogado no rio da cidade123

Seratildeo menos irmatildeos

aqueles que Cristo uniu do que aqueles unidos

pela consanguinidade E contudo entre voacutes daacute-

se precircmio ao fratriciacutedio Oacute triste sorte dos

beligerantes Quem vence eacute fratricida mas quem

eacute vencido morre igualmente culpado de

fratriciacutedio pois tentou praticaacute-lo Aleacutem disso os

turcos satildeo execrados como iacutempios e alheios a

Cristo como se na verdade fossem cristatildeos

aqueles que agem desse modo e se proclamam

cristatildeos ou como se houvesse um espetaacuteculo

mais agradaacutevel aos turcos do que verem os

cristatildeos se ferirem uns aos outros com lanccedilas Os

cristatildeos dizem que os turcos oferecem imolaccedilotildees

aos democircnios mas como para esses nenhuma

oferenda sacrificial lhes eacute mais agradaacutevel do que

um cristatildeo imolado por outro pergunto e voacutes

Em que sois diferentes dos turcos De fato os

espiacuteritos iacutempios apoderam-se de duas oferendas

sacrificiais pois tanto aquele que imola quanto

aquele que eacute imolado tornam-se viacutetimas suas do

mesmo jeito Se algueacutem visa a favorecer os

turcos se algueacutem eacute amigo dos democircnios que

ofereccedila com frequecircncia semelhante hoacutestia Haacute

muito tempo ouvi o que dizem alguns homens

engenhosos em se excusar de suas maldades

Estes se queixam de serem constrangidos

arrastados agrave guerra a contragosto Arranca essa

123

A expressatildeo culleo insutus (costurado em um saco) foi recebido no Adaacutegio 3978 Agostinho (Contra

Faustum XXII 22) jaacute tratava dessa pena imposta aos parricidas ocorrente tambeacutem em Secircneca (Dial 3165)

Quintiliano (Inst 786) e Justiniano (Institutiones 1816)

157

pertraxisse non necessitatem nisi forte

hac fini necessitatem metiris si non per

omnia satisfiat [570] animo Ad populum

phaleras deus fucis non deluditur Atque

interea solennes aguntur supplicationes

magnis clamoribus petitur pax

vociferantur immani boatu ut pacem

nobis dones te rogamus audi nos

Nonne iure optimo Deus istis responderit

quid me ridetis Rogatis ut depellam

quod ipsi vobis accersitis volentes

Deprecamini cuius ipsi vobis estis

auctores Si quaelibet offensa [575]

bellum parit cui tandem non est quod

queratur Inter uxorem et maritum

incidunt ad quae sit connivendum nisi

malis dirimi benevolentiam Quod si quid

eiusmodi sit ortum inter principes quid

opus erat mox ad arma rapi

[578] Sunt leges sunt hommes

eruditi sunt venerandi abbates sunt

reverendi episcopi quorum salubri

maacutescara joga fora esses disfarces e consulta o

teu proacuteprio coraccedilatildeo E encontraraacutes que foram a

ira a ambiccedilatildeo e a loucura que te arrastaram para

a guerra e natildeo a necessidade A natildeo ser que

chames de necessidade aquele insaciaacutevel desejo

da avareza Guarda os adornos para o povo Deus

natildeo se ilude com disfarces124

E enquanto isso

realizam-se suacuteplicas solenes pedem paz com

grande clamor gritam com ruiacutedo gigantesco

ldquorogamos-te que nos decircs a paz noacutes te

suplicamos ouve-nosrdquo125

Com todo direito natildeo

poderia Deus responder-lhes ldquopor que vos rides

de mim Rogais que eu afaste de voacutes aquilo que

voacutes mesmos procurastes de livre vontade

Suplicais-me que vos livre daquilo de que voacutes

mesmos sois os autoresrdquo Se uma ofensa

qualquer provoca uma guerra quem natildeo teria

motivos para se queixar Entre marido e mulher

surgem agraves vezes alguns conflitos para os quais

conveacutem fechar os olhos a menos que a

gravidade dos males impeccedila a benevolecircncia Ora

se atritos desse tipo surgirem entre priacutencipes por

que motivo recorrer sem demora agraves armas

Existem leis existem homens eruditos

existem abades venerandos e existem bispos

reverendos com cujo conselho salutar poder-se-

ia remediar o conflito Por que natildeo tornar

124

Cf Peacutersio Saacutetiras 330

125 Erasmo se refere a uma das invocaccedilotildees da Litania Sanctorum uma antiga oraccedilatildeo de formato litacircnico cujo

texto latino foi estabelecido em 590 pelo Papa Gregoacuterio I o Magno Sua versatildeo grega eacute ainda mais antiga e

remonta a Gregoacuterio Taumaturgo (213-270) ldquoUt regibus et principibus christianis pacem et veram concordiam

donare digneris Te rogamus audi nos Ut cuncto populo christiano pacem et unitatem largiri digneris Te

rogamus audi nosrdquo (Vauchez 1994 p 27)

158

consilio tumultus rerum componi poterat

Cur non hos [580] potius arbitros faciunt

quos haud possint tam iniquos nancisci

quin minore malo discessuri sint quam si

armis experiantur Vix ulla tam iniqua

pax quin bello vel aequissimo sit potior

Prius expende singula quae bellum vel

postulat vel adducit et quantum lucri

feceris intelliges Summa Romani

pontificis auctoritas Ast cum gentes cum

principes impiis bellis tumultuantur

idque annos [585] aliquot ubi tum

pontificum auctoritas ubi potestas

Christo proxima Hic certe erat

expromenda nisi ipsi similibus tenerentur

cupiditatibus Vocat Pontifex ad bellum

paretur Vocat idem ad pacem cur non

obtemperatur itidem Si pacem malunt

cur Iulio bellandi auctori tam alacriter

obeditum est Leoni ad pacem et

concordiam provocanti vix quisquam

obtemperat Si vere sacrosancta est

Romani [590] pontificis auctoritas certe

maxime valere par est quoties ad id

provocat quod unice docuit Christus

Caeterum quos Iulius ad bellum exitiale

potuit excitare cum Leo sanctissimus

aacuterbitros homens que de modo algum possa ser

tatildeo perversos que natildeo estejam a desertar por um

mal menor do que experimentar armas

Dificilmente uma paz eacute tatildeo iniacutequa que natildeo seja

preferiacutevel agrave mais justa das guerras Faz bem os

caacutelculos de cada artigo que a guerra exige e por

outro lado acarreta e teraacutes previsto quanto lucro

te renderaacute Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice

Romano Entretanto no momento em que os

povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras

perversas ndash e isto por longos anos ndash onde estaacute a

autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde

estaacute o seu poder proacuteximo ao de Cristo Era

nesse ponto que a autoridade papal certamente

deveria ser exercida se tambeacutem os papas natildeo

compartilhassem as mesmas ambiccedilotildees Se o

pontiacutefice conclama para a guerra logo eacute

obedecido Se ele mesmo apela agrave paz por que

natildeo se lhe obedece da mesma forma Se

preferem a paz entatildeo por que a ordem para

guerrear de Juacutelio126

foi obedecida com

entusiasmo mas quando Leatildeo127

apelou para a

paz e a concoacuterdia quase ningueacutem obedeceu Se

a autoridade do Pontiacutefice Romano eacute

verdadeiramente sagrada e santa deveria valer

de modo certo e absoluto todas as vezes que

visasse ao que Cristo quis ensinar de modo

126

Referecircncia ao Papa Juacutelio II

127 Papa Leatildeo X (1475-1521) cujo nome de batismo era Giovanni di Lorenzo de Medici que sucedeu Juacutelio II em

11031513 e presidiu a Seacute de Pedro tinha concluiacutedo um tratado de paz com os franceses vitoriosos na Batalha

de Marignan (Viterbo 13101515) Margolin (1992 p 940) informa que ldquoapoacutes a guerra de Urbino o Papa havia

defendido uma treacutegua na Europa em vista de uma eventual cruzadardquo Erasmo por diplomacia mitifica a figura

do Papa Leatildeo como conciliador Os registros histoacutericos poreacutem natildeo escusam esse pontiacutefice de atividades e

alianccedilas guerreiras

159

pontifex non idem possit tot modis ad

Christianam concordiam provocans

declarant sese ecclesiae praetextu suis

servisse cupiditatibus ne quid dicam

acerbius

[595] Si ex animo taedet

bellorum dabo consilium quo

concordiam tueri possitis Solida pax

haud constat affinitatibus haud

foederibus hominum ex quibus

frequenter exoriri bella videmus

Repurgandi fontes ipsi unde malum hoc

scatet pravae cupiditates tumultus istos

pariunt Et dum quisque suis inservit

adfectibus interim affligitur respublica

nec tamen adsequitur hoc ipsum quisque

[600] quod malis rationibus adfectat

Sapiant principes et populo sapiant non

sibi ac vere sapiant ut maiestatem suam

ut felicitatem ut opes ut splendorem his

rebus metiantur quae vere magnos et

excellentes faciunt Sint eo animo erga

rempublicam quo pater erga familiam

Ita se magnum existimet rex si quam

optimis imperet ita felicem si suos

felices reddiderit ita sublimem si quam

[605] maxime liberis imperet ita

opulentum si populum habeat

opulentum ita florentem si civitates

muito especial A partir disso eacute justo concluir

que os mesmos que foram incitados pelo apelo agrave

guerra de Juacutelio natildeo foram igualmente obedientes

aos numerosos argumentos baseados na

concoacuterdia cristatilde do Santiacutessimo Papa Leatildeo assim

agiram com o pretexto de servir agrave Igreja mas ndash

para natildeo dizer algo mais duro ndash buscaram isto

sim suas proacuteprias ambiccedilotildees

Se estais sinceramente cansados da

guerra darei um conselho com o qual podeis

cultivar a paz Uma paz soacutelida natildeo nasce de laccedilos

de parentesco nem de alianccedilas entre os homens

dos quais muitas vezes vemos nascer a guerra

Eacute preciso purificar as fontes de onde nascem

esses males e que datildeo agrave luz esses conflitos as

suas perversas ambiccedilotildees Entatildeo enquanto o

priacutencipe submete-se a suas paixotildees natildeo apenas

aflige-se a repuacuteblica como ele tampouco

consegue aquilo a que visava obter em seus vis

propoacutesitos Que os priacutencipes sejam saacutebios e que

sejam saacutebios em prol do povo e natildeo somente

para si e que sejam verdadeiramente saacutebios de

tal forma que a sua majestade a sua felicidade a

sua riqueza e o seu esplendor sejam avaliados

por aquelas coisas que os fazem verdadeiramente

poderosos e superiores na sociedade Que

tenham para com a repuacuteblica a mesma

disposiccedilatildeo do pai para com a famiacutelia Que o Rei

soacute se considere grande se governar sobre os

melhores homens que seja feliz se tornar seus

suacuteditos felizes glorioso se bem governar

homens livres opulento se o povo for opulento

160

perpetua pace florentes habeat Atque

hunc Principes animum imitentur

proceres ac magistratus omnia

reipublicae commodis metiantur et hac

via rectius suis consuluerint commodis

Rex qui hoc sit animo num is facile

commovebitur ut pecuniam a suis

extorqueat quam barbaro militi numeret

[610] Suos ad famem adiget ut impios

aliquot Duces ditet Num is suorum

vitam tot periculis obiiciet Non opinor

Hactenus exerceat imperium ut

meminerit se hominem imperare

hominibus liberum liberis postremo

Christianum Christianis Huic vicissim

tantum deferat populus quatenus ad

publicam utilitatem conducit Non aliud

exiget bonus princeps mali vero

cupiditates retundet civium [615]

consensus absit utrimque privati

commodi ratio Plurimum honoris

habeatur iis qui bellum excluserint qui

concordiam restituerint ingenio

consiliove suo denique qui hoc modis

omnibus moliatur non ut maximam

militum ac machinarum vim comparet

sed ut iis non sit opus Quod pulcerrimum

facinus tot imperatorum unus

Diocletianus animo concepisse legitur

Quod si bellum [620] vitari non potest

ita geratur ut summa malorum in eorum

capita recidat qui belli dedere causas

e proacutespero se por uma paz perpeacutetua reinar

sobre cidades proacutesperas E que essa disposiccedilatildeo

dos priacutencipes seja imitada pelos seus proacuteceres

assim como pelos magistrados Que avaliem

tudo segundo a medida do bem-estar da

repuacuteblica e dessa maneira teratildeo assegurado com

mais seguranccedila seu proacuteprio bem-estar Se o rei

tiver essa disposiccedilatildeo acaso se sentiraacute levado a

extorquir o dinheiro dos suacuteditos para contratar

mercenaacuterios baacuterbaros Acaso levaraacute os seus agrave

fome para que enriqueccedila alguns generais iacutempios

Acaso exporaacute a vida dos seus a tatildeo grandes

perigos Natildeo o creio Que o priacutencipe impere de

tal modo que se lembre sempre de que eacute um

homem que governa homens um homem livre

que governa homens livres e em uacuteltima anaacutelise

um cristatildeo que governa cristatildeos O povo por sua

vez que o aceite somente na medida em que seja

em benefiacutecio da utilidade puacuteblica O bom

priacutencipe natildeo exige nada mais que isso As

ambiccedilotildees do mau satildeo derrubadas pelo consenso

dos cidadatildeos Que a loacutegica do interesse privado

esteja ausente em ambas as partes Maior honra

tenham aqueles que evitaram a guerra e cujo

engenho e conselho restituiacuteram a concoacuterdia Em

suma aqueles que por todos os meios se

esforccedilaram natildeo para obter o maior nuacutemero

possiacutevel de soldados e maacutequinas de guerra mas

em tornar tudo isso desnecessaacuterio Dentre tatildeo

grande nuacutemero de imperadores que existiram

Diocleciano segundo se lecirc foi o uacutenico que

concebeu em seu coraccedilatildeo esta accedilatildeo a mais nobre

161

Nunc Principes tuti belligerantur

ductores hinc crescunt maxima malorum

pars in agricolas ac plebem effunditur ad

quos nec attinet bellum nec ipsi belli

causam ullam dederunt Ubi principis

sapientia si haec non perpendit ubi

principis animus si haec levia ducit

Invenienda ratio qua [625] fiat ne toties

mutentur ac velut obambulent imperia

quod omnis rerum novatio tumultum

gignat tumultus bellum Id facile fiet si

Regum liberi intra ditionis fines

elocentur aut si quem libeat finitimis

adiungere spes omnibus successionis

praecisa esto Nec fas sit Principi ditionis

portionem ullam vendere aut alienare

perinde quasi privata sint praedia liberae

civitates Nam liberae sunt quibus rex

[630] imperat serviunt quos tyrannus

premit Nunc huiusmodi matrimoniorum

vicibus fit ut apud Hybernos natus

repente imperet Indis aut qui modo Syris

imperabat subito Rex sit Britanniae

Fitque ut neutra regio Principem habeat

dum priorem relinquit et a posteriore non

agnoscitur nimirum ignotus alioque

mundo natus Atque interim dum illud

parit dum evincit dum stabilit alterum

[635] exhaurit proteritque nonnumquam

amittit utrumque dum utrumque

complecti studet vix alteri administrando

idoneus Semel inter principes conveniat

dentre todas Agora se natildeo se pode evitar uma

guerra que seja travada de tal forma que ao

menos a maior parte dos males caia sobre as

cabeccedilas daqueles que causaram a guerra Hoje

em dia poreacutem os priacutencipes combatem

esmerando em sua seguranccedila e por isso o

aumento de poder de seus generais enquanto

isso a maior parte dos males atinge os

camponeses e o povo justamente aqueles que

natildeo tiraram qualquer proveito da guerra nem

deram qualquer motivo para que ela se

realizasse Onde estaacute a sabedoria do priacutencipe se

natildeo considera essas coisas Onde estaacute o coraccedilatildeo

do priacutencipe se pensa que isso eacute algo sem

importacircncia Deve-se encontrar um modo de

evitar que um reino mude de dinastia e como que

passe de matildeo em matildeo pois inovaccedilotildees desse tipo

sempre geram confusatildeo e confusatildeo gera guerras

Isso pode ser realizado de forma simples se os

filhos do rei tiverem seu poder dentro dos limites

de seu feudo Se houver algum que se interessar

em acrescentar territoacuterio aos seus domiacutenios que

este seja excluiacutedo dos direitos de sucessatildeo Que

natildeo lhe seja liacutecito vender ou alienar nem a menor

porccedilatildeo de seu feudo como se as cidades livres

fossem propriedades privadas Daacute-se pois o

nome de cidades livres agravequelas governadas por

um rei enquanto que aquelas que um tirano

oprime vivem sob servidatildeo Hoje em dia pelos

acasos de casamentos desse tipo acontece de um

irlandecircs passar de repente a reinar sobre os

indianos ou de algueacutem haacute pouco governante dos

162

quid quisque debeat administrare ac

ditionis fines semel datos nulla proferat

aut contrahat affinitas nulla convellant

foedera ita suam quisque portionem

enitetur quam potest ornatissimam

reddere dum in unam omne studium

intendet [640] hanc conabitur rebus

optimis locupletatam suis liberis

relinquere Atque hoc sane pacto futurum

est ut ubique floreant omnia Caeterum

inter sese non affinitatibus aut factitiis

sodalitatibus sed syncera puraque

amicitia copulentur maximeque simili

communique studio bene merendi de

rebus humanis Principi vero succedat vel

qui genere proximus vel qui populi

suffragiis maxime iudicabitur [645]

idoneus Caeteris sat sit inter honestos

haberi proceres

siacuterios tornar-se rei da Inglaterra128

E enquanto

isso as duas regiotildees ficam sem priacutencipe o

primeiro porque ele a abandonou o segundo

porque natildeo passa de um estrangeiro vindo de

outro lugar e natildeo o reconhece como soberano

Enquanto o priacutencipe se preocupa em obter esse

reconhecimento conquistaacute-lo e consolidaacute-lo

empobrece e drena o outro reino e por vezes

perde os dois quando tenta abraccedilar a ambos pois

dificilmente eacute capaz de governar um soacute Que de

uma vez por todas os priacutencipes estejam de

acordo sobre o territoacuterio que cada um deve

governar e que nenhum laccedilo de parentesco

aumente ou diminua essas fronteiras que foram

estabelecidas que nenhuma alianccedila as destrua

Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas

possibilidades para governar sua regiatildeo da

melhor forma possiacutevel Pois quando estiver

totalmente concentrado no cuidado de um soacute

reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus

filhos enriquecido por melhorias E desta

forma como eacute evidente tudo em toda parte

floresceraacute Que sejam aliados natildeo apenas por

viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas contratuais

mas sim unidos por amizade sincera e pura e

acima de tudo por um idecircntico e comum amor

por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei

seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais

proacuteximo por consanguinidade quer agravequele que

128

Margolin (1992 p 942) afirma que essa frase de Erasmo ldquopoderia invocar ainda Maximiliano que declarou

guerra a Hungria (em 1490) pois a viuacuteva de Matias Corvin rei da Hungria havia desposado Ladislau da

Boecircmia ferindo seus pretenciosos direitos de sucessatildeordquo

163

[646] Regium est nescire privatos

adfectus et omnia publicis commodis

aestimare Ad haec longinquas

peregrinationes vitet Princeps imo

pomoeria regni numquam transire velit

memineritque dicti longo seculorum

consensu probati Frons occipitio prior

est Locupletatum se existimet non si

quid aliis ademerit [650] sed si sua

reddiderit meliora Cum de bello agitur

ne adhibeat in consilium iuvenes quibus

ideo bellum placet quod experti non sunt

quantum habeat malorum neve eos

quibus expedit turbari publicam

tranquillitatem quique populi

calamitatibus aluntur ac saginantur Senes

cordatos et integros accersat et quorum

pietas patriae spectata sit Nec temere ad

unius aut alterius libidinem [655] bellum

moveatur quod semel coeptum haud

facile finitur Res omnium

periculosissima non nisi totius populi

consensu suscipiatur Belli causae statim

praecidendae sunt Ad quaedam

connivendum comitas comitatem

invitabit Nonnumquam emenda pax Ea

si ratione subduxeris quid bellum fuerit

exhausturum et quot cives ab exitio

serves parvo empta videbitur etiamsi

magno [660] emeris quando praeter

pelos votos do povo for considerado o mais

capaz Quanto aos demais que lhes baste estar

entre o nuacutemero dos nobres mais honrados

A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os

afetos privados e estimar todas as coisas segundo

o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe

evite viagens a terras longiacutenquas ou antes que

nunca cruze os limites territoriais do seu reino

Que se recorde do ditado comprovado pelo longo

consenso dos seacuteculos ldquoeacute preciso que o mestre

tenha os olhos sobre seu ofiacuteciordquo Que o priacutencipe

considere que enriqueceu natildeo se tirar algo dos

outros mas aperfeiccediloando o que lhe pertence Se

haacute uma questatildeo de guerra que natildeo convoque a

conselho os jovens aos quais a guerra sempre

agrada pois natildeo experimentaram os muitos

males que ela causa nem consulte aqueles a

quem interessa perturbar a tranquilidade puacuteblica

e que satildeo alimentados e engordados pela

calamidade do povo Que convoque um conselho

de anciatildeos sensatos e iacutentegros cuja piedade para

com a paacutetria eacute comprovada E que natildeo inicie a

guerra temerariamente movido pelo desejo deste

ou daquele porque uma vez iniciada ela natildeo se

extingue com facilidade E uma vez que a guerra

eacute o assunto mais perigoso de todos que natildeo seja

decidida sem o consenso de todo o povo As

causas da guerra devem ser imediatamente

extirpadas Conveacutem deixar passar certas coisas a

cortesia convidaraacute agrave cortesia Haacute ocasiotildees em

que a paz deveraacute ser comprada Se fizeres os

caacutelculos pesando quanto a guerra haveria de ser

164

civium tuorum sanguinem plus erat bello

impendendum Ineas rationem quantum

malorum vitaris quantum bonorum

tuearis et impendii non poenitebit

Fungantur interim suo officio praesules

sacerdotes vere sint sacerdotes monachi

professionis suae meminerint theologi

quod Christo dignum est doceant

Conspirent omnes adversus bellum in

hoc latrent [665] omnes Pacem publice

privatimque praedicent efferant

inculcent Tum si minus possint efficere

ne ferro decernatur certe ne probent ne

intersint ne rei vel tam sceleratae vel

certe tam suspectae ipsis auctoribus

honos habeatur Satis sit in bello caesis

in prophano sepulcrum dari Si qui boni

sunt in hoc genere qui certe paucissimi

sunt non ob haec fraudabuntur suo

praemio caeterum impii [670] quae

maxima turba est minus sibi placebunt

honore detracto

[671] De his bellis loquor quae

vulgo Christiani cum Christianis

commitunt Nec enim idem sentio de his

custosa e o grande nuacutemero de cidadatildeos que

salvas seu preccedilo seraacute considerado iacutenfimo

mesmo que pagues um valor alto visto que natildeo

era soacute o sangue dos teus suacuteditos que haveria de

perder-se com a guerra Calcula quanto dos

males evitaste e quanto dos bens protegeste e

natildeo te arrependeraacutes do gasto Que nesse iacutenterim

os prelados cumpram sua tarefa que os

sacerdotes sejam verdadeiramente sacerdotes

que os monges se lembrem da sua profissatildeo e

que os teoacutelogos ensinem aquilo que eacute digno de

Cristo Que todos conspirem contra a guerra e

contra ela todos declamem Que preguem

promovam e inculquem a paz quer em puacuteblico

quer em privado E se porventura natildeo

conseguirem fazer com que as disputas natildeo se

resolvam pela espada que ao menos demonstrem

sua desaprovaccedilatildeo e natildeo compareccedilam para evitar

que por sua presenccedila se considere honrosa uma

coisa tatildeo odiosa ou pelo menos tatildeo duvidosa

Que aos que tombaram na guerra seja suficiente

que lhes seja dada sepultura em solo profano Se

haacute algumas pessoas boas entre os guerreiros ndash e

certamente satildeo pouquiacutessimas ndash natildeo por isso

seratildeo defraudadas em seu precircmio Por outro

lado os iacutempios que satildeo a maioria129

estes se

sentiratildeo menos contentes nas armas com a

retirada da honraria do sepulcro cristatildeo

Refiro-me agraves guerras que os cristatildeos

fazem contra os cristatildeos Natildeo tenho poreacutem

129

Virgiacutelio Aeneis VI 6 I 1

165

qui simplici pioque studio vim

incursantium barbarorum depellunt et

suo periculo publicam tranquillitatem

tuentur Nunc trophaea sanguine tincta

eorum pro quorum salute Christus suum

fudit sanguinem [675] reponuntur in

templis inter apostolorum ac martyrum

statuas quasi posthac pium sit futurum

non fieri martyres sed facere Abunde

magnum erat haec in foro aut armario

quopiam reposita servari In sacras aedes

quas purissimas esse decet nihil recipi

convenit quod sanguine sit inquinatum

Sacerdotes deo sacri nusquam adsint nisi

ad dirimenda bella In haec si

consentiant [680] si eadem ubique

inculcent plurimum habitura momenti

est Quod si hic fatalis est humani ingenii

morbus ut prorsus absque bellis durare

nequeat quin potius malum hoc in Turcas

effunditur tametsi praestabat et hos

doctrina bene factis vitaeque innocentia

ad Christi religionem allicere quam

armis adoriri Attamen si bellum ut

diximus omnino vitari non potest illud

certe levius [685] sit malum quam sic

impie Christianos inter se committi

collidique Si mutua caritas illos non

adglutinat certe coniunget utcumque

communis hostis et qualiscumque

syncretismus erit ut absit vera concordia

igual julgamento sobre aquelas com as quais

tomados por um sentimento puro e piedoso

enfrentam as incursotildees dos baacuterbaros e com

perigo da proacutepria vida protegem a tranquilidade

puacuteblica Hoje nas igrejas colocam-se trofeacuteus de

guerra tingidos com o sangue daqueles por cuja

salvaccedilatildeo Cristo derramou o seu sangue por entre

as estaacutetuas dos apoacutestolos e dos maacutertires como se

depois disso fosse considerado piedoso natildeo

tornar-se maacutertires mas fazecirc-los Jaacute seria o

bastante que esses troacutefeus fossem exibidos no

foacuterum ou em um armaacuterio qualquer mas natildeo

devem expocirc-los os templos sagrados que devem

ser os mais puros e de forma alguma conveacutem que

recebam qualquer objeto manchado de sangue

Que os sacerdotes natildeo se apresentem pelo Deus

sagrado a natildeo ser para dirimir as guerras Se

nisso concordarem se em todos os lugares

inculcarem o mesmo enorme influecircncia hatildeo de

ter Ora se a guerra eacute uma fatal e doentia

propensatildeo do engenho humano de modo que

natildeo lhe eacute possiacutevel viver absolutamente sem ela

por que natildeo se dirige esse mal inevitaacutevel contra

os turcos embora fosse preferiacutevel atraiacute-los para a

religiatildeo de Cristo por meio da doutrina dos bons

costumes e de uma vida de inocecircncia do que

atacaacute-los com armas Se contudo como

dissemos a guerra natildeo pode ser completamente

evitada de todo modo atacar os turcos eacute um mal

menor do que os cristatildeos se enfrentarem e se

colidirem mutuamente de maneira tatildeo perversa

Se o amor muacutetuo natildeo os une pelo menos de

166

[688] Postremo magna pars pacis

est ex animo velle pacem Quibus enim

pax vere cordi est hi omnes pacis

occasiones arripiunt quae obstant aut

negligunt aut [690] amoliuntur permulta

ferunt dum tantum bonum sit incolume

Nunc ipsi bellorum seminaria quaerunt

quod ad concordiam facit elevant aut

dissimulant etiam quod ad bellum tendit

ultro exaggerant exulcerantque Pudet

referre ex cuiusmodi nugis quantas

excitent tragoedias et ex quam minuta

scintillula quae rerum tempestates

exoriantur Tunc illud iniuriarum agmen

venit in mentem [695] et suum quisque

malum sibi exaggerat at benefactorum

interim profunda oblivio ut iures

adfectari bellum Et saepe principum

privatum quiddam est quod orbem ad

arma compellit at plus quam publicum

esse debet ob quod bellum suscipiatur

Quin ubi nihil subest causae ipsi

dissidiorum causas sibi fingunt regionum

vocabulis ad odiorum alimoniam

abutentes et hunc stultae plebis [700]

errorem alunt magnates et in suum

abutuntur compendium alunt sacerdotes

quidam Anglus hostis est Gallo nec ob

aliud nisi quod Gallus est Scoto

alguma forma um inimigo comum poderia uni-

los e haveria ao menos uma espeacutecie de

harmonia ainda que longe de ser a verdadeira

concoacuterdia

Finalmente o primeiro e primordial

passo para a paz se realiza ao desejar

sinceramente a paz De fato quem tem o coraccedilatildeo

realmente repleto do desejo de paz aproveita

todas as oportunidades para estabelececirc-la diante

dos obstaacuteculos negligencia-os ou elimina-os

resigna-se a suportar muita coisa contanto que

se consiga manter incoacutelume um tatildeo grande bem

Atualmente entretanto satildeo os proacuteprios priacutencipes

que buscam disseminar as guerras enfraquecem

e ateacute dissimulam tudo o que promove a

concoacuterdia por iniciativa proacutepria exageram e

instigam tudo o que leva agrave guerra Envergonho-

me de mencionar com que tipo de ninharia

instigam tatildeo grandes trageacutedias e de quatildeo

diminutas centelhazinhas nascem tatildeo grandes

tempestades Entatildeo ressurge-lhes na mente

aquela ruptura provocada por uma tropa de

injuacuterias e cada qual exagera para si mesmo o

mal anteriormente sofrido mas esquece de todos

os benefiacutecios recebidos de forma a que endosses

o direito a fazer a guerra Muitas vezes um

interesse particular qualquer dos priacutencipes eacute

capaz de levar o mundo inteiro agraves armas Ora

aquilo que ocasiona a guerra deve ser mais do

que eacute puacuteblico Mais ainda onde natildeo haacute uma

causa real para o conflito eles mesmos inventam

motivos para divisotildees pronunciando os nomes

167

Britannus infensus est nec aliam ob rem

nisi quod Scotus est Germanus cum

Franco dissidet Hispanus cum utroque O

pravitatem disiungit inane loci

vocabulum Cur non potius tot res

conciliant Male vis Britannus Gallo cur

non potius [705] bene vis homo homini

Christianus Christiano Cur res frivola

plus apud istos potest quam tot naturae

nexus tot Christi vincula Locus corpora

dirimit non animos Separabat olim

Rhenus Gallum a Germano at Rhenus

non separat Christianum a Christiano

Pyrenaei montes Hispanos a Gallis

seiungunt at iidem non dirimunt

Ecclesiae communionem Mare dirimit

Anglos a Gallis at non dirimit [710]

religionis societatem Paulus Apostolus

indignatur audire inter Christianos has

voces Ego sum Apollo ego sum Cephae

ego sum Pauli nec impia cognomina sinit

secare Christum omnia conciliantem et

nos commune patriae vocabulum gravem

causam iudicamus cur gens in gentis

internecionem tendat Ne id quidem satis

nonnullorum animis bellorum avidis

prave dataque opera dissidiorum [715]

ansas quaerunt ipsam dividunt Galliam

et ea vocabulis distrahunt quae nec maria

nec montes nec vera regionum nomina

da regiatildeo inimiga de tal forma que alimentem os

oacutedios e natildeo apenas os magnatas como tambeacutem

alguns sacerdotes nutrem esse engodo da plebe

estulta para seu proveito pessoal Dizem que o

inglecircs eacute inimigo do francecircs sem qualquer outra

razatildeo exceto pelo simples fato de ser francecircs O

escocecircs eacute odioso para o bretatildeo natildeo por outro

motivo senatildeo por ser escocecircs O alematildeo discorda

do francecircs e o espanhol dos dois Oacute

perversidade O vatildeo vocaacutebulo de lugar desune

Por que natildeo podem antes tantas coisas unir Tu

bretatildeo queres mal ao francecircs Por que natildeo

podes como ser humano querer bem a outro ser

humano como cristatildeo a um outro cristatildeo Por

que uma tolice como essa tem mais poder sobre

os homens do que tatildeo grande nuacutemero de elos da

natureza de tantos viacutenculos instituiacutedos por

Cristo A geografia eacute capaz de separar os corpos

natildeo as almas O Reno separava antigamente o

territoacuterio gaulecircs do germacircnico mas o Reno natildeo

separa o cristatildeo do cristatildeo Os Pirineus separam

os espanhoacuteis dos franceses mas natildeo os separam

da comunhatildeo da Igreja Se o mar separa os

ingleses dos franceses natildeo rompe a unidade da

religiatildeo O apoacutestolo Paulo indigna-se ao ouvir

entre os cristatildeos as seguintes palavras Eu sou

de Apolos eu sou de Cefas eu sou de Paulordquo 130

e natildeo tolera que cognomes iacutempios dissolvam a

conciliaccedilatildeo universal realizada por Cristo Como

podemos julgar que o nome da paacutetria de cada um

130

ldquoEgo quidem sum Pauli ego autem Apollo ego vero Cephae ego autem Christi divisus est Christusrdquo (Prima ad

Corinthios 112-13)

168

distrahunt E Gallis Germanos faciunt ne

vel nominis consortio coalescat amicitia

Si in actionibus odiosis velut divortii

nec litem facile recipit iudex nec

quamlibet admittit probationem cur isti

in re omnium odiosissima quamlibet

frivolam causam admittunt [720]

Quinpotius id quod res est cogitant

mundum hunc communem esse patriam

omnium si patriae titulus conciliat ab

iisdem maioribus ortos omneis si facit

amicos sanguinis affinitas Ecclesiam

unam esse familiam ex aequo communem

omnibus Si domus eadem copulat

necessitudines in hanc partem ingeniosos

esse par est Toleras quaedam in socero

non ob aliud nisi quod socer est et nihil

toleras [725] in eo qui religionis

consortio frater est Multa condonas

generis propinquitati et nihil condonas

affinitati religionis Certe nullum

vinculum arctius alligat quam Christi

sodalitas Cur id solum ob oculos

obversatur quod animum exulcerat Si

paci faves sic cogita potius in hoc

laesit sed saepe alias profuit aut alieno

impulsu laesit

seja justificativa para que um povo se esforce por

exterminar outro povo Mas nem isso basta para

alguns espiacuteritos aacutevidos de guerras que de forma

perversa e acintosa se empenham em achar

pretextos para dissensotildees Procuram inclusive

dividir a Franccedila e a desagregam atraveacutes de

palavras que nem os mares nem os montes nem

as diferentes proviacutencias tecircm poder para desunir

Chamam a franceses ldquoalematildeesrdquo para impedir

que a amizade se fortaleccedila ainda que seja pela

comunhatildeo de nome Se nos processos litigiosos

como por exemplo o divoacutercio o juiz natildeo aceita

facilmente a causa nem admite irrestritamente

qualquer prova por que os homens admitem

qualquer causa friacutevola para a guerra que eacute a

mais litigiosa de todas as coisas Por que natildeo

pensam antes no seguinte Se a mera designaccedilatildeo

a paacutetria eacute capaz de unir os concidadatildeos este

mundo eacute a paacutetria comum de todos se a afinidade

de sangue eacute capaz de estabelecer relaccedilotildees de

amizade todos nascemos dos mesmos

antepassados se o lar em comum forma laccedilos de

parentesco a Igreja eacute uma soacute famiacutelia comum a

todos por igual Eacute justo que se mostrem

engenhosos tambeacutem nesse sentido Toleras algo

desagradaacutevel em teu sogro pelo simples fato de

ele ser teu sogro e natildeo toleras o quer for naquele

que pela comunidade de religiatildeo eacute teu irmatildeo

Se perdoas muitas coisas pelo parentesco

consanguiacuteneo natildeo perdoas os que satildeo teus

parentes pela religiatildeo Ora o fato eacute que nenhum

viacutenculo liga com maior forccedila do que a

169

[730] Postremo quemadmodum

apud Homerum dissidii causas quod

inter Agamemnonem et Achillem

intercesserat in Aten Deam reiiciunt qui

vocant ad concordiam ita quae excusari

non possunt aliquando fatis imputentur

aut malo cuipiam si libet genio et in

haec odium ab ipsis hominibus

transferatur Cur magis ad perniciem

suam sapiunt quam ad tuendam

felicitatem Cur ad [735] malum quam

ad bonum sunt oculatiores Qui paulo

cordatiores sunt expendunt consyderant

circumspiciunt priusquam privatum

quoque negotium aggrediantur Et clausis

oculis praecipites in bellum ipsi sese

coniiciunt praesertim cum semel

admissum excludi non possit quin e

pusillo fit maximum ex uno plura ex

incruento cruentum maxime cum haec

procella non unum aut alterum [740]

affligat sed universos pariter involvat

Quod si vulgus haec parum expendit

certe principis et optimatum partes sunt

fraternidade em Cristo Por que soacute se apresenta

aos olhos aquilo que a mente abomina Se tu

procuras a paz eacute melhor que tu cogites contigo

mesmo ldquose nisso ele me magoou talvez incitado

por algueacutem em outros casos poreacutem ele me tem

sido uacutetilrdquo

Finalmente assim como em Homero131

aqueles que aconselham a concoacuterdia lanccedilaram

toda culpa do atrito entre Agamenon e Aquiles

em Ates deusa da vinganccedila da mesma forma se

imponha aos fados ou talvez a algum mau

gecircnio a culpa daquelas ofensas que satildeo

indesculpaacuteveis transferindo para esses seres

imaginaacuterios o oacutedio contra os homens Por que os

homens satildeo mais inteligentes para sua proacutepria

destruiccedilatildeo do que para a preservaccedilatildeo do seu bem

estar Por que satildeo mais cuidadosos com o mal

do que com o bem Aqueles que tecircm um pouco

de sensatez preferem pesar considerar e

observar antes de se lanccedilarem a qualquer

negoacutecio privado Mas ainda assim eles se

lanccedilam de cabeccedila na guerra com os olhos

fechados apesar de a guerra ser um tipo de mal

que uma vez criado natildeo pode ser extirpado

facilmente Antes a partir de um pequeno

conflito faz-se um enorme de uma soacute batalha

muitas de um ataque incruento uma carnificina

chega-se ao cuacutemulo com esta procela que natildeo

abate apenas um ou dois mas atinge a todos por

igual Se o povo natildeo compreende essas coisas

131

Cf Homero Iliacuteada IX 505 XIX 91

170

haec secum reputare Sacerdotum est ista

rationibus omnibus infulcire volentibus

ac nolentibus ingerere Haerebunt tandem

si nusquam non audiantur

[744] Ad bellum gestis Primum

inspice cuiusmodi res sit pax cuiusmodi

bellum [745] quid illa bonorum quid

hoc malorum secum vehat atque ita

rationem ineas num expediat pacem

bello permutare Si res quaedam

admirabilis est regnum undique rebus

optimis florens bene conditis urbibus

bene cultis agris optimis legibus

honestissimis disciplinis sanctissimis

moribus cogita tecum haec felicitas mihi

perturbanda est si bello Contra si

quando conspexisti ruinas urbium [750]

dirutos vicos exusta fana desolatos

agros et id spectaculum miserandum ut

est visum est cogita hunc esse belli

fructum Si grave iudicas sceleratam

conductitiorum militum colluviem in

tuam regionem inducere hos civium

tuorum malo alere his inservire his

blandiri immo horum arbitrio te ipsum ac

tuam incolumitatem committere fac

cogites hanc esse belli conditionem Si

abominaris [755] latrocinia haec docet

bellum Si exsecraris parricidium hoc in

cabe aos priacutencipes e aos liacutederes refletir sobre

tudo isso consigo mesmos Com maior razatildeo

ainda cabe aos sacerdotes querendo ou natildeo

defender com todos os argumentos a causa

paciacutefica Obteratildeo o seu precircmio no final mesmo

que em nenhuma parte sejam ouvidos

Anseias pela guerra Primeiro observa

bem que eacute a paz e que eacute a guerra que bens traz

consigo a primeira e que males porta consigo a

segunda e assim ponderaraacutes se vale a pena

trocar a paz pela guerra Se um reino florescente

em toda parte com tudo o que haacute de melhor com

cidades bem construiacutedas com campos bem

cultivados com oacutetimas leis com o ensino mais

honesto e com os costumes mais santos eacute algo

admiraacutevel considera contigo mesmo se faccedilo a

guerra essa minha felicidade deve ser

perturbada Por outro lado se ao contemplares

as ruiacutenas das cidades as aldeias destruiacutedas os

templos em chamas e os campos desolados isso

te pareceu tal como de fato eacute um espetaacuteculo

lastimaacutevel pensa que satildeo estes os frutos da

guerra Se julgas perigoso a turba criminosa dos

mercenaacuterios ser conduzida para teu paiacutes com a

desgraccedila dos teus suacuteditos tu os alimentares ao

servi-los e bajulaacute-los e mais entregares a ti

mesmo e a tua seguranccedila ao arbiacutetrio desses

homens dedica-te a pensar que essa eacute a condiccedilatildeo

da guerra Se abominas os latrociacutenios a guerra eacute

que os ensina se execras os parriciacutedios na

guerra eacute que se aprendem De fato que hesitaccedilatildeo

vai sentir quando levado por forte emoccedilatildeo a

171

bello discitur Nam qui vereatur unum

occidere commotus qui levi

auctoramento conductus tot homines

iugulat Si praesentissima Reipublicae

pestis est legum neglectus silent leges

inter arma Si foedum existimas stuprum

incestum et his turpiora horum omnium

bellum magister est Si fons omnium

malorum est impietas [760] et religionis

neglectus haec belli procellis prorsus

obruitur Si iudicas pessimum esse

reipublicae statum cum plurimum

possunt qui pessimi sunt in bello

regnant sceleratissimi et quos in pace

suffigas in crucem horum in bellis

primaria est opera Quis enim melius per

devia ducet copias quam latro

exercitatus Quis fortius diripiet aedes

aut spoliabit templa quam parietum

perfossor aut sacrilegus [765] Quis

animosius feriet hostem et hauriet ferro

vitalia quam gladiator aut parricida

Quis aeque idoneus ad iniiciendum ignem

urbibus aut machinis quam incendiarius

Quis aeque contemnet fluctus marisque

discrimina ac pirata diutinis

praedationibus exercitus Vis palam

cernere quam res sit impia bellum

matar um soacute homem quem em troca de um

pequeno soldo degola tatildeo grande nuacutemero de

homens Se a praga se abate sobre a repuacuteblica

haacute indeferenccedila pela justiccedila porque as leis

silenciam132

em meio agraves armas

133 Se o estupro a

violecircncia e coisas ainda mais nefandas que estas

te parecem torpes lembra-te de que eacute justamente

a guerra a mestra de todas as accedilotildees mais

horrendas Se a impiedade e a negligecircncia para

com a religiatildeo satildeo a fonte de todos os males

considera que ela eacute totalmente destruiacuteda pelas

procelas da guerra Se julgas que a pior situaccedilatildeo

da repuacuteblica eacute quando muito podem os que satildeo

peacutessimos na guerra reinam os mais criminosos e

tecircm proeminecircncia aqueles que em tempos de

paz condenas agrave cruz Pois quem pode guiar as

tropas por caminhos tortuosos melhor do que um

experiente assaltante de estradas Quem estaacute

mais seguro em roubar casas ou pilhar templos

do que o arrombador ou o sacriacutelego 134

Quem eacute

mais valente em debelar o inimigo e furar-lhe as

entranhas com a espada do que o gladiador e o

parricida Quem eacute mais haacutebil em tocar fogo nas

cidades ou nas maacutequinas de guerra do que o

incendiaacuterio Quem poderia suportar melhor as

ondas e os perigos do mar do que o pirata

exercitado dia e noite nos saques Queres ver

com clareza quanto eacute iacutempia uma guerra

132

Cicero Mil 4 10

133 A expressatildeo ldquosilent leges inter armardquo remonta a Ciacutecero (Pro Milone 410) e Luciano (Pharsade 1277)

ldquoleges bello siluere coactaerdquo

134 Plauto Pseud 9 8 6

172

animadverte per quos geritur

[770] Si pio principi nihil

antiquius esse debet quam suorum

incolumitas huic bellum in primis

invisum sit oportet Si principis felicitas

est imperare felici pacem potissimum

amplecti debet Si praecipue optandum

bono principi ut imperet quam optimis

bellum detestetur oportet unde scatet

omnis impietatis sentina Si suas opes

esse putat quidquid cives possident

bellum omnibus rationibus [775] vitet

Quod ut felicissime cadat certe facultates

omnium atterit et quod honestis artibus

partum est in immanes quosdam

carnifices erogandum Iam illud etiam

atque etiam perpendant suam cuique

blandiri causam et suam cuique spem

arridere cum illa saepenumero pessima

sit quae commoto videatur aequissima

Et haec non raro fallit Sed finge causam

iustissimam finge exitum [780] belli

prosperrimum rationem fac ineas

omnium incommodorum quibus gestum

est bellum et commoditatum quas peperit

victoria et vide num tanti fuerit vincere

Vix umquam victoria contingit incruenta

Iam habes tuos humano sanguine

pollutos Ad haec supputa morum

publicaeque disciplinae iacturam nullo

compendio sarciendam Exhauris tuum

fiscum expilas populum oneras bonos

Observa quem as faz

Se para um priacutencipe piedoso nada deve

ser mais precioso do que a seguranccedila dos seus

suacuteditos eacute necessaacuterio que a guerra lhe seja

detestaacutevel acima de todas as coisas Se a

felicidade do priacutencipe consiste em governar para

a felicidade do seu povo ele deve optar

preferencialmente pela paz Se o principal

objetivo do bom priacutencipe consiste em governar

sobre os melhores eacute necessaacuterio que odeie a

guerra da qual jorra o esgoto de todo tipo de

impiedade Se o priacutencipe pensa que satildeo riquezas

suas os bens que seus suacuteditos possuam entatildeo

que evite a guerra por todas as razotildees pois eacute

certo que esta ainda que venha a ser vencida

arruiacutena os recursos de todos e as riquezas

conquistadas pelo trabalho honesto tecircm de ser

gastas com o sustento de certos carrascos

selvagens Eacute necessaacuterio ainda que considerem

mais e mais que todo homem lisonjeia-se com

sua proacutepria causa e a proacutepria esperanccedila que

acalenta lhe parece mais risonha a qual ainda

que muitas vezes se torne a pior das realidades

induz ao erro e parece justiacutessima a quem estaacute

perturbado Supotildee a mais legiacutetima das causas

considera o mais feliz desfecho para uma guerra

calcula todos os prejuiacutezos inerentes ao estado de

guerra e o lucro gerado pela vitoacuteria E vecirc se a

vitoacuteria compensou o investimento Quase nunca

ocorre uma vitoacuteria sem sanguinolecircncia o que

conquistaste estaraacute contaminado de sangue

humano Soma a isso que para obter a vitoacuteria os

173

[785] ad facinus excitas iacutemprobos neque

vero confecto bello protinus et belli

reliquiae sopitae sunt Obsolescunt artes

includuntur negociatorum commercia Ut

hostem includas prius temet ipsum a tot

regionibus cogeris excludere Ante

bellum omnes finitimae regiones tuae

erant pax enim rerum commerciis facit

omnia communia Vide quantam rem

egeris nunc vix tua est quae maxime tua

[790] est ditio Ut oppidulum excindas

quot machinis quot tentoriis opus est

Imitatitiam urbem facias oportet ut

veram evertas at minoris aliud verum

oppidum exstrui poterat Ne liceat hosti

prodire ex oppido tu exsul a patria sub

dio dormis Minoris constaturum erat

aedificare nova moenia quam aedificata

machinis demoliri Ut ne computem hic

quod pecuniarum effluit inter exigentium

[795] recipientium ac ducum digitos

quae sane pars est non minima Quod si

horum singula ad verum calculum

revoces ni compereris decima

impendiorum parte pacem redimi

potuisse patiar aequo animo me

profligari undique Sed parum excelsi

animi tibi videare si quid remittas

iniuriarum Immo nullum est certius

argumentum humilis animi minimeque

regii quam ulcisci Maiestati tuae [800]

non nihil decedere putas si cum finitimo

costumes e a ordem puacuteblica satildeo devastados e

isso estaacute perdido sem possibilidade de reparo

Exaures o teu tesouro expolias o povo oneras os

bons incitas os iacutemprobos para o crime E

acabada a guerra natildeo creias que as suas

consequecircncias se esvairiam imediatamente As

artes fragilizam-se os tratos comerciais cessam

Para sitiares o inimigo eacutes forccedilado a abandonar

primeiro muitas regiotildees Antes da guerra todos

os territoacuterios vizinhos eram teus pois com as

trocas comerciais a paz torna todos os bens

comuns Presta atenccedilatildeo no que fizeste Com a

guerra mal se pode dizer agora que te pertence o

teu proacuteprio territoacuterio Quantas maacutequinas de

guerra e quantas tendas satildeo necessaacuterias para

destruir uma cidadezinha Eacute preciso que

construas quase uma cidade falsa para

conquistares uma verdadeira quando seria

possiacutevel por preccedilo menor construir outra cidade

verdadeira Para impedir que o inimigo saia da

cidade sitiada dormes ao ar livre exilado da tua

paacutetria Sairia muito mais barato levantar novas

muralhas do que demolir as jaacute construiacutedas com

maacutequinas de guerra Isso sem contar a

quantidade de dinheiro que deve ser repassado agraves

matildeos dos cobradores dos recebedores e dos

generais que aliaacutes natildeo eacute de modo algum a

menor parte de teus gastos Se depois de

calculares um orccedilamento exato de cada um

desses itens natildeo chegares agrave conclusatildeo de que a

paz poderia ter sido comprada pela deacutecima parte

do que a guerra custou darei de bom grado

174

principe agens et fortasse cognato aut

affini fortassis alias bene de te merito de

tuo iure decedas aliquantulum At quanto

humilius deiicis maiestatem tuam dum

barbaris cohortibus et infimae

sceleratorum feci numquam explendae

auro subinde litare cogeris dum ad Cares

vilissimos simul ac nocentissimos

blandus ac supplex mittis legatos dum

[805] tuum ipsius caput dum tuorum

fortunas illorum credis fidei quibus nihil

est neque pensi neque sancti Quod siquid

iniquitatis videbitur habere pax cave sic

cogites hoc perdo sed tanti pacem emo

[808] At dixerit argutior aliquis

Facile donarim si res ad me privatim

pertineat Princeps sum negotium

publicum velim nolim ago Non facile

permissatildeo para que me expulsem de toda parte

Contudo a ti pareccedila pouca grandeza de espiacuterito

se retribuiacuteres alguma das ofensas Na verdade

eu te asseguro que natildeo haacute prova mais certa de

um espiacuterito mesquinho e nada reacutegio do que o

desejo de vinganccedila Julgas rebaixar tua

majestade se de modo magnacircnimo renuncias a

um pouquinho de teu direito quando tens uma

pendecircncia com um priacutencipe vizinho que aliaacutes

bem pode ser teu parente ou chegado por

afinidade e que talvez em outra ocasiatildeo te

tenha feito o bem Mas como humilhas a tua

majestade muito mais quando eacutes forccedilado a

aplacar com ouro os insaciaacuteveis esquadrotildees de

baacuterbaros ou ainda pior a mais vil raleacute dos

criminosos quando numa posiccedilatildeo de lisonja e

suacuteplica envias embaixadores para contratar os

mais vis e perversos mercenaacuterios135

quando

fazes a tua proacutepria cabeccedila e a sorte dos teus

suacuteditos depender da lealdadade desses teus

aliados para quem natildeo existe nada de sagrado ou

respeitaacutevel Quanto a isso se parecer que a paz

tem algo de iniacutequo evita pensar assim ldquoEu

perco istordquo mas pensa antes ldquopor tanto compro

a pazrdquo

Mas algum priacutencipe mais arguto poderia

objetar ldquose dependesse soacute de mim perdoaria

com facilidade Como sou priacutencipe queira ou

natildeo queira devo cuidar de um interesse

135

Segundo Diodoro Siacuteculo Careacutes teria sido um general ateniense que viveu no seacuteculo IV a C Careacutes passou

para a histoacuteria como traidor porque estando os gregos em guerra contra os argivos Careacutes evitou atacar os

inimigos e feriu os aliados de Atenas promoveu uma guerra civil e desacreditou seu povo diante de seus aliados

(Diodoro Siacuteculo Biblioteca Histoacuterica Livro XV 73)

175

bellum suscipiet [810] qui nihil nisi

publicum spectat atqui contra videmus

omneis belli causas ex his rebus nasci

quae nihil ad populum pertineant Vis

hanc aut illam ditionis partem vindicare

quid istud ad populi negotium Vis

ulcisci qui filiae renunciavit quid hoc ad

rempublicam Haec expendere haec

perspicere vere sapientis vereque magni

est principis Quis umquam aut latius

imperavit aut splendidius [815] Octavio

Augusto42

At is cupiebat etiam deponere

imperium si quem vidisset reipublicae

magis salutarem principem Merito

laudata est ab egregiis auctoribus vox illa

cuiusdam imperatoris Pereant inquit

filii mei si quis alius melius sit

reipublicae consulturus Hos animos

reipublicae praestiterunt homines impii

quod ad Christi religionem attinet et

Christiani principes usque [820] adeo

vilem ducunt populum Christianum ut

gravissimo orbis incendio privatas suas

cupiditates vel ulcisci velint vel explere

puacuteblicordquo Ora quem atende exclusivamente ao

interesse puacuteblico natildeo aceitaraacute a guerra com

facilidade A verdade eacute que tambeacutem aqui vemos

que quase todas as causas da guerra nascem de

interesses que em nada concernem ao povo

Queres reivindicar teu domiacutenio sobre este ou

aquele feudo Pois que proveito tira o povo

desse projeto Queres tirar a desforra do priacutencipe

que necusou desposar a tua filha136

Mas o que

isto tem a ver com os interesses da repuacuteblica

Refletir sobre essas questotildees e observar todas

essas circunstacircncias eacute proacuteprio de um priacutencipe

saacutebio e grande Quem eacute que reinou de modo

mais esplecircndido e por tanto tempo do que Otaacutevio

Augusto Mas ele proacuteprio desejava vivamente

renunciar ao impeacuterio caso encontrasse algueacutem

que pudesse vir a ser um priacutencipe mais capaz de

promover a repuacuteblica137

Com meacuterito foi louvado

pelos autores egreacutegios aquela fala do imperador

ldquoPereccedilam os meus filhos se houver algueacutem que

cuide melhor da repuacuteblicardquo138

Homens iacutempios

do ponto de vista da religiatildeo de Cristo foram

capazes de cultivar esses pensamentos acerca da

repuacuteblica e agora priacutencipes cristatildeos desprezam

42

deponere imperium (cf Suet Aug 28)

136 Segundo Margolin (1992 p 950) alusatildeo agrave filha do Imperador Maximiliano Margarida da Aacuteustria noiva de

Carlos VIII mas rejeitada por seu pai em 1492

137 Como tradutor tenho convicccedilatildeo de que Erasmo utiliza a palavra repuacuteblica em um sentido muito proacuteximo ao

que hoje denominamos estado O priacutencipe natildeo protege a repuacuteblica entendida como sistema de governo oposto agrave

monarquia mas o estado como um aparato que visa o bem comum Conforme Suetocircnio (Iulius 83) Ceacutesar

Augusto foi o fundador do Impeacuterio Romano e primeiro Imperador que administrou o impeacuterio por mais de 40

anos Augusto iniciou o periacuteodo de paz relativa chamado de Pax Romana Embora tenha expandido o impeacuterio

estabeleceu relaccedilotildees paciacuteficas com outros reinos e reformou o sistema tributaacuterio desenvolveu as vias romanas

com um sistema oficial de correio e outras obras arquitetocircnicas em Roma obtendo grande popularidade

138 Cf Hist Aug Auid Cast 2 8

176

[822] Iam audio quosdam ita

tergiversantes ut negent se tutos esse

posse nisi vim improborum acriter

propellant Cur igitur inter innumeros

imperatores Romanos soli Antonini pius

et philosophus petiti non sunt Nisi quod

nemo tutius [825] regnat quam qui

paratus est et deponere utpote quod

reipublicae gerat non sibi Quod si nihil

vos movet neque naturae sensus neque

pietatis respectus neque tanta calamitas

certe Christiani nominis probrum animos

vestros in concordiam redigat Quota

mundi portio tenetur a Christianis Atque

haec tamen est illa civitas in aedito monte

sita spectaculum facta deo et hominibus

[830] At quid sentire putandum est quid

loqui quae probra in Christum evomere

Christiani nominis hostes ubi vident

Christianos sic inter sese concertare

levioribus de causis quam ethnici

crudelius quam impii machinis

tetrioribus quam ipsi Quorum inventum

est bombarda Nonne Christianorum Et

quo res sit indignior his induuntur

apostolorum nomina insculpuntur

o povo cristatildeo a tal ponto que incendeiam o

mundo inteiro para saciar sua sede de cobiccedila ou

seu desejo de vinganccedila

Jaacute ouccedilo o argumento de alguns que me

criticam Negam que se possa conservar sua

seguranccedila se natildeo lutarem de forma acerba contra

o iacutempeto dos iacutemprobos Por que entatildeo dentre os

inuacutemeros imperadores romanos somente os

Antoninos139

o Pio e o Filoacutesofo natildeo foram

atacados Natildeo seraacute porque ningueacutem reina com

maior seguranccedila do que aquele que estaacute

preparado para renunciar sabendo que serve aos

interesses da repuacuteblica e natildeo a seus proacuteprios

caprichos Se nada disso vos comove nem o

bom senso da natureza nem o respeito oriundo

da piedade nem a visatildeo de tantas calamidades

que ao menos o oproacutebrio que recai sobre o nome

cristatildeo conduza as vossas mentes agrave concoacuterdia

Qual eacute a porccedilatildeo do mundo pertencente aos

cristatildeos Esta eacute no entanto aquela cidade

edificada sobre um monte elevado espetaacuteculo

para Deus e para os homens Mas que se deve

julgar que pensam O que dizem Que espeacutecie

de ofensas se espera que vomitem contra Cristo

os inimigos do nome cristatildeo ao verem o modo

como os cristatildeos lutam entre si movidos por

causas mais insignificantes do que as dos

pagatildeos de modo mais cruel do que os iacutempios e

com maacutequinas mais terriacuteveis do que aquelas que

139

O Antonino Pio mencionado por Erasmo seria o imperador romano da dinastia Nerva-Antonina que governou

entre os anos de 138 e 161 e Marcus Antonius philosophus que foi imperador conhecido sob o nome de Marcus

Aurelius Antoninus (161-180) (Historia Augusta Ant Pius 133 Marc Ant Philos 185)

177

imagines O crudelis [835] irrisio Paulus

ille pacis hortator perpetuus tartaream

machinam torquet in Christianum Si

cupimus Turcas ad Christi religionem

adducere prius ipsi simus Christiani

Numquam hoc illi credent si quod est

perspiciant nusquam magis saevire quam

apud Christianos id quod Christus unum

omnium maxime detestatus est Et quod

Homerus ethnicus demiratur in ethnicis

cum suavium [840] etiam rerum satietas

sit somni cibi potus choreae musices

belli infelicis nullam esse satietatem id

apud eos verissimum est quibus ipsum

etiam belli vocabulum abominandum

esse oportuit Roma furiosa quondam illa

bellatrix tamen Iani sui templum

aliquoties vidit clausum Et qui convenit

apud vos nullas esse bellandi ferias

Quonam ore praedicabitis eis Christum

pacis auctorem ipsi [845] perpetuis

dissidiis inter vos tumultuantes Iam quos

putatis animos addit Turcis vestra

discordia Nihil enim facilius quam

vincere dissidentes Vultis illis esse

formidabiles Concordes estote Cur ultro

vobis et praesentis vitae iucunditatem

invidetis et a futura felicitate vultis

excidere Multis malis per se obnoxia est

vita mortalium magnam molestiae

eles mesmos usam Quem inventou os canhotildees

Acaso natildeo foram os cristatildeos E para tornar isso

ainda mais indigno revestem as armas de

destruiccedilatildeo com os nomes dos Apoacutestolos e

esculpem sobre elas imagens de santos Oacute cruel

escaacuternio Que o nome de Paulo o perpeacutetuo

arauto da paz seja dado a uma maacutequina infernal

apontada contra os cristatildeos Se desejamos

converter os turcos agrave religiatildeo de Cristo eacute

necessaacuterio que primeiro noacutes mesmos sejamos

cristatildeos Nunca eles acreditaratildeo se constatarem

em toda parte ndash e isto eacute inegaacutevel ndash que grassa em

nenhum lugar mais que entre os cristatildeos aquilo

que Cristo destestou acima de todas as coisas E

aquilo que um poeta pagatildeo como Homero140

espanta a pagatildeos quando constata que haacute

saciedade ateacute para as coisas agradaacuteveis da vida

como o sono a comida a bebida as danccedilas e a

muacutesica mas natildeo para a infeliz guerra antes

deveria tecirc-lo espantado ver que era a coisa mais

verdadeira do mundo para homens que deveriam

abominar ateacute o vocaacutebulo guerra Ateacute mesmo a

outrora impetuosa Roma aquela cidade

guerreira viu muitas vezes fechado o seu templo

de Jano141

E natildeo haacute entre voacutes algueacutem que

concorde que se faccedila uma treacutegua na guerra

Como podereis abrir a boca para pregar aos

turcos sobre Cristo o autor da paz se voacutes

mesmos vos confrontais em perpeacutetuas divisotildees

internas Jaacute pensastes que reaccedilatildeo vossa discoacuterdia

140

Cf Hom Il XIII 636-639

141 Cf Suet Aug 22

178

partem adimet concordia [850] dum

mutuis officiis alius alium aut consolatur

aut iuvat Si quid boni obtinget id tum

suavius tum communius reddet

concordia dum amicus impertit amico et

benevolus benevolo gratulatur Quam

frivola sunt quamque mox peritura pro

quibus inter vos tumultus est Mors

omnibus imminet non minus Regibus

quam plebeiis Quos tumultus ciet

animalculum mox fumi in morem

evaniturum [855] In foribus adest

aeternitas Quorsum attinet pro rebus

istis umbraticis perinde moliri quasi vita

haec esset immortalis O miseros qui

felicem illam piorum vitam non credunt

aut non sperant impudentes qui sibi

pollicentur e bellis ad eam iter esse cum

illa nihil sit aliud quam ineffabilis

quaedam felicium animorum communio

cum iam ad plenum continget quod

Christus tam enixe [860] rogaverat

patrem coelestem ut sic inter se

iungerentur illi quemadmodum ipse patri

iunctus esset Ad hanc summam

concordiam qui possitis esse idonei nisi

eam interim pro virili meditemini Ut

non subito ex spurco helluone fit angelus

ita non subito ex bellatore sanguinario

martyrum et divorum socius Eia satis

iam superque fusum est Christiani si

parum est humani sanguinis satis in

produz nos turcos Pois nada mais faacutecil do que

vencer aqueles que natildeo se entendem Quereis

tornar-vos temiacuteveis para eles Ponde-vos de

acordo Por que recusais deliberadamente os

prazeres da vida presente e quereis perder os da

felicidade futura Por si soacute a vida dos mortais

estaacute repleta de muitos males mas grande parte

desse incocircmodo seria aliviada pela concoacuterdia que

faz que uns aos outros se ajudem ou ao menos

consolem-se com serviccedilos muacutetuos Se algum

benefiacutecio for dado a algueacutem a concoacuterdia faraacute tal

bem tanto mais agradaacutevel quanto mais for

extensivo aos demais o amigo partilhando-o

com o amigo e sentindo alegria com a alegria do

outro Como as guerras satildeo friacutevolas e por quatildeo

levianas questotildees se promove o conflito entre

voacutes A morte ameaccedila a todos e natildeo menos aos

reis que aos plebeus Quantas discoacuterdias produz

um animalzinho despreziacutevel que logo

desapareceraacute como fumaccedila ao vento Ao sair da

vida a eternidade estaacute agraves portas Que proveito haacute

em construir suas aspiraccedilotildees em coisas tatildeo vatildes

como se a vida presente fosse imortal Oacute

miseraacuteveis que natildeo acreditam ou natildeo esperam

aquela vida feliz dos homens piedosos Homens

impudicos que se persuadem de que existe um

caminho que leva das guerras agravequela vida

quando ela natildeo eacute senatildeo a inefaacutevel comunhatildeo de

todas as almas bem-aventuradas quando se

realizar finalmente em toda a plenitude aquilo

que Cristo havia pedido tatildeo assiduamente ao Pai

Celeste que todos se unissem como o Filho estaacute

179

[865] mutua debacchatum exitia satis

hactenus Furiis Orcoque litatum satis diu

quae Turcarum pascat oculos Acta est

fabula Saltem aliquando post nimium diu

toleratas bellorum miserias resipiscite

Quicquid hactenus insanitum est fatis

imputetur Placeat Christianis quae

quondam profanis placuit superiorum

malorum oblivio Posthac communibus

consiliis in pacis studium incumbite

[870] Et sic incumbite ut non stupeis sed

solidis atque adamantinis vinculis coeat

numquam dirumpenda

[872] Vos appello principes de

quorum nutu potissimum pendent res

mortalium qui Christi principis

imaginem inter mortales geritis

Agnoscite regis vestri vocem ad pacem

vocantis existimate totum orbem diutinis

fessum malis hoc a vobis [875] flagitare

unido ao Pai Natildeo podeis ser dignos de gozar

essa suma concoacuterdia a natildeo ser que a prepareis o

mais possiacutevel Assim como eacute impossiacutevel que

subitamente um glutatildeo sujo se transforme em um

anjo assim tambeacutem natildeo eacute de repente que de um

guerreiro sanguinaacuterio surge um amigo dos

maacutertires e dos divinos Eia Basta Jaacute se

derramou muito sangue cristatildeo como se fosse

pouco dizer sangue humano Basta de os homens

se deixarem tomar por essa loucura de

destruiccedilotildees muacutetuas Decirc-se agora um basta de

fazer oferendas agraves fuacuterias e ao Orco Basta o que

haacute muito divirte os olhos dos turcos Depois de

tolerar as miseacuterias das guerras por tanto tempo

arrependei-vos ao menos uma vez Que sejam

imputados aos fados as insanidades todas

praticadas ateacute hoje Que os cristatildeos natildeo se

envergonhem em fazer como outrora os pagatildeos

esquecer os males passados Depois por

deliberaccedilotildees comuns aplicai-vos agrave preservaccedilatildeo

da paz E aplicai-vos de tal forma que ela se

firme com laccedilos natildeo de tecido mas soacutelidos e

mais inquebraacuteveis que o diamante que jamais

romper-se-atildeo

Apelo a voacutes priacutencipes que com um

miacutenimo gesto alteram a sorte dos mortais voacutes

que representais entre os homens o exemplo do

Cristo Priacutencipe Reconhecei a voz do vosso

Mestre que vos chama agrave paz Convencei-vos de

que o mundo todo fatigado de demasiados

males suplica isso de voacutes Se haacute algueacutem a quem

uma ofensa ainda machuque parece justo que a

180

Si quid cui dolet etiam aequum est hoc

publicae omnium felicitati donare Maius

est negotium quam ut levibus causis

debeat retardari Appello vos sacerdotes

deo sacri hoc studiis omnibus exprimite

quod deo gratissimum esse scitis Hoc

depellite quod illi maxime invisum

Appello vos theologi pacis evangelium

praedicate hanc semper popularibus

auribus occinite [880] Appello vos

episcopi aliique dignitate Ecclesiastica

praeminentes ad pacem aeternis vinculis

adstringendam vestra valeat auctoritas

Appello vos primates et magistratus ut

sapientiae regum ut pietati pontificum

vestra voluntas sit adiutrix Vos appello

promiscue quicumque Christiano nomine

censemini consentientibus animis in hoc

conspirate Hic ostendite quantum valeat

adversus potentum [885] tyrannidem

multitudinis concordia Huc pariter

omnes omnia sua consilia conferant

Iungat aeterna concordia quos tam multis

rebus coniunxit natura pluribus Christus

Communibus studiis agant omnes quod

ad omnium ex aequo felicitatem pertinet

[889] Huc invitant omnia primum

ipse naturae sensus atque ipsa ut ita

dicam humanitas [890] Deinde totius

humanae felicitatis Princeps et Auctor

Christus Ad haec tam multa pacis

perdoe em nome da felicidade puacuteblica de todos

Este assunto eacute da maior prioridade para ser

protelado por motivos insignificantes Apelo a

voacutes sacerdotes consagrados para Deus

Empenhai-vos zelosamente em pregar aquilo que

sabeis que eacute a coisa mais grata a Deus e em

dissuadir daquilo que Ele mais detesta Apelo a

voacutes teoacutelogos Pregai o Evangelho da paz

trombeteai sempre isto nos ouvidos do povo

Apelo a voacutes bispos e demais dignataacuterios

eclesiaacutesticos que a vossa autoridade sirva para

atar a paz com viacutenculos eternos Apelo a voacutes

nobres e magistrados para que auxilies com a

vossa vontade a sabedoria dos reis e a piedade do

pontiacutefice Apelo a todos voacutes quem quer que

sejais que vos designeis com o nome de cristatildeo

para que vos coloqueis de acordo e sejais

unacircnimes no projeto da paz Mostrai aqui que a

concoacuterdia dos povos vale mais que tirania dos

poderosos Que todos ofereccedilam por igual todos

os seus conselhos para essa finalidade Que a

concoacuterdia eterna una aqueles a quem a natureza

uniu por muitos viacutenculos mas que Cristo uniu

por muitos mais Que todos em suas atividades

cotidianas procurem o que por igual interessa agrave

felicidade de todos

Tudo nos convida a isso Em primeiro

lugar o proacuteprio instinto da natureza e se assim

posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo

lugar o proacuteprio Cristo priacutencipe e autor de toda

felicidade humana Depois as incontaacuteveis

vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero

181

commoda tot belli calamitates Vocant

huc ipsi principum animi iam velut

adflante deo ad concordiam propensi En

pacificus ille placidusque Leo signum

omnibus extulit ad pacem invitans

vereque Christi vicarium agens Si vere

oves estis sequimini pastorem Si filii

audite patrem Vocat huc [895] ille non

titulo tantum Christianissimus Galliarum

rex Franciscus qui pacem nec emere

gravatur nec usquam suae maiestatis

habet rationem modo publicae paci

consulat hoc denique vere splendidum ac

regium esse docens de genere humano

quam optime mereri Vocat huc

clarissimus princeps Carolus incorruptae

indolis adolescens Nec abhorret Caesar

Maximilianus nec detractat [900]

inclytus Angliae rex Henricus Tantorum

principum exemplum caeteros libenter

imitari par est Maxima plebis pars

bellum detestatur pacem orat Pauculi

quidam modo quorum impia felicitas a

publica pendet infelicitate bellum optant

Quorum improbitas ut plus valeat quam

imenso das calamidades da guerra Convidam agrave

paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que

como que inspirados por Deus jaacute estatildeo

propensos agrave concoacuterdia Eis aquele paciacutefico e

tranquilo Leatildeo142

que diante de todos ergueu o

estandarte a fim de convidar agrave paz e agiu como

autecircntico Vigaacuterio de Cristo Se verdadeiramente

sois ovelhas segui o pastor Se sois filhos

escutai o pai Convida agrave paz o celebrado

Francisco143

rei da Franccedila cristianiacutessimo natildeo

apenas de tiacutetulo o qual natildeo soacute natildeo se

envergonha de comprar a paz como tambeacutem natildeo

se mostra demasiadamente zeloso de sua

majestade contanto que seja para cuidar da paz

puacuteblica ensinando enfim que eacute proacuteprio de um

espiacuterito realmente esplecircndido e reacutegio ser

merecedor da maior gratidatildeo do gecircnero humano

Convida agrave paz o preclariacutessimo Priacutencipe

Carlos144

jovem de iacutendole incorruptiacutevel E natildeo

descuida de mim o Imperador Maximiliano145

assim como natildeo deprecia Henrique o iacutenclito rei

da Inglaterra146

Eacute justo que os demais imitem

com toda alegria o exemplo de tatildeo grandes

priacutencipes O povo em sua maioria detesta a

guerra e faz votos pela paz Reduzido eacute o nuacutemero

142

Papa Leatildeo X

143 Francisco I (1494-1547) Rei da Franccedila de 1515 ateacute a sua morte Queixa da Paz foi publicada em 1517 dois

anos apoacutes Francisco herdar o governo

144 Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano Alematildeo com apenas 17 anos de

idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio Habsburgo em 1519

145 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela morreria dois anos

depois

146 Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia a catolicidade do rei

inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536

182

bonorum omnium voluntas aequum sit

nec ne vos ipsi expendite Videtis

hactenus nihil actum foederibus nihil

[905] promotum affinitatibus nihil vi

nihil ulciscendo Nunc contra periculum

facite quid possit placabilitas quid

beneficentia Bellum e bello seritur ultio

trahit ultionem Nunc gratia gratiam

pariat et beneficium beneficio invitetur

isque regalior videatur qui plus de suo

iure concesserit Non successit quod

humanis studiis gestum est At fortunabit

ipse Christus pia consilia quae se [910]

autore et auspice viderit suscipi Aderit

dexter adspirabit favebitque faventibus

ei rei cui favit ipse plurimum privatos

adfectus publica vincat utilitas

Quamquam dum huic consulitur et sua

cuique fortuna melior reddetur

principibus regnum erit augustius si piis

ac felicibus imperent ut legibus regnent

magis quam armis proceribus maior

veriorque dignitas sacerdotibus otium

tranquillius [915] populo quies uberior

et ubertas quietior nomen Christianum

formidabilius crucis hostibus Denique

singuli singulis et omnes omnibus cari

simul [917] et iucundi eritis super omnia

Christo grati cui placuisse summa

felicitas est [918] Dixi

daqueles que optam pela guerra porque sua

felicidade iacutempia depende da infelicidade puacuteblica

Ponderai voacutes mesmos se eacute justo que a maldade

destes tenha mais forccedila do que a vontade de

todos os homens bons Vedes que ateacute o presente

momento nada se conseguiu com tratados nada

foi feito com a promoccedilatildeo de matrimocircnios

poliacuteticos nada se obteve pela forccedila nada se

construiu com a vinganccedila Fazei entatildeo a

experiecircncia do poder da clemecircncia e da boa

vontade Guerra semeia guerra vinganccedila atrai

vinganccedila Que agora a indulgecircncia decirc agrave luz a

indulgecircncia e um favor feito a algueacutem convide a

outro favor Que se avalie como possuidor de

realeza aquele que mais conceder os seus

proacuteprios direitos em benefiacutecio da paz Natildeo se

realizou aquilo que foi tentado apenas com as

providecircncias humanas mas o proacuteprio Cristo traraacute

ecircxito agraves decisotildees piedosas que vir que satildeo

concebidas tendo-o como autor e guia supremo

Estaraacute presente de forma propiacutecia inspiraraacute e

favoreceraacute aqueles que favorecem aquilo a que

ele favoreceu sobremaneira Que a utilidade

puacuteblica supere as paixotildees privadas Ateacute porque

enquanto cada um se ocupa desta torna melhor

sua proacutepria sorte os priacutencipes seratildeo mais

augustos se governarem suacuteditos piedosos e

felizes reinando sob a eacutegide das leis mais do que

pelas armas Os nobres gozaratildeo de maior e mais

autecircntica dignidade os sacerdotes usufruiratildeo de

um repouso mais tranquilo o povo teraacute uma

tranquilidade mais proacutespera ou uma

183

prosperidade mais tranquila O nome cristatildeo seraacute

mais temido pelos inimigos da cruz Em suma

todos e cada um de voacutes sereis em tudo mais

amados e agradaacuteveis uns para os outros e cada

um de todos e sobretudo sereis mais gratos a

Cristo a quem agradar consiste a suma

felicidade dessa vida Tenho dito

184

185

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WOLF Etienne Deacuteclamation et fiction historique Theacuteories et pratiques de la fiction agrave

l‟eacutepoque imperial 2013 p 269-276

  • A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdamestudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • SUMAacuteRIO
  • INTRODUCcedilAtildeO
    • Estrutura do estudo introdutoacuterio
    • Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa
      • CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO RENASCIMENTO
        • 11 Origem grega
          • 111 Definiccedilatildeo
          • 112 Principais autores e escritos em grego
            • 12 A praacutetica latina
            • 13 As fontes latinas
              • 131 Discussatildeo terminoloacutegica
              • 132 O contexto republicano e o imperial
                • 14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos
                  • 141 A Retoacuterica a Herecircnio
                  • 142 Ciacutecero
                  • 143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho
                  • 144 A suasoacuteria em Secircneca
                  • 145 Quintiliano
                    • 15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento
                    • 16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos
                    • 17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas
                      • 171 Lourenccedilo Valla
                      • 172 Thomas More
                        • 18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas
                        • 19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas
                        • 110 Conclusotildees do capiacutetulo
                          • CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ
                            • 21 Definiccedilotildees erasmianas
                            • 22 Temas
                            • 23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes
                              • 231 Isoacutecrates
                              • 232 Plutarco
                              • 233 Luciano
                                • 24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo
                                • 25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas
                                • 26 Declamaccedilatildeo escrita e integral
                                • 27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico
                                • 28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz
                                • 29 A disposiccedilatildeo retoacuterica
                                • 210 As sentenccedilas e os adaacutegios
                                • 211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes
                                • 213 Conclusotildees do capiacutetulo
                                  • CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ
                                    • 31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo
                                    • 32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas
                                    • 33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio
                                    • 34 Personificaccedilotildees femininas
                                    • 35 A deusa Pax
                                    • 36 A Paz enquanto saacutebia
                                    • 37 A Paz enquanto teoacuteloga
                                    • 38 A Paz enquanto viacutetima
                                    • 39 Conclusatildeo do capiacutetulo
                                      • CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                      • NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA COMENTADA
                                      • BIBLIOGRAFIA
                                        • Fontes primaacuterias
                                        • Traduccedilotildees da Queixa da Paz em ordem cronoloacutegica
                                        • Outras fontes e traduccedilotildees
                                        • Dicionaacuterios
                                        • Estudos
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