A Desobediência Civil - Livro

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    A DESOBEDINCIA CIVIL

    Henry David Thoreau

    Aceito com entusiasmoo lema 'O melhor governo o que menos governa'; egostaria que ele fosse apli-cado mais rpida e siste-maticamente.

    Levado s ltimas con-

    sequncias, este lema si-gnifica o seguinte, no quetambm creio: 'O melhorgoverno o que no go-verna de modo algum'; e,quando os homens estive-rem preparados, ser esseo tipo de governo que te-

    ro.O governo, no melhor

    dos casos, nada mais doque um artifcio conveni-ente; mas a maioria dosgovernos por vezes umainconvenincia, e todo o

    governo algum dia acabapor ser inconveniente.

    As objees que tmsido levantadas contra aexistncia de um exrcitopermanente, numerosas esubstantivas, e que mere-

    cem prevalecer, podem

    tambm, no fim das con-tas, servir para protestarcontra um governo perma-nente.

    O exrcito permanente apenas um brao do go-verno permanente.

    O prprio governo, que simplesmente uma formaque o povo escolheu paraexecutar a sua vontade,est igualmente sujeito aabusos e perverses antesmesmo que o povo possa

    agir atravs dele.Prova disso a atual

    guerra contra o Mxico,obra de um nmero relati-vamente pequeno de indi-vduos que usam o gover-no permanente como uminstrumento particular; issoporque o povo no teriaconsentido, de incio, umainiciativa dessas.

    Esse governo norte-americano - que vem a serele seno uma tradio,ainda que recente, tentan-

    do-se transmitir inteira

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    posteridade, mas que acada instante vai perdendopores da sua integrida-

    de? Ele no tem a foranem a vitalidade de umnico homem vivo, pois umnico homem pode faz-lodobrar-se sua vontade.

    O governo uma esp-cie de revlver brinquedo

    para o prprio povo; e elecertamente vai quebrar sepor acaso os norte-americanos o usarem seri-amente uns contra os ou-tros, como uma arma deverdade.

    Mas nem por isso ele menos necessrio; pois opovo precisa dispor deuma ou outra mquinacomplicada e barulhentapara preencher a sua con-cepo de governo.

    Desta forma, os gover-nos so a prova de comoos homens podem ter su-cesso no ato de oprimir emproveito prprio, no im-portando se a opresso sevolta tambm contra eles.

    Devemos admitir queele excelente; no entan-

    to, este governo em simesmo nunca estimulouqualquer iniciativa a no

    ser pela rapidez com quese disps a no atrapalhar.

    Ele no mantm o paslivre. Ele no povoa as ter-ras do oeste. Ele no edu-ca.

    O carter inerente dopovo norte-americano oresponsvel por tudo o quetemos conseguido fazer; eele teria conseguido fazerconsideravelmente mais seo governo no tivesse sidopor vezes um obstculo.

    Pois o governo umartifcio atravs do qual oshomens conseguiriam debom grado deixar em pazuns aos outros; e, como jfoi dito, a sua conveninciamxima s ocorre quando

    os governados so mini-mamente molestados pe-los seus governantes.

    Se no fossem feitos deborracha da ndia, os ne-gcios e o comrcio nuncaconseguiriam ultrapassaros obstculos que os le-gisladores teimam em

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    plantar no seu caminho; ese fssemos julgar estessenhores levando em

    conta exclusivamente osefeitos dos seus atos - es-quecendo as suas inten-es -, eles mereceriam aclassificao dada e aspunies impostas a essaspessoas nocivas que gos-tam de obstruir as ferrovi-as.

    No entanto, quero mepronunciar em termos pr-ticos como cidado, dis-tintamente daqueles quese chamam antigovernis-tas: o que desejo imedia-

    tamente um governomelhor, e no o fim do go-verno.

    Se cada homem ex-pressar o tipo de governocapaz de ganhar o seurespeito, estaremos mais

    prximos de conseguirform-lo.

    No final das contas, omotivo prtico pelo qual sepermite o governo da mai-oria e a sua continuidade -uma vez passado o poder

    para as mos do povo -

    no a sua maior tendn-cia a emitir bons juzos,nem porque possa parecer

    o mais justo aos olhos daminoria, mas sim porqueela (a maioria) fisica-mente a mais forte.

    Mas um governo noqual prevalece o mandoda maioria em todas as

    questes no pode serbaseado na justia,mesmo nos limites da ava-liao dos homens.

    No ser possvel umgoverno em que a maioriano decida virtualmente o

    que certo ou errado? Noqual a maioria decida ape-nas aquelas questes squais seja aplicvel a nor-ma da convenincia? Deveo cidado desistir da suaconscincia, mesmo porum nico instante ou em

    ltima instncia, e se do-brar ao legislador? Por queento estar cada homemdotado de uma conscin-cia? Na minha opinio de-vemos ser em primeirolugar homens, e s entosditos.

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    No desejvel cultivaro respeito s leis no mes-mo nvel do respeito aos

    direitos.A nica obrigao que

    tenho direito de assumir fazer a qualquer momentoaquilo que julgo certo.

    Costuma-se dizer, ecom toda a razo, queuma corporao no temconscincia; mas uma cor-porao de homens cons-cienciosos uma corpora-o com conscincia.

    A lei nunca fez os ho-mens sequer um pouco

    mais justos; e o respeitoreverente pela lei tem le-vado at mesmo os bem-intencionados a agir quoti-dianamente como mensa-geiros da injustia.

    Um resultado comum e

    natural de um respeito in-devido pela lei a viso deuma coluna de soldados -coronel, capito, cabos,combatentes e outros -marchando para a guerranuma ordem impecvel,cruzando morros e vales,contra a sua vontade, e

    como sempre contra o seusenso comum e a suaconscincia; por isso essa

    marcha muito pesada efaz o corao bater forte.

    Eles sabem perfeita-mente que esto envolvi-dos numa iniciativa maldi-ta; eles tm tendnciaspacficas.

    O que so eles, ento?Chegaro a ser homens?Ou pequenos fortes epaiis mveis, a servio dealgum inescrupuloso de-tentor do poder? s vi-sitar o Estaleiro Naval e

    contemplar um fuzileiro:eis a o tipo de homem queum governo norte-americano capaz de fa-bricar - ou transformar coma sua magia negra -, umasombra plida, uma vagarecordao da condio

    humana, um cadver dep e vivo que, no entanto,se poderia considerar en-terrado sob armas comacompanhamento fnebre,embora possa acontecerque 'No se ouviu um rufarnem sequer um toque desilncio enquanto mura-

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    lha o seu corpo levamosnenhum soldado disparouuma salva de adeus sobre

    o tmulo onde jaze o herique enterramos'.

    Desta forma, a massade homens serve ao Esta-do no na sua qualidadede homens, mas sim comomquinas, entregando os

    seus corpos.Eles so o exrcito

    permanente, a milcia, oscarcereiros, os polcias,posse comitatus, e assimpor diante.

    Na maior parte dos ca-

    sos no h qualquer livreexerccio de escolha ou deavaliao moral; ao contr-rio, estes homens nivelam-se madeira, terra e spedras; e bem possvelque se consigam fabricar

    bonecos de madeira com omesmo valor de homensdesse tipo.

    No so mais respeit-veis do que um espantalhoou um monte de terra.

    Valem tanto quanto ca-

    valos e cachorros.

    No entanto, comumque homens assim sejamapreciados como bons ci-

    dados.H outros, como a mai-

    oria dos legisladores, pol-ticos, advogados, funcio-nrios e dirigentes, queservem ao Estado princi-palmente com a cabea, e

    bem provvel que elessirvam tanto ao Diaboquanto a Deus - sem in-teno -, pois raramentese dispem a fazer distin-es morais.

    H um nmero bastante

    reduzido que serve aoEstado tambm com a suaconscincia; so os heris,patriotas, mrtires, refor-madores e homens, queacabam por isso necessa-riamente resistindo, maisdo que servindo; e o Esta-

    do trata-os geralmentecomo inimigos.

    Um homem sbio sser de fato til como ho-mem, e no se sujeitar condio de 'barro' a sermoldado para 'tapar um

    buraco e cortar o vento';

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    ele preferir deixar essepapel, na pior das hipte-ses, para as suas cinzas:

    'A minha origem nobredemais para que eu sejapropriedade de algum.Para que eu seja o segun-do no comando ou um tilservial ou instrumento dequalquer Estado soberanodeste mundo' Os que seentregam completamenteaos seus semelhantes sopor eles consideradosinteis e egostas; masaqueles que se do parci-almente so entronizadoscomo benfeitores e filan-

    tropos.Que comportamento di-

    gno deve ter um homemperante o atual governovigente nos Estados Uni-dos? A minha resposta que ele inevitavelmente se

    degrada pelo fato de estarassociado a ele.

    Nem por um minutoposso considerar o meugoverno uma organizaopoltica que tambm ogoverno do escravo.

    Todos reconhecem o

    direito revoluo, ouseja, o direito de negarlealdade e de oferecer re-

    sistncia ao governo sem-pre que se tornem grandese insuportveis a sua tira-nia e ineficincia.

    No entanto, quase to-dos dizem que tal noacontece agora. Conside-

    ram, porm, que issoaconteceu em 1775.

    Se algum me dissesseque o nosso governo mau porque estabeleceucertas taxas sobre bensestrangeiros que chegam

    aos seus portos, o maisprovvel que eu no cri-asse qualquer caso, poisposso muito bem passarsem eles: todas as mqui-nas tm atrito e talvez issofaa com que o bom e omau se compensem.

    De qualquer forma, fa-zer um rebulio por causadisso um grande mal.

    Mas quando o prprioatrito chega a construir amquina e vemos a orga-nizao da tirania e doroubo, afirmo que deve-

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    mos repudiar essa mqui-na.

    Em outras palavras,quando um sexto da po-pulao de um pas que seelegeu como o refgio daliberdade composto deescravos, e quando todoum pas injustamenteassaltado e conquistado

    por um exrcito estrangei-ro e submetido lei marci-al, devo dizer que no cedo demais para a rebeli-o e a revoluo dos ho-mens honestos.

    E esse dever to mais

    urgente pelo fato de que opas assaltado no onosso, e pior ainda, que oexrcito invasor o nosso.

    William Paley, uma au-toridade em assuntos mo-rais, tem um captulo inti-

    tulado Duty of submissionto civil government (O de-ver de submisso ao go-verno civil), no qual soluci-ona toda a questo dasobrigaes polticas pelafrmula da convenincia; ediz: 'Enquanto o exigir o

    interesse de toda a socie-

    dade, ou seja, enquantono se possa resistir aogoverno estabelecido ou

    mud-lo sem inconvenin-cia pblica, a vontade deDeus que tal governo sejaobedecido - e nem um diaalm disso. Admitindo-seeste princpio, a justia decada ato particular de re-sistncia reduz- se com-putao do volume de pe-rigo e protestos, de umlado, e da probabilidade ecustos da reparao, deoutro'.

    Diz ele que cada umjulgar esta questo por si

    mesmo.Mas parece que Paley

    nunca levou em conta oscasos em que a regra daconvenincia no se apli-ca, nos quais um povo ouum indivduo tem que fazer

    justia a qualquer custo.Se arranquei injusta-

    mente a tbua que a sal-vao de um homem quese afoga, sou obrigado adevolv-la, ainda que eumesmo me afogue.

    De acordo com Paley,

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    esta uma circunstnciainconveniente.

    Mas quem quiser sesalvar desta forma acabarperdendo a vida.

    O povo norte-americano tem que pr fim escravido e tem queparar de guerrear com oMxico, mesmo que issolhe custe a existncia en-quanto povo.

    As naes, na sua pr-tica, concordam com Pa-ley, mas haver quemconsidere que Massachu-setts esteja agir correta-

    mente na crise atual? 'Umarameira de alta linhagem,um trapo de pano prateadoatirado lama, levanta acauda do vestido, e arrastano cho a sua alma' Emtermos prticos, os que se

    opem abolio emMassachusetts no souns cem mil polticos dosul, mas uns cem mil co-merciantes e fazendeirosdaqui, que se interessammais pelos negcios e pelaagricultura do que pela

    humanidade e que no

    esto dispostos a fazerjustia ao escravo e aoMxico, custe o que cus-

    tar.No discuto com inimi-

    gos distantes, mas comaqueles que, bem perto demim, cooperam com a po-sio de homens que es-to longe daqui e defen-

    dem-na; estes ltimos ho-mens seriam inofensivosse no fosse por aqueles.

    Estamos acostumadosa afirmar que os homensem geral so desprepara-dos; mas as melhorias so

    lentas, porque os poucosno so substantivamentemais sbios ou melhoresdo que os muitos.

    No to importanteque muitos sejam to bonsquanto voc, e sim que

    haja em algum lugar algu-ma poro absoluta devirtude; isso bastar parafermentar toda a massa.

    H milhares de pessoascuja opinio contrria escravido e guerra;apesar disso, nada fazemde efetivo para pr fim a

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    ambas; dizem-se filhos deWashington e Franklin,mas ficam sentados com

    as mos nos bolsos, di-zendo no saber o quepode ser feito e nada fa-zendo; chegam a colocar aquesto do livre comrcio frente da questo da li-berdade, e ficam quietoslendo as cotaes do dia

    junto com os ltimos bole-tins militares sobre a cam-panha do Mxico; poss-vel at que acabem poradormecer durante a leitu-ra.

    Qual hoje a cotao

    do dia de um homem ho-nesto e patriota? Eles he-sitam, arrependem-se e svezes assinam peties,mas nada fazem de srioou de efetivo.

    Com muito boa disposi-

    o, preferem esperar queoutros remedeiem o mal,de forma que nada restepara motivar o seu arre-pendimento.

    No melhor dos casos,nada mais faro do que

    depositar na urna um voto

    insignificante, cumprimen-tar timidamente a atitudecerta e, de passagem, de-

    sejar-lhe boa sorte.H novecentos e no-

    venta e nove patronos davirtude e apenas um ho-mem virtuoso; mas maisfcil lidar com o verdadeirodono de algo do que com

    seu guardio temporrio.Toda a votao um

    tipo de jogo, tal como da-mas ou gamo, com umaleve colorao moral, ondese brinca com o certo e oerrado sobre questes mo-

    rais; e claro que hapostas neste jogo.

    O carter dos eleitoresno entra nas avaliaes.

    Proclamo o meu voto -talvez - de acordo commeu critrio moral; mas

    no tenho um interessevital de que o certo saiavitorioso.

    Estou disposto a deixaressa deciso para a maio-ria. O compromisso devotar, desta forma, nunca

    vai mais longe do que as

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    convenincias. Nem mes-mo o ato de votar pelo que certo implica fazer algo

    pelo que certo. apenasuma forma de expressarpublicamente o meu an-mico desejo de que o certovenha a prevalecer.

    Um homem sbio nodeixar o que certo nas

    mos incertas do acaso enem esperar que a suavitria se d atravs dafora da maioria.

    H escassa virtude nasaes de massa dos ho-mens.

    Quando finalmente amaioria votar a favor daabolio da escravatura,das duas uma: ou ela serindiferente escravido ouento restar muito poucaescravido a ser abolida

    pelo o seu voto.A essa altura, os nicosescravos sero eles, osintegrantes da maioria.

    O nico voto que podeapressar a abolio da es-cravatura o daquele ho-

    mem que afirma a prpria

    liberdade atravs do seuvoto.

    Estou informado de quehaver em Baltimore, ouem outro lugar qualquer,uma conveno para es-colher um candidato pre-sidncia; essa conveno composta principalmentepor editores de jornais e

    polticos profissionais; masque importncia ter apossvel deciso destareunio para um homemindependente, inteligente erespeitvel? No fim dascontas, ainda poderemoscontar com as vantagens

    da sua sabedoria e da suahonestidade, no mes-mo? Ser que no pode-remos prever alguns votosindependentes? No have-r muitas pessoas nestepas que no freqentam

    convenes? Mas no isso o que ocorre: perceboque o homem consideradorespeitvel logo abandonaa sua posio e passa ano ter mais esperanasno seu pas, quando omais certo seria que seu

    pas desesperasse dele.

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    A partir disso ele aderea um dos candidatos assimselecionados por ser o

    nico disponvel, apenaspara provar que ele mes-mo est disponvel paratodos os planos do dema-gogo.

    O voto de um homemdesses no vale mais do

    que o voto eventualmentecomprado de um estran-geiro inescrupuloso ou donativo venal.

    Oh! preciso um ho-mem que seja um homeme que tenha, como diz um

    vizinho meu, uma colunadorsal que no se dobreaos poderosos! As nossasestatsticas esto erradas:contou-se gente demais.

    Quantos homens exis-tem em cada mil milhas

    quadradas deste pas?Dificilmente se contar um.

    A Amrica oferece ouno incentivos para a imi-grao de homens? Oshomens norte-americanosforam rareando at di-menso de uma irmanda-de secreta como a dos

    Odd Fellows, cujo inte-grante tpico pode seridentificado pelo seu des-

    comunal caracter gregrio,pela manifesta falta de in-teligncia e de jovial auto-confiana; a sua preocu-pao primeira e maior aodar entrada neste mundo a de verificar se os asilosesto em boas condiesde funcionamento; antesmesmo de ter direito a en-vergar roupas de adultoele organiza uma coleta defundos para as vivas erfos que porventuraexistam; em poucas pala-

    vras, um homem que sousa viver com a ajuda daCompanhia de SegurosMtuos, que lhe prometeuum enterro decente.

    De fato, nenhum ho-mem tem o dever de se

    dedicar erradicao dequalquer mal, mesmo omaior dos males; ele podemuito bem ter outras preo-cupaes que o mobilizem.

    Mas ele tem no mnimoa obrigao de lavar asmos frente questo e,no caso de no mais se

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    ocupar dela, de no darqualquer apoio prtico injustia.

    Se me dedico a outrasmetas e consideraes,preciso ao menos verificarse no estou fazendo isso custa de algum em cu-

    jos ombros esteja sentado.

    preciso que eu saiade cima dele para que eletambm possa estar livrepara fazer as suas consi-deraes.

    Vejam como se tolerauma inconsistncia dasmais grosseiras.

    J ouvi alguns dosmeus conterrneos dize-rem: 'Queria que eles meconvocassem para ir com-bater um levante de escra-vos ou para atacar o Mxi-co - pois eu no iria'; no

    entanto, cada um desteshomens possibilitou o en-vio de um substituto, fa-zendo isso diretamentepela sua fidelidade ao go-verno, ou pelo menos indi-retamente atravs do seudinheiro.

    O soldado que se recu-sa a participar de umaguerra injusta aplaudido

    por aqueles que no recu-sam apoio ao governo in-

    justo que faz a guerra; aplaudido por aqueles cujaao e autoridade ele des-preza e desvaloriza; tudofunciona como se o Estadoestivesse suficientementearrependido para contratarum crtico dos seus peca-dos, mas insuficientementearrependido para interrom-per por um instante sequeros seus atos pecaminosos.

    Estamos todos, desta

    forma, de conformidadecom a ordem e o governocivil, reunidos para home-nagear e dar apoio nos-sa prpria crueldade.

    Se ruborizamos ante onosso primeiro pecado,

    logo depois se instala aindiferena.

    Passamos do imoral aoamoral, e isso no todesnecessrio assim parao tipo de vida que cons-trumos.

    O mais amplo e comum

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    dos erros exige a virtudemais generosa para semanter.

    So os nobres os maispassveis de proferir osmoderados ataques a quecomumente est sujeita avirtude do patriotismo.

    Sem dvida, os maioresbaluartes conscienciososdo governo, e muito fre-quentemente os maioresopositores das reformas,so aqueles que desapro-vam o caracter e as medi-das de um governo, semno entanto lhe retirar a sua

    lealdade e apoio.H gente coletando as-

    sinaturas para fazer peti-es ao Estado de Massa-chusetts no sentido de dis-solver a Unio e de des-prezar as recomendaes

    do presidente.Ora, por que eles mes-mos no dissolvem essaunio entre eles e o Esta-do e se recusam a pagar asua cota de impostos? Noesto eles na mesma rela-o com o Estado que aque este mantm com a

    Unio? E no so asmesmas as razes queevitaram a resistncia do

    Estado Unio e a resis-tncia deles ao Estado?Como pode um homem sesatisfazer com a meraposse de uma opinio e defato usufru-la? Pode haveralgum usufruto da opinioquando o dono dela a vofendida? Se o seu vizinhoo vigariza e lhe subtrai ummero dlar, voc no sesatisfaz com a descobertada vigarice, com a procla-mao de que foi vigariza-do e nem mesmo com as

    suas gestes no sentidode ser devidamente reem-bolsado; o que voc faz tomar medidas efetivas eimediatas para ter o seudinheiro de volta e cuidarde nunca mais ser enga-nado.

    Aes baseadas emprincpios - a percepo ea execuo do que certo- modificam coisas e rela-es; a ao deste gnero essencialmente revoluci-onria e no se reduz inte-

    gralmente a qualquer coisa

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    preexistente.

    Ela cinde no apenasEstados e Igrejas; dividefamlias; e tambm divideo indivduo' separandonele o diablico do divino.

    Existem leis injustas;devemos submeter-nos aelas e cumpri-las, ou de-vemos tentar emend-las eobedecer a elas at suareforma, ou devemostransgredi-las imediata-mente? Numa sociedadecom um governo como onosso, os homens em ge-ral pensam que devem

    esperar at que tenhamconvencido a maioria aalterar essas leis. A suaopinio de que a hipte-se da resistncia pode vira ser um remdio pior doque o mal a ser combatido.

    Mas precisamente ogoverno o culpado pelacircunstncia de o remdioser de fato pior do que omal. o governo que faztudo ficar pior.

    Por que o governo no mais capaz e se antecipapara lutar pela reforma?

    Por que ele no sabe valo-rizar a sua sbia minoria?Por que ele chora e resiste

    antes de ser atacado? Porque ele no estimula aparticipao ativa dos ci-dados para que eles lhemostrem as suas falhas epara conseguir um desem-penho melhor do que eleslhe exigem? Por que eleslhe exigem? Por que elesempre crucifica JesusCristo, e excomunga Co-prnico e Lutero e qualificaWashington e Franklin derebeldes? No absurdopensar que o nico tipo de

    transgresso que o gover-no nunca previu foi a ne-gao deliberada e prticade sua autoridade; se nofosse assim, por que entono teria ele estabelecidoa penalidade clara, cabvele proporcional?

    Se um homem sempropriedade se recusa pelaprimeira vez a recolhernove xelins aos cofres doEstado, preso por prazocujo limite no estabele-cido por qualquer lei que

    eu conhea; esse prazo

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    determinado exclusiva-mente pelo arbtrio dosque o enviam priso.

    Mas se ele resolverroubar noventa vezes novexelins do Estado, em breveestar novamente em li-berdade.

    Se a injustia parte doinevitvel atrito no funcio-namento da mquina go-vernamental, que seja as-sim: talvez ela acabe sua-vizando- se com o des-gaste - certamente a m-quina ficar desajustada.

    Se a injustia for uma

    pea dotada de uma molaexclusiva - ou roldana, oucorda, ou manivela -, aento talvez seja vlido

    julgar se o remdio noser pior do que o mal;mas se ela for de tal natu-reza que exija que vocseja o agente de umainjustia para outros,digo, ento, que se trans-grida a lei.

    Faa da sua vida umcontra-atrito que pare amquina.

    O que preciso fazer cuidar para que de modoalgum eu participe das mi-

    srias que condeno.No que diz respeito s

    vias pelas quais o Estadoespera que os males se-

    jam remediados, devo di-zer que no as conheo.

    Elas so muito demo-radas, e a vida de um ho-mem pode chegar ao fimantes que elas produzamalgum efeito. Tenho outrascoisas para fazer.

    No vim a este mundocom o objetivo principal de

    fazer dele um bom lugarpara morar, mas apenaspara morar nele, seja bomou mo.

    Um homem no carre-ga a obrigao de fazertudo, mas apenas alguma

    coisa; e s porque nopode fazer tudo no ne-cessrio que faa algumacoisa errada.

    No est dentro dasminhas incumbnciasapresentar peties ao

    governador e Assem-

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    blia Legislativa, da mes-ma forma que eles nadaprecisam fazer de seme-

    lhante em relao a mim.Suponhamos que eles

    no dem ateno a umpedido meu; que devo fa-zer ento? Mas nessecaso o Estado no forne-ceu outra via: o mal est

    na sua prpria Constitui-o.

    Isto pode parecer gros-seria, teimosia e intransi-gncia, mas s quem me-rece ou pode apreciar amais fina bondade e con-

    siderao deve recebereste tipo de tratamento.

    Todas as mudanaspara melhor so assim,tais como o nascimento ea morte, que produzemconvulses nos corpos.

    No hesito em afirmarque todos os que se inti-tulam abolicionistas devemimediata e efetivamenteretirar o seu apoio - emtermos pessoais e de pro-priedade - ao governo doEstado de Massachusetts,e no ficar esperando at

    que consigam formar amais estreita das maioriaspara s ento alcanar o

    sofrido direito de venceratravs dela.

    Creio que basta saberque Deus est do seulado, o que vale mais doque o ltimo votante a fa-zer majoritrias as suas

    fileiras.E, alm de tudo, qual-

    quer homem mais corretodo que os seus vizinhos jconstitui uma maioriaapertada.

    apenas uma vez por

    ano, e no mais do queisso, que me encontro caraa cara com este governonorte-americano, ou com ogoverno estadual que orepresenta: quando souprocurado pelo coletor de

    impostos; essa a nicainstncia em que um ho-mem na minha situaono pode deixar de se en-contrar com esse governo;e ele aproveita a oportuni-dade e diz claramente:'Reconhea-me'.

    E no h outra forma

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    mais simples, mais efetivae, na conjuntura atual,mais indispensvel de lidar

    com o governo neste parti-cular, de expressar a suapouca satisfao ou seupouco amor em relao aele: preciso neg-lo, na-quele local e momento.

    O coletor de impostos

    meu vizinho e concidado,e com ele que tenho delidar porque afinal de con-tas estou lutando contrahomens, e no contra opergaminho das leis, e seique ele voluntariamenteoptou por ser um agente

    governamental.Haver outro modo de

    ele ficar sabendo clara-mente o que e o que fizenquanto agente do go-verno, ou enquanto ho-mem, a no ser quando

    forado a decidir que tra-tamento vai dar a mim, ovizinho que ele respeitacomo tal e como homemde boa ndole, ou que eleconsidera um manaco edesordeiro? Ser ele ca-paz de superar esse obs-tculo sua sociabilidade

    sem um pensamento ouuma palavra mais rudes oumais impetuosos a acom-

    panhar a sua ao? Dissoestou certo: se mil, oucem, se dez homens queconheo - apenas dez ho-mens honestos ou at umnico homem honesto doEstado de Massachusetts,no mais sendo dono deescravos, decidisse pr fimao seu vnculo com o Es-tado, para logo em seguidaser trancado na cadeiamunicipal, estaria ocorren-do nada menos do que aabolio da escravatura

    nos Estados Unidos daAmrica.

    Pois no importa queos primeiros passos pare-am pequenos: o que sefaz bem feito faz-se parasempre. Mas preferimos

    debater o assunto: essa nossa misso, dizemos.H dezenas de jornais nasfileiras do abolicionismo,mas no h um nico ho-mem.

    O meu querido vizinho,que desempenhou o papelde embaixador de Massa-

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    chusetts e que sempre sededica resoluo dasquestes dos direitos hu-

    manos na Cmara doConselho, esteve ameaa-do de amargar uma prisona Carolina do Sul; no en-tanto, se tivesse sido prisi-oneiro do Estado de Mas-sachusetts, esse Estadoque ansiosamente lana Carolina do Sul a acusa-o de pecar com a escra-vido (embora atualmenteno encontre nada almde uma atitude pouco hos-pitaleira como motivo parabrigar com ela), o nosso

    Legislativo no seria capazde adiar liminarmente oassunto da escravido atao prximo inverno Sobum governo que prendequalquer homem injusta-mente, o nico lugar dignopara um homem justo

    tambm a priso.Hoje em dia, o lugar

    prprio, o nico lugar queMassachusetts reservapara os seus habitantesmais livres e menos desa-lentados so as suas pri-

    ses, nas quais sero con-

    finados e trancados longedo Estado, por um ato doprprio Estado pois os que

    vo para a priso j antestinham se confinado nosseus princpios.

    E a que devem ser en-contrados quando foremprocurados pelos escravosfugidos, pelo prisioneiro

    mexicano em liberdadecondicional e pelos indge-nas, para ouvir as denn-cias sobre as humilhaesimpostas aos seus povos; a, nesse cho discrimi-nado, mas to mais livre ehonroso, onde o Estado

    planta os que no estocom ele mas sim contraele - a nica casa numEstado-senzala na qual umhomem livre pode perseve-rar com honra.

    Se h algum que pen-

    se ser a priso um lugar deonde no mais se podeinfluir, no qual a sua vozdeixa de atormentar osouvidos do Estado, no qualno conseguiria ser tohostil a ele, esse algumignora o quanto a verdade mais forte que o erro e

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    tambm no sabe como ainjustia pode ser combati-da com muito mais elo-

    quncia e efetividade poraqueles que j sofreram nacarne um pouco dela.

    Manifeste integralmenteo seu voto e exera toda asua influncia; no se dei-xe confinar por um pedao

    de papel.Uma minoria indefesa

    quando se conforma maioria no chega nem aser uma minoria numa si-tuao dessas; mas ela irresistvel quando inter-

    vm com todo o seu peso.Se a alternativa ficar

    entre manter todos os ho-mens justos na priso oudesistir da guerra e da es-cravido, o Estado nohesitar na escolha.

    Se no ano corrente milhomens no pagassem osseus impostos, isso noseria uma iniciativa toviolenta e sanguinriaquanto o prprio paga-mento, pois neste caso oEstado fica capacitadopara cometer violncias e

    para derramar o sanguedos inocentes.

    Esta , na verdade, adefinio de uma revolu-o pacfica, se que possvel uma coisa des-sas.

    Se, como j ouvi umdeles me perguntar, o co-letor de impostos ou outrofuncionrio pblico qual-quer indagar: 'Mas o quedevo fazer agora?', a mi-nha resposta : 'Se de fatoquiser fazer alguma coisa,ento renuncie ao seu car-go'.

    Quando o sdito negoua lealdade e o funcionriorenunciou ao seu cargo,ento a revoluo com-pletou-se.

    Mas vamos supor queh violncia.

    No poderamos consi-derar que uma agresso conscincia tambm pro-voca um tipo de ferimentograve? Um ferimento des-ses provoca a perda daautntica humanidade e da

    imortalidade de um ho-

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    mem, e ele sangra atuma morte eterna.

    Posso ver esse sanguea correr, agora.

    Especulei sobre a pri-so do infrator, e no so-bre o confisco dos seusbens - embora ambas asmedidas sirvam ao mesmofim -, porque os que afir-mam o certo e que, porisso, so os seres maisperigosos para um Estadocorrupto, em geral nogastam muito do seu tem-po na acumulao de pro-priedades.

    Para homens assim oEstado presta servios re-lativamente pequenos eum imposto bem leve ten-de a ser considerado exor-bitante, particularmentequando so obrigados a

    realizar um trabalho espe-cial para conseguir aquantia cobrada.

    Se houvesse quem vi-vesse inteiramente semusar o dinheiro, o prprioEstado hesitaria em exigirque ele lhe entregasseuma quantia.

    O homem rico, no en-tanto - e no pretendo es-tabelecer uma comparao

    invejosa -, sempre umser vendido instituioque o enriquece.

    Falando em termos ab-solutos, quanto mais di-nheiro, menos virtude; poiso dinheiro interpe-se en-

    tre um homem e os seusobjetivos e permite que eleos compre; obter algumacoisa dessa forma no uma grande virtude.

    O dinheiro acalmamuitas perguntas que de

    outra forma ele se veriapressionado a fazer; deoutro lado, a nica per-gunta nova que o dinheirosuscita difcil, emborasuprflua: 'Como gast-lo?'Um homem assim fica,portanto, sem base para

    uma moralidade.As oportunidades de vi-

    ver diminuem proporcio-nalmente ao acmulo da-quilo que se chama de'meios'.

    A melhor coisa a serfeita em prol da cultura do

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    seu tempo por um homemrico realizar os planosque tinha quando ainda

    era pobre.Cristo respondeu aos

    seguidores de Herodes deacordo com a situaodeles.

    'Mostrem-me o dinheirodos tributos', disse ele; eum deles tirou do bolsouma moeda.

    Disse ento JesusCristo: 'Se vocs usam odinheiro com a imagem deCsar, dinheiro que elecolocou em circulao e ao

    qual ele deu valor, ou seja,se vocs so homens doEstado e esto felizes dese aproveitar das vanta-gens do governo de Csar,ento paguem-no por issoquando ele o exigir.

    Portanto, dai a Csar oque de Csar, e a Deuso que de Deus'; Cristono lhes disse nada sobrecomo distinguir um do ou-tro; eles no queriam sa-ber isso.

    Quando converso com

    os mais livres dentre osmeus vizinhos, perceboque, independentemente

    do que digam a respeito dagrandeza e da seriedadedo problema e de sua pre-ocupao com a tranquili-dade pblica, no fim dascontas tudo se reduz aoseguinte: eles no podemabrir mo da proteo dogoverno atual e temem asconsequncias que a suarebeldia provocaria nassuas propriedades e fam-lias.

    Da minha parte, nogosto de imaginar que

    possa vir algum dia a de-pender da proteo doEstado.

    Mas se eu negar a au-toridade do Estado quandoele apresenta a minhaconta de impostos, ele

    logo confiscar e dissipara minha propriedade etratar de me hostilizar e minha famlia para sempre.

    Essa uma perspectivamuito dura.

    Isso torna impossveluma vida que seja simulta-

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    neamente honesta e con-fortvel em aspectos exte-riores.

    No valeria a penaacumular propriedade; elacertamente se perderia denovo.

    O que se tem a fazer arrendar alguns alqueiresou ocupar uma terra de-voluta, cultivar em peque-na escala e consumir logotoda a sua produo.

    Voc tem que viverdentro de si mesmo e de-pender de si mesmo, sem-pre de mala feita e pronto

    para recomear; voc nodeve desenvolver muitosvnculos.

    At mesmo na Turquiavoc pode ficar rico, se emtudo for um bom sdito dogoverno turco.

    Confcio disse: 'Se umEstado governado pelosprincpios da razo, a po-breza e a misria so fatosacabrunhantes; se umEstado no governadopelos princpios da razo,

    a riqueza e as honrarias

    so os fatos acabrunhan-tes'.

    No! At que eu soliciteum remoto porto sulino,que a proteo do Estadode Massachusetts me sejaestendida com o fim depreservar a minha liberda-de, ou at que eu me de-dique apenas a construir

    pacificamente um patrim-nio aqui no meu Estado,posso negar a minha leal-dade ao governo local enegar o seu direito minhapropriedade e minhavida.

    Sai mais barato, em to-dos os sentidos, sofrer apenalidade pela desobedi-ncia do que obedecer.

    Obedecer faria com queeu me sentisse diminudo.

    H alguns anos o Esta-

    do procurou-me em nomede uma organizao religi-osa e intimou-me a pagaruma certa quantia destina-da a sustentar um prega-dor que o meu pai costu-mava frequentar; eu nuncao tinha visto.

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    'Pague ou ser tranca-do na cadeia', disse o Es-tado.

    Eu recusei-me a pagar.

    Infelizmente, no entan-to, outro homem achoumelhor fazer o pagamentoem meu nome.

    No consegui descobrir

    por que o mestre-escoladeveria pagar impostopara sustentar o clrigo eno o clrigo contribuirpara o sustento do mestre-escola; pois eu no eramestre-escola do Estado,e sustentava-me com

    subscries voluntrias.No vi o motivo pelo

    qual o liceu no devesseapresentar a sua conta deimpostos e fazer com queo Estado apoiasse, juntocom a organizao religio-

    sa, essa sua pretenso.No entanto, os conse-

    lheiros municipais pedi-ram-me e eu concordei emfazer uma declarao porescrito cuja redao ficoumais ou menos assim:

    'Saibam todos quantos

    esta declarao lerem queeu, Henry Thoreau, nodesejo ser considerado

    integrante de qualquer so-ciedade organizada qualno tenha aderido'.

    Entreguei o texto aosecretrio da municipali-dade.

    Deve estar com ele athoje.

    Sabendo portanto queeu no queria ser conside-rado membro daquela or-ganizao religiosa, o Es-tado nunca mais me fezuma exigncia parecida;

    ele considerava, no en-tanto, que estava certo eque deveria continuar aoperar a partir dos pressu-postos originais com queme abordou.

    Se fosse possvel saber

    os seus nomes, eu teriadesligado-me minuciosa-mente, na mesma ocasio,de todas as organizaesdas quais no era mem-bro; mas no soube ondeencontrar uma lista com-pleta delas.

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    H seis anos que nopago o imposto per capita.

    Fui encarcerado certavez por causa disso, epassei uma noite preso;enquanto o tempo passa-va, fui observando as pa-redes de pedra slida comdois ou trs ps de espes-sura, a porta de madeira e

    ferro com um p de espes-sura e as grades de ferroque dificultam a entrada daluz, e no pude deixar deperceber a idiotice de umainstituio que me tratavacomo se eu fosse apenascarne e sangue e ossos a

    serem trancafiados.Fiquei especulando que

    ela devia ter concludo,finalmente, que aquela eraa melhor forma de me usare, tambm, que ela jamaiscogitara de se aproveitar

    dos meus servios de al-guma outra maneira.

    Vi que apesar da gros-sa parede de pedra entremim e os meus concida-dos, eles tinham uma mu-ralha muito mais difcil de

    vencer antes de consegui-

    rem ser to livres quantoeu.

    Nem por um momentome senti confinado, e asparedes pareceram- meum desperdcio descomu-nal de pedras e argamas-sa. O meu sentimento erade que eu tinha sido o ni-co dos meus concidados

    a pagar o imposto.Estava claro que eles

    no sabiam como lidarcomigo e que se compor-tavam como pessoas pou-co educadas.

    Havia um erro crasso

    em cada ameaa e emcada saudao, pois elespensavam que o meu mai-or desejo era o de estar dooutro lado daquela paredede pedra.

    No pude deixar de sor-

    rir perante os cuidadoscom que fecharam a portae trancaram as minhasreflexes - que os acom-panhavam porta afora semdelongas ou dificuldade; eo perigo estava de fatocontido nelas.

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    Como eu estava fora doseu alcance, resolverampunir o meu corpo; agiram

    como meninos incapazesde enfrentar uma pessoade quem sentem raiva eque ento do um chutono cachorro do seu desa-feto.

    Percebi que o Estado

    era um idiota, tmido comouma solteirona s voltascom a sua prataria, inca-paz de distinguir os seusamigos dos inimigos; perditodo o respeito que aindatinha por ele e passei aconsider-lo apenas la-

    mentvel.Portanto, o Estado nun-

    ca confronta intencional-mente o sentimento inte-lectual ou moral de umhomem, mas apenas o seucorpo, os seus sentidos.

    Ele no dotado degnio superior ou de ho-nestidade, apenas de maisfora fsica.

    Eu no nasci para sercoagido. Quero respirar daforma que eu mesmo es-colher.

    Veremos quem maisforte.

    Que fora tem umamultido? Os nicos quepodem me coagir so osque obedecem a uma leimais alta do que a minha.

    Eles obrigam-me a sercomo eles.

    Nunca ouvi falar dehomens que tenham sidoobrigados por multides aviver desta ou daquelaforma.

    Que tipo de vida seriaessa? Quando defronto um

    governo que me diz 'A bol-sa ou a vida!', por que de-veria apressar-me em lheentregar o meu dinheiro?Ele talvez esteja passandopor um grande aperto, semsaber o que fazer.

    No posso ajud-lo. Eledeve cuidar de si mesmo;deve agir como eu ajo.No vale a pena chora-mingar sobre o assunto.

    No sou individual-mente responsvel pelobom funcionamento da

    mquina da sociedade.

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    No sou o filho do ma-quinista.

    No meu modo de verquando sementes de car-valho e de castanheira ca-em lado a lado, uma delasno se retrai para dar vez outra; pelo contrrio,cada uma segue as suasprprias leis, e brotam,

    crescem e florescem damelhor maneira possvel,at que uma por acasoacaba superando e des-truindo a outra.

    Se uma planta nopode viver de acordo com

    a sua natureza, ento elamorre; o mesmo acontececom um homem.

    A noite que passei napriso, alm de uma novi-dade, foi tambm bem in-teressante. Os prisionei-

    ros, em mangas de cami-sa, distraam-se conver-sando na entrada, apro-veitando o vento fresco danoite; assim estavamquando me viram chegar.

    Mas o carcereiro disse-lhes: 'Venham, rapazes, j hora de trancar as por-

    tas'; ouvi o barulho dosseus passos enquantocaminhavam para os seus

    compartimentos vazios.O carcereiro apresen-

    tou-me o meu companhei-ro de cela, qualificando-ocomo 'um sujeito de pri-meira e um homem es-perto'.

    Trancada a porta, elemostrou-me o cabide ondedeveria pendurar o meuchapu e explicou-mecomo administrava as coi-sas por ali.

    As celas eram caiadas

    uma vez por ms; a nossacela, pelo menos, era oapartamento mais branco,de mobilirio mais simplese provavelmente o maislimpo de toda a cidade.

    Naturalmente ele quis

    saber de onde eu vinha epor que eu tinha ido pararali; quando lhe contei aminha histria, foi minha avez de lhe perguntar a sua,na suposio evidente deque ele era um homemhonesto; e, da maneiraque as coisas esto, acre-

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    dito que ele de fato era umhomem honesto.

    Ele disse: 'Ora, acu-sam-me de ter incendiadoum celeiro; mas no fuieu'.

    Pelo que pude perce-ber, ele provavelmentefora deitar-se, bbado,para dormir num celeiro,no sem antes fumar o seucachimbo; e assim perdeu-se no fogo um celeiro.

    Ele tinha a fama de serum homem esperto, e aliaguardava havia trs me-ses o seu julgamento; ti-

    nha outros trs meses aesperar ainda; mas estavabem cordato e contente, jque no pagava pela casae comida e se consideravabem tratado.

    Ele ficava ao lado de

    uma janela, e eu junto outra; percebi que se al-gum ficasse por ali pormuito tempo acabaria ten-do por atividade principalolhar pela janela.

    Em pouco tempo eu ti-

    nha lido os folhetos que

    encontrara, e fiquei obser-vando os locais por ondeantigos prisioneiros tinham

    fugido, vi onde uma gradetinha sido serrada e ouvi ahistria de vrios hspe-des anteriores daqueleaposento; pois acabei des-cobrindo que at mesmoali circulavam histrias etagarelices que no con-seguem atravessar as pa-redes da cadeia.

    Essa provavelmente anica casa na cidade ondese escrevem poesias queso publicadas em formade circular, mas que no

    chegam a virar livros.Mostraram-me uma

    grande quantidade depoesias feitas por alguns

    jovens cuja tentativa defuga tinha sido frustrada;eles vingavam-se decla-

    mando os seus versos.Tirei tudo o que pude

    do meu companheiro decela, pois temia nuncamais tornar a encontr-lo;mas finalmente ele indi-cou- me a minha cama e

    deixou para mim a tarefa

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    de apagar a lamparina.

    Ficar ali deitado poruma nica noite foi comoviajar a um pas distante,um pas que eu nunca teriaimaginado visitar.

    Pareceu-me que nuncaantes ouvira o relgio dacidade dar as horas ou osrudos noturnos da aldeia;isso porque dormamoscom as janelas abertas,

    janelas estas instaladaspor dentro das grades.

    Era como contemplar aminha aldeia natal luz daIdade Mdia, e o nosso

    familiar rio Concord trans-formou-se na torrente deum Reno; minha frentedesfilaram vises de ca-valeiros e castelos.

    As vozes que ouvia nasruas eram dos antigos

    burgueses.Fui espectador e teste-

    munha involuntria de tudoo que se fazia e dizia nacozinha da vizinha hospe-daria local - uma experin-cia inteiramente nova e

    rara para mim.

    Tive uma viso bemmais ntima da minha ci-dade natal. Eu estava ra-

    zoavelmente perto da suaalma. Nunca antes vira assuas instituies.

    Essa cadeia uma dassuas instituies peculia-res, pois Concord a sededo condado. Comecei a

    compreender o que preo-cupa os seus habitantes.

    Quando chegou a ma-nh, o nosso desjejum foiempurrado para dentro dacela atravs de um buracona porta; era servido numa

    vasilha de estanho ajusta-da ao tamanho do buracoe consistia numa porode chocolate com popreto; junto vinha uma co-lher de ferro.

    Quando do lado de fora

    pediram a devoluo dasvasilhas, a minha inexperi-ncia foi tanta que colo-quei de volta o po queno comera; mas o meucompanheiro pegou o poe aconselhou-me a guar-d-lo para o almoo ou

    para o jantar.

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    Pouco depois, deixaramque ele sasse para traba-lhar num campo de feno

    das vizinhanas, paraonde se deslocava todosos dias; no voltaria antesdo meio-dia; ele entodeu-me bom-dia e disseque duvidava que nos vs-semos de novo.

    Quando sa da priso -pois algum interferiu epagou o meu imposto -,percebi diferenas, no asgrandes mudanas no diaa dia notadas por aquelesaprisionados ainda jovense devolvidos j trpegos e

    grisalhos.Ainda assim uma nova

    perspectiva tinha-se insta-lado no meu modo de vera cidade, o Estado e o pa-s, representando umamudana maior do que se

    fosse causada pela merapassagem do tempo.

    Vi com clareza aindamaior o Estado que habi-tava. Vi at que ponto po-dia confiar nos meus con-terrneos como bons vizi-

    nhos e amigos; e percebi

    que a sua amizade eraapenas para os momentosde tranquilidade; senti que

    eles no tm grandes in-tenes de proceder cor-retamente; descobri que,tal como os chineses emalaios, eles formam umaraa diferente da minha,por causa dos seus pre-conceitos e supersties;constatei que eles no ar-riscam a si mesmos ou asua propriedade nos seusatos de sacrifcio pela hu-manidade; vi que, no fimdas contas, eles no soto nobres a ponto de con-

    seguir tratar o ladro deforma diferente do queeste os trata; e que squerem salvar as suas al-mas, atravs de aes deefeito, de algumas oraese da eventual observaodos limites particularmente

    estreitos e inteis de umcaminho de retido.

    possvel que estejaproferindo um julgamentoduro sobre os meus vizi-nhos, pois acredito que amaioria deles no sabe

    que existe na sua cidade

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    uma instituio tal como acadeia.

    Antigamente, na nossaaldeia, havia o costume desaudar os pobres endivi-dados que saam da ca-deia olhando-os atravsdos dedos dispostos emforma das barras de uma

    janela de priso; e per-

    guntava-se ao recm li-berto: 'Como vai?' No re-cebi essa saudao dosmeus conhecidos, queprimeiro me encaravam edepois entreolhavam-se,como se eu acabasse devoltar de uma longa via-

    gem.Eu tinha sido preso

    quando me dirigia ao sa-pateiro para buscar umabota consertada.

    Quando fui solto na

    manh seguinte, resolviretomar o que estava fa-zendo e, depois de calara tal bota, juntei-me a umgrupo que pretendia colherfrutas silvestres e me que-ria como guia.

    E em pouco mais demeia hora - pois logo rece-

    bi um cavalo arreado -chegamos ao topo de umdos nossos mais altos

    morros, onde abundavamfrutas silvestres, a trsquilmetros da cidade; edali no se podia ver oEstado em lugar nenhum.

    Esta a histria com-pleta das 'Minhas prises''.

    Nunca me recusei apagar o imposto referentes estradas, pois a minhavontade de ser um bomvizinho to grandequanto a de ser um pssi-mo sdito; no que toca

    sustentao das escolas,atualmente fao a minhaparte na tarefa de educaros meus conterrneos.

    No um item particu-lar dos impostos que mefaz recusar o pagamento.

    Quero apenas negarlealdade ao Estado, querome retirar e me manterefetivamente indiferente aele.

    No me importo em se-guir a trajetria do dlar

    que paguei - mesmo se

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    isso fosse possvel -, at oponto em que ele contrataum homem ou compra

    uma arma para matar umhomem; o dlar inocente.

    O que me importa se-guir os efeitos da minhalealdade.

    Na verdade, eu silenci-osamente declaro guerraao Estado, minha moda,embora continue a us-lo ea tirar vantagem dele en-quanto puder, como cos-tuma acontecer nestas si-tuaes.

    Se outros resolvem pa-

    gar o imposto que o Esta-do me exige, nada maisfazem alm do que j fize-ram quando pagaram oseu imposto, ou melhor,estimulam a injustia almdo limite que o Estado lhes

    pediu.Se eles pagam o im-posto alheio a partir de umequivocado interesse pelasorte daquele que nopaga, para salvar a suapropriedade ou para evitaro seu encarceramento,isso s ocorre porque no

    meditaram seriamente noquanto esto permitindoque os seus sentimentos

    particulares interfiram nobem geral.

    Esta, portanto, minhaposio atual.

    Mas no se pode ficarexageradamente de so-breaviso numa circunstn-cia dessas, pelo risco deque tal atitude seja desvia-da pela obstinao ou pelapreocupao indevida paracom a opinio do prximo.

    Que cada um cuide defazer apenas o que lhe

    cabe, e s no momentocerto.

    Por vezes penso assim:ora, esse povo tem boasintenes, mas ignoran-te; ele faria melhor se sou-besse como agir; por que

    incomodar os meus vizi-nhos e for-los a tratar-me de uma forma contrrias suas inclinaes? Masdepois penso: no h mo-tivo para proceder comoeles ou para permitir quemais pessoas sofram ou-tros tipos de dor.

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    E digo ainda a mimmesmo: quando muitosmilhes de homens, sem

    paixo, sem hostilidade,sem sentimentos pessoaisde qualquer tipo, lhe pe-dem apenas uns poucosxelins, sem que a sua na-tureza lhes possibilite reti-rar ou alterar a sua exi-gncia atual e sem a pos-sibilidade de voc, por seulado, fazer um apelo a ou-tros milhes de homens,por que voc deveria seexpor a tal fora brutaavassaladora? Voc noresistir ao frio e fome,

    aos ventos e s ondascom tanta obstinao;voc submete-se pacifica-mente a mil imposiessimilares.

    Voc no coloca a ca-bea na fogueira.

    Mas exatamente namedida em que no consi-dero esta fora inteira-mente bruta - e sim umafora parcialmente humana- e em que avalio quemantenho relaes comesses milhes e com ou-tros muitos milhes de

    homens - que no soapenas coisas brutas ousem vida -, vejo tambm

    que possvel a apelao:em primeira instncia e depronto, eles podem apelarao Criador; em segundainstncia, podem apelaruns aos outros.

    Mas se ponho a minha

    cabea no fogo de prop-sito no h apelo possvela ser feito ao fogo ou aoCriador do fogo, e sou onico culpado pelas con-sequncias.

    Se eu conseguisse

    convencer-me de que te-nho algum direito a mesentir satisfeito com oshomens tal como eles so,e a trat-los de acordocom isso e no parcial-mente de acordo com asminhas exigncias e ex-

    pectativas de como eles eeu mesmo deveramos ser,ento, como bom muul-mano e fatalista, eu teriaque me esforar para serfeliz com as coisas comoelas so e proclamar quetudo se passa segundo avontade de Deus.

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    E, acima de tudo, huma diferena entre resistira essa fora e a uma outra

    puramente bruta ou natu-ral: a diferena que pos-so resistir a ela com algu-ma efetividade.

    No posso esperar mu-dar a natureza das pedras,das rvores e dos animais,

    tal como Orfeu.No quero polemizar

    com qualquer homem ounao.

    No quero fazer filigra-nas, estabelecer distineselaboradas ou colocar-me

    numa situao superior dos meus vizinhos.

    Estou a buscar, possoadmitir, at mesmo umadesculpa para aceitar asleis do pas.

    Estou preparado atdemais para obedecer aelas.

    Neste particular tenhomotivos para suspeitar demim mesmo; e a cada ano,quando se aproxima apoca da visita do coletor

    de impostos, surpreendo-

    me disposto a revisar osatos e as posies do go-verno central e do governo

    estadual, a rever o espritodo povo, para descobrirum pretexto para a obedi-ncia.

    Acredito que logo oEstado ser capaz de ali-viar-me de todos os encar-

    gos deste tipo e ento noserei mais patriota do queo resto dos meus conter-rneos.

    Encarada de um pontode vista menos elevado, aConstituio, com todos os

    seus defeitos, muito boa;a lei e os tribunais somuito respeitveis; mesmoo Estado de Massachu-setts e o governo dos Es-tados Unidos da Amricaso, em muitos aspectos,coisas admirveis e bas-

    tante raras, pelas quaisdevemos ser gratos, talcomo nos disseram muitosestudiosos das nossasinstituies.

    Mas se elevarmos umpouco o nosso ponto de

    vista, elas mostram-se tais

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    como as descrevi; e indomais alm, at chegarmosao mais alto, quem ser

    capaz de dizer o que soelas, ou quem poder dizerque sequer vale a penaobserv-las ou refletir so-bre elas? Entretanto, nome preocupo muito com ogoverno, e quero dedicar aele o menor nmero poss-vel de reflexes.

    Mesmo no mundo talcomo agora, no passomuitos momentos sujeito aum governo.

    Se um homem livre

    de pensamento, livre parafantasiar, livre de imagina-o, de modo que aquiloque nunca lhe parece serna maior parte do tempo,governantes ou reformado-res insensatos no socapazes de lhe criar impe-

    dimentos fatais.Sei que a maioria dos

    homens pensa de maneiradiferente de mim; mas noestou nem um pouco maissatisfeito com os homensque se dedicam profissio-

    nalmente a estudar estas

    questes e outras pareci-das. Pelo fato de se colo-carem to integralmente

    dentro da instituio, oshomens de Estado e oslegisladores nunca conse-guem encar-la nua e cru-amente. Eles gostam defalar sobre mudanas nasociedade, mas no tmum ponto de apoio situadofora dela.

    Pode ser que haja entreeles homens de certa ex-perincia e critrio e evi-dentemente capazes decriar sistemas engenhosose at teis, pelos quais

    lhes devemos gratido;mas todo o seu gnio etoda a sua utilidade noultrapassam certos limitesrelativamente estreitos.

    Eles tendem a esque-cer que o mundo no

    governado atravs de de-cises e convenincias.

    Webster nunca chegaaos bastidores do governoe, por isso, no pode seruma autoridade no assun-to.

    As suas palavras so

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    sbias apenas para os le-gisladores que no cogi-tam de qualquer reforma

    essencial no governoexistente; para as exign-cias dos pensadores e dosque fazem leis duradouras,ele nem chega a visualizaro assunto.

    Conheo algumas pes-

    soas cujas especulaesserenas e sbias logo re-velariam os limites do al-cance e da hospitalidadeda imaginao deWebster.

    Mesmo assim, quando

    comparadas com as pau-prrimas declaraes damaioria dos reformadorese com a mentalidade e aeloquncia ainda pioresdos polticos em geral, assuas palavras so prati-camente as nicas que

    tm valor e revelam sensi-bilidade; devemos por issoagradecer ao cu porcontarmos com Webster.

    Em termos comparati-vos, ele sempre impetu-oso, original e, acima de

    tudo, prtico. Mas a sua

    virtude no a sabedoria,e sim a prudncia.

    A verdade de um juristano a Verdade, mas aconsistncia, ou uma con-venincia consistente.

    A verdade est sempreem harmonia consigomesma, e a sua importn-cia principal no a derevelar a justia que por-ventura possa convivercom o mal.

    Webster bem merece ottulo pelo qual conheci-do: 'Defensor da Constitui-o'. De fato, ele no pre-

    cisa atacar, mas apenasarmar a defesa contra osgolpes alheios. Ele no um lder, e sim um segui-dor. Os seus lderes soos constitucionalistas de1787.

    Eis as suas prpriaspalavras: 'Nunca tomei enunca pretendo tomar umainiciativa; nunca apoiei oupretendo apoiar uma inici-ativa - que vise desman-char o acordo original peloqual os diversos Estadosformaram a Unio'.

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    Ao comentar a cobertu-ra que a Constituio d escravido, diz ele: 'J que

    parte do pacto original,que continue a escravido'.

    Apesar da sua agudezae habilidade especiais, eleno consegue isolar umfato das suas relaes me-ramente polticas para

    contempl-lo nos termosabsolutos exigidos para oseu aproveitamento pelointelecto - por exemplo, oque se impe moralmentehoje em dia nos EstadosUnidos no tocante a agirfrente escravido; no

    entanto, ele arrisca-se ou levado a formular umaresposta desesperada talcomo a que se segue, einsiste que fala em termosabsolutos, como um ho-mem particular: 'A forma

    pela qual os governos dosEstados onde existe es-cravido decidem regula-ment-la matria da suaprpria deliberao, pelaqual so responsveis pe-rante os seus cidados,perante as leis gerais da

    propriedade, da humani-

    dade e da justia, e pe-rante Deus.

    Quaisquer associaesformadas em outro lugar,mesmo oriundas de umsentimento de compaixohumana, ou com qualqueroutra origem, nada tm aver com o assunto.

    Nunca lhes dei qual-quer apoio, e nunca darei'.

    Que novo e original c-digo de obrigaes sociaispode ser inferido de pala-vras como estas?11 Paraos que no conhecem asfontes mais puras da ver-

    dade, que no querem su-bir mais pela sua corrente-za, a opo - sbia - in-terromper a sua busca naBblia e na Constituio;ser a que eles a sorve-ro, com reverncia e hu-

    mildade; mas para aquelesque conseguem perceberque a verdade vem maisde cima e alimenta esselago ou aquele remanso, preciso preparar de novo o

    1 Inseri estes trechos do dis-

    curso de Webster depois deter proferido a conferncia.

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    corpo para continuar a pe-regrinao, at chegar nascente.

    Ainda no surgiu umhomem dotado de gniopara legislar no nosso pa-s. Homens assim so ra-ros na histria mundial.

    Oradores, polticos ehomens eloqentes exis-tem aos milhares; masainda estamos por ouvir avoz do orador capaz desolucionar as complexasquestes do dia a dia.

    Amamos a eloqunciapelos seus mritos prpri-

    os, e no pela sua capaci-dade de pronunciar umaverdade qualquer, nempela possibilidade de inspi-rar algum herosmo.

    Os nossos legisladoresainda no aprenderam a

    distinguir o valor relativodo livre comrcio frente liberdade, unio e reti-do.

    Eles no tm gnio outalento nem para as ques-tes relativamente simpl-

    rias dos impostos, das fi-

    nanas, do comrcio e daindstria, da agricultura.

    A Amrica do Norte noconseguiria manter pormuito tempo a sua posioentre as naes se fsse-mos abandonados es-perteza palavrosa doscongressistas; felizmentecontamos com a experin-

    cia madura e com os pro-testos efetivos do nossopovo.

    Talvez no tenha o di-reito de afirmar isto, mas oNovo Testamento foi es-crito h mil e oitocentos

    anos; no entanto onde en-contrar o legislador sufici-entemente sbio e prticopara se aproveitar de tudoo que esse texto ensinasobre a cincia da legisla-o? A autoridade do go-verno, mesmo do governo

    ao qual estou disposto ame submeter - pois obede-cerei com satisfao aosque saibam e faam me-lhor do que eu e, sob cer-tos aspectos, obedecereiat aos que no saibamnem faam as coisas tobem -, ainda impura;

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    para ser inteiramente justa,ela precisa contar com asano e com o consenti-

    mento dos governados.Ele no pode ter sobre aminha pessoa e meusbens qualquer direito puroalm do que eu lhe conce-do.

    O progresso de uma

    monarquia absoluta parauma monarquia constituci-onal, e desta para umademocracia, um progres-so no sentido do verdadei-ro respeito pelo indivduo.

    Ser que a democracia

    tal como a conhecemos o ltimo aperfeioamentopossvel em termos deconstruir governos? Noser possvel dar um pas-so a mais no sentido dereconhecer e organizar osdireitos do homem? Nunca

    haver um Estado real-mente livre e esclarecidoat que ele venha a reco-nhecer no indivduo umpoder maior e indepen-dente - do qual a organiza-o poltica deriva o seuprprio poder e a sua pr-

    pria autoridade - e at queo indivduo venha a rece-ber um tratamento corres-

    pondente.Fico imaginando, e com

    prazer, um Estado quepossa enfim se dar ao luxode ser justo com todos oshomens e de tratar o indi-vduo respeitosamente,

    como um vizinho; imaginoum Estado que sequerconsideraria um perigo sua tranquilidade a exis-tncia de alguns poucoshomens que vivessem parte dele, sem nele seintrometerem nem serem

    por ele abrangidos, e quedesempenhassem todosos deveres de vizinhos ede seres humanos.

    Um Estado que produ-zisse esta espcie de fruto,e que estivesse disposto a

    deix-lo cair logo queamadurecesse, abriria ca-minho para um Estadoainda mais perfeito e glori-oso; j fiquei a imaginarum Estado desses, masnunca o encontrei emqualquer lugar.

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    FIM