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O filósofo quis acentua:-, p?rt.~r.?to,de um lado, a superioridade ética abs()J1.1Jª dos sereshumanos em relação às coisas, e, de outro lado, a absoluta igualdade de todas as pessoas em sua comum dignidade. Quanto a esta última afirmação, no entanto, ~ princípio kantiano.não pode s~r l(!v_aclg, cegalTI<:~te,a conseqüências abso!~tas. Há situasõ:s _e~g~~~l'~_ss.<?a vê-se confrontada a outra, num conflito radical. cuja solução significa a elimina- -- •••• " •• , <'-" _._. _. -. -.,--- ------------- - --- -.- •• ção de uma delas. Em tais ca~os, conforme as circunstâncias -legítima defesa ou estado de necessidade, po,r.e~(!TDplo _ón justifica-se eticamente o homicídio. Ocorre, aqui, uma eventual divergência entre os princípios d~justiçae do amor." Segundo o amor, é preferivel deixar-s~ morrer do que matar. Oprincípio da justiça, diversamente, aceita que o sujeito pr:efira a sua própria.vici.a à do outro. Os Códi- gos Penais dos mais diversos países declaram que, nessas circunstâncias extremas, não há crime. v' 57. Cf supra, Parte 11, capítulo VII. 58. As palavras sublinhadas são do texto original. 59. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, edição crítica da Felix Meiner Verlag, de Hamburgo, 1994, p. 51. 60. Considera-se em legítima defesa aquele que, usando moderadamente dos meios necessários, repele uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Ocorre o estado de neces- sidade, quando alguém pratica determinado ato para salvar de perigo atual, não provocado por sua vontade, e que não poderia de outro modo ser evitado, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício. nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. / /" 61. Cf., infra, o capítulo IV desta Parte. 45 8 \11 ~ \1 U,. ~I Q, \l, t, u.. 111 lL U-' l~ !~l,\\~:.; c: lo'v :J~ :t, Mas a dignidade da pessoa, segundo o filósofo, não consiste apenas 110 fato de ~ ._. .~. ,- ... ,- ser ela, ao contrário das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como - - '- -, . - um fim em si e nunca como um meio para a consecu~ã<? ~~"~~_~~!.!!lj.I~ado resul- tado. Ela se funda também no fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. i' l?aí d~c()rre, como assinalou Kant, qUe todo homem tem dig11;jdqde e não u,m preço, como as coisas. A humanidade enquanto espécie biológica, e cada ser humano em sua individualidade, são propriamente insubstituíveis: não têm equi- valente, não podem ser trocados por coisa alguma." Na verdade, a concepçãokantiana da dignidade da pessoa como um fim em si leva à condenação de muitas outras práticas de aviltamento da pessoa à condi- ção de coisa, além da clássica escravidão; tais como o engano de outrem mediante falsas promessas, ou os atentados cometidos contra os bens alheios." A criação do universo concentracionário no século xx, como se procurouindi- car nesta obra, ó4 veio demonstrar tragicamente ajusteza da visão ética kantiana. Analogamente, a_~':l~~fClrIJ)<l.,ÇãQ.d<lsp<:ss~as em coisas realizou-se de mo~o menos espetacular, mas. não menos trágico, com o desenvolvimento do sistema ", ... -.-. - .-._0".. . __.. __. o. _ ._. _._ _ _ "". __ •• 0 '. capitalista de produçã9' como d~nunciado por Marx." O mesmo processo dereificação transformou hodiernamente o consumidor (" e o eleitor, por força da técnica de propaganda de massa, em ,meros objetos. E a engenharia ge~ét!ca, por sua vez, tornou pO,ssívela manipulação da própria iden- tidade pessoal, ou seja, a fabricação do homem pelo homem. t:.., 6. A CONSCIÊNCIA HUMANA /' :.../ O elemento nuclear da reflexão sobre a pessoa, a qual tende a ser o ponto .....-. "-_.~- _". . .- focal de toda a filosofia moderna, é, sem dúvida, a noção de consciência. Podemos 62. "Im Reicue der Zwecke hat alles entweder eincn Prcis odcr eine Wiirde. Wa.s einen Pres /tat, an desscn Stelle kann auch etwas andem ais Aquivalentgesetzt werden; was dagegen iiber allen Preis erhaben ist, mit/tin keir: Aquivalent verstatW, das ka; eine Wiirde" (op. cit., p. 58). 63. Op. cit., pp. 52,3. 64. Cf. Parte 11. capítulo XI. 65. Cf. Parte li, capítulo IX. ~ 459

A Dignidade Humana Em Kant

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Page 1: A Dignidade Humana Em Kant

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J\ contribuição de Kant

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A terceira fase na elaboração teórica do conceito de pessoa adveio com a filo-sofia kantiana.

Como salientado na segunda parte desta obra," para Kant o princípio p,ri:meiro de toda a ética é o de que "o ser humano e, de modo geral, todo ser racio-nal, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta ouaquela vontade possa servir-se a seu talante". ,8 E prossegue: "Os entes, cujo ser naverdade não depende de nossa vontade. mas da natureza, quando irracionais, t_~I11.,

unicamente um valor relativo, como meios, e chamam-se por isso coisas; os entesracionais, ao contrário, denominam-se pesso.a,s, pois são marcad~s, pela su a próprianatureza, como fins em simesmos; ou seja, como algo que não pode servir simples-mente de meio, o que limita, em conseqüência, nosso livre-arbítrio"."

O filósofo quis acentua:-, p?rt.~r.?to,de um lado, a superioridade ética abs()J1.1Jªdos sereshumanos em relação às coisas, e, de outro lado, a absoluta igualdade detodas as pessoas em sua comum dignidade.

Quanto a esta última afirmação, no entanto, ~ princípio kantiano.não pode

s~r l(!v_aclg,cegalTI<:~te,a conseqüências abso!~tas. Há situasõ:s _e~g~~~l'~_ss.<?avê-se confrontada a outra, num conflito radical. cuja solução significa a elimina-

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ção de uma delas. Em tais ca~os, conforme as circunstâncias -legítima defesaou estado de necessidade, po,r.e~(!TDplo_ón justifica-se eticamente o homicídio.Ocorre, aqui, uma eventual divergência entre os princípios d~justiçae do amor."Segundo o amor, é preferivel deixar-s~ morrer do que matar. Oprincípio da justiça,diversamente, aceita que o sujeito pr:efira a sua própria.vici.a à do outro. Os Códi-gos Penais dos mais diversos países declaram que, nessas circunstâncias extremas,não há crime. v'

57. Cf supra, Parte 11, capítulo VII.

58. As palavras sublinhadas são do texto original.

59. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, edição crítica da Felix Meiner Verlag, de Hamburgo, 1994,p. 51.

60. Considera-se em legítima defesa aquele que, usando moderadamente dos meios necessários,repele uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Ocorre o estado de neces-sidade, quando alguém pratica determinado ato para salvar de perigo atual, não provocado por sua

vontade, e que não poderia de outro modo ser evitado, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício. nascircunstâncias, não era razoável exigir-se. / /"61. Cf., infra, o capítulo IV desta Parte.

458

\11 ~ \1 U,. ~I Q, \l, t, u.. 111 lL U-' l~ !~l,\\~:.; c : lo'v :J~ :t,

Mas a dignidade da pessoa, segundo o filósofo, não consiste apenas 110 fato de~ ._. .~. ,- ... ,-

ser ela, ao contrário das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como- - '- -, . -um fim em si e nunca como um meio para a consecu~ã<? ~~"~~_~~!.!!lj.I~adoresul-tado. Ela se funda também no fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoavive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis queele próprio edita. i'

l?aí d~c()rre, como assinalou Kant, qUe todo homem tem dig11;jdqde e nãou,m preço, como as coisas. A humanidade enquanto espécie biológica, e cada serhumano em sua individualidade, são propriamente insubstituíveis: não têm equi-valente, não podem ser trocados por coisa alguma."

Na verdade, a concepçãokantiana da dignidade da pessoa como um fim emsi leva à condenação de muitas outras práticas de aviltamento da pessoa à condi-ção de coisa, além da clássica escravidão; tais como o engano de outrem mediantefalsas promessas, ou os atentados cometidos contra os bens alheios."

A criação do universo concentracionário no século xx, como se procurouindi-car nesta obra, ó4 veio demonstrar tragicamente a justeza da visão ética kantiana.

Analogamente, a_~':l~~fClrIJ)<l.,ÇãQ.d<lsp<:ss~asem coisas realizou-se de mo~omenos espetacular, mas. não menos trágico, com o desenvolvimento do sistema", ... -.-. - .-._0".. . __.. __. o. _ ._. _._ _ _ "". __ • •• 0 '.

capitalista de produçã9' como d~nunciado por Marx."O mesmo processo dereificação transformou hodiernamente o consumidor

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6. A CONSCIÊNCIA HUMANA/'

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O elemento nuclear da reflexão sobre a pessoa, a qual tende a ser o ponto.....-. "-_.~- _". . .-focal de toda a filosofia moderna, é, sem dúvida, a noção de consciência. Podemos

62. "Im Reicue der Zwecke hat alles entweder eincn Prcis odcr eine Wiirde. Wa.s einen Pres /tat, an desscn Stellekann auch etwas andem ais Aquivalentgesetzt werden; was dagegen iiber allen Preis erhaben ist, mit/tin keir:Aquivalent verstatW, das ka; eine Wiirde" (op. cit., p. 58).

63. Op. cit., pp. 52,3.64. Cf. Parte 11. capítulo XI.

65. Cf. Parte li, capítulo IX.

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Mario Santiago
Realce
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e~p~5~:.t:~~Po. Expliquemo-nos.Todos os animais têm, incontestavelmente, conhecimento do tempo e do

espaço. Mas, de um lado, essas noções não se acham, p.ara eles, coordenadas entresi. De outro lado, cada uma delas é rigorosamente limitada. No homem, ao con-trário, espaço e tempo acham-se essencialmente correlacionados, como, de resto,

a fisica einsteiniana veio demonstrar. Além disso, o ser humano é incapaz de con-ceber uma limitação ou finitude, quer do espaço, quer do tempo.

Ora, o conceito de consciência, no homem, engloba a idéia de queele sevê,.... ,_. __ . ~_.__ ..""._ .. --. '~----.--' -_ ...,........ .,.' .. ... --,- ~.. ~

sempre, como o centro da relação infinita espaço-tempo, relação que, a rigor, $Ó___ •• , - - '.. •.• ••• ,-.., '._ ••••.• _ .• o •. __ • _-o ._ ._ •. _....... ..• __ .• __ , . _ -- •

extste.concretamente.paraohomern <; .elUfunção dele. ,/A consciência humana existe em duas dimensões indissociáveis: a individual

e a cQi.êti;'~.-- .. -.- - o .,.-----

A dimensão individual da consciência humana ? .

Ao reagir contra o crescente sentimento de despersonalização no mundomoderno, a reflexão filosófica da primeira metade do século xx acentuou o caráterúnico e, por isso mesmo, inigualável e irreprodutível, da personalidade individual.

Na esteira dos estóicos, reconheceu-se que a essência da personalidadehumana não se confunde com a função ou papel que cada qual exerce na vida. Apessoa não é personagem. A chamada qualificação pessoal (estado civil, nacionali-dade, profissão, domicílio) é mera exterioridade, que nada diz da essência própriado indivíduo. Cada qual possui uma identidade singular, inconfundível com a deoutro qualquer e, por isso mesmo, insubstituível. "Un seul être vaus manque, et taut

est dépeuplt!", exclamou o poeta." Ninguém pode experimentar, existencialmente,a vida ou a morte de outrem: são realidades únicas e ínsubstiruíveis. Como bem

salientou Heidegger, é sempre possível morrer em lugar de outrem; mas é radical-mente impossível assumir a experiência existencial da morte alheia."

Aliás, essa unicidade de cada ser humano é bem marcada, psicologicamente,pela dificuldade do próprio sujeito em mergulhar no seu eu profundo. A autocons-

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r-.,.)

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66. Larnartine. "L'isolemenr". em MédiJlltions.,i7. Sdll "'td Zeít, 17' ed..Tübingen (Max NiemeyerVerlag). 1993. p. 240.

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ciência sempre se detém na superficie. É verdade que a psicanálise veio propor ummétodo de bases racionais para a revelação da parte sempre recôndita da mentehumana. Mas, a rigor, a comunicação integral entre as consciências individuais é radi-calmente impossível; o que a intuição poética, de resto, não tardou em perceber:

Como é por dentro outra pessoa

Quem é que o saberá sonhar?

A alma de outrem é outro universo

Com que não há comunicação possível,

Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma

Senão da nossa;

As dos outros são olhares,

São gestos, são palavras,

Com a suposição de qualquer semelhança

No fundo."

A ciência veio confirmar essa intuição poética. A descoberta da estrutura doDNA (ácido desoxirribonucléico) por Watson e Crick, em 1953, revelou que cada um

, de nós carrega um patrimônio genético próprio e, salvo no caso de gêmeos horno-zigóticos, um patrimônio genético único. Sucede que sobre esse primeiro moldeda personalidade individual atua necessariamente, como fator de cornplernenta-ção, a influência conjugada do meio orgânico, do meio social e do próprio indiví-duo sobre si mesmo, fazendo de cada um de nós um ente único, inconfundível.

Tud().isso, quanto à dimens.ão individuaI?_~consciência humana. Vejamosagora a sua dimensão social, v- --"._- .--

A dimensão social da consciência humana dre.j '~:';~ :' .:'.,: I), .'

ohomem jamais pode sentir-se e enxergar-se como um ser isolado no mundo.Em reação contra a tendência a um certo solipsismo da filosofia pós-medieval, ;l

68. Fernando Pessoa. Obra Poética. Poesias Coligilbs 111,,'·dil.l.'i. 11·' HII". IIlhl"" ,., " I 11:." 1\, .I·.d.·" .1. I '. I,

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Page 3: A Dignidade Humana Em Kant

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ItZ~11' ~I J'l'alidade essencialmente relacional da vida; implícita na estrutura do pró-prio vocábulo consciência: saber conjunto, cum + scientia.

Na Fel1Omel101ogiado Espírito e na Filosofia da Religião, Hegel desenvolveu a idéiade "consciência infeliz" (das ungliickliche Bewusstsetn),que é a impossibilidade em quese encontra o sujeito de situar-se harrnonicamente na vida; vale dizer, a incapacidadeda pessoa para reconhecer-se como centro da relação espaço-tempo, no evolver his-tórico." O filósofo acentuou que, no estoicismo, a consciência de si é independenteda consciência do outro, o que conduz diretamente a uma situação análoga à rela-ção senhor-escravo. No ceticismo, o outro é pura e simplesmente negado, o queproduz, dentro do sujeito pensante, uma espécie de visão esquizofrênica, ou umaduplicação mórbida do próprio eu. É a "consciência infeliz".]á no plano religioso,esse estado doentio da consciência é o resultado da incapacidade, em que se encontrao sujeito, de conciliar a realidade da vida finita com o pensamento do infinito.

Como já tivemos ocasião de lembrar/o em sua crítica à filosofia do direito deHegel o jovem Marx retomou, sem citá-Ia, essa análise conceitual da "consciên-

cia infeliz", aplicando-a contra a alienação religiosa e o individualismo burguês."O homem", protestou ele, "não é, de forma alguma, um ser abstrato, genuflexofora do mundo (ausser der Welt hockendes Wesen); o homem é o mundo humano, oEstado, a sociedade". A partir daí, Marx desenvolveu a análise da consciência declasse e da consciência alienada.

No século xx, as correntes raciotitalista e existencialista fizeram do tema dainserção ontológica do homem no mundo o Leitmotiv de sua visão antropológica.O que existe como realidade segura, salientou Ortega y Gasset em ensaio pioneiro,publicado em 1914,71 não são as coisas exteriores, tal como o Eu as vê e pensa; nemo Eu cartesiano e idealista, que enxerga e interpreta o mundo exterior em funçãode si próprio. A re?li~.ade radical éa pessoa ímersa no mundo: yo soy yo y mi circuns-tancia, entendendo-se como circunstância, no sentido do étimo latino, aquilo queenvolve e impregna minha vida, e sem o que ela seria propriamente inconcebí-vel. Heídegger, na mesma linha de pensamento, definiu a condição existencial da

pessoa com a expressão "est~r:~o-~u_rldo" (in-der-Welt-sein).71

69. Cf Phiinomenologie des Geistes, Philipp Reclam jun., Stuttgart, p. 157.70. Parte 11,capítulo IX.

71. Meditaciones de! QlIijote.7Z. Op. cit., §§ 12 e 13, pp. 52 e 5S.

462

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A biologia contemporânea veio demonstrar que a modelação do complexo

cerebral do homem produz-se, sobretudo, após o nascimento, e representa um 't-produto do meio social. Contando com um estoque fantástico de mais de 100

bilhões de neurônios, cada qual com 10 mil conexões ou sinapses em média, o

nosso cérebro passa por uma intensa modificação logo nos primeiros anos de

vida: os neurônios considerados inúteis vão desaparecendo à razão de cente-

nas de milhares por dia, ao mesmo tempo que se realiza um gigantesco desen-

volvimento do sistema de sinapses, graças aos contatos do recém-nascido como meio ambiente.

. A consciência ética

Que significa concretamente, para o homem, a consciência de "estar-no-mundo"?

Lembramos, há pouco, a afirmação capital de Kant, de que a dignidade dapessoa consiste não apenas em ser ela a sua própria finalidade, mas também no fato

de que só o homem, pela sua vontade racional, é capaz de viver com autonomia,isto é, guiar-se pelas normas que ele próprio edita.

Tal equivale a dizer que só o ser humano é dotado de liberdade, e, por con-

seguinte, de responsabilidade; istoé.~_só ~le~capaz de escolher conscientementeas finalidades de suas ações, finalidadesquepodem se revelar boasou más p,:ra s~

e para outrem, devendo, portanto, o agente responder perante os demais pelasconseqüências deseus atos. Em outras palavras, só o homem, como Aristóteles

já havia assinalado, é, pela sua própria ess~ncia, um ser ético, que tem consciência

do bem e do mal, capaz das maiores crueldades e vilanias, assim como dos gestos -'mais heróicos e sublimes. 73

li consciênc.i~éti<::a, na teologia bíblica, é a principal característica de seme-

lhança do homem com Deus. No mito da tentação sofrida pelo primeiro casalhumano, como reiteradamente assinalado nesta obra, Eva lembra ao demônio a

proibição, sob pena de morte, de se comer do fruto da árvore localizada no centro

do jardim do Éden. ':A serpente disse então à mulher: 'Não, não morrereis! Mas

73. Política 1253 a, 17-18 .

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Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereiscomo deuses, versados no bem e no mal. "74

Ora, em razão da sua caracteristícaprópria de ser dotado de consciência ética,absolutamenteorigínalno ;eio'da n~~r~;~, o h~~~m é, em gra;de parte,autcir

de si rrlÇ,:SIJ)9 c..

Na concepção monoteísta da criação do mundo, o ser humano aparece comotendo saído pronto e acabado das mãos do Criador. Aliás, como pura criatura, seriaum louco orgulho de sua parte pretender participar, de alguma forma, do ato decriação, pois esta é uma prerrogativa de Deus.

Hoje, porém, a verdade indiscutível no meio científico é que o curso do pro·cesso de evolução vital foi substancialmente influenciado pela aparição da espé-cie humana. A partir de então surge em cena um ser capaz de agir sobre o mundofisico, sobre o conjunto das espécies vivas e sobre si próprio, como elemento inte-grante da biosfera. O homem passa a alterar o meio ambiente e, ao final, com a des-coberta das leis da genética, adquire os instrumentos hábeis a interferir no processogenerativo e de sobrevivência de todas as espécies vivas, inclusive a sua própria.

Foi exatamente essa concepção do homem - demiurgo de si mesmo e domundo em torno de si - que um jovem humanista italiano, Giovanni Pico, senhorde Mirandola e Concordia, apresentou em 1486 em famoso discurso acadêmico."

Imaginou ele que o Criador, ao completar sua obra, havendo povoado aregião celeste com puros espíritos e o mundo terrestre com uma turba de animaisde toda espécie, vis e torpes, percebeu que ainda faltava alguém, nesse vasto cená-rio, capaz de apreciar racionalmente a obra divina, de amar sua beleza e admirar-lhe a vastidão.

A dificuldade, no entanto, é que já não havia um modelo próprio e especí-fico para a composição dessa última criatura. Todas as formas possíveis - de grauínfimo, médio ou superior- haviam sido utilizadas e especificadas na criação dosdemais seres. Decidiu então o Criador, em sua infinita sabedoria, que àquele aquem nada mais podia atribuir de próprio fosse conferido, em comum, tudo o queconcedera singularmente às outras criaturas. Mais do que isso, de.t~rfl1il}º.1,.lºe.tlsque ()homem fosse um ser incompleto por natureza.

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Não te damos, ó Adão, nem um lugar determinado nem um aspecto próprio nem

uma função peculiar, a fim de que o lugar, o aspecto ou a função que desejares, tu os

obtenhas e conserves por tua escolha e deliberação próprias. A natureza limitada dos

outros seres é encerrada no quadro de leis que prescrevemos. Tu, diversamente, não

constrito em limite algum, determinarás tua natureza segundo teu arbítrio, a cujo

poder te entregamos. Pusemos-te no centro do mundo, para que daí possas exami-

nar, à tua roda, tudo o que nele se contém. Não te fizemos nem celeste nem imortal,

para que tu mesmo, como artífice por assim dizer livre ~soberano. te possas plasmar e .esculpir na forma que escolheres. Poderás te rebaixar à irracionalidade dos seres infe-

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riores; ou então elevar-te ao nível divino dos seres superiores. ,.n _,o ,~"_ •• ,_.,, \~--

N a concepção teológica dos primeiros grandes Reformadores, como vimos,"a natureza humana, corrompida pelo pecado original, nada produz de si mesmaque não mereça condenação. Vivemos, portanto, na inteira dependência da graça

divina, sem nada podermos fazer para merecê-Ia.Sucede que essa consciência do bem e do mal não se manifesta, apenas, em

cada indivíduo, mas existe também como realidade social, Como foi assinalado naIntrodução desta obra, aquilo que Durkheim denominou consciência coletiva cons-titui o conjunto de crenças e sentimentos comuns aos membros de determinadogrupo social, e tem vida própria, independente das vidas individuais. Essa cons-~. . .. - ...._.~.,

ciência coletiva ou comum é também de natureza ética, e é aí, justamente, que_ ..,.- -- ""--"~._-,~ .._.,-_ .. ".~,,,,-,,~,,,,-''"'' ...•,.'-....,._~'"._. ''''.'--'''-'''' """"_","""_ .. ,._. .. .. ~. -_ ....•.

mais amiúde se manifestam as divergências e_ng~o coletivo e o individual, entre o-"-"-- - .. - •. ------_.~ .... ,- --~ ... -~ .. ,_ ... -._-..... .. . ".,~ .. ---' -, _... -_oinclivíduo ou os indivíduos que se opõem às crenças, opiniões e valores dominan-tes na coletividade.

Ora, per:ç~bemos com nitidez sempre maior, na história moderna, uma exten-t' •......-•.,'~ ..••• '••••'••...."-.•,, ,"0_'_ .,,- " •• , •..... ,. , .••••• _." •. <._

sã,o da consciência ética a toda a.humanidade, ultrapassando as front:ir:~s cultu-rais de cada civilização particular. É o que se vê, com clareza, em matéria de direi--- -'. -tos humanos. ,

. vAs primeiras manifestações de consciência da igualdade essencial do homem

surgiram, como lembrado, no chamado período axial da História." Essas serncn-

res, lançadas concornitanternente ern várias civilizações, que não nu nrinb.un UllTC

~inenhuma espécie de comunicação, só começaram a germinardll ranre os sécu I()~

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i' XI'II C XVIII na Europa ocidental, com as diferentes declarações de direitos civis e polí-ticos. Mas, a partir da segunda metade do século xrx, o sistema de direitos humanosdesenvolveu-se aceleradamente, abrangendonovos setores da convivência social eexpandindo-se a todo ()or~e terrestre. Foram sucessivamente reconhecidos, direi-tos econômicos, sociais e culturais; direitos dos povos e, por fim, ao se encerrar oséculo xx, direitos da humanidade."

Em cada uma dessas etapas históricas, a dignidade da pessoa humana foisendo publicamente revelada e oficialmente garantida,

Os exemplos em matéria de direitos civis e politicos são múltiplos. Aescravidão,praticada em todas as civilizações durante milênios, e aceita sem hesitações pelasmais diversas escolas filosóficas e religiões como instituição natural, é hoje unanime-mente condenada e tida, em certas circunstâncias, como um crime contra a humani-dade." O genocídio, admitido como recurso bélico extremo, até mesmo no quadrode um sistema de elevado padrão ético, como a lei mosaica," passou a ser objeto deuma convenção internacional de caráter penal em 1948, e é atualmente capituladocomo crime contra a humanidade." A condição juridica de inferioridade da mulher,na vida civil só começou a ser oficialmente eliminada, na generalidade dos países, noséculo xx, e a discriminação contra as mulheres passou a ser punida internacional-mente com a celebração e a entrada em vigor da convenção de 18 de dezembro de1979. A prátíca de discriminação racial e a instituição do apartheid foram declaradascriminosas na segunda metade do século xx, com a convenção de 21 de dezembro de1965, sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, com a conven-ção de 30 de novembro de 1973, sobre o apartheid, e, por fim, com o Estatuto do Tri-bunal Penal Internacional, de 1998(art. 72, 1, alíneaj).

A dignidade do trabalhador assalariado, negada pelo sistema capitalista de pro-dução, v~i~ ; ;erj~ridica~ente reconhe~ida-, ~o plano n;~io~ai'e int~;~~cion.j:no

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início do século xx. E~J9~ 7_,e1<)19,re~pe.ctiv!!J!1_~_l1t,e!a_ÇoJ1§~i~çãomexicana e aConstituiçãoalemã deWeimar COl1sAgraram,pela primeira vez, direitos trabalhistas

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e de segu!:Íc!<l:de_s.o_c.i~l,a.p~E_cJ.gs,cIil'~i.t,~scivis e políticos. No mesmo ano de 1919 foifundada a QrgaJli?aça(),,Internaciona!?o Trabalho. Os primeiros reconhecimentosoficiais de direitos das minorias culturais são também do irúcio do século xx.

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78_ Cf. o nosso A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, cito

79. Estatuto do Tribunal Penal Internacional. 1998, arr. 7·,1, alinea.r.

80. Cf. Números 31, 1 e ss.; Deuterottômio 3, 1 e 5S. e 20. 10 e ss.

81_Estatuto do Tribunal Penal Internacional, de 1998, art. 6",

466

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A_partir do término da Segunda Guerra Mundial, foram enfim proclamados,

não só direitos dos puvos - à autodeterminação, ao desenvolvimento, à livre dis-posição de suas riquezas e recursos naturais, à paz e à seguran.:~a - mas vieramtambém a ser reconhecidos direitos da humanidade: à proteção do meio ambientee da biodiversidade, à proteção contra certos atos criminosos, ou ao reconheci-

mento da intangibilidade do geno~a humano. v~

7. O HOMEM, SER RACIONAL ,//

A idéia de conceber o homem como um ser perpetuamente i_1'l jierj" e, por-tanto, eticamente ambíguo, misto de anjo e demônio," capaz, pela sua própria ini- ~ciativa, de se aperfeiçoar ou se degradar ao extremo,já havia, como lembramos hápouco, sido afirmada por Aristóteles: 'Assim como o homem é o melhor dos ani-mais quando perfeito ('tEÀEW8Év), ele é ~pi~-r-d~t~d~~-q~~~d~afast~do do-dirci~o

e da justisa (xwpLo8Év VÓflOU KaL õíKY]Ç)"."3

82_É esta uma das temáticas preferidas pelos poetas. O nosso Olavo Bilac, em seu soneto "Dualisrno",soube ilustrá-Ia:

Não és bom, nem és mau: és triste e humano ..

Vives ansiando, em maldições e preces,

Como se, a arder, no coração tivessesO tumulto e o clamor de um largo oceano,

Pobre, no bem como no mal, padeces:E, rolando num vórtice vesano,

Oscilas entre a crença e o desengano,

Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de ações sublimes,

Não ficas das virtudes satisfeito,

Nem te arrependes, infeliz, dos crimes.

E, no perpétuo ideal que te devora,Residem juntamente no teu peito

Um demônio que ruge e um deus que chora,

83_ Política 1253 a, 33·34.

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