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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
A distopia de V de Vingança (1988), e a releitura hollywoodiana pós-11/09:
políticas e projetos em torno das concepções de cultura e identidade
Thays Tonin1
Resumo: Literaturas, músicas, obras plásticas... palavras e imagens diversas; é em meio aos
diálogos, releituras e apropriações propostas com outras formas de arte, que a obra em quadrinhos
V de Vingança (1988) e sua versão fílmica (2005) apresentam a vitalidade desta discussão frente
à uma abordagem histórica. Há nos caminhos das narrativas, de Shakespeare, Blake, Ella
Fitzgerald à Rolling Stones, Morus e Proudhon, dentre tantos outros artistas e intelectuais, que nas
falas da personagem V, ou nas paredes da Galeria das Sombras, tomam voz e espaço para
apresentar as propostas e os projetos políticos da obra. São nas ações e citações que veremos
críticas e defesas ideológicas, por trás de uma máscara sorridente que se legitima em suas
referências, frente à um mundo distópico, e na defesa de um projeto utópico de sociedade. Este
trabalho discute a obra V de Vingança, fazendo um diálogo entre a História em Quadrinhos e sua
versão fílmica, problematizando dentro das discussões teóricas de ambas as formas de arte, suas
semelhanças e diferenças, assim questionando o comprometimento com a contemporaneidade da
produção e de sua mídia, suas relações com os medos e desejos de grupos sociais, e suas
vinculações ideológicas propostas nos projetos defendidos pelas personagens. É frente a
atualidade da obra que as problemáticas que envolvem esse trabalho demonstram sua emergência:
A obra V de Vingança é um constructo cultural que parece poder ser adotado por lados opostos no
debate e na luta política, o que faz com que uma leitura crítica das formas que ganha essa obra em
Hollywood - frente a relevância dos diálogos promovidos com outras obras dentro desta produção
cultural - ajude na compreensão de suas recentes apropriações, como a utilização da máscara da
personagem V em manifestações de rua.
Palavras-chave: V de Vingança, História em Quadrinhos, Hollywood, Pós-11/09, produções
culturais.
Uma questão-chave às análises de produções culturais (áudio)visuais é a apresentada
por Will Eisner em um de seus trabalhos referenciais para os estudos de História em
Quadrinhos, questão da qual partirei aqui. Em suas palavras,
A compreensão de uma imagem requer uma comunidade de experiência. Portanto,
para que sua mensagem seja compreendida, o artista sequencial deverá ter uma
compreensão da experiência de vida do leitor. É preciso que se desenvolva uma
interação, porque o artista está evocando imagens armazenadas nas mentes de ambas
as partes. 2
1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista
CAPES. Esse artigo resume parte da pesquisa realizada para o Trabalho de Conclusão de Curso em História (UFSC),
apresentado em novembro de 2013, com o título “’Eles erradicaram a cultura’: A distopia de V de Vingança e a releitura
hollywoodiana pós-11/09”. E-mail: [email protected] 2 EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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Pois, entre literaturas, músicas, obras plásticas... palavras e imagens diversas, nos
vemos em meio à diálogos, releituras e apropriações no decorrer da obra V de Vingança
(1988), de Alan Moore e David Lloyd. Para ler essa História em Quadrinhos é requerido aos
leitores uma carga de informação cultural - uma comunidade de experiência - para observar
que entre um e outro quadrinho há Shakespeare, Goethe, Proudhon, as músicas de Rolling
Stones e Velvet Underground, dentre tantos outros artistas e intelectuais, que nas falas da
personagem V, ou nas paredes da Galeria das Sombras tomam voz e espaço. Moore e Lloyd
vão além, nos pedem também o reconhecimento de personalidades políticas, porque entre
ações e citações veremos críticas e defesas ideológicas por trás de uma máscara sorridente que
se legitima em suas referências. Os diálogos entre obras diversas, promovidos pelos autores,
são uma constante em toda a obra em quadrinhos, e também serão em sua versão fílmica.
A partir da compreensão de que ambas são formas de pensamento, por meio de uma
obra de arte ou um artifício cultural, torna-se necessário tomar algumas disposições.
Essas mídias, formas de arte, meios de comunicação, dentre outras definições, “cujas
imagens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de
lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com
que as pessoas forjam sua identidade”, munem também “os modelos daquilo que significa ser
homem ou mulher”; além disso, constroem sensos de etnia, raça, nacionalidade e sexualidade;
assim equipam-nos de imagens e mitos em suas narrativas que provêm o material à criar “as
identidades pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades” (KELLNER, 2001. p.9).
Defini-las enquanto produções culturais envolve também compreendê-las
enquanto expressões das relações sociais que manifestam a sociedade em sua forma
particular, por diferentes caminhos - seja quando problematizamos sua relação com o(s)
autor(es), ou então com o mercado editorial, quiçá com o momento de produção e sua cultura
enquanto uma “teia de significados” tecida socialmente (VIANA, 2013. p.8), ou então com os
usos e significados que o público faz da obra; ora, é compreendê-las enquanto comprometidas
historicamente, e sendo assim, “de desvendar os projetos ideológicos com os quais a obra
dialoga e necessariamente trava contato, sem perder de vista a sua singularidade dentro do seu
contexto” (MORETTIN, 2003. p.40).
Acerca da história em quadrinhos, V de Vingança é considerada por sua narrativa e
composição complexas, uma HQ para adultos, ou em outras palavras, uma Graphic Novel
(Novela Gráfica), parte de uma nova geração da indústria de histórias em quadrinhos, iniciada
nos anos 1980, quando foi “decretada a maioridade no mundo dos super-heróis” e onde a
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“violência, insanidade, sensualidade e dúvidas existenciais passaram a habitar os quadrinhos”
(JARCEM, 2007. p.8).
Alan Moore e David Lloyd (roteirista e desenhista respectivamente) ambientaram a
obra numa Inglaterra de futuro soturno, não perdendo de vista suas referências à obras como
Farenheit 451, Blade Runner, Batman e Robin Hood, e autores como Orwell, Huxley e Max
Ernst3 (como disse anteriormente, nos é requerido até aqui, direta e indiretamente, uma –
grande – carga de referências culturais). O que vemos, é um futuro distópico.
No cinema este termo define os futuros em que se passam as histórias de filmes como
Matrix (1999), Gattaca (1997), Blade Runner (1982), 1984 (1984), e Metrópolis (1927) - obra
que inaugura a representação fílmica das distopias futuristas (BARROS, 2009. p.453). José
D’Assunção Barros, em um dos seus estudos utiliza o termo distopia para descrever “cidades-
cinemas” com um ambiente opressivo e sinistro, que apresenta os medos e anseios “típicos
dos americanos ou do homem moderno, de modo geral”4 (BARROS, 2009. p.453-454).
Bergman resume também o conceito de distopia em filmes, afirmando que dentro dos gêneros
do cinema, há um subgênero que podemos chamar de distopismo, que envolve, com raras
exceções, roteiros que levantam questões da sociedade em seu tempo histórico, se
apresentando muitas vezes enquanto crítica ao presente e advertência aos caminhos que essa
sociedade pode seguir, dominados, majoritariamente, pelo pessimismo. (BERGMAN, 2010.
p.118)
Ainda, a definição de distopia em literaturas é, em termos gerais, “geralmente
interpretável como sinônimo de ‘anti-utopia’ e aplicado a uma obra que põe em causa ou
satiriza alguma utopia ou que desmitifica tentativas de apropriação totalitária de um cenário”,
tendo como exemplo os textos Admirável Mundo Novo (1930), Revolução dos Bichos (1945)
e 1984 (1948). (CEIA, 2010). “Distopia”, em sua definição conceitual, é o que define esse
ambiente em que se passa a obra V de Vingança, enfatizado aqui para visualizar o cenário em
que se passa ambas as versões (HQ e filme), levando em conta que apesar de serem obras
ficcionais, são também produções e expressões culturais, e enquanto obras artísticas, são
estertoras de um tempo (CHEREM, 2006) apresentando questões presentes em seu momento
de formulação, e assim “não são entretenimento inocente, mas têm cunho perfeitamente
ideológico e vinculam-se à retórica, a lutas, a programas e a ações políticas, ademais, a
3 Artigo publicado na Revista Warrior, nº 17, em 1983, do autor Alan Moore, intitulado “Por trás do sorriso pintado”. In: V de
Vingança (Edição Especial). São Paulo: Panini, 2006. 4Creio ser importante destacar aqui também que os filmes analisados por Barros são todos da indústria cinematográfica
hollywoodiana, sendo eles os supracitados Matrix (1999), Gattaca (1997), Blade Runner (1982), Metrópolis (1927), I.A –
Inteligência Artificial (2001) e Cidade das Sombras (1998) .
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“ideologia é apresentada na forma de imagens, figuras, códigos genéricos, mitos e aparato
técnico de cinema, televisão, música e outros meios, bem como por intermédio de ideias ou
posições teóricas.” (KELLNER, 2001. p.123).
Como dito por Eisner (2012. p.9,10), “Numa visão mais ampla, devemos considerar
essa embarcação [HQs] como um comunicador (...)”, e sendo assim, transmite mensagens por
seu meio à seu público, sem perder de vista que “empregada como veículo de ideias e
informação, essa linguagem se afasta do entretenimento visual desprovido de pensamento”.
Retomo esse pensamento, para apresentar de maneira sucinta, ambos os momentos de
produção, e com isso suas relações com as discussões políticas de cada obra. A versão fílmica
da obra V de Vingança é uma produção da indústria hollywoodiana, marcada por questões de
um momento chamado de pós-11/09. Nesta frase estão imbricadas várias problemáticas. O
pós-11 de setembro coloca em pauta discussões sobre terrorismo, opressão, liberdade,
democracia, fundamentalismo, o “nós” e o “outro”, nos mais variados campos.
O traço definitivo entre Hollywood e a “guerra contra o terrorismo” ocorreu quando
o Pentágono decidiu convocar a colaboração de Hollywood: a imprensa informou
que, no início de outubro de 2001, havia se estabelecido um grupo de autores e
diretores, especialistas em filmes-catástrofe, com o incentivo do Pentágono, a fim de
imaginar possíveis cenários de ataques terroristas e a forma de lutar contra eles. E
essa interação pareceu continuar em vigor: no início de novembro de 2001 houve
uma série de reuniões entre conselheiros da Casa Branca e executivos de Hollywood
com o objetivo de coordenar o esforço de guerra e de definir a forma como
Hollywood poderia colaborar na “guerra contra o terrorismo”, ao enviar a mensagem
ideológica correta não apenas para os americanos, mas também para o público
hollywoodiano em todo o mundo – a prova empírica definitiva de que Hollywood
opera de fato como um “aparelho ideológico do Estado”.5
A importância do sensacionalismo midiático está na questão do fortalecimento do
imaginário social de Ocidente e nas definições do “outro”, dos que põem em risco a ideologia
americana acerca da liberdade e da democracia – conceitos utilizados de maneira
intencionalmente abstrata, criando uma noção simplista e bastante conveniente, de que há
efetivamente - e não só nos filmes e quadrinhos - uma luta do bem versus mal.
Podemos destacar também que do ponto de vista cultural, soma-se para a hegemonia
americana que a possibilita definir as categorias (“eu”, “outro”, até “justo” e “injusto”, etc)
uma dívida com as “conquistas mundiais de Hollywood”, em conjunto com a “reputação de
defensor exemplar da “liberdade” contra a “tirania” (ZIZEK, 2003. p.50). A indústria
Hollywoodiana tem grande domínio no imaginário social, para além das fronteiras
5ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real! : cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. SP: Boitempo,
2003. p.30-31.
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geográficas norte-americanas6. Nessa indústria, o momento chamado pós-11/09 orienta nas
produções culturais ocidentais novas discussões e “novos” medos que começam a ser
reforçados e recriados.7 Nas produções culturais de maneira geral, vemos que os
os dramas, medos e desejos da humanidade são reapresentados a ela própria na
forma de ironia, comédia, suposição, supervalorização, descrença, seguindo a linha
discursiva de seu autor, porém, sem nunca deixar de lidar com as referências
culturais da sociedade, fazendo das narrativas literárias, uma forma complexa de
registro histórico.8
Já sobre o momento de formulação da HQ, vemos que na introdução á obra, em sua
versão original da DC Comics, há uma nota do autor escrita em 1988, que nos leva à questão
da situação política dos anos 1980 na Inglaterra e sua relação com a HQ.
Estamos em 1988 agora. Margaret Thatcher está entrando em seu terceiro mandato
e falando confidante de uma liderança inquebrantável dos Conservadores no
próximo século. Minha filha mais jovem tem sete anos, e um jornal tablóide está
circulando a idéia de campos de concentração para pessoas com AIDS. [...] O
governo expressou um desejo de erradicar a homossexualidade e as pessoas já ficam
especulando contra qual outra minoria irá legislar. [...] Este lugar está virando uma
terra fria e hostil, e eu não gosto mais daqui.
Alan Moore descreve nessa nota introdutória os ares que sondam a Inglaterra desde o
início da produção do roteiro de V de Vingança até sua publicação, e consequentemente a
referência ao contexto sócio-político nos posicionamentos ideológicos presentes na obra. Não
só, a obra também apresenta analogias aos medos referentes á época, como se refere
Hobsbawm ao discutir sobre este momento:
Governos da direita ideológica, comprometidos com uma forma extrema de egoísmo
comercial e laissez-faire, chegaram ao poder em vários países por volta de 1980.
Entre esses, Reagan e a confiante e temível sra. Thatcher na Grã-Betanha (1979-90)
eram os mais destacados. [...]
Dificilmente houve um ano entre 1948 e 1989 sem um conflito armado bastante
sério em alguma parte. Apesar disso, os conflitos eram controlados, ou sufocados,
pelo receio de que provocassem uma guerra aberta – isto é, nuclear – entre as
superpotências. [...]”. (Grifo meu)9
6 É importante ter em mente, contudo, que esse papel de “defensora da liberdade” não é necessariamente em defesa do
governo Bush, como será possível ver nos filmes logo abaixo citados. É necessário problematizar também que não há
homogeneidade nas concepções políticas de todos os diretores hollywoodianos. 7 Alguns exemplos são as reconstituições dramatizadas do 11 de setembro - Voo United 93 (2006), As Torres Gêmeas (2006),
e até a biografia cinematográfica de George W. Bush, W (2008) -, assim como os conflitos subsequentes entre EUA e países
como Afeganistão e Iraque - Syriana (2005), Boa noite e boa sorte (2005), No vale das sombras (2007), Nossa vida sem
Grace (2007), A lei da guerra (2008), Guerra ao terror (2008), dentre outros. Há também nos rastros de 2001, produções que
tal como V de Vingança, se passam em um futuro distópico - O Livro de Eli (2010), Minority Report (2007) e Guerra dos
Mundos (2005), e além disso, os últimos filmes em suas primeiras cenas nos remetem a Manhattan logo após a queda do
World Trace Center -, ou então “na trilha do 11 de setembro, os cineastas [que] se pegaram olhando para o passado, para a
história americana e para as raízes da psique nacional” (KEMP, 2011. p.551). 8 VICENTI, Leandro G.; SILVA, Carla Fernanda da. A saga Civil War nos quadrinhos da Marvel Comics: sua representação
pós 11/09. p.7. 9 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.245-249.
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Quanto a obra em quadrinhos, criada originalmente em 1982, a HQ V for Vendetta (“V
de Vingança” na versão em português) foi somente publicada em sua versão completa em
1988, pela DC Comics. A narrativa da obra se passa no ano de 1997, em uma Inglaterra pós-
guerra nuclear. Sobe ao poder um partido autoritário, liderado pelo puritano Adam Susan. Em
defesa de um ideal de sociedade e de valores, o governo passa a perseguir – e levar à campos
de concentração - negros(as), homossexuais, homens e mulheres de ideologia e religião
contraposta a do partido, em outras palavras, toda a população de valores “subversivos” que
não se enquadram no ideal de sociedade defendido pelo governo. Além da população, o
governo bane/censura incontáveis produções culturais que não condizem com o
posicionamento político do governo. Ainda no início da HQ, o leitor é apresentado a moradia
da personagem V, a Galeria das Sombras, e inicia-se aí a problemática que envolve
produções culturais, “cultura” e censura. A obra, em sua versão fílmica altera de maneira
visível, as falas que apresentam os posicionamentos políticos da personagem principal, e
consequentemente, o conceito de cultura, assim como a formação da identidade da
personagem.
Sobre este último ponto, é necessário
começar destacando que temos na HQ uma
personagem anarquista convicta da necessidade
do fim de uma história humana marcada por
dependência de um Estado e de um sistema de
representatividade, onde as pessoas isentam-se
do poder de tomar suas próprias decisões
aceitando “ordens insensatas sem questionar”10,
cometendo, com essas escolhas, “os mesmos
erros fatais, séculos após séculos”11 (fig. 1).
V, em seu discurso feito em um canal
aberto da rede televisiva, afirma que em prol da segurança e de uma ordem da qual fizera
questão em se isentar das grandes escolhas deixando-as aos seus representantes, as sociedades
humanas sempre optaram por limitar liberdades: as violências e intolerâncias são, em todas as
suas esferas prova dessa “covardia”12. A ruptura que a personagem terá com essa crítica na
obra fílmica é um dos pontos-chave para demonstrar as diferentes versões. As falas do
10 Parte do discurso da personagem V. In: MOORE, Alan; LLOYD, David. V de Vingança. Edição Especial (2006). p.119. 11 Idem, p.119. 12 Idem, p.118.
Fig. 1: p.118.
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codinome V, demonstram uma defesa de um ideal de liberdade desconexo de um
posicionamento anarquista. Ora, o que vemos aparenta ser a defesa de uma liberdade provida
de um posicionamento liberal13, e a defesa de uma representatividade democrática, que, na
“definição contemporânea de democracia ocidental – [...] tem por base a noção de um
“governo representativo” (SHOHAT; STAM, 2006. p.268), e sendo assim seu papel na
narrativa torna-se o de defensor da laicização, e da existência de um governo que represente
“à todos”, e não mais o de uma vanguarda revolucionária que tem por objetivo a chegada à
uma sociedade anarquista. Aliás, quando a palavra anarquia, em um único momento, aparece
na versão fílmica, é utilizada como sinônimo de caos.
Somando a essa diferença fundamental do posicionamento político, a personagem, que
nunca aparece “fora do papel” de “reencarnação contemporânea de Guy Fawkes”, vai sendo
construída para apresentar várias indefinições pontuais. Não fica claro ao leitor as identidades
da personagem, ou seja, ficam incógnitas em relação a etnia, orientação sexual e
posicionamento político anterior à sua prisão, todos fatores que levariam o mesmo à ser
preso em Larkhill, um campo de concentração. A personagem de uma obra ficcional
representa “a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de
identificações, projeção, transferência, etc” (CANDIDO, 2011. p.54). A proposta, como fica
visível em toda a obra, é uma personagem que deixa em aberto suas identidades, e sendo
assim, as razões pelas quais o leitor pode se identificar.
Dentre as cenas que demonstram essa intencional indefinição, apresento aqui um
exemplo. Há três momentos na obra que a orientação sexual de V parece ser questionada
(fig.3 e 4) ou até ironizada (fig.2), à ver:
13 Como o próprio autor, Moore, critica em sua entrevista dada a MTV, à saber: Alan Moore: The last angry man. MTV’
News. Disponível em: http://www.mtv.com/shared/movies/interviews/m/moore_alan_060315/ . Acesso em: 10/09/2013.
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Na página acima, V para torturar psicologicamente Lewis Prothero, parece ironizar
alguns estereótipos e preconceitos acerca de homossexuais e heterossexuais. Esses três
momentos parecem interligados: o uso do termo “rancho da alegria”, o elogio à voz máscula
de Prothero e a queima das bonecas.
Fig. 2: p.36.
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Somado a isto, temos mais dois momentos. Primeiro, quando V recita uma obra em
que se refere a si mesmo enquanto “ela”
(fig.4), e em segundo lugar quando após a
morte da personagem, quem faz o discurso
final para a população londrina é, em seu
lugar, a personagem Evey, uma mulher em
seus 18 anos, ou seja, o discurso foi recebido
independentemente da voz (fig.3). Moore
parece ter sido bem sucedido em criar uma
personagem sem identidade (e ao mesmo
tempo, com todas).
Fig. 3: (p.260).
Fig. 4: “ela”. (p.66).
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Em contraposição, está a personagem V do cinema. Essa liberdade que o leitor da HQ
teve para supor certas identidades da personagem é barrada no filme. E eis aqui uma questão
principal em relação a identidade do V na obra cinematográfica, e suas relações com sua
produção hollywoodiana na contemporaneidade.
Na obra fílmica vemos (e escutamos) um personagem de voz marcante e masculina,
assim como os aclamados personagens masculinos hollywoodianos as têm, além de uma
expressão corporal tal como se dá a composição de um personagem homem heterossexual.
Em filmes, como apresenta Kellner, até a posição da câmara e da iluminação ajuda a
enquadrar o protagonista como se pretende defini-lo: herói, masculinizado, mítico, com um
físico que remeta a poder e etc. (KELLNER, 2001. p.93). Além disso, esse personagem, que
na HQ é indagado por não se interessar por Evey, se mostra apaixonado pela mesma
personagem interpretada por Natalie Portman (não custa destacar, novamente, que a
composição dos protagonistas hollywoodianos raramente foge de um ideal de beleza
contemporâneo).
De um anarquista sem identidade de gênero e orientação sexual, temos agora outro
posicionamento, identidades dadas... temos outro personagem principal.
Então, é em torno da formulação da personagem V que observamos as questões que
envolvem a representação de “cultura”, em meio a esse amálgama de textos, onde vemos
apropriações, pastiches, intertextualidades. Moore foi trazendo entre um quadrinho e outro,
signos e textos dos quais tem relações com o discurso ideológico da personagem, assim como
nos filmes, “a ideologia é transmitida por imagens, figuras, cenas, códigos genéricos e pela
narrativa como um todo” (SHOHAT; STAM, 2006. p.93).
A erudição de V é, desde a HQ, uma característica central de sua personalidade. É a
partir dela que suas ações têm um sentido que ultrapassa a vingança, tal como o título da obra.
Contudo, a erudição de V terá características eliminadas na sua versão cinematográfica, com
outras as suplantando. Os limites que definem V como um erudito são visíveis nas escolhas e
recortes que estarão em suas falas ou disponíveis aos nossos olhos em seu acervo na Galeria
das Sombras. Essas obras foram, em sua maioria, roubadas do Ministério de Objetos
Censuráveis, ou “retomadas” por V dentro de uma concepção do que é considerado “cultura”
e do que é patrimônio da humanidade, e não poderia ser “perdido” ou erradicado.
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A Galeria, nome que nos remete sem dificuldade a um espaço de exposição artística
(ou seja, do que é merecedor do conceito de arte), nos mostra já na escolha de seu nome sua
função e razão: foi escolhido para estar lá exposto (mas também guardado) o que ficou no
breu, no passado, e será necessário tirar das sombras, na chegada da sociedade que V tinha em
seu horizonte. Os objetos censuráveis não servem ao presente e aos valores desta sociedade
inglesa.
O que está
exposto nas estantes,
paredes e teto da
Galeria que teve de ser
banido? Na primeira
cena em que esse
espaço aparece temos
parte importante da
resposta, na parte
direita da fig.5.
Karl Marx, Thomas Morus, dentre outros, estão representados no canto esquerdo da
imagem, logo escolhidos para apresentar V na primeira página. Mais do que para formular a
personagem, essa escolha representativa dos livros começa a definir o conceito de cultura.
Nestes detalhes, vemos que a cultura deixada como herança é mais do que uma
escolha arbitrária dentre produções artísticas, vai além, ao escolher colocar aquelas obras na
Fig.5: estante de livros, estante de cultura. (p.11)
Fig.6: (p.20)
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estante, Moore representa cultura como sendo também os tratados sobre o homem e a
sociedade em todas as suas esferas. Parece-me que essa concepção de cultura se assemelha a
discorrida por José Luiz dos Santos (2006, p.25) que ao falarmos de cultura de uma sociedade
podemos estar fazendo referência á língua, a sua literatura, conhecimento filosófico, científico
e artístico.
Esses registros intertextuais são portadores de indícios significativos: ela é mais do
que um resíduo, uma memória, ela é necessária a emancipação da consciência dos homens
que preferiam ter suas escolhas feitas por outros homens (tal como o discurso que ele profere
na tv), essa concepção de cultura é a base intelectual do próprio V, que busca agora uma outra
sociedade: o fim de um regime opressor, e o início de uma sociedade anarquista. Então o que
vemos é que existe uma relação intrincada entre a erudição da personagem V com
determinado conceito de cultura, que é a de uma herança intelectual necessária para o fim das
opressões dos homens pelos homens.
Não é essa concepção que parecerá estar no filme. O decorrer das cenas não nos deixa
ver quais livros estão dispostos pelos cômodos, e a composição da sala central onde se passa a
maioria das cenas não parece conter estantes de livros (fig.6), sendo assim os únicos livros
que estarão disponíveis ao espectador são os que aparecerão nas mãos (ou falas) das
personagens. O que está disponível é, na verdade, bustos da antiguidade clássica, armaduras
de ferro, e pinturas renascentistas.
A impossibilidade de ver os títulos de livros no filme não é uma ingênua coincidência.
Apresenta-se como uma tentativa de demonstrar erudição, sem, ao mesmo tempo, apresentar
Fig.7: Frame da versão fílmica. a Galeria das Sombras.
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as concepções teóricas de homem e sociedade que baseiam as falas da personagem, tornando-
as abstratas. A erudição se dá, aparentemente, apenas em citações de literaturas. Não é
surpresa que Hollywood não produza um protagonista que tem em sua biblioteca autores
como Marx, e que tem concepções ideológicas anarquistas, mostrando-o como um
conhecedor de teoria política. Sendo parte de uma cinematografia popular, concordo com
Kellner ao dizer que as imagens produzidas para a massa orientam a criação de valores e
objetivos sociais (KELLNER, 2001. p.29). A representação desse “novo” V é uma escolha
política, uma escolha ideológica, que teve em mente a influência desta indústria, sua
amplitude de públicos e possíveis ressonâncias.
As produções desta indústria são peças importantes na formação do pensamento
ocidental contemporâneo, pois “o fato de que filmes são representações não os impede de ter
efeitos reais sobre o mundo” (SHOHAT; STAM, 2006. p.268). É importante acerca da análise
que aqui proponho os apontamentos de Metz sobre as analogias em filmes:
... no amplo conjunto das significações conotadas que encontramos no cinema
(“significações simbólicas de qualquer ordem”), uma certa quantidade penetra no
filme graças à analogia perceptiva e fora de quaisquer codificações especificamente
cinematográficas: é o que ocorre sempre que um objeto ou um conjunto de objetos
(visuais ou sonoros) “simbolizam” dentro do filme o que simbolizariam fora dele,
isto é, na cultura (nem que seja para veicular além disso, e no filme tão-somente,
significações simbólicas decorrentes da sua localização no discurso propriamente
cinematográfico). Os “objetos” (incluindo os personagens), quer dizer, os diversos
“motivos” básicos do discurso fílmico não ingressam virgens no filme; eles levam
consigo, antes mesmo da intervenção da “linguagem cinematográfica”, muito mais
do que sua simples identidade literal, o que não impede o espectador que pertence a
determinada cultura de decifrar este “mais” no mesmo momento em que identifica o
objeto.” 14
Então, de uma HQ onde há um protagonista erudito com convicções políticas fortes e
bem definidas, vemos agora na versão fílmica um homem refinado, conhecedor das Belas
Artes, e proclamador de discursos abstratos sobre liberdade.
Se erradicaram a cultura dentro desta distopia, como diz V (fig.3), a vemos ser
erradicada mais uma vez, neste novo recorte agora feito pela produção do filme: cultura é o
que lhe faz refinado, o que podemos encontrar em livros de História da Arte e da Literatura,
os romances clássicos, as grandes personalidades artísticas. Nada de tratados políticos,
econômicos, filosóficos, históricos que possam defender uma sociedade que não seja a utopia
representativa de V, que não tem nome, não tem teoria, mas terá as Belas Artes. Essa
14 METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2010. p.135.
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
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mudança de conceito altera também o que está no horizonte de expectativa do protagonista, o
conceito de sociedade, seu funcionamento e seu passado. Quiçá seja curioso destacar que
independente da obra, o conceito de cultura parece estar ligado sempre com o de erudita.
Grandes artistas, obras, escritos... uma herança eurocêntrica.
Para concluir, vemos que o conceito de cultura altera-se de acordo com o
posicionamento ideológico dos produtores da obra. Hollywood parece perverter o trabalho de
Moore, não nos admira sua indignação em várias entrevistas. E é este protagonista que
adentrará as telas dos cinemas, e as televisões. Sendo a indústria hollywoodiana uma indústria
cultural produtora e veiculadora de valores, seria ingênuo não ter em mente as defesas
ideológicas até então propostas por este meio no momento em que assistimos a um filme por
ele produzido. Logo, por onde começar para tentar compreender a relevância que esta obra
toma no imaginário contemporâneo? Ora, são as falas desta versão fílmica que se verão em
cartazes nas atuais manifestações de rua em vários países, à exemplo de Occupy Wall Street.
A obra V de Vingança é, apropriando-me do termo, um construto cultural polissêmico
(KELLNER, 2001. p.103) que pode ser adotado por lados opostos no debate e na luta política,
o que faz com que uma leitura crítica das formas que ganha essa obra em Hollywood, tenha
sua relevância diante de seus recentes usos. A ideologia “está sempre a escapar através desta
fonte privilegiada que é a obra cinematográfica”, e é nos elementos casuais, nos dados
marginais, nos detalhes, nos diálogos, nos objetos, no cenário, que, por último, é preciso
levantar uma problemática: há de se concordar ainda com Ferro que mesmo sem a intenção do
cineasta, a obra pode orientar questões ideológicas das quais ele acreditava ter rejeitado
(FERRO, 1992. p.16).
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
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