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Inferno Inferno A Divina Comédia Dante Alighieri Tradução em prosa por Helder. da Rocha

A Divina Comédia Inferno - A Comédia de Dante Alighieristelle.com.br/ebooks/Inferno.pdf · Introdução à Divina Comédia Divina Comédia é a obra prima de Dante Alighieri, que

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Text of A Divina Comédia Inferno - A Comédia de Dante Alighieristelle.com.br/ebooks/Inferno.pdf ·...

  • InfernoInfernoA Divina Comdia

    Dante Alighieri

    Traduo em prosapor Helder. da Rocha

  • Dante Alighieri

    A Divina Comdia

    Adaptao em prosa

    por Helder da Rocha

  • Copyright 1999 Helder L. S. da Rocha (de acordo com a Lei 9.610/98)

    Contato atravs do site: http://www.helderdarocha.com.br

    Ilustraes de domnio pblico: 8 gravuras por Gustave Dor (sc. XIX)

    extradas de stios na Internet (veja bibliografia no final) e 8 do livro Dors

    Illustrations for Dantes Divine Comedy, Dover, New York, 1995. 3

    pinturas de Sandro Botticelli (sc. XV) e 2 pinturas de William Blake (sc.

    XIX) extrados de stios na Internet (veja bibliografia). 2 imagens adquiridas

    (para uso limitado) da Corbis Image Collections Inc. Imagens de Rossetti e De-

    lacroix.

    Outras ilustraes, editorao e capa: o tradutor.

    Reviso: este texto ainda no foi amplamente revisado por leitores (aceito e

    agradeo sugestes de melhoramentos, indicao de erros).

    Ficha Catalogrfica:

    Dante Alighieri, 1265-1321.

    D192i A divina comdia: inferno / Dante Alighieri. Verso em prosa, notas,

    ilustraes e introduo por Helder L. S. da Rocha. Ilustraes de

    Gustave Dor, Sandro Botticelli e William Blake. So Paulo, 1999.

    260 p.

    1. Dante Alighieri (1265-1321) Poeta florentino (Itlia). 2. Literatura

    italiana sculos XIII e XIV Poesia. 3. Inferno. I. Rocha, Helder Li-

    ma Santos da, 1968-. II. Dor, Gustave, 1832-1883. III. Botticelli,

    Sandro, 1445-1510. IV. Blake, William, 1757-1827. V. Ttulo.

    CDD 851.1

    ii

  • iii

    Dedico esta traduo minha amiga

    Luciana Albuquerque Prado

  • iv

  • v

    Deixai toda esperana vs que entrais.

    Inferno 3:9

  • vi

  • vii

    ndice

    Prefcio ................................................................................................... ix Introduo ................................................................................................. 1 Dante Alighieri ......................................................................................... 4 Introduo ao Inferno .............................................................................. 11 ndice do Inferno ..................................................................................... 13 ndice por crculo/pecado .................................................................... 17 ndice de ilustraes .............................................................................. 19 Inferno..................................................................................Inferno 1 a 105 Notas explicativas ................................................................Notas 2 a 106 Fontes de referncia ............................................................................... 21 ndice remissivo ...................................................................................... 25 Nota: a parte central do livro (210 pginas com a histria e as notas) forma um bloco parte. Sua numerao difere das outras sees.

  • viii

  • Prefcio

    ste volume contm uma verso em prosa do Inferno, o

    primeiro dos longos poemas que formam a Divina Com-

    dia obra-prima do poeta florentino Dante Alighieri,

    escrita em italiano, no incio do sculo XIV. Em 100 captulos,

    chamados de cantos, a obra narra a viagem do seu autor pelo Inferno,

    Purgatrio e Paraso. Os 34 primeiros captulos, que contam em deta-

    lhes a viagem pelo Inferno, esto neste volume.

    E Esta verso da Divina Comdia uma adaptao em prosa. Para

    compor esta verso foram consultadas tradues em verso e em pro-

    sa, para o ingls e o portugus, alm do texto original em italiano. Es-

    sas obras, alm de outras fontes consultadas esto listadas no final des-

    te livro.

    Conhecer os personagens histricos e mitolgicos essencial

    para compreender o sentido alegrico da Divina Comdia. Para isto

    foram organizadas notas explicativas com informaes obtidas em

    enciclopdias, notas de tradutores e stios na Internet.

    Todo o contedo deste livro pode ser encontrado na Internet,

    junto com o poema em italiano, pesquisa interativa por palavra-

    chave, referncias cruzadas para as notas e mais imagens. O endere-

    o http://www.stelle.com.br/. Esta edio no definitiva e po-

    der ser alterada ou corrigida sem prvio aviso.

    Helder L. S. da Rocha

    So Paulo, setembro de 1999.

    ix

  • x

  • Introduo Divina Comdia

    Divina Comdia a obra prima de Dante Alighieri, que a

    iniciou provavelmente por volta de 1307, concluindo-a

    pouco antes de sua morte (1321). Escrita em italiano, a

    obra um poema narrativo rigorosamente simtrico e planejado que

    narra uma odissia pelo Inferno, Purgatrio e Paraso, descrevendo cada

    etapa da viagem com detalhes quase visuais. Dante, o personagem da

    histria, guiado pelo inferno e purgatrio pelo poeta romano Virg-

    lio, e no cu por Beatriz, musa em vrias de suas obras.

    A

    O poema possui uma impressionante simetria matemtica base-

    ada no nmero trs. escrito utilizando uma tcnica original conhe-

    cida como terza rima, onde as estrofes de dez slabas, com trs linhas

    cada, rimam da forma ABA, BCB, CDC, DED, EFE, etc. Ou seja, a

    linha central de cada terceto controla as duas linhas marginais do ter-

    ceto seguinte. Veja um exemplo (primeiras estrofes do Inferno): 1 Nel mezzo del cammin di nostra vita A 2 mi ritrovai per una selva oscura B 3 ch la diritta via era smarrita. A 4 Ahi quanto a dir qual era cosa dura B 5 esta selva selvaggia e aspra e forte C 6 che nel pensier rinova la paura! B 7 Tant' amara che poco pi morte; C 8 ma per trattar del ben ch'i' vi trovai, D 9 dir de l'altre cose ch'i' v'ho scorte. C

    10 Io non so ben ridir com'i' v'intrai, D 11 tant'era pien di sonno a quel punto E 12 che la verace via abbandonai. D

    1

  • Ao fazer com que cada terceto antecipe o som que ir ecoar

    duas vezes no terceto seguinte, a terza rima d uma impresso de

    movimento ao poema. como se ele iniciasse um processo que

    no poderia mais parar. Atravs do desenho abaixo pode-se ter uma

    viso mais clara do efeito dinmico da poesia:

    Os trs livros que formam a Divina Comdia so divididos em

    33 cantos cada, com aproximadamente 40 a 50 tercetos, que termi-

    nam com um verso isolado no final. O Inferno possui um canto a

    mais que serve de introduo a todo o poema. No total so 100

    cantos. Os lugares descritos por cada livro (o inferno, o purgatrio

    e o paraso) so divididos em nove crculos cada, formando no total

    27 (3 vezes 3 vezes 3) nveis. Os trs livros rimam no ltimo verso,

    pois terminam com a mesma palavra: stelle, que significa estrelas.

    Diagrama representando o esquema potico da Divina Comdia (terza rima). As letras representam o som das ltimas slabas de cada verso das estrofes de trs slabas (tercetos). Ilustrao de D. Hofstadter reti-rada do seu livro Le Ton Beau de Marot.

    Dante chamou a sua obra de Comdia. O adjetivo Divina foi

    acrescido pela primeira vez em uma edio de 1555.

    A Divina Comdia exerceu grande influncia em poetas, msi-

    cos, pintores, cineastas e outros artistas nos ltimos 700 anos. De-

    senhistas e pintores como Gustave Dor, Sandro Botticelli, Salva-

    dor Dali, Michelangelo e William Blake esto entre os ilustradores

    de sua obra. Vrias esculturas de Auguste Rodin ilustram cenas do

    2

  • Inferno de Dante como Paolo e Francesca (O Beijo), Ugolino e seus filhos

    e a famosa Porta do Inferno. Os compositores Robert Schumann e

    Gioacchino Rossini traduziram partes da Comdia para msica e o

    compositor hngaro Franz Liszt utilizou-a como tema de um de

    seus poemas sinfnicos.

    H.R.

    3

    Dante e seus Poemas por Domenico di Michelino (1460). A ilustrao mostra

    Dante, ao centro, com a Divina Comdia. O Inferno est sua direita. A monta-

    nha do Purgatrio est ao fundo. Acima, o cu o Paraso. Reproduo autori-

    zada pela Corbis Image Collections.

  • Dante Alighieri

    ante Alighieri nasceu em Florena em 1265 de uma

    famlia da baixa nobreza. Sua me morreu quando era

    ainda criana e seu pai, quando tinha dezoito anos.

    Pouco se sabe sobre a vida de Dante e a maior parte das in-

    formaes sobre sua educao, sua famlia e suas opinies so ge-

    ralmente meras suposies. As especulaes sobre a sua vida deram

    origem vrios mitos que foram propagados por seus primeiros bi-

    grafos, dificultando o trabalho de separar o fato da fico. Pode-se

    encontrar muita informao em suas obras, como na Vida Nova (La

    Vita Nuova) e na Divina Comdia (Commedia).

    D

    Na Vida Nova Dante fala de seu amor platnico por Beatriz

    (provavelmente Beatrice Portinari), que encontrara pela primeira vez

    quando ambos tinham 9 anos e que s voltaria a ver 9 anos mais tar-

    de, em 1283. Nos tempos de Dante, o casamento era motivado prin-

    cipalmente por alianas polticas entre famlias. Desde os 12 anos,

    Dante j sabia que deveria se casar com uma moa da famlia Donati.

    A prpria Beatriz, casou-se em 1287 com o banqueiro Simone dei

    Bardi e isto, aparentemente, no mudou a forma como Dante enca-

    rava o seu amor por ela. Provavelmente em 1285, Dante casou-se

    com Gemma Donati com quem teve pelo menos trs filhos. Uma fi-

    lha de Dante tornou-se freira e assumiu o nome de Beatrice.

    Em 1290, Beatriz morreu repentinamente deixando Dante in-

    consolvel. Esse acontecimento teria provocado uma mudana ra-

    4

  • dical na sua vida o levando a iniciar estudos intensivos das obras fi-

    losficas de Aristteles e a dedicar-se arte potica.

    Dante foi fortemente influenciado pelos trabalhos de retrica e

    filosofia de Brunetto Latini um famoso poeta que escrevia em itali-

    ano (e no em latim, como era comum entre os nobres), tendo tam-

    bm se beneficiado da amizade com o poeta Guido Cavalcanti

    ambos mencionados na sua obra. Pouco se sabe sobre sua educao.

    Segundo alguns bigrafos, possvel que tenha estudado na univer-

    sidade de Bologna, onde provavelmente esteve em 1285.

    A Itlia no tempo de Dante estava dividida entre o poder do

    papa e o poder do Sagrado Imprio Romano. O norte era predo-

    minantemente alinhado com o imperador (que podia ser alemo ou

    italiano) e o centro, com o papa (veja mapa).

    Regies e cidades da Itlia mencionadas por Dante em sua obra.

    5

  • 6

    A Itlia, porm, no era um imprio coeso. No havia um ni-

    co centro de poder. Havia vrios, espalhados pelas cidades, que

    funcionavam como estados autnomos e seguiam leis e costumes

    prprios. Nas cidades era comum haver disputas de poder entre

    grupos opositores, o que freqentemente levava a sangrentas guer-

    ras civis. Florena era, na poca, uma das mais importantes cidades

    da Europa, igual em tamanho e importncia a Paris, com uma po-

    pulao de mais de 100 mil habitantes e interesses financeiros e

    comerciais que incluam todo o continente.

    A poltica nas cidades representava os interesses de famlias. A

    afiliao era hereditria. A famlia de Dante pertencia a uma faco

    poltica conhecida como os guelfos (Guelfi) representados pela baixa

    nobreza e pelo clero que fazia oposio a um partido conhecido

    como os guibelinos (Ghibellini) representantes da alta nobreza e do

    poder imperial. Os nomes dos dois grupos eram originrios de par-

    tidos alemes, porm os ideais polticos eram um mero pretexto

    para abrigar famlias rivais. Florena se dividiu em guelfos e guibeli-

    nos quando um jovem da famlia Buondelmonti no cumpriu uma

    promessa de casamento com uma moa da famlia Amadei e foi as-

    sassinado. As famlias da cidade tomaram partido por um lado ou

    por outro e Florena se dividiu em guelfos e guibelinos.

    Dante nasceu em uma Florena governada pelos guibelinos,

    que haviam tomado a cidade dos guelfos na sangrenta batalha co-

    nhecida como Montaperti (monte da morte), em 1260. Em 1289,

    Dante lutou com o exrcito guelfo de Florena na batalha de Cam-

    paldino, onde os florentinos venceram os exrcitos guibelinos de

    Pisa e Arezzo, e recuperaram o poder sobre a cidade.

    Na poca de Dante, o governo da cidade era exercido por re-

    presentantes eleitos de corporaes de operrios, artesos, profissi-

  • 7

    onais, etc. chamadas de guildas. Dante se inscreveu na guilda dos

    mdicos e farmacuticos e disputou as eleies em Florena, tendo

    sido eleito em 1300 como um dos seis priores (presidentes) do

    Conselho da Cidade.

    A maior parte do poder em Florena estava ento nas mos dos

    guelfos opositores do poder imperial. Mas o partido em pouco

    tempo dividiu-se em duas faces. A causa foi novamente uma rixa

    entre famlias, desta vez, importada da cidade de Pistia. Os Cancellieri

    era uma grande famlia de Pistia, descendentes de um mesmo pai

    que tivera, durante sua vida, duas esposas. A famlia Cancellieri divi-

    diu-se quando um membro desajustado da famlia assassinou o tio e

    cortou a mo do primo. Os descendentes da primeira esposa do

    Cancellieri, que se chamava Bianca, decidiram se apelidar de Bianchi.

    Os rivais, que defendiam o jovem assassino, se apelidaram de Neri

    (negros) em esprito de oposio. A briga tomou conta de Pistia e a

    cidade acabou sofrendo interveno de Florena, que levou presos

    os lderes dos grupos rivais. Mas as famlias de Florena no demora-

    ram a tomar partido e, por causa de uma briga de rua, a diviso se

    espalhou pela cidade, dividindo os guelfos em negros e brancos.

    Depois de criados, os partidos assumiram posies polticas.

    Os guelfos brancos, moderados, respeitavam o papado mas se opu-

    nham sua interferncia na poltica da cidade. J os guelfos negros,

    mais radicais, defendiam o apoio do papa contra as ambies do

    imperador, que era apoiado pelos guibelinos.

    Os priores de Florena (entre eles Dante) viviam em constante

    atrito com a igreja de Roma que, sob o governo do papa Bonifcio

    VIII, pretendia colocar toda a Itlia sob a ditadura da igreja. Em um

    dos encontros com o papa, onde os priores foram reclamar da inter-

    ferncia da igreja sobre o governo de Florena, Bonifcio respondeu

  • ameaando excomung-los. A briga entre os Neri e Bianchi tornou-se

    cada vez mais intensa durante o mandato de Dante at que ele teve

    que ordenar o exlio dos lderes de ambos os lados para preservar a

    paz na cidade. Dante foi extremamente imparcial, incluindo, entre os

    exilados, um dos seus melhores amigos (Guido Cavalcanti) e um pa-

    rente de sua esposa (da famlia Donati).

    No meio da confuso entre os guelfos de Florena, o papa deci-

    diu enviar Carlos de Valois (irmo do rei Felipe da Frana) como paci-

    ficador para acabar com a briga entre as faces. A suposta ajuda, po-

    rm, revelou ser um golpe dos Neri para tomar o poder. Eles ocupa-

    ram o governo de Florena e condenaram vrios Bianchi ao exlio e

    morte. Dante foi culpado de vrias acusaes, entre elas corrupo,

    improbidade administrativa e oposio ao papa. Foi banido da cidade

    por dois anos e condenado a pagar uma alta multa. Caso no pagasse,

    seria condenado morte se algum dia retornasse a Florena.

    Dante no Exlio. Annimo. Archivo Iconogrfico S.A., Itlia. Reproduo auto-rizada por Corbis Image Collections.

    8

  • 9

    No exlio, Dante aproximou-se mais da causa dos guibelinos (o

    imprio), medida em que a tirania do papa aumentava. Ele passou

    o seu exlio em Forl, Verona, Arezzo, Veneza, Lucca, Pdua (e tam-

    bm provavelmente em Paris e Bologna). Em 1315 voltou a Verona

    e dois anos depois fixou-se em Ravenna. Suas esperanas de voltar a

    Florena retornaram depois que o sucessor de Bonifcio VIII cha-

    mou Itlia o imperador Henrique VII. O objetivo de Henrique VII

    era reunir a Itlia sob seu reinado. Porm a traio do papa, que ain-

    da alimentava a idia de ter um imprio prprio, seguida por uma

    nova vitria dos Neri e a morte de Henrique VII trs anos depois en-

    terraram de vez as suas esperanas.

    Na obra La Vita Nuova, seu primeiro trabalho literrio de im-

    portncia, iniciado pouco depois da morte de Beatriz, Dante narra a

    histria do seu amor por Beatriz na forma de sonetos e canes

    complementadas por comentrios em prosa. Durante o seu exlio

    Dante escreveu duas obras importantes em latim: De Vulgari Elo-

    quentia, onde defende a lngua italiana, e Convivio, incompleto, onde

    pretendia resumir todo o conhecimento da poca em 15 livros. A-

    penas os quatro primeiros foram concludos. Escreveu tambm um

    tratado: De Monarchia, onde defendia a total separao entre a Igreja

    e o Estado. A Commedia consumiu 14 anos e durou at a sua morte,

    em 1321, ocorrida pouco aps a concluso do Paraso. Cinco anos

    antes de sua morte, foi convidado pelo governo de Florena a

    retornar cidade. Mas os termos impostos eram humilhantes, se-

    melhantes queles reservados criminosos perdoados e Dante rejei-

    tou o convite, respondendo que s retornaria se recebesse a honra e

    dignidade que merecia. Continuou em Ravenna, onde morreu e foi

    sepultado com honras.

    H.R.

  • Retrato de Dante Alighieri. Ilustrao de Gustave

    Dor (sc. XIX).

    10

  • Introduo ao Inferno

    Inferno relata uma odissia pelo mundo subterrneo pa-

    ra onde se dirigem aps a morte, segundo a crena

    crist, aqueles que pecaram e no se arrependeram em

    vida. A viagem, relatada em 4720 versos rimados em tercetos, rea-

    lizada pelo prprio Dante guiado pelo esprito de Virglio famoso

    poeta romano dos tempos de Jlio Csar.

    O A geografia do mundo e do reino dos mortos reflete as cren-

    as vigentes na Idade Mdia. A terra, esfrica, era o centro do Uni-

    verso segundo a cosmologia de Ptolomeu. Trs continentes eram

    conhecidos: sia, frica e Europa, e acreditava-se que eles ocupa-

    vam somente um dos hemisfrios do planeta. Todo o hemisfrio

    oposto era coberto de gua. Na mitologia de Dante, a nica exceo

    era o plo oposto cidade de Jerusalm, que ficava no meio do o-

    ceano. L havia uma ilha em cujo centro despontava uma nica e

    altssima montanha o monte do Purgatrio.

    Alm das crenas crists da poca, o poema de Dante tambm

    foi influenciado por vrios outros poemas picos que precederam a

    Comdia. Monstros avernais e outras figuras mitolgicas gregas e

    romanas que apareceram nas obras de Homero, Virglio e Ovdio,

    ressurgem no Inferno de Dante ora como condenados ora como se-

    res responsveis pelo funcionamento de algum servio mantido

    no reino de Lcifer.

    11

  • 12

    A viagem narrada pelo poema acontece na semana santa do ano

    de 1300. Naquela poca, Dante era um atuante poltico florentino

    prestes a ser eleito dois meses depois, como um dos priores (gover-

    nadores) da cidade de Florena. Porm, em menos de um ano, Dante

    foi exilado e expulso da cidade. O Inferno, escrito no exlio, faz refe-

    rncia a vrios fatos histricos que aconteceram antes e depois de

    1300. Os fatos futuros so profetizados pelas almas condenadas.

    Para compreender o Inferno de Dante preciso conhecer um

    pouco da poltica de Florena e das crenas e costumes da Idade

    Mdia. importante tambm conhecer a vida de Dante, suas ativi-

    dades e os motivos do seu exlio. Isto apresentado na seo se-

    guinte, que contm uma pequena biografia do poeta.

    Em vrias partes do seu texto, Dante menciona personalidades

    pelo apelido ou pelo primeiro nome. A maior parte dessas pessoas

    eram conhecidas pela populao da Itlia na sua poca. Hoje, 700

    anos depois, impossvel saber quem era Buoso ou Francesco

    sem consultar as notas dos primeiros dantlogos como Boccaccio e

    Andrea Lancia (Ottimo Commento). As notas explicativas, compiladas

    a partir de diversas fontes, aparecem nesta edio em cada pgina

    esquerda enquanto o texto flui nas pginas direita. As notas tam-

    bm contm interpretaes de smbolos do Inferno. Algumas inter-

    pretaes so bastante interessantes e at esclarecedoras mas pre-

    ciso lembrar que no fazem parte da obra original. Refletem a opi-

    nio (e a imaginao) do autor da explicao e no a de Dante, uma

    vez que ele no fez anotaes sobre os poemas da Comdia.

    H.R.

  • ndice do Inferno

    a seo central deste livro, a numerao das pginas do

    lado direito e do lado esquerdo a mesma. Todo o tex-

    to flui nas pginas direita. Nas pginas esquerda es-

    to localizadas, para fcil consulta, notas explicativas sobre perso-

    nagens, localidades e smbolos que aparecem no texto direita.

    N Inferno

    Canto I A selva escura As feras Esprito de Virglio ........................................2

    Canto II Razo da viagem Beatriz ........................................................................5

    Canto III A porta do Inferno Vestbulo Rio Aqueronte Caronte .....................7

    Canto IV Limbo (Crculo 1) Castelo dos iluminados ..............................................10

    Canto V Mins Crculo da luxria (2) Espritos de Paolo e Francesca ..............13

    Canto VI Crbero Crculo da gula (3) Esprito de Ciacco ....................................16

    Canto VII Pluto Crculo da avareza (4) Crculo da ira (5) Rio Estige ..............19

    Canto VIII Flgias Demnios A cidade de Dite Ernias e Medusa .....................22

    Canto IX Crculo da heresia (6) Tmulos ...............................................................25

    13

  • 14

    Canto X Esprito de Farinata Esprito de Cavalcanti ........................................... 29

    Canto XI Tmulo do papa Anastcio Explicao sobre a justia infernal ............... 33

    Canto XII Minotauro Centauros Crculo da violncia (7) Rio de sangue ............ 36

    Canto XIII Hrpias Selva dos suicidas ..................................................................... 39

    Canto XIV Deserto incandescente Chuva de brasas Riacho Flegetonte .................... 42

    Canto XV Esprito de Brunetto Latini ....................................................................... 45

    Canto XVI Espritos de polticos florentinos .................................................................. 47

    Canto XVII Gerin Espritos de famlias da alta nobreza .......................................... 51

    Canto XVIII Malebolge Crculo da fraude (8) Valas dos sedutores e aduladores ....... 54

    Canto XIX Vala dos simonacos Esprito do papa Nicolau III ................................. 57

    Canto XX Vala dos adivinhos .................................................................................... 59

    Canto XXI Vala dos corruptos Malebranche (demnios) ........................................... 61

    Canto XXII Escolta de 10 demnios .............................................................................. 64

    Canto XXIII Vala dos hipcritas Frades gaudentes ..................................................... 67

    Canto XXIV Vala dos ladres Esprito de Vanni Fucci ............................................. 70

  • 15

    Canto XXV Transformao em rpteis ...........................................................................73

    Canto XXVI Vala dos maus conselheiros Esprito de Ulisses .......................................76

    Canto XXVII Esprito do frade Guido de Montefeltro .......................................................78

    Canto XXVIII Vala dos separatistas Espritos de Maom e Bertran de Born .................81

    Canto XXIX Vala dos falsrios Alquimistas ...............................................................85

    Canto XXX Falsificadores Perjuros Esprito de mestre Adamo ................................88

    Canto XXXI Gigantes Nemrod Efialte Anteu ......................................................92

    Canto XXXII Lago Ccito Cana Antenora Esprito de Bocca ...............................95

    Canto XXXIII Esprito do Conde Ugolino Ptolomia Esprito do Frei Alberigo ..........98

    Canto XXXIV Judeca Lcifer Bruto Cssio Judas Centro da Terra ............... 102

  • 16

  • ndice por pecado

    s cantos a seguir esto organizados de acordo com os pe-

    cados (grifados) e o crculo do inferno onde so puni-

    dos (entre parnteses). O inferno de Dante divide-se

    em dez regies (nove crculos internos e uma rea externa). Os crcu-

    los mais profundos dividem-se ainda mais: o stimo divide-se em

    trs, o oitavo em dez e o nono em quatro. Ao todo, so 24 regies.

    O Ausncia de opo pelo bem ou pelo mal Inferno Indeciso, covardia: Canto III (Vestbulo) ..............................................7

    Ausncia de pecado (desconhecimento da Verdade) (1) Ausncia de batismo: Canto IV (Limbo) ............................................10

    Incontinncia (pecados do leopardo) (2) Luxria: Canto V ..............................................................................13 (3) Gula: Canto VI .................................................................................16 (4) Avareza e gastana ostensiva: Canto VII ............................................19 (5) Ira e rancor: Canto VII a Canto VIII ..............................................19

    Heresia (negao da Verdade) (6) Heresia: Canto IX a Canto X ..........................................................25

    Violncia (pecados do leo) (7.1) Tirania, assalto, assassinato (violncia contra outros): Canto XII ......36 (7.2) Suicdio, gastana auto-destrutiva (violncia contra si): Canto XIII ..39 (7.3) Blasfmia (violncia contra Deus): Canto XIV..................................42 (7.3) Sodomia (violncia contra a natureza): Canto XV e XVI ................45 (7.3) Usura (violncia contra a arte): Canto XVII ....................................51

    17

    file://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_5.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_6.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_7.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_7.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_8.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_9.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_10.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_12.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_13.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_14.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_15.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_16.html

  • 18

    Fraude simples (pecados da loba) (8.1) Seduo e explorao sexual: Canto XVIII ..................................... 54 (8.2) Adulao e lisonja: Canto XVIII ................................................... 54 (8.3) Simonia: Canto XIX ...................................................................... 57 (8.4) Magia e adivinhao: Canto XX ..................................................... 59 (8.5) Corrupo (barataria): Cantos XXI e XXII ................................. 61 (8.6) Hipocrisia: Canto XXIII ............................................................... 67 (8.7) Roubo e furto: Cantos XXIV e XXV ............................................ 70 (8.8) Maus conselhos: Cantos XXVI e XXVII ...................................... 76 (8.9) Cisma e intriga: Canto XXVIII ..................................................... 81 (8.10) Falsificao: Cantos XXIX e XXX ............................................ 85

    Fraude complexa (traio) (9.1) Traio contra parentes (Cana): Canto XXXII ............................. 95 (9.2) Traio contra a ptria (Antenora): Cantos XXXII e XXXIII .... 95 (9.3) Traio contra hspedes (Ptolomia): Canto XXXIII ...................... 98 (9.4) Traio contra benfeitores (Judeca): Canto XXXIV ......................102

    file://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_18.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_18.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_19.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_20.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_21.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_22.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_23.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_24.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_25.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_26.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_27.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_28.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_29.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_30.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_32.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_32.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_33.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_33.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/canto_34.html

  • 19

    ndice de ilustraes

    1. Dante e seus Poemas por Domenico di Michelino............................. 3 2. Dante Alighieri do Codex Riccardianus............................................. 4 3. Dante no Exlio de pintor annimo ................................................... 8 4. Dante Alighieri por Gustave Dor .................................................. 10 5. Dante perdido na floresta escura por Dor (Canto I) ............... Notas 2 6. Portal do Inferno (Canto III) por William Blake .................... Notas 6 7. Portal do Inferno (Canto III) por Helder da Rocha .............. Notas 7 8. Porta do Inferno (Canto III) por Rodin ................................... Notas 9 9. Poetas no Limbo (Canto IV) por Dor ................................ Inferno 12 10. Pena da luxria no segundo crculo (Canto V) por Dor ....... Notas 15 11. Paolo e Francesca (Canto V) por Dante Gabriel Rossetti .. Notas 15 12. Pena da luxria no segundo crculo (Canto V) por Blake ...... Inferno 15 13. Dante no Inferno (Canto VIII) por Eugne Delacroix ....... Notas 22 14. Travessia do Rio Estige (Canto VIII) por Dor ................... Notas 24 15. Mapa do Inferno superior por Helder da Rocha ................... Inferno 28 16. Cidade dos hereges no sexto crculo (Canto X) por Dor ........ Notas 29 17. Vista do sexto e stimo crculos por Helder da Rocha ............ Notas 35 18. Violentos no Rio Flegetonte (Canto XII) por Dor ............... Notas 39 19. Suicidas (Canto XIII) por Dor ........................................... Notas 42 20. Blasfemos e sodomitas (Canto XIV) por Dor ....................... Notas 45 21. Mapa da cidade de Dite por Helder da Rocha ..................... Inferno 50 22. Gerin (Canto XVII) por Dor ............................................ Notas 53 23. Rufies e sedutores por Sandro Botticelli ............................... Notas 56

    file://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore1.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore2.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/blake1.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/helder1.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore3.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore4.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore4.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/blake2.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore5.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore5.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/mapa1.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore7.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore8.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore9.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/mapa2.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore10.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/botticelli2.html

  • 20

    24. Simonacos (Canto XIX) por Dor .......................................Notas 58 25. Fuga dos dez diabos (Canto XXIII) por Dor ......................Notas 67 26. Runas da sexta vala de Malebolge por Helder da Rocha ......Notas 70 27. Ladres e serpentes (Canto XXIV) por Dor ........................Notas 71 28. Bertran de Born (Canto XXVIII) por Dor ........................Inferno 84 29. Mapa do Malebolge por Helder da Rocha ............................Inferno 91 30. Anteu e descida ao Ccito (Canto XXXI) por Dor ..............Notas 94 31. Almas imersas na Antenora (Canto XXXII) por Dor ........Notas 99 32. Mapa do lago Ccito por Helder da Rocha ........................ Inferno 101 33. Lcifer (Canto XXXIV) por Alessandro Velutello ..........Notas 105 34. Mapa da Terra mostrando o Inferno e Purgatrio

    por Helder da Rocha ........................................................ Inferno 105

    35. Viso geral do Inferno em perspectiva por Helder da Rocha............................................................Notas 106

    36. Mapa do Inferno de Dante por Sandro Botticelli ............................. 23

    file://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore12.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore13.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore14.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/mapa3.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/dore15.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/mapa4.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/vellutello.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/mapa5.htmlfile://localhost/Users/helderdarocha/Downloads/botticelli1.html

  • Notas 2

    Dante perdido na selva escura. Ilustrao de Gustave Dor

    (sculo XIX).

  • Canto I

    uando eu me encontrava na metade do caminho de nossa

    vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida

    no mais seguia o caminho certo. Ah, como difcil des-

    crev-la! Aquela selva era to selvagem, cruel, amarga, que a sua

    simples lembrana me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo

    a morte poderia ser to terrvel. Mas, para que eu possa falar do

    bem que dali resultou, terei antes que falar de outras coisas, que do

    bem, passam longe.

    Q

    Eu no sei como fui parar naquele lugar sombrio. Sonolento

    como eu estava, devo ter cochilado e por isso me afastei da via ver-

    dadeira. Mas, ao chegar ao p de um monte onde comeava a selva

    que se estendia vale abaixo, olhei para cima e vi aquela ladeira co-

    berta com os primeiros raios do Sol. A cena trouxe luz minha

    vida, afastou de vez o medo e me deu novas esperanas. Decidi en-

    to subir aquele monte. Olhei para trs uma ltima vez, para aquela

    selva que nunca deixara uma alma viva escapar, descansei um pou-

    co, e depois, iniciei a escalada.

    Eu havia dado poucos passos, quando, de repente, saltou

    minha frente um gil e alegre leopardo. Astuto, de plos mancha-

    dos, de todas as formas ele impedia que eu seguisse adiante. No

    adiantava desviar ou buscar um outro caminho pois no final, ele

    sempre estava l, bloqueando a minha passagem. Vrias vezes tentei

    venc-lo. Vrias vezes falhei.

    Inferno 2

  • Notas 3

    1 Personagens e smbolos do Canto I

    1.1 O narrador Dante protagonista da histria e autor do poema. O poema

    uma narrativa alegrica, ou seja, o autor descreve situaes que no devem ser

    interpretadas apenas pelo seu sentido literal. Portanto, o personagem Dante, o

    peregrino, pode tambm ter representao simblica. A histria pode ser uma

    espcie de sonho (ele fala que foi o sono, um cochilo que o levou selva). Es-

    tudiosos da obra de Dante dizem que o Dante da histria simboliza qualquer

    ser humano que, como ele, se encontra perdido naquela selva escura (que alego-

    ricamente representaria o pecado veja nota 1.3).

    1.2 Cronologia da viagem: Dante diz que est no meio do caminho da nossa vi-

    da. Isto pode ter vrios significados mas tambm pode indicar que ele est

    com 35 anos (de acordo com os 70 anos reservados ao homem, segundo as fi-

    losofias da poca). O ano, portanto, 1300, pois Dante nasceu em 1265. Esta

    data tambm confirmada em outras ocasies, como no Canto XXI, onde tam-

    bm se confirma que a viagem ocorre na semana santa. Em vrias ocasies, no

    poema original, o autor descreve a posio das constelaes e astros como for-

    ma de nos informar a hora e a data. Atravs dessas observaes, podemos de-

    duzir que o Canto I comea na noite da quinta-feira santa (quando se acreditava

    que as posies dos astros seriam as mesmas de quando o mundo foi criado) e

    termina no incio da noite da sexta-feira.

    1.3 A Selva Escura , segundo a tradutora Dorothy Sayers, uma representao

    simblica da perdio no pecado, onde a confuso to grande que a alma

    no se acha capaz de reencontrar o caminho certo. Uma vez perdido na selva

    escura, um homem s poder escapar se, atravs do uso da razo do intelecto,

    descer de forma que veja o seu pecado no como um obstculo externo (as fe-

    ras), mas como vontade de caos e morte dentro de si (inferno). [Sayers 49]

  • Inferno 3

    O dia j raiava e o Sol nascia com aquelas mesmas estrelas que

    acompanharam o mundo no seu primeiro dia. A luz e a claridade

    daquele dia especial renovaram minhas esperanas, e me fizeram

    acreditar que iria conseguir vencer aquela fera malhada.

    Mas a minha esperana durou pouco e o medo retornou

    quando vi surgir, diante de mim, um leo. Ele parecia avanar na

    minha direo, com a cabea erguida, to faminto e raivoso que at

    o prprio ar parecia tem-lo. E depois veio uma loba, magra e cobi-

    osa, cuja viso tornou minha alma to pesada, pelo medo que me

    possuiu, que no vi mais esperana alguma na escalada. A loba

    avanava, lentamente, e me fazia descer, me empurrando de volta

    para aquele lugar onde a luz do Sol no entra.

    Quando eu j me encontrava na beira daquele vale escuro,

    meus olhos aos poucos perceberam um vulto que se aproximava,

    que apagado estivera, talvez por excessivo silncio.

    Tenhas piedade de mim gritei ao v-lo quem quer

    que sejas, sombra ou homem vivo!

    Homem no mais respondeu o vulto , homem eu fui

    um dia. Nasci em Mntua, nos tempos de Jlio Csar e vivi em

    Roma no imprio de Augusto. Fui poeta e narrei a odissia de

    Enas, que fugiu de Tria depois do incndio. E tu, por que no

    sobes o precioso monte, princpio e causa de toda glria?

    Tu s Virglio? perguntei, vergonhoso Ora, tu s

    meu mestre e meu autor predileto! Foi contigo que aprendi o belo

    estilo potico que me deu louvor. Eu no subi o monte por causa

    dessa fera. Ela me faz tremer os pulsos. Ajuda-me, sbio famoso!

    Ajuda-me a enfrent-la!

  • Notas 4

    1.4 As trs feras, na opinio de vrios estudiosos, tm sentido figurado e represen-

    tam trs tipos de pecados (que so discutidos no Canto XI) e tambm trs sub-

    divises do inferno. uma representao alegrica dos pecados segundo a filo-

    sofia de Toms de Aquino, que influenciou Dante. A incontinncia (leopardo), a

    violncia (leo) e a fraude (loba) refletem nveis de gravidade crescentes de acordo

    com os conhecimentos da pessoa (quanto mais se sabe, mais grave o pecado).

    Segundo a tradutora e comentarista Dorothy Sayers, refletem trs estgios da

    vida humana (juventude, meia-idade e velhice). Os pecados cometidos na velhi-

    ce seriam mais graves pois a alma que os comete mais experiente e j sabe di-

    ferenciar o certo do errado. [Sayers 49]

    1.5 Virglio (70 a 19 a.C.) foi grande poeta da antiguidade e autor de vrias obras

    entre as quais as Gergicas e a Eneida. Esta ltima conta a histria da fundao de

    Roma pelo troiano Enas (veja nota 4.11). Dante conhecia as obras de Virglio e

    louva-o por ter influenciado seu estilo potico. De acordo com vrios dantlogos,

    Virglio tambm tem um sentido alegrico: simboliza o intelecto, a razo do pe-

    regrino Dante (veja nota 1.1). a razo que apagada estivera, talvez por exces-

    sivo silncio que pode gui-lo para fora da selva escura.

    1.6 O monte, na interpretao de Sayers, representa no nvel mstico a ascenso

    da alma a Deus. No nvel moral, a imagem do arrependimento. Pode ser esca-

    lado diretamente pela estrada certa, mas no pela selva selvagem porque ali os

    pecados da alma so expostos e aparecem como demnios (as feras) com um

    poder e vontade prprios, impedindo qualquer progresso. [Sayers 49] O mon-

    te pode ser uma representao alegrica da montanha do purgatrio (veja nota

    34.8) que no pode ser escalada pela selva escura.

    1.7 O Lebreiro (L'veltro): Um lebreiro (ou lebru) um co usado para caar le-

    bres. O Lebreiro mencionado por Virglio representa algum tipo de redentor ou

    salvador, mas no claro se deve ser interpretado como uma pessoa. J foi ob-

    jeto de diversas interpretaes por vrios comentaristas. Para alguns, represen-

    ta, no sentido figurado, algum lder que resgataria a Itlia da situao poltica em

    que se encontra. Para outros, representa o estabelecimento de um reino espiri-

    tual na terra (a vinda de Cristo que no juzo final levaria a Loba de volta ao in-

    ferno).

  • Inferno 4

    A ti convm seguir outra viagem respondeu o poeta, ao

    me ver lacrimejando pois essa fera, essa loba, a mais feroz e in-

    sacivel de todas. Ela s partir quando finalmente vier o Lebreiro

    que para ela ser a dura morte. Ele no se alimentar nem de di-

    nheiro, nem de terras; s a sua sabedoria, amor e virtude podero

    nutri-lo. Ele vir para salvar a tua Itlia cada. Ele ir caar essa fera

    em todas as cidades at encontr-la, quando ento a matar e a

    conduzir de volta ao Inferno, de onde a Inveja, primeiro a trouxe

    para este mundo.

    Depois, me fez uma proposta:

    Eu acho melhor, para teu bem, que me sigas. Eu serei o teu

    guia. Te levarei para um lugar eterno onde vers condenados gri-

    tando, em vo, por uma segunda chance. Depois vers outros que

    sofrem contentes no fogo, pois tm esperana de um dia seguir ao

    encontro daquela gente abenoada. E depois, se quiseres subir ao

    cu, l ters alma mais digna do que eu, pois o Imperador daquele

    reino me nega a entrada, porque sua lei eu fui rebelde.

    Poeta respondi , eu te imploro, em nome desse Deus

    que no conheceste, que me ajudes a fugir deste mal ou de outro

    pior. Eu te seguirei a esses lugares que descreveste. Que eu possa

    ver a porta de So Pedro e os tristes sofredores dos quais falaste!

    Ele ento moveu-se, e eu o acompanhei.

  • Notas 5

    2 Personagens e smbolos do Canto II

    2.1 Santa Luzia padroeira dos que sofrem da vista [Sayers 49]. Dante era devoto

    de Santa Luzia [Mauro 98] que o teria curado de um problema de vista no pas-

    sado. Na minha interpretao, Dante estava cego (no sabia mais onde era o

    caminho certo), longe da luz (na selva escura), portanto Santa Luzia, que atende

    aos que sofrem da vista, seria a indicada para ajud-lo.

    2.2 Beatriz uma pessoa muito importante para Dante. Fonte de inspirao em

    quase todas as suas obras, retratada como smbolo de pureza e perfeio. A

    Beatriz de suas obras provavelmente foi inspirada na Beatriz da vida real que

    Dante conheceu quando tinha 9 anos (veja texto sobre a vida de Dante, na in-

    troduo). Na Divina Comdia, Beatriz smbolo do amor divino ou da religiosi-

    dade (na opinio dos estudiosos de Dante). ela que chama Virglio (a razo)

    para gui-lo para fora da selva.

    2.3 Limbo: veja nota 4.1.

    2.4 A viagem pelos lugares eternos proposta por Virglio consiste em atravessar

    a terra, passando pelo inferno at chegar montanha do purgatrio do outro

    lado. Virglio s pode conduzir Dante at o purgatrio, mas no pode entrar no

    paraso (a razo leva f, mas no se pode compreender o divino com a razo).

    L ter alma mais digna que Beatriz.

  • Canto II

    anoitecia quando iniciamos a jornada. Musas, grande g-

    nio, me ajudem para que eu possa relatar aqui sem erro esta vi-

    agem que est escrita para sempre em minha mente! E ento

    comecei:

    J poeta que me guias, julga minha virtude e dize se com-

    patvel com o caminho rduo que me confias. No sou ningum di-

    ante de Paulo ou Enas. No consigo crer que eu seja digno de tal,

    nem acho que outro pensaria da mesma forma.

    Se eu de fato compreendi o que acabas de dizer respon-

    deu o poeta , tua alma est tomada pela covardia, que tantas ve-

    zes pesa sobre os homens, os afastando de nobres empreendimen-

    tos, como uma besta assustada pela prpria sombra. Para te libertar

    desse medo, deixa que eu te explique como cheguei at ti:

    Eu estava com os outros espritos suspensos no Limbo

    quando apareceu-me uma mulher beata e bela.

    generosa alma mantuana, disse ela , ajude-me a so-

    correr um amigo que est perdido na selva escura. Vai com tua fala

    ornada e ajuda-o para que eu seja consolada. Eu sou Beatriz, que

    pede que tu vs. Venho do cu e para o cu voltarei. Foi o amor

    que me trouxe e ele quem me faz falar.

    mulher de virtude, tanto me agrada obedecer-te que bas-

    ta dizeres o que desejas que eu faa que eu o farei. Mas dize-me,

    no tens medo de descer at este centro escuro?

    Inferno 5

  • Notas 6

    Dante e Virglio diante do portal do Inferno. Ilustrao de Wi-

    lliam Blake (sculo XVIII).

  • Inferno 6

    Deve-se temer as coisas que de fato tm o poder de nos

    causar mal respondeu , e mais nada, pois nada mais existe

    para temer. A mulher gentil, que se compadeceu do que acontece

    com aquele a quem te envio, pediu a Luzia, dizendo: aquele teu

    adepto fiel precisa de tua ajuda e a ti o recomendo. Luzia, inimiga

    de toda crueldade, veio ento a procurar-me, onde eu sentava com

    a antiga Raquel. Beatriz, disse, no vais salvar quem mais te amou

    e que por ti se elevou do povo vulgar? Logo que ouvi tais palavras

    desci aqui, do meu beato posto, por confiar na tua palavra honesta.

    E assim ela me deixou, e eu cheguei para afastar aquela fera

    que impedia que tu escalasses o belo monte.

    Ento o que que h? Por que tu s to covarde? Por que

    no s bravo e corajoso, quando tens trs mulheres abenoadas que

    te guardam l do cu?

    Depois que ele terminou de falar, eu no era mais o mesmo.

    Recuperei a coragem, perdi o medo e afastei todas as minhas dvi-

    das. Imediatamente voltei a confiar na jornada que me fora propos-

    ta e disse-lhe:

    piedosa aquela que me socorreu, e tu que to corts

    atendeste ao seu pedido. Com tuas palavras tornei-me outra vez

    disposto. Vamos, que agora ambos queremos a mesma coisa. Tu se-

    rs meu guia, e eu te seguirei.

    E assim, seguimos por um caminho rduo e silvestre.

  • Notas 7

    Dante e Virglio diante da entrada do Inferno. Ilustrao de Helder da Rocha.

  • Inferno 7

    Canto III

    POR MIM SE VAI CIDADE DOLENTE, POR MIM SE VAI ETERNA DOR, POR MIM SE VAI PERDIDA GENTE.

    JUSTIA MOVEU O MEU ALTO CRIADOR, QUE ME FEZ COM O DIVINO PODER, O SABER SUPREMO E O PRIMEIRO AMOR.

    ANTES DE MIM COISA ALGUMA FOI CRIADA EXCETO COISAS ETERNAS, E ETERNA EU DURO. DEIXAI TODA ESPERANA, VS QUE ENTRAIS!

    Estas palavras estavam escritas em tom escuro, no alto de um

    portal. Eu, assustado, confidenciei ao meu guia:

    Mestre, estas palavras so muito duras.

    No tenhas medo respondeu Virglio, experiente

    mas no sejas fraco! Aqui chegamos ao lugar, do qual antes te fa-

    lei, onde encontraramos as almas sofredoras que j perderam seu

    livre poder de arbtrio. No temas, pois tu no s uma delas, tu

    ainda vives.

    Em seguida, Virglio segurou minha mo, sorriu para me dar

    confiana, e me guiou na direo daquele sinistro portal.

    Logo que entrei ouvi gritos terrveis, suspiros e prantos que

    ecoavam pela escurido sem estrelas. Os lamentos eram to inten-

    sos que no me contive e chorei. Gritos de mgoa, brigas, queixas

    iradas em diversas lnguas formavam um tumulto que tinha o som

    de uma ventania. Eu, com a cabea j tomada de horror, perguntei:

  • Notas 8

    3 Personagens e smbolos do Canto III

    3.1 O Portal do Inferno: no tem portas ou cadeados mas somente um aviso so-

    bre a entrada que adverte: uma vez dentro, deve-se abandonar toda a esperana

    de rever o cu pois de l no se pode voltar. As almas entram porque querem.

    No poema, o inferno est repleto das almas daqueles que morreram com a de-

    terminao de entrar naquele portal; na alegoria, essas almas so a imagem do

    pecado na pessoa ou na sociedade. [Sayers 49]. A alma s tem poder de esco-

    lha enquanto viva, portanto, viva se decide pelo cu ou pelo inferno. Depois de

    morta, perde a capacidade de raciocinar e tomar decises. Dante no deve te-

    mer, diz Virglio, porque ele ainda est vivo e ainda tem poder de arbtrio. O

    personagem Dante cruza o portal do inferno na noite de sexta-feira da paixo

    (veja notas 1.1 e 1.2) pois no incio do Canto II, quando Dante escapa das feras, j

    anoitece.

    3.2 O ante-inferno chamado tambm de vestbulo. Serve como destino para as

    almas que no podem ir para o cu nem para o inferno. Sendo o cu e inferno

    estados onde uma escolha permanentemente recompensada (de forma positi-

    va ou negativa), deve tambm existir um estado onde a negao da escolha seja

    recompensada, uma vez que recusar a escolha escolher a indeciso. [Sayers

    49] O ante-inferno , portanto, a morada dos indecisos, covardes e que passa-

    ram a vida em cima do muro. Em vida nunca quiseram assumir compromis-

    sos, tomar decises firmes ou fazer qualquer coisa definitiva, por achar que as-

    sim perderiam a oportunidade de fazer alguma outra coisa. A sua neutralidade e

    falta de ao retribuda na forma de um contrapasso (veja nota 3.3 abaixo) e ago-

    ra so obrigados a correr atrs de uma bandeira que no vai a lugar algum.

    3.3 O contrapasso a retribuio do inferno pelos atos do pecador. Reflete, de

    forma simblica, os efeitos do pecado cometido aplicados como punio. Se

    baseia em uma justia do tipo olho-por-olho, dente-por-dente.

    3.4 O Rio Aqueronte (Acheron) o primeiro dos rios do inferno. Como os ou-

    tros rios do mundo subterrneo, este tambm no foi inventado por Dante.

    citado nas obras clssicas de mitologia como a Eneida de Virglio e a Odissia de

    Homero.

  • Inferno 8

    Mestre, quem so essas pessoas que sofrem tanto?

    Este o destino daquelas almas que no procuraram fazer

    o bem divino, mas tambm no buscaram fazer o mal. me res-

    pondeu o mestre. Se misturam com aquele coro de anjos que

    no foram nem fiis nem infiis ao seu Deus. Tanto o cu quanto o

    Inferno os rejeita.

    Mestre continuei , a que pena to terrvel esto esses

    coitados submetidos para que lamentem tanto?

    Te direi em poucas palavras. Estes espritos no tm espe-

    rana de morte nem de salvao. O mundo no se lembrar deles; a

    misericrdia e a justia os ignoram. Deixe-os. S olha, e passa.

    E ento olhei e vi que as almas formavam uma grande multi-

    do, correndo atrs de uma bandeira que nunca parava. Estavam

    todas nuas, expostas a picadas de enxames de vespas que as feriam

    em todo o corpo. O sangue escorria, junto com as lgrimas at os

    ps, onde vermes doentes ainda os roam.

    Quando olhei alm dessa turba, vi uma outra grande multido

    que esperava s margens de um grande rio.

    Quem so aqueles? perguntei ao mestre.

    Tu sabers no seu devido tempo, quando tivermos chegado

    orla triste do Aqueronte. respondeu, secamente.

    Temendo ter feito perguntas demais, fiquei calado at chegar-

    mos s margens daquele rio de guas pantanosas e cinzentas.

    Chegava um barco dirigido por um velho plido, branco e de

    plos antigos. Ele gritava:

    Almas ruins, vim vos buscar para o castigo eterno! Aban-

    donai toda a esperana de ver o cu outra vez, pois vou levar-vos s

    trevas eternas, ao fogo e ao gelo!

  • Notas 9

    3.5 Caronte (Charon) o clssico barqueiro dos mortos na mitologia grega. Como

    a maior parte das figuras mitolgicas que aparecem no inferno, Caronte foi ti-

    rado das mitologias clssicas. Os monstros do inferno no so diabos ou almas

    perdidas, mas as imagens de apetites pervertidos, e vivem nos crculos apropri-

    ados sua natureza. [Sayers 49]. Nas obras da mitologia clssica, Caronte esta-

    va encarregado de realizar a travessia de outro rio (o Estige veja nota 7.7) e s

    transportava almas que tivessem sido enterradas com uma moeda debaixo da

    lngua com a qual poderiam pagar a travessia.

    3.6 O outro porto o porto onde um anjo leva as almas que tm esperana para o

    purgatrio. Caronte reconhece que Dante no uma das almas condenadas e

    ento diz a ele que o caminho dele outro.

    Porta do Inferno. Escultura de Auguste Rodin.

  • Inferno 9

    Quando ele me viu, gritou:

    E tu, alma vivente, te afasta desse meio pois aqui s vem

    morto! Vendo que eu no me mexia, mais calmo, falou Tu

    deves seguir para outro porto, onde um outro barco, maior, te dar

    transporte.

    Caronte, te irritas em vo! intercedeu o mestre L,

    onde se pode o que se quer, isto se quer, e no peas mais nada!

    Caronte ento se calou, mas pude ver que seus olhos verme-

    lhos ainda ardiam de raiva. As almas, chorando amargamente, se

    amontoavam na orla e Caronte as embarcava, uma a uma, batendo

    nelas com o remo quando alguma hesitava. Depois seguiam, que-

    brando as ondas sujas do rio Aqueronte, e antes de chegarem ou-

    tra margem, uma nova multido j se formava deste lado.

    Enquanto Virglio me falava sobre as almas que atravessavam

    o rio, houve um grande terremoto, seguido por uma ventania que

    inundou o cu com um claro avermelhado. O susto foi to intenso

    que eu desmaiei e ca num sono profundo.

  • Notas 10

    4 Personagens e smbolos do Canto IV

    4.1 O Limbo o local onde as almas que no puderam escolher Cristo, mas esco-

    lheram a virtude, vivem a vida que imaginaram ter aps a morte. No tm a es-

    perana de ir ao cu pois no tiveram f em Cristo. Aqui ficam os no batizados

    e aqueles que nasceram antes de Cristo, como Virglio. Na mitologia clssica, o

    Limbo no fica no inferno, mas suspenso entre o cu e o mundo dos mortos.

    Na poesia de Dante no se tem uma noo precisa de como se chega l, pois o

    poeta desmaia no ante-inferno e quando acorda j est no Limbo.

    4.2 Personagens do Velho Testamento: Ado, No, Moiss, Abrao, David, Is-

    rael e Raquel foram, segundo Dante, levados para o cu quando Cristo desceu ao

    inferno aps a crucificao.

    4.3 Homero (sculo IX ou VI a.C.) foi um poeta grego a quem tradicionalmente se

    atribui a autoria dos poemas picos Ilada, que narra a queda de Tria, e Odissia,

    que narra o retorno de Ulisses da guerra de Tria e suas viagens.

    4.4 Horcio (65 a.C-8 d.C.) foi um poeta romano lrico e satrico, autor de vrias

    obras primas da lngua latina, entre as quais Ars Poetica.

    4.5 Ovdio (43 a.C-17 d.C.) foi o mais popular dos poetas romanos. Autor de vri-

    as obras, entre as quais obras de mitologia como Metamorfoses.

    4.6 Lucano (39-65) foi um poeta romano nascido em Crdoba forado a cometer

    suicdio por Nero. Autor de Farslia.

    4.7 Heitor foi prncipe de Tria, Heitor foi o mais valente dos guerreiros troianos

    na Ilada de Homero. Foi morto cruelmente por Aquiles (nota 5.8) que o matou

    para vingar a morte de seu melhor amigo, morto na guerra pelo troiano.

    4.8 Herclito (540-475 a.C.): Filsofo grego que acreditava que o fogo era fonte de

    toda matria e que o mundo estava em constante mudana. Foi fundador da

    metafsica.

    4.9 Tales de Mileto (625-546 a.C.) o pai da filosofia ocidental, do pensamento

    cientfico e considerado um dos sete sbios da Grcia.

  • Canto IV

    cordei ao som de um trovo, j nas bordas abissais do

    fosso infernal, onde ecoam gritos infinitos. To escuro e

    nebuloso era que, por mais que eu tentasse forar a vista

    ao fundo, no conseguia discernir coisa alguma.

    A Desamos ao mundo onde nada se v. disse Virglio

    Eu irei na frente e tu me seguirs. e fez uma indicao para que

    eu o seguisse. Ele estava com uma aparncia muito plida, e por

    isso me assustei, hesitando por um instante.

    Como queres que eu te siga tranqilo, se ests com medo?

    perguntei.

    No medo. respondeu A piedade me clareia o ros-

    to, por causa da angustia das gentes desamparadas que aqui sofrem.

    Andemos, pois temos ainda um longo caminho pela frente.

    E assim ele me guiou para o primeiro crculo que rodeia o poo

    abissal. Naquele lugar no ouvi sons de lamentao, somente

    suspiros. S havia mgoa. Como no lhe perguntei nada, o poeta

    resolveu me explicar que espritos eram aqueles que eu estava vendo.

    Estes coitados no pecaram, mas no podem ir para o Cu

    explicou , pois no foram batizados. Esto aqui as crianas no

    batizadas e aqueles que viveram antes de Cristo, como eu. Aqui no

    temos sofrimento, mas tambm no temos nenhuma esperana.

    Senti pena dele enquanto falava e imaginei quanta gente de va-

    lor deveria estar suspensa para sempre nesse limbo, e ento pergun-

    tei-lhe:

    Inferno 10

  • Notas 11

    4.10 Zeno (sc. 5 a.C.) foi filsofo e matemtico de Elia, conhecido por seus pa-

    radoxos matemticos.

    4.11 Enas personagem da mitologia romana e heri da Eneida, de Virglio. filho

    de Vnus e Anquises (prncipe troiano). Na Eneida, Enas escapa de Tria aps

    a guerra e funda a cidade de Roma.

    4.12 Aristteles (384-322 a.C.) foi filsofo e cientista grego. Um dos mais importan-

    tes filsofos da antiguidade ao lado de Plato e Scrates. Pai do empirismo e

    autor de vrias obras entre as quais tica, Organon e Fsica.

    4.13 Plato (428-347 a.C.): foi filsofo grego. Autor de inmeros dilogos como A

    Repblica. Idealista, rejeitava o empirismo defendido por Aristteles.

    4.14 Scrates (470-399 a.C.) foi um filsofo grego que teve grande influncia sobre

    a filosofia ocidental atravs dos seus dilogos, narrados nas obras de Plato.

    4.15 Orfeu , na mitologia grega, poeta e msico. Filho de Calope (musa da poesia)

    e Apolo (deus da msica). A msica de Orfeu era hipnotizante e surtia seu efei-

    to sobre todas as pessoas, animais e plantas. Amava a ninfa Eurdice. Quando

    esta foi morta por uma picada de serpente, Orfeu fez uma viagem ao inferno

    para tentar resgat-la.

    4.16 Jlio Csar (100-44 a.C) foi orador, general e magistrado romano que estabele-

    ceu as bases para a fundao do imprio romano. Em 59 a.C. foi eleito cnsul

    de Roma e um ano depois, governador da Glia. Na poca, a Glia Celta (norte

    da Glia) ainda estava independente. Csar foi solicitado para evitar a invaso

    dos helvcios na Glia. Depois ajudou a expulsar as foras germnicas. Em 57

    a.C. a Glia estava de novo sob o controle de Roma. Em 52 a.C., Pompeu, cn-

    sul de Roma e antigo aliado, assumiu o comando absoluto do governo romano

    e exigiu a renncia de Csar. Em 49 a.C., Csar e suas tropas aliadas cruzaram o

    rio Rubicon, que marcava a fronteira entre a Glia e a Itlia, avanando sobre

    Roma. A travessia marcou o incio da guerra civil romana que Csar venceu,

    esmagando as tropas de Pompeu em Farslia. Csar ento se tornou ditador de

    Roma e promoveu vrias reformas, entre as quais uma reforma do calendrio

    que previa a existncia do ano bissexto. Vrios grupos estavam insatisfeitos

    com o poder de Csar, entre eles, seus principais aliados. Em 44. a.C. um grupo

  • Inferno 11

    Algum desses habitantes, por mrito seu ou com a ajuda de

    outro, pde algum dia ir para o cu?

    Eu era novato neste lugar respondeu Virglio , quando

    um Rei poderoso aqui desceu. Ele usava o sinal da vitria na sua co-

    roa. Veio, e nos levou Ado, No, Moiss, Abrao, David, Israel,

    Raquel e vrios outros que ele escolheu. E deves saber, antes que es-

    sas almas fossem levadas, nenhuma outra alma humana havia alcan-

    ado a salvao.

    No paramos de caminhar enquanto ele falava, mas continua-

    mos pela selva, digo, a selva de espritos. No tnhamos nos afastado

    muito do ponto onde eu acordei, quando vi um fogo adiante, um

    hemisfrio de luz que iluminava as trevas. Mesmo de longe, pude

    perceber que aquele lugar era habitado por gente honrosa.

    mestre que honras a cincia e a arte, quem so esses,

    privilegiados, que vivem separados dos outros aqui? perguntei.

    O nome honrado que ainda ressoa no teu mundo l em

    cima, encontra a graa no Cu que o favorece aqui.

    Mal ele terminara de falar, ouvi um chamado que partiu de um

    dos vultos iluminados:

    Saudemos o altssimo poeta. gritou a alma Sua som-

    bra que havia partido j est de volta!

    Depois que a voz se calou, vi quatro grandes vultos se apro-

    ximarem. Os seus rostos no mostravam tristeza, mas tambm no

    mostravam alegria. Virglio os apresentou:

    Este Homero, poeta soberano, o outro Horcio, o sat-

    rico, Ovdio o terceiro e por ltimo, Lucano.

    Quando chegamos at eles, o mestre falou-lhes em particular e

    depois eles me saudaram, tratando-me com deferncia, incluindo-

    me como o sexto do seu grupo.

  • Notas 12

    de senadores tramou a morte de Csar que foi executada pelos senadores Cs-

    sio e Bruto (veja notas 34.4 e 34.3).

    4.17 Ptolomeu (100-170) foi um astrnomo e matemtico cujas teorias sobre o uni-

    verso dominaram o pensamento cientfico at o sculo XVI. Segundo a teoria

    de Ptolomeu, a terra esfrica e ocupa o centro do Universo. Em volta da terra

    giram todos os planetas, sol e lua. No final, gira uma esfera de estrelas fixas.

    4.18 Os outros personagens mencionados por Dante no Canto IV: 121-144 (origi-

    nal) so: Electra filha de Atlas e fundadora de Tria; Camila filha do rei

    Metabus, morta na guerra de Tria; Pentesilia rainha das amazonas que a-

    judou os troianos contra os gregos e foi morta por Aquiles; o rei Latino, que

    reinava sobre a pennsula italiana, onde Enas fundou Roma; Lavnia filha do

    rei Latino; Lucius Brutus fundador da repblica romana; Lucrcia esposa

    de Colatino; Julia filha de Jlio Csar e esposa de Pompeu; Mrcia segun-

    da esposa de Cato de Utica; Cornlia me dos tribunos Tibrio e Caio; Sala-

    din sulto do Egito em 1174; Digenes, Anaxgoras, Empedocles fil-

    sofos gregos; Dioscrides cientista e mdico grego (sec. 1 d.C.); Marcus T-

    lius Cicero orador e filsofo romano (106-43 a.C.), Linus poeta e msico

    grego; Lucius Annaeus Seneca (4 a.C. - 65 d.C.) - filsofo romano; Euclides

    matemtico grego (300 a.C.), Hipcrates mdico grego (460-377 a.C.); Avi-

    cena filsofo e mdico rabe (980-1037 d.C.); Galeno mdico conhecido

    mundialmente (130-200 d.C.); Averroes (1126-1198 d.C.) estudioso rabe co-

    nhecido como comentarista de Aristteles que serviu de base para o trabalho de

    Toms de Aquino.

  • Prosseguimos, ento, os seis, at finalmente chegarmos ao lo-

    cal de onde emanava a luz. L se erguia um nobre castelo de muros

    altos, cercado por um belo riacho. Sete muros o cercavam. Ns

    passamos sobre o riacho como se fosse terra dura, depois, sete por-

    tes atravessamos at chegarmos a um verde prado, onde muitas

    outras pessoas conversavam. De l mudamos para um local aberto,

    luminoso e alto, onde podamos ter uma viso completa de todos.

    Reconheci vrias grandes figuras como Enas, Heitor e Csar, Aris-

    tteles, Scrates e Plato, Orfeu, Herclito, Tales, Zeno, Ptolomeu

    e muitos outros. Exaltou-me a possibilidade de poder encontrar to-

    dos esses espritos, cuja sabedoria enchia de luz aquele lugar som-

    brio. Havia mais. Muitos. Tantos eram, que no posso aqui listar

    todos.

    De todos, no final, restamos s eu e Virglio, pois nossa jorna-

    da nos impelia adiante. Chegamos, ento, a um lugar onde nada

    mais reluzia.

    Grandes figuras da Antiguidade reunidas no Limbo. Ilustrao de Gustave Dor (sculo XIX).

    Inferno 12

  • Notas 13

    5 Personagens e smbolos do Canto V

    5.1 Os crculos da incontinncia (crculos 2 a 5) so a morada daqueles que peca-

    ram no por determinao de fazer o mal, mas por no conseguir controlar os

    impulsos, falhando assim na escolha do bem. Aqui so punidos os pecados da

    luxria, da avareza e da gula.

    5.2 Mins (Minos): na mitologia grega foi o rei lendrio da ilha de Creta cuja es-

    posa me do Minotauro (nota 12.1). Era filho de Zeus com a princesa Europa.

    Depois de morto, desceu ao mundo subterrneo onde se tornou um dos juizes

    dos mortos. No inferno de Dante, Mins ouve as confisses dos mortos (que

    sempre dizem a verdade, pois no tm mais o dom do intelecto) e os designa a

    um crculo e subcrculo especfico de acordo com a falta mais grave relatada.

    5.3 Os luxuriosos: Dante classifica o pecado da luxria como o menos grave de

    todos, colocando-o no crculo mais externo. Isso demonstrado tambm na

    compaixo que sente pelos pecadores, se emocionando com o relato de Fran-

    cesca. A ventania o contrapasso do pecado. Em vida, os amantes eram levados

    por suas paixes, que os arrastava como o vento que os arrasta no inferno.

    5.4 Semiramis: foi rainha da Babilnia por 102 anos. Era esposa do caador Nino.

    5.5 A viuva de Siqueu Dido, que era, segundo a mitologia grega, filha de Belo,

    rei de Tiro. Quando Siqueu, seu marido, foi morto pelo novo rei de Tiro, irmo

    de Dido, ela fugiu para o norte da frica onde fundou a cidade de Cartago. Se-

    gundo a Eneida, de Virglio, o prncipe troiano Enas (nota 4.11) naufragou em

    Cartago depois de fugir de Tria. Dido recebeu bem os troianos e acabou se

    apaixonando por Enas. Os dois passaram a viver juntos como marido e mu-

    lher. Enas j estava para decidir que permaneceria em Cartago quando Jpiter

    o lembrou que precisaria deixar a cidade para cumprir sua misso e fundar

    Roma. Desesperada por causa de sua partida, Dido se matou numa pira funer-

    ria. Na sua visita ao inferno (Hades), Enas encontrou a alma de Dido mas esta

    se recusou a falar com ele. [Encarta 97]

    5.6 Clepatra VII (69-30 a.C.): Rainha do Egito conhecida por seus casos de amor

    com Jlio Csar e Marco Antnio.

  • Canto V

    ssim que entramos no segundo crculo, l estava Mins,

    rangendo terrivelmente. Ele ficava na entrada e recepci-

    onava os pecadores, julgando-os um por um. Ouvia su-

    as confisses e proferia a sentena, se enrolando na prpria cauda.

    O nmero de voltas que dava a sua cauda indicava quanto deveria

    descer o pecador para o seu lugar nas profundezas do Inferno. Uma

    grande multido se amontoava diante daquele juiz. Cada pecador

    falava, ouvia sua sentena, e era atirado no abismo.

    A tu que entras no asilo da dor disse Mins ao me ver,

    interrompendo seu ofcio , vejas bem em quem confias e como

    entras aqui. fcil de entrar, mas no te enganes!

    Por que gritar? respondeu Virglio ao juiz dos mortos

    No podes impedir esta jornada, pois l, onde tudo o que se

    quer se pode, isto se quer e no peas mais nada!

    Mins se calou, e ns prosseguimos. Pouco a pouco comecei a

    perceber sons tristes, muito pranto e lamentos. Neste lugar escuro

    onde eu me encontrava, o som das vozes melanclicas se asseme-

    lhava ao assobio do mar durante uma grande tormenta. Os tristes

    sons emanavam de um enorme redemoinho. Eram almas sofredo-

    ras, sacudidas pelo vento que nunca cessava. Entendi que era o cas-

    tigo pela transgresso da carne, que desafia a razo, e a submete

    sua vontade.

    No escuro vento vi vrias sombras que passavam se lamen-

    tando e ao mestre perguntei:

    Inferno 13

  • Notas 14

    5.7 Helena foi a esposa do Rei Menelau que, na mitologia grega, cedeu s tenta-

    es de Afrodite e deixou-se ser seqestrada por Pris (nota 5.9), que a levou pa-

    ra Tria.

    5.8 Aquiles foi o maior dos guerreiros gregos na mitologia grega. Quando criana,

    sua me o imergiu no rio Estige (7.7), tornando-o imortal. A nica parte do seu

    corpo que no foi submersa foi o calcanhar, por onde sua me o segurou. Aqui-

    les lutou e foi vitorioso em muitas batalhas at ser mortalmente ferido no cal-

    canhar por Pris, que o encontrou quando, por estar apaixonado pela filha de

    Priamo, entrou desarmado no templo de Apolo.

    5.9 Pris: foi prncipe de Tria na mitologia grega. Responsvel pelo seqestro de

    Helena (arquitetado por Afrodite) que deu origem a guerra contra a Grcia nar-

    rada na mitologia grega (Ilada).

    5.10 Tristo: foi personagem da mitologia celta que se consumiu na sua paixo im-

    possvel por Isolda.

    5.11 Paolo e Francesca: eram cunhados adlteros que foram surpreendidos e mor-

    tos pelo marido trado em Rimini (onde o rio P desgua), nos tempos de Dan-

    te [Mauro 98]. Francesca diz que foram surpreendidos quando liam a lenda on-

    de Lancelote, apaixonado por Guinevere (esposa do Rei Artur), induzido a

    beij-la por Galeoto. Galeoto, portanto, induz Paolo e Francesca a se beijarem

    tambm, quando so surpreendidos e mortos. O assassino, por ter matado um

    parente sem ter lhe dado oportunidade de defesa, punido na Cana (veja nota

    32.3) onde sofrem os traidores de parentes.

    5.12 Lancelote e Guinevere: so amantes na mitologia celta e britnica. Guinevere

    era esposa do rei Artur e era apaixonada pelo cavaleiro Lancelote. Galeoto era o

    intermedirio da relao.

  • Inferno 14

    Mestre, quem so essas pessoas que o vento tanto castiga?

    A primeira, cuja histria deves conhecer explicou o

    mestre , foi imperatriz de povos de muitas lnguas. Semramis,

    a sucessora e esposa de Nino. A que a segue a viva de Siqueu,

    que se matou por amor. Ali tu vs Clepatra, luxuriosa. Veja Hele-

    na, e tambm Aquiles, Pris, Tristo. e, uma por uma, me indi-

    cou outras mil sombras que tiveram suas vidas desfeitas pelo amor.

    Poeta eu falei eu gostaria, se for possvel, de falar

    com aqueles dois, unidos, que to leves parecem ser ao vento.

    Espera respondeu , em breve estaro prximos de

    ns, e quando a fria do vento diminuir, pea, pelo amor que os

    conduz, que eles viro.

    Ento, quando a tormenta cedeu um pouco, eu chamei:

    almas sofridas, falai conosco, se isto for permitido!

    Elas ouviram, entenderam meu pedido. Deixaram o bando

    onde estavam as outras e se aproximaram. Uma delas falou:

    ser gracioso e benigno, o que desejares ouvir ou falar

    conosco, ns ouviremos e falaremos, se o vento permitir. Nasci na

    terra onde o P desgua. Amor, que ao corao gentil logo se pren-

    de, tomou este aqui, pela beleza da pessoa que de mim foi levada, e

    o modo ainda me ofende. Amor, que a nenhum amado amar per-

    doa, prendeu-me, pelo seu desejo com tanta fora que, como vs,

    ele ainda no me abandona. Amor nos conduziu a uma s morte.

    Cana aguarda aquele que tirou as nossas vidas.

    Ao ouvir esse lamento, baixei o rosto, e permaneci assim, at

    Virglio me despertar. Voltei novamente quele casal, e perguntei:

  • Notas 15

    Virglio e Dante observam as almas condenadas pelo pecado da luxria

    sendo carregadas pelo vento. No primeiro plano, Paolo e Francesca. Ilus-

    trao de Gustave Dor (sculo XIX).

    Paolo e Francesca. Pintura de Dante Gabriel Rossetti (sculo XIX).

  • Francesca, o teu martrio me traz lgrimas aos olhos, mas

    dize-me, como permitiu o amor que tomsseis conhecimento de

    vosso sentimento recproco?

    No h maior dor que lembrar da felicidade passada

    disse ela mas se teu grande desejo saber, te direi como quem

    chora e fala. Lamos um dia a ss, sobre o amor que seduziu Lance-

    lote. Vrias vezes essa leitura nos ergueu olhar a olhar. Mas foi

    quando chegamos quele ponto que falava do sorriso que desejava

    ser beijado por um perfeito amante, que este aqui que nunca me

    seja apartado, tremendo, beijou-me na boca naquele instante. Nos-

    so Galeoto foi aquele livro e quem o escreveu. Desde aquele dia,

    no o lemos mais adiante.

    Enquanto uma alma contava a sua histria triste, a outra cho-

    rava sem parar ao seu lado, e eu, comovido de piedade e dor, des-

    maiei, e ca como um corpo morto cai.

    Dante desmaia aps o relato de Francesca no segundo crculo onde as almas so agitadas como turbilhes de vento. Ilustrao de William Blake (sculo XVIII).

    Inferno 15

  • Notas 16

    6 Personagens e smbolos do Canto VI

    6.1 Os gulosos: O prazer solitrio concedido pela gula ampliado no inferno onde

    os gulosos jazem solitrios na lama, sem comunicao com seus vizinhos. O

    contrapasso pelo prazer e o conforto de comer alegremente alm dos limites

    quando viviam o desconforto de uma dolorosa chuva gelada e a presena de

    Crbero, que, com seu apetite insacivel, os morde pela eternidade.

    6.2 As almas que sofrem no inferno no tm corpos. Elas apenas mantm a apa-

    rncia das suas formas corporais. Embora possam ser dilaceradas e assim sofrer

    torturas fsicas, so apenas fantasmas, sem peso.

    6.3 Crbero (Kerberos) o co de trs cabeas que guarda a entrada do mundo

    subterrneo na mitologia grega. Crbero deixa qualquer um entrar, mas no

    deixa quem entrou sair. Poucos heris conseguiram escapar da guarda de Cr-

    bero. Orfeu (4.15) o hipnotizou com sua lira, Hrcules (25.3) o derrotou com as

    mos. Na mitologia romana, Enas (4.11) e Psique conseguiram enganar Crbe-

    ro com um po de mel. Na alegoria do inferno de Dante, ele a imagem do

    apetite descontrolado.

    6.4 Ciacco: De acordo com Boccaccio [Sayers 49], o apelido de um nobre floren-

    tino conhecido por sua gula. Ciacco tambm quer dizer porco e corruptela

    de Giacomo [Mauro 98].

    6.5 Guelfos: Um dos partidos polticos de Florena que rejeitava o poder do impe-

    rador. Representava a classe mdia. Em Romeu e Julieta (obra de Shakespeare), os

    Capuletto eram uma famlia guelfa. Veja mais em Vida de Dante (introduo).

    6.6 Guibelinos: Partido poltico de Florena aliado ao imperador. Representava a

    nobreza. Em Romeu e Julieta (obra de Shakespeare), os Montecchio eram guibe-

    linos. Veja mais em Vida de Dante (introduo).

    6.7 Negros e brancos: Os guelfos, na poca que Dante fazia parte do governo de

    Florena, se dividiram em duas faces: os Neri ou guelfos negros radicais que

    apoiavam a tirania do papa contra o imperador, e os Bianchi, ou guelfos brancos

    moderados que rejeitavam tanto a tirania do papa quando a tirania do impera-

    dor. A rixa que dividiu os guelfos comeou na cidade de Pistia por causa de

  • Canto VI

    uando acordei j estava no terceiro crculo, cercado de

    mais tormentos e mais atormentados que surgiam de to-

    dos os lados. Uma chuva, glida, eterna, com neve e gra-

    nizo, caa sobre a lama podre que as almas encharcavam. Crbero,

    fera cruel e perversa, latia com suas trs goelas para as almas sub-

    mersas na lama. Ele tem uma barba negra e seis olhos vermelhos,

    ventre largo e garras aguadas com as quais rasga os pecadores e os

    tortura. Elas berravam como ces e se contorciam na lama, tentan-

    do em vo se proteger das chicotadas da chuva dura.

    Q

    Quando Crbero nos viu, abriu suas trs bocas e exibiu suas

    presas, rangendo e estremecendo diante de ns. Meu mestre, caute-

    loso, encheu suas mos de terra e atirou nas goelas do co danado.

    O monstro, guloso, no hesitou em engolir a terra, se emperrou

    com ela e ficou em silncio, como um co faminto que se ocupa

    com o seu osso.

    Caminhamos, ento, por entre as almas, pisando espectros va-

    zios que se assemelhavam a formas humanas. Todos os espritos ja-

    ziam deitados, se confundindo com a lama que assumia suas for-

    mas, transparentes, exceto um que se ergueu na hora em que pass-

    vamos na sua frente.

    tu que s guiado por este Inferno falou me reco-

    nhece, se puderes, pois tu foste vivo antes que eu fosse desfeito.

    Inferno 16

  • Notas 17

    uma discusso familiar. A briga, que provocou a diviso da famlia Cancelliere,

    teve incio por causa de um assassinato cometido por um jovem chamado Fo-

    caccia (nota 32.2), pertencente famlia. O Cancelliere original tivera duas espo-

    sas. A primeira se chamava Bianca e seus descendentes se apelidaram Bianchi

    (brancos). Para fazer oposio, os descendentes da segunda esposa decidiram se

    apelidar Neri (negros). Por ser uma grande famlia, quase toda a cidade tomou

    partido por um dos lados. Houve interveno dos guelfos de Florena para

    manter a ordem na cidade. Os lderes da revolta foram ento presos em Floren-

    a na esperana de acabar com a briga em Pistia. O resultado, porm, foi a ex-

    tenso do conflito para Florena, onde a famlia Cerchi decidiu apoiar a causa

    dos Bianchi contra a famlia Donati, que ficou do lado dos Neri. Uma insensata

    briga de rua por causa de um acidente com cavalos em 1300 foi o estopim para

    a crise em Florena que em pouco tempo contaminou a cidade inteira.

    6.8 Previses de Ciacco: As previses de Ciacco falam da luta entre as duas fac-

    es em que se dividiu o partido dos guelfos, obrigando Dante a exilar os lde-

    res da revolta (guelfos negros). Ciacco prev ento que algum (o papa Bonif-

    cio) apoiar os Neri e estes retomaro o poder, banindo de vez os Bianchi de

    Florena.

    6.9 O papa Bonifcio VIII fingiu neutralidade durante a diviso dos guelfos mas

    depois traiu a confiana dos lderes de Florena ao apoiar o golpe dos Neri. Ve-

    ja mais sobre Bonifcio VIII na nota 19.2.

    6.10 Farinata: veja nota 10.1.

    6.11 Tegghiaio e Jacopo Rusticucci: veja nota 16.2.

    6.12 Mosca: veja nota 28.9.

  • Inferno 17

    A angstia disse eu te deforma de maneira que eu

    no consigo reconhecer-te. Mas dize-me quem tu s, condenado a

    este lugar vil e submetido a tamanha tortura.

    A tua cidade respondeu , to invejosa, um dia me

    teve na vida serena. Teus conterrneos me chamam Ciacco e por

    causa da gula sofro na chuva, como estas outras almas, condenadas

    por semelhante culpa.

    Ciacco eu disse a ele , teu estado miservel me causa

    grande tristeza, mas dize-me o que vai acontecer, se souberes, com

    os cidados de nossa Florena?

    Depois da paz, haver guerra e sangue. relatou Ciacco

    O partido rstico (os Bianchi) expulsar a outra parte brutal (os

    Neri), mas, depois de trs sis, com a ajuda daquele que agora pare-

    ce estar dos dois lados (Bonifcio VIII), voltaro ao poder, e por

    longos anos mantero os outros afastados, por mais que implorem

    ou chorem.

    Quando ele terminou de narrar sua terrvel profecia, pergun-

    tei-lhe:

    Onde esto Farinata e Tegghiaio, Jacopo Rusticucci, Arri-

    go, Mosca, e tantos outros que usaram seu gnio para o bem? Esta-

    ro eles aqui ou estaro eles no cu?

    Tu os encontrars mais embaixo, nas valas abissais. dis-

    se a alma Se desceres mais, poders v-los todos! Mas quando

    voltares mais uma vez ao mundo doce, te imploro que leves minha

    lembrana aos que l deixei. No mais te digo nem te respondo.

    Depois que terminou de falar, Ciacco afundou e desapareceu

    de repente. O mestre ento falou:

  • Notas 18

  • Inferno 18

    Este no mais se levantar at o dia em que soar a trompa

    angelical. Quando isto acontecer, a adversa potestade vir e cada

    alma voltar sua tumba, retomar sua carne e sua forma humana,

    e ouvir a voz que eterna soa.

    E assim cruzamos aquela mistura suja de almas com chuva,

    aproveitando para falar um pouco da vida futura. Perguntei:

    Mestre, quanto a este tormento, ele crescer, ser o mesmo

    ou ser atenuado aps a grande sentena?

    Retorna a tua cincia na qual se ensina que o ser mais per-

    feito mais sente seja o bem ou a ofensa. Embora essas almas maldi-

    tas nunca possam um dia chegar perfeio, para l, mais que para

    c, ser sua sina.

    Ao nos aproximarmos da entrada para o quarto crculo, en-

    contramos Pluto, grande inimigo.

  • Notas 19

    7 Personagens e smbolos do Canto VII

    7.1 Pluto (Pluto, Plutus) , na mitologia romana, o deus dos mortos (Hades, na

    mitologia grega), esposo de Proserpina (Persfone, na mitologia grega). asso-

    ciado riqueza que brota do cho. Sua caracterstica de deus infernal da riqueza

    o coloca de forma adequada no quarto crculo, dos que no souberam lidar com

    a fortuna.

    7.2 A frase de Pluto: No h uma interpretao conhecida para a frase pronuncia-

    da por Pluto no inicio do stimo canto, porm, Benvenuto Cellini, na sua des-

    crio da Corte de Justia de Paris, relata: as palavras que ouvi o juiz falar, ao

    ver que dois senhores queriam assistir ao julgamento a todo custo, e que o por-

    teiro estava tendo dificuldades em mant-los fora, foram estas: Paix, paix, Sa-

    tan, allez, paix (Silncio! Silncio, Satan! V, e nos deixe em paz). Nesta poca

    eu conhecia bem a lngua francesa e, ao ouvir essas palavras, eu lembrei o que

    Dante disse, quando ele entrou com seu mestre, Virglio, nas portas do inferno

    (Canto III). Dante e Giotto, o pintor, estavam juntos na Frana e visitaram Paris

    com ateno, onde a corte de justia poderia ser considerada o inferno. Portan-

    to provvel que Dante, que semelhantemente dominava a lngua francesa, te-

    nha utilizado essa expresso; e me surpreende que ela nunca tenha sido enten-

    dida nesse sentido. [Longfellow 67] (Benvenuto Cellini, Roscoe's Memoirs Cap.

    XXII)

    7.3 Os avaros e prdigos: Seu contrapasso completar o giro da roda da fortuna

    que ajudaram a desequilibrar quando viviam. Suas riquezas materiais se trans-

    formaram em grandes pesos que um grupo deve empurrar contra o outro, pois

    suas atitudes em relao riqueza foram opostas. [Musa 95]

    7.4 Os pecados contra a fortuna: A avareza, segundo descrio de Santo Agosti-

    nho, a tendncia em acumular e valorizar excessivamente coisas materiais.

    Outros a definem como a posse individual de coisas que a pessoa no precisa,

    ou que no precisaria ter s para si. Nesses termos, a avareza no se refere ape-

    nas a dinheiro ou bens, mas tambm ao conhecimento e glria. [Longfellow

    67] (de citao de Chaucer) Sendo a avareza um pecado onde se retm coisas

    materiais, a prodigalidade o seu oposto, mas sempre em excesso. Pune-se aqui

    o desperdcio, a gastana incontida, que, mesmo no prejudicando quem a pra-

  • Inferno 19

    Canto VII

    Pape Satn pape Satn aleppe! comeava Pluto com sua voz

    rouca. Virglio virou-se para mim e disse, com segurana:

    No tenhas medo dele. Lembre-se que, por mais que ele

    tenha poder, ele no pode impedir nossa descida. Depois, diri-

    giu-se a Pluto e gritou:

    Cala a boca lobo maldito! Consome em ti mesmo tua raiva.

    Nossa descida no sem propsito, pois algo que se quer nas al-

    turas!

    Diante daquela voz revestida de autoridade, Pluto mal pde

    reagir. Logo fraquejou e diante de ns, tombou.

    Aproveitamos, ento, para descer pela beira que contorna o

    quarto crculo. L vi mais almas que em todos os crculos preceden-

    tes. Estavam organizadas em dois grupos que se enfrentavam, com

    os peitos nus, rolando grandes pesos em sentidos contrrios at co-

    lidirem uns com os outros. Aps o choque um grupo gritava por

    que poupas?. O outro gritava por que gastas?. Depois do cho-

    que seguiam em sentido contrrio at se encontrarem novamente,

    do outro lado do crculo. E assim continuavam por toda a eternida-

    de.

    Com o corao pungido de desgosto, perguntei:

    Mestre, quem so essas pessoas? Eram padres essas almas

    que vejo aqui do lado, com corte de cabelos em cercilha?

    Todos respondeu o mestre , em sua vida terrena, no

    foram judiciosos com seus gastos. Isto declaram, quando se encon-

  • Notas 20

    tica (se for pessoa rica), prejudica o equilbrio das riquezas na sociedade (a roda

    da fortuna). Por exemplo, optar por pagar mais caro por um produto pode fa-

    zer pouca diferena para uma pessoa de posses, dar maior lucro ao vendedor

    e, numa escala maior, influenciar o mercado a praticar preos mais altos, pre-

    judicando os que no podem pagar mais. A prodigalidade geralmente est asso-

    ciada ostentao, necessidade de esbanjar riqueza, de impressionar, etc.

    7.5 A roda da Fortuna: Comentrio de Salvatore Viglio (Frei Cassiano): O tema

    da Fortuna no era novo. Os pagos chegaram a endeus-la e a dedicar-lhe

    templos. Ela distribui os bens da terra rotativamente por no poderem perten-

    cer todos a todos ao mesmo tempo. Dela dependem o alternar-se de misria e

    riqueza, de bem-estar e de penria por que passam os indivduos e as naes. ,

    em outros termos, a Divina Providncia que os pagos chamam de Fortuna. A

    sua existncia explicaria assim o estado de misria em que vivem freqentemen-

    te os sbios e os bons, destitudos de bens materiais, mas ricos, em compensa-

    o, dos tesouros da sabedoria e da virtude. [Viglio 70]

    7.6 Cada esfera que brilha reflete sobre as outras: refere-se s esferas do Pa-

    raso (os planetas, o sol, a lua e as estrelas). A Fortuna comparada aos anjos

    (que cuidam do movimento dos planetas).

  • Inferno 20

    tram nas suas culpas opostas. Esses de coroa pelada so clrigos,

    papas e cardeais, nos quais a avareza se manifesta mais facilmente.

    Mestre falei em um grupo como este certamente se-

    rei capaz de reconhecer algum.

    intil a tua esperana. respondeu o mestre Sua

    vida sem conhecimento os tornou imundos e agora mais difcil

    reconhec-los. Eternamente se enfrentaro, aqueles de punho cer-

    rado e aqueles outros sem cabelos. Mal dar e mal guardar os tirou

    do mundo, colocando-os nessa rinha. Mas no vale a pena mais fa-

    lar deles. Vs, filho, como de nada adianta os homens brigarem pela