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A doença dos planos de saúde - Revista Cidade Nova

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Saúde Privada - Com um número de usuários cada vez maior, o modelo apresenta problemas antes restritos ao sistema público. Quais os remédios para essa doença?

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14 Cidade Nova • Outubro 2014 • nº 10

CN EM SériE Saúde MARTINA [email protected]

a doença dos planos de saúde

o Brasil, o desejo de ter um plano de saúde só perde para o de adquirir um imó-vel e ter acesso à educação

de qualidade, segundo pesquisa Datafolha/IESS (Instituto de Estu-dos de Saúde Suplementar). A prio-ridade do tema, a insatisfação com o sistema público e o aumento de renda da população se traduziram na crescente contratação de planos privados nos últimos anos.

De acordo com o Instituto Bra-si leiro de Geografia e Estatística (IBGE), um quarto dos brasileiros possuía planos de saúde em 2012,

quase o triplo de usuários conta-bilizados dez anos antes. Mas se, por um lado, a maior procura le-vou ao aperfeiçoamento da regu-lamentação do sistema privado de saúde pelo Estado, esse aumento também aprofundou a insatisfação quanto ao atendimento nos hos- pitais particulares.

Em 2013, as reclamações dos usuários superaram a marca de 100 mil, número quase cinco vezes maior do que uma década antes. Falta de acesso a procedimentos e até mesmo longos períodos de espe-ra na fila estão agora entre as quei-

xas mais frequentes também do sis-tema privado.

Dados compilados pelo IBGE a pedido do Conselho Paulista de Medicina evidenciam a carência de médicos no país. Somente a região Sudeste cumpre a meta de 2,5 pro-fissionais para cada mil habitantes. “Justamente esse é um dos gargalos da saúde suplementar. As opera-doras dos planos não credenciam número suficiente de médicos na mesma velocidade em que cresce o número de usuários”, alerta o vice--presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Aloísio Tibiriçá.

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SaÚde PRivada Com um número de usuários cada vez maior, o modelo apresenta problemas antes restritos ao sistema público. Quais os remédios para essa doença?

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O reajuste da remuneração dos profissionais da saúde também se-gue a passos lentos, resultando no desinteresse dos médicos em aten-der os planos.

Segundo as associações médi-cas, a alta da receita das operadoras também não refletiu na melhoria da estrutura hospitalar. Citando dados da ANS, o Conselho de Me-dicina demonstra que, em setembro de 2009, existiam no Brasil cerca de 144 mil leitos para planos de saúde. Três anos depois, o número caiu para 127 mil, uma redução de 12%.

“Acesso à maternidade é mais difícil ainda, porque não dá lucro para o hospital. Se a mulher qui-ser fazer parto normal na rede pri-vada hoje, não consegue vaga em nenhum lugar. Com três meses de antecedência, só terá acesso à cesa-riana”, exemplifica Tibiriçá.

altos custosAs operadoras admitem o au-

mento da receita, mas defendem que os altos custos limitam o lucro das companhias, reduzindo seu poder de investimento. “Em 2013, a margem ficou abaixo de 1%. Os custos giraram em torno de 83% e 17% foram destinados para o paga-mento de impostos”, quantifica An-tônio Carlos Abbatepaolo, diretor executivo da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), que agrega mais de 200 operadoras. “Mesmo assim, o reajuste dos forne-cedores e médicos geralmente está acima da inflação”, sustenta.

Para o representante, a Variação de Custos Médicos e Hospitalares, medido pelo índice VCMH, foi aci-ma de 16% em 2013, uma diferen-ça grande em relação à inflação de 5,91% registrada no mesmo ano.

O constante avanço da tecnolo-gia na área da saúde é um dos fa-tores de aumento dos custos. “Cada

vez surgem mais opções de sobre-vida que vão encarecendo os custos. A ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] coloca procedimentos caros na lista obrigatória de cober-tura, o que eleva o preço para os usuários e diminui as margens das empresas”, diz Libânia Rangel de Alvarenga, especialista em Admi-nistração Hospitalar e Sistemas de Saúde pela Fundação Getúlio Vargas. “A saúde tem ficado cada vez mais cara, pois fica cada vez mais eficien-te”, argumenta.

Não foi o que o pai de Fabio Hen-rique Bim constatou no momento em que mais precisava de assistên-cia. Aos 70 anos, beneficiário de um plano de saúde contratado cerca de duas décadas antes, o aposentado teve um implante de cateter negado pela operadora. O procedimento, essencial para dar continuidade ao tratamento de quimioterapia contra um câncer no fígado, teve que ser pago do seu próprio bolso devido à urgência do caso.

“Com o cateter, meu pai conti-nuou o tratamento pelo plano, que tem sido bom. Agora a luta é con-seguir o ressarcimento”, diz Fabio. Ele pretende contratar um advoga-do para obter a devolução do valor pago pelo procedimento médico e pelos materiais utilizados. Mas o processo pode ser dificultado pela falta de provas, já que a operadora se negou a justificar por escrito a não--autorização. Pela legislação atual, a atitude implica multa no valor de R$ 30 mil contra a empresa. No en-tanto, até o momento, a operadora não sofreu qualquer tipo de sanção.

De acordo com a ANS, o rol de procedimentos obrigatórios é atua-lizado permanentemente para qua-lificar o atendimento à saúde do ci-dadão, inclusive a partir de consulta pública. A partir de 2014, a cober-tura obrigatória passou a incluir os medicamentos orais contra câncer

e mais recentemente remédios para tratamento de efeitos colaterais da doença. “A inclusão desses medica-mentos representa um maior cuida-do com as pessoas e menores riscos à saúde”, sustenta a ANS, em respos-ta à Cidade Nova.

RegulaçãoÓrgão responsável por regular

as operadoras de planos de saúde, a ANS suspende os serviços com maior número de reclamações. Atualmente, negativas indevidas de cobertura, além do descumprimento de prazos máximos para a realização de consultas, exames e cirurgias são incluídas nas notificações.

Com o programa, a ANS já sus-pendeu 991 planos de 141 operado-ras de planos de saúde desde 2012. Somente na última avaliação, reali-zada no dia 16 de agosto, a agência impediu a comercialização de 123 planos, de 28 empresas. Segundo a agência, a mediação de conflitos vem apresentando alto índice de so-lução em prol do consumidor. Em 2013, o percentual chegou a 85,5%.

A Abramge afirma que as recla-mações são levadas a sério pelas operadoras, mas discorda da me-todologia de suspensão baseada na média das queixas dos usuários em ciclos trimestrais. O diretor da as-sociação também relativiza a cres-cente insatisfação com o serviço privado. “O aumento tem a ver com a elevada utilização dos planos. Ao longo de 2013, tivemos um bilhão de atendimentos. Portanto, o índice de reclamações é baixo: menos de 0,1%”, argumenta.

Abbatepaolo também reclama da judicialização. “O paciente não tem acesso a determinada cobertura, re-corre ao Judiciário e muitas vezes ganha a causa”, diz. Segundo ele, a frequência com que a situação se repete cria um desequilíbrio nas c

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contas das empresas, obrigadas a ar-car com custos mais elevados do que os efetivamente pagos pelos usuários.

Para Fernando Facury Skaff, pro-fessor de Direito da Universidade de São Paulo, a suspensão leva à concentração do número de planos nas mãos de poucas operadoras, li-mitando a escolha do consumidor. “O ideal é que haja variedade de empresas para que o consumidor tenha um leque maior de opções no mercado. É uma regra básica de di-reito concorrencial”, alerta.

Segundo dados da Abramge, de 2000 a 2013, o número de empresas atuantes no mercado caiu pela me-tade, totalizando 1.100 companhias ativas hoje. “Pelas baixas margens [de lucro], questões de custos, alta judicialização, novas tecnologias obrigatórias e suspensões, o setor tem tido problemas de sustentabili-dade”, sentencia Abbatepaolo.

Para Maria Inês Dolci, coorde-nadora institucional da Proteste, associação de defesa dos direitos do consumidor, a concentração já exis-tia antes da metodologia de suspen-são, indispensável para garantir os direitos dos usuários. “Não adianta vender planos que não cumprem contratos”, opina.

Planos coletivos X individuais

Atualmente, 80% dos planos de saúde são coletivos, ou seja, ofere-cidos por empresas, associações e sindicatos a seus funcionários ou membros, enquanto apenas 20% são individuais ou familiares. É cada vez mais escassa a oferta de planos do segundo tipo, principal-mente para o público que mais ne-cessita do serviço: idosos ou pessoas com doenças pré-existentes.

A regulamentação do reajuste nos planos individuais pela ANS é o principal motivo do desinteresse

das operadoras, que privilegiam a oferta dos coletivos, reajustados por meio de acordos entre as operadoras e as empresas contratantes.

“No coletivo, pode haver resci-são unilateral, ou seja, a operadora pode rescindir contrato com aquela carteira a qualquer momento, dei-xando o usuário mais vulnerável”, acrescenta Samantha Pavão, super-visora da área de saúde do Procon--SP. Na opinião da especialista, para garantir a totalidade dos direitos dos consumidores e equalizar a oferta, é necessário que a agência passe a re-gulamentar os dois tipos de serviços.

Já o executivo da Abramge, cujos associados oferecem planos coleti-vos, defende que, à parte a ausência reguladora da ANS sobre esse tipo de serviço, a empresa contratante tem margem de manobra para negociar, o que garante a equidade dos preços. “Por um lado, pode haver críticas porque os reajustes são superiores, mas representam a carteira daquela operadora. Sem esse reajuste, a ope-radora vai ter prejuízo. E isso, a lon-go prazo, colapsa todo o sistema de saúde”, defende Abbatepaolo.

A ANS entende que as empresas privadas possuem maior poder de negociação junto às operadoras, re-sultando na obtenção de percentuais vantajosos para o contratante. A agência discorda ainda que a falta de regulamentação tenha diminuído a oferta de planos individuais. “Nos últimos dez anos, o número de bene-ficiários em planos individuais cres-ceu cerca de 19,7% atingindo 10 mi-lhões de vínculos”, calcula o órgão.

PerspectivasOs especialistas ouvidos por Ci-

dade Nova parecem unânimes ao eleger uma saída ao sistema priva-do de saúde: equilibrar a garantia dos direitos dos consumidores e a sustentação econômica das opera-

doras. A saúde de uma das partes pressupõe a vitalidade da outra. A cura pode até parecer distante, mas não faltam receitas para tratar um sistema que ainda está doente.

Para Libânia, o sistema priva-do de saúde só será mais eficiente quando investir na gestão hospita-lar por meio de um sistema unifi-cado de informações, atualmente ilhadas em cada unidade de saúde. A Abramge concorda que a integra-ção é fundamental para a saúde do setor e afirma que as operadoras já trabalham no desenvolvimento de um prontuário eletrônico atra-vés do qual o histórico médico do paciente poderá ser acessado de diversos terminais.

Já o Conselho Federal de Medi-cina aposta na Lei 13.003 para sa-nar os conflitos entre médicos e operadoras ainda este ano. A norma estabelece o dia 30 de março como data-base para o reajuste e, em caso de falta de acordo, deixa a decisão a cargo da ANS.

Na visão de Facury Skaf, outra solução para atingir a equidade en-tre os interesses das operadoras e dos usuários seria a criação de tipos diferentes de contratos. Nem todas as operadoras tem capacidade de oferecer toda a gama de serviços e atividades impostas pela ANS. Uma alteração do modelo permitiria que novas empresas surgissem, ofere-cendo aos vários tipos de consumi-dores novas opções.

Apesar das dificuldades, é ine-gável o avanço do sistema privado. Diminuição de contratos lesivos ao consumidor, ampliação da faixa etá-ria para idosos e garantia de atendi-mento de urgência foram algumas das melhorias implementadas nos últimos anos, segundo Maria Inês, da Proteste: “Estamos avançando. Mas temos que começar a trabalhar questões novas, como a regulação dos planos coletivos”.

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