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A Doutrina Da Morte - O Jogo in - James Dashner

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A Doutrina da Morte

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivode oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem como o simplesteste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercialdo presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site:LeLivros.us ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Edio: Flavia LagoEditora-assistente: Marcia AlvesAssistente editorial: Natlia Chagas MximoTraduo: Alexandre BoidePreparao: Alessandra Miranda de SReviso: Bia Nunes de SousaDiagramao: Marcel VotreIlustrao de capa: Eduardo SchaalEPUB: Pamella Destefi

    Ttulo original: The Eye of Minds

    2013 by James Dashner 2014 Vergara & Riba Editoras S/Avreditoras.com.br

    Todos os direitos reservados. Proibidos, dentro dos limites estabelecidos pela lei, areproduo total ou parcial desta obra, o armazenamento ou a transmisso por meioseletrnicos ou mecnicos, fotocpias ou qualquer outra forma de cesso da mesma, semprvia autorizao escrita das editoras.

    Rua Cel. Lisboa, 989 - Vila MarianaCEP 04020-041 - So Paulo - SPTel./ Fax: (+55 11) [email protected]

    eISBN 978-85-7683-701-5

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Dashner, JamesO jogo infinito : a doutrina da morte, v. 1 /James Dashner; [traduo Alexandre Boide].

  • So Paulo: V&R Editoras, 2014.

    Ttulo original: The eye of minds.eISBN 978-85-7683-701-5

    1. Literatura juvenil I. Ttulo.

    14-02470 CDD-028.5

    ndices para catlogo sistemtico:1. Literatura juvenil 028.5

  • Este livro dedicado a Michael Bourret e a Krista Marino,responsveis pela minha carreira, alm de bons amigos.

  • I. O CAIXO

    1

    Michael falava, as palavras contra o vento, com uma menina chamada Tanya. Eu sei que l embaixo tudo gua, mas como se fosse concreto. O impacto vai

    esmigalhar seu corpo.No eram as palavras mais adequadas a se dizer a algum disposto a tirar a prpria

    vida, mas era verdade. Tanya tinha escalado a grade de proteo da ponte Golden Gate,em meio aos carros que cruzavam em alta velocidade, e estava inclinada na direo dovazio, as mos trmulas se segurando a uma barra de metal mida de sereno. Mesmo queMichael conseguisse convenc-la a no pular, havia um risco enorme de seus dedosescorregarem. Nesse caso, seria fim de papo. Imaginou a expresso de felicidade de umpescador pensando que enfim pegara um peixe grande e recebendo uma surpresa para lde desagradvel na ponta do anzol.

    Para com isso respondeu a garota, toda trmula. Isso aqui no um jogo...pelo menos, no mais.

    Michael estava na VirtNet ou Sono, como diziam os que circulavam nesse ambientecom mais frequncia. Estava acostumado a ver pessoas assustadas por ali. Uma porodelas. Mas, alm da sensao de medo, havia tambm o conhecimento a noo de queaquilo que acontecia no Sono no era real.

    Porm, com Tanya era diferente. Pelo menos era o que sugeria sua Aura, a versocomputadorizada da garota. A Aura tinha um olhar enlouquecido de puro horror, algo quedeixou Michael apavorado era como se ele estivesse pendurado na ponte, prestes a cair.E no estava nem um pouco a fim de testemunhar uma morte, fosse ela verdadeira ouno.

    um jogo, sim, e voc sabe disso ele disse em um tom de voz um pouco maiselevado do que o recomendvel, caso no quisesse deix-la ainda mais nervosa. Noentanto, um vento frio e repentino pareceu carregar suas palavras para longe, rumo baa. Desa da, vamos conversar. Podemos pegar os Pontos de Experincia que vamosganhar e explorar a cidade, a a gente se conhece melhor. Podemos espionar algunsdoidinhos. De repente, at hackear comida grtis nas lojas. Vai ser divertido. E, depoisdisso, a gente procura um Portal pra voc fazer a Emerso na sua casa. S pra dar umtempo no jogo.

    Isso no tem nada a ver com o Lifeblood! Tanya gritou para ele. O vento faziasuas roupas aderirem ao corpo, e os cabelos escuros balanavam como se estivessem

  • pendurados em um varal. Vai embora e me deixa em paz. No quero que seu rostinhobonito seja a ltima coisa que eu veja na vida.

    Os pensamentos de Michael se voltaram para o Lifeblood Deep, o nvel seguinte, oobjetivo supremo. Um lugar onde as coisas eram mil vezes mais reais e mais intensas.Mais trs anos e ele ganharia seu acesso. Talvez dois. Mas no momento o que deveriafazer era impedir que aquela garota maluca virasse comida de peixe, caso contrrio seriamandado de volta aos Subrbios por uma semana, o que adiaria ainda mais sua entrada noLifeblood Deep.

    Certo, escuta s...Ele tentou escolher as palavras com cuidado, mas j havia cometido um grande erro e

    sabia muito bem disso. Sair do personagem e usar o fato de estarem em um jogo paradet-la significava a perda de vrios pontos. E tudo por ali se baseava em pontuao.Aquela garota, porm, comeava a deix-lo realmente assustado. Levando em conta seurosto plido e magro, era como se j estivesse morta.

    Vai embora de uma vez! ela gritou. Voc no entende. Estou presa aqui. Comou sem Portal. Estou presa! Ele no vai me deixar fazer a Emerso!

    Michael sentiu vontade de gritar com ela ao ouvir tamanho absurdo. Uma parte maisobscura de seu pensamento recomendava deixar tudo para l, porque ela era umafracassada mesmo; que se espatifasse l embaixo ento. Aquela garota era teimosademais. Por outro lado, nada daquilo estava acontecendo de verdade. s um jogo.Precisava lembrar isso a si mesmo o tempo todo.

    S no podia estragar tudo. Aqueles pontos eram muito importantes. Tudo bem. Me escuta. Ele recuou um passo e ergueu as mos, como quem tenta

    tranquilizar um animal assustado. A gente acabou de se conhecer... Vamos dar tempoao tempo. Prometo que no vou fazer nenhuma maluquice. Se quiser pular, vai em frente.Mas pelo menos fala comigo, me explica por qu.

    Lgrimas escorriam pelo rosto dela, e seus olhos estavam inchados e vermelhos. Vai embora. Por favor. A voz dela perdeu a aspereza, assumindo um tom de

    derrota. No estou de brincadeira. Estou cansada desse... disso tudo! Est cansada? Tudo bem, eu entendo. Mas voc no precisa me prejudicar tambm,

    no ? Michael considerou que no haveria problemas em mencionar o jogo, j que elamesma usava isso como motivo para abandonar, em carter definitivo, o Hotel Virtual. Falando srio. Vem comigo at o Portal pra fazer a Emerso agora mesmo. Se sair do jogoem segurana, eu tambm ganho meus pontos. No seria o desfecho ideal para todomundo?

  • Odeio voc ela rebateu, lanando gotas de saliva sobre ele. A gente mal seconhece e eu j odeio voc. Isso no tem nada a ver com o Lifeblood!

    Ento me explica o motivo ele pediu com toda a tranquilidade, tentando manter acompostura. S estou querendo cinco minutinhos do seu tempo antes de pular. Falacomigo, Tanya.

    Ela escondeu o rosto com o brao. No posso mais ela choramingou, e seus ombros estremeceram. Mais uma vez,

    Michael teve medo de que escorregasse. No aguento.Algumas pessoas so fracas assim mesmo, ele pensou, mas no ousou dizer em voz

    alta.O Lifeblood era de longe o jogo mais popular da VirtNet. No Sono, era possvel entrar

    em uma violenta batalha da Guerra Civil Americana, ou enfrentar drages com uma espadamgica, ou ento voar em espaonaves, explorar os bizarros pontos de encontrosromnticos. No entanto, esse tipo de coisa logo perdia a graa. No fim, nada era maisfascinante que a realidade nua e crua. Nada. Mas algumas pessoas, como Tanya, no eramcapazes de suportar isso. Michael com certeza era. Ele vinha subindo na hierarquia do jogocom a mesma velocidade do lendrio Gunner Skale.

    Vamos l, Tanya ele insistiu. O que custa conversar comigo? Se quer cairfora, por que terminar seu ltimo jogo se matando de maneira to violenta?

    Ela se virou para ele e o encarou com tamanha intensidade no olhar que o fezestremecer.

    a ltima vez que Kaine faz isso comigo ela falou. Ele no pode me deixarpresa aqui e me usar como cobaia... para mandar os SimKillers atrs de mim. Vou destruirmeu Ncleo.

    Essas ltimas palavras mudaram tudo. Horrorizado, Michael viu Tanya se segurar commais fora ainda barra de metal com uma das mos e, com a outra, comear a escavara prpria pele.

    2

    Nesse momento, os pontos e o jogo deixaram de ser importantes. A situao evoluiude um simples inconveniente para uma questo de vida ou morte. Em todos os seus anoscomo jogador, nunca tinha visto ningum decodificar o prprio Ncleo, destruir a barreira

  • dentro do Caixo que separava o mundo real do virtual. Para com isso! ele gritou, j colocando um dos ps sobre a grade. Para!Quando saltou para o parapeito externo da ponte, ficou paralisado. Ela estava quase ao

    alcance de seu brao, e qualquer movimento brusco poderia faz-la entrar em pnico. Comas mos estendidas, deu um pequeno passo na direo dela.

    No faz isso Michael disse o mais baixo que pde para ainda ser ouvido em meioao vento forte.

    Tanya continuava escavando a tmpora direita. Ela arrancou pedaos da prpria pele, eo sangue que jorrou da ferida em pouco tempo cobriu suas mos e a lateral do rosto. Umaexpresso terrivelmente serena tomou conta de sua face, como se nem se desse conta doque fazia a si mesma, mas Michael sabia muito bem que ela estava hackeando o cdigo.

    Para de mexer no cdigo s por um segundo! gritou Michael. Que talconversar um pouco antes de destruir o prprio Ncleo? Voc sabe o quanto isso srio.

    Que diferena faz pra voc? ela respondeu num tom de voz to baixo, queMichael precisou ler seus lbios para entender. Mas pelo menos ela parou o que estavafazendo.

    Michael observava tudo com grande horror. Ela tinha parado, sim, de escavar a prpriapele, mas apenas para enfiar o indicador e o polegar no buraco que havia feito.

    Voc s est interessado nos seus Pontos de Experincia ela retrucou, enquanto,lentamente, removia da cabea um pequeno chip ensopado de sangue.

    Eu abro mo dos meus pontos disse Michael, tentando esconder o medo e o nojo. Juro pra voc. J chega disso tudo, Tanya. Volta a codificar essa coisa e vamosconversar. Ainda d tempo.

    Ele contemplou a manifestao fsica de seu Ncleo com um olhar de fascnio. Voc no consegue enxergar a ironia disso tudo? questionou ela. Se no

    soubesse mexer no cdigo, provavelmente nem saberia quem Kaine, nem descobririanada a respeito dos SimKillers e dos planos dele para mim. Mas eu sou boa nisso e, porcausa desse... monstro, consegui fazer a programao para tirar o Ncleo da minhacabea.

    Mas no da sua cabea de verdade. Tudo aqui s uma simulao, Tanya. Ainda dtempo de voltar atrs.

    Michael no conseguia se lembrar de outra ocasio na vida em que tivesse se sentidoto mal.

    Ela lanou um olhar to voraz para ele que o fez dar um passo para trs. No aguento mais. No aguento mais... ele. No vou poder mais ser usada se

    estiver morta. Para mim, j chega.

  • Ela apoiou o Ncleo contra o polegar e o lanou na direo de Michael. O chip passoupor cima de seu ombro, refletindo o brilho do sol por um instante, quase como se piscassepara ele, antes de aterrissar com um leve tilintar em algum lugar em meio ao trnsito,onde seria esmagado em questo de segundos.

    Ele mal podia acreditar no que via: uma pessoa com habilidades to avanadas namanipulao do cdigo a ponto de destruir o prprio Ncleo o dispositivo que protegia ocrebro dos jogadores enquanto estavam no Sono. Sem o Ncleo, o crebro no seria capazde filtrar de forma adequada o estmulo da VirtNet. Se o Ncleo fosse removido no Sono, apessoa morreria na Viglia. Ele no conhecia ningum que j tivesse presenciado issoantes. Duas horas antes, estava comendo batatinhas com gorgonzola roubadas dalanchonete do Dan com seus melhores amigos. O que ele mais queria naquele momentoera voltar para l, comer um sanduche de peru no po de centeio, ouvir as piadas semgraa de Bryson sobre calcinhas de velhotas e escutar as reclamaes de Sarah sobre ocorte de cabelo que Michael usava no Sono.

    Se Kaine for atrs de voc disse Tanya , diz a ele que no fim quem ganhou fuieu. Fala sobre a minha coragem. Ele pode prender as pessoas aqui vontade e roubarquantos corpos quiser. Mas o meu no.

    Michael no sabia mais o que dizer. Percebeu que no conseguiria arrancar nem maisuma palavra da boca ensanguentada da garota. Porm, com a mesma impulsividade que oguiava para tudo na vida, saltou na direo da barra metlica qual ela se segurava.

    Tanya gritou, momentaneamente sem reao diante daquele movimento brusco, masem seguida se soltou mais exatamente, se jogou da ponte. Michael se agarrou barracom uma das mos e tentou segur-la com a outra, mas errou no clculo nas duas situa-es. Seus ps atingiram alguma coisa slida, e em seguida escorregaram. Agitando osbraos, ele no conseguia encontrar nada em que se amparar alm do ar e caiu logodepois dela.

    Um grito esquisito escapou de sua boca, algo do qual teria vergonha caso a nicapessoa a ouvi-lo no fosse morrer logo em seguida. Sem o Ncleo codificado no crebro, amorte dela seria uma realidade.

    Michael e Tanya desabaram rumo s guas escuras da baa. O vento agitava a roupadeles, e o corao de Michael parecia prestes a sair pela boca. Ele soltou outro grito. Nofundo, sabia que, ao atingir a gua, apesar da dor terrvel, em seguida faria a Emerso eacordaria em casa, so e salvo dentro de seu Caixo. O ponto forte da VirtNet, no entanto,era a simulao da realidade, e durante a queda o pavor era inevitvel.

    De alguma forma, as Auras de Michael e Tanya acabaram frente a frente em pleno ar,

  • como dois paraquedistas em queda livre. A superfcie agitada das guas rugia sob os dois,que se abraaram com fora. Michael sentiu vontade de gritar, mas a tranquilidadeabsoluta estampada no rosto dela o impediu.

    O olhar dela penetrou fundo dentro de Michael, e nesse momento algo dentro dele seesfacelou.

    O impacto contra a gua foi to duro quanto ele imaginava. Duro como concreto. Durocomo a morte.

    3

    Apesar da intensidade, o momento de dor foi breve. De maneira repentina, tudo dentrode Michael pareceu romper e explodir. Ele no teve tempo de emitir sequer um som antesdo fim nem Tanya, pois ele no ouviu mais nada depois do terrvel choque contra asuperfcie da gua. Em seguida, tudo se dissipou, e sua mente se apagou.

    Michael estava vivo dentro da NerveBox, que a maioria das pessoas chamava deCaixo. Havia feito a Emerso do Sono.

    O mesmo no podia ser dito no caso dela. Uma onda de tristeza, e depois dedescrena, formou-se dentro dele. Com seus prprios olhos, viu quando Tanya manipulou ocdigo, arrancou o Ncleo de seu corpo virtual e o jogou longe como se fosse uma migalhade po. Quando tudo acabou, foi um final verdadeiro, e, ao pensar que tinha feito partedisso, Michael sentiu suas entranhas se retorcerem. Jamais havia testemunhado nadadesse tipo.

    Piscou algumas vezes, esperando para ser desconectado por completo. Nunca em suavida tinha se sentido to aliviado ao deixar a VirtNet, ao abandonar um jogo, ao sair dacaixa e respirar o ar poludo do mundo real.

    Uma luz azul se acendeu, revelando a porta do Caixo a poucos centmetros de seurosto. Os LiquiGels e os AirPuffs j tinham sido drenados, o que levava parte queMichael mais detestava, por mais que j houvesse passado por isso em incontveisoportunidades. Os fios finos e gelados do NerveWire foram saindo de seu pescoo, suascostas e seus braos, deslizando como cobras por sua pele e desaparecendo nos estreitoscompartimentos, onde seriam desinfetados e armazenados para o prximo jogo. Seus paisficavam impressionados com o fato de ele permitir que aquelas coisas entrassem em seucorpo com tanta frequncia. Michael entendia esse estranhamento. Aquilo era mesmo

  • muito esquisito.Um clique audvel se fez ouvir logo em seguida, seguido do acionamento de um

    mecanismo e uma lufada de ar. A porta do Caixo comeou a se abrir, erguendo-se nasdobradias como a morada de Drcula. Michael considerou esse pensamento quase cmico.Ser um vampiro sanguinolento e conquistador era apenas uma das coisas que uma pessoapoderia fazer no Sono. Uma em um bilho.

    Ele se levantou com cautela j que sempre se sentia um pouco tonto depois daEmerso, principalmente depois de jogar durante horas , nu e ensopado de suor. Asroupas atrapalhavam o estmulo sensorial da NerveBox.

    Michael pisou fora da caixa, sentindo o toque agradvel do carpete sob os ps umsinal de que estava de volta realidade, e em seguida vestiu a cueca que deixara no chologo ao lado. Imaginou que uma pessoa decente fosse querer tambm um par de calas euma camiseta, mas o momento no parecia propcio a esse tipo de preocupao. S o queele precisava fazer no Lifeblood era convencer uma garota a no se suicidar para ganharPontos de Experincia, mas, alm de ter fracassado, tinha participado de um suicdio real.Uma vida de verdade se perdera.

    Tanya onde quer que estivesse seu corpo estava morta. Ela havia arrancado seuNcleo antes de se jogar uma corrupo do programa, protegido por senha, que s seriapossvel se o usasse contra ela mesma. Simular a remoo de Ncleo no era aceitvel naVirtNet. Era algo perigoso demais. Caso contrrio, as pessoas fariam isso o tempo todo,para se divertir e assustar umas s outras. Ela havia de fato manipulado o prprio cdigoe removido a barreira de segurana que separava o virtual do real em sua mente,destruindo propositalmente seu implante fsico. Tanya, a menina bonita de olhos tristescom mania de perseguio, estava morta.

    Michael sabia que, em pouco tempo, isso estaria no noticirio NewsBops. Seriainformado tambm que Michael estivera com ela, e o SSV o servio de segurana daVirtNet provavelmente viria falar com ele. Viria com certeza, na verdade.

    Morta. Ela estava morta. Imvel e sem vida, como o colcho em sua cama.Foi ento que a realidade o atingiu em cheio, como uma bolada no meio da cara.Michael quase no conseguiu chegar ao banheiro antes de esvaziar todo o contedo de

    seu estmago. Em seguida, desabou no cho e se encolheu. As lgrimas no vieram chorar no fazia muito seu estilo , mas ele ficou l deitado por um bom tempo.

  • II. A PROPOSTA

    1

    Michael sabia que a maioria das pessoas, quando se sentiam abandonadas e no fundo dopoo, corriam para procurar os pais, ou mesmo um irmo ou uma irm. Quem no temnem um nem outro talvez batesse porta de uma tia, um bisav, um primo de segundograu.

    No era esse o caso de Michael. Ele foi atrs de Bryson e Sarah, os melhores amigosque algum poderia ter. Ambos o conheciam como ningum, e no julgavam o que dizia,fazia ou comia. E, quando necessrio, ele retribua a gentileza. Havia, porm, algo muitoestranho na amizade entre eles.

    Michael jamais havia se encontrado com seus amigos.Pelo menos no pessoalmente. Ainda no. Mas, na VirtNet, eram grandes

    companheiros. Tinham se conhecido nos nveis iniciais do Lifeblood, aproximando-se cadavez mais medida que avanavam. Os trs uniram foras quase instantaneamente paraavanar juntos pelo jogo dos jogos. Eles eram o Trio Parada Dura, a Trifeta Perfeita, aTrilogia do Terror. Esses apelidos no atraam muitos simpatizantes eram rotuladoscomo arrogantes por alguns, e idiotas por outros , mas eles se divertiam com isso, eera o que importava.

    Michael no podia ficar deitado para sempre no cho duro daquele banheiro, por issoresolveu se levantar e se dirigir a seu lugar favorito no mundo para se sentar.

    A Poltrona.Era apenas um mvel como qualquer outro, mas nem por isso deixava de ser a pea

    de moblia mais confortvel em que j se sentara, uma espcie de nuvem artificial.Precisava refletir um pouco e tambm marcar um encontro com seus melhores amigos.Michael se acomodou, olhou pela janela e observou a fachada triste e cinzenta do prdio deapartamentos do outro lado da rua, que parecia um furaco solidificado.

    A nica coisa que quebrava a monotonia era um cartaz enorme anunciando o LifebloodDeep, as letras de um vermelho vivo sobre o fundo preto e nada mais, como se osdesenvolvedores do jogo soubessem que apenas aquelas palavras eram tudo de quenecessitavam. Todo mundo sabia do que se tratava, e todos queriam fazer parte da ao,ganhar o direito de entrar ali algum dia. Nesse sentido, Michael era como todos os outrosjogadores apenas mais um membro do rebanho.

    Ele se lembrou de Gunner Skale, o maior jogador de Lifeblood da histria da VirtNet. Noentanto, o sujeito havia desaparecido recentemente segundo boatos, fora engolido pela

  • verso Deep, perdendo-se no jogo que tanto amava. Skale era uma lenda, e no existiajogador que nunca sara vasculhando as profundezas do Sono sua procura, uma jornadaque se revelava sempre malsucedida. Pelo menos at o momento. O objetivo de Michaelera chegar a esse nvel, tornar-se o novo Gunner Skale. Ele s precisava se antecipar aonovo sujeito que tinha aparecido em cena. Esse tal de... Kaine.

    Michael apertou seu EarCuff uma pequena pea de metal acoplada ao lbulo daorelha , e a NetScreen com teclado surgiu diante dele, pairando em pleno ar. O BoletimEletrnico mostrou que Bryson j estava on-line, e Sarah deixara uma mensagem dizendoque voltava logo.

    Os dedos de Michael comearam a percorrer as teclas vermelhas cintilantes.

    Mikethespike: Ei, Bryson, para de xeretar nos ninhos de Gorgozon e vem falarcomigo. Vi uma coisa sinistra hoje.

    A resposta de seu amigo foi quase instantnea. Bryson passava ainda mais tempo on-line ou no Caixo do que Michael, e digitava com a velocidade de uma secretria depois daterceira xcara de caf.

    Brystones: Sinistra, ? Um policial do Lifeblood pegou voc nas dunas de novo? slembrar: eles aparecem a cada treze minutos!

    Mikethespike: J disse o que estava fazendo. Precisava impedir aquela menina desaltar da ponte. No deu muito certo.

    Brystones: Por qu? Ela pulou?Mikethespike: Acho melhor no falar por aqui. A gente precisa se encontrar no

    Sono.Brystones: Cara, a coisa deve ter sido feia mesmo. Mas gente acabou de sair de l.

    Pode ser amanh?Mikethespike: Me encontra na lanchonete. Em uma hora. Avisa a Sarah tambm.

    Preciso tomar banho. Estou fedendo a sovaco.Brystones: Ainda bem que o encontro no vai ser na vida real, ento. No sou muito

    f de CC.Mikethespike: Por falar nisso... a gente precisa se conhecer. Se conhecer de

    verdade. Voc nem mora TO longe assim.Brystones: Mas a Viglia to entediante. Pra que isso?Mikethespike: Porque isso que os seres humanos fazem. Eles se encontram e

  • apertam as mos de verdade.Brystones: Mas eu prefiro dar um abrao em voc em Marte.Mikethespike: NADA DE ABRAOS. Vejo voc em uma hora. E leva a Sarah.Brystones: Pode deixar. Agora vai lavar esses sovacos fedorentos.Mikethespike: Eu disse que estava FEDENDO a sovaco, no que... Esquece. At

    mais.Brystones: Fui.

    Michael apertou o EarCuff e viu a NetScreen e o teclado se dissolverem como setivessem sido carregados por um vento forte. Em seguida, depois de uma ltima olhada noanncio do Lifeblood Deep com suas letras vermelhas e ameaadoras sobre o fundopreto , e com os nomes de Gunner Skale e Kaine pairando em sua mente, foi para ochuveiro.

    2

    A VirtNet era uma coisa engraada. Era to real que s vezes Michael lamentava ofato de ser um ambiente que envolvesse tecnologia to avanada por exemplo, quando otempo estava quente e mido, ou quando dava uma topada no dedo ou levava um tapa nacara de uma garota. O Caixo permitia que tudo isso fosse sentido nos mnimos detalhes.Havia a opo de ajustar o mecanismo para diminuir o estmulo sensorial, mas para quejogar se no fosse para desfrutar da experincia completa?

    S que o realismo com que se transmitia a dor e o desconforto no Sono tambm tinhaseu lado positivo. A comida. Principalmente quando a pessoa conseguia manipular o cdigopara ter o que quisesse quando a grana estava curta. Bastava acessar os dados brutos,inserir algumas linhas de programao e... voil um banquete.

    Michael se sentou com Bryson e Sarah na mesa de sempre em frente lanchonete doDan, devorando um prato enorme de nachos, enquanto o Caixo o alimentava comnutrientes saudveis por via intravenosa. A pessoa no poderia sobreviver apenas daalimentao provida pelo Caixo, claro no era algo destinado a sustentar um corpohumano durante meses a fio , mas com certeza ajudava durante as sesses mais longasde jogatina. E a melhor parte era que, no Sono, a pessoa s ficava gorda se programassesua imagem dessa maneira, por isso era possvel comer vontade.

  • Apesar da comida deliciosa, a conversa logo tomou um rumo dos mais deprimentes. Fui ver o NewsBops assim que Bryson me contou disse Sarah. Sua aparncia na

    VirtNet era discreta: rosto bonito, cabelos castanhos compridos, pele bronzeada, quasenenhuma maquiagem. Rolaram algumas recodificaes de Ncleo nas ltimas semanas.Uma histria de arrepiar. Dizem que esse tal de Kaine est prendendo as pessoas no Sono,impedindo que acordem. Ento algumas delas esto se matando. D pra acreditar? Umciberterrorista.

    Bryson balanou a cabea. Parecia um jogador de futebol americano que dera errado navida alto, largo e com um aspecto um tanto desproporcional. Costumava dizer que erato lindo no mundo real que precisava de um refresco do assdio feminino enquantoestava na VirtNet.

    De arrepiar? ele repetiu. Nosso amigo aqui acabou de contar que viu umamenina abrir o prprio crnio, arrancar o Ncleo e pular de uma ponte. Acho que arrepio pouco nesse caso.

    Verdade... Podia ter usado uma palavra mais forte respondeu ela. Mas o queimporta que tem alguma coisa acontecendo, e um jogador que est levando a culpa.Algum j ouviu falar em gente hackeando o prprio sistema para se matar? Esse umproblema que o servio de segurana da VirtNet nunca enfrentou.

    A no ser que o SSV esteja acobertando tudo isso comentou Bryson. Quem faria uma coisa dessas? murmurou Michael, mais para si mesmo do que

    para os outros. Ele era bem informado e sabia que suicdios no Sono eram raros. Ossuicdios de verdade, pelo menos. Tem gente que gosta de destruir a si mesmo noSono, sem maiores consequncias... Mas esse tipo de coisa eu nunca vi. A pessoa precisade muita habilidade e de um bocado de conhecimento pra fazer uma coisa dessas. Achoque eu mesmo no conseguiria. E voc disse que aconteceram vrios casos em umasemana?

    E quanto a esse jogador, esse tal de Kaine? questionou Bryson. Ouvi dizer queele bom, mas como algum conseguiria prender os outros no Sono? No possvel queseja verdade.

    As mesas ao redor ficaram em silncio, e aquele nome pareceu ecoar pelo ar. Aspessoas ficaram olhando para Bryson, e Michael logo entendeu por qu. A m fama deKaine se espalhava, e a meno a ele causava mal-estar. Durante os ltimos meses, elevinha se infiltrando em toda parte, desde jogos at salas de encontro privadas,atormentando suas vtimas com vises e at mesmo atacando-as fisicamente. Michaelnunca tinha ouvido falar naquele negcio de no deixar as pessoas sarem do Sono at

  • conhecer Tanya, mas o nome Kaine j era sinnimo de perigo no mundo virtual, como seestivesse espreita em todas as partes. Bryson s estava se fazendo de desentendido.

    Michael ignorou os outros clientes da lanchonete e se concentrou nos amigos. Ela disse um monto de vezes que era culpa do Kaine. Que estava presa aqui por

    causa dele, e que no aguentava mais. E a histria de roubar corpos? E tambm aquelacoisa dos SimKillers. Podem acreditar: mesmo antes de arrancar o Ncleo, j dava paraver nos olhos dela que a coisa era sria. Com certeza, ela encontrou com o sujeito emalgum lugar.

    A gente nem sabe nada a respeito desse tal de Kaine comentou Sarah. J liuma histria sobre ele, e isso tudo que temos... histrias. Ningum tem informaesconcretas sobre esse jogador. Nenhuma foto, nenhum registro de udio ou vdeo, nada. como se ele no existisse.

    Estamos na VirtNet rebateu Bryson. As coisas no precisam ser reais paraexistir. disso que estou falando.

    No insistiu Sarah, sacudindo a cabea. Ele um jogador. Uma pessoa. Deitadaem um Caixo. Agora, com tanto falatrio, vamos conseguir descobrir mais sobre ele. Amdia deve estar atrs desse cara. Pelo menos o SSV deve ter como rastrear onde eleest.

    Michael sentiu que a conversa no avanava. Ei, o foco aqui sou eu, pessoal. Acabei de passar por uma experincia traumtica, e

    vocs deviam tentar me consolar. At agora, no me ajudaram em nada.Uma expresso sincera de preocupao surgiu no rosto de Bryson. verdade, cara. Desculpa a, mas antes com voc do que comigo. Sei que o lance

    da negociao com os suicidas faz parte da experincia do Lifeblood e tal, mas uma mortede verdade? Eu ia ficar no mnimo uma semana sem dormir se visse uma coisa dessas.

    Ainda no est ajudando Michael respondeu com uma risadinha amarela. Naverdade, ele j se sentia melhor por estar com os amigos, mas ainda havia algo dentrodele que precisava ser expurgado, uma coisa obscura e assustadora, impossvel de ignorar.

    Sarah se inclinou para a frente e apertou seu brao. Nenhum de ns pode imaginar como deve ter sido isso ela disse baixinho. E

    seria uma idiotice tentar fingir que sim. Mas sinto muito pelo que aconteceu.Michael ficou vermelho e olhou para o cho. Logo em seguida, felizmente, Bryson os

    trouxe de volta realidade. Preciso usar o banheiro anunciou, j se levantando. Era possvel fazer at isso no

    Sono, enquanto o verdadeiro corpo da pessoa cumpria seus requisitos fisiolgicos dentro doCaixo. Tudo era feito para parecer uma experincia real. Tudo mesmo.

  • Quanta elegncia disse Sarah com um suspiro, soltando o brao de Michael e serecostando na cadeira. Chega a ser encantador.

    3

    Eles ainda conversaram durante mais ou menos uma hora, encerrando com arecorrente promessa de se encontrarem no mundo real em breve. Bryson falou que, casono fizessem isso at o fim do ms, arrancaria um dedo da mo para cada dia passado doprazo. Mas das mos de Michael, no das suas. Isso proporcionou a deixa para uma tonecessria sesso de risadas.

    Os trs se despediram perto de um Portal, e Michael fez a Emerso para a Viglia,passando pelo ritual de sempre dentro do Caixo antes de sair. Enquanto caminhava at aPoltrona, seu olhar se dirigiu naturalmente para o anncio do Lifeblood Deep do lado defora da janela, e mais uma vez ele desejou estar l com todas as suas foras. Quasechegou a se sentar, mas acabou mudando de ideia, sabendo que depois disso no selevantaria mais, pois estava dolorido dos ps cabea e no gostava de dormir naPoltrona, porque acordava todo torto.

    Suspirou e, tentando no pensar na garota que havia se suicidado bem diante de seusolhos, de alguma forma conseguiu chegar at a cama, onde sucumbiu a uma longa noite desono sem sonhos.

    4

    Levantar da cama na manh seguinte foi como sair de um casulo. Demorou uns vinteminutos para que o lado inteligente de seu crebro convencesse o lado mais burro de queno ir escola sob a justificativa de uma suposta doena no era uma boa ideia. J tinhafaltado sete vezes s naquele semestre. Mais uma ou duas faltas, e com certeza suaausncia comearia a ser notada.

    Estava ainda mais dolorido pela queda na baa com Tanya no dia anterior, e a estranhasensao que fazia seu estmago revirar persistia. De algum modo, porm, Michael

  • encontrou foras para ir mesa do caf da manh, onde Helga, sua empregada, haviaacabado de servir um prato de ovos com bacon. Uma empregada, um equipamento de altatecnologia para entrar na VirtNet, um belo apartamento... tinha muito a agradecer aos paisendinheirados. Eles viajavam muito, e no momento no sabia nem para onde tinham ido,tampouco quando voltariam. Por outro lado, essa ausncia era compensada com muitospresentes. Somando o tempo passado na escola, na VirtNet e na companhia de Helga,quase no havia ocasies para sentir falta deles.

    Bom dia, Michael Helga falou com seu leve, mas ainda perceptvel, sotaquealemo. Acho que dormiu muito bem, no?

    Ele respondeu com um resmungo, e ela sorriu. Era por isso que gostava tanto deHelga. Ela no ficava irritada ou ofendida quando recebia uma resposta semelhante a umgrunhido de animal despertando da hibernao. Para ela, isso era uma coisa normal.

    E a comida que ela fazia era deliciosa. Quase to boa quanto a da VirtNet. Michaelraspou o prato do caf da manh antes de sair para pegar o metr.

    5

    As ruas fervilhavam com saias, ternos e copos de caf preenchendo todos os espaos,at onde a viso era capaz de alcanar. Era tanta gente que Michael era capaz de jurar quese duplicavam diante de seus olhos, como as clulas de um corpo em formao. Todosostentavam no rosto a expresso vazia e entediada que Michael conhecia to bem. Comoele, as pessoas sentiam as horas se arrastar no trabalho ou na escola enquantoesperavam para poder voltar para casa noite e entrar na VirtNet.

    Michael penetrou a multido humana, desviando-se do fluxo de pessoas esquerda e direita, e foi abrindo caminho pela avenida antes de tomar seu habitual atalho direita um beco estreito, repleto de latinhas e pilhas de lixo. No conseguia entender por que olixo nunca era descartado nas caambas enormes de metal. Mas, em uma manh comoaquela, dividir o caminho com sacos vazios de batata frita e cascas de banana era muitomelhor que encarar aquele mar de gente.

    Estava quase do outro lado do beco quando o som de um veculo cantando pneus o fezdeter o passo. O rugido de um motor chamou sua ateno para a rua, e Michael se viroupara olhar. Assim que viu o carro se aproximando com sua pintura cinzenta e tediosa,como o fim de uma tempestade , entendeu tudo. Percebeu instantaneamente que aquilo

  • tinha a ver com ele, e que no terminaria bem.Virou-se de novo e correu, compreendendo que a inteno de quem o perseguia era

    encurral-lo dentro do beco. O outro lado parecia estar a quilmetros de distncia jamais conseguiria chegar l. O barulho do carro foi ficando mais alto e, apesar de todosos horrores e maluquices que j havia vivenciado no Sono, o corao de Michael disparoude medo. Medo de verdade. Que bela maneira de encerrar a vida... esmagado como uminseto em um beco cheio de lixo.

    No teve coragem de olhar para trs, mas era capaz de sentir a aproximao doveculo. Estava perto, e no havia mais chance de escapar. Desistiu de tentar fugircorrendo e saltou sobre uma pilha de lixo. O carro brecou bem no momento em que elerolava e voltava a se pr de p, pronto para sair em disparada outra vez na direooposta. A porta traseira do sed se abriu, revelando um homem bem-vestido com umamscara de esquiador no rosto, os olhos fixos em Michael sob os orifcios do tecido.Michael ficou paralisado apenas por um breve instante, mas foi o bastante. O homemsaltou sobre ele, lanando-o ao cho.

    Michael abriu a boca para gritar, mas uma mo gelada se posicionou sobre seu rosto eo silenciou. O pnico invadiu seu corpo como uma espada afiada, e uma descarga deadrenalina no organismo lhe deu fora para se debater e lutar contra o agressor. Ohomem, porm, era mais forte e conseguiu virar Michael de bruos, prendendo seus braoss costas.

    Para com isso disse o estranho. Ningum aqui quer machucar voc, mas notemos tempo a perder. Voc precisa entrar no carro.

    O rosto de Michael estava prensado contra o cho. Ah, ? No tenho motivos pra me preocupar, ento? Era exatamente isso o que eu

    estava pensando. No seja engraadinho, garoto. Apenas no podemos revelar nossa identidade para

    ningum. Agora entra no carro.O homem se levantou, puxando Michael consigo. Entra disse o estranho, fazendo uma pausa dramtica neste carro.Michael ainda fez uma ltima e pattica tentativa de se libertar, mas no havia jeito.

    A presso das mos do sujeito no seu corpo era implacvel. Michael no teve escolha ano ser obedecer. Ele deixou de resistir, permitindo que o homem o conduzisse at obanco de trs do carro, onde se sentou ao lado de outro sujeito mascarado. A porta foifechada e o veculo arrancou. O guincho dos pneus cantando ecoou pelas paredes da selvade concreto.

  • 6Quando o carro deixou o beco e embicou na rua, a cabea de Michael comeou a girara mil: quem eram aquelas pessoas, e para onde o levavam? Uma nova onda de pnicotomou conta de seu corpo, e ele resolveu agir, dando uma cotovelada no meio das pernasdo sujeito sua esquerda e tentando abrir a porta por cima do corpo contorcido emagonia, dizendo palavres que fariam at mesmo Bryson corar. Os dedos de Michael maltinham alcanado a maaneta da porta quando o outro capanga o puxou de volta,aplicando-lhe uma gravata. O homem apertou seu pescoo at Michael ficar sem ar.

    Para com isso, garoto ele falou, sem perder a calma. Por alguma razo, aquelaspalavras eram a ltima coisa que Michael queria ouvir. Ele sentiu o peito oprimido pelaraiva, o que o fez lutar com mais fora ainda para se soltar.

    Para com isso! repetiu o estranho, desta vez com um grito. V se para de daruma de criana e se acalma. Ns no vamos machucar voc.

    Na verdade, voc j est me machucando Michael respondeu com certadificuldade.

    O homem aliviou um pouco a presso. s se comportar que eu paro. Estamos combinados? T bom resmungou Michael. Afinal, o que ele poderia fazer? Pedir um tempo para

    pensar?Depois disso, o homem pareceu ficar mais tranquilo. timo. Agora senta e fica quieto ele ordenou. No, espera a, primeiro voc

    precisa se desculpar com o meu amigo... Essa agresso foi totalmente desnecessria.Michael olhou para o homem sua esquerda e deu de ombros. Desculpa. Espero que ainda consiga ter filhos.O sujeito no respondeu, mas o olhar sob a mscara era de puro dio. Intimidado pela

    demonstrao de fria do homem, ele se virou para o outro lado. A adrenalina haviabaixado, suas foras tinham se esvado e ele estava sendo transportado pela cidade porquatro homens mascarados.

    As coisas no pareciam l muito boas para ele.

    7

  • O restante do trajeto se deu em silncio absoluto. O corao de Michael, porm,continuava retumbando como um enorme tambor. Pensou que soubesse como era sentirmedo. J havia sido submetido a inmeras situaes terrveis na VirtNet, que pareciamabsurdamente reais. Mas aquilo era real de verdade. E o medo era algo que ia muito almde qualquer coisa que j tivesse experimentado. Imaginou at que pudesse ter um ataquecardaco aos dezesseis anos de idade.

    Ironicamente, a cada vez que olhava para fora, deparava com os cartazes pretos evermelhos do Lifeblood Deep. Apesar de uma pequena poro otimista de seu crebroainda acreditar que de alguma maneira ele sairia vivo daquela situao, Michael sabia queser tomado como refm por homens mascarados no era algo que suscitasse muitaesperana. Aqueles anncios eram s um lembrete de que seu sonho de chegar ao nvelDeep provavelmente jamais se realizaria.

    Por fim, chegaram periferia da cidade e entraram no gigantesco estacionamento doestdio dos Falcons. O local estava totalmente vazio, e o motorista parou na primeirafileira de vagas, puxando o freio de mo bem em frente da monstruosa construo. Haviauma placa logo adiante com os dizeres: VAGAS RESERVADAS. INFRAO SUJEITA AGUINCHO.

    Um bipe ressoou em algum lugar dentro do carro, seguido de um estalo do lado defora e do acionamento de uma engrenagem. Imediatamente depois, o carro embicou nocho, e o corao de Michael se acelerou. Enquanto desciam, a luz do dia foi dando lugarao brilho de lmpadas fluorescentes.

    O carro enfim se nivelou com um leve solavanco, e Michael pde olhar ao redor econstatar que estavam em uma garagem subterrnea com pelo menos uma dezena decarros encostados junto a uma parede. O motorista parou em uma vaga desocupada edesligou o motor.

    Chegamos anunciou o condutor, de forma um tanto redundante, na opinio deMichael.

    8

    Michael tinha duas opes: podia ser arrastado com o rosto junto ao cho ou irandando com as prprias pernas, sem resistir. Ele escolheu a segunda. Enquantocaminhava ao lado dos homens, seu corao parecia prestes a romper a caixa torcica

  • com suas batidas violentas e incessantes.Os quatro o conduziram por uma porta, um corredor e depois outra porta, que levava a

    uma espaosa sala de reunies. Pelo menos foi o que ele concluiu que era, com base namesa comprida de cerejeira, nas cadeiras forradas em couro e no balco de bebidas emum dos cantos. Ficou surpreso ao encontrar apenas uma pessoa sua espera: umamulher. Era alta, com cabelos escuros e compridos, e olhos grandes e exticos de certomodo, conseguia ser encantadora e assustadora ao mesmo tempo.

    Podem deixar que daqui eu assumo ela falou. Foram apenas algumas poucaspalavras ditas em voz baixa, mas que fizeram os quatro sair voando porta afora, como seestivessem morrendo de medo.

    Seus olhos penetrantes se concentraram no rosto de Michael. Meu nome Diane Weber, mas para voc sou a agente Weber. Por favor, sente-se.Ela apontou para a cadeira mais prxima de Michael, que precisou se esforar

    tremendamente para no obedecer de imediato. Obrigou-se a contar at cinco enquanto aencarava, tentando no desviar o olhar. S ento fez o que ela mandou.

    A agente se sentou a seu lado, cruzando as belas pernas compridas. Sinto muito por voc ter chegado aqui de forma to brusca. O que precisamos

    discutir um assunto urgente e absolutamente confidencial, e eu no queria perder tempocom... convites.

    Estou perdendo um dia de aula. Com certeza aceitaria o convite. Por algummotivo, ela o fazia se sentir vontade, o que o deixou irritado. Estava na cara que ela erado tipo manipuladora, algum que usava a beleza para amolecer o corao dos homens. E o que voc poderia querer comigo, alis?

    Ela abriu um sorriso, revelando dentes perfeitos. Voc um jogador, Michael. E com um excelente domnio do cdigo. Isso foi uma pergunta? No, foi uma afirmao. Estou respondendo ao seu questionamento. Sei mais coisas

    a seu respeito do que voc mesmo. Entendeu bem?Michael soltou uma tossidela. Ser que tinham descoberto que andava hackeando o

    cdigo? Estou aqui porque sou um jogador? perguntou, lutando para disfarar o tremor na

    voz. Porque gosto de mexer um pouco no cdigo do Sono? O que foi que eu fiz,baguncei sua casa? Roubei alguma coisa do seu restaurante virtual?

    Voc est aqui porque despertou o nosso interesse.Aquelas palavras o encheram de coragem. Olha s, no sei se a minha me aprovaria um namoro com uma mulher mais

  • velha. J tentou os pontos de encontro romnticos do Sono? Tenho certeza de que umagata como voc no teria problema em...

    O olhar furioso que se desenhou no rosto dela fez com que Michael se calasse e sedesculpasse logo em seguida.

    Eu trabalho no SSV ela revelou, retomando a calma e o controle. Estamosenfrentando srios problemas na VirtNet e precisamos de ajuda. Temos conhecimento deque voc sabe hackear, assim como seus amigos. Mas, se no parar de se comportarcomo um menino de dez anos, vou ser obrigada a recorrer a outra pessoa.

    Com apenas trs frases, ela fez com que Michael se sentisse um idiota completo. E,depois disso, o que ele mais queria era descobrir do que ela falava.

    Tudo bem, desculpa. que ser sequestrado no meio da rua abala os nervos dagente. De agora em diante, vou me comportar.

    Assim melhor. Ela fez uma pausa para descruzar e cruzar as pernas. Voudizer trs palavras para voc e, se repetir isso para algum sem a nossa permisso, namelhor das hipteses vai ser condenado priso perptua em um presdio que o pbliconem sabe que existe.

    A curiosidade tomou conta de Michael, mas aquele discurso fez um sinal de alerta seacender em sua mente.

    Ento vocs no vo me matar? Existem coisas piores que a morte, Michael ela falou, franzindo a testa.Ele a encarou, pensando seriamente em implorar que o deixasse ir sem dizer mais

    nada. No fim, porm, a curiosidade foi mais forte. Certo. No vou repetir o que ouvi... Pode falar.O lbio inferior dela tremeu ao proferir aquelas palavras, como se algo dentro dela se

    abalasse ao diz-las: Doutrina da Morte.

    9

    A sala inteira estava em silncio total e absoluto , e a agente Weber o encaravafixamente.

    Por que aquelas palavras justificariam a privao de sua liberdade? Tem alguma coisa aqui que eu no entendi? ele perguntou. Doutrina da Morte?

  • O que isso?A agente Weber se inclinou para a frente, a expresso ainda mais sria do que antes. Ao ouvir essas palavras, voc se comprometeu a se juntar a ns.Michael deu de ombros. Era a nica coisa que ele se sentia capaz de fazer naquele

    momento. Mas eu preciso ouvi-lo dizer isso ela falou. Preciso me certificar do seu

    comprometimento. E precisamos das suas habilidades na VirtNet.Motivado em parte por orgulho, Michael voltou a se preocupar com a prpria

    segurana. Quero saber do que se trata. melhor assim. Ela se recostou na cadeira, e a tenso no recinto pareceu

    crescer ainda mais. Doutrina da Morte. Neste momento sabemos muito pouco. algooculto dentro da VirtNet, fora dos crculos monitorados. Um arquivo ou algum tipo deprograma que pode causar srios danos no s VirtNet, mas ao mundo real tambm.

    Que promissor murmurou Michael, mas imediatamente se arrependeu. Por sorte,ela deixou seu comentrio passar. A verdade era que a existncia de um territrio secretona VirtNet era uma ideia empolgante. Ele queria saber onde ficava.

    Essa... doutrina tem o potencial de destruir a humanidade da maneira como aconhecemos. Me diga uma coisa, Michael, j ouviu falar de um jogador chamado Kaine?

    A meno a esse nome fez o corao de Michael disparar. A garota, Tanya. O rostodela ressurgiu em sua mente, assim como suas palavras, dizendo que estava sendoatormentada por Kaine. Michael se agarrou aos braos da cadeira e de repente teve aimpresso de estar no gradil da ponte outra vez. Qual era a relao entre uma coisa eoutra?

    J ouvi falar de Kaine ele respondeu. Vi uma garota se matar. E ela citou onome dele...

    Sim, ns sabemos revelou a agente Weber. Em parte, por isso que est aqui.Voc viu a que ponto as coisas esto chegando. Conseguimos associar o nome de Kaine aessa Doutrina da Morte, que por sua vez est relacionada a casos como esse que voctestemunhou. As pessoas ficam presas na VirtNet e esto sendo induzidas a decodificar oprprio Ncleo. o pior caso de ciberterrorismo que j tivemos.

    Por que estou aqui? Michael perguntou com a voz rouca, sentindo-seincomodamente inseguro. Como posso ajudar?

    Ela ficou em silncio por um instante. Encontramos jogadores em coma dentro de Caixes. Os exames de imagem

    revelaram danos neurolgicos, como se tivessem sido vtimas de algum experimento cruel.

  • Essas pessoas encontram-se em estado vegetativo. Ela fez outra pausa. Temosprovas do envolvimento de Kaine. E, de algum modo, tudo isso tem relao com o esseprograma da Doutrina da Morte, que est escondido dentro da VirtNet. Precisamosencontrar esse homem e tambm a tal Doutrina. Pode nos ajudar a fazer isso?

    A pergunta foi feita com a maior naturalidade do mundo, como se houvessemsolicitado que ele fosse ao mercado comprar leite e po. Michael sentiu vontade de fugir.Na verdade, desejou muito mais que isso naquele momento uma viagem no tempotambm seria uma tima opo , mas, sendo bem realista, tudo o que queria era seuquarto, sua cama e seu Caixo, distrair-se com algum jogo de esportes no nvel iniciante,comer batatas com gorgonzola da lanchonete do Dan, passar um tempo com Bryson eSarah, ver um filme, ler um livro, rever seus pais e nunca mais ouvir falar naquilo tudo.

    No entanto, uma palavra escapou de sua boca, e ele s se deu conta do que tinha ditodepois de responder:

    Posso.

  • III. UM LUGAR SOMBRIO

    1

    Assim que Michael fechou a boca, a agente Weber se levantou com tamanha pressa quequase derrubou a cadeira.

    Michael teve um sobressalto, surpreso com a reao dela. Era para eu dizer no?Mas ela no olhava para ele, e sim para a porta, com a mo na orelha, como se

    ouvisse algo atravs de algum dispositivo implantado l dentro. Tem alguma coisa errada ela informou. Vocs foram seguidos.Michael se levantou, abalado com o fato de a mulher ter passado de assustadora para

    assustada em uma frao de segundo. Seguidos? Por quem? questionou ele. Nem queira saber, Michael. Vamos l.Ela no esperou pela resposta dele. Sem dizer uma palavra, avanou para a porta.

    Michael foi atrs, e em pouco tempo estavam no corredor, cercados por homens armados,desta vez sem aqueles mscaras ridculas.

    Levem o garoto de volta para casa ordenou a agente Weber, recompondo-se. Esem serem vistos desta vez.

    Um homem e uma mulher tomaram a frente, pegaram Michael pelo brao ecomearam a conduzi-lo pelo corredor.

    Espera! ele gritou, esforando-se para entender o que acontecia. Espera a!Voc no me contou quase nada!

    O som de saltos altos contra o cho indicou a aproximao da agente Weber. Pode contar aos seus amigos o que lhe falei. Bryson e Sarah. E para ningum mais,

    entendeu? Se disser uma palavra que for a mais algum, mesmo que sejam seus pais,vamos ser obrigados a delet-los.

    Essa ltima parte fez a raiva brotar dentro dele. Delet-los? Preciso que vocs trs comecem a investigar, Michael ela falou, ignorando a

    pergunta. Sugiro que comecem pelas partes mais sombrias e sinistras da VirtNet.Conversem com as pessoas, saibam das fofocas. Preciso que encontrem o esconderijo deKaine. a nica maneira de descobrir a verdade sobre a Doutrina da Morte e como elepretende us-la. Faam o que for preciso. Vocs tm capacidade para isso, e vo serrastreados, para depois podermos ir at l, quando o esconderijo for descoberto. Se

  • ajudarem a solucionar esse problema, esto feitos: podem pedir o que quiserem. Existemoutras pessoas procurando tambm. Os primeiros a chegar sero recompensados.

    Ele abriu a boca para falar sem saber ao certo o qu , mas ela se virourapidamente e saiu andando.

    Vamos l disse um dos guardas.Saram puxando Michael na direo oposta.

    2

    No voltaram ao carro. Os guardas que no disseram uma palavra sequer paraMichael durante todo o tempo o conduziram por incontveis corredores at um prdioabandonado perto de uma estao de metr, onde o deixaram. As pessoas circulavam comtranquilidade, o sol brilhava por entre as nuvens e um saco plstico flutuava pelo ar,carregado pelo vento. O mundo continuava a ser o mesmo de antes, mas sua vida haviamudado para sempre.

    Ir escola era a ltima coisa que passava por sua cabea naquele momento. Confusoe assustado, Michael caminhou at uma cafeteria e pediu a maior dose de cafenadisponvel. Em seguida, pegou o metr para casa. A primeira coisa que fez ao chegar foimarcar um encontro para o dia seguinte com Bryson e Sarah. Forneceu apenas asinformaes necessrias para despertar o interesse deles Michael sabia que, casofalasse demais, os outros dois no conseguiriam nem dormir, e tinha a sensao de queprecisariam estar bem descansados para o que estava por vir.

    3

    Michael fez a besteira de ver o NewsBops naquela noite.Ele estava sozinho, bem acomodado na Poltrona. Seus pais no estavam em casa, e

    no conseguia lembrar quando voltariam. Helga geralmente ia se deitar logo ao anoitecer.Ele abriu a NetScreen com o EarCuff para ver as notcias do dia. Assassinatos, bancosfalidos, desastres naturais. Exatamente o tipo de coisa que preciso ver antes de dormir,

  • pensou, desolado. Em geral, esse tipo de acontecimento parecia estar sempre distante;eram coisas que s aconteciam com os outros. Mas, por alguma razo, depois da conversacom a agente Weber, o perigo parecia mais prximo do que nunca.

    Estava prestes a desligar o noticirio quando uma matria chamou sua ateno. Umareprter falava sobre a ltima novidade na VirtNet: um ciberterrorista conhecido comoKaine.

    Com um movimento de dedo, Michael aumentou o volume e se inclinou para a frente,concentrado no que ela dizia como se fosse a coisa mais importante de sua vida.

    ...a causa de vrios suicdios, de acordo com testemunhas e mensagens enviadaspelas vtimas antes de morrer a mulher dizia. Kaine se tornou conhecido ao seinfiltrar em quase todos os jogos mais populares e espaos de relacionamento pessoal naVirtNet, isso sem contar os inmeros relatos de assdio individual. Desde odesaparecimento do lendrio Gunner Skale, um nico indivduo no causava tantoburburinho na VirtNet. O objetivo de Kaine, ningum sabe qual . O SSV afirmou em notaoficial que est empregando todos os meios possveis para localizar esse homem ebloquear seu acesso em carter permanente.

    Ela continuou falando, e Michael continuou a ouvir, em parte fascinado, em partehorrorizado. Sequestros reais que terminavam em tortura e crcere privado de pessoasincapazes de fazer a Emerso para a Viglia. Redes sociais e jogos inteiros sendodesativados ou apagados, e em seu lugar apenas uma linha de cdigo dizendo: Kaineesteve aqui. Jogadores com morte cerebral encontrados dentro das NerveBoxes.

    Michael j tinha ouvido o bastante sobre as atrocidades cometidas por Kaine. Qualseria o objetivo daquele sujeito? Estaria fazendo tudo isso s por diverso?

    Kaine.Doutrina da Morte.Gente presa no Sono. Jogadores com morte cerebral. Pessoas se matando para escapar

    do sujeito.Michael suspirou. Que pensamentos mais felizes esses...Depois disso, arrastou-se para dormir. Por algum motivo, sonhou com os pais em uma

    viagem de frias praia, que haviam feito juntos muitos anos antes.

    4

  • Para a sorte de Michael, o dia seguinte era sbado. Helga fez waffles caprichados, quecobriu com um monte de coisas calricas manteiga, chantili e geleia, com algumasframboesas por cima, para amenizar. Nenhum dos dois disse nada, e Michael se perguntouse ela tambm teria assistido ao NewsBops. As coisas andavam bem deprimentes. Pelomenos ele se encontraria com os amigos mais tarde.

    Poucas horas depois, o corpo fsico de Michael estava dentro do Caixo, liberando ocorpo virtual para se sentar em um banco em um canto afastado do Central Park, emNova York outro de seus pontos de encontro favoritos. A segunda melhor coisa depoisda comida virtual era se ver cercado pela natureza, uma viso rarssima na selva poludade concreto que ele chamava de lar.

    Bryson e Sarah j o aguardavam com impacincia quando ele chegou. melhor voc ter uma coisa muito interessante para falar Bryson foi logo

    dizendo. De cair o queixo mesmo. Por que todo esse mistrio, alis? acrescentou Sarah.Michael no estava mais to assustado, e sim empolgado para contar de uma vez tudo

    o que havia acontecido desde que fora capturado no beco. Com medo de que algumpudesse ouvir, comeou o relato aos sussurros, mas pouco depois revelava todos osdetalhes com tamanha rapidez, que mal conseguia manter certa coerncia.

    Sarah e Bryson se limitaram a encar-lo, perplexos. H? Acho melhor comear tudo de novo sugeriu Bryson.Sarah assentiu com a cabea. Desde o incio. E falando como uma pessoa normal. Ah, t bom. Michael respirou fundo, inalando uma boa quantidade de ar fresco,

    apesar de falso, e recomeou. Ento, eu estava indo para o metr ontem quando umcarro apareceu e quase me atropelou. A uns psicopatas com mscaras de esqui meagarraram e me jogaram no banco de trs.

    Bryson o interrompeu: Espera a. Michael, voc comeu alguma coisa estragada hoje de manh?Michael revirou os olhos. No... me escutem.O fato de os outros dois duvidarem era compreensvel, mas comeava a ficar

    frustrado por no conseguir contar sua histria.Michael respirou fundo mais uma vez e prosseguiu. Quando chegou parte em que a

    agente Weber lhe contou que havia sido seguido e mandara os guardas o tirarem de l,dava para ver que os amigos j estavam levando tudo bem a srio. Ele concluiu relatando

  • as coisas horrveis que tinha visto no NewsBops, sendo que a maior parte delas os outrosdois tambm j haviam escutado.

    Ficaram sentados em silncio por pelo menos um minuto, olhando com desconfianapara as rvores e os arbustos ao redor em busca de algum que os espionasse.

    Quem quebrou o silncio foi Bryson: Uau. Mas por que eles pediriam a ajuda de um bando de adolescentes pra resolver

    os problemas deles? Tambm me perguntei isso disse Michael. A agente Weber falou que tem

    outras pessoas nessa busca tambm. Vai ver eles esto procurando os melhores jogadorese programadores para tentar encontrar o esconderijo que Kaine criou. Ela sabia que a gentecostuma hackear e mexer no cdigo. Juro pra voc, a coisa no foi brincadeira.

    Mas o que a gente pode fazer que o pessoal do SSV j no tenha feito? questionou Sarah. Esse o trabalho deles, e meio assustador que precisem recorrer asimples adolescentes.

    Os velhotes sempre souberam que a nossa gerao quem manda por aqui ironizou Bryson. Tipo, estamos por aqui o tempo todo. Ningum conhece este lugar tobem quanto ns, porque esse no o nosso trabalho, nossa diverso.

    E a coisa deve envolver muito mais que habilidades de programao acrescentouMichael, satisfeito por Bryson estar levando a questo a srio. Eles precisam deusurios, no de desenvolvedores. Quem pode ser melhor que a gente nesse quesito?

    Tem certeza de que isso mesmo? perguntou Sarah. Ou voc s estquerendo um pretexto para entrar nesse jogo?

    Vai me dizer que no est interessada? rebateu Michael. , estou sim ela concordou, sorrindo e dando de ombros. E essa parte de estarmos feitos se encontrarmos o esconderijo? questionou

    Bryson. Isso precisa valer para ns trs, no s para voc. Claro concordou Michael, apesar de no ter nenhuma informao mais especfica

    a esse respeito. Ficaremos ricos, trabalharemos para o SSV, sei l. Mas no podemosfalar sobre isso com ningum.

    Por alguma razo, no foi capaz de transmitir as ameaas veladas da agente Weber.Mas talvez aquilo no se aplicasse aos amigos.

    Sou obrigada a admitir que parece divertido... seria um desafio interessante comentou Sarah.

    Michael concordou. Era um jogo que deixara de ser apenas mais um jogo para setransformar em algo mais importante. Nesse momento, ficou to empolgado com a ideiaque quase se levantou para dar incio investigao imediatamente.

  • Bryson deve ter lido a expresso em seu rosto. Espera a, amigo. A gente precisa ter certeza do que est fazendo antes de entrar

    nessa. Eu sei respondeu Michael. E tenho certeza ele acrescentou com toda a

    sinceridade.Foi quando alguma coisa aconteceu. Algo pareceu mudar no ambiente ao redor,

    deixando Michael apavorado. Tudo no parque comeou a se mover em cmera lenta, comouma mosca recm-cada num pote de mel.

    A mo de Sarah se movia para ajeitar os cabelos atrs da orelha. A boca de Bryson securvava em um sorriso, a expresso maliciosa que fazia quando concordava com o queestava sendo proposto. Um pssaro passou voando, e Michael conseguiu ver suas asassubirem, depois descerem. O ar ficou mais pesado, carregado de umidade.

    Em seguida, tudo desapareceu em um flash de luz, logo substitudo por estrelasrodopiantes e uma risada enlouquecida.

    5

    O corpo de Michael j tinha sido submetido a todas as formas de movimentaoimaginveis dentro da VirtNet, e o Caixo sempre dera um jeito de fazer tudo parecer omais real possvel. Montanhas-russas, saltos de paraquedas, foguetes atravessando ouniverso na velocidade da luz, incontveis quedas. O que quer que estivesse acontecendonaquele momento, porm, parecia prestes a desfazer seu corpo em centenas de pedaos.Seu estmago revirou, e o crebro foi bombardeado por diferentes tipos de dor. Enquantoisso, as estrelas ao redor no paravam de girar, e ele no conseguia sequer determinar seseus olhos estavam abertos ou fechados. Perdeu totalmente a noo de onde estava, e porum instante temeu que o Caixo no fosse capaz de suportar tanto estmulo.

    De um instante para o outro, aquela loucura toda cessou. As entranhas reviradas deMichael sucumbiram nsia de vmito, mas ele no conseguiu expelir nada. Aos poucos,foi recuperando o flego e olhou ao redor. Nada se movimentava, a no ser por algumasluzes piscando distncia.

    Havia dois corpos a seu lado. Mal podia distingui-los eram pouco mais que vultos ,mas sabia que se tratava de Bryson e Sarah. S podia ser os dois.

    As luzes comearam a girar e depois a se juntar, ganhando velocidade a cada segundo

  • e formando diante deles uma bola cada vez maior e mais luminosa, a ponto de Michaelno conseguir olhar mais. Ela girava como um corpo celeste, emanando um brilho radiante.

    Michael e seus amigos silenciosos, imveis, perplexos se limitaram a esperar.Michael tentou falar, mas no conseguiu. Tentou se mexer, mas estava paralisado. Omedo tomou conta de seu corpo por inteiro. Foi quando uma voz surgiu em meio bola deluz ofuscante, reverberando a cada palavra. Era absurdamente assustadora.

    Meu nome Kaine falou a voz. E eu vejo tudo.

    6

    O que quer que estivesse mantendo Michael paralisado no parecia disposto a libert-lo.

    A voz sinistra continuou: Vocs pensam que eu no sei das tentativas do SSV para me deter? Acham mesmo

    que eu deixaria acontecer alguma coisa dentro da VirtNet que no fosse do meu interesse?Este o meu domnio agora, e apenas os mais ousados, mais fortes e mais inteligentestero a chance de me servir. O SSV e jogadores como vocs logo vo ser relegados insignificncia.

    Michael fez fora para se livrar da fora que o dominava. Vocs no fazem ideia da extenso do meu poder afirmou a voz de Kaine.

    Fao um alerta a todos os que tentam me deter. o ltimo aviso que vo receber. Avoz fez uma pausa. Vejam o que espera por vocs se ignorarem minhas palavras.

    A bola de luz em rotao se esvaiu, substituda por um retngulo imenso que pareciauma das telas em que as pessoas viam filmes dcadas antes. As imagens projetadasforam ficando cada vez maiores, at preencherem quase todo o campo de viso deMichael.

    Era como uma incurso mente de um luntico: uma cidade em runas, desprovida decor, com pessoas se arrastando nas sarjetas.

    Havia vrios homens apalermados em uma sala esfumaada, aparentemente esperandopara serem queimados em vida, enquanto as chamas consumiam a madeira de uma porta.

    Uma velha em uma cadeira de balano lentamente erguendo uma arma.Dois adolescentes aos risos empurrando criancinhas de um desfiladeiro e observando a

    queda delas.

  • Um hospital repleto de doentes debilitados com a porta trancada por fora. Vriossujeitos jogando gasolina nos muros, e um deles acendendo um isqueiro.

    O desfile de cenas terrveis continuava, uma aps a outra, cada vez mais inenarrvel.O corpo de Michael tremia com o esforo para se libertar.

    A voz de Kaine voltou a ser ouvida, vinda de todas as direes ao mesmo tempo: Vocs no sabem quase nada sobre o que est acontecendo de verdade. So

    literalmente crianas nesse sentido. Tudo isso e muito mais est espera da sua mentecaso resolvam continuar.

    E ento tudo chegou ao fim, dissipou-se, e Michael se viu de volta no Caixo. Suagarganta doa, e ele notou que devia estar gritando h um bom tempo.

  • IV. SEM ESCOLHA

    1

    Se Michael j achava que o suicdio de Tanya havia sido uma experincia aterrorizante,desta vez mal conseguiu se arrastar para fora do Caixo. Nem se preocupou em vestir acueca. Trmulo e suado, foi cambaleando para cama. Uma parte de sua conscincia aindase agarrava verso de Kaine de um cinema a cu aberto, presa aos horrores previstosem seu futuro. Ou melhor, o futuro de sua mente, o que quer que isso significasse.

    Sua pele se arrepiou toda. Depois de uma vida inteira em busca de experincias cadavez mais intensas, as ltimas duas incurses pela VirtNet o fizeram sentir saudade dotempo em que tudo por ali era s diverso. No queria mais saber do que o SSV oferecia,nem de suas ameaas. Ver algum arrancar o prprio Ncleo e sentir na carne a ameaado castigo de Kaine haviam feito Michael se decidir de vez. E se aquele sujeitoconseguisse chegar at ele na Viglia tambm? Michael nunca havia se sentido toimpotente e indefeso, dentro ou fora da VirtNet.

    Ele sabia que no estava altura do desafio proposto pelo SSV. Atirar em aliengenas,salvar princesas, lidar com os dramas dirios do Lifeblood e fazer a Emerso em casaantes de fazer as tarefas da escola para ele estava bom alm disso, Bryson e Sarahestariam sempre no Sono para lhe fazer companhia. No fim, o ideal seria voltar para suavida normal e tediosa de sempre. Jamais desejaria voltar a cruzar o caminho de Kaine.

    Com essa crena firmemente enraizada na cabea, Michael enfim conseguiu pegar nosono.

    2

    Na manh seguinte, um domingo entediante e preguioso, para combinar com o mauhumor de Michael, Helga informou que ele teria que comer cereais no caf da manh,alegando que estava com dor de cabea. Sua vontade foi dizer que ela no sabia o que erauma dor de cabea de verdade. Sentiu-se tentado a contar os detalhes sobre seu encontrocom Kaine no dia anterior, perguntar se ela achava que esse tipo de experincia noparecia um pouquinho pior que encarar horas de vassouras, espanadores e cestos deroupas sujas.

  • Mas ele gostava demais de Helga para fazer isso, e sentiu vergonha at mesmo de tertido aqueles pensamentos.

    Portanto, ao contrrio do que havia pensado, disse que lamentava pelo mal-estar dela ecomeu trs tigelas de cereal no balco da cozinha. Em seguida, tomou um banho bemquente e demorado. No fim, acabou se sentindo um pouco melhor. A lembrana doencontro com o ciberterrorista comeou a se esvair, quase como se tivesse sido umpesadelo desagradvel.

    O restante do dia foi gasto em uma tentativa de esquecer aquilo tudo. Correu algunsquilmetros, tirou um cochilo e fez um almoo perfeito: sanduches, batatas fritas epicles. S depois foi se sentar na Poltrona para a inevitvel conversa com Bryson e Sarahsobre o showzinho particular de Kaine. Quando acionou o EarCuff e a tela surgiu diantedele, havia mensagens dos dois em seu Boletim Eletrnico.

    Ao que parecia, estavam todos de acordo. Jogar era uma coisa, j lidar com umpsicopata que aterrorizava as pessoas e no podia ser detido nem por uma organizaopoderosa como o SSV... Bom, na opinio de Michael isso era outra histria. Seus amigosconcordavam que a proposta era boa, mas seriam obrigados a recusar. Kaine era perigosodemais, e as ameaas dele faziam o SSV parecer coisa de criana. O nvel deprogramao envolvido naquela sua armadilha era inimaginvel.

    Quando pensou em comunicar o SSV a respeito da deciso dos trs, Michael achoumelhor no fazer isso. Preferia nem ter mais contato com aquele pessoal. Sua esperanaera de que tudo no houvesse passado de um blefe. Deviam ter oferecido o desafio paravrios jogadores, na expectativa de que alguns levassem a tarefa a cabo. Michael, porm,no estava disposto a tirar a questo a limpo sentia-se um pouco receoso de entrar denovo no Sono, mas concluiu que Kaine os deixaria em paz caso respeitassem seu aviso.

    Michael e os amigos terminaram a conversa dizendo que se encontrariam mais tardeno Lifeblood, para jogar um pouco e enterrar definitivamente aquele assunto.

    No entanto, as coisas no saram como o planejado. Quando foi conectar seu Caixonaquela tarde, em vez de fazer a Submerso na VirtNet, tudo o que encontrou foi um avisoem letras garrafais:

    ACESSO NEGADO PELO SSV

    3

  • Seu acesso tinha sido bloqueado.Michael saiu do Caixo e foi correndo at a Poltrona acionar o EarCuff. No funcionou.

    Foi at o sof se sentar diante da WallScreen, acionando os controles da TV. Nada. Davapara ouvir Helga andar pelo apartamento e bufar, tentando telefonar, mas o celulartambm no funcionava. Michael voltou para a Poltrona e tentou hackear o acesso NetScreen por mais de uma hora, sem sucesso.

    Estava totalmente desconectado.Tudo o que podia fazer era deitar na cama e ficar olhando para o teto, sentindo-se

    mais agoniado a cada minuto. Como aquilo tudo havia acontecido? Em questo de um diaou dois, tinha cado nas garras do SSV e sido ameaado por um louco. Sentiu saudade dotempo em que a escola e uma dor de estmago ocasional eram suas nicas queixas navida.

    No entanto, qualquer um que observasse seu semblante nos cinco minutos seguintesseria capaz de notar uma mudana de resoluo. Sim, tinha visto as piores coisas queseus olhos reais ou virtuais j haviam testemunhado, e aquele seria seu futuro casocolaborasse com o SSV. No havia dvida de que a VirtNet poderia ser programada daquelamaneira. Kaine tinha razo: quando se possua o poder de fazer uma pessoa ver ouexperimentar qualquer coisa, com certeza haveria situaes piores que a morte. E essepoo sem fundo tinha sido aberto bem diante dos olhos de Michael.

    Por outro lado, seu acesso havia sido bloqueado, e de jeito nenhum ele poderia convivercom isso.

    Mais do que qualquer coisa, eram as palavras da agente Weber que o atormentavamnaquele momento. Ela havia ameaado sua famlia tambm, e o bloqueio de acesso era so incio das retaliaes ainda piores que estavam por vir. Michael precisava reconsiderar.Talvez tivesse desistido depressa demais.

    Saiu da cama decidido a parar de ter pena de si mesmo. O SSV certamente lhe dariauma segunda chance afinal, tivera contato direto com o perigo que os ameaava. Ohorror despertado por Kaine se atenuou um pouco. O lado mais calmo e racional deMichael comeou a ponderar que no se tratava de algo muito diferente de nenhuma outraexperincia que havia vivenciado na VirtNet. Nada daquilo era real. Tomando as devidasprecaues, seria capaz de encarar a parada. Em todos os seus anos de VirtNet, nuncatinha conhecido ningum que o superasse em termos de hackear e manipular o cdigo, ouque houvesse se aproximado com tanta rapidez do nvel Lifeblood Deep. Kaine era bom,mas no fim das contas era s mais um jogador.

    Michael estava pronto para o desafio, e um tanto envergonhado por ter se acovardado.

  • Como podia ignorar ameaas contra a prpria famlia?A sra. Perkins, a vizinha do lado, quase teve um ataque cardaco quando Michael bateu

    com fora em sua porta. Ela atendeu com os olhos arregalados, a mo no peito e o rostocoberto por algum tipo de creme melequento.

    voc, Michael ela falou, revirando os olhos de alvio. Por tudo o que maissagrado. O que aconteceu? Quase tive...

    Um ataque cardaco, eu sei. Ento... queria pedir um favor.Ela ps as mos na cintura. Bom, nesse caso deveria ser um pouquinho mais educado.Michael adorava a sra. Perkins. De verdade. Era a velhinha mais legal do mundo, e

    cheirava a talco de nen e gel mentolado. Mas naquele momento o que ele mais queria eraque ela sasse da sua frente para poder usar seu telefone.

    Fazendo um esforo para se acalmar, ele falou: Desculpa. S fiz isso porque um assunto urgente. Desculpas aceitas. Em que posso ajudar?Por alguma razo, ele abriu um sorriso. Poderia ligar para o SSV? E dizer que seu vizinho Michael mudou de ideia? Pode falar

    que vou descobrir o que eles querem.

    4

    Seu acesso foi imediatamente restabelecido. Pelas mensagens que recebeu, descobriuque Bryson e Sarah tinham passado pela mesma coisa e tambm logo entenderam aseriedade da situao.

    As aulas de segunda-feira foram uma experincia angustiante para Michael, mas nofim da tarde ele se reconectou com os amigos e, juntos, decidiram dar incio sinvestigaes no dia seguinte.

    Sabiam que precisavam ser mais cautelosos desta vez, valendo-se como nunca dacapacidade de hackear e manipular o cdigo. Havia uma razo para o SSV ter escolhidoeles trs, Michael ponderou, e encarou isso como um reconhecimento de seu potencial.

    Vamos conseguir, disse a si mesmo. E continuou repetindo essas palavras por um bomtempo.

  • V. O VELHO

    1

    Enquanto vocs estavam de bobeira disse Bryson , eu estava programando umRastreador para a Aura do Kaine. Da prxima vez que ele chegar perto, vamos saber.

    Michael estava sentado com ele e Sarah em uma casa de rvore na periferia dasperiferias do Lifeblood, um lugar que codificaram ou construram em segredo. Era umpequeno bosque de que, Michael tinha certeza, nem mesmo os programadores do jogotinham conhecimento.

    Voc j compartilhou o Rastreador com a gente? perguntou Sarah, a mais sria ecompenetrada dos trs.

    J. Legal. E acho que, se a gente usar meu programa de Esconde-Esconde e o de Capa

    e Espada do Michael, vai dar para evitar essa cobra venenosa por um tempo. Ou pelo menos ficar um passo frente dele acrescentou Michael. Ele e Sarah

    tinham trabalhado juntos naqueles programas de mascaramento, que j haviam sido muitoteis em mais de uma ocasio.

    Ficaram em silncio por um tempo, os olhos fechados, se concentrando em acessar osdados brutos do mundo ao redor. Michael abriu algumas telas e se conectou com osamigos. Eles compartilharam cdigos e instalaram programas para se certificar de queestava tudo funcionando em segurana. No era nem preciso dizer que deveriam ter sidomais espertos da primeira vez, mas naquela ocasio tudo parecia ter o aspecto de umabrincadeira inofensiva. Isso, Michael pensou consigo mesmo, tinha sido um erro deavaliao dos mais idiotas.

    Quando terminaram, ele abriu os olhos e os esfregou, pois a viso sempre ficavaembaada depois de acessar os cdigos. Michael ficou de joelhos e olhou pela janelalateral, que dava para uma das reas mais movimentadas do Lifeblood. quela distncia,tudo parecia meio enevoado, porque a programao no era to bem-feita, mas Michaelgostava de ver mesmo assim. A casa na rvore que eles mesmos programaram eraaconchegante e muito bem escondida, transmitindo uma sensao de segurana e bem-estar. S faltavam as meias de tric e o gorrinho de dormir para que se sentisse na casada vov, Michael pensou com um sorriso envergonhado. No entanto, ainda havia umasensao de medo entre eles por causa do que estavam prestes a enfrentar. Que no erapouco.

    E ento? questionou Bryson. O que ele queria saber era bem bvio.

  • O pessoal da antiga respondeu Sarah. por eles que precisamos comear.Michael deixou de lado a insegurana e permitiu que seu lado aventureiro falasse mais

    alto. Com certeza ele disse, virando-se para se sentar. Se os velhotes do bairro

    comercial da Cidade Velha no souberem de alguma coisa, ningum mais sabe. Comalguns crditos para usar no Cassino, eles devem abrir o bico.

    Sarah concordou, balanando a cabea, mas seus olhos estavam cravados na mesmajanela atravs da qual Michael olhava pouco tempo antes. Ela nunca encarava diretamenteas pessoas quando estava absorta em seus pensamentos.

    Estou tentando lembrar o nome daquele barbeiro. Ele deve ter uns mil anos. Conheo essa criatura pr-histrica disse Bryson. A gente recorria a ele

    quando precisava de senhas para a misso Pluto. O cara bem que podia comprar umprograma de bala de menta. Eu precisava respirar pela boca quando falava com ele; eraum bafo terrvel.

    Michael deu risada. Se todos os jogadores do pedao resolvessem bater na sua porta em busca de

    conselhos, voc tambm no ia querer facilitar a vida deles. O nome do sujeito Cutter,alis.

    pra l que ns vamos anunciou Sarah. Podem tapar o nariz.

    2

    A Cidade Velha era o lugar mais movimentado da VirtNet, a Nova York do mundosimulado, e o bairro comercial estava sempre apinhado de gente. A princpio, Michael ficoutemeroso de fazer as coisas to s claras, mas, quando chegou l, percebeu que em umlocal como aquele seria mais fcil se esconder dos olhares indiscretos. Principalmentecom os programas de Invisibilidade somando foras e operando a pleno vapor.

    Havia dois shoppings com milhares de lojas, fliperamas, restaurantes, cabines deupload, bares e todo e qualquer estabelecimento imaginvel nos dois cantos de uma praaque se estendia por quilmetros a fio, com fontes incrveis, bonecos inflveis e atmontanhas-russas. Michael era um grande f daquele lugar, assim como todo mundo. Eraum local projetado para duas coisas: proporcionar bons momentos e consumir todas aseconomias das pessoas. Em geral, as coisas no Sono custavam o mesmo que na Viglia,

  • mas as opes eram muito mais numerosas. Principalmente para quem sabia manipular ocdigo.

    Sarah teve que puxar Bryson pela orelha umas cinco vezes enquanto caminhavam parao beco estreito e comprido ao qual desejavam chegar. A ruela comeava na praa e levavaa um lugar conhecido como Cidade Sombria, onde ficavam os estabelecimentos menosconvencionais, como os estdios de tatuagem virtuais e as lojas de penhor. Para Michael,andar por ali era como voltar cem anos no passado. Ele viu at um cavalo circulando pelarua.

    A barbearia dele fica logo ali Sarah apontou.Ningum tinha dito muita coisa desde que haviam sado da praa, e Michael sabia

    muito bem por qu. Era um local menos movimentado, o que significava que os trs setornavam um alvo mais visvel. Michael confiava no Rastreador de Bryson, para o caso deKaine conseguir burlar os programas de Invisibilidade. Se isso acontecesse, poderiam ir aum Portal e fazer a Emerso para a Viglia antes de serem jogados no buraco negro.

    O estabelecimento de Cutter tinha o adequadssimo nome de Barbearia do Velho. Noera preciso ser nenhum gnio para saber que em um mundo simulado as pessoas noprecisavam cortar o cabelo, mas no era assim que os jogadores pensavam. Quanto maiselementos de realidades disponveis, tanto melhor. Oitenta por cento dos usurios do Sonotinham optado por deixar os cabelos crescerem. Se a pessoa soubesse manipular o cdigoe quisesse um rabo de cavalo, algumas linhas de programao resolviam a questo em uminstante.

    Como que a gente faz? perguntou Bryson quando pararam a alguns metros daporta. s entrar e comear a fazer um monte de perguntas para o sujeito?

    Michael deu de ombros. Ele deve ser do tipo que no d ponto sem n. Se a gente oferecer uma inscrio

    para o prximo torneio de pquer, aposto que ele vai falar at cansar. E a cabea de quem ele vai depenar?Sarah ps a mo nos cabelos em um gesto protetor. A minha que no. E duvido que ele corte cabelo de menina, alis. Faz o seu cabelo crescer a Michael pediu a Bryson. No temos tempo a

    perder.

    3

  • Fazia mais de um ano que Michael no procurava Cutter atrs de informaes porexemplo, como trapacear em um jogo de luta , por isso tinha se esquecido de como osujeito era esquisito. Se algum um dia pensou em criar uma Aura na VirtNet com aaparncia exata de um troll de livro infantil, esse algum era ele. Michael e seus amigosesperaram pacientemente at a vez de Bryson cortar o cabelo.

    J os cabelos de Cutter no passavam de um tufo grisalho e cheio de falhas, penteadocom a inteno de tentar esconder o couro cabeludo todo vermelho. Havia mais fios saindodas orelhas do que no alto da cabea. Ele era um sujeito baixo e curvado, e a cada palavraque dizia Michael temia que casse morto, sucumbindo ao esforo e idade.Surpreendentemente, a maior parte das pessoas preferia espelhar sua aparncia real naVirtNet, o que j dava uma boa pista de como era Cutter na Viglia. Uma companhia dasmais agradveis, com certeza.

    Por que esto a me olhando feito urubus em cima da carnia?Seus dedos eram geis at demais para um homem daquela idade, e era evidente que

    no estava acostumado a ser observado com tanta ateno. Porque no estamos aqui s para doar mais cabelos para o seu cho respondeu

    Sarah, com o tom mais firme que Michael j a tinha ouvido usar. Ah, mesmo? ele questionou, a voz rouca. Michael imaginou que devia haver

    mais pigarro naquela garganta do que no nariz catarrento de uma criancinha com sinusite. Ora, pois ento v falando, mocinha.

    Sarah olhou para Michael. Aquela era sua deixa. Ele se inclinou para a frente emurmurou:

    Viemos atrs de informaes sobre um jogador chamado Kaine. Dizem por a queele est aprontando poucas e boas. Ele fez uma pausa e se perguntou se no deveriater sido mais respeitoso. H... por favor, senhor.

    No precisa vir com esse papinho educado pra cima de mim respondeu Cutter.Michael sentiu seu hlito desta vez e teve que recuar para no passar mal.

    Ele meio que esperava que Cutter continuasse falando, que contasse tudo o que sabia,mas o velho se calou. O ritmo das tesouradas no diminuiu nem um pouco, e o corte deBryson estava ficando muito bom.

    Sarah resolveu entrar na conversa. Qual ? A gente sabe que todo boato que rola no Sono mais cedo ou mais tarde

    acaba sendo comentado aqui. Conta pra gente o que sabe sobre Kaine, e onde estoescondidos os segredos dele.

    Ou ento diz onde a gente pode se informar melhor acrescentou Bryson.

  • Cutter soltou uma gargalhada. Se so to espertos assim, devem saber como conseguir as informaes por aqui.

    S o que me ofereceram at agora foi uma dor de cabea e um punhado de cabelosvirtuais no meu cho.

    Por algum motivo, Michael achou graa na ltima frase e caiu na risada sem se darconta.

    Cutter lanou a ele um olhar enviesado. Pode rir o quanto quiser. No sou eu que estou precisando de favores. At onde sei,

    voc.Sarah encarou Michael com uma expresso de reprovao, algo de que s as meninas

    eram capazes. Desculpa. Srio mesmo. Estamos sem saber como agir. Nunca fizemos isso antes.Michael reprovou mentalmente esse ltimo comentrio; o sujeito podia ser velho, mas

    com certeza se lembrava deles. Resolveu intervir para minimizar o impacto da mentira. Podemos oferecer algo em troca da informao. Como uma inscrio no torneio de

    pquer do Cassino no fim de semana.S lhe restava torcer para que os pais no percebessem o desfalque na conta bancria.Cutter o encarou com firmeza. Algo nos olhos do velho dizia que ele havia se

    convencido. E mais as bebidas disse o velho. Quantas e do tipo que eu quiser. Tudo bem respondeu Michael. Agora fala. Vocs podem no gostar do que tenho a dizer, mas o que eu sei. E confiem em

    mim: o que vou contar vai pr vocs na pista certa para descobrir o que esto querendo. Muito bem respondeu Sarah. Estamos ouvindo.Cutter havia acabado de cortar o cabelo de Bryson, mas Michael nem percebeu.

    Limpou a capa que o amigo usava e a removeu. Bryson agradeceu e se levantou para sejuntar aos outros, aparentemente to ansioso quanto Michael para saber o que o barbeirotinha para contar.

    J ouvi muitos boatos neste lugar ao longo dos anos comeou o velho. Masvocs esto pedindo informaes sobre a coisa mais assustadora que j escutei em oitodcadas de vida.

    Isso s serviu para deixar Michael ainda mais ansioso. E...? Tem muita histria sobre esse tal de Kaine, com certeza. Ele anda aprontando feio.

    Sequestros, lobotomias... Dizem que ele tem um esconderijo. No sei como nem onde

  • fica. S sei que coisa grande. Isso ns j sabemos respondeu Sarah. Como podemos encontrar esse cara ou

    esse lugar? Por onde comeamos?A boca de Cutter se curvou em uma expresso que devia ser um sorriso, mas Michael

    no tinha muita certeza. No fim, parecia mais uma careta. bom que essa noitada de pquer seja de primeira, molecada, porque eu posso

    contar nos dedos as pessoas para quem disse isso que vou falar agora. E saibam que perdium dos dedos do p por causa de um co raivoso em Des Moines.

    Pra onde devemos ir? interrompeu Michael, impaciente.Cutter se inclinou para a frente, espalhando seu hlito ftido no ar antes de falar. Vocs precisam ir at o clube noturno Black and Blue e procurar Ronika. Essa bruxa

    velha a nica pessoa capaz de dizer onde encontrar... ... o qu? os trs perguntaram em unssono. Aquilo que vai levar vocs at Kaine Cutter abriu seu misterioso sorriso-careta

    outra vez antes de responder em um sussurro: O Caminho.Michael franziu a testa. Eram duas palavras mais que comuns, mas que fizeram suas

    entranhas gelarem pela maneira como foram pronunciadas pelo homem.

  • VI. ATRAVESSANDO O CHO

    1

    Michael j tinha ouvido falar nesse clube. Todo mundo na VirtNet conhecia o Black andBlue. No entanto, ele no sabia de ningum que j houvesse entrado l, porque eraimpossvel a no ser que voc fosse podre de rico, uma celebridade ou um figuro docrime. Ou ento um poltico, o que englobava as trs condies anteriores.

    Michael e seus amigos no eram nada disso e, para piorar, ainda eram adolescentes.Suas habilidades na manipulao do cdigo eram suficientes para faz-los parecer maisvelhos, e eles conseguiam fabricar identidades falsas com a mesma velocidade com queHelga fazia seus waffles, mas ningum era louco o bastante para tentar fazer isso noBlack and Blue. O pessoal do clube no era do tipo que se deixava enganar.

    Michael, Bryson e Sarah estavam do outro lado da rua, observando as pessoas paradasna fila. Michael reparou que as joias e as roupas de marca de certas pessoas ali custavammais que um ano de salrio para muita gente. O Lifeblood era o nico lugar na VirtNet emque as pessoas no podiam se vestir como quisessem. Para ser chique por l, assim comono mundo real, era preciso poder pagar por isso, ou ento ter o domnio de artimanhascomo flertes, golpes e afins. Caso contrrio, s sabendo hackear e manipular o cdigo commaestria.

    E a, qual o plano? perguntou Bryson. No consigo entrar nem nos baresmais rals, o que dizer do Black and Blue.

    Michael tentava desesperadamente encontrar uma soluo. Essa Ronika no deve ficar aqui 24 horas por dia. E se a gente esperasse at ela

    sair e depois fosse atrs dela?Sarah reagiu sugesto com uma espcie de grunhido. Seguir as pessoas por a seria bem esquisito... Isso sem contar que nem sabemos

    como ela . Alm disso, no estamos no mundo real. Esse pode ser o nico lugar que elafrequenta no Sono... Ela pode fazer a Submerso e a Emerso em um Portal l dentromesmo. Principalmente se for to famosa quanto Cutter insinuou. E duvido de que ela sejauma Tangente. Esses figures em geral so humanos.

    Bryson soltou um suspiro exagerado. Se eu pudesse ficar cinco minutos sozinho com ela... Meu charme resolveria tudo

    em um passe de mgica. H, sem comentrios disse Michael.Sarah resmungou bem alto desta vez:

  • Por que eu virei amiga de vocs dois mesmo?Michael se apressou em mudar o rumo da conversa: Bem, sinto muito dizer isso, mas a gente s tem uma opo.Bryson e Sarah o encararam com uma expresso de interrogao, mas ele sabia que

    os outros dois pensavam na mesma coisa. Esgotadas as alternativas, a nica opo erapartir para a ilegalidade.

    Com um sorrisinho malicioso, ele falou: Vamos ter que invadir.

    2

    Michael sempre considerou que usar seus conhecimentos de hacker para entrar em umlocal simulado na VirtNet era a mesma coisa que arrombar uma porta ou janela na Viglia.Era preciso agir com inteligncia e cautela. E, assim como no mundo real, um passo emfalso significava cadeia, caso a movimentao fosse detectada pelo SSV.

    Faam a melhor cara de inocente possvel e venham comigo ele falou. Cara, precisava ter falado isso? reclamou Bryson. Agora vou parecer mais

    suspeito do que nunca.Pegaram uma rota alternativa para chegar porta dos fundos do clube, percorrendo

    vrios quarteires para que ningum notasse aonde iam. No caminho, ficaram em silncio,e Michael tentou puxar conversa. A ideia era parecerem um simples grupo de amigospasseando pela rua.

    Sem querer ofender, mas no aguento mais ouvir falar nos pratos que a suaempregada faz Bryson disse por fim quando dobraram na ltima esquina. Principalmente porque duvido que eu v experimentar algum deles um dia.

    Sarah tomou a dianteira do grupo, o que Michael preferiu interpretar como um sinal desegurana e confiana no que estavam prestes a fazer.

    Acho que, quando a gente se encontrar l fora, poderia ser na casa do Michael disse ela. Assim podemos provar um desses pratos da Helga de que ele vive falando.

    A Helga gata? perguntou Bryson.Esse questionamento pegou Michael totalmente de surpresa. Ela tem no mnimo sessenta anos, cara. Talvez at setenta. E da? No respondeu minha pergunta.

  • Sarah se deteve de repente, e Michael quase trombou com ela. Faltavam poucosmetros para chegarem ao destino. Uma porta preta e estreita era a nica coisa quedemarcava os fundos do clube. Apesar de no haver nenhum cartaz, em nenhum momentoMichael duvidou de que ali era o Black and Blue, o que se confirmava pela presena dosdois homens altos e largos parados do lado de fora, encarando os passantes como se nose alimentassem fazia dias e carne humana fosse a iguaria favorita deles. Todo clubetinha seus lees de chcara, mas aqueles pareciam dois monstros.

    Acho que nem vai ser muito difcil murmurou Bryson.Sarah se virou e pediu com um sussurro que eles parassem de olhar para o clube. A

    expresso no rosto dela obrigou Michael a levar a recomendao a srio. O que voc est tramando? No consigo nem imaginar que tipo de firewal