A doutrina do direito natural em Tomás de Aquinobd.tjmg.jus.br/jspui/bitstream/tjmg/644/1/D2v1682004.pdf · ... servirão para bem situar o pensamento de Santo Tomás ... compreensão

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  • Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 55, n 168, p. 21-41, abril/junho 2004 31

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    A doutrina do direito natural em Toms de Aquino

    D. Odilo Moura*

    Foi afirmada repetidas vezes pela tradio catlica a existncia de um direito natural. No obstante ser elenegado pela generalidade dos homens de hoje, , contudo, assunto de grande atualidade, sendo objeto de discussesentre juristas, filsofos e telogos.

    Desde o incio da civilizao ocidental, foi reconhecido um direito imediatamente decorrente das exign-cias da natureza humana, facilmente reconhecido pelos gregos, pelos romanos e pelos medievais. Essa tradiomais que milenar sofreu forte abalo no sculo XVI, provocado por Lutero. Este, ao afirmar a corrupo da naturezahumana pelo pecado original, obviamente no aceitaria um direito fundamentado numa natureza m. Por isso,para ele, os primeiros direitos do homem procedem da palavra de Deus, revelada na Bblia. Os primeiros direitose deveres do homem no mais efluem espontaneamente do reconhecimento imediato das exigncias da essn-cia humana, mas sero a ela extrinsecamente acrescidos.

    Respeitado pelos povos primitivos, desde a mais remota antiguidade, um direito inseparvel do homem foi sendolentamente esclarecido atravs da Histria. Sfocles, no sculo V a.C., no seu famoso texto teatral, transmite-nos aspalavras de Antgona ao tirano, ao exigir ela o sepultamento do prprio irmo: Os decretos divinos, les no escritas eimutveis, no so de hoje, nem de ontem, e ningum sabe de que longnquo perodo procedem. Aristteles desenvolveuuma doutrina sobre o direito natural,1 mais tarde retomada pelos esticos, reassumida por Ccero, que a transmitiu aosromanos. So bem conhecidos Os trabalhos dos grandes mestres romanos, Ulpiano, Justiniano e Gaio, acentuando oprimado do direito natural. A rica tradio pag a respeito foi tranqilamente aceita pelos cristos, que a conciliaram comos dados da Revelao. Este trabalho foi aperfeioado pelos canonistas e telogos dos sculos XII e XIII.

    Os grandes mestres universitrios medievais dirigiram as vistas para a cincia jurdica, sobretudo a relativa aodireito natural. As lies deixadas por Isidoro de Sevilha, Graciano, Pedro Lombardo, Alberto Magno, Toms de Aquino,Boaventura, Guilherme de Auxerre, Filipe Cancelrio e por tantos outros testemunham o elevado grau atingido peloestudo do direito natural naqueles remotos tempos. Mais tarde, na mesma linha da tradio jurdica medieval. Vitria eSurez trazem as suas preciosas contribuies, sendo seguidos por Baez, Vasquez e Toledo.

    O protesto luterano do sculo XVI, como vimos acima, deu novos rumos para a cincia do direito. Os juris-tas das naes evanglicas, alicerados logicamente na doutrina da corrupo da natureza humana pelo peca-do, desvincularam dela o direito natural. Negou-se, ento, a noo at aquele tempo aceita, concernente existncia de um tal direito. No haver, para eles, um direito natural, mas um direito originado do critrio humano.Na realidade, todo direito ser direito positivo.

    Famosos mestres do direito, e at polticos, sero os formuladores da nova ordem jurdica, salientando-se, entreeles, Grotius, Puffendorf, Tomasius, Gurvitch, lhering, Kelsen. Contudo, diversos outros autores, como a personalidadempar de DeI Vecchio, reafirmam a doutrina tradicionalmente consagrada.

    Tambm os filsofos contriburam para a negao do direito natural. Pondo o dever como um princpio damoral, dever este impulsionado por um imperativo categrico da vontade, Kant tirou do direito fundamental a suaformalidade racional, elemento essencial reta noo do direito natural. A filosofia de Kant matou no direito naturalo conhecimento espontneo das suas normas, e o homem passa a operar por um impulso cego do cumprimento dodever.

    Outra corrente filosfica agiu da mesma forma em nosso sculo. Ao negar a prevalncia da essncia sobrea existncia, mas afirmando a desta sobre aquela, o existencialismo destruiu toda e qualquer norma fixa para o

    SNTESE - Nos tempos modernos, a doutrina do direitonatural tem sido negada por muitos autores. No foi assimentre os medievais e entre os antigos. Toms de Aquino,em diversas partes de sua obra, trata do tema e mostracomo a prpria racionalidade do homem o leva a descobriralgo que est nsito no mais ntimo de sua natureza.

    ABSTRACT - The doctrine of the natural law in our timeshas been denied by many authors, as opposed to medievaland ancient thinkers. In several parts of his work, ThomasAquinas deals with this subject and shows that the humanreason leads everyone to discover the natural law.

    (*) Mosteiro de S. Bento - Rio de Janeiro.1 Aristteles. Retrica I, cap. 25: tica a Nicmaco V, cap. VII: Poltica I,. C. 3. Cf. a respeito os respectivos comentrios de Toms de Aquino.

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    homem. Sartre ensina que, moralmente, o homem uma criao de si mesmo e as suas aes no derivam deregras preestabelecidas, mas ele mesmo, pelo seu arbtrio, as programa e as realiza. conhecida a enormeinfluncia do existencialismo sartreano em nossos dias, com a tese de que o homem um projeto, que est atodo o momento criando a si mesmo.2

    As linhas acima, nas quais tentamos, em traos largos, descrever a evoluo da doutrina sobre o direito natu-ral, serviro para bem situar o pensamento de Santo Toms sobre o mesmo e apresentam os motivos, segundo osquais muitos pensadores contemporneos ainda o tm como verdadeiro. Para estes, o direito natural no uma peaesquecida nos arquivos das cincias jurdicas, mas mostra-se de grande atualidade. Entre os catlicos, esta posiovoltou a evidenciar-se, por exemplo, em documentos da Igreja, como a recente encclica Veritatis splendor, de JooPaulo II.3 Nesse documento, o Papa conceitua a natureza de tal direito e recusa as teses dos que pretendem basearos direitos humanos em dados estatsticos, ou que definem o homem como um puro projeto. relevante, para o temadesta comunicao, observar que toda a encclica est embasada na doutrina apresentada por Toms de Aquino.Escreve o Papa: A Igreja referiu-se freqentemente doutrina tomista do direito natural, assumindo-a no prpria ensi-namento da moral.4 Esta frase condensa a tradio do magistrio pontifcio, anteriormente ensinado por Leo XIII5 epor Pio XI,6 e transmitido nas excelentes alocues de Pio XII durante a II Guerra Mundial. Na mesma linha man-tiveram-se Joo XXIII e Paulo VI.

    Aps esta introduo, consideremos o que propriamente nos ensinou o Doutor Anglico sobre o direitonatural, segundo esta ordenao:

    I - Trs esclarecimentos prvios

    II - Fontes doutrinrias do direito natural formulado por Santo Toms e a localizao do mesmo em suas obras

    III - Sntese da doutrina tomista sobre o direito natural

    IV - Concluso.

    I - Trs esclarecimentos prvios

    Trs esclarecimentos prvios so necessrios para a justa compreenso do pensamento jurdico tomista, comotambm para o de muitos mestres medievais. Focalizando-os, sero evitadas algumas leituras que obscurecem aquelacompreenso e que acarretam consigo conseqncias prticas desastrosas. Torna-se, pois, inevitvel estabelecer distin-o entre direito e moral, entre direito e lei e entre direito natural e direito primitivo. Consideremo-las separadamente:

    1. O objeto da moral so todos os atos do homem, enquanto dirigidos para o bem de si mesmo. O bemmoral do homem ele realizar-se seguindo as exigncias de sua natureza. A finalidade das aes do homem realizar-se ele perfeitamente, e isto faz que o homem se realize de forma superior dos seres sem vida, ou dosseres vivos sem razo. Cada ser criado existe segundo busca seu bem. O homem busca o seu bem agindo livre-mente, por ato imperado por sua vontade, que, por sua vez, segue a prpria razo. A razo humana dirige ohomem para que ele seja autenticamente humano. As virtudes morais levam o homem a sempre operar com per-feio. Por isso, a moral tomista uma moral de virtudes morais, conquistadas pelo prprio homem, masenriquecida pelas virtudes sobrenaturais e por outros dons concedidos por Deus.

    O objeto do direito mais restrito que o da moral, embora subordinado a ela.

    As leis morais estabelecem os princpios do direito. Porm, enquanto a moral abrange o exerccio de todas asvirtudes, o direito no ultrapassa o objeto da virtude da justia. Por isso, s cabe ao direito determinar o justum, isto ,aquilo que devido em estrita igualdade ao outro. Implicando no seu exerccio o outro, o scio, o direito, como tambma virtude da justia, essencialmente social.

    2 SARTRE, J. P. LExistencialisme est un Humanisme. Paris: Nagel, 1963. p. 23.3 Trad. portuguesa. So Paulo: Ed. Paulinas, 1993. p. 71, n 44.4 Id., ibid.5 Cf. Rerum novarum. AAS, 1, p. 109.6 Cf. Studiorum ducem (29.06.1923): Sendo ele (Santo Toms) o telogo perfeito, traou as regras certas e os preceitos de vida no apenas paraos individuos, bem como para a sociedade familiar e civil (...) Da aqueles magnficos captulos da Segunda Parte da Suma Teolgica sobre oregime paternal ou domstico, (...) sobre o direito natural e sobre o direito dos povos (...) Deve-se desejar que se estudem e cada vez mais osensinamentos do Aquinate sobre o direito dos povos e sobre as leis que regulam as relaes rntuas entre as naes (AAS. 1923 (XV), p. 711).

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    As outras virtudes morais visam ao bem do prprio homem; a justia, assim como o direito, visa ao bemdo outro. J ensinava Aristteles que o amor une as cidades, e os que estabelecem as leis mais se preocupamcom a justia.7 Seguindo a mesma trilha, escreve Santo Toms: A paz indiretamente obra da justia, direta-mente, da caridade (II-II, 29, 3, ad 3). A moral, pois, est na ordo amoris, o direito, na ordo justitiae.8

    A distino entre direito e moral e a subordinao deste quela vigoram no somente no plano dasociedade juridicamente estruturada dos povos civilizados, como tambm nos povos primitivos. Por isso, jamaiso direito positivo anular o direito natural.

    Convm, para melhor apreenso do pensamento jurdico medieval, levar em considerao que SantoToms, como os demais mestres de seu tempo, no trataram do chamado direito subjetivo, que hoje muitofocalizado. Eles consideraram apenas o direito objetivo, sem contudo desconhecerem o sentido anlogo daexpresso direito subjetivo.

    2. A lei - lex - como norma racional de ao (ordinatio rationis) - deve ser distinguida do direito e da moral.Os autores medievais, no entanto, usavam o termo lei como sinnimo de direito e de moral. Santo Toms, toexato e formal no modo de se expressar, por vezes usa esses termos como sinnimos, no fugindo regra cos-tumeira dos outros mestres medievais.

    Todavia, muito claro quando estabelece a distino entre as duas expresses, ao escrever: A lei no o mesmo que o direito, propriamente falando, mas uma certa razo do direito (II-II, 51, 1 ad 2). Moral e direitoimplicam sentido mais amplo que o da lei. A lei prope as normas de ao humana; a moral e o direito nosomente as reconhecem, como tambm as aplicam s inumerveis aes humanas.

    3. A distino entre direito natural e direito positivo vem de tradio milenar. Hoje, em geral, tal distinono acentuada como deveria ser, o que implica ms conseqncias.

    Santo Toms, sempre fiel s legtimas tradies, afirma a distino entre direito natural e direito positivo, emslido artigo da Suma Teolgica (II-II, 57, 2). O termo direito aplica-se aos dois direitos analogicamente, alicerandoSanto Toms a sua distino em Aristteles.9 Haver um direito proveniente da prpria natureza da coisa, direitonatural, que no se confunde com as normas da justia firmadas entre duas pessoas, ou estabelecidas pela autori-dade pblica (direito positivo). Enquanto o primeiro direito independe da vontade humana, o segundo nasce dela poruma conveno estabelecida.

    O primeiro direito institudo e promulgado por Deus, que possibilita ao homem, pela sua prpria naturezaracional, facilmente conhec-lo, e s Deus poder alter-lo, mas no o faz, porque a sabedoria divina no con-traditria. O segundo direito firmado por conveno humana, cabendo ao homem promulg-lo, anul-lo, oumodific-lo, se necessrio for. de sua estrutura ser mutvel. O direito natural imutvel, como a prprianatureza do homem, visto ser elaborado pela sabedoria divina. Evidentemente, o direito positivo deve subordinar-se ao direito natural. Toda lei que contradiga as normas do direito natural inqua e desumana.

    II - Fontes doutrinrias do direito natural formulado por Santo Toms e a localizao das mesmas em suas obras

    Os estudos jurdicos, relativos ao exerccio do direito e sua histria, foram intensos nos sculos XII e XIII.Canonistas e telogos dedicavam-se atentamente queles estudos, interessados sobretudo na formulao deuma teoria do direito ilustrada pelos dados da Revelao.

    Em nossa poca, dois autores, D. Odon Lottin, OSB10 e Fr. Santiago Ramirez, OP,11 em magistrais obrashistoriaram com exmia sabedoria aqueles estudos. Santo Toms, seguindo as pegadas dos mestres de sua poca,dedicou-se tambm aos mesmos estudos, legando aos psteros uma sntese doutrinria concernente ao direitonatural, sntese esta ao mesmo tempo tradicional e inovadora.

    7 tica a Nicmaco, 1. VIII.8 Cf. JOURNET, Charles. Exigences Chrtiennes en Politique. Paris, 1945. p. 216.9 tica V, 7, 1.10 Psychologie et Morale aux XIIe et XIIIe Sicles. t. I e II. Gembloux: Ed. Duculot. 1942-1948.11 EI Derecho de Gentes. Madrid: Ed. Studium. 1955.

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    12 Ibid., 51.

    Ocasionalmente discorreu sobre o direito natural em algumas de suas obras, nas quais comentava a ticaaristotlica, e em outras. Nestas, acrescentou perspectivas novas; naquelas, simplesmente explica, com suahabitual mincia, o texto do filsofo.

    Os primeiros estudos do Anglico sobre o direito natural foram exarados em lies nas quais comentou asproposies de Pedro Lombardo sobre este direito (cf. IV Sent. 39, 1-1). Em tais lies, j se encontra esboada, pelojovem mestre, a teoria sobre o direito natural que, vinte anos mais tarde, ele, mestre em Paris, levar perfeio.

    Na Suma Teolgica (I-II, 94) desenvolve a teoria do direito natural no contexto do tratado da lei. Nesta questo,define a lei natural segundo o sentido humano, descreve como ela conhecida pelo homem, evidencia o seu contedo,do qual procedem as suas principais propriedades: unidade, imutabilidade e perenidade na alma humana.

    Na questo 57 da II-II da mesma obra, o direito natural focalizado no tratado de jure, abordando a suadistino frente ao direito positivo, e a sua diviso em direito natural propriamente dito, em direito das gentes e emformas especiais (direito paterno, direito dominativo e direito domstico).

    Coligindo as proposies constantes na Suma Teolgica, formular-se- uma teoria do direito naturalsistemtica e completa, como se expor adiante. Porm, no ser sem proveito serem aqui antecipadas trscaractersticas intrnsecas teoria tomista do direito natural,facilmente desvendadas na leitura daquelas questes: afonte divina do direito natural, o sujeito humano e a formalidade racional do mesmo.

    Sob o aspecto histrico-doutrinrio, a fonte remota da concepo tomista de direito natural toda a tradiojurdica do Ocidente, contido nos pronunciamentos dos mestres romanos do direito, nas proposies de filsofos comoAristteles e os esticos, nas obras de telogos como Agostinho e Isidoro. A todos esses luminares da cincia do dire-ito recorreu Santo Toms, porm sempre com o seu agudo senso crtico, sempre dirigido pela conceituao que ini-cialmente estabeleceu pqra o direito natural. Buscou subsdios nos antecessores, mas a doutrina que formulou sua.

    As fontes imediatas encontram-se naqueles telogos e canonistas que trataram do direito natural no sculoXII (Anselmo de Laon, Hugo de So Vtor, Abelardo, Pedro Lombardo), no podendo ser esquecido o famosoGraciano, com seu Decreto. Houve tambm, lgico, a contribuio de seus contemporneos, citando-se, entre eles,Guilherme de Auxerre e o dominicano Pedro de Tarantaise (mais tarde Papa Inocncio V), de quem discordou aonegar que a lei natural fosse um hbito (I-lI, 9, 1, c).

    Indiscutivelmente, a fonte prxima que mais contribuiu para a teoria tomista do direito natural foram as liesrecebidas de Santo Alberto, em Colnia. Na obra Summa de Bono, Alberto analisa a doutrina do direito natural. Aoutra obra em que discorre sobre o tema foi redigida pelo discpulo Toms de Aquino e contm as Prelees sobrea tica a Nicmaco. Alberto apresenta sua doutrina segundo a colhera na tradio jurdica e teolgica. Acentuaos.ensinamentos de Agostinho e de Ccero. Com senso crtico, sobretudo em perspectiva filosfica e teolgica,expe seu pensamento sobre o direito natural. Quanto ao contedo, o que ensinou a respeito coincidesubstancialmente com a sntese tomista. No obstante, esta sntese, to perfeitamente elaborada, supera a alberti-na. Contudo, segundo S. Ramirez, a formalidade filosfica com que Alberto fundamentou o direito permite que eleseja considerado o criador e verdadeiro iniciador da filosofia do direito.12

    III - Sntese da doutrina tomista do direito natural

    Examinadas algumas preliminares que facilitam a compreenso dos desenvolvimentos trazidos teoria dodireito na Idade Mdia, a seguir ser exposta a doutrina do direito natural segundo Santo Toms.

    Aqueles pressupostos, porm, esto condicionados colocao de uma indispensvel observao preliminar: oreconhecimento da existncia de uma natureza humana essencialmente estruturada por Deus e regida por preceitosdela originados, segundo disposio divina. O direito natural, conseqentemente, obedece a dois princpios: o divi-no, por ser participao da lei eterna pela qual o Criador dirige todas as coisas; e o humano, enquanto necessaria-mente vinculado criatura racional. Ampliemos estas duas noes:

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    1. Deus criador, sbio e providente das aes das criaturas, tudo dirige segundo normas preestabelecidas, queconstituem a lei divina (I-lI, 93, 1). Para Santo Toms, no entanto, propriamente no h um direito divino, porque o direi-to fundamenta-se na igualdade do que devido pelo devedor com a satisfao exigida pelo outro (isto essencial justia). No havendo possibilidade de igualdade entre o homem e Deus, disto resulta a negao de um direito divino. exigncia divina no se d o nome de direito, mas o de fas, termo consagrado na lngua latina para design-la (cf. II-lI,57, 1 ad 3).

    Como foi esclarecido anteriormente, a lei propriamente no se identifica com o direito (cf. lI-lI, 57, 1 ad 2),mas determina-lhe as normas principais. No obstante essa distino, Santo Toms, por vezes, usa os termos leie direito como sinnimos, e as expresses direito natural e lei natural como correspondentes.

    Por ser a lei natural proveniente de disposio divina, eterna, ela soberana, participando assim doabsoluto poder de Deus, no cabendo ao homem modific-la, anul-la, nem desconhec-la. O prprio Deus a pro-mulga para todos os homens, ao torn-la por estes conhecida na sua natureza humana racional (cf. lI-lI, 57, 2 ad3). O direito natural no apenas absolutamente soberano, como ainda imutvel, pois participada imutabilidadedas normas divinas e tambm da imutabilidade da natureza humana. Por isso, concluir o Anglico: Se algumacoisa por si mesma se ope ao direito natural, a vontade humana no a pode tornar justa, como, por exemplo, sefor determinado ser lcito furtar ou cometer adultrio (cf. lI-lI, 57, 2 ad 3).

    Conseqncia evidente da incluso do direito natural na lei eterna ser ela verdadeira. Ora, a verdade acorrespondncia absoluta entre o conhecimento humano e o objeto conhecido. As coisas conhecidas pelo homemso verdadeiras, porque ele as conhece segundo Deus as programou e lhes deu a existncia. Dessa veracidadeparticipa o direito natural. Escreve o Anglico: O intelecto divino a medida das coisas, porque cada coisa ver-dadeira enquanto imita o intelecto divino. Ora, o intelecto divino em si mesmo verdadeiro, e a sua razo a prpriaverdade (cf. I-lI, 93, 1).

    Essas palavras justificam por que o pensamento cristo defende com tanta insistncia a vigncia dodireito natural na sociedade moderna, que hoje dele se vai afastando. Nesta linha dizia o Papa Joo XXIII:

    No mais ntimo do ser humano, o Criador imprimiu uma ordem que a conscincia humana descobre e manda observarestritamente. Os homens mostram que os preceitos da lei esto escritos nos seus coraes, sendo sua conscinciatestemunha disso (Rom. 2, 15). Por outro lado, como poderia ser de outro modo? Todas as obras de Deus so, comefeito, um reflexo da sua sabedoria infinita, reflexo tanto mais luminoso quanto maior o grau absoluto de que gozam.13

    2. Ao se focalizar a lei natural, deve-se primeiramente mostrar a distino entre ela e a lei eterna. Enquantouma tem por sujeito a mesma natureza divina, porque as aes divinas efluem diretamente da substncia de Deus,e com ela se identificam - a substncia divina operativa por si mesma - a lei natural tem por sujeito um acidenteda substncia do homem, a sua inteligncia. ato desta inteligncia, enquanto se inclina para as coisas prticas,isto , da ratia practica. No consiste em uma disposio habitual da razo prtica. mas nos atos da mesma. SantoToms nega assim a tese de Pedro de Tarantaise, que reduzia a lei natural a um hbito (I-lI, 94, 1c), como anteriormentelembramos.

    a nota intelectiva, racional, que caracteriza fundamentalmente no homem a lei natural e o conse-qente direito natural, visto ser o homem, antes de mais nada, um ser racional.

    Santo Toms insiste fortemente na nota racional da lei natural e toda a sua teoria deste direito est nelaembebida. O direito natural humano porque decorrente do conhecimento que o homem tem dele. L-se naSuma Teolgica:

    Como no homem a razo domina e impera sobre as outras potncias, convm por isso que todas as inclinaes natu-rais pertencentes s outras potncias sejam ordenadas segundo a razo. Assim sendo, entre todos chamado de retoo que segundo a razo sejam dirigidas todas as aes do homem (I-lI, 94, 4 ad 3).

    Por ser racional, o direito natural, informado que pelas leis naturais, diferencia-se do direito da natureza, queregula as aes condicionadas pela estimativa dos animais. No sendo especificamente racionais as leis que ordenama vida dos brutos no sero propriamente chamadas de leis, mas s analogamente, por semelhana (I-lI, 91, 3 ad 2).

    13 Enc. Pacem in terris, n 5.

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    A inteligncia prtica que opera na lei natural implica o ato da vontade, mas a inteligncia especulativa,cujo objeto a verdade absoluta enquanto conhecida, desligada da vontade, limita-se ao puro conhecimento daverdade (I-lI, 94, 4c).

    Ao conhecer espontaneamente o que deve fazer segundo a exigncia de sua natureza, o homem, nesteato intuitivo, recebe a proclamao da lei natural. Assim sendo, ela lhe proclamada indiretamente por Deus, queo dotou de tal capacidade. No seja esse conhecimento confundido com o das idias inatas cartesianas. No. a prpria luz do conhecimento intelectivo que o faz evidente. Os conceitos, as idias que a evidenciam surgemda ao intelectiva humana (lI-lI, 57, 3c).14

    3. Firmado o direito natural corno intrinsecamente divino e humano, Santo Toms analisar sua definio,sua diviso e as suas propriedades. So trs esclarecimentos que vo completar o pensamento de Santo Toms,relativo quele direito, que facilmente so inferidos da doutrina exposta at aqui.

    No se encontra em Santo Toms uma definio lgica do direito natural, segundo gnero e diferenaespecfica. Por ser identificado com a lei natural,15 por decorrer da virtude da justia e, de certo modo, identificar-se tambm com a lei divina, a definio de um conceito to complexo no ser facilmente encontrada. Ademais,o direito natural vincula inseparavelmente a si o homem individualmente e a sociedade dos homens. No obstanteas dificuldades para se descobrir uma definio estrita do direito natural, no ser fora de propsito estender aele a definio que Santo Toms fornece de lei natural: o conhecimento naturalmente dado ao homem, pelo qualele dirigido para convenientemente operar nas aes que lhe so prprias (IV, Sent. 33,1).16

    Santo Toms estabelece uma distino ntida ao propor a diviso do direito natural em duas ordens: a dodireito natural estritamente dito e a do direito das gentes. Na primeira ordem, identificam-se as normas do direitonatural com as exigncias da natureza dos animais (II-II, 57, 3); na segunda, constituda pelas normas de aodeduzidas dos primeiros princpios da lei natural, conhecidos por todos os homens, situa-se o direito das gentes.Aqui j aparece algo de direito positivo, algo posto pelo homem (Il-II, 57, 3). Exemplificando: que a terra pertenaa todos os homens, porque ser impossvel a todos sobreviverem sem dela tirarem os meios de sobrevivncia, norma do direito natural primrio. H comunismo pleno quanto posse da terra. Como, porm,no ser pos-svel aos homens tirarem da terra o necessrio para a sua sobrevivncia, a no ser nela operando ordenada-mente, tendo cada um uma poro dela, a propriedade individual norma do direito natural secundrio, ou seja,do direito das gentes. Paradoxalmente, o direito de propriedade origina-se do direito terra comum atados. Porisso, em casos extraordinrios, para se salvar a sobrevivncia dos homens, o direito natural primrio prevalecesobre o direito secundrio ou direito das gentes. Note-se que ambos os direitos so prprios da natureza humana,mas em sentido anlogo.

    Na considerao histrica da vida social, nem sempre fcil estabelecer com exatido as reas do direitonatural primrio, do direito das gentes e do direito positivo. Escreve, a respeito, Jacques Maritain:

    Pois a prpria lei natural que pede que ela mesma deixe indeterminado o que seja ulteriormente determinado, sejacomo um direito, ou como um dever existente para todos os homens, em razo de um estado de fato estabelecido, sejacomo um direito ou um dever existente para alguns, devido s regulamentaes humanas prprias comunidade dasquais fazem parte.17

    14 Parece que se equivoca Jacques Maritain ao tomar esse conhecimento por simples criatividade (cf. Soria OP, Carlos. Tratado de la Ley enGeneral - Suma Teolgica. vol. VI. Madrid: BAC, 1956. p. 116, nota). A fonte ltima do direito natural a iluminao recebida de Deus: A luz darazo natural, pela qual ns discernimos o que bem e o que mal, que deriva da lei natural, no outra coisa que a impresso da luz divinaem ns (I-II, 91, 2c).15 Cf. Urdanoz Op, Tefilo. Tratado de Justicia. Suma Teolgica. Madrid: BAC, 1956, vol. VIII. p. 184ss.16 Com sua pecuIiar preciso, o filsofo Jacques Maritain apresenta uma bela conceituao do direito natural: Suponho que admitis que h umanatureza humana, e que esta natureza humana a mesma em todos os homens. Suponho que tmbm admitis que o homem um ser dotadode inteligncla e como tal opera compreendendo o que faz e, portanto, tendo o poder de determinar-se a si mesmo para os fins que persegue.De outro lado, tendo sua natureza, estando constitudo assim, o homem tem evidentemente fins que correspondem sua constituo natural eque so os mesmos para todos... Mas porque o homem dotado de inteligncia e determina para si os seus fins, cabe-lhe ajustar a si mesmo osfins necessariamente exigidos pela natureza. Isto quer dizer que h, em virtude da prpria natureza humana uma ordem ou disposio que a razohumana pode descobrir e segundo a qual a sociedade humana deve agir para ajustar-se aos fins necessrios do ser humano. A lei no escrita,no direito natural, outra coisa no a no ser isto. Os grandes filsofos da antiguidade sabiam, e melhor ainda sabiam os pensadores cristos,que a natureza deriva de Deus e que a lei no escrita deriva da lei eterna que a prpria sabedoria criadora (Maritain, Jacques. Les Droits deIHomme et Ia Loi Naturelle. New York: Ed. Maison de France, 1942. p. 79s).17 lbid., p. 91.

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    Assim sendo, todo direito encontra o seu fundamento no direito natural, de modo especial o direito dasgentes, que a ele est mais fortemente vinculado. A respeito disto, o grande mestre do tomismo contemporneo,Santiago Ramirez, indiscutivelmente o mais abalizado esclarecedor do direito das gentes, assim se pronuncia:

    Sendo este prpria e principalmente natural por estar contido nas concluses imediatas dos primeiros princpios da syndresis,e no propriamente positivo, por no se derivar de lei natural maneira de simples determinao ou aplicao, (...) evidenteque as condies ou propriedades do direito das gentes so exatamente as mesmas do direito natural correspondente s referi-das condies.18

    4. Dado o conceito de direito natural, enquanto divino e humano, espontnea e diretamente surgiro as pro-priedades primeiras desse direito, encontradas tambm na lei natural. Santo Toms as reduz a trs, por serem asmais evidentes: unidade, imutabilidade e inamissibilidade. Nos tratados de Teologia Moral, encontram-se outras,mas essas trs so as fundamentais, e as outras delas procedem. Tentemos descrev-las.

    A unidade do direito natural logo conhecida porque ele, em todos os seus preceitos, se reduz ao primeiroprincpio da lei natural, evidente

    por si mesmo, embora sejam muitos (I-lI, 94, 2 ad 1). Este direito tambm uno porque, distribuindo-se em todos oshomens, cada homem o concebe identicamente. Por isso universal, deve ser conhecido e praticado por todos os ho-mens, em todos os tempos e em todos os lugares: semper et ubique. evidente que, sendo uma s a espcie humanaque se multiplica nos indivduos humanos, o bem visado por essa espcie o mesmo para todos aqueles indivduos, isto, operar segundo as exigncias da natureza (II-II, 5, 4 ad 3).

    Sendo unitria a natureza do direito natural, conseqentemente s pode ser imutvel: No varia no tempo,mas permanece imutvel, diz Santo Toms (I-II, 94, 5). Verifica, no entanto, o grande mestre ser possvel duplamudana nele: por adio, acrscimos que o acompanham para maior exatido, acidentalmente, feitos pelodireito positivo divino ou humano; por subtrao (sem atingir os primeiros princpios), quanto aos princpiossecundrios, ou seja do direito das gentes. Santo Toms, no entanto, acrescenta esta ressalva: Em algum casoparticular, e isto para poucos, devido a causas especiais que impedem a observao de tais preceitos (I-II, 94,5c). D-se esta variao por subtrao, por exemplo, quando no se deva entregar uma arma ao seu dono, porestar louco. No caso, a prudncia prevalece sobre a justia. Com a sua costumeira clarividncia, SantiagoRamirez justifica tal procedimento:

    O que varia, pois, e parece que se evidencia, a matria a que aplicar a justia e o direito, por ser ela varivel e mut-vel ao teor das condies ou circunstncias particulares dos indivduos; mas a justia mesma e o direito permanecemimutveis e conservam sempre o seu valor, por serem naturais e intrinsecamente tais.19

    Salva-se ento a ratio justitiae, que implica sempre agir razoavelmente (cf. I-II, 94, 4c).

    Vinculado inseparavelmente natureza humana, o direito natural, como ela, inamissvel. No possvelapag-lo no corao do homem quanto aos seus princpios primrios. Contudo, quanto aos princpios secundrios,poder desaparecer da mente humana, seja devido s ms persuases (...), seja devido aos costumes pervertidose pelos hbitos corrompidos, como em alguns povos no foram considerados pecados os roubos e os vcios contraa natureza, segundo diz o Apstolo in Rom 1, 24 (I-II, 94, 6c). Nem Deus poder apagar a lei natural da mentehumana, visto que Deus no se contradiz: no substitui o bem pelo mal; nem a verdade pelo erro. Por isso, oAnglico afirma categoricamente: Nenhum costume poder ter fora de lei contra a lei divina, ou contra a lei natu-ral (I-lI, 97, 3c), E ainda: A lei escrita no d fora lei natural e, assim sendo, no lhe pode diminuir ou tirar afora, at porque nem a vontade do homem pode modificar a natureza (lI-lI, 60, 5 ad 1).

    IV - Concluso: principais caractersticas da doutrina do direito natural formulada por Santo Toms.

    Concluir-se-, do que at aqui foi exposto em termos gerais sobre a teoria do direito natural, elaborada porSanto Toms de Aquino, que o mximo mestre medieval arquitetou uma completa doutrina atinente quele direito,no destituda de originalidade. Difcil ser encontrada em outro mestre do direito um corpo doutrinrio referenteao tema, exposto com tanta propriedade, plenitude, perfeio e coerncia.

    18 Ramirez, Santiago. Op. cit., 122.19 Id., ibid., p. 128.

  • Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 55, n 168, p. 21-41, abril/junho 200438

    Verificar-se-, em primeiro lugar, que o Anglico deu sua sistematizao do direito um sentido fortementetradicional e corajosamente inovador. Alis, assim operava ao se articular em todos os ramos do saber. Uniu nums corpo doutrinrio as lies de direito de Aristteles, de Ccero e Gaio com as de Graciano e Alberto Magno.Mas sempre, nesse trabalho de compilao dos ensinamentos dos antigos e modernos, ressalta a presena dodiscernimento tomista.

    notvel que, ao formular a sua teoria jurdica, o grande telogo Toms de Aquino no trabalha como telo-go, mas to-somente como filsofo. Rarissimamente, no corpo doutrinrio jurdico, Toms de Aquino cita a SagradaEscritura, e, ao referir-se aos mestres catlicos, alguns dos quais eminentes telogos, os v to-somente enquantomestres do direito. O direito natural, concebido pelo Anglico, exclusivamente natural, prescindindo da revelao.Em outro tratado da Suma Teolgica ir considerar o direito positivo divino, desenvolvendo-o em dez longas questes,referentes lei divina (I-lI, 98-108). Propriamente, o pensamento tomista sobre o direito natural afasta-se da vincu-lao com a religio e se limita a lig-lo a Deus enquanto Criador, no enquanto conhecido e amado devido aos mis-trios revelados.

    Embora sempre mergulhado no amor de Deus, o nosso telogo sabia respeitar a propriedade de cadaramo do saber, no confundindo saber filosfico com saber teolgico, Por isso, ao especular, como filsofo, sobreo direito, Toms de Aquino acentua fortemente a natureza intelectiva do direito, pois esse direito , no homem,essencialmente, obra da inteligncia.

    No teria podido Santo Toms construir o seu sistema jurdico se no fosse dotado de um agudo sensocritico filosfico, jurdico e histrico, afastando daquele sistema claro e coerente tudo o que destoasse da verdade.As formulaes tomistas, em todos os ramos do saber, partiam sempre de um princpio muito prprio do grandedoutor: No pertence perfeio de minha inteligncia o que tu queiras ou o que tu entendas, ao conhecer, massomente o que possui a verdade da coisa (I, 107, 2c).

    A contribuio de Santo Toms para a cincia do direito e para a filosofia do direito o situa entre os maioresmestres de todos os tempos.

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