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Fernando Pedrão A Economia Política Crítica de Marx Salvador 2007

A economia politica critica de marx

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Page 1: A economia politica critica de marx

Fernando Pedrão

A Economia Política Crítica de Marx

Salvador

2007

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2

De fato, a coisa não se reduz ao seu fim, senão se encontra em seu desenvolvimento, nem o

resultado é o todo real, senão está em sua união com seu devir. HEGEL

A maioria dos homens não reflete sobre o que se lhes apresenta. Mesmo quando instruídos, não

compreendem. Vivem na aparência. HERÁCLITO

Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de

idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se

consolidarem. MARX

Está claro que o método de exposição deve distinguir-se formalmente do método de investigação. A

investigação tenderá a assimilar-se com detalhe à matéria investigada, a analisar suas diversas

formas de desenvolvimento e a descobrir seus nexos internos. Só depois de concluído esse trabalho,

pode o investigador proceder a expor adequadamente o movimento real. MARX

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3

Índice

APRESENTAÇÃO 6

UM PRELÚDIO FILOSÓFICO 19 ORIGENS E SENTIDO DE FINALIDADE 25 A linha mestra 25

As leis do capital 30 ORGANIZAÇÃO SOCIAL E IDEOLOGIA 31 A relação capital/trabalho, as relações entre capitalistas e trabalhadores e a divisão do trabalho 31

A ideologia 34 A alienação 42

AS CATEGORIAS DO PROCESSO SOCIAL 50

Das Categorias 50

As categorias do processo da produção capitalista 52

FUNDAMENTOS E SENTIDO DE FINALIDADE DA OBRA DE MARX 61

Teleologia: ontologia e práxis 61

Fundamentos filosóficos 64

Fundamentos econômicos 69

Fundamentos sociais 74

O CONTEXTO PRINCIPAL DO DISCURSO ECONÔMICO E SOCIAL 77

Perfil temático da obra de Karl Marx 78

Fundamentação conceitual 83

Problemas preliminares: a questão do trabalho produtivo 85

Problemas preliminares: dinheiro e renda 86

A estruturação de O Capital 88

A produção (social) de capital 91

A circulação de capital 100

A produção capitalista em seu conjunto 107

GÊNESE E METAMORFOSE DO CAPITAL 120

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4

Traços gerais da questão 120

Mercadoria, valor e valorização 122

A questão especial do dinheiro 129

Os modos de apropriação de valor: produção e captação de mais-v alia 132

Mutação da circulação, produção e produção de mais-valia 132

Os processos de trabalho 136

O processo de valorização 137

Capital constante e capital variável 138

Produção e extração de mais-valia 140

Preliminares 140

A jornada de trabalho 142

Taxa e massa de mais-valia absoluta 144

A produção de mais-valia relativa 145

Mais-valia absoluta e mais-valia relativa 149

A questão especial da acumulação primitiva 150

A divisão do trabalho: artesanato, manufatura, produção fabril 151

Maquinaria e grande indústria 155

A cooperação 156

Modos de composição do capital 157

A condição dos trabalhadores: renda salarial, intensidade da ocupação, opções de trabalho 160

A reprodução simples 162

A transformação de mais-valia em capital 162

O movimento geral da acumulação do capital 163

O papel especial do capítulo VI (inédito) do Livro I 167

A CIRCULAÇÃO: ESPAÇO-TEMPO E SITUAÇÃO HISTÓRICA DO CAPITAL 169

Preliminares 169

As metamorfoses do capital 179

A engrenagem das metamorfoses do capital (industrial) 180

O ciclo do capital-dinheiro 181

O ciclo do capital produtivo 186

Gastos de circulação 187

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Tempo de rotação 188

Capital fixo e capital circulante 189

Rotação global do capital desembolsado e determinação dos ciclos de rotação do capital em geral 190

Tempo de trabalho e período de produção 190

Circulação de mais-valia 191

A reprodução e a circulação do capital social em seu conjunto 192

Antecedentes preliminares 192

A questão geral da reprodução do capital 193

A reprodução simples 195

Acumulação e reprodução em escala ampliada 197

A PRODUÇÃO CAPITALISTA EM SEU CONJUNTO 199

Preliminares 199

Uma primeira reflexão sobre o tema problematizado no Livro III de O Capital 200

A teoria da exploração e a apropriação da reprodução ampliada do capital 202

A arquitetura temática do livro III 205

A conversão de mais-valia em lucro e da taxa de lucro em taxa de mais-valia 212

A taxa média de lucro 216

A tendência decrescente da taxa de lucro 219

O aparecimento e funcionamento do capital a juros 220

A FORMAÇÃO DA RENDA FUNDIÁRIA 227

Preliminares 227

Aspectos gerais 230

O mecanismo central da renda fundiária 234

TECNOLOGIA 239

CAPÍTULO II: A QUESTÃO DAS CLASSES SOCIAIS 244

A LEI DO CAPITAL 249

UMA VISÃO RETROSPECTIVA DO EIXO TEORIA-MÉTODO 251

BIBLIOGRAFIA 255

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6

APRESENTAÇÃO

Neste estudo pretende-se oferecer uma visão interpretativa do pensamento econômico e

social de Karl Marx, tal como ele está exposto em O Capital, que é sua forma mais desenvolvida,

apesar de inacabada, situando essa grande apresentação final frente a sua montagem filosófica.

Marx identificou seu objeto de estudo quando elaborou sua Crítica da Filosofia do Direito de

Hegel; e quando esboçou seu plano de uma crítica da Política, do Direito e da Economia, que

terminou por se concentrar no painel – inacabado – de O Capital. O Capital é o que se

materializou de um projeto muito maior, de crítica e o modo como sua elaboração foi conduzida

foi para dar conta do mundo da produção. O mundo do poder aparece como um baixo contínuo

nessa construção sinfônica e teria que vir à luz com seu próprio movimento em outro trabalho

que Marx planejou, porém jamais teve tempo de elaborar. A expressão crítica na obra de Marx

tem dois significados: o de uma avaliação histórica objetiva e o de mostrar a diferença entre os

fundamentos históricos reais e os fundamentos alegados do poder.

O movimento interno do processo é a história. Para seguir a opção de abordagem do

próprio Marx, de trabalhar com a perspectiva histórica do tema e da teoria, procura-se aqui

situar a formação do pensamento de Marx em seu tempo, assim como se tenta relacionar esse

corpo teórico com a problemática de hoje. Neste empreendimento seguimos a linha de

interpretação representada por Lukács e Meszáros, em que se considera que o rumo estabelecido

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nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de 1844, prossegue ao longo do amadurecimento da

obra de Marx, entendendo que a distinção entre os trabalhos de Marx jovem e Marx maduro

marca diferenças de complexidade, mas não registra rupturas na concepção da análise.

Essa fisiologia do sistema capitalista de produção avançou através dos Delineamentos de

Crítica da Economia Política (Grundrisse) elaborados em 1856-1857 e publicados em 1904, a

Contribuições à Crítica da Economia Política (publicado em 1859), todos a serem vistos como

material embrionário, mas que não elimina o fato de que a exposição da sinfonia é, realmente, O

Capital. Os dois volumes de Teorias da Mais-valia, elaborados entre 1861 e 1863, foram planejados

como um Livro IV de O Capital, mas foram resumidos e transpostos para o Livro II. Os

Manuscritos de 1844 sinalizam a visão crítica e o fundamento ontológico da empreitada de

explicação da trajetória do homem e enquanto integrante de uma sociedade, abrindo, entretanto,

uma linha de debate com Hegel, que a nosso ver é mais um desenvolvimento contraditório do

pensamento de Hegel, que o contradiz no relativo à fundamentação do Direito e do Estado,

quando se situa com clareza a discordância indicada nos Manuscritos, mas que se consolida em

torno da teoria das classes sociais e da propriedade privada1. Mas todo esse material constitui

um conjunto, que surge como uma síntese no volume de 1859, mas onde ainda não se encontra a

arquitetura de análise que se desenvolve em O Capital. Sem restar nada do mérito das

observações de Raymond Aron, relativas à ruptura orgânica que se encontra entre o material

plenamente desenvolvido e o material desigualmente desenvolvido de Marx, somos levados a

considerar que a riqueza de bifurcações de O Capital não está sequer anunciada nos textos

anteriores.

1 A teoria do Direito de Hegel parte

da determinação do indivíduo, cujas

determinações estão embutidas na

“Idéia” – que é uma transubstanciação

da experiência em racionalidade – e na

ligação orgânica entre a Idéia e o

Estado. Nesse contexto, o Estado tem

atributos de racionalidade que não

dependem de sua relação com a

sociedade civil. Hegel defende uma

individualidade que rejeita a

escravatura porque ela é contraditória

com essa afirmação genérica do

indivíduo, mas presume a propriedade

privada como uma conseqüência dessa

individualidade. Para ele o Estado

deriva dos costumes. “O Estado, como

realidade em ato da vontade

substancial, realidade que esta adquire

na consciência particular de si

universalizada, é o racional em si e

para si. Esta unidade substancial é um

fim próprio absoluto, imóvel, nele a

liberdade obtém seu valor supremo e

assim, este último fim possui um

direito soberano perante os indivíduos

que em serem membros do Estado têm

o seu mais elevado dever” (Filosofia do

Direito, pp.201). Aí a liberdade dos

indivíduos se confunde com seu dever

para com o Estado.

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A economia política crítica de Marx é crítica e se separa da economia burguesa por duas

razões fundamentais. Primeiro, porque questiona a propriedade privada e segundo, porque situa

historicamente o sistema capitalista de produção, que não é o primeiro e pode não ser o último.

Assim, não é crítica no sentido kantiano dessa expressão, porque revisasse criticamente seus

próprios fundamentos, senão é crítica porque trabalha dialeticamente com os limites da teoria.

O projeto geral de Marx de crítica do conhecimento organizado resulta de uma visão histórica

do conhecimento como produto social, que permite distinguir uma visão aristocrática de uma

visão burguesa, portanto, que legitimaria uma visão popular do conhecimento, tanto como uma

visão dos colonizados frente à visão dos colonizadores – apresentada como única – e que permite

descobrir o colonialismo. A cientificidade desse conhecimento de classe pode ser questionada,

mas sua legitimidade histórica será indiscutível.

Além disso, há uma diferença de sentido de finalidade entre a crítica que se concebe

como ferramenta de uma ruptura com uma ordem supra social de autoridade e a crítica que

surge do próprio exercício de pensar a objetividade do mundo social. Entendemos que a

principal distinção do trabalho de Marx a partir da Contribuição à crítica da Economia Política

(1959) é essa modificação radical do significado de crítica. A crítica constrói através do

movimento negativo da dialética.

Por isso, a nosso ver, as condições explicativas da crítica avançam quando ela desvenda a

contradição monetária do capital, que precisa do dinheiro, mas depende das moedas, que precisa

encontrar aplicações rentáveis suficientes para reproduzir todo o valor acumulado, mas que se

depara com a concentração do controle das oportunidades de aplicação rentável dos capitais.

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Nessa visão, acolhemo-nos à observação de Marcuse (1967), de que o desenvolvimento do

pensamento de Hegel tornou inevitável uma sociologia. No entanto, é uma sociologia que

avança sobre as contradições necessárias no movimento histórico da organização econômica da

sociedade. A análise critica que se desenvolve sobre a progressão das contradições concretas da

história é a de Marx. Por isso, Marx precisou, desde o primeiro momento, identificar uma

categoria que explique e situe historicamente a exploração do trabalho como nervo central do

processo econômico e não apenas como dado de um momento ou de uma situação. Tal categoria

é a alienação. Neste estudo, especialmente no capítulo 7, torna-se necessário explorar o

significado da alienação na construção da produção capitalista.

Na construção da crítica em seu conjunto, A ideologia alemã tem um papel muito especial

no relativo à identificação sócio-política de categorias econômicas, em mostrar o papel da

ideologia na formação do sistema socio-produtivo do capitalismo e na determinação de sua

superestrutura institucional. Ora, Marx se oporá a Hegel no que para ele a propriedade privada

não pode ser o fundamento legítimo da ordem social, já que ela resulta de uma apropriação

desigual, que prossegue ao longo do desenvolvimento da sociedade, vindo a constituir o

fundamento da produção capitalista.

Um destaque especial deve ser dado à compreensão da divisão do trabalho, que surge

como fundamento material de uma polarização ideológica que se define desde dentro da

organização social da produção e penetra as relações de poder na sociedade em seu conjunto.

“Com a divisão do trabalho, que leva implícitas todas essas contradições e que descansa, por sua vez, na

divisão natural do trabalho no seio da família e na divisão da sociedade em diversas famílias opostas, dá-

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se, ao mesmo tempo, a distribuição, e, concretamente, a distribuição desigual, tanto quantitativa como

qualitativamente, do trabalho e de seus produtos2...” Diferentemente do que se vê em Adam Smith, a

divisão do trabalho não é apenas uma estratégia de produção que se realiza frente a uma

demanda, senão é uma manobra de controle dos trabalhadores, que se faz mediante a

organização do engajamento do trabalho. A divisão do trabalho é um mecanismo que opera nas

relações entre os capitalistas individuais e os trabalhadores individuais, mas que igualmente

opera nas relações entre nações. É uma situação que se realiza sobre mercadorias específicas e

sobre condições específicas de transacionar com essas mercadorias, mas que se projeta sobre o

controle dos modos específicos de contratar trabalhadores.

Nessa escolha há uma questão de método, que aparece primeiro na escolha dos temas e

do modo de abordá-los; e a seguir, no modo de organizar a análise. Para entender o método e a

obra de Marx, pode-se seguir sua progressão genética, ou acompanhando o desenvolvimento do

tratamento de cada tema. Uma notável continuidade do programa de trabalho de Marx torna

inadequadas separações entre obras de juventude e de maturidade, ou entre obras supostamente

filosóficas e não filosóficas. Melhor, podemos trabalhar na exegese da obra de Marx, com a

suposta diferenciação entre obras de juventude e de maturidade, ou entre obras filosóficas e

supostamente não filosóficas; ou podemos, ainda, olhar a obra de Marx como um conjunto,

especialmente dotado de continuidade, que não chega a ser interrompido por completo, sequer

na produção mais diretamente imposta pelas circunstâncias. Qualquer dessas opções é uma

escolha do leitor de Marx antes que do próprio autor, que, simplesmente, trabalhou no contexto

das transformações de sua época.

2 Karl Marx, Ideología alemã cap.2,

Obras escogidas, Moscou, Progresso,

1974, pp.11

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Por isso, preferimos uma combinação da abordagem de progressão genética com essa

visão de conjunto da obra, que a coloca como um momento englobante da teoria social, no

sentido dado a esse termo por Karl Jaspers3. Entendemos que a obra de Marx surgiu no final de

um período de grande vitalidade de pensamento social interpretativo da economia, que foi

substituído por um outro período, essencialmente acrítico, de produção de instrumental

analítico: a economia que questiona o significado social da acumulação e a economia que está ao

serviço da acumulação. A economia neoclássica de hoje é parte desse movimento de produção

acrítica de um instrumental formal. A obra de Marx é uma grande ruptura com a subordinação

do pensamento social aos interesses do capital e abre um grande número de linhas de reflexão

sobre a sociedade de hoje.

A visão do conjunto historicamente situado é essencial, inclusive para ser coerente com o

próprio Marx, que olhou a teoria social desse modo. A obra de Marx contém diversas teorias no

sentido limitado desse termo, mas, essencialmente, é a teoria da produção capitalista, cuja

explicação parte da historicidade da vida social e da raiz social da individualidade. Essa é a

premissa que revela o sentido da formação social de valor, ao tempo em que revela a contradição

do sentido de finalidade da acumulação.

A observação inicial que orienta este estudo, é que só se pode compreender O Capital

considerando a totalidade dessa obra, apesar de estar ela desigualmente desenvolvida. O Capital

se coloca como uma leitura historicamente crítica da formação do capital e do capitalismo, que

se vê como um processo em sua totalidade. A noção de totalidade difere radicalmente da noção

de globalidade – trabalhada na macroeconomia marginalista keynesiana, em que na globalidade 3 Karl Jaspers, Razón y existência,

Buenos Aires, Nova, 1956

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as contradições se dissolvem, enquanto que a totalidade compreende o movimento completo do

processo, com suas contradições. A totalidade se cumpre em seu tempo-espaço histórico e

compreende o modo de se transformar. A concepção do livro corresponde à concepção do

processo que estuda: contém a visão total, a das contradições e a dos componentes do processo.

Os estudos da teoria do valor de Marx, ou que giram em torno do Livro I, isolam parte

de um discurso teórico cujo significado está, precisamente, em sua totalidade. Esta observação

apóia-se em duas referências. Primeiro, no teor de duas cartas de Engels a Victor Adler, com

recomendações relativas a como ler O Capital e no prólogo do mesmo Engels à publicação do

Livro II de O Capital. Especialmente nesse prólogo, Engels ressalta o modo como o livro foi

escrito reiterando o referido a Adler, de que o material apresentado no Livro III teria, em todo

caso, que ser considerado tematicamente como sustentação do exposto no Livro II, apesar de

que este último é, logicamente, antecedente do Livro III. A segunda referência é o tratamento

dado por Marx ao problema de categorias. O livro começa com um tratamento do relativo à

aparência do capital - mercadorias – desenvolvendo uma pesquisa na direção do modo como as

mercadorias são produzidas; e voltando a mostrar como o modo de produzir mercadorias torna-

se o modo de produzir o sistema que produz as mercadorias, e este, por sua vez, revela o

verdadeiro sentido de finalidade do sistema, que produzir mais valia4. Esta visão da obra de

Marx traduz-se numa apreciação crítica da literatura sobre ela, em que há muitos trabalhos

sobre materiais do Livro I de O Capital, e muito pouco material sobre a construção da obra em

seu conjunto, nem sobre o material relativo à circulação de capital.

4 É oportuno aqui citar o ensaio de

Hans Georg Flickinger “O sujeito

desaparecido na teoria marxiana”

(1984), que explora essa linha de

tensão entre o aparente e o essencial

na estruturação de O Capital ,

apontando ao papel necessário dos

elementos da aparência, e,

especificamente, ao significado da

mercadoria. Diremos que o essencial

não se mostra facilmente, e que só se

deixa ver realmente, quando se capta

que se trata de uma progressão de

aspectos da totalidade.

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A noção de totalidade está no âmago da visão do mundo social em Marx, que é de um

conjunto que se transforma continuamente. A perda da visão de conjunto do mundo social

característica significa perda da capacidade perceber o contexto de conflitos e ajustes de que se

faz a materialidade da sociedade historicamente situada e que mostrará como se formam os

mecanismos de dominação e de subordinação. A totalidade histórica se diferencia da totalidade

em Física, porque compreende o mundo da consciência social, que, para Marx, surge da

coletividade e não da individualidade.

Assim, no mundo social a relação entre aparência e essência e entre formas e modos é

fundamental. O Capital representa o movimento da produção capitalista, desde suas raízes em

movimentos de acumulação violenta até o funcionamento do capital financeiro. Mas, para

apresentar esse movimento, realiza um outro movimento, que parte da explicação das formas

aparentes de riqueza – as mercadorias – para suas formas mais voláteis na esfera do dinheiro.

Não é uma viagem no tempo, já que o capital continua utilizando a chamada acumulação

primitiva, como parte da acumulação avançada; e que os sucessivos movimentos de expansão do

capital financeiro no campo e na valorização urbana, obrigam a ver a atualidade da teoria da

renda do solo. É um jogo que responde pela continuidade da acumulação, ou seja, pela

capacidade da produção capitalista de se perpetuar.

Aí, justamente, está o ponto essencial do questionamento marxiano. A acumulação

depende de uma violência sobre o trabalho, que consiste na capacidade de direcionar a força de

trabalho para operar em função dos interesses do capital. Daí, o essencial do processo do capital

são as condições do trabalho. Em última análise, elas respondem pelas condições de vida dos que

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dependem de trabalhar, que ficam à disposição do capital e que devem acompanhar os requisitos

de qualificação inerentes às transformações da composição do capital.

A acumulação igualmente depende de que se produza uma estrutura de instituições

compatíveis com as necessidades atuais do processo de acumulação de capital. Como diz Marx,

“(...) a esta propriedade privada corresponde o Estado moderno, paulatinamente comprado, mediante o

sistema de impostos (...). A burguesia, por já ser uma classe, e não um simples estamento, encontra-se

obrigada a organizar-se num plano nacional e já não somente num plano local, e a dar aos seus interesses

comuns uma forma geral” (Ideologia alemã, Oposição entre as concepções materialista e idealista,

Obras Selectas, pp.77) O arcabouço institucional já surge como parte de um conflito de

interesses.

Para isso, o sistema social que responde por essa acumulação usa de duas grandes

estratégias, que são a educação e a violência. A violência é essencial ao sistema e apenas muda

de forma, chegando à violência da moeda. Mas continua contendo todas as formas anteriores,

que lhe permitiram chegar até este ponto. A última violência é a reificação, que reduz a pessoa à

função de trabalho e que deixa sem resposta a anulação dos que são excluídos da oportunidade

de trabalhar. A reificação é uma tendência geral, que está contida nos movimentos que levam à

formação das classes, mas ultrapassa as fronteiras do confronto de classes, atingindo a questão

mais profunda de identidade.

O movimento do discurso no livro vai até os níveis essenciais da produção capitalista,

que são os da concentração do capital, em que se englobam suas diversas formas; e de inversão

do sentido de finalidade da própria reprodução do capital, que passa a ser comandada pelos

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interesses financeiros. O grande desafio conceitual está em visualizar o capital em sua

complexidade atual e em sua multiplicidade de formas. O capital é o Proteu da mitologia

moderna, cuja pluralidade de formas garante sua unidade interna invisível.

Na composição do discurso em O Capital a nosso ver, há categorias da aparência,

categorias da substância e categorias da transformação, que sustentam o movimento explicativo

da obra de Marx. As primeiras, certamente, são as da pluralidade de formas, onde estão o elenco

das mercadorias e a pluralidade dos meios de produção. As categorias da substância, serão a

totalidade do sistema socio-produtivo e sua complexidade, com sua manifestação na composição

do capital. Finalmente, estão as categorias da transformação, que são a valorização do trabalho e

a mais valia, onde se encontra a possibilidade de um agir diferenciado dos diversos integrantes

da sociedade, que resulta no movimento geral do sistema capitalista. O tratamento dado por

Marx ao problema de categorias torna necessária uma reflexão específica sobre esse ponto, que

procuramos desenvolver no capítulo 4 deste estudo.

Entendemos que em Marx há um manejo de categorias, que pressupõe uma teoria das

categorias, que não está explícita como em Aristóteles e em Kant, mas que constitui as amarras

do andaime geral da análise. Essa teoria das categorias começa com a identificação do papel da

propriedade privada e da alienação e continua com a moeda e o capital, finalizando com a

acumulação e a concentração do capital. O problema de categorias está na fundamentação de

uma análise social histórica, cuja razão de ser consiste em considerar que a história é social e que

o que não se define como social é indiferente para a sociedade. A questão é que ao tratar

racionalmente o contexto social se estabelecem referencias que não podem mais ser ignoradas.

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Na construção do discurso de O Capital, o uso progressivo de pares de conceitos terá que

ser examinado, mas, sem dúvida, representa os elementos de demarcação dos argumentos. A

relação entre modo e forma, entre forma e conteúdo e entre potência e ato, vêm, diretamente, do

arsenal da Metafísica de Aristóteles. A noção de forma substancial identifica-se com a de capital

valorizado. A solução do problema de separação entre a esfera doméstica e a pública, aparece

através da ligação entre o valor de uso e o valor (de troca), que é o primeiro passo da

reconstituição da integração entre a esfera do individual e do coletivo. A diferença é que em

Marx os pares de conceitos são degraus que levam escada acima, a descortinar a movimentação

do capital dinheiro valorizado, com sua capacidade de empreender em diferentes atividades. A

liquidez é a representação dessa capacidade de passar de uma atividade a outra, mudando de

velocidade.

Com essas referências, neste estudo procura-se seguir o mesmo plano estrutural daquela

obra, começando por categorias enunciativas da aparência do capital, passando à identificação

dos movimentos e dos circuitos em que eles acontecem, chegando à produção social de capital e

à produção capitalista em seu conjunto, procurando expor as contradições inerentes ao processo.

Por isso, é uma exposição que se organiza em torno da progressão de categorias, que se inicia

com uma visão sintética da obra de Marx e de suas referências ontológicas. As referências a

Aristóteles e a Hegel, que são necessariamente vastas e complexas, deveram ser reduzidas ao

mínimo, para que não se tornassem desvios decisivos, em relação com o propósito principal

deste estudo. É preciso não perder de vista que o sentido de finalidade do processo do capital,

que é a acumulação, constrói-se sobre uma irracionalidade inicial, colocada pelo próprio Marx

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(L.II., pp.31), que segundo ele consiste no fato de que o trabalho gera valor mas não pode ter

valor por separado do capital.

Dessa visão do movimento do capital emergem duas bifurcações: aquela que identifica as

estruturas institucionais e que submete as instituições à pressão dispersiva do próprio capital; e

aquela outra que leva a capacidade de produção à contradição de perpetuar-se na volatilidade do

capital dinheiro. Dessa contradição entre a necessidade de concentrar para acumular e a

dispersão causada pela acumulação torna-se o eixo dessa visão crítica do processo. Voltar à

discussão da renda da terra no final desse percurso, tal como fez Marx, é um desdobramento

inevitável desse curso de análise, que se propõe mostrar a necessidade do capital de encontrar

meios que lhe permitam reproduzir-se indefinidamente, mas que, ao penetrar nessa necessidade

de expansão termina por mostrar o que há de essencial no capital como modo de uma

sociabilidade fundada na desigualdade.

À luz do exposto, parece-nos necessário tomar em conta, que a conclusão do movimento

do capital até sua forma financeira madura leva o sistema a operar em outros patamares de

velocidade, em síntese, desloca constantemente a velocidade do sistema, obrigando os capitais

específicos a encontrarem aplicações suficientes para reproduzir o capital acumulado em

condições em que, entretanto, os diferentes capitalistas têm condições diferenciadas de acesso às

oportunidades de aplicação que viabilizariam sua reprodução. A composição do capital

acumulado impõe um perfil técnico de aplicações, dada a impossibilidade de que algumas

aplicações, dada a impossibilidade de que algumas aplicações, com certa composição técnica

supram a reprodução de outras, de diferente composição técnica.

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Para os capitalistas em geral, o leque de possibilidades de aplicações fica referenciado

pelas taxas de juros, mas, por oposição, as restrições de liquidez tornam-se parâmetros do

funcionamento do capital no mercado financeiro. Isso, em princípio explica que os capitalistas

operem em todos os segmentos de mercado disponíveis, ou que usem combinações de aplicações

em diversos segmentos de mercado com diferentes composições de capital. O capital aproveitará

todas aquelas oportunidades de aplicação que possam ser parte de um elenco de opções para sua

reprodução. Por isso, a discussão da renda da terra em Marx é, essencialmente, diferente do

tratamento dado a esse tema por Ricardo e ao incorporar criticamente a contribuição de Ricardo

volta à questão levantada por Smith, de que o preço da terra depende da renda que se pode

auferir da produção.

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UM PRELÚDIO FILOSÓFICO

A obra de Karl Marx resulta de um pensar criticamente a objetividade e de ver a sociedade de

hoje como um resultado em processo de um movimento constituído de afirmações e negações da

vida social em sua condição de processo histórico. Nesse sentido, tem uma ancoragem na

manifestação do espírito objetivo representada por Aristóteles, representando um elo de uma

corrente de pensamento que se desenvolve na perspectiva da objetividade e da objetivização e

um fundamento na reconstrução histórica da filosofia realizada por Hegel. Hegel traz de volta o

método como meio de encontrar uma visão de conjunto da filosofia e de explicar a lógica interna

da transformação ou do transformar-se do mundo. Tal método é a dialética. O olhar da dialética

vê a mudança como algo historicamente necessário, isto é, algo próprio do mundo social. A

objetividade está ligada ao reconhecimento do mundo social. O materialismo em Marx define-

se em primeira mão como uma teoria do conhecimento que se baseia em fontes materiais do

conhecer, que extrai suas referências da história social. Materialismo histórico, portanto, é

aquele modo de ler a história a partir da materialidade da vida social, sobre a qual e com a qual

se a ideologia.

Marx começou por fundamentar sua própria visão crítica da filosofia, com sua Crítica da

filosofia do Direito de Hegel - que não se resume em criticar o conhecimento contemplativo da

realidade, mas que toma a realidade social como tema e constrói uma teoria da ação social

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historicamente significativa, entendendo que o desenvolvimento da sociedade moderna se dá

mediante uma liberação de forças sociais inerentes à composição de conflito e composição que

resulta em um movimento dialético. Olhar historicamente para a filosofia e entender que a

visão de mundo é o ápice de cada civilização é uma contribuição de Hegel, que se torna um

fundamento do pensamento crítico de Marx. Para situar historicamente esse esforço de

explicação do processo da realidade social de hoje, é preciso começar por rever seus fundamentos

na formação da própria filosofia ocidental.

Desde suas origens, o pensamento sobre o mundo tomou as formas de uma filosofia do

ser (Parmênides) e uma filosofia do tornar-se (Heráclito), que são opostas e complementares. A

linguagem da filosofia do tornar-se é a dialética, que entende que a identidade do ser é

inseparável de seu movimento interno: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, “tudo

muda”, são fragmentos de Heráclito. A idéia de que há uma ordem interna das coisas que pode

ser lida através de uma lei geral encontra-se desde Pitágoras e sua harmonia – ou regularidade

numérica.

Nessas duas correntes e até a síntese representada pela filosofia clássica grega, com

Platão e Aristóteles, surge, como inevitável, uma preocupação com a idéia de princípio, como

princípio de tudo e como princípio explicativo de tudo. A polêmica em torno do princípio gira

em torno de princípios elementais, tais como água e fogo, mas logo se fixa na noção de uma

lógica interna do modo de ser das coisas – o logos – concebido por Heráclito e avança na direção

de tomar o homem como referência do mundo e do conhecimento do mundo (Protágoras).

Como diz Bárbara Cassin, “os sofistas – Górgias então bastante próximo de Protágoras – são um

Page 21: A economia politica critica de marx

21

momento necessário da história da filosofia: eles refutam a abstração vazia do ser eleático pela

consideração das coisas efetivas, da realidade do mundo sensível e vivo, pluralidade, movimento,

subjetividade”5.

O reconhecimento do meio social historicamente produzido, com suas instituições, e a

necessidade de situar a materialidade da vida social aparecem em sua plenitude na filosofia

clássica (Aristóteles), distinguindo as esferas da vida privada e a da vida pública. Ressalta que a

objetividade com que Aristóteles trata a vida pública está diretamente ligada a sua não

dependência da Cidade Estado, que é a primeira manifestação de um critério internacional, no

sentido moderno desse termo.

A filosofia grega tendeu a distanciar-se dos condicionamentos da religião, mas o advento

do cristianismo trouxe um novo modo de intolerância e de condicionamento, que adiante

resultou na formalização da Igreja Católica Romana e que gerou seus próprios contrários nas

diversas heresias6, no islamismo e mais tarde no protestantismo. O Islamismo na verdade é uma

variante do grande fluxo de religiões do Oriente Médio, que parte do tronco semita, mas cuja

origem é anterior, tanto quanto Abraão fosse realmente um sumério. A recuperação dessa visão

de uma pluralidade religiosa original é necessária, para desmontar os mitos do judaísmo tanto

quanto do catolicismo.

Desde a Idade Média, a construção de um pensamento independente da autoridade

religiosa tornou-se o modo de criar uma base ideológica que se contrapusesse ao poder despótico

da religião. A gestação desse pensamento livre começou na Idade Média desde dentro da Igreja

Católica – Grosseteste, Abelardo, Nicolas de Cusa, Okham – mas só alcançou visibilidade a

5 Bárbara Cassin, O efeito sofístico,

São Paulo, 34, 2005.

6 O papel das chamadas heresias,

desde o monofisismo, o arrianismo,

até os cátaros e os jansenistas, merece

uma análise especial, não só para

registrar a falta de unidade interna

da Igreja, como para mostrar essa

pluralidade como um traço essencial

da religião organizada, que vem

desde os expurgos de textos da Bíblia

e o esquecimento deliberado de

correntes iniciais como os essênios.

Page 22: A economia politica critica de marx

22

partir do século XV e ganhou notoriedade durante a Renascença, quando incorporou o

pensamento grego clássico, que tinha viajado através de Alexandria e do mundo islâmico. O

trajeto da formação de um pensamento científico é, também, o do desvencilhamento da razão e

o do descobrimento do povo como e enquanto coletivo fundamental7. Se as Guerras de Sucessão

(1618-1640) marcaram a substituição do território do monarca pelo território da sociedade na

Europa ocidental, é um longo percurso, coberto por alquimistas e por utopistas, que prefacia o

reconhecimento do ser social da sociedade urbanizada e que vem a mostrar a sociedade como tal.

A noção de totalidade, que surge no mundo do absolutismo do século XVII, torna-se uma

referencia essencial da filosofia de Hegel e do pensamento social de Marx.

A grande revolução social representada pela ascensão da burguesia instala, também, um

estilo de controle social do poder, que combina o conhecimento científico com uma visão crítica

da sociedade. Ao longo do século XVII se gesta a crise do século XVIII, do mesmo modo como

a Revolução Francesa canalizou as colocações dos Enciclopedistas. O Iluminismo em geral

significa a entronização da razão como um único meio legítimo de produção de conhecimento,

mas não supera a contradição entre o sujeito individual intransponível de Descartes8 e a

necessidade de avançar a uma análise dos coletivos sociais que emergiam da superação do

feudalismo.

O fundamental é a organização social da produção, que prepara o terreno para a

Revolução Industrial e que abre as portas para os processos ideológicos do poder baseado no

controle individual da riqueza, isto é, dando um novo sentido ao paradigma da propriedade

privada. A propriedade privada não será mais um estado, mas será a condição fundamental da

7 A poesia de François Villon pode ter

sido mais reveladora do povo que a

filosofia de sua época.

8 A fórmula do cogito, ergo sun” (penso,

logo existo) é a expressão de uma

individualidade sem brechas e sem

acesso ao coletivo social.

Page 23: A economia politica critica de marx

23

formação de capital. Sobre essas bases materiais, a burguesia cria uma nova cortina ideológica –

capaz de conduzir a alienação dos trabalhadores – e passa a captar as bandeiras populares e a

criação do Estado nacional, que tinha sido parte do processo do absolutismo, muda de sinal, com

uma aliança das realezas com a burguesia como parte de sua estratégia para controlar a

aristocracia. O projeto de poder do absolutismo se defronta com a ascensão das sociedades

burguesas do século XVII e com um conflito com as aristocracias. Historicamente, a critica de

Marx é uma resposta a esse movimento geral de reorganização da formação de poder econômico

e político que se assenta na organização industrial da produção.

O ambiente do século XVIII, de crise do absolutismo, ou de substituição dos restos do

sistema feudal por um sistema burguês de produção, situa a questão do idealismo. Primeiro,

uma disputa em torno da possibilidade de uma acumulação de conhecimento – que sustenta a

noção de ciência – com uma filosofia das sensações (Kant vs. Hume) e depois, uma questão da

historicidade do conhecimento (Hegel vs. Kant) que levanta a questão em torno dos coletivos da

sociedade moderna. A passagem de sensações a razão, que é uma questão levantada por

Aristóteles, é fundamental na perspectiva da construção de um conhecimento socialmente

legitimado.

A historicidade das relações e das instituições é uma marca do pensamento de Hegel, que

vê a sociedade civil e o Estado como resultados de processos que sintetizam a experiência de

cada nação9. A experiência de cada nação se vê como um processo que envolve suas diversas

atividades e que alcança seu ápice em sua visão de mundo, que se pode interpretar como uma

visão ideológica da história.

9 Lecciones de filosofia de la historia

universal, Madrid, Alianza Editorial, 1986.

Page 24: A economia politica critica de marx

24

A formulação do idealismo crítico de Hegel trouxe de volta o modo dialético de pensar –

inaugurado no Ocidente por Heráclito10 – que pode ser definido como a lógica interna do

desenvolvimento do objeto social e de sua subjetividade11. A dialética é o modo necessário de

análise, porque a consciência se forma dialeticamente12 e porque a estrutura conceitual do

conhecimento se desenvolve dialeticamente13. A razão não é somente capaz de criar

conhecimento, como defende Kant, senão que uma conseqüência do desenvolvimento do ser

social, que se apropria de suas próprias faculdades e se insere no mundo. Como disse Marcuse, a

filosofia de Hegel tornou inevitável uma sociologia. Mas ao se defrontar com as contradições

entre a sustentação do Estado e as transformações da sociedade civil em seu conjunto, a filosofia

de Hegel infletiu na direção de uma justificação do Estado pelo Estado, desvirtuando o

dinamismo da relação entre a sociedade e o Estado.

A revelação dos coletivos das sociedades baseadas na mercantilização do trabalho contém

o germe da substituição das relações feudais por relações contratuais. A Revolução Francesa,

surgida no contrapé do declínio do absolutismo francês, tornou-se a principal manifestação

desse sistema que valoriza a individualidade, porque ela representa o modo como o sistema

produtivo pode incorporar aumentos de produtividade do trabalho. Mas é o processo social do

capitalismo que vai fazer surgirem as forças de transformação das relações de poder e que

conduzirão o sistema econômico. Ao apontar esse poder transformador do capitalismo Marx

inaugura um modo de pensar a sociedade que não pode mais ser ignorado.

10 O indiano Nagarjuna, também no século VI b.c., foi autor de um discurso dialético semelhante ao de Heráclito.

11 O exemplo dado por Hegel no prólogo da Fenomenologia do espírito, resume essa visão. Em suas palavras, para que um fruto apareça, ele supera e toma o lugar de uma flor e esta, para aparecer, supera e toma o lugar de um botão. O fruto está dialeticamente contido no botão, mas este botão só pode dar lugar a este fruto. Todos processos são determinados. Não há processos meramente genéricos. 12 G.W.F. Hegel, Fenomenologia del espíritu, México, Fondo de Cultura Económica, 1984. 13 G.W.F. Hegel, La ciencia de la lógica, Buenos Aires, Hachette, 1967, 2 vols.

Page 25: A economia politica critica de marx

25

ORIGENS E SENTIDO DE FINALIDADE

...a finalidade última desta obra é descobrir a lei econômica

que preside o movimento

da sociedade moderna (El capital, Prólogo ,pp. xv) 14

A linha mestra

Marx substitui o estudo da realidade social mediado pelos conceitos, tal como tinha feito

Hegel, por uma apresentação direta da realidade social, com suas implicações em revelar os

participantes desse processo e mostrar as determinações materiais de suas ações. O movimento

de mediação se apresenta num sentido inverso ao de Hegel, porque Marx parte de um conceito

que é uma síntese de um processo social, que é o conceito de mercadoria, e constrói uma

progressão de contraposições conceituais até o nível mais amplo, que é o da produção capitalista

tomada como um conjunto, para, a partir dela, reconstruir a compreensão da produção social de

valor, reconhecendo que sua principal referência são as variações do trabalho socialmente

necessário.

14 A busca de uma lei geral

explicativa é o principal traço do que

se veio convencionando chamar de

Economia Clássica e Marx não foge

dessa regra. Veremos que ele destoa

de seus antecessores por buscar uma

lei histórica a partir de uma crítica

do funcionamento do sistema atual de

produção.

Page 26: A economia politica critica de marx

26

Tal empreitada impõe explicar os modos do movimento social e a composição dos

integrantes desse movimento, tanto integrantes sociais como dos meramente materiais. O que

se tem chamado de método estrutural histórico de Marx é a expressão metodológica dessa

genética da sociedade capitalista moderna.

Neste ensaio pretende-se estudar essa linha central do pensamento teórico de Marx, tal

como ela está exposta em O Capital, e aproximar esta reflexão da consideração de problemas

específicos das economias periféricas avançadas de hoje, o que é um modo de dizer, refletir sobre

o Brasil. Na redação do corpo do texto apresenta-se uma leitura sintética do movimento teórico

exposto no O Capital. As observações históricas recentes e as relativas à experiência brasileira

ficam concentradas nas notas de rodapé e nas três últimas seções do texto principal.

No estudo do capital, é imperativo considerar os dois problemas filosóficos fundamentais

de ponto de partida e sentido de finalidade. Ambos estão presentes no conjunto da obra de

Marx; e se encontram, em O Capital, na relação entre a identificação de interesses de poder

assentados na materialidade econômica e o reconhecimento da negação de humanismo, imposta

pelas determinações da acumulação. Entendemos que a negação da filosofia – alegada pelo

próprio Marx – deve ser entendida como uma rejeição da esterilidade da metafísica e não como

um abandono dos problemas e do método da filosofia maior.

A linha central é o movimento da vida social conduzido pela materialidade dos

relacionamentos no ambiente das sociedades modernas. O tema de Marx, como diz Lukács, é a

ontologia do ser social. Diremos que é a ontologia do ser social moderno, mesmo quando

presente em sociedades antigas, tal como Aristóteles. Como a vida social depende de sua

Page 27: A economia politica critica de marx

27

materialidade, O Capital pretende decifrar a montagem da base material da sociedade capitalista,

que é o produto da civilização ocidental. Subjacente nessa abordagem, há um problema cultural,

no sentido mais amplo do termo, relativo à relação entre o desenvolvimento dessa sociedade

econômica originada na Europa cristã e as demais produções civilizatórias, tanto no plano

original, na relação entre a produção capitalista e a que Marx denominou de modo de produção

asiático, como no relativo a outras produções socioculturais, como a reconhecida hoje nos

fundamentalismos e no oriental como tal de modo geral.

Admitindo que Marx é, antes de tudo, um filósofo alemão como diz Kolakowski (1985), e

que o principal objetivo de O Capital é explicar a produção capitalista, trata-se de estabelecer a

linha mestra da análise da sociedade econômica capitalista, entendendo que tal percurso15 só é

inteligível quando colocado frente a seus fundamentos e seu sentido de finalidade, isto é,

quando visto como uma teleologia. Marx diz que é preciso substituir a atitude da filosofia, de

limitar-se a conhecer o mundo, pela atitude de transformá-lo (Teses sobre Feuerbach, 12). Mas é

evidente que muitos filósofos pretenderam transformá-lo e que o corpo central da obra de Marx

é, justamente, uma contribuição necessária ao conhecer. Simplesmente, trata-se de um modo

especial de conhecer, que é um meta conhecimento, no que é, de fato, conhecer o conhecimento

do mundo, em que é no conhecimento que está a inevitabilidade da atitude de transformar. A

teoria da ação é inseparável de um desenvolvimento do conhecimento teórico, devendo

ultrapassar – mas nunca negar – sua circunstância. O que a teoria da ação social tem de especial

em Marx é que a teoria da ação de coletivos integrantes de sociedades historicamente

determinadas.

15 Percurso no sentido dado por Vico

a esta expressão, isto é, de trajeto

histórico do sujeito do processo social.

Percurso do capitalismo e percurso da

explicação do capitalismo.

Page 28: A economia politica critica de marx

28

A relação entre fundamento e sentido de finalidade apresenta o ser social historicamente

formado e em formação, fazendo com que esta teoria seja profundamente filosófica no que ela é,

necessariamente, uma ontologia, como colocou Lúkacs (1979): "A verdadeira construção de O

Capital mostra que Marx lida decerto com uma abstração, mas evidentemente extraída do mundo real. A

composição do livro consiste, precisamente, em introduzir continuamente novos elementos e tendências

ontológicas no mundo, reproduzido inicialmente sobre a base dessa abstração; consiste em revelar as novas

categorias, tendências e conexões surgidas desse modo, até o momento em que temos diante de nós e

compreendemos a totalidade da economia enquanto centro motor primário do ser social".

Um fundamento essencial da doutrina de Marx é a interpenetração, ou a circularidade,

entre produzir e consumir, que sintetiza a circularidade de funções das pessoas e dos grupos

sociais na sociedade moderna. Tal circularidade mostra, ao mesmo tempo, o jogo de dinamismo

e identidade que subjaz na movimentação do mundo. É uma visão oposta à dos economistas

clássicos, que se ativeram ao aspecto externo de separação, sem atentar ao aspecto interno de

identidade. É o mesmo que acontece com a visão das funções de uma cidade – moradia, trabalho,

transporte e lazer – como situações separadas, ou como funções interdependentes, que só se

explicam uma pela outra. Essa circularidade, cuja exposição ocupa as primeiras páginas dos

“Grundrisse”, é essencial para que se entenda a diferença entre a funcionalidade do sistema

enquanto conjunto de funções, que se desloca como conjunto, e a identificação de funções

específicas, que podem ser isoladas como quimicamente puras.

O Capital é um grande projeto de análise da formação da sociedade capitalista, que por

sua novidade - ninguém tentou isso antes - precisou estabelecer o modo de análise compatível

Page 29: A economia politica critica de marx

29

com seu tema. Identificamos dois momentos fundamentais desse modo de análise: a definição

de categorias representativas da realidade social e o reconhecimento de circuitos de

relacionamentos, com diferentes velocidades, organizados em ciclos correspondentes às formas

do capital. O reconhecimento de um conjunto inicial de categorias e o desenvolvimento de uma

reflexão ao nível categorial é um dos pilares desse trabalho, que exige uma análise especial,

sobre a perspectiva histórica do pensamento sobre categorias.

O Capital é uma obra dedicada a explicar o dinamismo inerente à materialidade da vida

social, que presume um subsolo ideológico que reconhece como inerente ao mundo social.

Assim, para alcançar esse objetivo de entendê-la, é preciso identificar as categorias da análise de

Marx e o sentido de finalidade latente no rumo das transformações inerentes à produção

capitalista, que não se confunde com tendências específicas latentes no desenvolvimento do

sistema de produção.

Na linha de pensamento hegeliano de que partiu Marx16, entende-se que o poder

explicativo do corpo teórico só se revela cabalmente, quando se expõe sua ancoragem e quando

ele é visto como um processo que contém as tendências de seu próprio desenvolvimento17.

Assim, é preciso conhecer o processo de produção de teoria, que é a prática da teoria ou a

teorização. O fundamento do corpo teórico do pensamento de Marx é uma compreensão do

dinamismo do campo social. As estruturações, por importantes que sejam, são subordinadas.

Não há como explicar a produção capitalista sem perder de vista o essencial que é o processo de

produção capitalista. Por isso, não há como excluir que esse processo tem necessariamente um

rumo, que se revela, progressivamente, na trajetória das transformações objetivas do processo.

16 Acerca da relação contraditória de

Marx com o pensamento de Hegel,

convém citar o próprio Marx, quando

se insurgiu contra a mediocridade dos

pretensos hegelianos e tomou o

partido do hegelianismo de Hegel

contra o dos seus seguidores. “Há

cerca de trinta anos, quando ainda

estava na moda aquela filosofia, tive

a ocasião de criticar tudo que havia

de mistificação na dialética

hegeliana. Mas, coincidindo com

esses resmungões, petulantes e

medíocres epígonos que hoje põem

cátedra na Alemanha culta, deram

em arremeter contra Hegel... Isso foi

o que me decidiu a declarar-me

abertamente discípulo daquele grande

pensador... (Marx, Postfacio à

segunda edição de O Capital)

17 A fenomenologia do espírito, na

linguagem de Hegel, é a produção do

sujeito totalmente constituído, que é

um ser no mundo, um ser social. A

centralização no ser social, Hegel

realizou uma ruptura com o

movimento conceitual de Descartes a

Kant, ligando a determinação da

individualidade a dados externos a

ela. A relação senhor-escravo situa

diferentes condições dessa discussão

da complexidade da esfera social.

Page 30: A economia politica critica de marx

30

Certamente, é um ponto controverso, que só pode ser plenamente exposto quando se

entende como processo de sociedades históricas concretas. Há um componente de determinismo

nas leis do desenvolvimento do capitalismo, ou a referência central é a práxis transformadora

destituída de sentido de finalidade? Como fica uma teoria da ação social baseada no poder

revolucionário dos trabalhadores - ou em todo caso dos que estão definidos na sociedade por

venderem tempo trabalho - se há leis próprias do desenvolvimento do capitalismo que fixam o

rumo? O poder transformador está em potência na sociedade; e passa a ter diferentes modulações

quando é libertado, tal como o gênio da lâmpada, por uma força externa ao seu destino.

As leis do capital

Da leitura da obra de Marx, inferem-se leis do capital, tal como leis gerais do funcionamento

da sociedade capitalista. No nosso entender, a primeira lei do capital é que ele se sustenta do

trabalho para criar o valor necessário para se reproduzir e acumular. A segunda lei do capital é

que ele cria suas próprias condições de acumulação, com sua própria incerteza. A terceira lei do

capital é que ele tem que encontrar oportunidades de aplicação, em composição e em escala

suficientes para resolver os problemas de reprodução necessários a sua acumulação. A

reprodução do capital em seu conjunto não está garantida e deve ser afirmada em cada

momento, segundo o capital hoje acumulado enfrenta condições futuras de mercado. O processo

A Fenomenologia do Espírito é a obra

de Hegel que mostra essa produção

do ser social enquanto tal, enquanto a

Ciência da Lógica apresenta a

produção do conceito que é o pensar

objetivizado do sujeito. Não importa

que Marx negue a filosofia

formalmente, externalidade, abrindo

a porta à academicamente,

constituída, ele se move

consistentemente no plano ontológico;

e é nesse plano que podemos comparar

a análise da ontologia de Hegel feita

por Marcuse com a análise da

ontologia de Marx feita por Lúkacs.

Page 31: A economia politica critica de marx

31

da formação do capital é irreversível e leva o sistema socio-produtivo a novas contradições,

decorrentes dessa incerteza da reprodução do capital acumulado.

No Livro III de O Capital Marx trata do que denomina de lei do capital, que é a

tendência à queda da taxa de lucro, em si contraditória com a estratégia do capital, de aumentar

a taxa de mais valia em seu movimento de acumular resultando numa tendência à crise do

sistema, determinada pelo modo como se realiza o movimento da acumulação de capital. Mas

trata essa lei como algo que surge do interior do capital, como algo que é lei porque é um

movimento inevitável do capital sobre si próprio.

Parece ser necessário rever essa parte da teoria, já que essa lei geral do capital

corresponde a uma crescente neutralização de força de trabalho, que não é absorvida pelo

mercado de trabalho, representando a sobre-exploração decorrente da compressão da taxa de

salário e a exclusão de um contingente crescente da população, com a conseqüência de que a

sustentação da acumulação requer maior controle social. Assim, a explicação do movimento

técnico do capital converte-se em explicação do processo social de poder que distribui as

oportunidades de acesso à riqueza.

Esta visão sintética do processo do capital será retomada ao final deste trabalho, à luz da

argumentação desenvolvida por Marx, relativa ao processo da produção capitalista em seu

conjunto. A tendência do sistema à crise tanto pode ser vista como resultado de uma contradição

interna do processo, como pode ser entendida como uma conseqüência de forças despertadas

pelo movimento do capital e que constituem outra variante civilizatória, tal como é o confronto

com o colonialismo organizado e com as variantes da modernização do colonialismo.

Page 32: A economia politica critica de marx

32

ORGANIZAÇÃO SOCIAL E IDEOLOGIA

A relação capital/trabalho, as relações entre capitalistas e

trabalhadores e a divisão do trabalho

A organização social é a primeira referência na direção de uma compreensão das relações de

poder em seus fundamentos econômicos e políticos. A relação geral entre capital e trabalho se

materializa em relações concretas entre capitalistas e trabalhadores, onde se incorporam

condições especificas de desigualdade entre o modo de participação dos capitalistas e dos

trabalhadores. Diz Marx que “o trabalhador não precisa necessariamente ganhar com o ganho do

capitalista, mas necessariamente perde quando ele perde”. E adiante, “No trabalho toda a diversidade

cultural, espiritual e social da atividade individual sobressai e é paga diferentemente, enquanto o capital

morto caminha sempre no mesmo passo e é indiferente perante a atividade individual efetiva”18. Até aqui

se indica que a relação entre o capital e o trabalho compreende uma complexidade, que é a da

formação histórica do trabalhador. Além disso, é uma relação dinâmica, que se desenvolve junto

com o movimento da acumulação, já que os trabalhadores ficam cada vez mais dependentes da

forma de organização da produção de que participam. Ao tomar a relação capital/trabalho como

um relacionamento entre capitalistas e trabalhadores concretos em determinadas situações,

18 Karl Marx, Manuscritos

econômico-filosoficos, São Paulo,

Boitempo, 2004, pp.25

Page 33: A economia politica critica de marx

33

Marx chega com uma revisão decisiva da noção de divisão do trabalho, que ele vê como um

movimento inerente à acumulação por um lado e por outro lado, como um movimento que

distancia os trabalhadores dos frutos de seu trabalho. Ainda nos Manuscritos, Marx distingue

sete aspectos desse problema, que são os seguintes: 1. As oscilações acidentais e súbitas dos

preços atingem menos a renda da terra que a parte da renda dividida entre capitalistas e

trabalhadores; 2.Se a riqueza da sociedade estiver em declínio, o trabalhador sofre ao máximo; 3.

A situação dos trabalhadores só pode melhorar quando a riqueza aumenta, mas nesse caso

aumenta a exploração ; 4. O aumento do número de trabalhadores avilta o salário; 5. A elevação

dos salários desperta no trabalhador a obsessão do enriquecimento; 6. Há sempre mais pessoas

infelizes que felizes; 7. Apesar que é o trabalho que gera riqueza, o trabalhador é controlado

pelos capitalistas e pelos proprietários.

Esses pontos levam a uma observação sintética sobre o significado da divisão do trabalho

na acumulação. Na perspectiva de Marx a divisão do trabalho converte-se em instrumento de

controle da realização do trabalho em geral e em controle da distribuição internacional da renda.

A divisão do trabalho é o mecanismo através do qual se delibera quem fará o que. Os aumentos

de produtividade são, justamente, o meio para que os capitalistas tenham mais o que extrair de

um mesmo número de trabalhadores. Nas palavras de Marx, “Enquanto a divisão do trabalho eleva

a força produtiva do trabalho, a riqueza e o aprimoramento da sociedade, ela empobrece o trabalhador até

a condição de máquina. Enquanto o trabalho suscita o acúmulo de capitais e, com isso, o progressivo bem

estar da sociedade, a divisão do trabalho mantém o trabalhador sempre mais dependente do capitalista,

Page 34: A economia politica critica de marx

34

leva-o a maior concorrência, impele-o à caça da sobreprodução, que é seguida por uma correspondente

queda de intensidade”19.

A divisão do trabalho desencadeia a concorrência entre os capitalistas, praticamente,

separando o grande capital do pequeno capital. O grande número de pequenos capitalistas deve

sobreviver no ambiente de mercado em que o grande capital promove a divisão do trabalho e se

reserva os maiores e melhores investimentos. Como a concentração do capital é o movimento

principal determinante da reprodução do capital em geral no sistema de produção capitalista em

seu estagio mais avançado, é preciso entender que o pequeno capital está constituído de

empresas que operam de modo apenas tolerado no mercado conduzido pelo grande capital.

Somente o grande capital pode conduzir a divisão do trabalho no nível da tecnologia mais

avançada e essa será uma vantagem decisiva, com a qual exerce um poder final de controle sobre

os pequenos capitais.

A ideologia

Nossas idéias são a conseqüência necessária da sociedade em que vivemos. HELVECIUS

As mudanças nos fundamentos econômicos levam, mais tarde ou mais cedo, a transformações da

imensa superestrutura em seu conjunto. Ao estudar essas transformações é sempre necessário

19 Karl Marx, op.cit. pp.29

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35

distinguir entre a transformação material das condições econômicas de produção, que podem ser

determinadas com a precisão da ciência natural, a legal, política, religiosa, artística ou filosófica –

em resumo as formas ideológicas em que os homens se tornam conscientes desse conflito. Assim

como não se pode julgar um homem pelo que ele pensa de si próprio, tampouco se pode julgar um

período de transformações por sua consciência. Pelo contrário, a consciência deve ser explicada

pelas contradições da vida material, do conflito entre as forças sociais de produção e as relações de

produção (Contribuição. pp. 21)

Acerca de ideologia, há uma divisão fundamental entre aqueles que a vêm como algo que se

forma e reproduz na esfera das idéias e aqueles outros que a vêm como algo que surge da relação

entre a materialidade da vida social e seus aspectos não materiais. A teoria de Marx ocupa um

lugar especial nesse segundo grupo, onde, por isso mesmo, nela a ideologia deve ser procurada

na raiz das relações sociais de produção, já que para ele são as relações de produção que situam

as pessoas em seu coletivo e em seu momento atual20. Entendemos que nessa perspectiva a

esfera da ideologia é produzida historicamente como um desdobramento da vida material, da

qual se destaca, mas a cujo desenvolvimento está ligada.

“As mudanças nos fundamentos econômicos levam mais cedo ou mais tarde à transformação de

toda a imensa superestrutura. Ao estudar tais transformações é preciso distinguir sempre entre a

transformação material das condições econômicas da produção, que podem ser determinadas com a precisão

da ciência natural, e as formas legais, políticas, religiosas, artísticas, em resumo, ideológicas em que os

20 Cabe citar aqui o ensaio de Stuart

Hall, O interior da ciência, em Da

ideologia, (1980), que traça a linha

genética da análise da ideologia na

ciência social de hoje.

Page 36: A economia politica critica de marx

36

homens se tornam conscientes desse conflito e lutam por ele. Assim como não se pode julgar um indivíduo

pelo que ele pensa de si próprio, tampouco se pode julgar um período de transformação por sua consciência,

mas, pelo contrário, a consciência deve ser explicada pelas contradições da vida material, pelo conflito

existente entre as forças sociais de produção e as relações de produção. Nenhuma ordem social nunca é

destruída antes que todas as forças produtivas de que ela é capaz tenham sido desenvolvidas, e novas

relações superiores de produção nunca substituem as mais velhas antes que as condições materiais de sua

existência tenham amadurecido dentro da estrutura da velha sociedade.” (Contribuição. pp. 21)

Para Marx a questão da ideologia é o meio de afirmação das classes, que, entretanto, não

se revela inicialmente, senão por seus aspectos negativos, que são os de estranhamento e

alienação. Os trabalhadores só percebem sua condição porque são explorados e porque a

exploração é o verdadeiro modo como os capitalistas mantêm sua própria posição no controle do

capital.

Observe-se que uma leitura atualizada do pensamento de Marx significa uma leitura

capaz de absorver seu sentido de crítica interna do processo social, portanto, onde a leitura dos

acontecimentos de hoje é sempre material para somar-se à visão de totalidade da crítica do

processo do capitalismo. Outro não seria o significado da escolha de Marx de analisar o

capitalismo através de sua expressão na Inglaterra. Lembraremos que cerca de 1850 os processos

políticos da expansão do capital tornavam-se mais evidentes na França que na Inglaterra, tal

como indica a própria leitura de Marx do processo francês, tal como ela aparece no 18 Brumário,

mas que era na Inglaterra onde os movimentos imperiais do capital apareciam em sua plenitude,

Page 37: A economia politica critica de marx

37

combinando as transformações da produção industrial com novas formas de subordinação da

produção rural e com um aprofundamento do colonialismo.

A teoria da divisão do trabalho entrou na Economia Política com Adam Smith, que viu

nela o mecanismo pelo qual o capital alcança aumentos de produtividade do trabalho. Uma

leitura cuidadosa de Smith mostra que ele mesmo percebeu que a divisão do trabalho só pode

avançar até onde a demanda justifique incrementos de produção. Marx revisa as idéias de Smith

sobre a divisão do trabalho21 e trata a divisão do trabalho como um processo – e não como uma

situação - que tem os dois resultados de aumentar a produtividade do trabalho e de precipitar

interesses conflitivos22. Segundo ele, a identificação dos grupos de interesse tem sua etapa

estamental23 e passa a relações de classe, ao formalizar-se a produção capitalista. Com isso, dá

um novo sentido à teoria da divisão do trabalho de Adam Smith, reconhecendo, entretanto, ser

aquela teoria o nervo central de uma abordagem realista da organização social da produção.

A divisão do trabalho define interesses contrários e complementares, dos que controlam

capital e dos que vendem tempo de trabalho, que são os fundamentos concretos da ideologia.

Através da divisão do trabalho os capitalistas realizam a separação dos trabalhadores do

processo de produção, que é a principal operação do estranhamento na produção capitalista. Ao

acontecer isso, os interesses dos trabalhadores não se limitam mais a conseguir melhores

salários, senão a conseguir condições que lhes permitam acompanhar o processo de produção e

assim defender sua capacidade futura de mudarem sua condição material de vida.

A ideologia surge como representação de interesses, em que alguns deles aparecem em

sua forma direta, como interesses econômicos e no controle da terra e do trabalho e outros se

21 Karl Marx, Teorias da mais valia,

vol1.

22 É preciso lembrar que para Smith

a divisão do trabalho está ligada à

produtividade – que é a medida de

eficiência do trabalho - e que esta

contém um componente de incerteza,

já que, segundo o próprio exemplo de

Smith, é apenas o acaso que decide se

o caçador encontrará uma lebre ou

um veado e que lhe permitirá obter

mais ou menos carne com o mesmo

tempo de caminhada e a mesma bala.

23 Encontra-se aí uma compreensão

de estamento antagônica à de Weber,

para quem estamentos são formas de

organização com características

próprias que as diferenciam na

relação entre classes e com a vida

política. Para Weber estamentos são

as forças armadas e a Igreja

internacional. Para Marx,

estamentos são formas de

organização que exprimem interesses

antes de consolidarem coletivos

estáveis. Os garimpeiros serão

estamento, as empresas mineradoras

são parte do capital.

Page 38: A economia politica critica de marx

38

manifestam de modo indireto na esfera religiosa, na esfera militar e na política. Uma vez

configurada, a ideologia tem sua própria cara e encontra seus meios de expressão, no manejo dos

preconceitos, no uso da religião e na construção de um corpo jurídico que formaliza essa visão

de classe24. A ideologia não será, portanto, um corpo inerte senão que terá suas próprias

transformações, na medida em que refletir as alterações nas relações diretamente determinadas

pelo processo de produção.

Numa leitura atual desse campo temático – da ideologia – não podemos nos eximir de

apontar o papel do debate sobre ideologia no desenvolvimento do pensamento marxista,

destacando as duas visões mais claramente configuradas, de ideologia como falsa consciência –

Lukács – e de ideologia como representação da superestrutura, Gramsci, apesar de que, no nosso

entender, as duas se fundem numa expressão da necessidade crítica de auto-reconhecimento

numa visão crítica da história do sistema capitalista de produção26. Entretanto, há um dado

adicional do pensamento de Gramsci, que é o pressuposto de existência de um partido político

capaz de exprimir o conjunto de interesses e reivindicações da maioria, isto é, do proletariado.

A polêmica sobre ideologia transcendeu o horizonte de uma teoria social crítica, para

tornar-se uma linha divisória entre uma ciência social que questiona seus próprios fundamentos

ideológicos e uma ciência social que os toma como um dado e por isso alega não haver um

problema ideológico. O positivismo não será apenas o modo de trabalhar da ciência, senão sua

capacidade de perceber-se como meio de conhecer. A positivização do conhecimento e sua

separação do processo de transformação do sujeito nesse mesmo conhecer farão com que o

24 O debate recente sobre ideologia

traz dois encaminhamentos

diferentes, mas parcialmente

complementares, respectivamente, de

uma visão de transformação social na

sociedade mundializada e de ideologia

como capacidade de refletir o ponto

de vista dos excluídos. O trabalho de

Istvan Mézsaros (O poder da

ideologia, 2004) é uma importante

contribuição na primeira linha, que,

de todos modos vem sendo

enriquecida por um debate melhor

fundamentado sobre a escravidão.

Entretanto, não há como deixar de

registrar que a análise do contexto

ideológico da periferia continua à

espera de um tratamento

historicamente sustentado e

consistente.

25 A tentativa de Mezsáros de expor

o papel da ideologia na conformação

da sociedade de hoje explora as

contradições ideológicas do

fundamento científico de hoje, mas, a

nosso ver deixa escapar os problemas

da fundamentação da ciência como

tal, que não podem ficar presos aos

problemas do controle social da

ciência.

Page 39: A economia politica critica de marx

39

processo de formação de ideologias fique como algo externo à experiência representada pela

participação na vida social.

Nesse sentido, a ideologia é a reflexão do modo de funcionar da economia e da política e

é também o modo de identificar os participantes desses processos. Por exemplo, os imigrantes

de baixa renda provenientes de países mais pobres têm realmente o direito de migrar e depois,

têm realmente o direito de aspirar a ter direitos equivalentes aos trabalhadores dos países aos

quais migram?

Hoje, que vivemos numa época marcada pela estratégia do poder para desqualificar

ideologia como um oposto de racionalidade, para podermos apreciar o significado da luta de

Marx em torno de ideologia, precisamos lembrar que para ele se tratava de separar ideologia de

irracionalidade. Através de suas críticas a Hegel e a Feuerbach, Marx realiza uma tarefa árdua,

de separar a ideologia de teologia, o que é dizer, de colocar a ideologia como uma decorrência das

condições em que se desenvolve a materialidade da vida social e não como algo que surge e que

permanece na esfera do espírito. Ressalta-se, entretanto, que a crítica de Marx atinge mais

duramente aos chamados neohegelianos – Strauss, Bauer e outros – que são filósofos posteriores

a Hegel que, a seu ver, exploraram aspectos parciais do pensamento de Hegel, explorando seu

lado conservador, perdendo seu sentido de totalidade, assim como perdendo a perspectiva de

Hegel da formação do ser social. Pelo contrário, Marx toma de Hegel o sentido de totalidade

específica dos processos sociais, a doutrina da formação do ser social – onde se inclui a doutrina

da relação entre senhor e servo – a teoria do trabalho abstrato27, a doutrina das grandes formas

da história28 além do método dialético29. O conflito com Hegel gira em torno da disputa entre

26 Centro de Estudos Culturais

Contemporâneos, Universidade de

Birmingham, Da Ideologia, Rio de

Janeiro, Zahar, 1980. Referimo-nos

especificamente aos ensaios de

McDonough, A ideologia como falsa

consciência: Lukács, e de

Hall,Lumley e McLennan, Política e

ideologia: Gramsci.

27 G.W.F.Hegel, Fenomenologia do

espírito. A maior parte dessas

doutrinas de Hegel aparece na

Fenomenologia, como parte de um

discurso maduro, apareceram antes

em forma embrionária na Filosofia

Real e estão submersos na Filosofia

da História. Restringir a crítica de

obra de Hegel aos projetos da

Fenomenologia e da Ciência da

Lógica significa amputar toda sua

riqueza histórica.

28 -------, Lições de História da

filosofia universal. A teoria da

história de Hegel aparece

explicitamente nas Lições de História

da Filosofia Universal, se bem que os

elementos essenciais de teoria da

história estão embutidos na

Fenomenologia do Espírito. Trata-se

de ver objetivamente o movimento da

história como algo que se processa

Page 40: A economia politica critica de marx

40

uma visão materialista e uma visão idealista da formação do ser social. Mas não há uma disputa

acerca da primazia de explicar o homem como ser social, que é um dos pontos de ruptura entre

Hegel e Kant30.

A perspectiva da formação social da ideologia surge no contexto da divisão do trabalho,

através do processo de separação dos trabalhadores de seus instrumentos de trabalho, que

prossegue com a perda do conhecimento do processo de produção e com a reificação

(coisificação) dos trabalhadores, que é o processo de estranhamento31. O deslocamento

progressivo da posição dos trabalhadores é um movimento inerente ao processo de exploração.

Nesse sentido, a ideologia é o modo de afirmação do ser social. Esse é tratamento dado por

Lukács em seu último trabalho, A ontologia do ser social.

A realização do estranhamento deixa o trabalhador à mercê da pressão organizada do

poder coercitivo e persuasivo dos interesses do capital, que assume várias formas, diretas e

indiretas, através do Direito e da política – diremos que através da educação e dos meios de

comunicação, que é a alienação. A disputa com a filosofia do Direito de Hegel decorre de

entender que o Estado é uma manifestação de poder de classe, e não apenas um produto genérico

da história. O Estado representa interesses de poder econômico, que encontram sua forma

política, mas que continuam operando também em formas econômicas, isto é, encontrando

modos de obter vantagens econômicas através do aparelho político32.

A discussão das formas da propriedade aparece no início desse trajeto da ideologia,

porque Marx, seguindo o trabalho de Engels sobre a origem do Estado, da propriedade privada e

da família, dirá que este é o Estado que surge da propriedade privada e é a propriedade privada

30 Isso está claro no texto de

Hegel sobre Kant em sua

História da Filosofia vol.III. Essa

ruptura é essencial no

pensamento de Hegel, em que é

fundamental a relação entre a

afirmação da consciência

individual e a afirmação do ser no

mundo. Na Fenomenologia a

consciência surge do processo

pelo qual o ser se situa no mundo

mediante o mesmo processo pelo

qual se apropria de suas sensações

e de sua capacidade de ter

sensações. Em Hegel a

consciência de si leva,

necessariamente, à

objetivamente na vida das nações e

no modo de pensar. A racionalidade

para Hegel é algo historicamente

adquirido. Por isso diz que o real é

racional e o racional é real.

29 -------, Ciencia da lógica. O

método dialético está exposto e é

plenamente empregado na

Fenomenologia. Mas é na Ciencia da

Lógica que Hegel expõe o processo do

método dialético, isto é, onde expõe o

pensar dialético na formação dos

conceitos, ou seja, na movimento de

desenvolvimento que resulta na

formação de conceitos.

Page 41: A economia politica critica de marx

41

que sustenta a divisão do trabalho. A propriedade privada é o fundamento material do sistema

capitalista de produção. Ora, o Estado não nasce pronto, senão é produzido pelo mesmo processo

que adiante criará a empresa. O Estado, portanto, é uma entidade que representa a estruturação

do poder político, que, por sua vez, viabiliza o poder econômico. O vai e vem da discussão

ideológica terá esse fundamento concreto irrecorrível.

Assim, diremos que a teoria das classes sociais é inerente à observação do processo

histórico em seu conjunto e não é apenas um registro das relações conflitivas dentro do

capitalismo. Mas que é essencialmente capitalista no modo como se apresenta para nós hoje.

Entendemos que é, justamente, esse desvio conceitual que faz com que certas leituras

superficiais do problema pretendam que a teoria das classes sociais não capta a complexidade da

sociedade fraturada de hoje, ou que a teoria das classes não percebe o contexto etnocultural.

Como colocou o próprio Marx, as relações entre homens livres e escravos nas sociedades

escravocratas é uma relação de classes.

No relativo à formação da sociedade política, as relações de classe são o meio pelo qual a

classe dominante desenvolve o mecanismo de poder baseado no controle ideológico da classe

dominada. Diz Marx, que “As idéias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época; ou

em outros termos, a classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu

poder espiritual dominante. A classe que tem a sua disposição os meios para a produção material dispõe

com isso, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, o que faz que se lhe submetam ao mesmo

tempo as idéias daqueles que carecem dos meios necessários para produzir espiritualmente”33. Identifica-

se aí uma continuidade entre o movimento da formação de classes na esfera econômica e o

33 Karl Marx, Ideologia alemã, em

Obras escolhidas, Moscou,

Progresso, 1974, pp.45

consciência de estar no mundo. Em

muitos sentidos, Hegel é o

contestador de Kant por excelência.

31 Karl Marx, A ideologia alemã.

32 Hoje vemos como esse argumento

ajuda a explicar a corrupção

integrada na estrutura política, em

suas diversas formas, inclusive em

estratégias de favorecimento que não

podem ser formalmente enquadradas

como corrupção.

Page 42: A economia politica critica de marx

42

movimento da formação de um mecanismo de dominação na esfera política, onde ele se revela,

nitidamente, como um dispositivo ideológico.

A alienação

A identificação do papel da alienação no modo capitalista de produção é o ponto de partida na

construção do sistema interpretativo de Marx e constitui o fio condutor que liga a crítica da

propriedade privada ao movimento de separação dos trabalhadores de seus instrumentos de

trabalho e dos resultados de sua produção.

Marx identifica o problema da alienação em dois momentos especiais e diferentes de suas

primeiras obras, que são sua crítica da filosofia do direito de Hegel e o Manifesto Comunista.

As teses desenvolvidas na crítica da filosofia do direito de 1843 foram resumidas e integradas no

corpo analítico mais complexo que são os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, que,

por isso, passaram a constituir o corpo de análise – sistema em status nascendi, como o denomina

Meszaros – apesar de ainda não terem incorporado a crítica histórica da materialidade do

sistema do capital, que surgiria com os Grundrisse. Nos Manuscritos já se encontram os

elementos básicos de uma teoria da exploração, que, entretanto, passa a incorporar os elementos

daquela dimensão histórica que permitirá contrastar o sistema capitalista de produção com seus

sistemas antecessores. A alienação passa a ver-se como elemento essencial da produção

Page 43: A economia politica critica de marx

43

capitalista, que se aprofunda à medida que a produção se torna mais indireta. Desde aí fica

superada a idéia de uma análise da alienação que não se fundamente em dados da história e que

não trate especificamente do capitalismo. Já no Manifesto o tema central é a alienação imposta

pelo capital, onde por um lado os trabalhadores são isolados como pessoas e por outro lado são

agrupados como operários. A alienação converte-se em controle social.

Em ambos os momentos, a noção de alienação surge como detecção de um processo

social concreto, que tem um pé no controle dos trabalhadores e outro pé no controle de umas

seções do capital por outras. A alienação atinge ao sistema socio-produtivo em seu conjunto e

não só àqueles que estão trabalhando hoje. É um processo que se desenvolve de modo não linear,

impregnando as novas relações de trabalho e de lazer no capitalismo avançado.

A alienação é o processo que torna possível a exploração, portanto, não se limita à esfera

da ideologia. A grande força da alienação é que ela explica a energia que conduz a produção

capitalista através do sem sentido da acumulação. Istvan Meszáros realiza uma exaustiva

revisão dos fundamentos civilizatórios da alienação, reunindo suas raízes ideológicas junto com

suas pistas nos processos concretos da produção burguesa. Constrói um importante modelo

explicativo, que foi recolhido em suas obras posteriores, especialmente em O Poder da Ideologia.

É uma contribuição inestimável, que, entretanto, nos deixa diante de um problema crucial, que é

o de distinguir as diferenças entre identificar ideologia como parte da construção ideológica da

produção capitalista, ou como parte da progressão das contradições da organização social da

produção burguesa. Teremos que ver a alienação como uma força que encontra novas formas de

expressão no ambiente da produção moderna e no da produção ultra-moderna.

Page 44: A economia politica critica de marx

44

O propósito de explicar a explicação da materialidade da sociedade moderna levou Marx

a desenvolver uma crítica da teoria de Hegel sobre o Estado, que é parte de uma colocação maior

do mestre da dialética sobre a formação social do poder, que está compactada em sua filosofia do

Direito34. O objetivo final de Hegel é uma teoria do poder na formação da sociedade moderna

que passa por uma economia política, mas que é, essencialmente, uma filosofia do poder. É

necessário ressaltar que Marx centrou sua crítica nesse texto, mas que não desconhece outras

formulações anteriores de Hegel35. Tornou-se consensual entre os leitores de Marx que a

afirmação do rumo de suas pesquisas começa com uma ruptura com o idealismo de Hegel, de

quem, entretanto, Marx absorve o método dialético e a visão histórica, que aplica a sistemas

historicamente situados. No entanto, costuma haver muita simplificação nesse argumento,

atribuindo a Marx um tipo de crítica muito inferior ao escopo de seu projeto intelectual.

A nosso ver, a crítica de Marx a Hegel é muito mais complexa que isso e envolve uma

combinação de elementos positivos e negativos, em que sua crítica parte do conceito central da

dialética hegeliana, a superação/subsunção representada pela expressão aufheben, que se

encontra no prólogo da Fenomenologia; e que se defronta com a contradição dada pela inter-

relação do raciocínio dialético, quando Hegel separa o processo do Estado do processo da

sociedade civil. A argumentação desenvolvida nos Manuscritos depende desse salto de raciocínio

despregado na Crítica da filosofia de Hegel, de 43, em que a disputa conceitual na verdade se revela

como uma querela sobre a historicidade da sociedade e do Estado. Ao ver como se desenvolvem

os argumentos de Marx desde os Manuscritos até a Miséria da Filosofia, temos que considerar que

34 G.W.F.Hegel, Elementos

preliminaries de uma filosofia do

Direito, Lisboa, Presença, 1984.

35 Marx conhecia a Fenomenologia

do Espitito e a Ciência da Lógica,

mas devemos entender que não

conhecia as Lições de História

Universal, que só foram publicadas

depois de sua morte.

Page 45: A economia politica critica de marx

45

a crítica da economia nacional também é uma crítica da falsidade ideológica que consiste em

pretender neutralidade quanto à ideologia.

Numa leitura linear da crítica de Marx, dir-se-ia que o Estado hegeliano separado da

sociedade reduz-se a uma realidade positiva, cujo único produto é a burocracia. De fato, nesse

momento do pensamento de Marx surge uma identificação crítica da burocracia, cujo sentido de

finalidade se diferencia do modo histórico do Estado e se torna um aparelho da burguesia. Marx

dedica algumas páginas à burocracia na Crítica da filosofia em que se antecipou à temática de

Weber, vendo, entretanto, o papel da burocracia como instrumento de poder do capital. Mas não

se pode esquecer que foi justamente Hegel quem rompeu com o jus naturalismo36 para erigir o

direito como formalização histórica. Qual será, então, o processo que desveste a condição

histórica do Estado? Marx focaliza sua crítica na objetivização do predicado feita por Hegel, que

permitiu, a este último, tratar o Estado como sujeito do poder, com um sentido de finalidade que

é a reprodução do poder do soberano, isto é, do monarca, por separado da legitimidade que lhe é

dada pelo povo.

Assim, essa crítica que começa como uma análise do processo da análise torna-se uma

reivindicação do fundamento antropológico de processo do poder, onde surge o povo como

presença essencial da sociedade. O povo é o princípio ativo da dialética do poder. Faltará,

portanto, resolver o problema de ligar essa crítica do processo político do poder com a

materialidade da economia.

Esse será o programa de trabalho da crítica da Economia Política. 36 Ver Norberto Bobbio, Quatro

ensaios sobre Hegel

Page 46: A economia politica critica de marx

46

Há uma diferença radical entre o papel do descobrimento da teoria da alienação na

formação do corpo de idéias de Marx e o significado que lhe é atribuído na leitura de Meszáros.

A proposta de Meszáros compreende uma identificação do sujeito da análise, que, afinal, é

sujeito do processo de reflexividade que surge no contexto da sociedade burguesa, que é esta

consciência social crítica. A identificação do sujeito é um processo que extroverte as diferenças

de situação das pessoas por sua identidade como trabalhadores ou simplesmente como pessoas –

o que remete essa análise ao corte antropológico do contexto social.

A questão é que nessa análise social há um humanismo que é mais que um humanismo

ético, porque qualifica o humanismo de processos sociais específicos. Nessa qualidade, entra o

trabalho de Meszáros sobre a questão do judaísmo, que ele trata como uma marginalidade e

como uma tradição de individualismo e independência. Observe-se que no estudo de Meszáros

se cruzam duas vertentes de leitura dessa marginalidade, que lhe permitem tratar o judaísmo

como fonte de liberdade. A cultura oficial será uma prisão cultural, porque se converte em

imposição irracional de uma determinada forma. Por exemplo, o formalismo metrificado da

poesia francesa, ou o viés empirista da filosofia inglesa. Marginalidade significa dispor de

liberdade para pensar os processos sociais além de seu enquadramento atual, por isso, em

condições de expor seus fundamentos ideológicos.

Com a teoria da alienação se questiona a combinação do movimento concreto de

separação do trabalhador do processo de produção com o movimento de transfiguração

ideológica do processo produtivo em seu conjunto, que reverte sobre todos seus participantes e

não só sobre os trabalhadores, que são vitimados por essa separação. A alienação é um

Page 47: A economia politica critica de marx

47

movimento gerado pela transposição do poder do capital para a esfera do trabalho, onde ele

passa a reger o modo como as pessoas vêm a ser trabalhadores funcionais à reprodução do

capital, ou como protagonizam comportamentos de resistência e procuram se emanciparem da

tutela do capital.

O essencial do processo é que o envolvimento da alienação supera os horizontes de

percepção dos participantes, podendo-se inferir que o escopo da alienação é o do nível histórico

do processo e não o da situação de cada trabalhador no processo. As condições de alienação

variam segundo os integrantes da sociedade são atingidos por movimentos gerais do capital, tal

como pela difusão da mídia eletrônica, ou por estratégias específicas do grande capital.

Logicamente, pesam as iniciativas dos diversos grupos para ampliarem seus espaços de poder,

tal como acontece com os grupos de rendas superiores, que usam sua educação e sua mobilidade

para se associarem ao bloco de poder. Em síntese, o processo de alienação é um aspecto essencial

da sociedade do capital não se restringe às condições de pessoa alguma em particular. Trata-se

de um traço essencial da sociedade do capital e não de pessoas.

Por isso, e não por se tratar em geral de um contexto histórico em que mudam os

significados das relações de produção, é preciso não perder de vista as alterações dialéticas do

arcabouço conceitual, que tornam necessário reconhecer que acontecem mudanças de significado

de conceitos aparentemente invariantes. Conceitos tais como o de indústria, usado por

Meszáros como invariante, deve ser substituído pelos conceitos de grande capital e de pequeno

capital e com uma extensão da análise do aparelho produtivo, que reconstrua a ligação entre as

formas de produção e os mecanismos políticos e operacionais do capital. Ao escolher a

Page 48: A economia politica critica de marx

48

denominação indústria Meszaros cai na armadilha que foi evitada por Marx, que consiste em

confundir o modo técnico com o modo de organização social.

O modo técnico, que é a produção industrial, se resolve mediante diferentes escalas de

tamanho dos diversos capitais, cuja organização é a produção industrializada. A organização

social é a que liga a grande indústria ao grande capital e ao capital financeiro e que gera relações

de trabalho que aprofundam a alienação. Cabe aqui, portanto, a observação de Sartre, que

demarcou a diferença entre a visão progressivo-regressiva, que está no centro da prática da

dialética desde Hegel; e a visão geométrica da estrutura conceitual, que se reporta apenas a um

movimento do processo37. No mesmo caminho, Maurice Godelier lembra que “os conceitos de

economia são, segundo Marx, representações do visível”38. Na economia crítica os conceitos aparecem

com seus contrários: emprego vs. desemprego, lucro vs. salário etc. O que não é visível são as

relações sociais de produção, que estão por trás do emprego e do salário. A distinção aristotélica

entre aparência e essência está na raiz desse pensamento crítico. A critica de Marx é uma

combinação do que é visível com o que não é visível.

Ao procurar explicar o processo de alienação através de um jogo de posições

aparentemente fixas, Meszáros revela situações de contradição, mas compromete o poder

explicativo da análise e deixa em aberto uma questão, de método e de interpretação, relativa à

relação entre os níveis de abstração com que se desenvolve a análise e a generalidade dos

problemas. Assim, diante dessa percepção dos problemas históricos da alienação, cabe indagar

quanto se pode generalizar sobre a questão da alienação na sociedade de hoje sem perder a

capacidade de registrar a pluralidade de situações concretas em que ela se apresenta? Esse é um

37 “Desde que se introduz a

temporalidade, deve considerar-se

que no interior do processo temporal

o conceito se modifica.A noção, pelo

contrário, pode definir-se como o

esforço sintético para produzir uma

idéia que se desenvolve a si mesma

por contradições e superações

sucessivas, e que é, pois, homogênea

ao desenvolvimento das coisas.”

(1965).

38 Maurice Godelier, (1965).

Page 49: A economia politica critica de marx

49

problema ao qual inevitavelmente se chega quando se reconhece que Marx desenvolveu seus

conceitos sobre uma fundamentação histórica concreta. A essência da teoria marxista da

alienação é a captação desse movimento histórico que substitui posições e erode a identidade do

ser social.

Page 50: A economia politica critica de marx

50

CATEGORIAS DO PROCESSO SOCIAL 39

Das categorias

Inicialmente, um esclarecimento relativo ao uso do termo categorias. É um tema que requer

uma análise que não cabe no escopo deste ensaio. Entretanto algo tem que ser dito, porque é

através do aspecto de categorias que se vislumbra melhor a ancoragem do trabalho de Marx em

Aristóteles. No relativo ao modo de enfrentar o problema de identificar categorias de análise

Marx a postura de Aristóteles de ver as categorias na objetividade do mundo social. Potencia e

ato se parecem demais com força de trabalho e trabalho, bem como a doutrina do trabalho

abstrato parece provir da doutrina da forma substancial. Não é somente porque Marx paga um

grande tributo a Aristóteles no Livro I de O Capital, onde reconhece a importância da distinção

entre valor de uso e valor de troca e entre esfera doméstica e esfera de mercado, senão porque a

visão de Aristóteles está presente em diversos aspectos do andaime de O Capital.

Em Aristóteles as categorias são predicamentos inevitáveis na relação entre sujeito e

objeto: espaço, tempo, quantidade, qualidade, extensão. São atributos do real. Em Kant as

categorias são atributos essenciais do pensar: são juízos sintéticos e analíticos. Em Hegel as

categorias são as referências necessárias do processo de formação do sujeito e do processo de

formação do conceito. Por isso, estão submergidas na Fenomenologia do Espírito, que trata da

39 Uma referencia oportuna e –

registra M.Nicolaus na introdução à

versão Pelican Books dos Grundrisse

– que Marx pretendia chamar esse

texto de Categorias da Crítica da

Economia Política

Page 51: A economia politica critica de marx

51

formação do sujeito-ente-ser social e estão explícitas na Ciência da Lógica, que trata da formação

do conceito, portanto, onde a formação das categorias é parte da formação da identidade

conceitual do sujeito.

Em Marx, trata-se das categorias do processo que referenciam sua interioridade e sua

exterioridade, sua objetividade histórica e sua subjetividade. São categorias que situam o

essencial do processo social, que representam o que há de substantivo do processo, suas formas e

seus modos de funcionar. Por isso, são as categorias do mudar como tal e enquanto tal. São

inerentes à condição histórica do universo social.

Substantivo é o trabalho, é o valor e é o mercado. O trabalho desenvolve uma variedade

de manifestações, mas é substancialmente trabalho, e por isso, pode passar por metamorfoses,

mas continua sendo trabalho, isto é um esforço socialmente reconhecido. O valor é a expressão

do trabalho para a sociedade. E a mercadoria é a consubstanciação do trabalho no capitalismo.

As formas são as formas técnicas de produção e as formas institucionais e legais. As formas de

produção decorrem do controle das práticas de produção por parte do capital. As formas legais

surgem do controle do poder e são manifestações indiretas de interesse, que começam a

sustentar o capital através da consagração da propriedade privada e do controle de classe da

representação política.

No entanto, ao ver como Marx trata os conceitos explicativos da sociedade do capital,

entendemos que não se pode separar o reconhecimento das categorias do processo em seu

conjunto das categorias do método. Assim, o trabalho é a primeira categoria do processo, que,

Page 52: A economia politica critica de marx

52

por outro lado, aparece na polaridade força de trabalho – trabalho. Isso só é possível quando o

trabalho se separa da força de trabalho, isto é, quando o trabalho é mercantilizado.

As categorias do processo da produção capitalista

Nesta parte pretende-se focalizar em algumas categorias da análise de Marx que são de especial

relevância para desvendar os fundamentos ontológicos da visão histórica crítica da sociedade de

hoje. São elas as categorias de totalidade e de composição.

A obra de Marx é uma crítica da sociedade moderna, que ele elabora a partir da

materialidade dos relacionamentos na sociedade capitalista. Tal conjunto de relacionamentos se

organiza em torno de usos de tempo para produzir mercadorias, isto é, mediante uma

substituição dos usos de tempo para objetivos próprios de preferências das comunidades e das

pessoas, por objetivos de produção para sustentar a reprodução do capital atualmente existente.

Por isso sua teoria da divisão do trabalho e sua teoria da renda da terra estão impregnadas da

dimensão tempo, que as diferencia das teorias de seus antecessores, tanto de Smith como de

Ricardo.

Qual mecanismo permite aos detentores do capital controlar os usos do tempo

comercializado, isto é, qual mecanismo permite comandar a produção social de valor? A

indagação de Marx começa por mostrar a circularidade dos momentos em que se apresenta

Page 53: A economia politica critica de marx

53

funcionalmente o sistema produtivo (toda produção é consumo, todo consumo torna-se

produção), para situar o conjunto das condições concretas em que a produção se realiza, isto é,

para colocar a produção em situações específicas de complexidade do sistema e de composição

do capital.

Nessa leitura da realidade da economia, há uma teoria da mecânica social montada sobre

uma teoria da mudança social, que se perfila a partir da compreensão de que o sistema produtivo

opera sobre certa composição de trabalho, viabilizada por uma determinada composição do

capital historicamente situada. A composição do trabalho compreende trabalhos socialmente

necessários, isto é, aquele conjunto de trabalhos que são necessários para a reprodução do

capital; e trabalhos socialmente indiferentes, isto é, trabalhos cuja falta não alteraria a

reprodução do capital.

A obra de Marx foi o maior empreendimento jamais feito, de explicação da produção

industrializada, mostrando como ela caminhou no sentido de tornar-se um grande sistema

integrado, na medida em que o capitalismo controlou a produção de tecnologia e o

financiamento, usando-os para controlar o trabalho. e os recursos naturais. Viu, principalmente,

o capitalismo em sua expansão, vendo a crise como uma contradição desse crescimento, quando

a produção capitalista se expandia mediante o modelo energético baseado em carvão.

Obviamente, não viu a grande explosão do capitalismo maduro, baseada na combinação de

petróleo e energia hidrelétrica. Mas antecipou diversos de seus desdobramentos no campo

monetário e na condução da tecnologia. Além disso, viu claramente as contradições dos

movimentos da produção, resultando em ciclos econômicos, bem como a contradição entre a

Page 54: A economia politica critica de marx

54

tendência ao aumento da produção, o desperdício e a formação de resíduos. Os custos sociais do

desperdício e do tratamento dos resíduos se acumulariam no sistema, tornando a produção

socialmente mais custosa e contraditória com os próprios interesses capitalistas, de dispor de

recursos abundantes e oportunos.

A explicação da formação da sociedade moderna permite estabelecer previsões sobre o

rumo que seguirão a produção e o consumo? A análise do processo envolve um sentido

determinístico das transformações da vida social, ou essas transformações acontecem sem serem

parte de lei alguma da organização do componente material da vida social moderna, e a análise

social deve desconsiderar as relações de causalidade? O estudo da sociedade pode ser

adequadamente representado como obra de indivíduos isolados, ou tem que situar a ação desses

indivíduos em contextos de interesse e culturais?40 Como tratar dos componentes coletivos da

ação social, sem penetrar na formação desses coletivos?

A relação de determinismo e autodeterminação é uma parte necessária da teoria social,

que confronta leis - entendidas como traços comportamentais genéricos - e a liberdade de agir

dos grupos sociais e das pessoas. Subjacentemente, portanto, a relação determinismo vs.

autodeterminação compreende todo o relativo ao eixo de subordinação - emancipação, que,

finalmente, dá a medida da liberdade de ação que quebra o determinismo. O movimento geral

de acumulação responde pelo determinismo do processo e a luta de classes situa a pluralidade de

confrontos de interesses que se forma no interior desse processo. Por isso, surge a necessidade

de atualizar a compreensão de interesses de classe, para considerar a relação entre os que

trabalham e os que não trabalham, tenham sido excluídos ou jamais tenham sido incluídos.

40 A história social tende a

confrontar com a história de heróis

individuais, ou em todo caso, tende a

situar os heróis como integrantes de

sociedades que valorizam o

individualismo e de grupos sociais

dotados das condições materiais

necessárias para que o individualismo

se realize. Mesmo um personagem tão

voluntarioso como Alexandre III da

Macedonia, foi o produto de um

processo de formação de uma

monarquia militarista e de uma

educação culturalmente desprendida

de ligações com a cultura grega

clássica, que lhe permitiram formar

um projeto de poder reivindicatório

de valores arcaicos em termos

modernos. A relação com um

fundamento arcaic0 – micênico – que

não tinha relação racial nem

continuidade de poder com a Grécia

desgastada pela guerra do

Peloponeso, era um artifício para

legitimar uma nova relação com o

Oriente em que a Grécia macedônica

fosse hegemônica.

Page 55: A economia politica critica de marx

55

A inter-relação entre a materialidade da vida social e a estruturação ideológica da

sociedade é uma referência fundamental do pensamento de Marx, que observa como a

acumulação de capital sempre se fez mediante expropriação de capital acumulado em forma

primitiva e mediante controle do trabalho. Tal controle é total na escravidão, quase total na

servidão e torna-se um controle monetário na produção capitalista. Porém mercê do controle das

oportunidades de remuneração, torna-se um controle completo das condições de sobrevivência

dos trabalhadores. É preciso compreender que os capitalistas jamais desejaram empregar

ninguém, que sempre empregaram apenas aqueles necessários à reprodução do capital.

Na constituição do corpo de questionamentos que sustenta a linha central de pensamento

teórico de Marx, destacam-se alguns aspectos essenciais do andaime da teoria, que se indicam a

seguir.

A historicidade da sociedade e o significado social da ascensão da burguesia. Na obra de

Marx, a sociedade atual está historicamente situada, vê-se como sociedade burguesa, que é uma

transformação de modalidades anteriores, conduzida pela expansão do capital41. Tampouco essa

transformação se faz de uma só vez sobre o conjunto da sociedade, senão é gradual e incerta; e

acontece segundo as linhas de expansão do capital e naqueles pontos em que se materializam

novas formas de organização da produção. O reconhecimento da historicidade da sociedade é o

fundamento da crítica à economia política convencional e à análise econômica marginalista, que

tratam com um conceito genérico de sociedade42. A essência dessa crítica é ao marginalismo e ao

positivismo, que se identificaram no contexto da economia ortodoxa. Numa perspectiva atual,

essa crítica atinge, igualmente, a corrente neoclássica hoje reconhecida como ortodoxa e a

41 “Quando se afirma que a

objetividade é uma propriedade

primário-ontológica de todo

ente, afirma-se em conseqüência

que o ente originário é sempre

uma totalidade dinâmica, uma

unidade de complexidade e

processualidade” Lúkacs, Os

princípios ontológicos fundamentais

de Marx, pp.36.

Page 56: A economia politica critica de marx

56

corrente keynesiana, que em certos contextos aparece como crítica da análise neoclássica, nesse

caso representada por autores tais como Alfred Marshall, Carl Menger, e os recentes John

Hicks, Paul Samuelson, e seus seguidores. Artefatos teóricos tais como a taxa interna de retorno

- que pressupõem uma conceituação de capital homogêneo - caem nessa crítica. Não se trata de

confrontar uma corrente econômica historicista com uma não historicista, senão de distinguir

aquela análise que trabalha com a densidade histórica dos fenômenos e aquela outra que

considera legítimo abstrair o contexto histórico.

A formação do capital como fundamento da estruturação social pós feudal (Substituição

de trabalho escravo e servil por trabalho assalariado e aumento da apropriação de mais valia)43.

Como o capital se forma mediante mecanismos de compra de força de trabalho, torna-se

necessário explicar as condições de contratação do trabalho. Por extensão, a necessidade de

explicar as condições de contratação dos diversos trabalhos nos diversos segmentos do sistema

de produção. É um ponto fundamental da formação de mercado, que deve ser visto como

produto de um movimento histórico e não como um princípio genérico, nem como uma situação

geral de encontro da demanda e da oferta. Na formulação doutrinária de Marx, além de que o

capital não pode deixar de tomar decisões que afetam à totalidade do capital acumulado, tal

como já tinha advertido Adam Smith, é preciso que ele prossiga na formação de capital,

incorporando capital novo e substituindo capitais já integrados na produção. A formação de

capital representa as possibilidades de mudança dos aspectos técnicos e organizacionais do

sistema, sintetizando a mudança.

43 Observe-se que essa insistência,

no contraponto com a sociedade

feudal, é uma marca da base factual

européia, cuja generalização deve ser

qualificada. A expansão do

capitalismo na América não tem

porque manter essa referência. Em

todo caso, cabe rever os termos dessa

referência ao feudalismo, tal como se

encontra em Perry Anderson (1982) e

em Sweezy et all. (1977). Para

42 "A economia política clássica

apoia-se em duas proposições

fundamentais. A primeira é que a

sociedade (e se trata naturalmente da

sociedade capitalista, ainda que os

clássicos a pensem como sociedade

tout court) baseia-se na relação de

troca, com a conseqüência de que a

explicação do valor de troca é o ato

preliminar da explicação científica da

própria sociedade. A segunda

proposição é que os valores de troca

são, de algum modo, vinculados com

as quantidades de trabalho." Claudio

Napoleoni, Lições... pp.15.

Page 57: A economia politica critica de marx

57

A substituição da sujeição que se realiza mediante o vínculo à terra, que caracteriza a

sociedade feudal, pela sujeição causada pela venda do trabalho controlada pelo capital, com a

conseqüente impossibilidade de reprodução dos trabalhadores fora de seu vínculo subordinado

ao capital. A produção capitalista significa exatamente essa compra de tempo de trabalho.

Entretanto, daquele tempo de trabalho, isto é, daquela força de trabalho, necessário à produção

pretendida pelo capital. Significa que o efeito de libertação da relação patrimonial fica restrito às

necessidades especificadas de trabalho para uma dada produção. Numa leitura latino-americana,

neste ponto entra o relativo aos desdobramentos das velhas oligarquias nas elites modernas, que

é fundamental para entender o tipo de modernização ocorrido na América Latina. Não há como,

nem porque, generalizar o efeito da contratação de trabalho além do horizonte da produção

prevista pelo capitalismo em tempo e lugar específicos. Em suma, substituem-se formas de

controle direto por formas de controle indireto.

A relação necessária entre a exploração do trabalho e a continuidade da acumulação de

capital. A apropriação de mais valia se aprofunda, mediante o aumento da produtividade do

trabalho. Não é uma questão restrita às possibilidades de captação de mais valia a partir de

condições dadas de composição do capital, senão que se indica a capacidade de reorganizar o

sistema de produção para novos modos de captar mais valia. A permanência do sistema

capitalista de produção pressupõe que o capital mantém um controle da renovação tecnológica e

dos recursos da natureza, que lhe permite manter um controle do trabalho, suficiente para se

reproduzir. Os trabalhadores são, progressivamente, destituídos de capacidade de reproduzirem

sua força de trabalho por outros meios que não sejam aqueles controlados pelo capital. O

refletir sobre a América, é preciso

trabalhar sobre a diferença entre o

feudalismo e o absolutismo dos

Tempos Modernos, que foi a base de

uma aliança entre a realeza e a

burguesia, em que a aristocracia foi

latino-americano excluída. À parte

de quaisquer outras experiências,

destaca-se a experiência portuguesa

com a era pombalina. As nações

americanas surgiram no confronto

com o absolutismo e não com o

feudalismo, por mais que no próprio

contexto surgissem manifestações de

organização local de poder com certos

traços de semelhança com o

feudalismo.

Page 58: A economia politica critica de marx

58

processo de exploração muda de forma, mas a essência de exploração e exclusão continua, sob

novas modalidades de organização da produção e do consumo.

A tendência ao aumento do capital constante relativo ao crescimento do capital variável,

que se traduz em declínio da taxa de lucro, com as alternativas de acirramento da concorrência e

de monopolização. Esse movimento deve ser entendido como um saldo que se acumula ao longo

do tempo, incorporando os diversos aumentos do capital em geral acumulado na sociedade e as

diversas quedas do capital constante, correspondentes aos movimentos de desvalorização que

são parte da transformação do sistema. Por exemplo, as perdas de equipamentos de geração de

energia em formas que são descartadas por ineficientes. Aí estão as perdas dos sistemas de

equipamento incorporados no sistema de produção de energia e as perdas que surgem na

operação de cada sistema44. As linhas mais amplas do movimento são as que correspondem aos

ciclos de longa duração45.

A tendência à crise do sistema de produção, que se desencadeia mediante a

superprodução, que decorre dos desajustes entre a venda necessária para reproduzir o capital

acumulado e as possibilidades de venda ensejadas pela renda disponível, que por isso toma a

forma de crises de superprodução, incidentais, porém cumulativas. Já Ricardo tinha assinalado

essa tendência, em conseqüência da concorrência entre os capitalistas por um espaço de mercado

que é dado por sua própria capacidade de compra. Se as rendas dos trabalhadores tendem a

flutuar em torno do menor pagamento que os capitalistas estão dispostos a fazer e de sua

reprodução enquanto força de trabalho, a renda variável do sistema é a dos capitalistas, que

tenderão a tentar aumentar seus rendimentos mediante diversificação da produção naquela faixa

44 Um exemplo muito comentado no

nosso meio é o de uma grande

caldeira que foi importada para ser

operada com lenha que jamais

entrou em operações no pólo

petroquímico de Camaçari, que

resultou de uma política centralista

do processo industrial.

45 Uma referência necessária nesse

ponto é a composição comentada de

textos de Lucio Coletti intitulada

Marx e a queda do capitalismo

(1976). É fundamental que se trata

de uma tendência e não de um

movimento determinístico e

historicamente delimitado.

Page 59: A economia politica critica de marx

59

de produtos que eles próprios podem comprar. Além disso, como se trata de produção a ser

exportada, não há maior preocupação com os possíveis efeitos negativos da compressão da taxa

de salário na formação da demanda desses mesmos produtos industriais.

A exposição crítica do capitalismo envolve, por extensão, algum tipo de especulação sobre

tendências. A questão mais profunda levantada pela obra de Marx nesse sentido refere-se às condições em

que as tendências se formam e às condições para sustentar previsões das tendências, que é uma questão

logicamente anterior à discussão de crises específicas. Há causas externas ao sistema produtivo, tais como

macro variações climáticas e como guerras e terremotos; e há fatores da transformação do sistema, tais

como mudanças das tecnologias básicas, que determinam os conjuntos de tecnologias característicos de cada

etapa da acumulação do capital.

O levantamento feito por Coletti (1974) do tratamento dos processos e dos eventos de

crise no contexto do capitalismo por Marx e seus seguidores, permite-nos ver como evolui o

significado de crise ao longo do processo de monopolização do capital, bem como, nos mostra

que os argumentos em torno da eventualidade ou do determinismo da crise são argumentos

historicamente qualificados. A questão gira em torno de que se entende por crise: situações

críticas ou processos críticos? Ruptura de situações ou mudanças bruscas de rumo em processos,

ou ainda, interrupções de processos?

O sistema de produção tende a gerar crises, além disso, tende a gerar crises desde a esfera

da produção ou na relação entre a produção econômica e a reprodução do bloco de poder? Pode-

se argüir que o sistema tende a três tipos de crise. Uma crise a longo prazo, ligada ao modo de

uso incontrolado de recursos naturais e à tendência ao esgotamento desses recursos. Outro tipo

Page 60: A economia politica critica de marx

60

de crise, conseqüente da concentração de capital, que decorre do modo de usar trabalho e de

empregar pessoas no contexto da monopolização do capital. Finalmente, crises econômicas

diretas, de superprodução, pela tensão entre os interesses dos capitalistas de maximizarem seu

lucro e as limitações da demanda. Assim, torna-se inevitável uma retomada da atualidade do

problema mais profundo de crise do sistema econômico de produção, necessariamente, por

confrontar a perda de recursos naturais com a destruição do emprego.

Page 61: A economia politica critica de marx

61

FUNDAMENTOS E SENTIDO DE FINALIDADE

DA OBRA DE MARX

Teleologia: ontologia46 e práxis

O ponto de partida da relação de Marx com a filosofia é sua cobrança de que ela não seja

apenas uma reflexão sobre si mesma, portanto, que deixe de ser uma teologia sem Deus e que se

volte para o mundo social. Acima de tudo, trata-se de uma visão crítica do processo histórico da

formação da sociedade moderna, que vê a separação entre teoria e ação social como uma forma

de alienação que põe a teoria social a serviço do poder estabelecido. Esse posicionamento leva a

exigir que a filosofia comece por reconhecer um sujeito e um objeto reais, isto é, um sujeito

historicamente constituído, que não é apenas um homem genérico, senão que é um ser social; e

um objeto historicamente estabelecido, que é o mundo social. Esse modo pensar é que o torna

socialmente significativo e que fundamenta seu caráter crítico, isto é, sua capacidade de perceber

as contradições da vida social. Esse critério servirá como guia para ler a filosofia. Não será

suficiente que a filosofia seja uma antropologia. Ela deverá ser capaz de recompor o estatuto de

humanidade e deverá questionar o telos – o sentido de finalidade – da vida social, que será a

libertação do ser social.

46 Não há como iniciar aqui essa

referência sem identificá-la com o

trabalho de Georg Lúkacs

(Ontologia do ser social, 1984)

Page 62: A economia politica critica de marx

62

Que será essa libertação? A libertação não é a superação das necessidades de

sobrevivência, porque o potencial de trabalho dos homens passou a ser canalizado em beneficio

de poucos, através da combinação de propriedade privada e alienação, que são os fundamentos

da exploração no modo de produção capitalista. A liberdade não poderá ser concebida como um

estado original, nem como algo anterior à experiência. A liberdade será algo que se alcança

através da superação da dominação, que é algo concreto, que se materializou em escravidão, em

servidão feudal, e que agora se manifesta na exploração do trabalhador contratado.

A economia política crítica de Marx é, antes de tudo, uma análise dotada de sentido de

finalidade. Desenvolve-se como uma leitura crítica do sistema capitalista de produção, que

entende ser um modo de organização social historicamente situado sujeito a modificações

originadas desde dentro bem como vindas desde fora. É uma crítica da economia política

naquilo em que considera que a economia política não consegue ver historicamente a realidade

social da economia; e descamba na busca de leis tendenciais que surgem de probabilidade

estatística separada de causalidade histórica. Descola daquilo que passa a chamar de metafísica,

por ser esta um exercício de reflexão que não tem esse potencial transformador.

O trabalho de Marx vê a história a partir das condições da economia e da política da

metade do século XIX, quando se defrontava uma consolidação do poder conservador na

Europa, e quando ela começava a se expandir como imperialismo, com o crescimento de uma

classe trabalhadora assalariada. Assim como a filosofia de Hegel esteve marcada pela Revolução

Francesa, a filosofia social de Marx esteve situada no período entre o Brumário de Napoleão III

e a unificação da Alemanha, marcada por um apogeu do conservadorismo consagrado no

Page 63: A economia politica critica de marx

63

Tratado de Viena. Há um pensamento socialista na Inglaterra – Hodgskin, Gray, Owen e

outros – e há um movimento na França que vem desde Babeuf. Contrasta com um espaço

germânico proveniente da desintegração do Sacro Império Germânico dividido em reinos, por

isso com uma pluralidade econômica e institucional, que se refletia numa metafísica que não

efetuava essa passagem para a filosofia social, porque tratava com uma realidade econômica

diferente daquela dos países ocidentais. Marx realiza essa ponte entre a tradição da filosofia e a

ciência social, por isso mesmo, tornando-se uma negação da filosofia clássica.

O pensamento de Marx estabelece um eixo da fundamentação da identidade social com o

trabalho socialmente definido, isto é, situa a individualidade das pessoas na produção de

coletivos que se definem em função do trabalho em sociedade, mesmo quando se trata de

coletivos de outra ordem, tais como os religiosos e militares, cuja raiz na materialidade da

sociedade não é explícita à primeira vista. Assim como na relação senhor - escravo o senhor só

pode existir se houver escravo, na sociedade só podem subsistir os que não realizam trabalhos

materiais porque há outros que os fazem. Assim, a questão do ser não pode ficar à restrita à

visão abstrata – desde a doutrina do ser de Parmênides até a do sujeito Descartes47 – senão

requer uma colocação in corporis, de afirmação sobre a materialidade do mundo. Por isso, não

tem sentido isolar uma leitura econômica de O Capital de seu sentido de finalidade, que

transcende a esfera econômica. O significado último de O Capital é mostrar o humanismo

negativo do capitalismo no conflito de interesses entre situações individuais e condições de

classes sociais.

47 A observação vale para os

pensadores posteriores a Descartes,

que continuaram a elaborar no plano

metafísico, até Heiddeger. A

demanda de Marx, de ancorar a

identidade nos processos materiais da

sociabilidade, situa-se na matriz de

inquirição de Aristóteles, na

primazia do mundo externo como

fator prévio da configuração do

mundo interno.

Page 64: A economia politica critica de marx

64

Para superar essa falta, mesmo incorrendo em simplificação que pode, adiante, restringir

o poder explicativo desta leitura, anotam-se os fundamentos filosóficos, os econômicos e os

sociais do pensamento de Marx, sabendo que cada um deles é uma redução conceitual, que, de

fato, o pensamento de Marx se remete à totalidade social e representa uma totalidade

explicativa.

Fundamentos filosóficos

É preciso estabelecer que a rejeição de Marx à filosofia consiste realmente em um repúdio à

especulação por si própria, que, no essencial, é a separação da filosofia da teologia. Marx

representa o pensamento da realidade histórica, onde a racionalidade é historicamente formada e

não é uma faculdade abstrata tal como em Kant. O grande passo dado por Hegel, de fundar a

consciência e o conhecimento na história é muito mais que uma mudança de método: é

reconstruir os fundamentos da formação social do conhecimento. Essa herança hegeliana, de

historicidade da razão, é modificada por Marx, que a qualifica socialmente, como uma

racionalidade burguesa. Assim como Hegel precisou romper com Kant para poder estabelecer o

modo dialético do conhecimento, Marx precisou romper com o modo abstrato de Hegel, para

construir uma leitura materialista do sistema econômico, político e cultural conduzido pela

burguesia. Isso não significa que o pensamento de Marx estivesse destituído de significado

Page 65: A economia politica critica de marx

65

ontológico. Pelo contrário, o pensamento crítico de Marx é a ontologia do ser social cuja

consistência é anterior ao advento da burguesia. O homem, que foi reduzido a servo pago pelo

capitalismo, é produzido pela formação social e não pela forma de organização da produção.

Há aqui dois aspectos a considerar: os antecedentes filosóficos de que partiu Marx e seu

próprio tratamento da fundamentação de seu corpo doutrinário. A Crítica da filosofia do Direito

de Hegel é um primeiro momento claramente filosófico, em que Marx descobre a alienação como

categoria primordial do sistema do capital, que se concretiza na propriedade privada. Esse

momento se completa com a crítica da dialética hegeliana nos Manuscritos de 44. Até aí, trata-se

de uma crítica ao encaminhamento dado por Hegel a um problema civilizacional da formação da

sociedade moderna. Mas, a partir daí, trata-se de outro problema, qual seja, de levantar as

necessidades de um pensar fundamental da condição humana das sociedades atingidas pela

expansão do capitalismo. Por isso, o questionamento filosófico muda de feição na crítica a

Feuerbach. Uma vez superada a ruptura com a teologia tornava-se necessário voltar os olhos ao

movimento interno de transformação da sociedade. O capital é a força motriz dessa

transformação e deve ser examinado exatamente à luz dessa sua impossibilidade de permanecer

em sua forma atual.

Adiante, O Capital está impregnado de raciocínios sustentados sobre bases metafísicas no

melhor sentido desse termo. Há uma grande diferença entre a crítica da esterilidade da

metafísica e uma visão filosófica que na verdade está em todo esse trabalho que vai à raiz dos

problemas sociais. De fato, a irredutibilidade do homem enquanto trabalhador a formas de

dominação que cerceiam continuamente sua capacidade de decidir de modo autônomo, é o ponto

Page 66: A economia politica critica de marx

66

de partida de uma ontologia do ser social que incorpora a pluralidade inerente ã sociedade

burguesa.

Encontram-se diferenças decisivas entre a fundamentação filosófica do período de

questionamento e crítica de antecedentes, que marca a obra de Marx até a crítica a Feuerbach

em 1846, e a que transpira do período de apresentação da exposição interpretativa do sistema

socio-produtivo, que se inicia com os Grundrisse (1856-1857) e que se revela plenamente em O

capital. Por isso, é preciso reconhecer que O Capital difere das demais obras de Marx, por mais

que muitas das teses ali desenvolvidas tenham sido anunciadas em obras anteriores. Deveremos,

entretanto, reconhecer que a Contribuição à critica da economia política de 1849 contém a exposição

mais completa sobre dinheiro e moeda, que está incorporada em O capital de modo menos

explícito.

A fundamentação da argumentação de Marx em Aristóteles aparece em diversos

momentos na primeira etapa, mas revela-se por completo na segunda etapa, principalmente em

O capital, primeiro, indiretamente, através da influência de Aristóteles em Hegel, e depois,

diretamente, na relação entre uma doutrina das categorias e a construção de uma ontologia do

real. Tal como diz o próprio Marx, Aristóteles não pôde resolver o problema de conversão do

valor de uso em valor de troca porque vivia numa sociedade escravista. O problema é que o

desenvolvimento da moeda depende da monetarização das atividades produtivas, que só se

realiza plenamente na produção capitalista avançada.

Page 67: A economia politica critica de marx

67

Nesta seção se trata dessa primeira parte, reservando-se a discussão da segunda parte

para um estudo específico das categorias da análise marxiana. Assim, apenas para indicar esses

antecedentes, assinalam-se os seguintes pontos:

A doutrina de Aristóteles sobre valor de uso e valor de troca, sobre a separação da

esfera doméstica e da esfera de mercado, com a superação da organização social representada

pela polis (o alargamento da esfera do valor de troca e a subsunção do valor de uso). Não

confundir a referência à universalidade com a negação das estruturas institucionais nacionais48.

A doutrina de Aristóteles sobre a forma substancial (Metafísica); e a conseqüente

possibilidade de pensar que a forma substancial apareça sob diversas formas, ao se

diversificarem os bens usados pela sociedade49. A forma substancial se percebe quando se

conhecem suficientes manifestações de forma que permitem pensar no abstrato dessa forma. A

forma substancial do trabalho é aquele esforço qualificado de trabalho que tem a capacidade de

realizar os diversos produtos que se pretende obter. Em Marx isso aparece como as formas do

valor, as formas da produção etc. A forma substancial é o trabalho; e há hierarquias de formas,

como se depreende da comparação entre o uso desse conceito para trabalhar com moeda e com

formas de produção.

As teorias das categorias, de Aristóteles e de Kant. Um dos principais momentos da

obra de Marx é o seu tratamento do problema de categorias, que está imerso nas soluções dadas

ao estabelecimento dos termos da análise. Não há um tratamento explícito do problema de

categorias, mas há um complexo manejo de categorias como ferramentas de análise, segundo se

trata dos fundamentos da vida econômica, ou do desenvolvimento da vida econômica no

48 Encontramos essa análise em

Política, onde Aristóteles trabalha

sobre a identificação, separação e

articulação das esferas privada e

pública, mostrando claramente como

as esferas pública e privada

interagem.

49 A doutrina da forma, que

sustenta a polaridade forma –

conteúdo, encontra-se na Metafísica,

onde Aristóteles distingue a

pluralidade das formas concretas e

sua identificação com uma forma

substancial, que estaria subjacente no

conhecimento das formas concretas.

Como o conhecimento das formas

concretas está no domínio das

sensações, encontra-se aí aquele eixo

temático de sensação – razão, de que

encontramos um belo ensaio de

Marco Zingano (Razão e sensação

em Aristóteles, 1998).

Page 68: A economia politica critica de marx

68

ambiente do capitalismo. As categorias da análise marxiana apresentam-se em seqüência,

segundo se passa por sucessivos níveis de análise. Inicialmente, é a mercadoria e é o modo de

produção capitalista. Depois é a mais-valia. Em todo caso, são categorias do mudar como tal, tais

como a valorização, a composição orgânica do capital e como o próprio trabalho socialmente

necessário.

A dialética de Hegel enquanto lógica da formação do sujeito. Para Marx, a lógica da

formação do sujeito individual com sua consciência é o processo social em que ele tem lugar. É

preciso distinguir entre a crítica ao modo de pensar de Hegel e a crítica à formação de sistemas

explicativos50; assim como é preciso distinguir entre a crítica a Hegel e ao neo hegelianismo51.

De fato, no desenvolvimento de O Capital, Marx utiliza diversos recursos explicativos de Hegel,

tais como a própria noção de trabalho abstrato e a relação senhor-escravo como base do

relacionamento de poder subsumido no contrato de trabalho52.

A teoria da história de Hegel, tal como exposta em suas Lições da filosofia da história

universal, em que a combinação de aspectos materiais e ideológicos é um dos principais

ingredientes da concepção de Marx de modo de produção.

Separação e interação entre aparência e essência. Essa polaridade aparece entre

interesses (objetivos) e consciência (subjetiva). No desenvolvimento da análise de Marx, o

mundo econômico apresenta inúmeras aparências do essencial, que é a formação de valor e a

concentração do capital.

A questão fundamental da práxis, que constitui uma linha temática cuja origem se

identifica com os gregos, especialmente Aristóteles, e encontra sua formulação mais completa

50 “Assim, o sistema enquanto ideal

contém, sobretudo, o princípio da

completicidade e da conclusividade,

idéias que são a priori inconciliáveis

com a historicidade ontológica do ser,

e que já no próprio Hegel suscitam

antinomias insolúveis” Lúkacs,

op.cit,.

51 Não só pela diferença de estatura

entre Hegel e os "jovens hegelianos",

senão porque uma grande parte da

complexidade do pensamento de

Hegel ficou soterrada pelo fascínio

exercido por seus aspectos mais

brilhantes, ou mais maleáveis aos

usos da burguesia em ascensão na

Alemanha.

52 A relação senhor-escravo de fato

foi primeiro apresentada por

Averróis e certamente incorporada

por Hegel sem referência ao autor

árabe medieval.

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69

na filosofia de Hegel. O social se revela como e enquanto ação, que toma as diferentes formas da

prática. A teoria da práxis a rigor é a teoria do agir como um atributo de uma prática social e não

são uma teoria da ação substantiva genérica separada do contexto social em que se realiza.

Assim, a teoria da ação social em Marx confronta claramente com seus equivalentes de Weber,

Parsons e mesmo de Habermas.

Esses elementos são partes da construção de uma visão de mundo que se produz no

contexto do trabalho, tornando necessário esclarecer a diferença entre trabalho enquanto uso

produtivo autônomo de tempo e trabalho enquanto uso de tempo vendido, por isso decidido por

outrem. Levada às suas últimas conseqüências, essa questão implica em que todo o trabalho,

inclusive o autônomo, está indiretamente decidido por condições de mercado, que, por sua vez,

são estabelecidas pelo capital.

Fundamentos econômicos

A análise social empreendida por Marx precisa de uma análise do componente material dos

relacionamentos sociais. Os estudos econômicos da sociedade capitalista desempenham esse

papel, funcionando como uma teoria de comportamentos historicamente situados. A análise

econômica de Marx apoia-se na produção social de valor, e acompanha os processos pelos quais

o valor é socializado, ao ser incorporado nas mercadorias, que são os produtos da atividade social

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70

de produzir. Entretanto, a questão em causa não é a produção de alguma mercadoria específica,

senão que é o descobrimento do dinheiro como mercadoria geral, cujo controle permite produzir

qualquer mercadoria específica, desde quando o mercado possa absorver esses produtos. Nesse

sentido, seu verdadeiro antecessor é Adam Smith – não Ricardo – a quem Marx rende tributo

em seu capítulo sobre a renda da terra, quando diz desde Smith não houve progresso algum na

análise da renda da terra. No entanto, a revisão da teoria feita por Marx não autoriza essa

simplificação de que descende de Smith ou de Ricardo, senão que os incorpora criticamente,

bem como a James Steuart. A crítica da teoria assentada sobre bases de análise de economias

nacionais, em contraste com a análise internacional do capital, faz com que todas as doutrinas

da Economia Política sejam revistas mediante um critério que é o que aparece no Livro II.

Na perspectiva de Marx torna-se progressivamente mais complexo e o trabalho torna-se,

inevitavelmente, mais eficiente. Ao entender que o trabalho abstrato muda sempre de conteúdo,

segundo muda a composição de trabalhos concretos que ele representa, e que,

concomitantemente, diminui o trabalho socialmente necessário para a realização do produto

final, Marx estabelece que as variações do valor atual do capital acumulado são proporcionais às

possibilidades materiais de criação de valor pelo trabalho, Essa interdependência está no cerne

do processo econômico do capital, que precisa de trabalho para excluir trabalho.

Uma presunção básica sobre a produção capitalista é que ela aumenta constantemente de

complexidade. Mas, para acompanhar o aumento de complexidade inerente à produção

capitalista, a teoria econômica tem que desenvolver uma linguagem adequada para refletir essa

mudança necessária. Por aí, surge uma teoria da circulação, que permite organizar a análise do

Page 71: A economia politica critica de marx

71

movimento da produção capitalista em seu conjunto. Observa-se que a leitura exaustiva da

teoria econômica, que se encontra nas Teorias da Mais Valia, é o registro de um esforço de

resgatar elementos válidos de trabalhos elaborados com outros critérios.

As teorias de Adam Smith e de David Ricardo do valor trabalho, da renda da terra e

da tendência do sistema produtivo à crise. Esses dois autores constituem o principal momento

da economia clássica, que a rigor, na leitura de Marx é mais o fim de uma trajetória do

pensamento teórico que um começo; e que simplesmente teria que ser superada, por ter-se

imobilizado numa teoria da sociedade que não separa os elementos genéricos dos específicos,

portanto, que não vê que a sociedade burguesa industrial deve ser relativizada e comparada com

as anteriores modalidades de organização social. No entanto, Marx soma-se a eles na lei geral

explicativa do funcionamento da produção capitalista.

Uma revisão minuciosa e sistemática da teoria econômica, distinguindo os

fundamentos de uma economia dinâmica ligada a condições históricas concretas do sistema de

produção. As leituras de Marx - As teorias da mais-valia - representam uma crítica do significado

da teoria e não necessariamente uma crítica da consistência de cada contribuição doutrinária.

Uma revisão de pensadores rotulados como mercantilistas tais como Steuart e Petty,

que aportaram elementos essenciais do funcionamento do comércio da era da industrialização.

Nas Teorias da mais valia há uma visão de conjunto das marchas e contramarchas do pensamento

teórico, os Fisiocratas despontam como o principal grupo portador de uma visão de conjunto do

processo econômico, com a ressalva, ainda, de ver as diferenças entre uma visão orgânica de

Quesnay e uma visão instrumental de Turgot.

Page 72: A economia politica critica de marx

72

A análise econômica de Marx está marcada por dois aspectos principais, que são os de

considerar que os comportamentos individuais são objetivamente condicionados pela posição

dos indivíduos na organização social da produção; e por considerar que as decisões de produção

resultam em requisitos de dinheiro e de tecnologia, que afetam o sistema de produção em seu

conjunto. Subentende que o capital opera através das formas operacionais que lhe convêm,

portanto, que há grande capital operando através de grandes e de pequenas unidades de

produção; e que o essencial é a capacidade dos capitalistas – controladores e não só gestores de

capital – de utilizarem a totalidade do capital à sua disposição.

Isso tem as conseqüências de tornar irreal qualquer separação entre macro e micro

economia e de levar a analisar os usos de dinheiro para fins produtivos, resultando na

identificação de necessidades concretas de capital dos diversos tipos de empresa. A falácia da

separação entre macro e microeconomia torna-se evidente em nossa época, por exemplo, quando

se coloca como análise microeconômica uma análise da Wal-Mart e como macroeconomia uma

análise da economia de Honduras ou do Haiti. Este é um ponto crucial da análise de empresas,

em que é preciso distinguir o que são necessidades das empresas, de garantir a liquidez

necessária para realizar sua participação no mercado; e o que são opções ou margens de liberdade

das empresas, para empreenderem em renovação tecnológica ou em ampliações.

A análise de Marx dos ciclos do capital dinheiro e do capital produtivo mostra como as

empresas têm que garantir a reprodução do seu capital; e que essa determinação de reproduzir o

capital controlado antecede e regula quaisquer outras decisões. Na prática, significa que a

política de inovação está objetivamente subordinada às determinações da reprodução do capital,

Page 73: A economia politica critica de marx

73

que a perspectiva schumpeteriana de empreendedores inovadores, trata na verdade de uma

situação subordinada, totalmente inadequada para explicar a política das empresas no conjunto

de financiamento e tecnologia.

Além disso, na análise econômica de Marx está clara a diferenciação entre a

representação dos interesses do capital e a gestão de empreendimentos específicos, que equivale

a distinguir entre empresa e indústria. O capital pode optar por reproduzir-se na forma

financeira, pode representar uma política de aplicações do capital da empresa e finalmente pode

identificar-se com a aplicação específica que é a fábrica. As estratégias das empresas passam por

cima das condições dos empreendimentos específicos.

Justamente, esse descolamento entre os interesses identificados com a reprodução do

capital e as condições de rentabilidade de empreendimentos específicos, é que permite perceber

que os interesses cifrados na reprodução do capital podem levar a um alargamento das distâncias

entre o perfil das aplicações financeiras e o das aplicações diretas na produção. No Livro II de O

Capital Marx trabalha exaustivamente sobre a contradição entre os interesses identificados com

o circuito do capital dinheiro e os interesses que dependem do circuito produtivo do capital.

Ora, o aumento de complexidade do capital investido torna o sistema cada vez mais dependente

da composição dos tempos dos diversos capitais investidos.

Page 74: A economia politica critica de marx

74

Fundamentos sociais

O fundamento social é a identificação de uma sociedade movida por interesses historicamente

formados, que se move mediante conflitos de interesse determinados pela participação na

produção. A sociedade burguesa se forma sobre modalidades de apropriação violenta e

compreende mecanismos de exclusão que operam desde antes da constituição do sistema

capitalista de produção e que continuam operando através de formas modificadas, entretanto

guiadas pelo mesmo principio de controle dos trabalhadores e dos recursos naturais.

No centro da análise histórica de Marx está o contraste entre a sociedade burguesa e o

modo de produção capitalista de um lado e a sociedade feudal e a produção dominial de outro

lado. A produção capitalista surge com uma renovação da propriedade privada, que aparece

como princípio geral e como uma variedade de formas nos diferentes países e nas colônias53.

Sobre ela se transforma trabalho em mercadoria. Ao mercantilizar o trabalho, portanto, ao

colocar os trabalhadores na condição de proprietários de uma força de trabalho que só participa

do mercado quando é alienada, o capital realiza uma operação de duplo significado, que consiste

em liberar forças sociais para transformar o sistema produtivo e em criar novas condições de

exploração. Não é uma simples substituição de formas de exploração, senão é uma operação que

cria novas e mais eficientes condições de mercado. Nesse novo modelo, o comando do sistema

se dá através do controle dos trabalhadores, que é através do controle das oportunidades de

emprego.

53 Cabe-nos abrir a questão relativa

à propriedade privada nos espaços

das colônias – de que fomos parte –

para entender que a formação da

grande propriedade fundiária aqui foi

um desdobramento de um sistema

multiforme de propriedade, em que a

propriedade privada da terra veio

junto com uma visão diferenciada dos

direitos e poderes dos proprietários

das terras.

Page 75: A economia politica critica de marx

75

A formação de capital interfere continuamente na organização de relações sociais,

sustentando a diferença entre os que são equivalentes uns aos outros e entre esses e que não são

equivalentes, ou seja, atingindo a qualidade do outro. Mas o capital surge de relações sociais e

não há como pensar que exista antes de relacionamentos de um coletivo. A situação extrema

logicamente é a escravidão, em que o outro é totalmente negado, mas no contexto de relações

desiguais que evoluem desigualmente, o reconhecimento do outro tem sido desigual e envolve

condições de negação mais claras que as de afirmação54.

Se o capital é uma relação social, a acumulação de capital é um processo que cria

condições sociais diferenciadas, especialmente, que cria condições diferenciadas de estruturação

social. A análise social da economia precisa de categorias sociais indicativas das condições de

organização e do modo como a organização está ligada à participação nos resultados da

produção. Essa é a análise de classes, que está submersa no desenvolvimento de O Capital, mas

que tem que ser recuperada como fundamento da formação dos diversos tipos de coletivos da

sociedade moderna, tanto dos coletivos permanentes como dos coletivos temporários.

Nesse ponto se coloca o papel de uma teoria de classes sociais como representação

sintética dos conflitos de interesse que se desenvolvem nas sociedades industriais. A análise de

classes não está restrita às relações diretas de trabalho, senão envolvem o conjunto das relações

determinadas pelas relações diretas de trabalho. No tratamento dado por Marx à questão das

classes sociais distinguem-se dois aspectos necessários para que se compreenda a sociedade

industrializada. Primeiro, as classes surgem de uma convergência e polarização de interesses,

que se formam em organizações sociais anteriores, mas que se transformam, levadas pela

54 A questão do outro é um ponto fundamental da visão ontológica da vida social. A problematização do outro é essencial nas atuais sociedades sub-industrializadas como o Brasil, onde a desigualdade resulta de um conjunto de elementos pertencentes a diferentes momentos da formação do capital, cuja origem está marcada pelo mercantilismo escravista, com seu fundamento em trabalho compulsório e em negação da identidade de todos aqueles submetidos à condição de escravos e de servos. Revela-se igualmente importante, de outro modo, nas atuais relações entre as nações mais ricas e as mais pobres, com diferentes versões, igualmente explosivas, nas relações entre os países da Europa ocidental e suas ex-colônias e nas relações entre os Estados Unidos e as nações dominadas.

Page 76: A economia politica critica de marx

76

experiência histórica concreta da sociedade burguesa e pela conseqüente consciência de cada

uma das classes envolvidas nesse processo. As classes sociais não surgem do nada. São

resultados de determinadas sociedades. Segundo, as classes são complexas e heterogêneas. Não

podem ser tratadas como conjuntos simples, comparáveis a estratos ou a grupos transitórios,

sejam eles economicamente determinados ou culturalmente identificados. A novidade é que os

interesses concretos das classes dão lugar a uma reconstituição da identidade de seus integrantes

através da formação de sua consciência histórica. Como diz Lukács, a história da classe é que lhe

dá consistência. Ora, essa frase de Lukács deve ser vista como uma conseqüência da visão do

próprio Marx da formação histórica das classes.

As relações de classe são duplas e compreendem as relações entre os que estão envolvidos

diretamente no processo de produção, que dão lugar a relações entre o conjunto dos que estão

envolvidos no processo e os diversos que não estão, que podem constituir conjuntos ou não.

Entre o exército da produção e o exército de reserva da produção. Mas, que é, realmente, o

exército de reserva? A noção de exército de reserva em Marx refere-se à relação geral entre os

empregados e os que precisam trabalhar para obter renda, portanto, que dependem do emprego

que o capital gera.

Page 77: A economia politica critica de marx

77

O CONTEXTO PRINCIPAL DO DISCURSO

ECONÔMICO E SOCIAL

Neste trabalho, a partir deste ponto, trata-se de penetrar no significado histórico do discurso

critico da economia política, que é o objetivo de O capital. Se o discurso da economia política

depende do fundamento jurídico que é a propriedade privada, para sua apresentação, tornou-se

necessário reconstituir seu fundamento sócio histórico, isto é, fez-se necessário mostrar o

sentido progressivo da estruturação da atividade econômica a partir dessa condição posta pela

propriedade privada. O que diferencia a produção capitalista é que ela se realiza mediante

processos de captação de valor que são inseparáveis de um controle do progresso técnico. O

progresso técnico é uma arma que funciona a favor dos capitalistas em sua relação com os

trabalhadores. No entanto, o movimento da substituição de técnicas não pode ser decidido por

nenhum capitalista em particular, mas resulta de uma necessidade do grande capital, como e

enquanto segmento líder do movimento do capital em geral.

“Na produção social de sua existência, os homens inevitavelmente entram em relações definidas,

que são independentes de sua vontade, isto é, relações de produção apropriadas a um dado estágio

do desenvolvimento de suas forças materiais de produção. A totalidade dessas relações de produção

constitui a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real sobre o qual se levanta a

Page 78: A economia politica critica de marx

78

superestrutura legal e política e à qual correspondem formas definidas de consciência social. O

modo de produção da vida material condiciona o processo geral da vida social, política e

intelectual. Não é a consciência dos homens que determina sua existência, senão é sua existência

social que determina sua consciência” (Contribuição à crítica ...pp.21)

Vemos que há dois significados da técnica, em que, num sentido amplo a técnica é a

regra de como se fazem as coisas em geral, isto é, é a forma da práxis, e num segundo plano é

uma variedade de formas específicas, que não necessariamente são compatíveis umas com as

outras.

Perfil temático da obra de Karl Marx

Neste capítulo pretende-se apresentar um esboço da linha central de argumentação do discurso

econômico e social de Marx, entendendo que essa linha central se desdobra em sucessivas

bifurcações, mas que tem uma notável continuidade no relativo a penetrar nas contradições da

produção capitalista, segundo ela se transforma sob o impacto da concentração do capital. Marx

construiu sua argumentação desde a identificação da propriedade privada e da alienação como

elementos primordiais do sistema capitalista de produção e chegou a uma monumental síntese

preliminar em Contribuições à crítica da economia política (1959).

Page 79: A economia politica critica de marx

79

O principal traço epistemológico da obra de Marx está na visão orgânico-evolutiva do

sistema capitalista de produção, que foi apresentado em forma preliminar na Contribuição à

crítica da Economia Política (1859) e em forma conclusiva, porém inacabada em O Capital (1867 a

1883). O modo crítico como essa obra se desenvolve resulta de ver o sistema produtivo como

algo historicamente produzido que, por isso, deve ser visto como um conjunto em

transformação conduzida por suas próprias contradições. Os Lineamentos fundamentais para a

crítica da Economia Política, conhecido como Grundrisse (Esboços) (1857-1858) não foram

autorizados por Marx e somente foram publicados em 1904. Neles, entretanto, encontra-se

material que foi resumido na Contribuição, tornando-se necessária uma leitura progressiva e

comparativa desses textos, para entender o direcionamento dado por Marx em O Capital.

Observe-se que esses Lineamentos foram elaborados dentro de um plano complexo, que exige um

estudo à parte, onde se encontram um grande capítulo sobre dinheiro e outro sobre capital, que

são fundamentos essenciais da versão ulterior em O Capital.

Nada disso, entretanto, elimina o fato de que o desenvolvimento do tema em O Capital é

incomparavelmente mais detalhado, completo e integrado que nas demais obras, e que há

diversas linhas da polêmica sobre o capitalismo que só se encontram em O Capital. A nosso ver

a diferença fundamental entre O Capital e os momentos anteriores da obra de Marx está no

planejamento mesmo dessa última obra, cuja concepção ultrapassa tudo anterior.

Outros textos econômicos, tais como Salário, preço e lucro, são tomados como

preparatórios e condicionados, por terem sido elaborados como material de debate. A polêmica

tem sido apresentada como uma conseqüência da atividade política de Marx, mas entendemos

Page 80: A economia politica critica de marx

80

que há muitos indícios de ter sido um recurso usado por ele para esclarecer melhor suas próprias

idéias. Isso ficou muito claro no debate com Proudhon, que em momento algum teve estatura

para contestar O Capital. Uma vez esclarecido o problema das categorias do método, Marx

descarta a polêmica, cujas limitações reconhece.

Encontramos poucas tentativas de trabalhar com uma visão da obra de Marx em seu

conjunto. Se O Capital é a máxima formulação da crítica de Marx é em sua totalidade que está a

estruturação dessa crítica. O fato de que a teoria do dinheiro e da moeda esteja mais

desenvolvida em obras anteriores não elimina o fato de que é em O capital a função do dinheiro

e da moeda está plenamente exposta.

Na compreensão da estruturação da obra de Marx destacam-se os comentários de

Rosdolsky (1989) e de Kautsky (1946), que dão conta do alargamento dos objetivos e do aumento

de complexidade que se apresentaram desde seus delineamentos iniciais até sua forma final. No

entanto, os dois pecam por simplificações. Kautsky por reduzir a teoria econômica de Marx a

uma mecânica da operação do capital e Rosdolsky por tomar a explicação das categorias como

apresentação da teoria. Sinteticamente, essas mudanças podem ser atribuídas à relação entre o

aumento de complexidade do capital - em sua composição e em sua reprodução - e o tratamento

da produção capitalista em seu conjunto. Em clara contradição com a abordagem dos Clássicos

seus antecessores, é um tratamento que focaliza nas variações de uso de trabalho e em emprego

de trabalhadores, antes que em formas de uso de trabalho. Na linguagem de hoje, tais variações

devem ser vistas como irreversíveis, já que correspondem a situações da evolução do capital que

não podem realmente se repetir. Ao identificar a lei da tendência decrescente da taxa de lucro

Page 81: A economia politica critica de marx

81

(L. III) Marx revela uma contradição essencial do processo, que é aquela que se estabelece entre

essa tendência decrescente da taxa de lucro e as necessidades do capital, de resultados com que

se reproduzir.

Ao distinguir a força de trabalho inerente ao trabalhador, isto é, sua força de trabalho, e o

trabalho que se realiza formando valor, Marx prepara o terreno para mostrar que a apropriação

de valor é progressiva, e que o poder do capital aumenta, junto com o valor acumulado que ele

comanda55. A questão é que a apropriação de valor se realiza em sistemas mais complexos, onde

o trabalho se torna mais qualificado. Por isso, o coração do problema não é o controle da

tecnologia, senão são as crescentes necessidades da reprodução do capital, que estão por trás do

movimento geral de busca de renovação tecnológica.

As explicações de Rosdolsky estão estruturadas em sua leitura dos Grundrisse, pelo que

apontam à relação entre as teses assinaladas e o que se desenvolveu em O Capital. Baseiam-se

em aspectos necessários para o estudo da produção capitalista em seu conjunto, que é tratar do

modo de produção capitalista em condições históricas concretas. Inicialmente, mostra o resgate

da dialética como modo de pensar que reflete o modo da realidade social da economia. Segundo,

o papel do dinheiro, como principal meio de realização da produção capitalista e como veículo da

circulação de capital. Cabe entender que esse mergulho na produção dos conceitos

estruturadores da análise tem um lugar muito especial na compreensão do processo de trabalho

de Marx em seu conjunto.

Os Grundrisse estão organizados em grandes capítulos temáticos – o dinheiro e o capital –

onde se registra aquela etapa do trabalho de Marx em que ele está no movimento de

55 A influência de Aristóteles é

nítida: força de trabalho e trabalho

correspondem, claramente, à doutrina

de potência e ato que se encontra

desenvolvida na Metafísica.

Page 82: A economia politica critica de marx

82

compreender os processos que quer dilucidar, mas onde ainda não concebeu a estrutura

explicativa que ao mesmo tempo é a estrutura interpretativa, que é o que desenvolve em O

Capital. Já se apresenta a complexidade conceitual do trabalho, mas ainda não se encontra a

distinção entre a esfera da exposição abstrata e a esfera do concreto, que é outro dos aspectos

fundamentais de O Capital, tal como diz o próprio Marx ao indicar que no Livro III de O Capital

verá o processo por seus aspectos concretos56.

Os textos filosóficos, especialmente as Teses sobre Feuerbach e a Ideologia Alemã, são aqui

considerados como partes necessárias da explicação do quadro econômico, tratando-se como

referências colaterais, porém integradas com o desenvolvimento da análise social e econômica.

Uma referência especial deve ser dada ao ensaio intitulado Feuerbach, oposição entre as concepções

materialista e idealista, que é o primeiro capítulo da Ideologia Alemã. Ali é onde se apresenta a

relação entre a divisão do trabalho e a formação de ideologia como decorrência do modo

capitalista de produzir.

Mas não se pode perder de vista que a maior parte das reflexões filosóficas de Marx – que

se desenvolvem desde seus primeiros trabalhos - está submergida no texto totalizante de O

Capital. No conjunto da obra de Marx, O Capital se coloca como o ponto máximo de

consciência englobante, no sentido dado a esse termo por Karl Jaspers: a máxima possibilidade

de ver um processo desde um ponto determinado.

56 Esse é outro ponto do modo de

trabalhar de Marx que é nitidamente

extraído do modo de trabalhar de

Hegel, quando ele desenhou a

separação entre a Fenomenologia do

Espírito e a Ciência da Lógica.

Page 83: A economia politica critica de marx

83

Fundamentação conceitual

Para compreender o corpo central da obra de Marx, é preciso entender que todo seu

pensamento teórico está assentado sobre categorias de mudança, ou melhor, categorias do mudar57

que contrastam com as categorias de Aristóteles, que são categorias do predicamento ou do

objeto; e com as de Kant, que são categorias do pensar. Nosso convencimento é que a doutrina

de categorias é um dos aspectos principais da obra de Marx, que demandam uma reflexão mais

cuidadosa.

Essas referências necessárias do pensamento teórico, tais como a mercadoria, o modo de

produção, o trabalho, o capital, representam entidades cujo conteúdo necessariamente muda ao

longo do tempo. É um trabalho historicamente situado, isto é, cujo valor corresponde a uma

determinada inserção no processo de produção, em sua trajetória histórica58, O que distingue o

contexto genérico do modo de produção do contexto concreto da formação social é, justamente,

o trabalho situado, cujo valor depende de sua inserção em determinado espaço-tempo de

acontecimentos.

O sentido de finalidade da análise determina a necessidade de uma análise de seus

fundamentos, tanto como tem levado à de suas conseqüências, geralmente vistas como na

tendência à crise do sistema. Uma análise específica de categorias terá que ser realizada adiante,

para estabelecer em qual referencial se situa e pode ser desenvolvida. No escopo deste ensaio

indica-se apenas a necessidade de distinguir categorias da produção em geral e da produção

57 Trata-se do modo de mudar da

sociedade organizada, que

compreende as condições de mudança

dos indivíduos. Ao ver a mudança

como algo inerente e inevitável da

vida social, supõe-se que a análise

social tem que organizar-se como

teoria da mudança, portanto,

remeter-se a condições concretas de

tempo.

58 É um aspecto registrado por José

Artur Giannotti, em seu Certa

herança marxista (2000)., que a

nosso ver deve ser especificado em

termos de quais situações. O trabalho

historicamente situado está num dado

ponto momento da progressão

formativa do sistema de produção; e é

parte do que acontece nesse ponto

momento. Noutras palavras, é

protagonista desse dado ponto

momento.

Page 84: A economia politica critica de marx

84

capitalista em especial. Num primeiro grupo de categorias, colocam-se o valor de uso e o valor

de troca, o capital e o trabalho e a mercadoria. Num segundo grupo colocam-se a mais-valia, a

composição do capital, o modo de produção. A concretude do sistema impõe trabalhar com

outras ordens de categoria, tais como são a formação social, a jornada de trabalho, a composição

do capital. Há categorias que situam a materialidade do processo e outras que situam sua textura

ideológica.

É preciso deixar claro que Marx trabalhou com um claro sentido de categorias, onde os

Grundrisse são uma grande pesquisa sobre as categorias moeda e capital, e onde a categoria

trabalho se define progressivamente desde os Manuscritos de 44 até uma apresentação conclusiva

no Livro I de O capital.

O tema de Marx é a sociedade capitalista, que está governada pelas determinações do

modo de produção capitalista (mpc), com suas plenas características de sociedade moderna. Este

modo de produção capitalista consiste de que a produção é decidida pelos interesses privados que

controlam a formação de capital. O mpc consiste de que a produção é realizada mediante a

compra de força de trabalho, que é realizada de tal modo que permite aos compradores (os

capitalistas) apropriarem-se de tempo de trabalho comprado e não comprado.

Ao comprarem trabalho, os capitalistas obtêm o trabalho pago, e o trabalho não pago que

vai junto com esse, que é a mais valia; além de uma contribuição dos trabalhadores ao fundo de

consumo dos próprios capitalistas, já que uma parte do consumo dos capitalistas é atendida

mediante as preferências na composição do produto social.

Page 85: A economia politica critica de marx

85

Problemas preliminares: a questão do trabalho produtivo

No primeiro volume, capítulo IV, das Teorias da Mais-Valia, Marx faz uma revisão

pormenorizada da formação dos conceitos de trabalho produtivo e improdutivo, passando pelos

Fisiocratas e pelos Clássicos, apontando, basicamente, dois aspectos fundamentais, que são a

separação entre a visão de trabalho produtivo na produção capitalista e na mercantil e a

ambigüidade da concepção dos Clássicos sobre o tema, que é, praticamente, a concepção de

Adam Smith. O grande achado de Marx sobre esse problema é mostrar que se trata de trabalho

produtivo para a produção capitalista e não para o trabalhador. Em suas palavras, “Trabalho

produtivo no sentido da produção capitalista é o trabalho assalariado que além de reproduzir essa parte do

capital (o capital variável) ainda produz mais valia”. (Teorias da mais-valia, I, pp.132). Adiante, “um

escritor é trabalhador produtivo, não por produzir idéias, mas enquanto enriquecer o editor que publica

suas obras ou enquanto for o trabalhador assalariado de um capitalista”. (op.cit. pp. 137).

A nosso ver, a principal questão que se levanta a partir da conceituação de Marx é que o

trabalho dos trabalhadores pode ser produtivo sempre e quando houver condições para que se

converta em capital, o que depende das condições de desenvolvimento do sistema produtivo e

não pode ser uma definição inicial. Em última análise, isso significa que a produtividade do

trabalho não é somente uma medida da eficiência local do trabalhador, mas é uma medida local

Page 86: A economia politica critica de marx

86

de eficiência externamente determinada pelas condições ambiente em que o trabalhador

trabalha, que são proporcionadas pelo capital.

Problemas preliminares: dinheiro e moeda

Na origem do tratamento da moeda em Marx está a necessidade de uma representação do valor

de troca, capaz de registrar o movimento geral de incorporação de valor própria da acumulação

capitalista. O dinheiro é a representação do valor sem ataduras institucionais, exprimindo

plenamente a internacionalização do sistema produtivo. O dinheiro como tal antecede as

condições operacionais de cada país, mas ganha sua identidade na forma de moedas nacionais,

que são manifestações de soberania. O dinheiro é o valor de troca com sua falta de ligação com

as instituições nacionais, enquanto a moeda é a manifestação financeira do poder econômico

dessas instituições. O problema teórico enfrentado por Marx é de explicar a circulação do

capital, entendendo que ela é um movimento progressivamente mais amplo e mais complexo,

que é funcional ao sistema produtivo. A esfera monetária não está separada da esfera real, senão

é o meio pelo qual a esfera real é movimentada. A teoria da moeda é a teoria da circulação do

capital.

O sistema do capital funciona com dinheiro, que é a mercadoria plenamente equivalente.

Isso quer dizer que a função do dinheiro depende da conversibilidade das moedas, ou também,

Page 87: A economia politica critica de marx

87

que as possibilidades de uso das moedas dependem do grau de desenvolvimento do uso do

dinheiro no sistema em seu conjunto. A teoria do capital depende de pressupostos sobre a

moeda, que Marx explorou nos Grundrisse, mas que aparentemente perdem importância em O

Capital. Aí, Marx trabalha as funções da moeda no Livro I e o papel da moeda na circulação no

Livro II, mas não esgota essa argumentação em nenhum desses dois lugares. Há um plano de

trabalho de análise do dinheiro na obra de Marx, desde os Manuscritos, que a nosso ver ainda não

foi completamente explorado59.

O problema é que a realização dessas funções da moeda depende de suas condições

históricas de circulação, que desembocam em sua conversibilidade. Vemos que é um problema

que só se resolve quando se passa da análise da produção do capital em geral para uma análise da

produção capitalista tal como ela acontece nos diversos países. Ora, as condições históricas de

circulação da moeda dependem das condições gerais de desenvolvimento do sistema produtivo,

que é o que aparecerá de modo imediato como desenvolvimento das forças produtivas. A

questão da conversibilidade aparece primeiro no contexto de cada economia nacional e passa,

depois, para as relações entre economias nacionais.

59 A valiosa contribuição de Suzanne

de Brunhoff é um passo nessa

direção, mas ainda não esgota a

problemática do papel da moeda como

elemento interativo do

desenvolvimento do processo de

circulação.

Page 88: A economia politica critica de marx

88

A estruturação de O Capital

Nesta parte deste trabalho apresenta-se uma visão resumida de O Capital, que será retomada

nas seções seguintes e depois distribuída nos três capítulos seguintes. Neste estudo segue-se a

ordem do trabalho publicado, que, se entende, reflete o plano do autor. O fato de que Marx

tenha começado por elaborar o material do Livro III para depois escrever o Livro I e finalmente

escrever – o que pôde – do Livro II não altera o fato de que a referência dominante é o plano

geral da obra que ele seguiu até o final.

O Capital está organizado em três livros, que cobrem a produção do capital, a circulação

do capital e a produção capitalista em seu conjunto. É a versão mais desenvolvida, inacabada e

desigualmente reconstruída, da explicação crítica da sociedade econômica iniciada nos

Manuscritos de 1844 e sucessivamente apresentada, em forma acabada e preliminar na

Contribuição à crítica da Economia Política; e em partes fundamentais, porém também inacabadas,

nos Grundrisse. Não são apenas momentos de maior desenvolvimento do mesmo campo

temático, senão representam diferentes abordagens. Os Grundrisse são o texto mais

“econômico”, provavelmente porque mostram o esforço do autor para dominar a engrenagem

monetária do capital. Já a Contribuição revela um esforço de visão de conjunto que continua e se

aprofunda em O Capital.

Esses três grandes movimentos foram estruturados segundo uma visão dialética do

silogismo aristotélico, isto é, do silogismo enquanto representação de movimento e não como

Page 89: A economia politica critica de marx

89

comparação de posições60. Desenvolvem-se sobre uma conceituação básica da economia como e

enquanto campo de mudança, em que se distinguem três aspectos, que estão explicitados nos

Grundrisse, que são:

a. A identidade de produção e consumo e de produção e distribuição. A produção

é, simultaneamente, consumo, para a finalidade de produzir. Por sua vez, produzir é consumir

os meios que se usa na produção (Grundrisse, L.I, pp.6) É uma posição diametralmente oposta à

das macro economia clássica, que separa produção, distribuição e consumo.

b. A tendência incoercível do capital a sua própria concentração: "O capital, quando

não se reveste de uma forma inadequada - por exemplo, como o pequeno capital, que trabalha por conta

própria - pressupõe já, em certa escala, maior ou menos, a concentração" (Grundrisse, L.II, pp.9).

c. A tendência a uma mudança progressiva do papel do trabalho na reprodução

social, aumentando a participação do trabalho indireto e do trabalho qualificado, portanto,

modificando, qualitativamente, a relação entre capital constante e capital variável.

60 Em Aristóteles encontramos que a

lógica é a representação do

movimento do conhecimento, isto é,.

do movimento do sujeito em seu

conhecer e não uma exposição de

posições idealmente fixas. A relação

entre o que se conhece e o que se

desconhece corresponde a uma

relação entre o imediato e o mediato,

ou seja, trata de situações no tempo

do sujeito, que é um plano de

concretude do tempo. Henri Lefebvre

explorou essa dimensão da lógica (

Lógica formal e lógica dialética,

1970) definindo a dialética como a

lógica do concreto. Parece-nos que o

modo mais correto de enunciar essa

dimensão - na tradição hegeliana - é

de vê-la como a lógica da

concretização do ser.

Page 90: A economia politica critica de marx

90

LIVRO I: A PRODUÇÃO DO CAPITAL

1, Mercadoria e dinheiro2. Transformação do dinheiro em capital3. Produção da mais-valia absoluta4. Produção da mais-valia relativa5. Mais-valia relativa e absoluta6. Salário7. O processo de acumulação do capital

LIVRO III: O PROCESSO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA EM SEU CONJUNTO

1, Transformação da mais-valia em lucro e taxa de mais-valia em taxa de lucro2. Como se converte o lucro em lucro médio3. Lei da tendência decrescente da taxa de juros4. Conversão do capital-mercadoria e do capital-dinheiro em capital comercial e capital financeiro como formas do capital mercantil5. Desdobramento do lucro em juros e lucro do empresário em capital a juros6. Conversão do lucro extraordinário em renda da terra7..As rendas e suas fontes

LIVRO II: O PROCESSO DE

CIRCULAÇÃO DO CAPITAL

1. Metamorfose do capital e seu ciclo2. A rotação do capital3. A reprodução e circulação do capital em seu conjunto

ESTRUTURA DE O CAPITAL

Page 91: A economia politica critica de marx

91

A produção (social) do capital

Para que haja um sistema capitalista de produção, é preciso que se produza capital. Isso se dá

mediante a canalização de trabalho para produzir valor de troca, sob comando do

direcionamento da produção estabelecido pelos interesses organizados do capital. O capital

compra de fato força de trabalho, que converte em trabalho funcional à reprodução do capital

acumulado, que se incorpora em produção organizada segundo os objetivos e os padrões de

organização estabelecidos pelo próprio capital. Mas o segredo é que os capitalistas usam a força

de trabalho para dela tirar o trabalho que é requerido para a estrutura produtiva que eles

controlam. O sistema depende da propriedade privada em geral e do controle dos meios de

produção por parte dos capitalistas.

Os resultados desse trabalho são mercadorias, que passam a constituir os objetos de

referência das relações capitalistas61. O que elas têm em comum é que todas representam

trabalho e que são comparadas em termos de dinheiro. Mas a mercadoria incorpora o poder de

simbologia da sociedade, tornando-se um substituto útil do sentido de realização das sociedades

não capitalistas - tribais ou teocráticas - entretanto, com uma armadilha, que é sua aparente

utilidade. O fetichismo da mercadoria está associado a essa pseudo-utilidade, que é

artificialmente criada pelo processo do capital; e que passa a captar a energia da sociedade. Há

um complexo problema a ser exposto, se não explicado, em termo de pseudo-utilidade da

61 A experiência latino-americana ,

em que se opera com mercadorias de

circulação mundial e de circulação

local, leva a qualificar as observações

sobre as mercadorias, destacando a

relação entre o papel de cada

mercadoria específica e o horizonte de

mercado em que ela é negociada.

Tecnicamente não há nenhuma

diferença significativa entre as

aguardentes produzidas em países

latino-americanos e em países

europeus, mas as primeiras são

mercadorias locais enquanto as

outras são mercadorias mundiais.

Page 92: A economia politica critica de marx

92

mercadoria e pseudo-utilidade do trabalho destinado a produzir mercadorias. Parece-nos que o

fetichismo da mercadoria depende do perfil cultural da sociedade que a produz.

O Livro I apresenta os termos em que se realiza a produção de capital, que é um processo

que se expande no universo da atividade social62. Supostamente, em princípio, não há limites

para essa expansão. Mas é uma expansão que contém seu próprio freio interno, que são as crises

geradas pelo crescimento; e seu próprio freio externo, que são as limitações de recursos para

produzir. No essencial, a teoria da crise reúne os elementos dos freios interno e externo,

combinando elementos de determinismo e de incerteza, necessitando uma leitura do

comportamento cíclico do processo econômico - tal como está na teoria dos ciclos - e uma leitura

do perfil de incerteza, que só se passou a poder fazer sobre as bases do desenvolvimento das

ciências da natureza desde 1960.

A analogia com a expansão do Universo é quase inevitável. O Livro I trata dos

fundamentos da formação do capital nas relações sociais, bem como dos processos específicos

formativos do capital. O fundamental é que o capital é uma relação social baseada no controle

dos meios de produção para produzir, portanto, que se diferencia do controle de recursos que não são

usados para produzir. Mediante esse controle, os capitalistas pré estabelecem as condições em que

os trabalhadores podem trabalhar e quando podem trabalhar. Por isso, o capital tem que

acumular, tanto como o capitalista tem que decidir sobre o capital específico que controla63.

A produção do capital se dá mediante uma produção social de valor, controlada pela

propriedade dos meios de produção e da organização da produção e que se realiza mediante a

produção dirigida de mercadorias. O capitalista surge junto com a mercadoria. As mercadorias

62 Marx ressalta a necessidade de

ligar a noção de produção social à de

sociedades concretas, que é uma

observação que vale para a

conceituação de mercado

(Grundrisse, vol. I, pp 2) O mercado

não é uma abstração financeira,

senão uma situação concreta de

transações entre produtores e

consumidores específicos.

63 Isso quer dizer que os capitalistas

têm que encontrar onde aplicar

capital. Essa questão levantada por

Adam Smith continua em aberto.

Não há garantia prévia de

oportunidades de investimento.

Page 93: A economia politica critica de marx

93

são a representação do valor de troca, que leva subsumido o valor de uso. A relação entre valor

de uso e valor de troca transfere-se para a esfera da relação entre mercadorias, que é dizer, entre

valores de troca. Daí, ser preciso conhecer a equivalência de valor entre as mercadorias. Esta é

dada pelo papel do dinheiro na troca.

O capital tem o germe da universalidade no processo de circulação. “No comércio mundial

as mercadorias despregam seu valor em caráter universal. Sua forma independente de valor enfrenta-se

com elas, portanto, sob a forma de dinheiro mundial”. A seguir, “na órbita interna de circulação só pode

servir de medida de valor, portanto, de dinheiro, (que é) uma mercadoria. No mercado mundial reina uma

dupla medida de valor.” (Livro I, pp.99) “O dinheiro mundial funciona como meio geral de pagamento,

como meio geral de compra e como materialização social absoluta da riqueza em geral”. (Livro I, pp. 100)

Entende-se, portanto, que a explicação do movimento básico do capital é monetário; e que a

esfera monetária regula as opções de escolha das mercadorias com que o capital trabalha. Ver-

se-á adiante que esse ponto é fundamental, para explicar o papel do componente mercantil da

produção industrializada.

A circulação é o meio pelo qual aparece a mais valia. A mais valia é a parte do valor

gerado que os capitalistas se apropriam sem pagar aos trabalhadores e que é obtida mediante a

organização da produção e sua comercialização. Mas o estudo da circulação do capital depende

de uma prévia explicação de como se produz o capital que circula; e de como essa circulação

altera a composição do sistema de produção. Destaca-se que nesse Livro I, onde trata da

conversão do dinheiro em capital (pp.139), Marx diz que "no curso de nossa investigação nos

encontraremos com o capital comercial e com o capital a juros, como formas derivadas, e veremos também,

Page 94: A economia politica critica de marx

94

porque historicamente essas formas são anteriores à forma básica e moderna do capital". Aí está um

complexo problema teórico, relativo à diferença entre a seqüência temporal do desenvolvimento

do capital e a lógica do aumento de sua complexidade64.

De qualquer forma, a questão a ser respondida refere-se ao mecanismo de conversão do

dinheiro em capital, que é uma operação capitalista por excelência. Marx adverte (pp.121) que

essa operação se dá fora da esfera da circulação, concretamente, onde o capitalista encontre

como completá-la, que é no consumo. Trata-se, evidentemente, do perfil social do consumo.

Não há como imaginar que o capital possa se reproduzir numa sociedade onde a renda esteja

totalmente concentrada, onde um grande consumo de um pequeníssimo número de pessoas

responda pela maioria das compras. A concentração do capital leva a uma tendência à

concentração da renda e à concentração do consumo, traduzindo-se em tendência geral a um

sistema instável.

Assim, a conversão do dinheiro em capital depende do perfil do consumo, que por sua

vez depende da distribuição propriamente dita da renda, que como diz Cannan65, é aquela que se

dá entre grupos. A partir daí, no Livro I trata-se sucessivamente da mais valia absoluta, da mais

valia relativa e da mais-valia em seu sentido mais completo. Sobre esse corpo teórico, trata-se da

reprodução simples e da reprodução ampliada do capital.

A primeira, a rigor, é um artifício, já que corresponde a condições ideais em que o

produto social pode aumentar, mas supõe que a composição do capital se mantém inalterada,

que é algo que não acontece mesmo a curto prazo. A reprodução ampliada contém um

direcionamento implícito da trajetória do produto, que é o rumo seguido pelos interesses do

64 Surpreendentemente, nesse ponto

a compreensão de capital de Böhm

Bawerk aproxima-se da de Marx, no

que este pretendeu que o capital é,

antes de tudo, o principal com que se

empresta, que por definição está

ligado à função do comércio. Assim,

em parte a crítica de Böhm Bawerk a

Marx é uma falácia, já que não

consegue se separar do conceito que

critica.

65 Edwin Cannan distinguia entre

pseudo distribuição, refletida pelos

dados de distribuição interpessoal da

renda e distribuição propriamente

dita, que se dá entre grupos no

contexto da organização do sistema

produtivo. A abordagem de Cannan,

que pode visto como um clássico

tardio, invalida a análise de

distribuição baseada em coeficientes

como o de Gini que registram apenas

um efeito pessoal de uma distribuição

social da renda.

Page 95: A economia politica critica de marx

95

capital numa progressão de opções que resultam na tendência da composição do capital. Marx

trata da reprodução simples nos três livros de O Capital e certamente não é por acaso. A

reprodução simples é o campo no qual se apresentam – em germe no início e desenvolvidos

adiante – os elementos relativos à incerteza com que o sistema opera. É nesse ambiente teórico

que se coloca o problema fundamental de que podem se introduzir elementos de incerteza –

através da renovação tecnológica – que podem obstaculizar ou mesmo impedir que a reprodução

se conclua.

O movimento essencial pode ser representado tal como no diagrama 1 a seguir.

DIAGRAMA 1

MERCADORIA-DINHEIRO (CIRCULANTE)

DINHEIRO (RESERVA)

CAPITAL CAPITAL

MAIS-VALIA PRODUÇÃO

Page 96: A economia politica critica de marx

96

A interpretação de Marx está baseada nas referências da produção industrializada, que se

representa principalmente nas indústrias, mas que não está limitada a elas, senão que se estende

à agricultura e à prestação de serviços, identificando-se com a reificação das relações de

trabalho66. A produção industrializada é a realizada pelo capital industrial e se concretiza no

modo de tratar os diversos tipos de produção como empreendimentos delimitados no tempo pela

amortização dos capitais investidos, que por sua vez está delimitada pela amortização dos

equipamentos e dos usos de instalações regulados por equipamentos67.

A análise da produção industrializada revela processos que não podem ser percebidos

com igual clareza nas sociedades não industrializadas. O capital se forma mediante a captação

de mais valia, que é o valor representado pelo salário do trabalhador (taxa de mais-valia e capital

variável desembolsado). A mais-valia é extraída no processo de produção e fica, latente,

incorporada nas mercadorias, passando para a esfera do lucro quando as mercadorias são

vendidas. Há dois níveis de extração da mais valia: o que se dá nas condições técnicas atuais,

que é a mais-valia absoluta; e o que surge mediante o controle da renovação tecnológica, que é a

mais-valia relativa. O controle da mais-valia relativa é um aspecto objetivo da produção

capitalista e não uma questão de inventividade ou de subjetividade separadas das condições

concretas da produção.

Por isso, na estruturação de O Capital a exposição do mecanismo da mais valia leva a

análises do funcionamento da maquinaria e da grande indústria - onde se concentra o controle

da tecnologia - e da teoria do salário, cuja determinação fica subordinada aos controles dos usos

da tecnologia e à divisão do trabalho. Encontra-se aí um ponto fundamental, que é a tendência à

66 A destituição do outro como

equivalente leva à retirada do

componente ético e cultural dos

relacionamentos, que se tornam

relações com objetos contratados sem

personalidade ideológica, ou seja,

relações entre sujeitos contratantes e

coisas. A reificação em última

análise é a destruição da

responsabilidade social.

67 Isso se vê claramente no relativo

à produção agrícola, em que se

distinguem as formas de agricultura

que contemplam a preservação do solo

como um patrimônio necessário à

perpetuação dessa atividade,

comparado com a produção agrícola

industrializada que vê o tratamento

do solo como equivalente ao

tratamento dos equipamentos, pelo

que o solo pode ser objeto de cálculos

de custos em que ele aproveitado no

tempo correspondente à duração dos

equipamentos. Isso, logicamente,

coloca a destruição dos solos como

algo externo aos empreendimentos,

sobre o qual as empresas não têm

responsabilidade.

Page 97: A economia politica critica de marx

97

concentração do capital, imposta pelo manejo de maquinaria. Para entender isso, é preciso ver

como Marx entendeu a constituição e o desgaste da maquinaria. Viu a maquinaria como um

modo de realizar um conjunto de funções - mecanismo de movimento, de transmissão e

mecanismo ferramenta - que está integrado num conjunto físico sujeito a dois tipos de desgaste,

o interno e o que chamou de moral. O desgaste interno resulta da ação e da inação, do uso e da

falta de uso, como diz, como a espada que enferruja na bainha. O desgaste moral é o que aparece

na literatura econômica neoclássica com o nome de obsolescência, isto é, a perda de valor que

decorre do aparecimento de produtos equivalentes mais novos e mais rentáveis, independente

das qualidades intrínsecas da maquinaria existente.

O desgaste impõe uma reposição suficiente para permitir que a indústria mantenha sua

capacidade de extrair mais valia frente às demais, o que só pode acontecer se ela for capaz de

controlar seus custos de maquinaria. Tal requisito só se satisfaz na grande indústria. O

desdobramento lógico desse argumento é que num sistema de produção em que há grande

indústria, a pequena indústria só existe como contrafação da grande; e sobrevive nas margens de

ordenamento de mercado determinadas pelo modo de acumulação na grande indústria. De nossa

parte, observamos que o desenvolvimento de um segmento de pequena indústria é um

movimento dependente, que se realiza em margens de mercado não cobertas pela grande

indústria, mas onde, em todo caso, ela pode intervir.

Nessas condições converte-se a mais valia em capital, isto é, a venda da produção habilita

o capitalista a destinar a mais valia para a reprodução dos meios de produção antes que para

atender consumo. A conversão da mais valia é o cerne do movimento da acumulação, que

Page 98: A economia politica critica de marx

98

permite que o capital se mantenha como capital. Na linguagem econômica corrente atual, é a

formação de capital, que encaminha a reprodução do sistema de produção. Por contraposição, a

reprodução da força de trabalho depende do capital variável, isto é, da arte da renda que retorna

aos trabalhadores.

A reprodução se vê como reprodução simples e como reprodução ampliada, em que a

primeira descreve a reposição do capital e a segunda contempla essa reposição no ambiente de

mudança do sistema de produção. A reprodução simples é uma simplificação, já que em todo

caso o sistema funciona em condições de mudança. Entretanto, é preciso levar em conta que a

reprodução ampliada inclui os movimentos de desvalorização, que se realiza com componentes

positivos e negativos.

Nesse ponto, é preciso ver qual a leitura social desse processo. Para isso, é preciso

compreender a composição do capital. É um dos aspectos conceituais mais importantes de O

Capital. Diz Marx, que "a composição do capital pode interpretar-se em dois sentidos. Segundo o valor,

depende da proporção em que se divide em capital constante ou valor dos meios de produção e capital

variável, ou valor da força de trabalho (...). Segundo seu funcionamento no processo de produção, os

capitais se dividem sempre em meios de produção e força viva de trabalho. Esta composição se determina

pela proporção existente entre a massa dos meios de produção empregados de uma parte e da quantidade de

trabalho necessária para seu emprego. Chamaremos a primeira composição de valor e a segunda de

composição técnica do capital. Há entre elas uma relação de mútua interdependência. Para expressa-la,

dou à composição do valor, enquanto determinada pela composição técnica e reflete as mudanças

nela operadas, o nome de composição orgânica.

Page 99: A economia politica critica de marx

99

Quando se fala de composição do capital pura e simplesmente, referimo-nos sempre à

composição orgânica" (Livro I, pp.517). Assim, torna-se claro que Marx considera que o capital

necessariamente muda de forma ao longo do tempo, pelo que os capitais incorporados em

empreendimentos específicos têm que ajustar-se à média dos capitais e à taxa média de lucro.

Ora, a dimensão de composição contrasta com tudo até então dito sobre a constituição do

sistema, porque em última análise trata-se da composição do trabalho, que muda

continuamente, não só acompanhando as alterações do capital acumulado, mas na prática

criando as condições para a formação do capital. A noção de composição é inseparável da de

complexidade e da de processo condutor de aumento da complexidade social da economia, que

responde pelo fundamento cultural e ideológico da atividade econômica. A questão da

complexidade aparece primeiro de modo velado na análise da produção de mercadorias,

subjacente ao fato de que se trata sempre de uma renovação da coleção de mercadorias, em

número, em variedade e em qualidade. Depois aparece como uma característica do capital novo

que se forma sob a pressão da busca de mais-valia relativa.

No fundamental, essa primeira parte desemboca na caracterização da acumulação

capitalista. A predominância do trabalho coletivo sobre o individual, e a impossibilidade de

reproduzir-se a força de trabalho fora do mercado de trabalho estabelecido pelo capital, faz com

que a força de trabalho em seu conjunto, seja levada a contribuir ao movimento geral de

acumulação. Além disso, o incremento do capital torna insuficiente a força de trabalho.

Entretanto, o capital constante aumenta mais que o variável, isto é, aumenta a eficiência do

trabalho vivo para usar o trabalho morto. Diz Marx que "a diminuição do capital variável

Page 100: A economia politica critica de marx

100

relativa ao capital constante, ou as mudanças operadas na composição do capital indicam,

aproximadamente, as mudanças que se operam na composição de seus elementos materiais"

(Livro I, pp.527)68. Subjaz que o capital variável aumenta progressivamente no sistema, seja

como trabalho indireto, seja como trabalho potencializado e em aumentos de produtividade.

Toda essa primeira parte conclui com a identificação de uma lei geral da acumulação

capitalista, que descreve como o capital consegue se reproduzir. O capital se reproduz mudando

de composição e estendendo sua esfera de atuação.

A circulação do capital

O Livro II está dominado pela idéia de velocidade diferenciada, associada aos movimentos do

capital entre a esfera produtiva e a de sua forma dinheiro. Compreende a velocidade do capital

dinheiro e as velocidades dos tempos do capital produtivo. O sistema ganha velocidade à medida

que a acumulação de capital absorve mais tecnologia, mas se torna mais instável, porque

depende mais de movimentos de concentração na formação do capital novo e emprega

proporcionalmente menos trabalhadores.

Pode-se dizer, portanto, que as empresas têm que ajustar-se à velocidade suficiente para

sustentar-se perante seus concorrentes. Assim, o estudo da circulação se realiza mediante o das

condições de rotação do capital entre suas formas dinheiro e produtiva; e em seus

68 Encontra-se aí uma antecipação

da teoria dos recursos humanos, que

se dedica a estudar o papel da

educação e da qualificação no

desenvolvimento econômico.

Page 101: A economia politica critica de marx

101

desdobramentos na reprodução do sistema em sua composição atual e segundo as regras de

mudança de sua composição.

A circulação parte do ciclo do capital em sua forma dinheiro ao seu ciclo em sua forma

produtiva. O ciclo do capital dinheiro quer dizer, quando se define o papel do capital de

condutor do processo de produção. Esse papel é exercido mediante o poder que é dado pelo

controle do dinheiro. Esse papel é representado por três movimentos da atividade do capitalista,

que são de quando ele se apresenta como portador de dinheiro para comprar trabalho e meios de

produção; de quando usa o trabalho e os meios de produção para produzir; e de quando vende a

produção para retirar sua mais-valia.

É preciso esclarecer o mecanismo do ciclo do capital dinheiro. É uma questão de

adequação do capital às condições em que opera. A quantidade de capital aplicada na produção

deve ser adequada o suficiente para uma produção suficiente para reproduzir o capital

desembolsado. Trata-se, portanto, de capitais específicos, ou seja, de uma análise micro. No

ciclo do capital produtivo a circulação se interrompe, pela simples razão que o capital está

imobilizado. Mas o capital só pode ficar imobilizado porque há dinheiro circulando, que permite

seu retorno à liquidez. Além disso, a preservação do valor do capital imobilizado depende de

continuidade técnica dos meios de produção, isto é, que quaisquer transformações que

porventura aconteçam na composição técnica do capital sejam absorvidas na passagem entre

liquidez e imobilização. Num terceiro momento, o capitalista volta ao mercado como vendedor.

Aí, ele precisa vender seus produtos a preços suficientes para reproduzir o capital desembolsado.

Page 102: A economia politica critica de marx

102

Na explicação dos movimentos de circulação, Marx destaca o contraste entre o tempo de

produção, quando o capital fica imobilizado na esfera da produção e o tempo de circulação,

quando o capital está em condições de liquidez (cap. XIII).

Cabe-nos observar que tempo nesse caso tem dois significados, que são os de

oportunidade de quando o capital fica imobilizado e de duração dessa imobilização. Para o

gestor de capitais específicos, configura-se aí uma equação, que consiste em reduzir ao mínimo a

imobilização de capital e manter imobilizado o necessário para realizar as transações suficientes

para reproduzir seu capital. Colocado isso em termos de custos, trata-se de reduzir ao mínimo os

custos de imobilização de capital e elevar ao máximo as receitas que pode obter da liquidez.

Mas, como a imobilização é sempre uma proporção do capital total comprometido no

empreendimento, um objetivo do capitalista é sempre de resolver os problemas de imobilização

através do mercado de dinheiro, isto é, de tentar resolver esse problema comprando e vendendo

dinheiro no mercado.

É um problema que pode ser mais bem apreciado analisando-se as condições em que

operam os diversos capitalistas individuais. A condição de liquidez significa, ao mesmo tempo,

a capacidade de captar a mais valia correspondente aos capitais que operam com alta tecnologia;

e a mobilidade entre formas de aplicação. Assim, sempre que os capitalistas conseguem resolver

suas necessidades de liquidez mediante operações de mercado, estão preservando sua capacidade

de se deslocarem entre aplicações diferentes, portanto, de jogar com o fator diversificação para

elevarem sua taxa de lucro.

Page 103: A economia politica critica de marx

103

Esse argumento se desenvolve na comparação entre setores e nas comparações entre

aplicações específicas de capital. Há, portanto, uma questão relativa à sustentação da captação de

mais valia ao longo da concentração de capital, de suas fases concorrenciais até suas condições

monopolísticas, quando a liquidez se torna uma capacidade de pressão adicional para recompor a

captação de mais valia, ou quando são as condições de desenvolvimento das forças produtivas

que dão lugar a condições específicas de monopolização69.

Em seu papel produtivo, isto é, quando está na forma de capacidade de produção

(trabalho + meios de produção) o capital passa por dois processos fundamentais, que são os de

reprodução simples, quer dizer, sem acréscimo de capacidade de produção; e de reprodução

ampliada, isto é, com acréscimo de capacidade de produção.

A reprodução simples significa aquela reposição do sistema produtivo de seu desgaste

para realizar a produção, enquanto a reprodução ampliada compreende as diversas formas pelas

quais o sistema se expande além de repor-se. Observe-se que na prática não há como repor o

sistema sem que se introduzam modificações na composição orgânica do capital, tanto nos

meios de produção como no trabalho, assim como a reprodução ampliada se faz sobre

pressupostos de disponibilidade e de escassez de recursos. A reprodução simples é tratada por

Marx na perspectiva da produção no Livro I e na perspectiva da circulação no Livro II.

Não se pode desconhecer que a expansão do sistema produtivo faz-se com um

incremento progressivo do capital constante; e que a extração de mais valia relativa aumenta

mediante o controle da renovação tecnológica. Assim, não há como separar essa parte da teoria

daquela outra que trata da tendência à concentração do capital, tanto como não se pode ignorar

69 Esse argumento está desenvolvido

no L.II cap. XIII de O Capital,

entretanto, é claro naquelas condições

genéricas que denotam o estado do

capitalismo em tempos de Marx. A

retomada desse argumento no

"capitalismo maduro" de cem anos

depois, por Sweezy e Baran e por

Palloix, o que faz realmente é

realinhar a questão frente às

condições circunstanciais do

funcionamento da economia

capitalista em sua dimensão

internacional.

Page 104: A economia politica critica de marx

104

que o aumento do capital constante significa maior comprometimento dos recursos naturais. A

expansão do sistema produtivo abrange cada vez mais pessoas e mais recursos naturais e amplia

o horizonte de riscos com que o capital trabalha.

A análise desenvolvida no Livro II torna necessário explicar os movimentos do capital

em sua forma financeira e as inter-relações entre os movimentos da esfera financeira e os do

capital integrado na produção. Tal explicação financeira é a chave da explicação mais ampla das

velocidades diferenciadas do sistema. Essa movimentação aparece no Livro II na forma da

rotação do capital e no Livro III na forma de sua metamorfose entre mais valia e lucro e entre

formas do lucro.

A questão da rotação do capital é fundamental na construção da análise de Marx. A

rotação do capital deve ser observada em três níveis. Primeiro, ao nível do movimento do capital

em seu conjunto, quando se distingue a rotação do capital desembolsado sobre a do capital em

seu conjunto. Segundo, ao nível do capital desembolsado, que se representa em geral por sua

equivalência com sua expressão financeira. Finalmente, no relativo aos diversos capitais

desembolsados e integrados em diversas situações da produção. Além disso, a rotação do capital

se realiza mediante ciclos, que começam com o capital aparecendo como dinheiro, ingressando

no processo produtivo e convertendo-se em mercadorias.

Há tempos de circulação e há gastos da circulação sendo as variações dos tempos de

circulação resultam em modificações de custos. Há condições de rotação do capital constante e

do capital variável. No relativo à rotação do capital constante, o capital decide sobre si próprio.

No relativo ao capital variável, trata-se do controle exercido sobre a participação dos

Page 105: A economia politica critica de marx

105

trabalhadores na produção, já que "só pode funcionar o capital circulante variável de novo no processo

de circulação sempre e quando se venda o produto com que se reproduz se converta em capital dinheiro

e em pagamento de salários" (Livro II, pp.262). Trata-se do tempo de circulação do capital

desembolsado, que é o que efetivamente conta para a produção.

Marx apresenta a movimentação do capital em seu conjunto nas formas de uma

reprodução simples e de uma reprodução ampliada; e nós devemos entender que uma não existe

sem a outra. A reprodução simples só se explica em condições invariantes de composição do

capital; e esta, por sua vez, só se explica em condições invariantes dos meios de produção e do

trabalho. É uma situação hipotética. Primeiro, porque a realização da produção altera os meios

de produção. Segundo, porque o trabalho requerido para produzir e o trabalho produzido,

mudam constantemente como composição de valor e como qualificação disponível. Por fim,

porque a continuidade da formação de capital constante altera a produção antes que se amplie o

mercado. Pelo contrário, é a formação de capital constante que altera o mercado, já que os

capitalistas tentarão, por todos os meios, utilizar seu controle social da produção para optar por

linhas de produção compatíveis com a preservação de seus interesses.

Nesse conjunto, coloca-se a questão da composição do capital, que é um conceito

fundamental, que distingue a análise de Marx da análise dos economistas marginalistas em geral

de sua época e que continuou sendo a principal linha divisória com os marginalistas ortodoxos e

com os dissidentes, como os keynesianos. É a diferença entre totalidade e globalidade, em que a

primeira compreende as contradições e a segunda - utilizada por Keynes - refere-se a conjuntos

de fenômenos semelhantes. A totalidade é o resultado dos movimentos dialéticos de contrários,

Page 106: A economia politica critica de marx

106

enquanto a globalidade é apenas uma indicação de uma coleção de elementos não contraditórios

no momento em que são observados.

Marx distingue a composição de valor, que denota o perfil do trabalho, com suas

qualificações; a composição técnica, que denota o perfil dos meios de produção, com sua

tecnologia incorporada; e a composição orgânica, que é a combinação das duas anteriores Em sua

acepção mais completa, é sempre a composição orgânica, que contém a noção de composição

técnica, isto é, a relação entre o trabalho e os meios de produção que ele usa, mostra que o poder

realizador do trabalho que dá sentido aos meios de produção.

A composição do capital muda, constantemente, segundo ele se reproduz, à medida que

se absorvem novas tecnologias e que se descartam outras, acima de tudo, que mudam as escalas

de produção.

DIAGRAMA 2

CAPITAL (MUTANTE)

CICLOS(DINHEIRO, PRODUTOS)

REPRODUÇÃOCIRCULAÇÃO

ROTAÇÃO GERALDIFERENCIADA

Page 107: A economia politica critica de marx

107

No Livro II o capítulo VI é de especial interesse para a explicação da economia

contemporânea, já que trata dos gastos de circulação70 Marx distingue os gastos líquidos de

circulação, que são seus custos em termos de compra e venda, seus custos de contabilidade, que

consideram os investimentos nos sistemas de contabilidade. A seguir trata dos custos de

armazenagem, onde entram custos derivados da armazenagem e finalmente os custos de

transporte. Observa-se que a circulação reúne componentes de custos que exigem consumo

direto e indireto de capital, que constituem uma fração da operacionalidade do sistema, que

representa uma diferença entre as condições operacionais do grande e do pequeno capital.

A distribuição desses custos descreve os diferenciais das condições de operações dos

diversos segmentos do capital e segundo sua concentração. Incide sobre o tempo de rotação dos

capitais, que finalmente é outro aspecto dessa desigualdade de condições.

A produção capitalista em seu conjunto

No Livro III trata-se do modo de produção capitalista (mpc) enquanto modo predominante de

produção, que por isso se expande absorvendo o espaço de relações sociais não capitalistas, assim

como se expande aumentando sua produção, em quantidades e em diversidade. Como diz o

próprio Marx, “descobrir e expor as formas concretas que brotam do processo de movimento do capital,

considerado como um todo" Está claro que esse todo é a totalidade das relações sociais envolvidas no

70 A circulação envolve custos que

estão ligados aos riscos da realização

da mais valia – ou da venda do

produto, que são os riscos por

definição dos capitalistas, mas que

eles tratam de evitar ou de transferir,

utilizando as margens de poder do

monopólio. Os dois aspectos, de

custos de comercialização e riscos de

realização, reapareceram no contexto

da economia de hoje, sob as formas de

reconhecerem-se condições especiais

para os monopólios considerados

inevitáveis – que se passa a

denominar de naturais – e de

considerar-se que os custos de

negociação constituem um campo a

ser objeto de competição, onde há

diferenciais de eficiência a serem

buscados.

Page 108: A economia politica critica de marx

108

processo da produção capitalista que, portanto, se insere num todo maior, que compreende

aqueles que não estão incorporados pela produção capitalista.

O mpc comanda a força de trabalho atual e o potencial de força de trabalho, que mobiliza

na direção de realizar uma produção que os capitalistas consideram que podem vender. Nesse

processo, tal como se vê no Livro I, os trabalhadores contribuem com trabalho pago, com

trabalho não pago (mais valia) e contribuem para o fundo de consumo dos capitalistas71

Ao passar da reprodução simples para a ampliada, torna-se necessário deslocar a análise

para a esfera dos movimentos do capital em seu conjunto, que é o mesmo que dizer que é uma

análise da totalidade do capital, com toda sua complexidade. No Livro III a análise se realiza

nesse plano da totalidade, que é o modo de dizer que se substitui a análise baseada em

comportamentos individuais pelos da totalidade dos capitalistas e dos trabalhadores. Sobre essa

base delineia-se a constituição de classes, que é inseparável dos conflitos de interesse. Tal

mudança é determinada pelos fenômenos estudados e não por opção do autor. A conversão da

mais valia em lucro só se realiza no mercado, isto é, no âmbito das operações da totalidade dos

capitalistas e dos trabalhadores.

Assim, por fascinantes que sejam as questões da teoria do valor expostas no Livro I, o

grande mistério do capital consiste nesse movimento, pelo qual ele se recompõe ampliando-se,

sobrepujando as incertezas do mercado72. É o movimento posto em marcha pela reinserção dos

lucros no sistema produtivo - por contraposição a sua liquidação no consumo - e nas

conseqüentes alterações da composição do capital. Essa é a esfera da produção capitalista em seu

conjunto, onde se realizam as conversões entre formas de lucro e entre formas de aplicação.

71 A questão relativa ao papel do

fundo de consumo dos capitalistas no

mecanismo de reprodução-

acumulação é uma das inúmeras

questões não concluídas levantadas

por Marx. É uma linha de análise

iniciada por Ricardo, quando separou

a esfera do consumo dos

trabalhadores e a dos capitalistas.

Porém Marx sinaliza na direção de

um conjunto de meios de consumo,

cuja constituição e reposição constitui

uma pressão na modificação da

composição do capital. Pode ser vista

como uma antecipação da teoria do

multiplicador.

72 A leitura atual desse tema

indicaria que o capital se adapta ao

perfil de incertezas do aspecto de

mercado com que trata,

desenvolvendo estratégias de auto

preservação.

Page 109: A economia politica critica de marx

109

O Livro III enfrenta um problema fundamental de perenização do sistema de produção,

que é o da taxa de lucro. Já Ricardo tinha equacionado esse problema tomando o lucro como o

componente variável na formação da renda social. Mas Marx apresenta a taxa de lucro como o

resultado obtido da venda do componente não pago do valor, que é parte da mais valia. “O lucro

do capitalista provém, portanto, do fato de encontrar-se em condições de vender algo pelo qual não pagou

nada” (Livro III, pp.58). Assim, “a taxa de mais valia medida pelo capital variável se chama taxa de

mais valia; a taxa de mais valia medida pelo capital total chama-se taxa de lucro” (Livro III, pp. 58).

O problema operacional do lucro para os capitalistas decorre de que se “o remanescente do

valor da mercadoria sobre seu preço de custo nasce no processo direto de produção, mas só se realiza no

processo de circulação” (Livro III, pp.59). De fato, há dois problemas teóricos ligados à

conceituação da taxa de lucro, que são os de nivelamento da taxa de lucro e dos tempos

absorvidos nas esferas de produção e de circulação. Vemos que a taxa de lucro só pode ser

aferida sobre os lucros anteriores realizados; e que o lucro futuro depende das interações entre os

movimentos do capital em seu conjunto e as condições operacionais dos capitais específicos.

A idéia de que a taxa de lucro tende a nivelar-se se entende facilmente, enquanto se

supõe que o movimento geral de acumulação é conduzido, ou pelos menos influenciado pela

participação de capitais que concorrem em mercado aberto. Precisa-se esclarecer que esse

nivelamento da taxa de lucro está ligado a um mecanismo mais complexo de tendência à crise

associada à superprodução. Por sua vez, os tempos absorvidos nas esferas da produção e da

circulação - que conflitam e se complementam - representam usos de tempo que condicionam o

ambiente em que se reproduz o capital. No essencial, trata-se, portanto, de um esquema

Page 110: A economia politica critica de marx

110

explicativo que considera lapsos de tempo definidos pela duração das operações reais de

produção e de venda da produção. A realização dos lucros é uma relação entre a produção e o

mercado, que se dá em circunstâncias históricas específicas73.

A realização revela-se como o principal problema do sistema, já que sem ela o capital se

frustra; e surge um problema não considerado pela análise econômica marginalista, que é o de

perda de valor, através da interrupção da reprodução do capital. Nesse ponto, portanto, Marx

abre uma linha de argumentação, que introduz um elemento de incerteza no sistema de

produção74. Podem ser usados vários exemplos para ilustrar essa situação. O mais grave pode

ser o grande programa de irrigação da ex-União Soviética no Mar de Aral, que abortou por falta

de água dos rios alimentadores. O fracasso da pesca de anchovetas no Chile e no Peru na década

de 60, simplesmente porque os cardumes desapareceram. A interrupção do processo de

produção nesses casos não foi um problema de quebra da demanda. Mas no Brasil há diversos

exemplos de quebra de produção agro-pecuária, que significaram interrupção de investimentos

sem qualquer possibilidade de recuperação.

Nesse contexto coloca-se um campo temático definido por Marx como de economia no

uso do capital constante (Livro III, pp.91)75, que de fato reúne considerações sobre a adequação e

a eficiência no uso do capital social público76. Trata da relação entre esse aspecto de ajuste do

sistema de produção e as economias indiretas a serem obtidas desse capital social, que

compreendem economias indiretas de intensidade e eficiência no uso do capital social,

economias indiretas no uso de energia, economias indiretas a serem extraídas de reciclagem e

remanejo de resíduos e implicações generalizadas de todo esse processo na saúde dos

73 Essa parte da análise leva,

necessariamente, ao estudo das

estruturas de mercado, isto é, das

condições ambiente em que operam as

empresas. Mais uma vez, é um ponto

em que se separam e contrastam as

análises da formação histórica das

formas de organização do mercado e

as análises que simplesmente

consideram formas atuais de

organização. As controvérsias sobre

crescimento e equilíbrio mostram-nos

a necessidade de considerar a

competitividade como uma situação

transitória, que pode perdurar, mas

que não pode ser atribuída apenas a

aspectos internos das empresas, senão

de movimentos gerais do sistema de

produção. Por exemplo, como

considerar a competitividade de

empresas que obtinham seus lucros de

sistemas de custos de transporte

marítimo com as tecnologias da

década de 1960, pouco antes de

transformações radicais desse setor?

74 Na verdade, trata-se de uma questão muito mais complexa que a realização do lucro de um ano produtivo específico. Trata-se de prevenir que ocorram perdas de capacidade instalada de produção que decorram de interrupções das seqüências de investimento; e de

Page 111: A economia politica critica de marx

111

trabalhadores. São, realmente, quatro campos temáticos que devem ser explorados segundo

experiências acumuladas, hoje constitutivas de diferentes disciplinas. Primeiro, trata-se da

capacidade de melhorar o uso do capital social público, reduzindo seu desgaste e desperdício e

fazendo com que ofereça melhores resultados. Segundo, aproveitando melhor as fontes de

energia que estão alcance do sistema de produção, Terceiro, desenvolvendo uma visão de

conjunto das economias que podem ser obtidas de reciclagem de materiais utilizados na

produção. Por fim, a questão de saúde pública, com seus correspondentes temas, de

desenvolvimento humano, no linguajar mais recente, e de custos "ambientais", tanto como

saúde seja reduzida a um custo. Certamente, esse texto de Marx é uma clara antecipação da

economia da ecologia, ou de uma economia social da ecologia.

O dimensionamento e o ajuste funcional do capital social ao capital produtivo direto –

incorporado nas empresas – é um campo temático da economia atual, que está na base do

planejamento energético; e através dele, ao planejamento dos demais setores de infra-estrutura.

Aparece em dois níveis e em dois momentos, respectivamente, no nível macro, como parte de

planejamento global, setorial e regional; e no nível micro, quando se combina o planejamento

micro com o macro.

O relativo à reciclagem de resíduos – uma antecipação da análise ambiental – está ligada

à anterior, porque sinaliza que o estilo de uso do capital fixo – extra e intra empresa – tem uma

correspondência técnica com a formação de problemas de economia dos resíduos77. A produção

capitalista precisa encontrar soluções de reaproveitamento de resíduos, não pelas razões

ambientais hoje alegadas, senão porque essa economia do reaproveitamento de resíduos é um

perda de qualificações dos

trabalhadores. Observa-se, por

exemplo, o caso da recente

reconcentração de indústrias em São

Paulo - no ABC paulista - onde

houve uma controvérsia,

compreensível mas injustificada, das

prefeituras atingidas por esse

desemprego, de suporem que ficaram

com uma vantagem locacional, dada

pela concentração de trabalhadores

desempregados. De fato, ao serem

desempregados, os trabalhadores

ficam à margem dos processos que

qualificam, tornando-se custos que

não podem ser absorvidos por novos

investimentos. Na perspectiva da

teoria do desenvolvimento, este tema

revela um obstáculo dado pela falta

de variedade da produção, ou pela

impossibilidade de realizar

plenamente e em tempo útil a

produção de um pequeno elenco de

mercadorias.

75 Numa leitura contemporânea, vê-

se que essa economia do capital

constante corresponde à eficiência

energética e ao significado ambiental

do processo de produção,

compreendendo a preferência pelo uso

de fontes renováveis frente a

energéticos não renováveis. No

Page 112: A economia politica critica de marx

112

modo de recompor a captação de mais valia. Revela-se como a economia do ambiente é útil à

produção capitalista e não é um sacrifício, nem um custo a ser arcado por razões sociais.

A correspondência com a saúde dos trabalhadores indica outra ordem de problemas

econômicos, que representam outro aspecto negativo da produção, que deve ser reconhecido e

deverá ser absorvido de algum modo. Qual esse custo social e quem deve absorvê-lo? Há uma

questão essencial, relativa a quanto esses problemas resultam da quantidade da produção

realizada e quanto podem ser modificados, segundo o modo de manejar o capital social. A

questão obviamente é o controle da distribuição da renda.

No quadro geral das transformações do capital, no contexto da produção capitalista em

seu conjunto, é fundamental o papel do capital comercial. Marx oferece (L.III, cap. XVI) uma

análise do capital comercial, isto é, do capital adscrito ao funcionamento do segmento comércio.

A principal questão teórica relativa ao capital comercial é que sua velocidade de circulação não

está restrita por engajamentos genéricos no processo de produção. Isso confere ao comércio

graus de liberdade que não estão limitados pelas velocidades específicas do processo de

produção. Mas isso também representa uma vantagem sobre o capital vinculado à indústria, cuja

mobilidade é restrita por processos específicos da produção. Nossa observação sobre essa

matéria é que o capital comercial propriamente dito representa uma liberdade de decidir que está

fora do horizonte de possibilidades do capital engajado na indústria.

O espaço econômico ensejado pela realização sustenta a expansão do capital financeiro,

no sentido mais amplo desse termo. Os bancos encontram oportunidades para invadir a

produção industrial; e através dela, de controlarem a produção agrícola e a formação do capital

essencial, a produção capitalista está

submetida ao condicionamento de

uma disponibilidade decrescente de

recursos e a incerteza relativa ao

acesso a recursos, que não podem ser

tratadas no horizonte de

previsibilidade da amortização do

capital atual. O conceito de modo

energético da produção, que

empregamos em outros trabalhos, dá

conta desse problema, indicando uma

razão de uso de energia, que reflete

uma condição técnica e uma

qualificação dos trabalhadores que

utilizam os recursos. A análise dos

sistemas de irrigação mostra grandes

diferenças de quantidades de água

utilizadas, com equipamentos

equivalentes, indicando diferenças de

condição de qualificação dos

empresários e em menor medida, dos

trabalhadores rurais.

76 Usa-se aqui esta expressão para

denominar o que na linguagem

comum se chama de infra-estrutura e

que Marx vê como parte do capital

fixo (Livro III, 107)

77 A questão específica dos resíduos é

a cara final de todo um perfil de

produção com desperdício, que foi

estudada de modo mais sistemático

por Baran. Entretanto, a proposta de

Page 113: A economia politica critica de marx

113

social infra-estrutural. Na explicação do funcionamento do sistema capitalista em seu conjunto

prevalece o pressuposto de que o sistema se transforma, aumentando sua complexidade e sua

instabilidade. Consequentemente, no Livro III Marx examina os mecanismos internos de

dinâmica do sistema, retomando o eixo de discussão da relação entre a taxa de lucro e a

reprodução do sistema. Por isso, a verdadeira escala da teoria da exploração surge do conjunto

do Livro III e não de nenhum texto em particular.

Nos capítulos VIII a XIV Marx estuda a formação da taxa de lucro, a determinação de

uma taxa média de lucro e a tendência decrescente da taxa de lucro, levantando inclusive causas

que contrariam essa tendência. Acontece que a taxa de lucro se forma num ambiente de

mercado que necessariamente muda, acompanhando o aprofundamento da composição orgânica

do capital. Há um problema relativo à necessidade de extrair mais mais-valia, para compensar o

aumento do capital constante; e há um problema de relativo ao mercado de dinheiro, ou seja, ao

modo como o capital que está – ou que fica – na esfera da circulação, passe a influir – e a dirigir

– o capital que está na esfera da produção.

Essa é a nova ordem do controle capitalista da produção. Esse controle segue três rumos,

que são os da financeirização da produção industrial, do controle financeiro da agricultura e do

adiantamento de recursos para a constituição de serviços urbanos. "O dinheiro - considerado aqui

como expressão substantiva de uma soma de valor, em dinheiro ou em mercadorias, pode tornar-se a base

da produção capitalista em capital e deixa de ser, graças a essa transformação, um valor dado, para passar

a ser um valor que se valoriza, se incrementa a si mesmo. Com isso, adquire, além do valor de uso que

análise do próprio Marx contempla

melhor a capacidade do sistema

capitalista, de encontrar novas

formas de formar capital e não

somente de rever a rentabilidade do

atual sistema.

Page 114: A economia politica critica de marx

114

possui como dinheiro, um valor de uso adicional que lhe permite funcionar como capital”. (Livro III,

pp.326)

Entretanto, o dinheiro entra a mobilizar uma produção conduzida por uma pluralidade

de capitais, isto é, que em cada país corresponde a diferentes composições orgânicas do capital.

A operacionalidade financeira do sistema depende da comparabilidade dos resultados que

podem ser obtidos nos diversos empreendimentos, nessa pluralidade de condições. Daí, a

explicação do funcionamento do sistema capitalista de produção depende da esfera do capital

financeiro78. Daí, que o estudo do funcionamento do sistema internacionalizado de

financiamento torna-se um requisito necessário para entrar-se hoje no mérito de investimentos

específicos de grande porte.

No capítulo XXVI, Marx vinculou a acumulação de capital dinheiro - que hoje chamam

de financeirização - às condições objetivas de liquidez do sistema. A questão consiste em saber

se esse fenômeno pode ser atribuído a uma crise, ou se é determinado pelas tendências da

acumulação. Supõe-se que a posição de Marx vai com a segunda alternativa, mas a

argumentação desenvolvida nesse capítulo não é clara, abundando em referências à crise de 1847.

Por isso, é preciso retomar um aspecto fundamental desse argumento, que é o papel da teoria

monetária e dos compromissos de crédito na formação da taxa de juros.

O esclarecimento da dimensão financeira da produção é indispensável, para que se saiba

como situar o progresso da produção no contexto da progressão de complexidade dos meios de

produção. Há dois problemas teóricos a resolver: como, quanto e quando financiar, e com que

meios financiar. A resposta do primeiro problema está nos requisitos de financiamento para

78 A expressão capital financeiro foi

introduzida posteriormente por

Hilferding. Marx fala do capital a

juros.

Page 115: A economia politica critica de marx

115

cada determinada situação na composição histórica do capital, isto é, na progressão da

composição do capital ao longo do tempo79. A segunda resposta depende de um esclarecimento

dos meios de financiamento, isto é, depende do prévio esclarecimento sobre a esfera monetária.

Nesse ponto, devemos acolher a contribuição de Suzanne de Brunhoff, por dois aspectos pelo

menos. Primeiro, por mostrar o significado epistemológico da opção de Marx, de tratar da

questão da moeda como anterior às determinações da produção capitalista. Segundo, por

mostrar os limites da esfera monetária na configuração do financiamento.

O esclarecimento da dimensão financeira da produção capitalista depende de uma teoria

monetária mais ampla, capaz de seguir a continuidade da produção capitalista propriamente dita

com a produção mercantil mais simples que, entretanto, deve ser capaz de refletir o

desenvolvimento mais complexo da esfera financeira no capitalismo avançado. A especificidade

da questão monetária deve-se à impossibilidade de reduzir os problemas de oferta e demanda de

moeda aos problemas de financiamento, ou seja, ao fato de que a oferta de moeda compreende

problemas mercantis e de entesouramento, que não podem ser percebidos na esfera do

financiamento da produção capitalista propriamente dita. Na verdade, revelam-se a

irredutibilidade da questão monetária e da questão financeira, indicando a necessidade de

avançar na direção de explicar as transformações estruturais da esfera bancária.

O argumento a ser recuperado é que a expansão do capital bancário se faz sobre a

concentração do fundo de reserva dos capitalistas, que é direcionado pelos bancos na formação

do mercado de juros; e que esse mercado necessariamente crescerá, na medida em que a mais

valia do capital dinheiro é reintegrada ao fluxo de circulação, constituindo um mercado

79 O capital escolhe que financiar

em função da rentabilidade do

financiamento. Mas os efeitos do

financiamento sobre a realização da

produção ultrapassam o significado

dessa rentabilidade, correspondendo

na realidade ao movimento de

reprodução do capital. Mais uma vez,

a experiência dos países pouco

industrializados é reveladora. O

financiamento suficiente e adequado

de suas atuais necessidades é

insuficiente e inadequado para que

mude a composição de seu capital na

escala e na composição necessárias

para que sua capacidade de produção

seja modificada.

Page 116: A economia politica critica de marx

116

específico. Por isso, ela constitui uma parte do capital que se distancia, cada vez mais, da lógica e

do controle do capital incorporado na produção industrial.

A análise operacional da esfera financeira parte, portanto, do papel do crédito na

produção capitalista (Livro III, cap. XXVII). De nossa parte, dizemos que é preciso estabelecer

quando é uma necessidade da expansão do capital industrial e quanto decorre dos interesses da

própria esfera financeira. Tal sentido da relação orgânica do capital dinheiro é retomada no

capítulo XXX, em que Marx analisa a relação funcional entre o capital dinheiro e o capital

efetivo. O cerne da questão é real, é conseqüência da composição orgânica do capital. São os

tempos dos investimentos, que resultam em desajustes - ou os ajustes variáveis e transitórios -

entre as demandas do capital de diferentes tipos de aplicações; e a liberação de dinheiro das suas

diversas aplicações. O capital gera mecanismos internos de diferenciação, que obrigam a tratar a

esfera financeira como um campo de interesses e tensões, que se torna parte essencial do

mecanismo de acumulação.

O esclarecimento dos problemas da formação de capital é necessário para explicar a

reprodução dos capitais já organizados; mas a explicação das possibilidades de que o capital

continue reproduzindo-se depende de uma análise que se coloque ao nível da produção em seu

conjunto, que portanto possa considerar a capacidade do sistema de tratar com novas condições

de acumulação. Ao passar para a produção capitalista em seu conjunto, Marx enfrenta o

problema central de incerteza que é, justamente, de flutuação das margens de incerteza ao longo da

expansão e das variações de composição de capital.

Page 117: A economia politica critica de marx

117

Uma primeira leitura de O Capital sugere um movimento linear progressivo de

substituição de formas mercantis por formas industriais de produção, mediante mecanismos de

conversão de mais valia em lucro, de lucro em lucro médio, de derivação do lucro em renda da

terra, finalmente, de que a realização da mais valia em lucro e do lucro em capital é um processo

sobre o qual recaem as margens de incerteza inerentes à reprodução dos sistemas de produção

historicamente constituídos80. Na verdade é um movimento em espiral, em que os componentes

do sistema são atualizados mediante uma progressão de efeitos recíprocos.

Marx aborda o problema na perspectiva do capital existente, o que significa que de modo

alternativo ao do processo propriamente dito de movimentos do capital, em que essa incerteza é

a própria lei da reprodução do sistema, compreendendo a complexidade do sistema em seu

conjunto e não só a complexidade da composição do capital. A lei da reprodução ampliada é a do

aumento de complexidade, que assume formas materiais do lado do capital, e que representa

aprofundamento de qualificações do lado do trabalho.

Fica, portanto, pendente a interrogação relativa a quem arcará com os custos da

qualificação dos trabalhadores. A resposta óbvia é ser esse um custo que o capital trata de passar

adiante, diretamente aos trabalhadores, ou indiretamente, à sociedade em seu conjunto, através

do Estado. O controle do Estado é parte essencial do processo do capital, já que em sua

concorrência os capitalistas tratam de usar esse poder político para canalizarem vantagens

econômicas.

A visão marxiana do problema projeta duas aberturas desse movimento: a do

desenvolvimento conseqüente das reaplicações dos lucros; e a das progressões de complexidade

80 Entendemos que uma segunda

leitura mostra algo muito diferente,

isto é, tal como na Fenomenologia do

Espírito de Hegel, as formas iniciais

permanecem, com suas próprias

determinações, revelando-se,

entretanto, subordinadas das formas

mais recentes e mais avançadas.

Page 118: A economia politica critica de marx

118

do capital e do trabalho. A nosso ver, a questão de fundo que emerge desses dois movimentos é a

impossibilidade prática de operar sistemas mais complexos sem trabalho mais complexo; e a

impossibilidade de usar o trabalho mais complexo em sistemas que não sejam os mais

complexos.

Segundo a análise de Marx, os efeitos do aumento de complexidade se distribuem para

dentro do sistema, a partir daqueles segmentos onde a composição de capital é mais elevada,

àqueles outros de menor densidade ou complexidade da composição do capital. Esse seria o

mecanismo que explica a lógica da relação entre a produção industrial e o controle da terra; e

entre a produção de alta e de baixa tecnologia. Os segmentos de capital que absorvem mais

tecnologia e que alcançam vantagens monopolísticas, passam a regular as condições mínimas de

tecnologia e capitalização com que operam as demais. A exploração da terra será mais

densamente capitalizada em consonância com o nível médio de capitalização do sistema

produtivo.

Mais uma vez, é uma questão de ciclos e de velocidades e de diferenciais de velocidade.

Compara-se a velocidade das conversões entre formas de lucro e de capital, com a velocidade

com que se realizam os efeitos dos deslocamentos de complexidade entre segmentos de

diferentes composições de capital. Subjacentemente, comparam-se as condições para alcançar

essas velocidades. Podemos dizer que se trata da capacidade de gerar e de controlar tecnologia,

mais que da renovação de tecnologia, ou mesmo que da renovação de tecnologia propriamente

dita81.

81 Por exemplo, numa releitura do

modelo de crescimento de Harrod,

cabe comentar que a idéia de uma

taxa garantida de crescimento

envolve um ajuste de composição

entre a composição e a distribuição no

tempo das necessidades de renovação,

mais que uma proporção adequada de

formação de capital.

Page 119: A economia politica critica de marx

119

Para as análises de problemas de desenvolvimento, isto é, de transformações de sistemas

de produção82, essas questões são fundamentais, porque assinalam aquelas "áreas" do sistema

produtivo que se mostram mais sensíveis a mudança, e aquelas outras que se definem como

mais estáveis ou como menos dinâmicas em relação a tecnologia. Paralelamente, essas "áreas" de

dinamismo correspondem à presença de trabalho mais qualificado. O "mistério" da acumulação

continua, na decisão de quem paga pela qualificação adequada dos trabalhadores; e na

contradição entre o movimento objetivo de qualificação e as necessidades de qualificação para o

desenvolvimento do sistema.

No contexto da modernização das economias industrializadas, esse problema se apresenta em dois

planos: no da viabilidade operacional da reprodução simples, em condições em que não há controle da

disponibilidade de equipamentos adequados e suficientes para sustentar a produção em seus níveis atuais; e

no das implicações da reprodução ampliada em distribuição da renda, com suas conseqüências em conflitos

entre os grupos envolvidos na produção. Na prática, essas questões não se respondem sem considerar a

especificidade do lucro comercial, tal como ele se apresenta na produção pré-industrial e na

industrializada.

82 Cabe aqui uma revisão da

compreensão de desenvolvimento.

Neste contexto trata-se do

desenvolvimento das forças

produtivas, que é a expansão dos

sistemas de produção em escala e

complexidade, que não

necessariamente está ligado aos

aspectos éticos da noção de progresso.

Page 120: A economia politica critica de marx

120

GÊNESE E METAMORFOSE DO CAPITAL

Traços gerais da questão

Neste primeiro movimento da análise crítica da sociedade econômica moderna, Marx trata do

processo social de produção do capital, que é também o movimento de transformação continua do

próprio processo de produção. Assim, vista em perspectiva histórica, a análise da formação de

valor também é a explicação de como esse valor é apropriado pelos capitalistas. Diz Marx que a

produção social de valor no capitalismo se realiza mediante um movimento que começa nos

processos de trabalho, que passa pela separação entre o trabalho anterior e o atual, e que conclui

pelo controle do poder criativo do trabalho atual. Como é o capitalista que retém o conhecimento

dos sucessivos processos tecnológicos, isso lhe dá a vantagem de ser o detentor da memória do

processo de produção. Desde aí, vê-se que o processo de estranhamento, pelo qual o trabalhador é

separado de sua produção, é também um processo de perda de memória83. Nesse movimento, o

valor do capital aplicado na produção aparece como gasto para produzir e como desgaste de meios

de produção. Esse capital é denominado por Marx de constante, porque não tem como mudar, é

valor congelado em determinadas formas. O poder de mudar está no trabalho, que por isso é

variável. Daí, que o capital depende, primordialmente, do controle que exerce sobre o trabalho.

Esse é o sentido da relação entre senhor e escravo, desenvolvida por Hegel: o capital para ser

capital depende do trabalho ao qual domina. A diferença é que aqui muda o modo como o escravo

83 Veremos que uma das principais

características das situações de

subdesenvolvimento é a perda

recorrente da memória da experiência

social, que faz com sempre se esteja

fazendo as mesmas coisas como se

fosse pela primeira vez.

Page 121: A economia politica critica de marx

121

serve ao senhor e como o senhor se apropria da força de trabalho do escravo. Na produção

capitalista o capitalista compra o tempo dos trabalhadores, mas, ao mesmo tempo, restringe as

opções de contrato a que eles têm acesso, portanto, desenvolve mecanismos sociais de controle dos

trabalhadores. Adiante veremos que o negativo desse controle é a mobilidade do trabalho.

No desenvolvimento desse argumento, Marx recorre ao seu aspecto contábil, mas na essência

da construção conceitual encontra-se um vestígio ou um paralelismo com aquele argumento de

Kant, que separa o campo do entendimento, que é o campo do que já está dado, do campo da

razão, que é onde se encontra o poder criativo, portanto, a capacidade de alterar o conhecimento.

Essa parte da análise de Marx culmina com a identificação da taxa de mais valia, que se percebe

de um raciocínio a posteriori, que relaciona a variação da mais valia como uma proporção total do

capital. Mas é preciso perceber a diferença entre uma taxa de mais valia, que é inferida do modo

como o trabalhador trabalha; e uma cota historicamente concreta de mais valia, que exprime a

mais valia efetivamente obtida pelo capitalista. O capital move-se na direção de garantir a

captação de uma massa crescente de mais valia.

Para realizar essa parte de sua tarefa, Marx tem o Livro I estruturado praticamente em

duas partes, em que a primeira apresenta os elementos do sistema capitalista de produção e a

segunda expõe o modo como ele funciona. A primeira parte abrange desde a teoria da

mercadoria até a da mais valia, desenhando os elementos da produção industrializada. A

segunda parte compreende a análise da manufatura e da grande indústria, chegando à teoria da

Page 122: A economia politica critica de marx

122

reprodução do capital e culminando com uma primeira exposição da acumulação capitalista.

Nessa última parte, mostra a acumulação no âmbito da produção industrial e no mecanismo da

colonização84.

Mercadoria, valor e valorização

A primeira parte do Livro I é a teoria da mercadoria. A teoria do valor está incorporada na

teoria da mercadoria e a formação do valor como tal – o valor de troca que tem subsumido o

valor de uso – é um pré-requisito necessário para que o sistema de produção se organize como

um sistema de produção de mercadorias. Quando Marx opta por começar O Capital com uma

apresentação da teoria da mercadoria de fato realiza uma operação teórica, que consiste em

supor que o sistema de produção em seu conjunto opera segundo os objetivos e as formas da

produção capitalista e que é possível ver toda a produção como produção capitalista. Veremos

adiante que é o mesmo pressuposto que permite considerar que todo o sistema está igualmente

monetizado. Ora a teoria do valor surge de um reconhecimento do valor de uso como resultado

da atividade que se realiza na esfera doméstica, pelo que também se considera que as “regras” da

produção social de valor de uso são universalmente válidas85.

A mercadoria surge da objetivização do valor de troca e consiste em produzir algo que

não é para ser imediatamente consumido, senão que é produzido para ser trocado. No Livro I de

84 Para uma leitura latino-

americana do problema –

representativa em muitos aspectos da

condição de periferia - é preciso

recalcar essa concomitância entre a

acumulação mercantil que sustentou

a industrialização e colonialismo dos

Tempos Modernos, assim como a

concomitância entre a

industrialização e o colonialismo do

imperialismo. A combinação de

colonialismo e sobre exploração –

portanto escravidão aberta ou

disfarçada - tem que ser vista como

parte integrante da acumulação

capitalista e não como um recurso

complementar.

85 Uma leitura atual da produção

social nas economias periféricas

obriga-nos a abrir questão sobre as

condições em que funciona a esfera

doméstica, em que variam as

condições de solidariedade familiar e

em que as famílias se mobilizam como

grupos que participam diretamente no

mercado, transformando suas

atividades domésticas em atividades

de mercado.

Page 123: A economia politica critica de marx

123

O Capital, Marx vai às raízes da fundamentação da produção capitalista, que são o modo de

produzir valor social e de captá-lo, para constituir o sistema de relações sociais que se organiza

em função do controle do valor produzido, que por sua vez está ligado à capacidade de produzir

valor. Entretanto, é preciso distinguir os aspectos mecânicos da produção social de valor, de seus

aspectos axiológicos, isto é, de sua raiz em valorações no sentido radical desta expressão. A

produção de valor é uma afirmação do que se reconhece como construtivo da atividade social.

Para realizar essa tarefa, para revelar o modo social de produzir valor, Marx reporta-se à

consubstanciação do valor de troca, que é a mercadoria. O valor de troca sustenta-se no valor de

uso, que é a expressão da utilidade dos bens, que surge de seu uso e da comparação entre usos.

Esse valor de troca reflete o tempo socialmente necessário para produzir as mercadorias, que é o

tempo médio necessário para produzir os bens em certas condições de organização social da

produção. A forma relativa do valor surge de como cada mercadoria se compara com outra de

uma dada coleção de mercadorias; e a forma equivalencial surge de como cada uma delas

equivale às demais em termos de poder de ser trocada.

O estudo da mercadoria é a pesquisa do modo como as sociedades têm procurado

soluções para realizarem sua vida material. É o ponto de partida da análise do processo social de

produção, porque a mercadoria reflete sinteticamente os processos de produção que levaram a

sua realização. A mercadoria reflete a forma social da produção, isto é, o modo pelo qual a

produção se realiza em cada sociedade. Entretanto, a mercadoria é um produto datado, que se

situa num ponto momento da progressão da produção capitalista, cujo valor depende dessa

Page 124: A economia politica critica de marx

124

inserção em termos gerais, e, especificamente, de sua inserção no conjunto das mercadorias de

que é parte.

O processo que cria mercadorias torna o dinheiro necessário, isto é, leva à criação de

dinheiro. O dinheiro surge como parte da ampliação do patrimônio, numa intermediação entre

formas de mercadoria, em que a produção de mercadorias pode ser interrompida e o dinheiro

permanecer apenas como uma mercadoria de uso limitado. O dinheiro vem a ser a verdadeira

mercadoria na produção capitalista, onde ele representa a máxima equivalência entre as diversas

mercadorias.

A conversão do dinheiro em capital é um momento fundamental da formação da

produção capitalista, em que o dinheiro separado da atividade produtiva pode ser entesourado

como modo de formar patrimônio86. O dinheiro se converte em capital quando usa valor de uso

para transformar-se em valor de troca. Mas ele só consegue fazer isso quando conta com uma

mercadoria capaz de transformar seu próprio valor de uso em valor de troca, que é a força de

trabalho. A produção de capital faz-se mediante uma combinação de processos de diferentes

rumos e intensidade, em que as categorias tais como mercadoria, valor e dinheiro,

interdependem umas das outras; e só se explicam em condições de dinâmica, num movimento

cujo epicentro é a compra de força de trabalho.

Nesse contexto, o valor social surge de que o fruto do trabalho seja útil para outros. Isso

permite a troca e sustenta a condição de valor relativo – para o possuidor de cada mercadoria – e

de valor equivalente, para os que têm outras mercadorias e querem trocar por esta. O quadro de

equivalências se dá em condições em que haja condições de usar as mercadorias, isto é, só há

86 Essa é a primeira razão para que

se distingam as funções da moeda

como tal, isto é dinheiro, das moedas

específicas, que estão sujeitas a

variações de aceitação -

conversibilidade a outras moedas – e

que se refletem em variações de

preços entre moedas – taxa de câmbio

– quando são menos apreciadas nas

relações internacionais.

Page 125: A economia politica critica de marx

125

equivalência em um determinado contexto de desenvolvimento dos meios de produção. A forma

equivalencial representa a esfera das trocas possíveis. Podemos dizer que não há equivalência

alguma, para os que não têm renda suficiente para participar das trocas. Por oposição, a esfera

das trocas significa uma esfera de exclusão. A idéia de uma equivalência universal - ou da

universalidade da equivalência – que já aparece na Contribuição à crítica da Economia Política

(C.C., pp.32), refere-se à universalidade do valor de troca, mas não se mantém, quando se trata

das condições históricas do desenvolvimento das forças produtivas.

Valor relativo e equivalência acontecem num dado ambiente de mercado, isto é,

dependem de que a produção seja levada ao mercado. Desde o ponto em que identifica esse fato

(L I, pp.), Marx distingue a função comercial, de levar a produção ao mercado, do capital

comercial, que se reconhece como o nível de acumulação que corresponde ao capital que realiza

essa função de levar a produção ao mercado. A mercadoria surge quando os capitalistas

conseguem levar a produção mercado, Mais uma vez, nossa leitura das economias periféricas

mostra uma importante incerteza nessa operação.

A partir desse ponto, a noção de tempo revela-se fundamental na estruturação de O

Capital e aparece em dois planos combinados: como o tempo do trabalhador, que é o comprado

pelo salário, e que representa um potencial de força de trabalho; e como o tempo necessário para

produzir uma mercadoria, que depende das condições em que ela é produzida, que transcendem

as habilidades e a energia dos trabalhadores. O movimento geral de formação de valor e de

produção de mercadorias, só se vê em termos de tempo, mediante a combinação dos elementos

internos de tempo, isto é, os tempos inseridos no processo de produção e os tempos de

Page 126: A economia politica critica de marx

126

relacionamentos externos. Por aí entra uma questão da produtividade, isto é, do tempo que se

usa para produzir uma dada mercadoria87.

Mas, como esses tempos de trabalho são realizados por pessoas, que estão inseridas em

determinadas condições de capitalização da produção, onde procuram aumentar sua renda, é

preciso considerar que uma mesma pessoa pode realizar ou participar de diferentes tarefas, o que

quer dizer, participar de diferentes condições de uso de capital88. Observe-se que esse tema é

tratado por Marx com seu exemplo de trabalho seqüencial, de fabricação de tecidos e de casacos,

onde raciocina em termos de que participar dessas duas etapas do processo produtivo é um

esforço adicional. A relação entre tecidos – cashmir e casacos – foi habilmente – e talvez

manhosamente – escolhida por Marx que, com esse exemplo privilegiado mostra uma relação de

sucessão orgânica no mundo da produção industrial que raramente se repete.

No entanto, certamente, isso envolve muitas mais possibilidades, do que aquelas

estabelecidas pelo espectro de atividades hoje em curso no sistema produtivo. Assim, sempre

pensando na condição colonial, esse é um argumento a ser explorado pelo outro lado, tratando

da capacidade dos trabalhadores, de mudarem de ocupação, algo que não só está vedado no

ambiente da escravidão, como nos sistemas produtivos dependentes e pouco diversificados.

Diremos que a liberdade dos trabalhadores para venderem sua força de trabalho encobre a

limitação decorrente de suas restrições de acesso às oportunidades de emprego. Está claro que o

controle das oportunidades de emprego é um controle indireto da liberdade no mercado de

trabalho.

87 O tempo no processo produtivo

aparece superficialmente como algo

sempre previsível. No entanto,

encobre uma incerteza, já denunciada

por Adam Smith , com seu exemplo

do caçador, que com um mesmo

esforço de caminhar e com uma

mesma arma pode chegar a resultados

imprevistos segundo encontra um

animal de pequeno porte ou de grande

porte. Em Marx a incerteza no tempo

aparece também no momento da

comercialização, quando o capitalista

pode não encontrar compradores ou

encontrar preços inferiores aos seus

custos de produção ou superiores a

suas expectativas.

88 Encontra-se aí uma primeira pista

da discussão da mobilidade social dos

trabalhadores, que é sua capacidade

de optar entre ocupações, ou de

alterar as condições de contrato de

trabalho e de cessão de mais valia.

Observe-se que essa participação em

diferentes situações de trabalho é

tratada por Marx por seu aspecto

negativo, que é um constrangimento a

participar delas. Na perspectiva de

quem vê a formação do capital num

ambiente colonial, ela tem um aspecto

positivo, que é o de formação de um

tipo de autonomia, que é essa

capacidade de optar, geralmente

associada com a migração.

Page 127: A economia politica critica de marx

127

O movimento de formação de valor exige um equivalente geral, que é o dinheiro89. Para

Marx, o movimento da produção de mercadorias e de produção de dinheiro é o mesmo. Por isso,

choca ver que vários autores que se ocuparam desse tema, desde Kautsky até Harvey,

introduzem uma separação positivizante entre essas duas categorias, que, como assinala Tavares

(1976), reduz a leitura de Marx aos termos da análise neoclássica de hoje.

O processo de troca. As trocas são essenciais n formação das relações mercantis Em

Marx encontra-se uma leitura das trocas que transcende o caráter simples e repetitivo das trocas

do comércio. Uma diferença fundamental entre Marx e os economistas marginalistas é o modo

de olhar as trocas. Para Marx, as trocas estão historicamente determinadas pelas características

materiais do processo produtivo, que define o elenco de mercadorias com que se trabalha. A

mercadoria alcança seu papel mediante a troca, que é quando se materializa sua equivalência. A

troca se realiza a partir do estatuto jurídico da propriedade privada, envolvendo a

institucionalidade da posse de coleções específicas de mercadorias. Ao transferir as mercadorias

para aqueles para quem têm valor de uso, o processo de troca propicia um metabolismo social (L.I,

pp.65), em que o dinheiro intermédia a substituição de elencos de mercadorias entre os diversos

participantes do processo. M=> D => M representa essa redistribuição das mercadorias entre

usuários, que faz revelar seu valor de uso como impulsionador da troca.

A circulação das mercadorias ou o dinheiro. O desenvolvimento do valor de uso

encontra-se na criação de condições ilimitadas de troca, que são propiciadas pelo dinheiro. O

dinheiro é a representação dessa possibilidade de troca. O dinheiro é a medida imanente do valor das

mercadorias, que é seu tempo de trabalho (L.I, pp.56). A circulação está historicamente determinada,

89 Desde esse ponto da

argumentação, é preciso trabalhar

com a distinção entre dinheiro e

moeda. Dinheiro é a designação

genérica do equivalente de valor,

enquanto moeda é a expressão do

dinheiro. A moeda concreta supõe

uma capacidade específica do Estado

nacional, para manter essa

representatividade. Sustentar a

moeda, manter sua capacidade de

representar valor tornou-se uma

questão crucial para as economias

periféricas de hoje.

Page 128: A economia politica critica de marx

128

isto é, é a circulação das mercadorias que a sociedade produz em cada ponto momento da

história; e não tem sentido pensar em circulação mundial num lugar onde a economia não está

plenamente integrada na esfera do dinheiro mundial. A circulação de dinheiro historicamente

avançou quando aumentou a produção que se troca.

O dinheiro é medida de valor, meio de circulação, e tem um curso estabelecido pelas

mercadorias que troca. A massa de dinheiro em circulação denotará a soma dos preços das

mercadorias e o número de rotações das transações com ela, isto é, a massa de dinheiro depende

da necessidade de trocar para realizar o valor incorporado nas mercadorias. Nessa relação D

(dinheiro circulante) = P (preços ) . M (mercadorias) surge a questão da velocidade no sistema

produtivo, onde a quantidade de dinheiro total decorrerá da velocidade de circulação dada por

variações nos preços e nas quantidades de mercadorias. A questão da velocidade é essencial ao

conjunto da explicação do sistema, mas está explicitada no Livro II, onde Marx desprega a

composição de velocidades desiguais que sustenta a movimentação dos capitais. Colocado em

perspectiva histórica, a velocidade deve ser vista como um atributo das condições de

desenvolvimento de sistemas específicos e nunca como um traço geral da produção capitalista.

Assim como a velocidade no sistema aumenta junto com a redução dos tempos socialmente

necessários para realizar um mesmo elenco de produtos, há limitações aos aumentos de

velocidade, que decorrem da rigidez dos componentes do sistema – estabelecimentos produtivos

– em tecnologia.

Page 129: A economia politica critica de marx

129

A questão especial do dinheiro

Marx explora o significado do dinheiro em dois níveis. Primeiro, como uma categoria do

funcionamento do capital e depois, como a mercadoria privilegiada que aciona as operações do

capital. A primeira leitura é a que se encontra nos Grundrisse e a segunda é a que se encontra em

O Capital. No movimento da teoria de Marx, a exposição da comercialização demanda uma

exposição esclarecedora do dinheiro. O controle da comercialização se exprime com dinheiro,

que é “a forma ou manifestação necessária da medida invariante de valor das mercadorias: o

tempo de trabalho” (L. I pp.56). O dinheiro reflete uma complicada equivalência de valor entre

mercadorias, dentre outras razões, porque mudam a lista das mercadorias postas em

equivalência e suas propriedades técnicas. Diz Marx, que “em sua função de medida de valor, o

dinheiro atua como dinheiro imaginário ou ideal” (L. I pp.57); e adiante “O ouro só pode funcionar como

medida de valores, por ser ele também um produto do trabalho, portanto, potencialmente, um valor

variável” (L. I pp.59) 90.

Há uma diferença fundamental entre o dinheiro em geral como tal na produção

capitalista e as moedas, enquanto manifestações de sociedades capitalistas concretas. Em sua

qualidade de moeda, o dinheiro passa a estar sujeito às circunstâncias das sociedades que criam e

sustentam a moeda. Diremos que, como a quantidade de moeda depende da circulação que

prevalece em cada sociedade, a produção capitalista depende da instância nacional, justamente,

por estar aí a capacidade de criar e manter moeda. Passa a haver um problema de sustentar a

90 Essa variabilidade assinala a

distinção dinheiro genérico –

sustentado pelo valor social – e

moedas específicas – sustentadas

pelas bases institucionais do valor

social – havendo, portanto, uma

variabilidade dada pela produção de

valor e outra, dada pelas condições

econômicas, sociais, técnicas e

psicológicas de cada país para

sustentar sua moeda.

Page 130: A economia politica critica de marx

130

moeda. Mas há um problema inverso, que provavelmente é onde se vê a perspicácia da análise

de Marx, que é onde o funcionamento da moeda dinheiro como tal surge, justamente, dos

aspectos positivos e negativos, do caráter contraditório das moedas91.

Marx antecipou as transformações da moeda, conseqüentes da pluralidade e

interdependência das formas de dinheiro: “O curso do dinheiro, ao dissociar a lei real da lei nominal

da moeda, sua existência metálica de sua existência funcional, leva implícita a possibilidade de substituir o

dinheiro, em sua função monetária, por contrasenhas feitas de outro material, ou por simples símbolos”

(L.I, pp.84) Ora, essas “contrasenhas” significam um aumento da massa total de circulação

sobre as quantidades efetivamente produzidas e contribuem para a concentração do capital na

razão direta dos diferenciais de velocidade.

Os preços. Nesse ponto encontra-se um aspecto a ser destacado, que é o tratamento dado

por Marx à questão dos preços. Os preços das diversas mercadorias não somente são

interdependentes, como são preços historicamente situados. Não é que o preço do café esteja em

correspondência com os de outros produtos que hoje sejam considerados como seus substitutos,

tais como o chá e outros, senão que o preço do café hoje é parte de uma progressão de histórica

de formação de preços, em que o sistema produtivo tem a capacidade de produzir um

determinado conjunto de produtos e em que surgem e desaparecem produtos que podem ser

considerados como substitutivos.

A diferença fundamental entre Marx e os neoclássicos está em que para ele os preços são

dados históricos, enquanto para esses são apenas dados atuais, sem data. Os preços surgem como

determinação das condições específicas de formação do sistema produtivo em seu conjunto e

91 Essa a nosso ver é a grande

abertura para uma análise dos

processos monetários na perspectiva

do capital – e não só do livro O

Capital - onde a abordagem de Marx

permite ver como o processo da

moeda no capitalismo depende desse

panorama variável, desigual e

incerto das moedas, onde não tem

muito sentido uma teoria da moeda

que parte de igualdade de condições

de monetização e de condições

similares de circulação.

Page 131: A economia politica critica de marx

131

não como um problema isolado de formação do preço de uma determinada mercadoria, separado

da transformação do sistema. Os preços do petróleo dependem de condições estruturais de

produção e de uso de petróleo e não de um confronto incidental de oferta e demanda atuais. Por

isso, entende-se o sistema de preços como a cara atual do processo de formação de preços.

Isso tudo tem a ver com as condições em que as mercadorias são produzidas, que são

próprias de cada momento do sistema produtivo. Mas a questão do preço tem em Marx um

fundamento mais complexo, na imersão de valor na mercadoria, que exprime uma relação

necessária com os usos de trabalho social. A incorporação de valor em cada mercadoria é parte

da movimentação de valor no conjunto do sistema, que, entretanto, não garante que essa

mercadoria seja trocada. Marx denomina de incongruência algo que nos parece melhor definido

como restrições qualitativas do sistema, que não permitem que tudo seja trocado por tudo. No

essencial, trata-se de situar historicamente os pressupostos da microeconomia, que deixa de

poder ser resolvida como um problema de micro economia estática.

Page 132: A economia politica critica de marx

132

Os modos de apropriação de valor:

produção e captação de mais-valia

Para ajudar a formar uma visão de conjunto do processo de argumentação de Marx, convém

iniciar a leitura da apropriação de valor, que é a primeira parte da grande seção sobre mais valia

absoluta, justamente, estabelecendo esse conceito. Marx começa essa parte de O Capital sem

preâmbulo, discutindo o processo de trabalho e a valorização, sem oferecer um plano dessa

seção. Desde logo, para captar mais valia é preciso produzir, portanto, é preciso encontrar que

produzir para se inserir no mercado.

Mutação da circulação, produção

e produção de mais-valia

A apropriação de valor acontece mediante o desenvolvimento das funções da moeda, como

meio de pagamento e da subseqüente conversão de dinheiro em capital. Esse processo começa

com a chegada das diversas mercadorias ao mercado e com a atribuição de um sentido de

Page 133: A economia politica critica de marx

133

universalidade ao dinheiro. Numa primeira etapa, o dinheiro é usado para viabilizar o acesso às

mercadorias, para atender demandas de valor de uso.

O capital surge quando há uma inversão no movimento do manejo das mercadorias. A

circulação aparece primeiro como M =>D =>M. Numa segunda etapa, a universalidade da moeda

viabiliza sua função de reserva de valor, quando então passa a haver uma relação do tipo D => M

=> D. Essa inversão denota a mudança no sentido de finalidade da produção capitalista.

Finalmente, o dinheiro transformado em capital resume esses movimentos em D=> D’.

Esse é o desenvolvimento de um processo que começa com a troca. A troca é o modo de

captar valor de uso para a formação de valor social, isto é, de valor reconhecido por todos no

sistema de produção. O processo de troca é o mecanismo que permite ao capitalista realizar a

formação de capital (L. I, pp. 55). Marx identifica, isto é, separa92, objetivamente o fato do

processo de troca do fato da circulação de mercadorias, já que cada um dos dois tem uma

realidade histórica própria. No conjunto, a troca em geral e a circulação de mercadorias são os

elementos que respondem pela comercialização da produção.

O fundamento da apropriação de valor é a obrigatoriedade da comercialização da

produção. Só se quer ter uma mercadoria enquanto se sabe que ela pode ser vendida93. O

mecanismo básico de apropriação de valor se desenvolve através do processo conjunto de

produção e da circulação. Por isso, na teoria de Marx esses dois termos – produção de

mercadorias e produção de dinheiro – caminham a par e passo, tornando-se necessário neste

ponto inserir o relativo ao aparecimento da moeda e ao papel do dinheiro na determinação da

produção. Tal determinação pode ser representada tal como na igualdade a seguir:

92 Observe-se que separar um

conceito aqui significa reconhecer que

o objeto representado se distingue dos

demais, portanto, que é preciso

encontrar o modo de relacionar uns

objetos com os outros.

93 É preciso ressaltar que o controle

da comercialização é um fundamento

da condição dos capitalistas, que

desse modo podem realizar a mais

valia. O essencial para o capitalista

não é ser produtor, tal como sabemos

da experiência dos produtores

coloniais para exportação. O

fundamental é controlar a capacidade

de vender a produção, que, nesse

caso, é controlar a operação de

exportação.

Page 134: A economia politica critica de marx

134

Massa M(mercadorias) . preços = Massa D(dinheiro) . velocidade

O mecanismo de aparecimento da moeda é essencial na teoria de Marx, que sempre situa

a identidade simbólica da moeda sobre seu fundamento real, ao tempo em que, antecipando as

possibilidades de proliferação de outras formas de moeda “ O curso do dinheiro, ao dissociar a lei

real da lei nominal da moeda, sua existência metálica de sua existência funcional, leva implícita a

possibilidade de substituir o dinheiro metálico em sua função monetária por contrasenhas feitas de outros

materiais ou por simples símbolos” (L. I, pp.84). A formação da moeda no contexto do

desenvolvimento do capital mercantil é o verdadeiro passo inicial necessário para que o capital

se desprenda de atividades repetitivas e assuma seu verdadeiro papel criativo.

O processo geral de circulação se realiza mediante as condições particulares de circulação

das mercadorias e de circulação do dinheiro, com as peculiaridades de que essas duas caras do

processo dependem de um ambiente único de confiança, que está apoiado na formação da

sociedade econômica em cada lugar, com sua datação e sua participação na esfera mundial. A

coroação do processo de circulação é o dinheiro mundial.

O processo ganha sua feição definitiva a partir do momento em que o dinheiro se

converte em capital, isto é, de que suas aplicações se separam de objetivos de consumo, para

destinarem-se a objetivos de formação de capital, quando o dinheiro deixa de ser uma

representação da circulação para representar reserva de valor. Não mais ganhar dinheiro para

consumir, senão para aumentar a capacidade de ganhar dinheiro. Esse movimento atinge seu

Page 135: A economia politica critica de marx

135

ápice quando se passa de M => D => M para D => M => D e finalmente, para D => M => D’ e

para D => D’.

A passagem de M => D => M até D => D’ representa , ao mesmo tempo, a conversão do

dinheiro em capital e a transformação do sistema de circulação, que passa de estar constituído de

movimentos simples, fortuitos, de circulação, a movimentos complexos, que tendem a se repetir

interminavelmente. É preciso tomar em conta que a realização sistemática da circulação envolve

uma alteração do sistema de circulação, já a circulação simples seria uma troca de valores

semelhantes. Para superar essa circularidade, os capitalistas precisam de uma mercadoria que

crie seu próprio valor de uso, isto é, de uma mercadoria que altere os fluxos de valor de troca no

sistema. Tal mercadoria é a força de trabalho, Por isso, a formação de capital pelo comércio só

acontece quando ele tem a capacidade de fazer trabalhar, direta ou indiretamente.

Por isso, para conseguir que a conversão do dinheiro em capital se concretize, isto é, que

volte ao mundo da produção, os capitalistas precisam contratar trabalho, isto é, precisam

encontrar-se no mercado de trabalho com quem tenha força de trabalho para vender. Noutras

palavras, o capital precisa de quem realize a produção de valor, de quem trabalhe. Por isso,

compra força de trabalho. Nessa operação dão-se as condições para a extração de mais-valia94.

94 Esse movimento do capital enseja

o questionamento do trabalho

compulsório – escravo e servil – que é

obviamente essencial na construção

do caso das economias periféricas. O

capital formou-se com trabalho

compulsório, ou com trabalho

constrangido, isto é, realizado por

trabalhadores livres sem outras

opções de ocupação ou de salário. O

controle do mercado de trabalho

(PEDRÃO, 1995) é parte

fundamental dessa acumulação, que

usou essas vantagens, bem como as de

controle dos recursos naturais, para

concorrer no mercado internacional.

Page 136: A economia politica critica de marx

136

Os processos de trabalho

O capital intervém na produção utilizando processos de produção, isto é, modos operacionais

previamente conhecidos, que permitem aos capitalistas fazerem com que o trabalho que os

trabalhadores realizam seja o adequado aos objetivos de produção deles capitalistas. Desse modo,

a força de trabalho transforma-se em trabalho produtivo. O capital controla os trabalhadores

através desse uso direcionado de sua força de trabalho. Tal mecanismo permite determinar

como usar os recursos naturais, que ao serem engajados nesse processo, transformam-se em

meios de produção.

Marx distingue o trabalho, seu objeto e seus meios. Trata-se do trabalho adequado aos

objetivos decididos, dos recursos em sua forma natural, dos meios de trabalho, que são materiais

que já têm incorporado trabalho, ou seja, ferramentas. Os meios de trabalho e o objeto, juntos,

constituem os meios de produção. Diremos que os meios de produção encerram a memória do

processo de produção. E que é essa memória que dá continuidade ao processo produtivo.

Nesse ponto, Marx reconhece a “indústria extrativa” como uma situação excepcional, em

que o capitalismo opera com materiais gerados fora de seu processo de produção, entretanto, não

cai na armadilha de considerá-la como anterior ao processo de produção capitalista. Significa

que o sistema de produção capitalista continua beneficiando-se de produtos que são realizados

mediante contato direto com a natureza, isto é, produção extrativa ou extração, que aderem à

produção capitalista, mas não é realizada com capital acumulado95.

95 Para nós, é fundamental rever a

questão do componente de

extrativismo na produção capitalista

avançada subordinada. Não só em

atividades claramente de extração,

tais como busca de crustáceos e

animais silvestres, mas como um

componente disfarçado ou não

reconhecido da composição de custos,

tal como na indústria de construção

civil, na produção de alimentos e

bebidas e em diversos outros itens.

Não se pode esquecer a importância

das atividades extrativas na

constituição do setor exportador das

economias coloniais, nem o modo

como os setores modernos usam esse

componente primitivo para formar

sua taxa de lucro.

Page 137: A economia politica critica de marx

137

O processo de valorização

A valorização é o movimento de formação de valor obtido mediante a incorporação de trabalho

para objetivos reconhecidos pelo capital, que aparece como formação de valor social, isto é, de

valor reconhecido por todos. Consiste na incorporação da produção específica no processo geral

da produção capitalista. Por isso, dizemos, a valorização envolve um problema de continuidade

ou de descontinuidade na seqüência das atividades produtivas, onde os programas de produção

elaborados pelos capitalistas partem de referências da experiência do processo de produção.

Tal experiência se reflete nas listas de produtos e nas características técnicas dos

produtos. Por ex., o hábito de produzir sapatos de couro. O produto quando terminado, é um

valor de uso, que deve ser convertido em valor social, para que supere o valor desembolsado em

sua produção. Para isso, o produto será julgado como valor social médio, que é a referência do

sistema de produção capitalista em seu conjunto.

Page 138: A economia politica critica de marx

138

Capital constante e capital variável

Ao estabelecer os conceitos de capital constante e capital variável, Marx entra na constituição

do processo de produção no qual se realiza a extração de mais valia. Capital constante e variável

são, por assim dizer, os termos de uma proposição que é a produção, que através deles se revela

em seu sentido histórico, já que o capital constante é o resultado “decantado” da produção ao

longo do tempo96. Diremos que o valor atual do capital constante depende do modo como se

combinam os diversos equipamentos para objetivos que são definidos depois que eles foram

construídos.

A questão em pauta é a agregação de valor que acontece na produção. Os meios de

produção só incorporam o valor que perdem através de seu desgaste. “Conservar valor

incorporando valor é um dom natural da força de trabalho posta em ação, da força de trabalho viva” (L.

I., pp.156). “A parte do capital que se investe em meios de produção (...) não muda de magnitude” “Em

troca, a parte do capital que se inverte em força de trabalho muda de valor no processo de produção” (L. I,

pp. 158).

Além de reproduzir sua equivalência, a produção capitalista cria um remanescente, que é

a mais valia. Essa parte do capital se converte, constantemente, de constante em variável. Mas

essa não é uma operação automática. Marx aponta dois argumentos para mostrar que é uma

operação arriscada. Primeiro, porque envolve um tempo dentro do qual os diversos produtores

96 Para nós, é fundamental rever a

questão do componente de

extrativismo na produção capitalista

avançada subordinada. Não só em

atividades claramente de extração,

tais como busca de crustáceos e

animais silvestres, mas como um

componente disfarçado ou não

reconhecido da composição de custos,

tal como na indústria de construção

civil, na produção de alimentos e

bebidas e em diversos outros itens.

Não se pode esquecer a importância

das atividades extrativas na

constituição do setor exportador das

economias coloniais, nem o modo

como os setores modernos usam esse

componente primitivo para formar

sua taxa de lucro.

Page 139: A economia politica critica de marx

139

podem alterar seus programas de produção. Segundo, porque liga expectativas microeconômicas

com expectativas macroeconômicas97.

As mesmas partes integrantes do capital, que do ponto de vista do processo de trabalho

distinguimos como meios de produção e força de trabalho, do ponto de vista da valorização,

distinguem-se como capital constante e variável. Observe-se nesse ponto, que Marx distingue o

engajamento do trabalho numa dada composição de capital e sua conversão em capital variável,

que significa que o trabalho se torna capital variável quando passa a fazer parte do período

seguinte de produção. Assim, na concepção de capital variável há uma dimensão de

continuidade na participação dos trabalhadores concretos na produção. Diremos que isso

também significa que quando eles são excluídos do processo de produção deixam de ser capital

variável.

Está claro que a valorização atual do capital constante depende de que haja capital

variável que seja compatível com ele, isto é, de que o trabalho que hoje se realiza seja

historicamente contínuo com o que se fez antes.

97 Nós vamos incluir um terceiro

argumento, que resulta do fator de

risco que se encontra na possibilidade

de alteração tecnológica no momento

de comercialização dos produtos.

Page 140: A economia politica critica de marx

140

Produção e extração de mais-valia

Preliminares

Por mais-valia, Marx entende a captação de valor gerado pelo trabalho integrado na produção

capitalista e que excede a magnitude que os trabalhadores recebem de volta. Isso significa que é

uma magnitude de valor que só acontece na produção capitalista98. Significa, também, que ela

resulta do poder do capital, de usar força de trabalho para objetivos e segundo programas de

produção que ele decide. Por isso, a extração de mais-valia é inseparável do movimento de

alienação pelo qual os trabalhadores são primeiro privados dos produtos que produziram e

depois são privados de seus instrumentos de trabalho.

Ao concluir-se a produção dos produtos, a mais valia fica em estado latente, na forma

material de produtos, até ser realizada, isto é, até os produtos serem vendidos e convertidos a

um fluxo de dinheiro, cujos destinos são decididos pelo capital. Isso significa que a mais valia

está na esfera do valor, enquanto o lucro está na esfera dos preços. A conversão da mais-valia

em lucro é a conversão de valor em preços, que é o mecanismo pelo qual as produções

individuais se integram no mercado.

A explicação da extração de mais-valia requer que se expliquem os grandes mecanismos

que dão lugar ao seu aparecimento. Nesse sentido, Marx dedica um grande espaço ao estudo da

98 Isso levanta para nós um

problema que não preocupa aos

teóricos que se sentem parte do poder

hegemônico mundial, qual seja, de

como ver o valor extraído da

periferia da produção capitalista e

realizado por atividades extrativas.

O comando – direto ou indireto –

desse trabalho gera ou não mais

valia. Vamos entender que sim,

porque essa produção periférica está

indiretamente controlada. Mas não é

uma transação garantida.

Page 141: A economia politica critica de marx

141

divisão do trabalho e ao da maquinaria e da grande indústria. Noutras palavras, a extração de

mais valia num determinado ponto do sistema implica nas inter-relações entre esse ponto e os

demais pontos do sistema. A extração de mais valia não se realiza exclusivamente num

estabelecimento produtivo, senão no sistema produtivo.

Marx distingue a mais-valia absoluta, que se extrai numa dada situação de produção, a

mais-valia relativa, que o capital capta de variações na organização técnica da produção; e a

mais-valia absoluta e relativa, que é a combinação dos aspectos anteriores. São aspectos de uma

realidade que só se vê por inteiro na visão da mais-valia absoluta e relativa.

O perfil do problema apresenta-se na primeira parte – Quota e massa de mais-valia –

onde Marx trata explicitamente dos aspectos quantitativos e somente em parte de modo

explícito, dos aspectos qualitativos. Trata-se de que se identifica a quota de mais-valia e a massa

de mais-valia que acontecem em cada situação específica de produção. Mas não trata de como

essa mais-valia está constituída qualitativamente, isto é, de qualificação dos trabalhadores.

A extração de mais-valia varia ao longo da formação do capital e depende do modo como

ela se produz que, por sua vez, depende de uma condição técnica da produção. Há uma

proporcionalidade entre as despesas com trabalhadores e com meios de produção: “Para valorizar

uma parte do capital investindo-o em força de trabalho, não há mais remédio que investir outra parte em

meios de produção” (L.I., pp. 162). Na verdade, em cada forma de produção há um potencial de

mais valia que pode ser produzida e captada, segundo a atividade contemplada pode absorver

capital e enseja contratação de trabalho99; e a seguir, há uma proporcionalidade específica de

mais-valia, que pode ser produzida nas atuais condições técnicas de produção.

99 Essa primeira variante não seria

necessária ao desenvolvimento do

argumento de Marx, mas é

fundamental para quem se preocupa

com as margens de possibilidade de

aplicações de capital nas economias

periféricas, porque rompe com o

argumento da falta de demanda, para

trabalhar com a premissa de que o

capital sempre opera em função do

mercado mundial, ao qual se dispõe a

dirigir-se em função da mais valia

total que consegue obter em sua base

de origem.

Page 142: A economia politica critica de marx

142

Esse mecanismo se entende ainda melhor, quando se vê que há um aspecto interno e

outro externo à produção, no que se refere à mais-valia. O aspecto interno é o que está indicado

pela produção específica; e o externo, o que resulta do trabalho socialmente necessário nessa

produção, que é um dado do sistema de produção em seu conjunto. A taxa de mais-valia, p/v

(mais valia sobre capital variável) reflete as condições históricas concretas da produção

específica. Em cada situação específica, isso corresponde a uma relação entre trabalho

excedente/trabalho necessário, que indica as condições de extração da mais-valia em cada

situação específica de produção100.

A jornada de trabalho

Um esclarecimento sobre a jornada de trabalho é parte da explicação de Marx sobre a mais

valia absoluta, ocupando uma extensa parte desse texto. Introduz-se aqui como um parágrafo

especial subordinado da discussão geral sobre mais valia, que prosseguirá a seguir. Em torno da

jornada de trabalho se materializam os interesses dos capitalistas e os dos trabalhadores. A

jornada de trabalho é a expressão do regime de uso de trabalho na produção, que indica as

condições do contrato de trabalho. Além da luta social acerca do esforço de trabalho, os

interesses do capital e do trabalho se definem em torno do número de horas de trabalho, porque

100 Tornou-se imperativo examinar

esse mecanismo com cuidado, dado

um encaminhamento equivocado, que

se difundiu na literatura histórica

ocidental de desenvolvimento e de

sub-desenvolvimento, inclusive de

autores marxistas. Refere-se a uma

aparente confusão entre taxa de mais

valia e excedente, bem como entre as

condições técnicas de formação de

excedente e as condições históricas

concretas de extração de mais valia.

Hoje interessa muito menos indicar

os autores responsáveis dessa

confusão, que restabelecer o rumo da

reflexão.

Page 143: A economia politica critica de marx

143

é onde se realiza o controle sobre a totalidade do tempo dos trabalhadores, inclusive daquelas

horas não contratadas.

A noção de jornada de trabalho em Marx é um dos pontos em que a análise do capital

está mais claramente apoiada em pressupostos da produção fabril. Depende de que o processo de

produção funcione mediante tarefas previamente conhecidas e semelhantes, que podem ser

desempenhadas alternativamente por todos os trabalhadores, ou pela maioria deles. É essencial,

para que se veja como funciona a extração de mais valia. Por isso, é como um parafuso central

da construção teórica.

A jornada de trabalho compõe-se de trabalho necessário e de trabalho excedente.

Observe-se que a noção de necessário aqui se refere ao trabalho socialmente necessário (o

trabalho necessário para repor as forças produtivas gastas na produção) para aquele objetivo de

produção, bem como envolve o significado de necessário para repor as forças do trabalho (L. I.,

pp.177 e 178). Isso significa que o trabalho socialmente necessário diminui segundo os aumentos

de produtividade e que essa diminuição do trabalho socialmente necessário corresponde a um

aumento da taxa e da massa de mais valia.

Por isso, a jornada de trabalho é uma magnitude que varia dentro de certos limites, em

que o mínimo é indeterminado, enquanto o limite máximo é dado pelas forças físicas dos

trabalhadores; e há limites éticos historicamente variados, mas acrescentamos que sempre

dependem da qualificação ou desqualificação do trabalhador como um outro (sujeito)

equivalente ao detentor de poder. Historicamente, a determinação da jornada de trabalho é o

resultado de conflitos de interesses entre capitalistas e trabalhadores, em que desempenham

Page 144: A economia politica critica de marx

144

papel especial a pressão demográfica no mercado de trabalho e a oferta de postos de trabalho por

parte do sistema produtivo101. Marx oferece abundantes exemplos, desde a antiguidade até a

produção industrial, destacando as diferenças entre as situações em que os trabalhadores não

têm perspectiva alguma de mudar de situação; e as situações em que surgem condições de

melhoria, dadas no contexto de organização da produção, pelo desenvolvimento de uma

capacidade de defesa dos interesses dos trabalhadores102.

Taxa e massa de mais-valia absoluta

A concepção da mais-valia absoluta parte de uma situação hipotética, em que o valor da força

de trabalho necessária para reposição do gasto social de trabalho se mantém invariante. É uma

simplificação, que tem que ser tratada como uma situação especial, no contexto de uma teoria

dinâmica como a de Marx. É uma simplificação, que não considera as qualificações contidas na

composição do capital. Mas, observa-se que, logicamente, Marx não podia trabalhar esse aspecto

nesse ponto, já que a questão da composição só aparece adiante, quanto trata da mais-valia

relativa.

Na verdade, é uma estimativa da apropriação de valor num período de produção, quando

a massa total de mais-valia pode ser representada por uma dada taxa de mais-valia. É um

raciocínio que se refere a uma dada força de trabalho e a uma dada tecnologia, portanto, que tem

101 Esse é um ponto de especial

interesse para a análise das

economias periféricas – ex colônias –

onde o sistema produtivo jamais foi

capaz de integrar todas as pessoas

que precisam trabalhar.

102 O tema reveste-se de óbvia

importância para a atualidade da

periferia avançada da economia

mundial. A jornada aparentemente se

dilui com a queda do assalariamento,

mas de fato, permanece, como

referência da determinação das

remunerações e como base de cálculo

de tempo, segundo tarefas

incomparáveis. Por exemplo, jornada

em atividades que exigem muita

concentração. Não é o mesmo em

atividades que se definem por tarefas

semelhantes – no que se passou a

chamar de ambiente fordista - ou por

tarefas criativas ou individualizadas.

Há um problema de jornada de

trabalho ligado à disputa em torno do

trabalho aos domingos e do

pagamento de horas extra, que são

duas estratégias do capital para

estender a jornada de trabalho.

Page 145: A economia politica critica de marx

145

que ser ajustado para refletir as alterações inerentes à incorporação de tecnologia e aos ajustes na

organização da produção.

A descrição do fenômeno é simples, o que é complexo é determinar os aspectos

estruturais que estão por trás dessa igualdade simples. A mais valia absoluta reflete uma

situação de uso de trabalho, antes que sobre ela intervenha qualquer decisão do capital sobre sua

capacidade de alterar a organização do trabalho.

A produção de mais-valia relativa

Para realizar essa tarefa, Marx desenvolve uma teoria do valor, que parte da distinção de

Aristóteles entre valor de uso e valor de troca, mas que avança sobre as condições sociais da

formação do valor de uso – no ambiente de cooperação doméstica e ligado à materialidade da

utilidade dos resultados da produção – mostrando como a organização do trabalho empregado na

produção de valor de uso constitui a base para a produção de valor de troca. O valor de uso

permanece na sociedade capitalista moderna, representando a utilidade que se atribui

diretamente ao tempo controlado pelo trabalhador. De nossa parte, observamos que o tempo que

o trabalhador extrai do mercado para seu próprio uso – tempo que despende melhorando sua

moradia ou produzindo alimentos para seu próprio consumo – é um manejo de valor de uso que

ele controla contrapondo-se ao capital.

103 Observaremos que essa regra tem

que ser qualificada, para refletir o

modo de funcionamento das

economias coloniais e das periféricas

pouco industrializadas. Ali, a

extração de mais valia se faz

praticamente sem reduzir o trabalho

socialmente necessário, simplesmente

mantendo os trabalhadores com

pagamentos mínimos, mediante o

controle das oportunidades de

contratação.

Page 146: A economia politica critica de marx

146

A questão essencial é que a redução do trabalho necessário permite aumentar o trabalho

excedente, portanto, ampliar a extração de mais-valia103. O capital tem o controle da composição

do capital, que lhe permite administrar as tecnologias e os trabalhos a serem empregados. O

controle da tecnologia permite reorganizar a produção, de modo a aumentar a produtividade,

inclusive controlando o tempo de trabalho, portanto, com a possibilidade de aumentar a massa

de mais valia. A extração de mais valia relativa é o modo do capital de abastecer sua expansão.

A mais valia relativa surge como parte do movimento geral de concentração do capital, que tem

lugar, simultaneamente, na esfera da fábrica e na da gestão dos capitais. Por isso, esse

movimento surge da divisão do trabalho e da concentração do capital industrial.

Há uma relação orgânica entre o modo como se produz valor de troca hoje e as condições

de desenvolvimento da economia nacional onde isso acontece, já que o valor de troca depende da

eficiência do sistema produtivo. Nas palavras de Marx, “o que determina a magnitude de valor de

um objeto não é mais que a quantidade de trabalho socialmente necessário, isto é, o tempo de trabalho

socialmente necessário para sua produção” (L.I, pp.7 &2) E continua “A magnitude de valor de uma

mercadoria permaneceria invariável se também permanecesse constante o tempo de trabalho necessário

para sua produção. Mas isso muda ao mudar a capacidade produtiva do trabalho” Mas há um inevitável

componente de acaso subjacente no valor de uso do produto das minas, onde se pode computar o

trabalho socialmente necessário para extrair minério e processar, mas onde não se pode garantir

de antemão quanto minério se encontra em cada mina. O valor de troca contém, insumido, o

valor de uso e vem a ser a forma final de valor percebida pela sociedade econômica. Assim, a

Page 147: A economia politica critica de marx

147

teoria do valor revela-se como teoria da mercadoria, que é tudo aquilo que é produzido para ser

trocado, independentemente de qual seja seu uso final.

Essa será a primeira instância da teoria do valor, em que se passa a ver a variedade das

formas de valor necessárias em cada situação do desenvolvimento das forças produtivas ou do

sistema produtivo em seu conjunto. É nessa pluralidade cambiante que se situam as diversas

formas de valor de uso e onde se estabelecem as condições de comparabilidade entre

mercadorias, portanto, onde surgem a forma relativa e a forma equivalencial de valor. A forma

relativa compara os componentes de valor de uma mercadoria frente às demais e a forma

equivalencial refere-se à comparabilidade das mercadorias em termos de seu componente de

valor. O desenvolvimento da produção faz com que a equivalência compreenda mais

complexidade, revelando o papel do dinheiro como e enquanto elemento que representa essa

comparabilidade. O dinheiro torna-se o veículo das trocas, por tanto, da comercialização da

produção104.

Há uma relação orgânica entre o modo como se produz valor de troca hoje e as

condições de desenvolvimento da economia nacional onde isso acontece, já que o valor de troca

depende da eficiência do sistema produtivo. Nas palavras de Marx, “o que determina a magnitude

de valor de um objeto não é mais que a quantidade de trabalho socialmente necessário, isto é, o tempo de

trabalho socialmente necessário para sua produção” (L.I, pp.7 &2) E continua “A magnitude de valor de

uma mercadoria permaneceria invariável se também permanecesse constante o tempo de trabalho

necessário para sua produção. Mas isso muda ao mudar a capacidade produtiva do trabalho” Mas há um

inevitável componente de acaso subjacente no valor de uso do produto das minas, onde se pode

104 Nas nossas reflexões sobre a

economia colonial e sobre os modos

como ela se converte em economia

periférica da produção capitalista

mundialmente integrada, teremos que

examinar as diferenças de

monetização das relações de produção

coloniais e de ver o papel desigual do

dinheiro nas diversas situações de

periferia da acumulação mundial.

Vemos que o controle da

conversibilidade – desde os tempos do

controle da oferta de prata – é o

mecanismo central da colonização,

que por esse meio cria uma diferença

fundamental entre as metrópoles e as

colônias, onde estabelece as condições

de reprodução do capital na esfera

das colônias.

Page 148: A economia politica critica de marx

148

computar o trabalho socialmente necessário para extrair minério e processar, mas onde não se

pode garantir de antemão quanto minério se encontra em cada mina. O valor de troca contém,

insumido, o valor de uso e vem a ser a forma final de valor percebida pela sociedade econômica.

Assim, a teoria do valor revela-se como teoria da mercadoria, que é tudo aquilo que é produzido

para ser trocado, independentemente de qual seja seu uso final.

Essa será a primeira instância da teoria do valor, em que se passa a ver a variedade das

formas de valor necessárias em cada situação do desenvolvimento das forças produtivas ou do

sistema produtivo em seu conjunto. É nessa pluralidade cambiante que se situam as diversas

formas de valor de uso e onde se estabelecem as condições de comparabilidade entre

mercadorias, portanto, onde surgem a forma relativa e a forma equivalencial de valor. A forma

relativa compara os componentes de valor de uma mercadoria frente às demais e a forma

equivalencial refere-se à comparabilidade das mercadorias em termos de seu componente de

valor. O desenvolvimento da produção faz com que a equivalência compreenda mais

complexidade, revelando o papel do dinheiro como e enquanto elemento que representa essa

comparabilidade. O dinheiro torna-se o veículo das trocas, por tanto, da comercialização da

produção.

Page 149: A economia politica critica de marx

149

Mais-valia absoluta e relativa

A realização desse percurso da formação de valor depende de que as mercadorias sejam levadas

ao mercado, isto é, que sejam expostas ao jogo de trocas. A compreensão de mais valia aparece

em sua forma plena na forma conjunta de mais valia absoluta e relativa. Para explicá-la, Marx

examina a transformação da produção industrial, desde a etapa das manufaturas até a da

produção fabril. Para fins de ordenamento temático desta exposição, para reunir num mesmo

espaço as observações sobre a produção industrial, apresenta-se a seguir um breve comentário

sobre a mais valia absoluta e relativa.

A visão conjunta da mais valia significa a leitura histórica da estrutura da captação de

mais valia, que desse modo é situada nos processos históricos específicos de produção. A

extração de mais valia acontece numa variedade de situações, que são parte de processos com

diversas velocidades de renovação tecnológica e organizacional. Na realidade, só existe essa

mais valia conjunta, que envolve a variedade de situações historicamente próprias de cada

sociedade em cada momento. O essencial é que a mais valia absoluta e relativa mostra o controle

universalizado do trabalho por parte do capital, que passa a considerar-se possuidor da força de

trabalho e senhor das oportunidades de trabalho dos trabalhadores e não só do tempo de trabalho

comprado. A compra de tempo dá um poder indireto aos capitalistas, que aparece em sua

capacidade de gerar produção monopolista.

Page 150: A economia politica critica de marx

150

A questão especial da acumulação primitiva

Nesta seção apresenta-se uma digressão que foge da estrutura geral deste estudo, em que

representa uma reflexão destinada a contrastar mais diretamente um tema da estrutura de O

Capital com um mecanismo fundamental da acumulação na periferia do capitalismo. É preciso

distinguir a acumulação primitiva na origem do sistema capitalista de produção de acumulação

primitiva nos segmentos primitivos da produção. Para nós, a acumulação primitiva se realiza

porque a produção capitalista usa a produção extrativa ou de mais baixa tecnologia como um

recurso complementar para controlar custos. Por exemplo, a extração de bambu nativo não

plantado como ingrediente da matéria prima para produção de papel.

A participação de formas primitivas de captação de valor é um componente essencial da

formação econômica dos países periféricos até a atualidade. É um aspecto que terá que ser mais

desenvolvido, para tratar da problemática da periferia do capitalismo, justamente, marcada pela

colonização.

O que se entende como acumulação primitiva na obra de Marx, isto é, anterior ao

processo capitalista de formação de capital, reveste-se de importância decisiva para o estudo da

periferia da acumulação capitalista, especialmente, para tratar da experiência das economias

periféricas diversificadas, tal como a brasileira. Marx trata de acumulação primitiva (L. I.,

cap.XXIV) como daquela obtida mediante a desorganização violenta de formas de produção

existentes. Pressupõe movimentos anteriores regressivos da própria sociedade, tal como

Page 151: A economia politica critica de marx

151

aconteceu na própria Inglaterra que ele estudou. Para nós, há qualificações substanciais relativas

à colonização. Aplica-se ao momento inicial da conquista do México e do Peru. Mas não trata

do papel do controle da extração vegetal, animal e mineral, que foi a base do sistema colonial e

continuou como um componente essencial do subsolo da periferia da acumulação e que é

aproveitada pelos capitais dessa periferia e pelos que a ela continuam a afluir, com a mesma

perspectiva colonial. O pressuposto essencial da acumulação primitiva, tal como se vê na

perspectiva da América, é a capacidade de impor e controlar trabalho compulsório, que é algo

que pode ser feito e que é feito dentro da esfera da produção capitalista.

A divisão do trabalho: artesanato,

manufatura, produção fabril.

A questão da divisão do trabalho é fundamental na organização da produção capitalista,

tornando-se necessário revisa-la, desde sua formulação consagrada por Adam Smith. Marx

modificou radicalmente o tratamento desse tema, vinculando-o às condições operacionais da

produção e revelando a combinação de aspectos quantitativos e qualitativos envolvidos na

divisão do trabalho, com suas conseqüências no aperfeiçoamento do produto e do produtor, mas

com suas conseqüências na degradação do trabalhador. É a modalidade de cooperação posta de

Page 152: A economia politica critica de marx

152

pé pela produção industrial. Não é um princípio genérico, limitado genericamente pela

demanda, senão está historicamente ligado às formas concretas de produção, desde o pequeno ao

grande artesanato, da pequena à grande manufatura e à produção fabril. No essencial, para

Marx, a divisão do trabalho é m mecanismo de controle dos trabalhadores por parte dos

capitalistas.

Por extensão, a divisão do trabalho se diferencia entre cidade e campo. Não é uma

separação espontânea, senão uma distinção conduzida na manufatura, que criou uma visão de

espaço econômico nacional. Para Marx, as cidades conduzem os processos de transformação do

sistema capitalista de produção, constituindo-se nos lugares por excelência onde avança a

divisão do trabalho. Por exemplo, a referência a tais ou quais tipos de seda, de relógio, de queijos

etc. Marx distingue duas formas fundamentais da manufatura, que são a heterogênea e a

orgânica, significando diversidade e interdependência dos elementos envolvidos na divisão do

trabalho, com o papel do operário coletivo, que representa essa interdependência. A projeção das

conseqüências dessas manufaturas resulta em divisão do trabalho dentro da manufatura e na

sociedade em seu conjunto.

Em síntese, trata-se da divisão do trabalho alcançada pelo sistema de produção,

compreendendo sua pluralidade atual e de formas e suas possibilidades específicas de

aprofundamento. Quanto pode avançar a divisão do trabalho na produção de alimentos e quanto

na de equipamento eletrônico?

A divisão do trabalho é um processo de escala internacional, tanto como o sistema de

produção está internacionalizado; e pode avançar, segundo o modo de internacionalização rebate

Page 153: A economia politica critica de marx

153

em cada uma das atividades envolvidas. Nesse sentido, a divisão internacional do trabalho

torna-se o modo de controle internacional da economia, que passa a ter um caráter regional e a

decidir sobre as questões locais da produção.

Historicamente, a produção evoluiu, desde o artesanato em pequena escala, a

concentrações de produção artesanal. O aparecimento das manufaturas mudou decisivamente as

condições de divisão do trabalho. Enquanto no artesanato predomina, de modo quase exclusivo,

a habilidade individual, a manufatura se faz mediante uma organização da produção baseada em

divisão do trabalho, com a substituição de ferramentas individuais dos artesãos por um conjunto

de equipamentos utilizados pelo conjunto. Marx dedica uma atenção especial a analisar as

peculiaridades das manufaturas, vendo-as como as bases técnicas e organizacionais da indústria

propriamente dita.

Na indústria, a produção passa a ser organizada em torno de um uso sistemático de um

conjunto integrado de maquinaria, que passa a determinar o modo de participação dos

trabalhadores. A concepção desse conjunto de maquinaria é uma projeção de uma compreensão

do processo produtivo, que se torna um diferencial de conhecimento dos capitalistas.

Para alimentar a visão retrospectiva da formação da indústria, é preciso esclarecer que se

entende por artesanato, por manufatura e por indústria na obra de Marx, e qual o papel especial

que ele atribui à manufatura.

O artesanato. Para apresentar uma visão de conjunto atualizada do encadeamento das

formas de organização, especialmente, de modo a contemplar o leque de pluralidade das

sociedades periféricas, parece necessário considerar o artesanato como a forma desenvolvida do

Page 154: A economia politica critica de marx

154

trabalho individual, que aparece como produção pulverizada; e indiretamente articulada pelo

mecanismo de comercialização. Em função do artesanato, coloca-se a distinção feita por Marx,

entre os trabalhadores que possuem seus próprios instrumentos de trabalho e os que não os têm.

Mas, obviamente, é preciso situar historicamente a esfera de atividades genericamente

denominada de artesanato, bem como reconhecer suas funções em relação com a reprodução do

capital e com as condições de consumo105.

A manufatura. Marx atribui um papel essencial à manufatura, como atividade

capitalista representativa da produção fabril, que aprofunda a especialização dos trabalhadores

individuais, mediante avanços na organização da produção e na comercialização. Distingue as

condições históricas da formação da manufatura – sobre a experiência da Europa ocidental – e os

aspectos organizacionais, apontando às manufaturas que se situam em linha com o

desenvolvimento da produção fabril. Como diz o próprio Marx, não há limites nítidos entre a

esfera da produção manufatureira e a fabril.

Historicamente, Marx vê as manufaturas de dois modos: como resultado de iniciativas

de capitalistas que reúnem especialidades diferentes e complementares e como iniciativas que

concentram competências similares e ganham em escala. Sobre esses dois tipos de experiência,

destaca os aspectos de heterogeneidade e de organicidade, que, finalmente, resultam em divisão

do trabalho dentro da manufatura e dentro da sociedade em seu conjunto106.

105 Neste ponto, introduziremos duas

qualificações na discussão do

artesanato. Primeiro, distinguir o

artesanato utilitário do simbólico, ou

seja, o que interage no consumo

cotidiano e o que atende demandas

religiosas e dos mitos integrados

culturalmente na sociedade. Segundo,

distinguir níveis de qualidade dos

produtos do artesanato, entre os

requisitos de exigência dos diversos

grupos em cada sociedade, desde o

artesanato para elaboração de objetos

altamente especializados e para

objetos de uso comum. Esses dois

critérios sustentam uma classificação

básica do artesanato, que é

igualmente válida para analisar

sociedades industriais e pré-

industriais.

106 No estudo da experiência

brasileira, a análise da manufatura é

fundamental, devendo-se vê-la não só

como antecessora da produção fabril,

senão como sua subordinada e como

uma situação que não

necessariamente leva à produção

Page 155: A economia politica critica de marx

155

Maquinaria e grande indústria

A capacidade de cada capitalista individual de extrair mais valia relativa depende de sua

capacidade de aprofundar seu capital constante – ou aumentar a densidade de capital por homem

ocupado - mediante maquinaria. Essa capacidade é desigual entre capitalistas e varia ao longo do

tempo e segundo a composição de aplicações dos capitais.

A constituição de conjuntos de maquinaria resulta em condições diferenciadas de

controle da jornada de trabalho, assim como de controle da contratação de trabalhadores. Mas a

constituição de conjuntos de maquinaria reverte a relação dos trabalhadores com a máquina “Na

manufatura e na indústria manual, o operário se seve da máquina, na fábrica ele serve à máquina” (L.I.,

pp. 549). A maquinização desloca operários de suas posições de trabalho, com a conseqüência

imediata de deprimir suas condições familiares, afetando as remunerações e pressionando a

participação das mulheres com salários mais baixos.

Esse movimento geral de deslocamento deu lugar à discussão sobre supostas

compensações - muito atuais107 - que alguns empregos sejam compensados por outros. Não é,

portanto, que a mesma intensificação do capital leve a outras opções de investimento, senão que

a expansão da grande indústria se detém diante de limitações de mercado. Diante da referência

de mercado, a grande indústria passa a condicionar a pequena indústria, a manufatura e o

trabalho autônomo. Isso destrói a forma anterior de cooperação – ou de organização – entre as

indústrias e substitui por outra, comandada pela grande indústria. Com a ligação entre a

fabril. Há renovação e substituição

na esfera da produção

manufatureira, que atualizada, como

um departamento dependente do

capital industrial. Na reprodução das

economias periféricas avançadas, tal

como a brasileira e a mexicana, há

um importante componente de

manufaturas, inclusive com níveis

muito diferenciados de densidade de

capital, de tecnologia e de

qualificação dos recursos humanos.

Longe de uma situação seqüencial, de

que as manufaturas são,

necessariamente, substituídas pela

produção fabril, elas se vêm como um

componente especial do sistema de

produção, que opera com uma baixa

proporção de equipamentos mas com

um elevado componente de trabalho

qualificado.

107 Essa discussão voltou, nos dias de

hoje, com a suposta substituição de

empregos industriais por empregos

em serviços, que simplesmente os

empregos em serviços correspondem

ao aumento do capital constante na

indústria e na agricultura.

Page 156: A economia politica critica de marx

156

operação do grande e do pequeno capital, hoje, é preciso raciocinar em termos de que a

intensidade de trabalho na produção realizada pelo grande capital pré condiciona a intensidade e a

regularidade do trabalho realizado pelo pequeno capital.

Cooperação

O capítulo sobre cooperação é um grande parágrafo, logicamente subordinado na estruturação

da argumentação do Livro I, que trata dos modos de organização historicamente formados,

antes que das formas organizacionais. Mas trata dos modos organizacionais como de algo

estritamente objetivo, que deve ser explicado como um recurso social, que é mobilizado para a

produção capitalista.

Concretamente, a cooperação é o mecanismo do trabalho coletivo. Viabiliza atividades

que de outro modo não poderiam ser realizadas e amplia as possibilidades de trabalho em

atividades que são executadas. Mesmo quando se trata de trabalhos similares, a organização do

esforço resulta em aumento da capacidade efetiva de trabalho. Há tarefas muito simples, que só

são possíveis mediante cooperação. Os exemplos mais óbvios são os de colheitas e de pesca, que

demandam muito trabalho simples simultâneo, mas isso se estende até às formas pré históricas

de caça. Por isso, se bem que o trabalho combinado é essencial à produção capitalista, não pode

ser reduzido aos seus usos no ambiente do capitalismo.

Page 157: A economia politica critica de marx

157

No entanto, a produção capitalista impõe certos tipos de cooperação que determinam

subordinação e desqualificação dos trabalhadores. No essencial, os capitalistas podem cooperar

como querem, mas os trabalhadores só podem cooperar segundo estão inscritos na produção nos

mesmos e determinados capitais. É onde vai entrar nossa análise do colonialismo e da criação de

meios de diferenciação entre a esfera da produção central do grande capital e a de seus

desdobramentos periféricos.

Modos de composição do capital

Um dos principais pontos em que os economistas formados na tradição marginalista revelam

dificuldade de entender Marx, é a noção de composição, especialmente, do modo como ela foi

desenvolvida, para explicar a formação do capital. Quase sempre procuram assimilar a

composição do capital ao perfil da demanda, assim como tentam usa-la como categoria de

análise instantânea. Com isso, perdem de vista o essencial, que é o sentido genético da

composição108. Há uma diferença fundamental entre a noção de composição enquanto

magnitude dinâmica e de estruturação. Na prática, a diferença entre o estilo de análise de Marx

e o de Leontief com seu quadro de inter-relações inter-industriais. Tal como notou Lucien

Goldmann, a visão Walras – Leontief das inter-relações inter-industriais é uma redução

conceitual da visão dinâmica de Quesnay.

108 O conceito de composição do

capital é um dos pontos onde se

registra nitidamente a origem

hegeliana do pensamento de Marx:

“A coisa não se reduz ao seu fim,

senão se encontra em seu

desenvolvimento, nem o resultado é o

todo real, senão que o é em união com

seu tornar-se” G.W.F.Hegel,

Fenomenologia do Espírito, pp.8).

Page 158: A economia politica critica de marx

158

O conceito de composição do capital foi introduzido por Marx, como referência do

significado orgânico do capital, essencialmente, para representar a combinação de aspectos

sociais e técnicos do capital, com sua valorização dependendo dessa mesma combinação.

Representa um processo – dinâmico – e não pode, por isso,ser confundido com os conceitos de

estrutura e de agregação de fenômenos tal como se faz na macroeconomia de inspiração

keynesiana.

Como um exemplo nosso, o valor social das ferrovias depende do modo como elas estão

incluídas no sistema produtivo, assim como depende de que o trabalho neles realizado seja

compatível com o conjunto de componentes técnicos que se tem acumulado ao longo do

processo109. O conceito de composição ganha mais complexidade com a progressão do sistema

capitalista de produção, quando os componentes materiais do capital correspondem a diferentes

condições de acumulação no trabalho.

A noção de composição do capital é parte essencial da explicação da mais valia relativa,

que é extraída mediante o controle dos movimentos de renovação de técnica e de trabalho, que

também tem sido equivocadamente entendido como baseado no controle de tecnologia. A mais

valia relativa é obtida por conta do controle da composição do capital. Assim, uma visão de

conjunto da questão da composição é fundamental, para fechar a linha de argumentação que

explica a produção de capital. A composição do capital pode ser esquematizada tal como a

seguir.

109 Daí emerge uma noção de capital,

que é muito mais complexa e

profunda que a chamada

heterogeneidade do capital

trabalhada por Piero Sraffa e Joan

Robinson, por não dizer que impugna

a noção de capital homogêneo

utilizada pelos economistas

neoclássicos em geral.

Page 159: A economia politica critica de marx

159

DIAGRAMA 3

A composição do capital

Capital constante

Capital variável

Força de trabalho

Meios de produção

(relativa a valor)composição de valor

(relativa a matéria)composição técnica

Composição orgânicado capital

A composição de valor + composição técnica = composição orgânica.

A introdução da noção de composição do capital abre espaço para a análise de dois

aspectos fundamentais de uma economia política dinâmica110, que são os de (a) reconhecer a

relação entre as tendências dos usos de recursos materiais e de trabalho; e (b) reconhecer que o

comportamento cíclico da economia mundial tem diferentes rebatimentos locais, segundo a

composição do capital em cada país e em cada região.

110 Cabe referir aqui a compreensão

de Economia Política expressada por

Engels: “A economia política é, em

seu sentido mais amplo, a ciência das

leis que regem a produção e o

intercâmbio dos meios materiais de

vida na sociedade humana. Produção

e intercâmbio são duas funções

distintas. A produção pode ter lugar

sem intercâmbio, mas o intercâmbio –

precisamente por ser intercâmbio de

produtos – não pode acontecer sem

produção(...)Ambas (essas funções)

se condicionam reciprocamente em

cada momento (...).F. Engels, Anti

Dühring, pp. 139.

Page 160: A economia politica critica de marx

160

A condição dos trabalhadores: renda salarial,

intensidade da ocupação e

vida útil no mercado de trabalho

A seção VI do Livro I de O Capital - caps. XVII, XVIII e XIX – está dedicada à análise do

salário ou de forma mais ampla, aos rendimentos dos trabalhadores.. Mas a visão do tratamento

desse tema envolve diversos outros elementos, que cobrem a extensão do assalariamento na

formação e transformação da produção capitalista e como meio de participação da estruturação

de classes e de sua transformação. São três níveis de questionamento: quanto e quantos o

capital assalaria e quanto paga pelo trabalho que compra e qual o papel do salário na mobilidade

dos trabalhadores?

O ponto de partida, certamente, é estabelecer a quantas pessoas o capital assalaria. O

interesse do capital está em contar com um grande número de pretendentes a trabalhador, que é

um número de pessoas que são deslocadas de outras atividades, ou que em todo caso estão

disponíveis para serem contratadas. Esse interesse é o que está tratado no capítulo sobre

acumulação primitiva. Esse é o modo de manter a pré-condição de uma disponibilidade de

trabalho barato111. A questão social do trabalho começa a aparecer através da contradição entre a

necessidade do capital em geral, de contar com um mercado de trabalho organizado e os

111 Não gostaríamos de confundir

essa pré-condição histórica com a

forma estática - ou indeterminada –

de colocar o problema como de uma

oferta ilimitada de mão de obra, tal

como na versão de W. A Lewis.

Page 161: A economia politica critica de marx

161

objetivos dos capitais específicos, de lucrarem com a mais valia relativa, para o que precisam de

um ambiente contumaz de desemprego.

No relativo aos salários no processo social de produção do capital, Marx ressalta os

seguintes aspectos.

O que gera valor é o trabalho objetivo que se realiza, mas o capitalista compra

força de trabalho e fica com a iniciativa de direcionar a força de trabalho como melhor lhe

convém.

O trabalhador tem que comparecer a esse mercado desigual e irregular, porque

não tem como vender seu trabalho de modo independente do capital.

O capitalista encontra-se no mercado de trabalho com trabalhadores e não com o

trabalho, pelo que usa suas vantagens de controle de mercado sobre o potencial de trabalho.

O trabalho que se materializa torna-se propriedade do capitalista.

Nesse mercado de trabalho, o valor e os preços da força de trabalho se

transfiguram em salário. Nesse contexto, “o regime do dinheiro esconde o tempo que o operário

assalariado trabalha grátis” (L.I , pp. 452).

Page 162: A economia politica critica de marx

162

A reprodução simples

Há um problema especialmente complicado no relativo à chamada reprodução simples, que, de

fato, descreve as condições imediatas de reprodução do sistema. Ao mostrar que o

funcionamento do sistema transforma todo capital, mais tarde ou mais cedo, em capital acumulado ou

em mais valia capitalizada, (L.I, pp. 479), Marx aponta ao sentido implícito do capital, que opera

com a lógica da acumulação. Mesmo se observado em suas determinações imediatas, o capital

tende a acumular. De fato, ou há acumulação ou há desvalorização.

A transformação da mais-valia em capital

Nesta parte revela-se plenamente a compreensão de que o movimento do capital é uma espiral

que se estende segundo as condições ambiente que permitem a reinserção da mais valia no

processo de reprodução do capital. A transformação da mais valia em capital se realiza segundo

a capacidade dos capitalistas de operarem plenamente com seu capital no mercado de produtos,

que lhes permite operarem com controle do mercado local de trabalho. Trata-se, portanto, de

Page 163: A economia politica critica de marx

163

condições operativas dos capitais específicos, que chegam a condições também específicas de

mercado.

O movimento geral da acumulação do capital

Os elementos apresentados por Marx até esse ponto constituem o conjunto da análise dos

fundamentos que permitem iniciar a discussão do movimento de acumulação de capital. Esse

movimento é exposto de modo progressivo, primeiro na esfera da produção propriamente dita e

depois – tal como exposto no Livro III – no relativo à produção capitalista em seu conjunto. Na

primeira aproximação examina os mecanismos internos da acumulação, que giram em torno da

produção e captação de mais valia, resultando na primeira abordagem da reprodução do sistema,

que é a de uma reprodução com alterações não significativas do valor acumulado112 e dos

conjuntos de tecnologias utilizadas113.

Esta primeira abordagem da acumulação desdobra-se em quatro pontos interdependentes,

que são: a conversão da mais valia em capital, a composição do capital, a acumulação primitiva e

a acumulação na esfera do sistema de produção. Veremos adiante que o movimento geral de

acumulação não se contém nesses termos e que só se completa quando engloba a esfera política

como mecanismo complementar da esfera econômica.

112 A argumentação apresentada no

capítulo XXI sobre a reprodução

simples do sistema produtivo supõe

condições invariantes, que só são

explicáveis em períodos com duração

irrelevante, que é um modo de dizer,

em estática. Mas o encaminhamento

da análise não permite supor tempo

nulo. Assim, a abordagem correta é

de raciocinar em termos de tempo

limite e jamais de estática.

113 A situação combinada de valor e

tecnologia é tratada por Marx

adiante, no capítulo XXIII, no

relativo à composição do capital – ver

diagrama 3 – ao iniciar a exposição

das condições da acumulação.

Page 164: A economia politica critica de marx

164

A conversão da mais-valia em capital é o mecanismo mesmo da acumulação, que se

processa sobre a progressão de alterações da composição do capital. “A conversão da mais valia

como capital ou a reversão a capital da mais valia chama-se acumulação de capital,” L.IIIpp.488,

“Analisada de um modo concreto, a acumulação se reduz à reprodução do capital em escala progressiva”

L.III, pp. 490. Uma observação inevitável neste caso é que a acumulação ganha novos contornos

e novo significado à medida que avança o próprio processo do capital.

Mas a recondução da mais valia ao processo de produção depende da possibilidade prática

de eles serem efetivamente utilizados, como meios de produção e como meios de vida, isto é, de

sua utilidade futura, ou seja, que a acumulação é um mecanismo progressivo, que se realiza

numa trajetória não garantida: “ a mais-valia só é susceptível de transformar-se em capital, porque o

produto excedente, cujo valor a representa, já encerra os elementos materiais de um novo capital (L.I,

pp.489) , “reproduzindo-se em forma de capital”( LI, 490). Isso significa que esse excedente se

materializa como meios de produção e como meios de vida, portanto, reproduzindo o capital e

reproduzindo o trabalho. É o trabalho adicional deste ano que cria o capital necessário para

captar o trabalho que realizará a produção do ano seguinte. A preparação de terras este ano

enseja a contratação de trabalho para o plantio do ano vindouro. A relação do capital com o

trabalho revela-se dinâmica, conduzida pelas quantidades e pela composição do trabalho que os

capitalistas contratam para dar continuidade à acumulação e não só por conta da produção

imediata. A noção de progressividade do sistema explica-se mediante as alterações da

composição do capital.

Page 165: A economia politica critica de marx

165

Ao passar da escala individual para a da generalidade dos capitalistas, a mais valia deixa

de ver-se como “fundo individual de consumo dos capitalistas”, para ver-se como “fundo de

acumulação”. Este último é o meio pelo qual se processa a acumulação, levando a um aumento

do capital constante maior que o do variável. Essa continuidade orgânica entre o que transcorre

na esfera dos capitais individuais e o que transcorre com o capital em seu conjunto em cada

estágio do desenvolvimento torna improcedentes as observações de muitos autores que

classificam Marx como macroeconomia. Diremos que a análise de Marx do capital justamente é

infensa a essa separação entre macro e micro e que se realiza simultaneamente nesses dois

níveis.

Em torno da relação móvel entre capital constante e capital variável surge uma

conceituação renovada de produtividade. Comenta Marx, que “o grau social de produtividade do

trabalho reflete-se no volume relativo de meios de produção que o operário converte em produto durante

certo tempo e com a mesma tensão da força de trabalho. A massa de meios de produção com que um

operário opera cresce ao crescer a produt9ividade do trabalho” (L I, pp. 525). Nesse movimento os

capitalistas valem-se de sua capacidade de decidir sobre a gestão de sua capacidade de acumular,

valendo-se das diversas formas de acumulação primitiva ao seu alcance e das formas de

colonização.

Ao enfrentar o movimento de acumulação em seu sentido mais amplo, Marx abre,

também, completamente, a questão relativa à interação entre os aspectos quantitativos e

qualitativos. A acumulação se faz mediante alterações da ocupação, que envolvem uma

diminuição relativa do trabalho variável frente ao aumento da produção. A progressão da

Page 166: A economia politica critica de marx

166

acumulação capitalista determina um excesso de população operária, porque a reprodução do

capital se faz a partir de sua base técnica atual, mas não sobre uma base técnica invariante.

Como a demanda (atual) de trabalho não depende do capital total (passado), senão do capital

variável (passado), essa demanda de trabalho diminui progressivamente, à medida que aumenta

o capital total. Tal mecanismo é adicionalmente ampliado pelo movimento de centralização do

capital.

Esse é o mecanismo que dá lugar ao aparecimento do exército de reserva. Ressalta que,

segundo a argumentação desenvolvida nessa seção, não há como absorver o contingente de

trabalhadores constituindo o exército industrial de reserva, ficando em aberto apenas casos

específicos. Segundo Marx, o exército de reserva é um contingente móvel, que se renova em

função de mecanismos internos e externos do sistema de produção,sendo que os mecanismos

externos são aqueles conduzidos através da violência do poder, que aparece denominada de

acumulação originária, ou primitiva114.

Finalmente, o mesmo movimento que alimenta o exército de reserva, leva ao

aparecimento do que Marx chama de “hostes transumantes”, que são os grandes fluxos

migratórios diretamente causados por pressões crônicas de repulsão, que atingem grupos sociais

inteiros, não só pelo perfil imediato de trabalhadores, mas incluindo aspectos étnicos e culturais.

Nas sociedades americanas, está claro que as fraturas criadas pelo sistema colonial escravista e

servil são mais amplas e profundas que as imediatamente denotadas pelo sistema de

assalariamento.

114 A acumulação primitiva tem um

papel especial na experiência das

sociedades americanas em geral, nas

duas situações de terem sido colônias

e na de exercerem comportamentos

predatórios nas versões mais recentes

da modernização. Ressaltamos a

necessidade de retomar o argumento

relativo ao extrativismo,

especialmente, porque na experiência

dos países americanos o extrativismo

é parte integrante da acumulação

primitiva, que passa a ser

reorganizado e continua fazendo

parte da versão periférica da

produção capitalista. O extrativismo

continua na base da pirâmide do

sistema de produção, funcionando

como meio de obter valor de trabalho

que é realizado numa obscura de

relações incertas entre o

assalariamento e formas mais

primitivas de remuneração, muitas

vezes envolvendo trabalho familiar.

Page 167: A economia politica critica de marx

167

O papel especial do capítulo VI (inédito) do Livro I

Esse texto teria sido planejado como síntese – ou culminação – temática do Livro I. Por isso se

desenvolve como uma espécie de resposta à formação de conceitos naquele tomo. Mas, a nosso

ver, representa o descolamento da análise das formas aparentes da produção capitalista e a

análise dos processos que situam essa produção em seu contexto sócio-histórico. É preciso

registrar que há um movimento de depuração e de aprofundamento dos usos dos conceitos ao

longo do desenvolvimento do Livro I, que não se resume ao fato, alegado pelo próprio Marx na

Miséria da filosofia, de que as condições do método dialético levam a uma inversão no uso de

categorias. Conceitos tais como os de subsunção e de acumulação retornam com maior riqueza

de significado.

Marx começa o capítulo VI com a revelação “simples” de que o verdadeiro objetivo do

capital é gerar mais valia. Nesse texto, Marx retoma e desenvolve a tese fundamental

(apresentada no Capítulo V sobre mais valia absoluta e relativa), de que a produção capitalista

evolui de ser uma produção de mercadorias para tornar-se uma produção de mais valia. O

capital procura aumentar a proporção de trabalho excedente sobre o trabalho socialmente

necessário realizado pelos trabalhadores. O sistema reproduz as relações que produzem mais

valia, isto é, o sistema se reproduz no que tem de essencial, através de suas modificações

formais. Nesse movimento, a mais valia é subsumida no novo capital que se forma, dando lugar

ao desenvolvimento das forças produtivas. A expansão do sistema socioprodutivo prossegue

Page 168: A economia politica critica de marx

168

através da absorção de novas tecnologias e de novas formas de consumo. O capital alcança sua

verdadeira identidade ao revelar-se como processo de valorização que envolve a produção de

valor em seu conjunto.

Ao mesmo tempo, nessa exposição Marx revela os movimentos progressivamente mais

complexos entre as transformações do capital em seu conjunto e as do valor de uso nele

incorporado. O trabalho vivo, atual, é condicionado, subjugado pelo capital que ele mesmo

formou, mas retém seu potencial criativo. “Uma parte do valor de uso com que o capital se apresenta

no interior do processo de produção é a própria capacidade viva de trabalho, mas uma capacidade de

trabalho de especificidade determinada, correspondente ao particular valor de uso dos meios de produção, e

é uma capacidade de trabalho impulsora, uma força de trabalho que, ao manifestar-se, se orienta para um

fim, que converte os meios de produção em momentos objetivos de sua atividade, fazendo-os passar, por

conseguinte da forma original do seu valor de uso para a nova forma do produto” (Marx, Capítulo VI

inédito de O Capital, pp.45).

Page 169: A economia politica critica de marx

169

A CIRCULAÇÃO: ESPAÇO–TEMPO E SITUAÇÃO

HISTÓRICA DO CAPITAL

“O problema, tal como se coloca diretamente, é este: como se repõe a base do produto anual o valor do

capital absorvido pela produção e como se entrelaça o movimento desta reposição com o consumo da mais

valia pelos capitalistas e o do salário pelos operários? Trata-se, portanto, em primeiro lugar, da reprodução

simples”. L.II. pp.351

Preliminares

Do ponto de vista do amadurecimento da obra, o Livro II é o arremate. Não só por ter sido

escrito por último e absorver o maior desenvolvimento conceitual, como por ser onde se

substitui uma teoria da acumulação individual por uma teoria da acumulação social. Além disso,

é onde Marx sintetiza e absorve o arsenal conceitual daqueles dos seus predecessores que

reconhece como mais importantes. O fato de ser a parte onde há textos menos desenvolvidos,

ou onde foi maior a intervenção de Engels não desmente a importância desse documento no

conjunto de O capital, fora do qual não pode ser adequadamente apreciado. Por isso, talvez seja a

parte menos compreendida daquela obra. Esse viés fica patente, por exemplo, na análise de Rosa

Luxemburgo que focaliza no Livro II, ressalta o caráter capitalista da reprodução e explora seus

Page 170: A economia politica critica de marx

170

desdobramentos e contradições, mas tende a separar suas teses da construção do conjunto. Na

composição de O capital a reprodução é o movimento de reincorporação produtiva de mais valia,

representando o poder de extrair e de reincorporar a mais valia. O movimento básico da

reprodução surge da relação orgânica entre o capital desembolsado e o capital aplicado,

resumindo as condições de aplicação de capital novo e as condições de uso do capital em sua

forma financeira. Por trás da mecânica do movimento da reprodução encontra-se toda a

problemática da composição do sistema produtivo. O significado da acumulação enquanto força

de controle social surge da identificação das inter-relações necessárias entre a reprodução

simples e a reprodução ampliada do capital.

Tal como acontece com o Livro I, o Livro II de O Capital divide-se em duas partes, em

que a primeira cobre os mecanismos de circulação integrados na produção e chega até a

explicação dos mecanismos que ligam a acumulação individual ao movimento geral de

acumulação, enquanto na segunda parte apresenta a explicação da reprodução simples e a

acumulação e reprodução em escala ampliada. Por isso, é nessa segunda parte que se encontra o

essencial da teoria da acumulação.

Os mecanismos da circulação de capital constituem uma referência geral dos modos

como a sociedade usa dinheiro e de como o modo de usar dinheiro torna-se um mecanismo de

diferenciação entre aqueles que podem controlar os tempos das suas aplicações de capital e

aqueles outros que dependem dos tempos que lhes são impostos pelo sistema de produção em

seu conjunto. O controle dos tempos é essencial na condução dos conteúdos técnicos do capital

em seu conjunto. A explicação principal da reprodução do capital encontra-se na reprodução

Page 171: A economia politica critica de marx

171

simples, onde se apresenta a engrenagem dos relacionamentos entre os segmentos industriais do

sistema produtivo.

A maioria dos estudos da obra de Marx concentra-se no material do Livro I e desvia do

material do Livro II, ou não chega até ele. Entretanto ali se encontra a ligação entre a produção

social de capital e as transformações do mercado. É a combinação da esfera da produção com a

da comercialização, onde se encontra a comercialização da produção capitalista. Nas palavras de

Marx, o processo cíclico do capital (neste caso, o modo como ele retorna ao processo produtivo),

desenvolve-se em três fases. Primeiro, o capitalista aparece no mercado de mercadorias e no

mercado de trabalho como comprador D=> M, transformando dinheiro em mercadorias e em

contratos de trabalho. Segundo, é o uso produtivo das mercadorias compradas, que é a realização

da produção. Na terceira fase, o capitalista volta como vendedor M => D. A fórmula geral

desses três movimentos é a seguinte

D – M... P ... M’ – D”

As linhas pontilhadas representam as interrupções do processo.

Ali está a mecânica do capital como tal e enquanto capital incorporado ao sistema de

produção. É uma análise necessária para entender o que vem depois, isto é, para entender, não

somente como, mas porque acontecem necessariamente aquelas conversões entre formas de

capital que sustentam o movimento geral de sua acumulação. O sentido de progressão inerente a

Page 172: A economia politica critica de marx

172

esse processo combina o relativo a alterações de composição do capital com o relativo a

alterações nas condições de mercado.

Grande parte dos pressupostos da produção de capital, relativos à possibilidade de venda

da produção, ou a sua “comerciabilidade”, surge nesta segunda parte, em que se observa o

relativo à realização da comercialização da produção, que surge ao considerar-se a circulação de

capital em seu sentido mais amplo. A manobra sutil dos capitalistas consiste em produzir aquilo

que será comprado, mesmo quando essa demanda ainda não existe, ou quando essa mercadoria

ainda não existe. Na construção de sua análise, Marx aceita o pressuposto de que há condições

técnicas e operacionais para que o valor gerado seja absorvido como capital, isto é, que não haja

frustração da formação de capital. Esse pressuposto – assumido explicitamente por ele –

constitui uma simplificação que retira desta parte da análise os elementos de incerteza da

reprodução, que logicamente não podem ser ignorados, principalmente pelo fato de que a

continuidade do sistema pressupõe aumento de escala de produção e de complexidade.

No entanto, há uma questão relativa à garantia ou à incerteza da venda dos produtos, que

não pode ser esquivada, sob pena de introduzir-se uma distorção fatal na compreensão do

capitalismo. Essencialmente, trata-se de que só se produz àquilo que pode ser vendido, pelo que

há um mecanismo em cadeia entre o que é comercializável e tudo aquilo que se trata de tornar

comercializável, influindo nas condições em que os compradores compram. O que se tornará

comercializável é objeto de publicidade e de manobras de intervenção institucional no mercado,

desde a busca de contratos de governo até manobras para condicionar os consumidores. Nada

mais longe da suposta soberania do consumidor a que se apegam os neoclássicos!

Page 173: A economia politica critica de marx

173

Neste capítulo deste ensaio apresentam-se comentários ao Livro II de O Capital,

ressaltando dois problemas fundamentais ali enfrentados, que são os de romper com o espaço –

tempo da sociedade pré–industrial, para trabalhar com a pluralidade de tempos do ambiente

industrial; e de retomar a articulação da esfera individual com a do coletivo, através do

movimento financeiro do capital. Mais claramente que antes, configuram-se, a distinção entre a

esfera do individual e do coletivo e sua combinação no contexto da progressão e do aumento de

complexidade do capital enquanto sistema115. Passar diretamente da síntese do Livro I à do

Livro II parece ser o caminho logicamente mais curto, entretanto, convém ressaltar as

interdependências entre o material ali exposto e o que consta do Livro III116.

No Livro II concentra-se um esforço de depuração conceitual, que obriga o leitor a

mover-se com os momentos de maior densidade conceitual do livro anterior, porque se vêm os

movimentos como tal do capital enquanto magnitude. A incorporação de mais valia revela-se

como o meio de modificação dos atributos do capital, cuja funcionalidade histórica revela-se

como um fundamento da própria valorização.

A visão de que o movimento do capital se desenvolve como uma espiral retoma-se de

outro modo, mostrando a expansão do capital como um movimento geral de hélice dupla, que

surge da combinação de um processo cíclico e de um processo periódico, que toma a forma de

reprodução do sistema produtivo. O que Marx denomina de processo cíclico é o conjunto dos

modos de capital dinheiro, capital produtivo e capital mercadoria que são parte da produção de

mercadorias. O processo periódico é o movimento resultante dos ajustes de componentes de

capital fixo e capital circulante, sobre períodos de produção das mercadorias e períodos de

115 A individualidade é algo

determinado pelas condições objetivas

em que as pessoas participam dos

mecanismos de coletividade, tais

como os modos como têm acesso ao

que podem produzir ou ao que podem

comprar.

116 Nesse sentido, melhor transcrever

algumas observações de Engels, que,

como codificador da forma final de O

Capital, conhecia melhor que

ninguém essas interdependências.

“Livro II, seção I. Deve-se ler

cuidadosamente o capítulo 1, que

tornará mais fácil a leitura dos

capítulos II e III. O capítulo IV

também deve ser lido com cuidado.

Os capítulos V e VI são fáceis e o

capítulo VII trata de coisas

acessórias Os capítulos VII a IX da

seção II são importantes, bem como o

X e o XI. Também o XII e o XIV.

Em troca, os capítulos XV,XVI e

XVII basta apenas ler. A seção III

contém uma magnífica exposição... do

ciclo total de mercadoria e dinheiro

na sociedade capitalista. A exposição

é magnífica quanto a conteúdo, mas

terrivelmente pesada quanto a

forma.....Eu deixaria a leitura dessa

seção para o final, depois de estudar o

Livro III. Friedrich Engels, Carta a

Victor Adler em O Capital.

Page 174: A economia politica critica de marx

174

trabalho inseridos nesses períodos de produção. A combinação do processo cíclico e do processo

periódico dá lugar à reprodução do capital e com ela, à reprodução do sistema produtivo.

Esse movimento é alimentado por relações de causalidade diferentes, mas

interdependentes. Esses dois movimentos são os que representam os tempos do capital na

forma mercadoria e na forma dinheiro. O movimento de hélice dupla está constituído do ciclo

do capital dinheiro e do ciclo do capital produtivo, que são antagônicos e complementares,

representando movimentos contrários que se complementam.

O movimento dessa segunda parte de O Capital é o movimento da circulação de capital -

entendida como parte da progressão do capital e não como circulação em geral, nem de um

capital invariante - vista em seu conjunto, que mais uma vez aparece em três movimentos, que

são os das metamorfoses do capital.

O ciclo do capital dinheiro é o movimento de valorização do dinheiro. Compreende três

fases em que (a) o capitalista vai ao mercado como comprador de mercadorias, (b) usa as

mercadorias compradas para produzir e (c) vende as mercadorias produzidas, manejando uma

quebra do processo, em que realiza a mais valia produzida. O ciclo do capital produtivo é o

movimento de reprodução do capital no sistema produtivo. Compreende a reprodução simples,

em que o capitalista absorve completamente a mais valia para seu consumo e o da reprodução

ampliada, em que uma parte da mais valia se reintegra ao sistema produtivo, ampliando e

modificando sua capacidade de produzir. O ciclo do capital mercadoria é o movimento do

capital transformado em capacidade de realizar novos empreendimentos.

Page 175: A economia politica critica de marx

175

Adiante, ao tratar dos ciclos do capital em seu conjunto, Marx de fato antecipa uma visão

de diferenciação entre os sucessivos movimentos cíclicos, em que cada ciclo corresponde a

diferentes composições de capital e de trabalho, representando situações não comparáveis de

complexidade e de inter-relação entre os componentes do sistema de produção. Os ciclos não são

“incidentes” da produção capitalista, senão conseqüências de contradições entre os objetivos dos

capitais individuais e o modo de funcionamento do sistema em seu conjunto. Adiante, no Livro

III, Marx apresentará um capítulo específico sobre a lei interna de transformação do capital.

Ao usar as mercadorias para produzir, o capitalista enfrenta-se com o fato de que os

trabalhadores compram para seu consumo, isto é, que o sistema precisa que eles realizem suas

compras. Desde aí, anuncia-se a diferença entre a produção de bens necessários e de bens

supérfluos. O progresso da tecnologia, que aparecerá na diminuição do tempo médio necessário

para produzir, torna-se um elemento de diferenciação entre os consumidores e os produtores,

naquilo em que os ganhos de tecnologia são apropriados pelos capitalistas enquanto os

trabalhadores consomem na medida de seu salário.

A visão das metamorfoses do capital em seu conjunto revela a diferença entre os modos

como os capitalistas e os trabalhadores chegam ao mercado, comprando para consumir ou

comprando para produzir, já que essas metamorfoses envolvem as mudanças progressivas de

composição do capital que se incorpora ao sistema produtivo.

A reprodução do sistema produtivo, isto é, a reposição das suas forças, depende do que

acontece com a mais valia. A reprodução do capital depende da circulação da mais-valia, que

Page 176: A economia politica critica de marx

176

muda de forma, acompanhando as mudanças de composição do capital em seu conjunto. Para

Marx, reprodução compreende a reposição dos meios de produção e da capacidade de usá-los.

Marx distingue duas situações básicas em que na primeira a mais valia é consumida

pelos capitalistas, que é a reprodução simples, e a segunda, em que a mais valia é reintegrada ao

sistema produtivo, que é a reprodução ampliada. A reprodução se faz mediante o conjunto dos

diversos movimentos de rotação, que revelam o tempo médio com que o sistema opera.

Entendemos que a aceleração dos componentes mais rápidos do sistema não

necessariamente implica em aceleração do sistema em seu conjunto, mas que a aceleração dos

componentes mais lentos, tais como os da produção rural, se propagam no sistema em seu

conjunto, modificando seu tempo médio. Essa pode ser uma linha importante de explicação do

processo de subdesenvolvimento, naquilo em que ele consiste na incapacitação dos

subdesenvolvidos para retransmitirem a velocidade de seus setores mais dinâmicos ao conjunto

de sua produção.

A parte relativa às metamorfoses do capital trata dos movimentos internos de

transformação do capital em geral no ambiente da produção industrial. A parte que trata da

rotação do capital explica a variedade das velocidades dos diversos capitais em suas aplicações.

Tem-se que entender que se trata da produção industrializada em seu conjunto, onde a produção

fabril é, simplesmente, a modalidade transitoriamente mais moderna do processo de produção.

Esses movimentos internos do capital explicam como se situam historicamente os custos

da circulação. Finalmente, a parte que trata da reprodução e da acumulação, expõe como essa

Page 177: A economia politica critica de marx

177

pluralidade de movimentos se reintegra num movimento conjunto do capital, que resulta no

movimento geral de acumulação com seu perfil cíclico.

No conjunto, no Livro II há duas partes, que podem ser caracterizadas, respectivamente,

como de análise dos circuitos da formação do capital produtivo na esfera dos capitais individuais

e de desenvolvimento da movimentação do capital na circulação em seu conjunto. Esta divisão

entrecruza com a outra anteriormente apresentada, deste mesmo livro em duas partes, porque a

circulação em seu conjunto é, justamente, como se explica a reprodução simples.

O tempo é fundamental no Livro II. É o tempo histórico dos acontecimentos, que nunca

se reproduz como foi antes e que encerra uma incerteza acerca de como terminará. É o tempo

que transcorrerá durante a depreciação do capital novo. É através de uma apropriação do tempo

no sistema produtivo, que se descobrem os circuitos do capital dinheiro, do capital produtivo e

do capital mercadoria estão regulados pelos tempos de rotação e de circulação, estabelecendo

como e quanto o capital pode captar mais valia. Trata-se de uma circulação historicamente

determinada, que se transforma ao incorporar atividades que operam com maior velocidade de

circulação, que terminam por alterar as velocidades com que funcionam as atividades

tradicionais.

Observe-se que Marx introduz a categoria composição na 3a seção, quando se dispõe a

integrar produção e circulação, mas que somente essa categoria amarra os elementos

apresentados na 1a seção. Entenda-se que as explicações dos ciclos do capital só se completam

quando se entende porque há diferentes velocidades do capital – que tendem a se tornarem mais

desiguais e diferentes umas das outras - o que só a composição explica.

Page 178: A economia politica critica de marx

178

DIAGRAMA 4

A circulação do capital

Rotação(tempos de rotação etempos de circulação

tempos e gastos de circulaçãoperíodo de trabalho etempo de produção

Reprodução(simples e ampliada)

Metamorfoses do capital(ciclos do capital-dinheiro,

do cpital produtivo e docapital-mercadoria)

Há, portanto, um problema de combinação das velocidades dos componentes do capital e

de velocidade diferenciada do capital, em suas diferentes formas operacionais. No Livro II,

mais que em qualquer outra parte de O Capital, desprega-se o perfil de economia dinâmica e de

análise dinâmica da economia, que fazem da análise de Marx um desenvolvimento crítico da

economia clássica em total oposição ao rumo seguido pelo marginalismo e pela análise estática.

Aqui, o sistema produtivo se reproduz essencialmente mediante mudanças de composição.

Page 179: A economia politica critica de marx

179

Observa-se, ainda, a diferença entre essa dinâmica baseada na progressão de um sistema

que se amplia e que se torna mais complexo, e a análise dinâmica de matriz marginalista, que

exprime um dinamismo de serialidade, sem entrar jamais em problemas de transformação de

estruturas. Identifica-se, assim, a diferença entre as análises de estruturas e de sistemas e as

análises de séries estatísticas.

As metamorfoses do capital

A noção de metamorfose, que é essencial na crítica da sociedade econômica empreendida por

Marx, abrange ao sistema em seu conjunto, bem como se aplica aos dois componentes desse

conjunto que são o capital e o trabalho, bem como se aplica ao sistema institucional. Observa-se

que, no desenvolvimento da análise apresentada em O Capital a metamorfose do capital é a

transformação do capital enquanto expressão econômica, mas carrega, potencialmente, uma

metamorfose política.

Page 180: A economia politica critica de marx

180

A engrenagem das metamorfoses do capital (industrial)

A primeira parte do Livro II de O Capital dedica-se às metamorfoses do capital, isto é, aos seus

movimentos internos – comparados com os movimentos externos, que são os de reprodução –

determinados pelas características próprias da produção industrial. Essas transformações

internas não acontecem por separado do ambiente em que o capital opera, pelo que são parte da

progressão de efeitos externos projetados pelo próprio capital. É um ponto demarcatório do

pensamento de Marx no contexto da Economia Política: contrapor-se à separação – tão comum

que passa despercebida – entre a análise do capital e a do mercado. A economia não histórica,

que sempre vê a forma atual como forma final do processo econômico, não se sente na obrigação

de trabalhar com alterações do modo de funcionamento do capital, seja integrado em empresas

ou fora delas. Por isso, mesmo quando analisa estruturas de mercado, refere-se a perfis

invariantes de comportamento dos diversos participantes. Não contempla alterações

progressivas dos comportamentos dos participantes.

Na seção sobre as metamorfoses do capital consideram-se, explicitamente,

comportamentos que são próprios do capital industrial, e que se transformam junto com a

concentração do capital em geral.

Page 181: A economia politica critica de marx

181

O ciclo do capital-dinheiro

Trata-se de extrair o movimento do capital na forma dinheiro, ou simplesmente da forma

dinheiro, do movimento do capital em seu conjunto, mediante a análise das formas que ele

assume. A nosso ver, a chave explicativa dessa análise é que Marx aqui se dispôs a realizar uma

tarefa equivalente à que Hegel fez com a Ciência da Lógica na exposição do processo de formação

da consciência, que foi, justamente, de separar o movimento do conceito da coisa do movimento

da coisa propriamente dita. O ciclo do capital dinheiro compreende três situações, que são o

ciclo do capital na forma dinheiro, o ciclo do capital na forma produtiva e o da realização da

mercadoria valorizada. O ciclo do capital produtivo conclui com a formação do fundo de

reserva, com que os capitalistas garantem sua capacidade de realizar despesas não determinadas

pelas condições atuais do processo de produção.

Marx começa por enunciar sinteticamente o movimento do capital em suas três fases já

apresentadas no Livro I do ponto de vista da produção do capital. Tais fases são as seguintes:

1. D => M . O capitalista compra mercadorias

2. O capitalista usa as mercadorias no processo produtivo

3. O capitalista volta ao mercado como vendedor M=> D.

Isto quer dizer que D=> M => D realmente é

D – M...P...M’ =>D’

Page 182: A economia politica critica de marx

182

onde dinheiro e mercadoria estão acrescentados de mais valia, isto é, estão valorizados.

Nesse ponto Marx declara-se interessado em explorar o mecanismo de conversão de dinheiro

em mercadoria + mais valia. Ora, para isso é preciso explicitar os momentos em que entra a

força de trabalho, ou seja, ainda, é preciso separar os movimentos de valorização dos de

comercialização. De fato, o sistema avança mediante as alterações da esfera da comercialização,

que facultam aos capitalistas a possibilidade de fazer cálculos de rentabilidade por antecipação.

Verifica-se que os capitalistas podem trabalhar com perspectivas objetivas de

efetivização de demanda, e não apenas com condições atuais de demanda efetiva. Certamente

este ponto terá que ser explorado, para superar a contradição aparente – que está no centro da

teoria de Keynes - entre condições históricas de distribuição da renda e condições subjetivas de

decisão dos capitalistas.

Sem avisar ao leitor, Marx entra a explicar a parte que omitiu, que é: ( M => P ),

dizendo que as mercadorias que o capital comprou (para produzir) resolvem-se em T (trabalho)

e Mp (meios de produção). Isso quer dizer que

T

D => M

Mp

Ou

Page 183: A economia politica critica de marx

183

D -> M (T, Mp),

Já que o capital só faz isso para voltar ao mercado de mercadorias.

Significa que há um mercado de trabalho e um mercado de mercadorias, que tem

aspectos quantitativos e qualitativos, em que os aspectos qualitativos levam a distinguir

trabalho necessário e trabalho excedente. No entanto, é um ponto onde o argumento de Marx

exige uma explicação adicional, qual seja de que o capital – P – na representação simbólica de

Marx representa as possibilidades de usos alternativos do capital, segundo as opções técnicas

que lhe são possíveis em mercado. Diremos que o capital representado por P não é o capital

valor em geral, senão é a representação das possibilidades tecnológicas incorporadas ao longo da

história do sistema de produção. P é o capital historicamente concreto.

De qualquer modo, P representa certas margens de flexibilidade, que se comparam com a

forma financeira que é o capital dinheiro117. Este, em princípio, tem toda flexibilidade que o

sistema enseja. Mas, na prática depende da mobilidade dos capitalistas individuais.

Essa mobilidade do capital dinheiro denota uma circulação geral de mercadorias, bem

como registra a presença de ciclos independentes do capital em sua forma dinheiro e em sua

forma material, que é quando ele é, efetivamente, capital produtivo. O dinheiro será, portanto,

a forma como o capital se desembolsa, que é o fundamento da função do dinheiro como meio de

pagamento.

D M T

Mp

117 A flexibilidade do capital dinheiro

depende da conversibilidade da

moeda e do acesso a adquirir os

equipamentos mundialmente

disponíveis.

Page 184: A economia politica critica de marx

184

onde a circulação na sociedade em geral se decompõe em D => Mp e

D => T, quando compra meios de produção e quando compra trabalho.

Do ponto de vista do capitalista, a fórmula D => T exprime a compra de trabalho gerador

de mais valia. Mas D => indica uma opção de um modo específico de obter mais valia, enquanto

o capital dinheiro, por definição, funciona com a equivalência geral das mercadorias. Ao

materializar–se em capital produtivo, o capital ganha acesso a uma condição com que pode ter

lucro. Para o trabalhador os meios de produção são necessários para que ele possa trabalhar, mas

são propriedade alheia. “No momento em que ambas as partes se enfrentam no ato D => T, ou T =>D

na perspectiva do trabalhador, existe já e se dá por suposta uma relação de classe entre capitalista e

trabalhador assalariado” (L. II, pp.32) 118

O movimento inverso é o ciclo do capital na forma produtiva, quando ele sai da

circulação monetária e entra no tempo do chamado consumo produtivo, que é seu desgaste na

produção. Tal uso acontece mediante a já conhecida compra de meios de produção.

Comprova-se que são dois circuitos diferentes. Ao imobilizar o capital, o capitalista

passa a precisar de dinheiro119. A sustentação da posição do capitalista frente às alterações do

mercado exige que ele disponha, constantemente, de dinheiro, inclusive para manter o fluxo de

pagamento aos trabalhadores, que na verdade está ligado ao pagamento de Mp e à essência da

produção. O produto que gera está carregado de mais valia, que deve ser realizada, mediante a

venda do produto no mercado. Resumindo, o dinheiro só pode funcionar como capital quando é

usado para comprar trabalho; e isso depende de pré-condições, tal como só pode ser usado para

118 Neste ponto a relação de classe

aparece como decorrência pura e

simples da relação capitalista

imediata. No entanto, o essencial é a

desigualdade desse relacionamento,

em que “as condições de realização do

trabalho estão separadas de seu

proprietário” (L. II, pp. 33). Marx

insiste em que não interessa saber

como se deu a separação entre o

trabalhador e a capacidade de

realizar o trabalho, mas acaba por

admitir que a relação desigual apenas

se explícita, mas que já estava latente

na relação comercial. Veremos,

adiante, como este último ponto é

essencial, para trabalhar com a

formação das relações de classe no

âmbito das sociedades mercantis

escravistas exportadoras. Reduzir as

relações de classe à atualidade de sua

forma industrial, significa ignorar,

deliberadamente, a continuidade dos

processos sociais sob as formas de

organização política.

119 Essa necessidade de dinheiro foi,

depois, trabalhada por Knut

Wicksell, que nela viu o mecanismo

objetivo de dinamismo das empresas,

contrastando com a versão

subjetivista de Joseph Schumpeter,

que a atribuiu à criatividade de

Page 185: A economia politica critica de marx

185

comprar escravos se há escravidão antes desse ato específico de compra. Esse exemplo do

próprio Marx levanta, entretanto, uma questão de razão prática. Se alguém, incidentalmente,

por um ato criminoso esporádico ou por desespero de penúria, vende uma criança a alguém em

melhores condições para cuidar dela, isso significa que se instala um sistema de escravidão? Os

fatos esporádicos denotam sempre a presença de um sistema?

O segundo movimento da análise das metamorfoses do capital ocupa-se do capital em

sua forma produtiva. Nessa parte, especificamente, é preciso não perder de vista que se trata da

produção. Ora, o capital torna-se produtivo quando está investido das propriedades técnicas

incorporadas nas mercadorias, mas, lembramos, não são mercadorias isoladas, senão

mercadorias constitutivas de capacidade instalada de produção. O ciclo do capital produtivo é o

momento em que o capital se cristaliza em certa forma técnica, numa fábrica de bicicletas ou

numa padaria. Não só numa fábrica de bicicletas, mas numa determinada fábrica capaz de

produzir determinados tipos de bicicletas.

Finalmente, considera-se a função do capital-mercadoria valorizado.

A observação conclusiva dessa primeira parte é que o capital investimento na forma

mercadorias valorizadas está investido das propriedades técnicas desse conjunto específico de

mercadorias. Noutras palavras, o capital pode fazer o que está tecnicamente incorporado nas

mercadorias de que ele se compõe, ou seja, tornou-se investimento. Nessas condições, há um

problema de compatibilidade da composição do capital com a composição da formação de

capital, que se apresenta a cada capitalista individual como um problema de desafio na

incorporação de novas tecnologias no sistema de produção já instalado.

empreendedores. É fundamental

ressaltar que a análise de Marx nesse

aspecto é conceitualmente muito mais

desenvolvida que a desses autores

posteriores.

Page 186: A economia politica critica de marx

186

O ciclo do capital produtivo

O ciclo do capital produtivo desenvolve-se nos níveis de reprodução simples e no da

reprodução ampliada, segundo se vêm as esferas de circulação. A reprodução simples é quando a

mais valia se gasta integralmente com renda.

No ponto em que considera os destinos que são dados às mercadorias valorizadas – M’ –

(L.II, pp. 58), Marx introduz uma consideração sobre os usos dessas mercadorias, em que sua

reintrodução no processo produtivo previne que se tornem simples dinheiro aritmético. Tal

observação envolve a possibilidade do contrário, isto é, de como sua não reincorporação impede

a obstaculiza a reprodução do sistema. Esse é, a nosso ver, o ponto de partida da análise do

mecanismo econômico do colonialismo, baseado na filtração de recursos do sistema para o

exterior.

Na prática, tanto pode acontecer que a mais valia se gaste integralmente, como que se

capitalize integralmente; e que sua capitalização se realize no sistema ou que passe a integrar

outros sistemas. A grande questão que se coloca, para o futuro do sistema e dos capitalistas

específicos, é a decisão acerca dos destinos que serão dados à mais-valia.

É preciso ter claro que o ciclo do capital produtivo está tecnicamente ancorado na

composição do capital, segundo ela indica as tecnologias utilizadas e a competência em seu uso.

Numa visão da pluralidade de linhas de atividade, entende-se que o ciclo do capital produtivo

Page 187: A economia politica critica de marx

187

em seu conjunto é a integral dos seus diversos ciclos e do modo como eles dependem uns dos

outros.

Gastos de circulação

O capítulo VI do Livro II de O Capital trata dos custos representados pelo tempo despendido

nas operações mercantis de conversão de mercadoria em dinheiro e de dinheiro em mercadoria.

São as operações que são dadas por supostas na igualdade keynesiana P (poupança) =

I(investimento), bem como são campos de incerteza e de custos sociais que parcialmente

tratados na chamada economia das transações de hoje em dia. Marx trata desse campo temático

de modo muito mais abrangente, primeiro, porque o coloca como parte da reprodução do

sistema produtivo em seu conjunto e não só como um problema incidental, como faz a teoria

neoclássica. Segundo, porque revela as áreas de incerteza subjacentes nessas duas etapas

mercantis, que foram ignoradas pela teoria keynesiana. Observe-se que isso compreende os

custos ativos, incorridos pelas operações realizadas, e os custos passivos, decorrentes de tempo

perdido na manutenção do capital.

A questão levantada por Marx refere-se a uma tendência inerente à produção capitalista,

de um aumento dos custos de circulação. “À medida que aumenta a escala de produção e que se

acentua a força produtiva do trabalho, através da cooperação, da divisão do trabalho, da maquinaria etc.,

Page 188: A economia politica critica de marx

188

cresce a massa das matérias primas, das matérias auxiliares etc., absorvidas pelo processo diário de

reprodução. Esses elementos têm que estar disponíveis no lugar da produção” (L.II, pp.126).

Tempo de rotação

Há uma questão essencial relativa ao papel do tempo na movimentação de dinheiro. Como

influi o tempo de rotação na magnitude do capital desembolsado. Na análise desenvolvida no

Livro II esse fenômeno surge desde dentro dos tempos tecnicamente previstos no movimento

produtivo do capital. Mas ao manejar seus próprios argumentos relativos à relação orgânica

entre os períodos do capital dinheiro e do capital mercadoria, vemos que a ordem do tempo na

produção é externa a qualqujer solução técnica específica; e se refere ao ordenamento

comandado pela acumulação, que é a ordem da gestão da mais valia.

Na produção industrializada ampliam-se as diferenças de velocidade de rotação do

capital entre atividades, segundo elas estão reguladas por tempos de produção externos aos

processos produtivos, ou podem ser reorganizadas, segundo os tempos de produção são

controlados e ainda, segundo se trata de processos de produção cujos produtos finais podem ser

realizados em menos tempo. O tempo de rotação determina o relacionamento dos capitalistas

com o sistema financeiro.

Page 189: A economia politica critica de marx

189

O tempo de rotação, por extensão, significa o modo como cada capitalista consegue usar

a velocidade do seu capital, como parte de sua formação de capital. Podemos adiantar que um

diferencial de velocidade a seu favor é uma vantagem em relação com os juros médios do

mercado; e que um diferencial negativo resulta num custo, ou numa transferência de valor aos

bancos.

Capital fixo e capital circulante

O capital aparece sob inúmeras formas, que ao mesmo tempo assinalam o modo como ele

participa da produção. Em sua materialidade o capital aparece como capital fixo e como capital

circulante. O capital cujas propriedades são invariantes é o capital fixo, enquanto o que muda de

forma na produção é o circulante. Na prática, o capital fixo são os conjuntos de equipamentos e

de instalações, enquanto o capital circulante são as matérias primas e as secundárias. A relação

orgânica entre o capital fixo e o capital circulante evolui de determinados modos e formas

segundo se desenvolvem os meios de produção. A operação do capital materialmente

constituído estabelece necessidades de desembolso de capital. Essa relação entre os desembolsos

de dinheiro e as combinações de capital fixo e de capital financeiro é o mecanismo interno da

reprodução simples do capital.

Page 190: A economia politica critica de marx

190

Rotação global do capital desembolsado e

determinação de ciclos de rotação do capital em geral

A rotação geral do capital desembolsado não é somente a rotação média do conjunto das

atividades de cada sistema de produção em particular, senão que para cada capitalista é essa

rotação afetada pelo desempenho do sistema financeiro, já que os efeitos do sistema financeiro

são diferentes para os diversos capitalistas. Vale dizer que a rotação geral do capital não é um

movimento uniforme do sistema, senão é uma determinante do modo como opera cada um dos

diversos capitalistas.

Tempo de trabalho e período de produção

O tempo utilizado trabalhando é sempre um tempo de produção, mas o período de produção

envolve outros componentes, tais como maturação da produção, que prolongam o tempo

necessário para a conclusão do produto. Tal extensão do período de produção, em todo caso,

significa imobilização do capital constante, portanto, traduz-se numa restrição para acelerar o

uso do capital variável, em outras palavras, restringe a produtividade do trabalho. Diremos que

o tempo de trabalho efetivo será sempre afetado pela presença de novos empreendimentos e

Page 191: A economia politica critica de marx

191

pelos tempos que os capitalistas absorvem para encaminhar novos empreendimentos. No

exemplo dado pelo próprio Marx, o período de produção do trigo de inverno pode ser de oito

meses, dos quais somente uma parte consiste em tempo de trabalho, já que uma parte dos oito

meses corresponde ao tempo de maturação do cereal, antes que se possa intervir no processo de

colheita.

Circulação de mais-valia

Logicamente, os tempos absorvidos em períodos de produção limitam a velocidade com que o

capital pode fazer circular a mais valia, portanto, são limitações reais da formação de lucros dos

capitalistas. A circulação da mais valia é afetada pelo crédito, que interfere nas possibilidades

dos capitalistas individuais de transformarem a mais valia em capital produtivo, isto é, de

ampliar sua capacidade de acumularem. Marx acompanha a circulação de mais valia na esfera da

reprodução simples e na da reprodução ampliada, isto é, examina o papel da circulação de mais

valia para a reposição do capital em sua forma atual e em sua progressão de mudança de forma.

É preciso ter em conta que essa investigação não pode ser confundida com a análise dos

mecanismos da reprodução simples e da ampliada, que concluem o circuito da análise

desenvolvida no Livro II. A circulação de mais valia é um dado das condições operacionais do

Page 192: A economia politica critica de marx

192

capital em geral, enquanto a reprodução é uma situação do sistema socioprodutivo concreto do

capital.

A reprodução e circulação do capital social

em seu conjunto

Antecedentes e preliminares

Nesta parte Marx retoma a perspectiva da totalidade do processo em seu caráter orgânico

propriamente dito, isto é, da sociedade econômica como um organismo em expansão. A esfera

dos capitais individuais e a das mercadorias são dois aspectos do movimento do capital, em que

essas individualidades são fugazes e representam formas precárias. “Os ciclos dos capitais

individuais se entrelaçam uns com os outros, se pressupõem e condicionam mutuamente, e esse

entrelaçamento é, precisamente, o que forma a dinâmica do capital social em seu conjunto” (L.II. pp. 316).

Nessa seção III Marx dispõe-se a explicar o processo de circulação do capital social em

seu conjunto. Para entendê-lo, é preciso expor o processo geral de circulação, com tudo que ele

implica em termos de operacionalidade do capital dinheiro.

Page 193: A economia politica critica de marx

193

Um primeiro ponto crítico é a necessidade de capital dinheiro das empresas, ligada à

duração do período de trabalho, que é o financiamento da produção, compreendendo o

financiamento de risco. O nível de desenvolvimento do sistema produtivo, compreendendo a

composição do capital, indica uma necessidade irredutível de capital, que é uma restrição

“técnica” da reprodução do sistema de produção120.

A questão geral da reprodução do capital

A questão geral da reprodução do capital compreende a reprodução simples e a reprodução

ampliada. A reprodução simples pressupõe que as relações entre os setores de bens de consumo e

de bens de capital não mudam, porque não há alteração significativa do capital constante.

Tecnicamente, essa falta de alterações do capital constante – maquinaria etc. – impede que os

eventuais investimentos tenham um efeito global de modificarem o sistema. A segunda parte

do Livro II está ocupada pela teoria da reprodução do capital, em que a acumulação se torna

visível na reprodução ampliada. Marx nos diz que a reprodução simples não é uma simples

situação hipotética, mas reconhece que a produção capitalista não pode prescindir de

modificações técnicas, que terminam por caracterizar a reprodução ampliada.

Para expor a engrenagem da reprodução Marx, recorre ao seu famoso modelo de dois

setores – o de produção para consumo e o da produção para capital – onde os usos de trabalho e

120 Encontra-se aqui um ponto

fundamental da análise do

desenvolvimento e do

subdesenvolvimento, que se tornou

parte essencial do pensamento latino-

americano sobre planejamento.

Trata-se da distinção entre o

financiamento estruturalmente

necessário para a reprodução do

sistema produtivo em sua composição

atual, o financiamento

estruturalmente necessário para

alterar essa estrutura produtiva, e o

financiamento dos programas

específicos de investimento

destinados a desempenhar esse papel.

Page 194: A economia politica critica de marx

194

de meios de produção estão regulados pelas relações técnicas entre essas duas esferas da

produção. Veremos, entretanto, que o essencial é que mudam as condições de uso de trabalho na

reprodução ampliada, porque ali é onde se manifestam as pressões do ciclo econômico.

A questão financeira está submersa nesse modelo, porque na reprodução ampliada há

novos usos de capital, que desencadeiam nova demanda de dinheiro; e porque desse modo o

sistema produtivo passa a demandar capital novo a um ritmo mais acelerado que o do desgaste

do capital constante. Esse é o principal fundamento da teoria dos ciclos em Marx, que vai

aparecer adiante (Livro III) como a lei geral da tendência à queda da taxa de lucro. Nesta parte,

portanto, o principal problema que se enfrenta é o da articulação entre o Departamento I e o

Departamento II, já que essa articulação vista na perspectiva da reprodução simples é uma

relação invariante, e vista na perspectiva da reprodução ampliada, é uma relação que muda

constantemente.

Voltando ao modo de análise escolhido por Marx, cabe perguntar por que ele deu tanta

ênfase à análise da reprodução simples, quando o modo de operar do capitalismo é a reprodução

ampliada? Entendemos que a resposta é que a análise da reprodução simples é onde se coloca a

engrenagem básica da reposição do capital e é a instância em que de fato opera uma grande parte

do capital. Grande parte dos capitalistas consome integralmente ou em parte a mais valia que

capta. O capitalismo também é autofágico. Por isso, somente a análise da reprodução simples

pode ajudar a desvendar o processo de seleção entre capitalistas, que se estende desde o pequeno

ao grande capital.

Page 195: A economia politica critica de marx

195

A reprodução simples

Esta é a parte mais complexa do Livro II, onde Marx coloca a questão geral da reposição do

valor junto com a reposição dos meios materiais de produção. Logo, diz que se trata de “como se

repõe a base do produto anual sobre o valor do capital absorvido na produção e como se

entrelaça o movimento dessa reposição com o consumo de mais-valia” ( L II,pp.351). Ora, isso

tem tudo a ver com o modo como os capitalistas se apropriam de tecnologia, que é o mecanismo

que permite que o volume de trocas se mantenha com preços menores. Para isso, é preciso que a

demanda se mantenha. Por isso, torna-se logicamente necessário penetrar no mecanismo da

formação da demanda, que é o que Marx passa a fazer com seu modelo de dois setores da

produção social: o setor I produtor de meios de produção e o setor II produtor de meios de

consumo. A idéia básica é que em cada um desses dois grandes setores as diversas atividades

formam um conjunto, pelo qual se passa a ver a organização produtiva da sociedade em seu

conjunto. Diremos que a macroeconomia surge de condições produtivas concretas, ao contrário

da generalização macroeconômica abstrata de Keynes.

Em cada um dos dois setores há um componente de capital constante e outro de capital

variável e o foco da análise que se segue está nas interdependências orgânicas entre os dois.

A análise da relação entre os mecanismos dos setores está em que uma parte do capital

constante é absorvida na produção, mas que uma parte do capital fixo passa para os produtos,

isto é, o desgaste de capital para produzir passa como valor para o produto realizado. No

Page 196: A economia politica critica de marx

196

entanto, no sistema em seu conjunto, a reprodução funciona através da captação dos resultados

da produção, que se dá na captação de mais valia e no pagamento de salários, que é como se

realiza o poder de compra com que se vendem os produtos finais. O sistema funciona, portanto,

sobre as condições como se distribuem os salários entre os setores da produção.

Veremos adiante que o setor II encerra um outro mecanismo de diferenciação do

conjunto, que se dá através da diversificação do consumo, com a introdução de artigos de luxo.

Esses artigos modificam a composição do consumo por classes sociais e por estratos de classe.

Absorvendo essas mudanças, a análise de Marx volta-se para a circulação de dinheiro no

sistema combinado, levantando a contradição fundamental entre as necessidades do sistema de

se reproduzir preservando as condições de captação de mais valia e o imperativo de realizar esse

objetivo controlando a renovação tecnológica.

O que determina a reprodução simples é a circunstância de que o capitalista absorve mais

valia para seu consumo em parte em seu conjunto. O produto inclui as partes que repõem o

capital, bem como o fundo de consumo – consumo intermediário, na linguagem da

contabilidade social de hoje. A reprodução simples acontece com um quadro invariante de

valores objetivos dos meios de produção. As bases materiais das relações entre capitalistas não

mudam.

Na descrição da reprodução simples, Marx trabalha com seu conhecido modelo de dois

setores, em que o setor I corresponde aos meios de produção e o setor II corresponde aos meios

de consumo, sendo que cada um deles se compõe de capital constante e capital variável. A

reprodução simples pressupõe que as relações entre os setores produtores de bens de consumo e

Page 197: A economia politica critica de marx

197

os de bens de capital não mudam, porque não há alterações significativas do capital constante.

Tecnicamente, essa falta de alterações do capital constante – maquinaria, etc. – impede que os

eventuais investimentos tenham um efeito final de alteração do sistema121.

Esse modelo de dois setores deve ser lido à luz do material apresentado nas seções

anteriores, quer dizer, que incorpora o relativo à articulação entre produção e circulação. Daí,

Marx trabalha com dois planos de análise da circulação, que são os da circulação entre os setores

e dentro de cada setor. A circulação entre os setores contempla as interdependências técnicas,

constituindo a base de que partiu a análise de Fel’dman e depois a de Leontief.

Mas a circulação dentro de cada setor envolve uma distinção entre consumo necessário e

consumo suntuário, que não poderia ser absorvida na estrutura da análise marginalista. No

esquema de Marx não é uma distinção caprichosa, porque se refere aos meios de consumo

necessários à reprodução dos trabalhadores, assim como envolve uma definição de quais

elementos do consumo não alteram a capacidade de produzir.

Acumulação e reprodução em escala ampliada

Uma vez exposto o modo de funcionamento do modelo de dois setores. Marx extrai suas

conseqüências dinâmicas, apontando seus resultados cumulativos, no que passa a ser a

acumulação de capital em geral, a partir do acréscimo de capital constante em cada um dos dois

121 Em seus estudos sobre a

acumulação de capital, Rosa

Luxemburgo focalizou nos

mecanismos da reprodução, a

nosso ver, mostrando

contradições da reprodução

simples que a tornam apenas

um caso especial da

reprodução ampliada. Essa

não é a proposta de Marx, que

atribui um papel próprio à

reprodução simples, que é o

ambiente onde se trabalha

com um referencial de

tecnologia sem mudanças nas

tecnologias básicas, isto é,

naquelas de maior impacto

indireto no sistema produtivo.

Page 198: A economia politica critica de marx

198

setores; e suas perdas, ou esterilizações, no entesouramento. O movimento de acumular se

revela como um resultado do agir da variedade dos capitalistas. A acumulação brota dos

movimentos dos capitais, no sentido em que eles tendem a fundir-se no aumento da capacidade

de acumular do sistema de produção organizado. Mas ela não é um movimento linear: é um

movimento que se alimenta da retirada de dinheiro do processo produtivo num movimento

geral de controle da mais valia.

Como conclusão provisória, vemos que no nível do desenvolvimento da argumentação

que se encontra no Livro II a reprodução ampliada, isto é, a acumulação aparece como um

movimento interno de cada um dos dois departamentos em que está organizada a produção. No

entanto, o movimento geral de acumulação transcende as formas específicas de organização da

produção material, colocando-se ao nível do movimento conjunto do capital, que compreende a

forma financeira. Além disso, a reprodução ampliada envolve as alterações institucionais e os

elementos de incerteza inerentes ao movimento do sistema, que podem ser provisoriamente

ignorados enquanto se trata de um plano de tecnologias invariáveis, mas que não pode ser

ignorado quando se trata de juntar as modificações quantitativas com alterações qualitativas do

sistema produtivo. Por isso, o significado pleno da acumulação só aparecerá no Livro III,

quando se tenha concluído a análise das conversões do capital entre suas formas operacionais.

Page 199: A economia politica critica de marx

199

O PROCESSO DA PRODUÇÃO CAPITALISTA

EM SEU CONJUNTO

A formação do capital fictício chama-se capitalização Marx, L.III., pp.439

Preliminares

O Livro III trata da acumulação de capital como tal e em seu sentido mais amplo. Esse

processo acontece através da acumulação de capital dinheiro, que permite realizar as mudanças

de composição “descobrir e expor as formas concretas que brotam do processo do movimento do capital

considerado como um todo”. Nessa exposição encontra-se uma combinação de elementos de micro

e de macroeconomia. A acumulação começa no plano individual através da diferença entre o

custo do investimento e o custo da produção, onde uma parte do custo de produção é absorvido

pelos trabalhadores.

Page 200: A economia politica critica de marx

200

Uma primeira reflexão sobre o tema

problematizado no Livro III de O Capital.

A questão central que se coloca no Livro III refere-se aos usos dos diversos capitais, como parte

da engrenagem comportamental incorporada no sistema produtivo e não como uma mera

coleção de eventos individuais de uso de capitais disponíveis que poderiam ser usados de outros

modos. A noção de alternativas de usos dos capitais ganha outro significado quando é vista

como uma progressão de alternativas condicionadas correspondendo a condições específicas da

composição do capital em setores de produção. Os capitais individuais são parte de um

movimento geral do sistema e os investimentos específicos se situam nesse conjunto. Isso

significa que o emprego dos capitais depende das condições em que operam os capitalistas. Não

se pode esperar que agricultores pouco informados participem de investimentos de alta

tecnologia, como tampouco se pode esperar que seja igualmente fácil para todos diversificar suas

linhas de atividade. Mesmo para as grandes empresas, a diversificação é sempre um teste

decisivo, quando se compara sua competência para realizar tarefas já definidas, com sua

competência para compreender o mercado em seu conjunto e trabalhar com cenários do futuro.

No essencial, é a questão levantada por Adam Smith: todos capitalistas decidem o tempo

todo sobre a totalidade de seu capital, mas que está modificada pela compreensão de Marx do

sistema produtivo em transformação. Mas, diremos, com diferente capacidade de decidir. Por

Page 201: A economia politica critica de marx

201

isso, a produção capitalista depende do que os capitalistas conseguem fazer com seu capital. Há

nisso um aspecto de capacidade de cada capitalista e de incerteza do ambiente em que ele opera.

A incerteza está impregnada na continuidade da formação de capital. Esse problema está tratado

por Marx no trajeto da análise que vai dos usos do capital constante à formação da taxa de lucro,

com seu subseqüente nivelamento e com a tendência geral do sistema à queda da taxa de lucro.

Nesse movimento, é da necessidade dos capitalistas de se protegerem dos riscos de cada

empreendimento, retirando sempre uma parte de seu capital na forma de dinheiro, que vai se

alimentar o capital bancário, gerando um circuito de financiamento que não é mais parte da

circulação no interior das empresas. Esse capital busca taxas de lucro superiores às que pode

obter no ciclo produtivo. Nesse ponto, há um aumento de velocidade da circulação do dinheiro

no sistema produtivo em seu conjunto.

Daí, diremos, aumenta a incerteza do sistema, quanto à capacidade dos capitalistas para

comandarem efetivamente o emprego de seus capitais. Seguindo a visão de Marx, percebe-se

que esse processo não pode acontecer de modo suave, ou sem que alguns capitalistas sejam

prejudicados. A reprodução do sistema produtivo requer que seus integrantes estejam à altura de

sua complexidade, assim como o exercício das capacidades dos capitalistas depende de que o

sistema produtivo ganhe em complexidade o suficiente para absorver o capital acumulado. Mais

uma vez, seguindo as linhas de raciocínio de Marx sobre a reprodução simples – Livro II –

vemos que a transubstanciação do capital dinheiro valorizado em capital a juros depende de que

o sistema produtivo em seu conjunto ofereça oportunidades de lucro compatíveis com a

remuneração de todos os capitais anteriores e todas as condições de trabalho. Ora, essas

Page 202: A economia politica critica de marx

202

oportunidades de gerar lucro diminuem do mesmo modo como diminuem as oportunidades de

construir usinas hidrelétricas,

É a imprevisibilidade inerente ao sistema, que se configura quando se realizam

substituições entre equipamentos122. Não há uma continuidade necessária entre as aplicações

anteriores e as futuras, senão que as aplicações futuras são o campo em que se realizam as

diferenciações entre os diferentes capitalistas no relativo à sua capacidade de conduzir a

reprodução de seu capital. O ciclo não será, portanto, somente o ciclo gerado pela

superprodução, mas também resultará dessa decalagem entre a forma futura possível e a forma

anterior do capital. A capacidade dos capitalistas para modificarem a composição de suas

aplicações é um aspecto da própria transformação do sistema produtivo, em que se incluem

diferenciações entre o grande e o pequeno capital.

A teoria da exploração e a apropriação

da reprodução ampliada do capital

O grande tema que se desenvolve no Livro III de O Capital é a teoria da exploração, que

aparece através da exposição das formas concretas de estruturação e de transformação do capital

e que é levada a suas contradições, quando se converte em tendência decrescente do lucro. Para

122 Observe-se que na explicação da

formação de movimentos cíclicos de

média duração a substituição de

equipamentos indica os momentos em

que os capitais têm que optar entre

diferentes formas de organização da

produção.

Page 203: A economia politica critica de marx

203

realizar a exploração o capital tem que envolver trabalhadores. A tendência à queda da taxa de

lucro é a contradição da exploração.

Como a exploração é o modo de realimentação do capital, a explicação da exploração

ataca o movimento interno do capital, no modo como ele se realiza na organização social da

produção. O Livro III cobre a teoria da exploração e estabelece que a lógica irracional do capital

– a acumulação – só pode se realizar através da exploração, que é a explicação social da captação

de mais valia. A teoria da exploração compreende três partes, em que a primeira se estende da

primeira à terceira seção do Livro III, isto é, vai da explicação da taxa de mais valia até a

identificação da lei da tendência decrescente da taxa de lucro, com suas contra tendências. A

segunda compreende o desenvolvimento do capital na esfera do comércio e da comercialização

do dinheiro, onde se vêm aspectos concretos da circulação, portanto, como uma abordagem

diferente e complementar daquela do Livro II. A terceira contempla a mobilidade do capital

financeiro e seu poder de participar de diferentes setores e de combinar formas de produção e

chega até a renda da terra. As condições históricas da exploração dependem, segundo Marx,

portanto, das condições de desenvolvimento do sistema capitalista de produção, nisso incluídas

a presença de formas pretéritas de produção e a presença de condições específicas de articulação

entre o novo e o velho.

Em todo esse movimento há duas referências que se combinam, que são a relação entre a

taxa de mais valia e a taxa de lucro e a relação entre a composição do capital e a taxa de mais

valia. A composição do capital - que foi identificada no Livro I como expressão da tecnificação

do capital – reaparece aqui como uma categoria do capital em seu conjunto, que situa e

Page 204: A economia politica critica de marx

204

diferencia as sucessivas situações de organização da produção. A exploração se realiza mediante

situações concretas de controle da produtividade dos trabalhadores, que é uma condição que se

desenvolve em certas condições históricas de composição do capital.

Para alcançar esse objetivo principal do projeto do livro em seu conjunto, nessa parte do

trabalho há três grandes movimentos, que são a determinação da taxa média de lucro, chegando

à identificação da tendência à queda da taxa de lucro; as conversões entre formas de capital,

chegando até a renda extraordinária; e a passagem da renda extraordinária para a renda da terra.

Para Marx o que interessa explicar da renda da terra não é uma renda originária da terra, senão a

renda da terra que surge da expansão do capital no campo, com suas conseqüências de substituir

as antigas relações de produção por relações capitalistas, isto é, substituir camponeses por

trabalhadores assalariados. Neste estudo trata-se da renda da terra em outro capitulo específico.

Somente a partir dessa observação central é possível colocar o problema fundamental da

apropriação dos resultados da reprodução ampliada do capital, que surge da mobilidade do

grande capital de alta tecnologia, que já incorporou as formas mais avançadas de capital

financeiro e que desloca a esfera da circulação para o nível das contradições do capital

concentrado.

O problema levantado por Rosa Luxemburg relativo à apropriação da mais valia gerada

na reprodução ampliada, que seria um ponto não superado por Marx123, desaparece, quando se vê

que a esfera da circulação se reorganiza, conduzida pela lógica da concentração e já não só pela

da acumulação. Por isso, entendemos que é no âmbito da movimentação do grande capital

123 Rosa Luxemburg, A acumulação

de capital, São Paulo, Nova

Cultural, 1985.

Page 205: A economia politica critica de marx

205

concentrado que surgem novos delineamentos de exploração, que permeiam o sistema produtivo

até as suas formas mais simples, de pequeno capital e de baixa tecnologia.

A arquitetura temática do Livro III

Diz Marx, (pp.45) que “(...) o processo de produção capitalista em seu conjunto representa a unidade

do processo de produção e do processo de circulação. Aqui no Livro III não se trata de formular reflexões

gerais acerca dessa unidade, são, pelo contrário, de descobrir e expor as formas concretas que brotam do

processo de movimento do capital considerado como um todo”.

Em sua arquitetura, o Livro III mostra como se formam as rendas do capital, como essa

formação de renda resulta numa tendência geral e como, ao mesmo tempo, ela reverte nas

diversas formas de ativos rentáveis, tanto na esfera do capital a juros como na da renda da terra,

configurando a complexidade do mercado de capitais na produção industrial. Nesse percurso,

Marx apresenta uma teoria do lucro, uma teoria da formação do capital bancário e uma teoria do

modo de aplicação do capital. Observamos que nas Teorias da Mais Valia, vol. II, Marx

desenvolveu comentários minuciosos às teorias de Adam Smith e David Ricardo, sendo que no

relativo ao primeiro há uma observação que o situa acima de Ricardo, contrariando a opinião

difundida de que Marx teria Ricardo como seu antecessor privilegiado.

Page 206: A economia politica critica de marx

206

Nessa análise das rendas do capital, distinguimos três movimentos, que são os de

explicar a formação e as transformações do lucro até sua forma de lucro médio; de explicar a

tendência decrescente da taxa de lucro; e de decomposição da taxa de lucro nas formas com que

opera o capital, das mais móveis às mais imóveis. Nesse conjunto o movimento do comércio,

compreendendo a comercialização da produção e o comércio enquanto forma própria de

atividade, ocupam um lugar especial, em que Marx dedica o cap. XVI a analisar – e distinguir –

o capital que se dispõe a imobilizar-se em mercadorias com a única finalidade de trocá-las por

dinheiro; e o capital que assume o custo da imobilização para liquidar a produção industrial.

Nessa análise a nosso ver é preciso introduzir a diferença entre o comércio das economias pré-

industriais e o que se realiza como parte do conjunto das atividades da produção industrializada.

A primeira parte cobre a formação do lucro e a identificação de seus efeitos na definição

de um perfil geral de comportamento do capital, que é um processo cuja conclusão é a teoria da

tendência decrescente da taxa de lucro. A segunda parte ocupa-se das conversões entre formas

operacionais do capital, analisando a formação do capital financeiro nas transformações do

mercado de dinheiro. Finalmente, a terceira parte estuda as formas de reprodução do capital

baseadas no controle da terra, acompanhando a formação de valor nos ativos imóveis em sua

relação com o movimento geral de aplicação dos capitais.

O capítulo sobre o nivelamento da taxa de lucro é fundamental nesse conjunto e tem

diferentes significados, segundo se trata de um sistema produtivo que opera com um tema

produtivo que opera com um elenco de empresas que trabalham com taxas próximas da média,

ou se trata de um sistema que opera com grande dispersão de taxas de lucro. “O fato de que os

Page 207: A economia politica critica de marx

207

capitais que põem em movimento quantidades desiguais de trabalho vivo produzam quantidades desiguais

de mais valia pressupõe que o grau de exploração, ou a taxa de mais-valia, são os mesmos e que as

diferenças são compensadas. Isso pressupõe concorrência entre operários e migração.” (L.III, pp.180)

Ressaltamos de nossa parte que o extenso trabalho de Marx sobre a renda da terra tem

um fundamento histórico na teoria da acumulação primitiva e dois desdobramentos, a serem

mencionados agora e retomados adiante neste estudo como um capítulo especial. São eles, a

necessidade de explicar o papel do controle da terra – na realidade, o controle dos recursos

naturais – a reprodução de capital progressivamente mais complexo; e a necessidade de

desenvolver a teoria do controle dos recursos naturais, especialmente na do monopólio

energético em suas várias formas, e de explicar a formação do capital imobiliário em seu

conjunto124.

Isso tem diversas implicações, dentre outras, por exemplo, de considerar que a formação

da renda da terra tem uma relação indireta, entretanto orgânica, essencial, com os movimentos

de formação do capital financeiro. Longe de ser um aspecto da formação do capitalismo

industrial, a formação de um capital imobiliário continua sendo um componente essencial da

estratégia de reprodução do capital nas sociedades industriais avançadas.

A exploração capitalista da agricultura seria uma conseqüência da mobilidade do capital

“financeirizado”, que teria a capacidade de se deslocar entre esferas de aplicação de recursos, que

poderia comparar em sua perspectiva de retornos financeiros a escala. Não se pode, entretanto,

confundir essa visão de Marx, que depende de sua teoria de equivalência de valor – apresentada

124 Destacamos duas referências

marxianas nesse ponto: as

observações de Marx sobre a inter-

relação dinâmica entre cidade e

campo, na progressão histórica da

divisão do trabalho; e o trabalho de

Engels sobre a moradia.

Page 208: A economia politica critica de marx

208

no Livro I – com a comparabilidade atribuída pela teoria neoclássica de uma taxa interna de

retorno – Robert Solow, 1967 – que desdenha os aspectos de heterogeneidade do capital.

DIAGRAMA 5

Visão panorâmica da produção capitalista em seu conjunto

SEÇÕES TEMAS

1. Transformação da mais-valia em lucro

2. Transformação do lucro em lucro médio

3. Tendência da taxa de lucro

4. Capital comercial

5. Transformação do lucro em juros e capital

financeiro

6. Transformação do lucro em renda do solo

7. As rendas

Explicação da formação do lucro da taxa de

lucro

Na formação da taxa de lucro são essenciais a rotação do capital constante e as economias

de capital constante, que se realizam à medida que aumenta o capital total envolvido na

produção. A rotação do capital constante é um dado objetivo das alterações de composição dos

capitais envolvidos na produção, que reverte em incrementos de produtividade do trabalho. Por

Page 209: A economia politica critica de marx

209

sua vez, as economias de capital constante compreendem diversas formas de atuação das

empresas individuais, que se traduzem em modificações do ambiente de produção, inclusive

para alterar as tendências da formação da taxa de lucro. Há economias internas e externas, com

economias de uso de energia e das instalações125, aproveitamento de resíduos da produção126 e

economia mediante inventos. O fundamental é entender que a economia de capital constante é

parte essencial da perspectiva capitalista de gestão do valor acumulado.

A administração do capital constante reflete-se no sistema de preços, tornando

necessário ligar o movimento geral de acumulação, que se estende no tempo, ao tratamento das

condições imediatas de mercado. É preciso distinguir entre a amortização dos equipamentos já

em operações e a política das empresas para manejar problemas de amortização em seu capital

em seu conjunto. Nesse último ponto, aflora todo o relativo à formação de monopólios, que

permitem que as empresas monopolísticas manejem depreciação e amortização como se não

fossem operações sujeitas a risco.

O Livro III difere dos anteriores em vários aspectos, dentre outros, porque a participação

mais generalizada e profunda de Engels dá um toque de equilíbrio à estrutura do texto, e porque

a proposta de trabalho mesmo é de separar–se de volta da análise do desenvolvimento do

conceito, realizada no Livro II e retomar o desenvolvimento do processo em si, numa

perspectiva de totalidade127. No Livro III, Marx trata dos elementos constitutivos da produção

capitalista, já na qualidade de substantivos; e os sujeitos do processo – capitalistas e

trabalhadores – aparecem como coletivos organizados e não mais como participações genéricas.

A visão de um processo de estruturação social que muda intrinsecamente, tal como a

125 A questão das economias no uso

de energia é uma notável antecipação

do tratamento do modo energético da

produção, que envolve a relação entre

a composição de fontes, o modo e o

sistema de transmissão e os perfis de

uso de energia, na produção e para

consumo pessoal. A economia no uso

dos edifícios, obviamente está ligada

à anterior, mas refere-se ao

departamento específico do

desenvolvimento de uma tecnologia

da construção civil adaptada às

condições ambientais.

126 O aproveitamento sistemático de

resíduos modifica o sistema de

produção, levando a internalizar

novos processos de produção

derivados, com um significado

econômico muito além das economias

imediatas. Nesse sentido, a

reciclagem é um desdobramento

natural da expansão da produção

industrial.

127 A participação de Engels no

Livro III é decisiva. Em carta a

Victor Adler, ele faz as seguintes

recomendações sobre a leitura do

Livro III. Aqui são importantes na

seção I os capítulos I a IV, em troca

são menos importantes para a.

Page 210: A economia politica critica de marx

210

composição do capital, é uma idéia muito forte, que se impõe, a partir do momento em que a

composição do capital é usada como meio para fundamentar a diferença entre a esfera dos

comportamentos individuais e os comportamentos coletivos, que se apresentam como

comportamentos de classe.

Não se trata de construir um modelo explicativo, mas de expor o movimento histórico

da formação do capital no ambiente que ele próprio cria. Em vez de construir o complexo

andaime do edifício, trata-se de mostrar como ele se constrói de dentro para fora. Por isso

mesmo, dessa parte de O Capital emerge outro modelo, que é o de explicação da dinâmica do

capital através de uma teoria do lucro. Ora, a formação do lucro é o resultado de uma dinâmica

das relações de produção cujo eixo é a exploração.

No Livro III apresenta-se o grande movimento da acumulação do capital em contraponto

com sucessão de movimentos de conversão de umas formas de capital em outras, que sustenta

aquele grande movimento. Nele, ascendem as formas mais móveis e mais voláteis do capital,

frente às imóveis e mais lentas. A revelação do capital financeiro surge junto com a das

simbólicas, cuja presença se descortina plenamente em todas as formas do capital no capitalismo

maduro. Segundo o próprio Marx, trata-se de “descobrir e expor as formas concretas que brotam do

processo de movimento do capital como um todo” (L.III, pp.45). Mas uma leitura progressiva –

regressiva tal como propõe Sartre, mostra outro objeto de análise. No Livro III desenvolve-se

uma teoria da dinâmica interna do capitalismo que, além disso, oferece os elementos de uma

teoria da mobilidade social, que será um tema obrigatório do estudo das economias periféricas.

armação geral.os capítulos V,VI e

VII. Seção II. Importantíssimos, os

capítulos VIII,IX e X. Pode-se ler de

passagem os XI e XII. Seção III.

Toda ela importantíssima. Seção IV.

Muito importante também e de fácil

leitura os capítulos XVI a XX.

Seção V Importantíssimos os

capítulos XXI a XXVIII. Menos

importante o XXVIII.Importante o

capítulo XXIX. Carecem de

importância os capítulos XXX a

XXXII.São importantes os capítulos

XXXII a XXXIV. Sobre as trocas

internacionais, o XXXV e é

interessante o XXXVI.Seção VI...

são importantes os capítulos

XXXVII e XXXVIII. Menos

importantes, o XXXIX, o XL, o

XVLI, XVLII. Seção VII. Muito

bela. Infelizmente, fragmentária e

com fortes marcas da insônia.

Page 211: A economia politica critica de marx

211

O Livro III acompanha a formação das remunerações do capital, segundo elas surgem

nos âmbitos operacionais do capital e vão ao âmbito da formação dos juros. O capital move-se

em busca de aumentar o lucro total que obtém do que desembolsa128. Para isso, usa seu controle

das condições de trabalho e do contrato de trabalho.

A condução dos interesses do capital para autoreproduzir-se, faz-se a partir da taxa de

lucros, que deve ser vista como a expressão financeira da mais valia. Isso significa que os

capitalistas específicos operam com o referencial de um espectro de lucros nas condições

específicas de cada economia nacional em cada momento histórico. A cada capitalista em

particular, esse espectro de situações de lucro aparece representado por uma taxa média de lucro,

frente à qual se situam as situações específicas de lucro de cada aplicação de capital. O problema

teórico de esclarecer a taxa média de lucro, por extensão, é o de situar a lucratividade do capital

frente a situações específicas de acumulação e de constituição do mercado, ou ainda, de expor à

luz a relação entre a acumulação realizada e a capacidade de acumular.

A análise da formação da taxa de lucro parte da diversidade específica de situações em

que os capitais são aplicados, que se representa pela composição orgânica e pela rotação do

capital. A diversidade dos capitais está, em todo caso, demarcada pela esfera nacional, onde a

estruturação institucional corresponde à estruturação dos meios de produção. Assim, podemos

dizer que há um fundamento institucional na opção doutrinária de trabalhar com a noção de

taxa média de lucro. Ora, na perspectiva dinâmica cm que trabalha Marx, a taxa média de lucro

é proporcional à composição orgânica e às transformações do mercado, pelo que, será sempre

inseparável da tendência à queda da taxa de lucro.

128 Há uma questão relativa a

quanto os capitalistas conseguem

desembolsar. Na realidade, os

capitalistas têm que desembolsar o

suficiente para pelo menos reproduzir

o capital que já acumularam. Isso

envolve que haja condições objetivas

de mercado para isso e que os

capitalistas saibam usar seu capital.

Nesse ponto, entra o argumento de

Max Weber, sobre a competência dos

capitalistas.

Page 212: A economia politica critica de marx

212

A conversão da mais-valia em lucro

e da taxa de lucro em taxa de mais-valia

No Livro III, Marx parte de uma revisão da formação do lucro dos capitalistas individuais,

distinguindo o preço de custo do custo em valor. Distingue o que custa ao capitalista e o que

custa de fato produzi-la. “O custo capitalista mede-se pelo investimento e o custo real pelo investimento

em trabalho” (L.III, pp.46). Formação de preço, que depende de mercado; e formação de valor,

que resulta da organização social da produção. Logicamente, a mais valia não é parte do custo do

capitalista, mas entra a formar seu lucro. A determinação do lucro aparece através da distinção

entre preço de custo (custo ao capitalista) e custo em valor (custo social). A diferença surge,

primeiro, de que nos custos do capitalista não está o valor representado pela mais valia.

Segundo, ele aparece porque o capital variável desembolsado (trabalho realizado em etapas

anteriores do processo produtivo) não entra na produção, senão é substituído por força de

trabalho (trabalho novo).

A seguir, Marx embrenha-se numa análise do mecanismo de uso da mais valia na

produção, que conclui numa proposição que situa o rumo da análise do Livro III, qual seja, de

que “Assim, a mais valia sai, tanto do capital desembolsado, que entra no preço de custo da mercadoria,

como da parte que não entra nela; noutras palavras, sai tanto do capital fixo como do circulante” (L.III,

pp. 53).

Page 213: A economia politica critica de marx

213

Marx começa por examinar a formação da taxa de lucro, que é o ponto de partida da

explicação do mecanismo motor da produção capitalista. Aqui temos uma diferença

fundamental em relação com a teoria de Ricardo. Enquanto Ricardo vê os lucros dos capitalistas

como um componente variável na formação do produto social, que tende a minguar, por efeito

da rigidez dos salários e das rendas, bem como da concorrência entre capitalistas, Marx parte da

formação do lucro individual, para mostrar que os capitalistas extraem primeiro seu lucro, para

então remunerarem o trabalho.

A questão está realmente na relação entre a taxa de lucro e a de mais valia. O

desempenho dos capitalistas individuais em geral decorrerá dos resultados que obtenham na

captação de mais valia na formação da taxa de lucro. Para acompanhar essa análise de Marx, é

preciso considerar dois aspectos: o fundamento que lhe permite trabalhar com a hipótese de uma

taxa de mais valia invariante e os elementos que permitem trabalhar com variações do capital

constante, em quantidade e composição.

A hipótese de uma taxa de mais valia invariante explica-se em função de pressupostos

sobre a composição do capital, que a rigor só se modifica em conseqüência de alterações do

sistema produtivo em seu conjunto, jamais por um fator isolado. Mesmo assim, a suposição de

uma taxa de mais valia invariante é um recurso provisório, e só pode ser aceita enquanto se

trabalha com uma dada etapa da acumulação.

O que situa a posição do capitalista frente à acumulação não é o fato geral do lucro, senão

o fato específico da taxa de lucro, isto é, a medida da capacidade do capitalista para extrair lucro

daquela proporção de capital variável que mobiliza mediante seu desembolso de capital

Page 214: A economia politica critica de marx

214

constante. A venda, que é a unidade mínima do movimento de circulação, se realiza também

como manifestação do tempo de circulação129. Já vimos, pelo exposto no Livro II, que o tempo

de circulação resulta das condições de rotação do capital.

Não se pode perder de vista que o objetivo do Livro III é verificar como a formação da

taxa de lucro influi no movimento da produção capitalista em seu conjunto, que é a grande

resposta à tese do estado estacionário da Escola Clássica e à tese da tendência do sistema à crise.

Por isso, uma vez estabelecido como a taxa de lucro é internamente regulada pela taxa de mais

valia, Marx passa a examinar como ela é externamente regulada pela gestão do capital constante

no sistema, primeiro pela rotação do capital, que acontece no processo de circulação, e logo, pelo

modo de uso do capital constante, onde se obtém economias. No desenvolver dos argumentos

do Livro III vê-se que a gestão do capital constante se torna o ponto focal da condução do capital

em seu conjunto.

A questão das variações do capital constante revela-se progressivamente mais

complicada, porque envolve as modificações do ambiente de mercado e as estratégias dos

capitalistas individuais, tanto quando elas resultam em tendências gerais como quando

aparecem como eventos esporádicos. Marx considera duas linhas básicas de estratégia dos

capitalistas, que são as de usar os acréscimos de capital constante como meio de ampliar a

captação de mais valia; e as de fazer economias de capital constante. Observe-se que o conjunto

dos argumentos que regem a relação entre a gestão do capital e o meio ambiente aparece como

iniciativas determinadas pelo interesse dos capitalistas de obter renda do aproveitamento de

resíduos do que por qualquer espécie de altruísmo. (L.III. Cap. VI).

129 Encontra-se aqui uma questão que

foi passada por alto pela teoria

econômica, ou que ficou fora do

campo de visão da análise estática,

que corresponde ao ajuste entre os

tempos de produção e os de

circulação, que, logicamente, se

realiza de diferentes modos e

velocidades, segundo avançam a

acumulação e o aumento de densidade

de capital por homem ocupado. No

entanto, esse ajuste se desloca

segundo a circulação se desenvolve e

se reflete na estruturação do

mercado, tanto como as modificações

na produção. Marx assinala que o

processo direto de produção e o de

circulação “se cruzam” modificando-

se mutuamente.

128 Há uma questão relativa a

quanto os capitalistas conseguem

desembolsar. Na realidade, os

capitalistas têm que desembolsar o

suficiente para pelo menos reproduzir

o capital que já acumularam. Isso

envolve que haja condições objetivas

de mercado para isso e que os

capitalistas saibam usar seu capital.

Nesse ponto, entra o argumento de

Max Weber, sobre a competência dos

capitalistas.

Page 215: A economia politica critica de marx

215

Assim, não se pode desconsiderar que há alguns dados básicos das condições de gestão

dos capitais individuais, que permitem inferir alguns comportamentos básicos, mas que os

situam em relação com os movimentos de preços, isto é, com as tendências de mercado. Já ao

distinguir as diferenças entre os componentes móveis e imóveis do capital – patrimônio e capital

produtivo – Marx estabelece referências dos padrões individuais de comportamento, que põem

limites da própria generalização.

Mas essas situações individuais não são base suficiente para explicar os comportamentos

dos capitalistas independentes, porque não se trata de situações similares, senão de uma

pluralidade de capitais de diferente composição orgânica130. Pelo contrário, Marx parte,

justamente, da diversidade da composição orgânica, como dado inicial da análise da conversão

do lucro em lucro médio.

As diferenças de composição orgânica devem ser vistas em dois níveis: ao nível dos

capitais individuais e ao dos setores de produção. Essas diferenças resultam numa diversidade

das taxas de lucro, cuja consistência em princípio só se explica mediante diferentes tempos de

rotação do capital aplicado131. Esse é o argumento usado por Marx para explicar o que podemos

chamar de equilíbrio interno da taxa de investimento.

130 Esse é um ponto específico em que

o conceito de totalidade separa a

análise de Marx da que se

desenvolveu na esfera do

marginalismo. A premissa de que o

sistema funciona com diferentes

composições orgânicas de capital

torna inaceitável um raciocínio linear

de agregação da esfera do individual

para a do coletivo, como foi feito por

Schumpeter em sua reapresentação

do princípio do fluxo circular e como

faz a macroeconomia neoclássica.

131 Observe-se que esse argumento

praticamente não se modifica quando

se admitem diferentes estruturas de

mercado.

Page 216: A economia politica critica de marx

216

A taxa média de lucro

A formação da taxa de lucro é o grande argumento que se desenvolve no Livro III, para

explicar a transformação da produção capitalista em seu conjunto. No que se pode denominar de

administração do capital, Marx deixa, outra vez, em aberto a diferença entre as condições de

gestão de capitais individuais e uma visão de conjunto da auto-organização em relação com a

pluralidade de condições de rentabilidade. Tal auto-organização, obviamente, só pode ser

explicada à luz de dados da formação histórica do mercado, que, na prática, significa considerar

como se formam as margens de controle do mercado. Nesse ponto, entretanto, (L.III, pp.164),

Marx limita essa argumentação às condições de concorrência, que podem ser tomadas como essa

referência ao mercado, mas que não necessariamente contemplam a progressão de desigualdade

no mercado.

A formação da taxa de lucro descansa sobre a composição do capital e a escala de

produção, em que os capitais individuais têm que ser administrados de modo a procurarem

aquelas condições de participação no mercado que evitam um desempenho inferior ao geral.

Para explicar esses comportamentos individuais, Marx recorre, de volta, à discussão da

composição, recuperando a análise da composição técnica, que toma como aquela restrição

operacional do sistema que regula a composição de valor. Nessa argumentação, observamos dois

ou três momentos que devem ser explicitados. Primeiro, as diferenças de taxa de lucro em um

Page 217: A economia politica critica de marx

217

país resultam de diferenças de rotação dos capitais, além das diferenças de composição

orgânica132.

A necessidade lógica de explicar um comportamento homogêneo dos diferentes capitais,

portanto, de capitais estruturados sobre diferentes composições técnicas, leva Marx, adiante, no

capítulo X, a trabalhar com a hipótese de uma compensação dos lucros, que funciona como

referência das novas aplicações. Tal hipótese sustenta-se sobre dois pressupostos, que são os de

perfeita substutibilidade de produtos, isto é, de que as funções dos produtos são equivalentes,

como meios de produção ou como meios de consumo; e de perfeita mobilidade dos

trabalhadores, que, logicamente, significa que as expressões trabalho simples e trabalho

complexo representam situações de domínio de técnicas de produção e capacidade econômica de

deslocar-se de um local de trabalho a outro. Ambas as premissas são simplificações, que só

podem ser admitidas como provisórias. Na realidade, essas hipóteses só são válidas em

condições plenamente concorrenciais, isto é, igualmente concorrenciais para os capitais e para os

trabalhadores. Tal pressuposto, sabemos, é externo a cada situação específica de cada capital

específico, obrigando a deslocar a análise para o plano de uma macroeconomia dinâmica.

Nesse ambiente concorrencial, a taxa de lucro se forma na negociação de um certo elenco

de mercadorias, que têm diferentes funções, como meios de produção ou como meios de

consumo, ou alternando-se entre essas duas funções. Na análise da formação da taxa de lucro

(L.III, pp. 192 a 194), Marx recorre às propriedades técnicas desse elenco de mercadorias, onde as

diferenças de qualidade e de condições de produção ensejam o lucro do comércio. É preciso

ressaltar que esse capítulo X oferece os fundamentos de uma teoria da economia do comércio,

132 Nesse ponto, é fundamental

lembrar que a composição orgânica é

a composição de valor qualificada

pela composição técnica.

Page 218: A economia politica critica de marx

218

que, surpreendentemente, deixou de ser um tema explorado pelos economistas, que

desconsideraram o poder do comércio na determinação do sistema de produção. O lucro do

comércio surge da circulação de mercadorias e de dinheiro, e tem o poder de sinalizar quais

mercadorias podem ativar o capital já incorporado no sistema. Por exemplo, a comercialização

de óleo de arroz indica uma possibilidade de uso da capacidade de produção existente na

produção de óleos vegetais. Como o lucro do comércio depende da rotação de mercadorias, há

uma tendência a preferir mercadorias que se vendem com mais facilidade.

O capítulo XI trata da relação entre a formação da taxa de lucro e a taxa de salário, isto é,

trata da relação entre o padrão distributivo e a composição dos investimentos. Aí, há uma

pergunta inevitável, sobre se a composição dos investimentos necessários pode ser alcançada

sem que se altere a composição dos salários. Os deslocamentos entre preços e lucros explicam se

os capitalistas estão dispostos a absorver salários mais altos, ou se eles precisam pagar os salários

necessários para realizar os investimentos necessários. Marx mantém essa argumentação no

nível da relação entre a taxa de lucro e a taxa de mais valia, o que, logicamente, leva a discutir a

tendência da taxa de lucro, que, efetivamente, aparece no famoso capítulo XIII, dedicado à

tendência decrescente da taxa de lucro. Parece-nos fundamental marcar que a explicação do

nivelamento da taxa de lucro exige introduzir um argumento que dê conta da ligação entre a

composição técnica do capital acumulado e a do novo capital que se forma. Tal leitura da

progressão técnica do sistema só surge da compreensão da totalidade do modelo e não está em

nenhum capítulo específico.

Page 219: A economia politica critica de marx

219

A tendência decrescente da taxa de lucro

A tendência à queda da taxa de lucro é a lei inerente ao sistema de produção capitalista. O

essencial do pensamento de Marx sobre a tendência da taxa de lucro é que ela tende a declinar

porque o capital tem sucesso em aumentar a proporção de capital constante sobre capital

variável.

A questão da tendência geral do sistema de produção é um tema essencial da Economia

Política, que se trata em duas grandes vertentes, segundo essa tendência é associada a uma

tendência igualmente essencial, a que o sistema opere mediante flutuações cíclicas, ou segundo

se considera que as flutuações são incidentais133. O fundamento dos ciclos está em causas

naturais, ou eles derivam do modo de funcionamento do sistema produtivo? Marx distanciou-se

de Ricardo em dois pontos principais: atribuiu os movimentos cíclicos às mudanças de

composição do capital, portanto, ao dinamismo do movimento do sistema; e juntou um

argumento micro econômico com a visão macro econômica do problema. Para Marx, trata-se de

uma tendência a uma queda relativa da taxa de lucro, conseqüente da diminuição da proporção

de capital variável na formação do produto social, isto é, de um movimento que está

umbilicalmente ligado às tecnologias empregadas na produção.

A questão geral da tendência à queda da taxa de lucro traduz-se na questão específica do

perfil do ciclo.

133 São flutuações de uma

determinada demanda, ou são

alterações progressivas da

composição do capital? A noção de

variações progressivas, significa

alterações de uma progressão, cujos

deslocamentos requerem alterações

progressivas da composição da

demanda.

Page 220: A economia politica critica de marx

220

Ao completar o percurso teórico que vai até a lei da taxa decrescente de lucro, Marx

apresenta movimentos que contrapõem essa tendência, destacando o aumento da taxa de

exploração. Ora, o aumento da taxa de exploração é, justamente, o que acontece quando os

salários são contidos e reduzidos, enquanto aumenta a produtividade do trabalho.

O aparecimento e o funcionamento do capital a juros

Uma vez que estabelece como se forma o lucro e determina seu papel na reprodução do sistema

de produção, Marx passa a analisar como se divide o lucro, examinando aquela parte do dinheiro

que passa a ser usado como capital. A taxa média de lucro define um mercado para as operações

a juros, em que a uma proporção constante entre os juros e o lucro total, o capitalista produtivo

estará disposto a abrir mão de uma parte dos lucros, para realizar um ganho que de outro modo

não obteria.

A taxa de juros obedece a tendências históricas do mercado. A taxa de juros sobre quando

é preciso tomar dinheiro custe o que custar, para pagar pendências da reprodução do capital.

Seguindo essa mesma lógica, diremos que só quando se trata de pagar necessidades de capital

para investimentos impostos pela própria acumulação e para pagar dívidas acumuladas.

Page 221: A economia politica critica de marx

221

Segundo Marx, os juros caem primeiro, pela oferta de dinheiro dos rentistas; e segundo,

porque o desenvolvimento do sistema de crédito permite concentrar poupança e aumentar a

oferta de dinheiro.

Assim, o desenvolvimento do sistema faz mudar o papel das operações com capital

mercadoria. Para Marx, o essencial da formação de um mercado de juros é que a divisão entre

partes do capital produtivo e do capital a juros dá lugar a uma divisão qualitativa do mercado,

pela qual se definem as funções dos capitalistas produtivos e dos prestamistas, com o

esclarecimento de que ambas as funções estão predeterminadas pelos tempos do capital

produtivo. A equivalência em termos de tempo de imobilização faz com que todos os

capitalistas, inclusive os que trabalham com dinheiro próprio, considerem a imobilização do

dinheiro mercadoria como referência desse mercado. A estratégia do capital, por conseguinte,

consistirá em aumentar a velocidade de rotação, reduzindo os custos da imobilização. No

entanto, precisamos observar que a possibilidade prática de executar essa estratégia depende da

disponibilidade de opções de aplicação de capital, que é um dado da extensão e da diversidade do

mercado.

Nesse ponto Marx enfrenta o problema da separação dos papéis do capitalista

prestamista e do empresário. A divisão qualitativa entre capitalista e empresário acontece no

contexto específico do mercado em que se formam os juros. Como todo capitalista em princípio

tem acesso à função de prestamista, verificam-se duas posições, que são parte da lógica do

capital. Diz Marx, que “o capital a juros é o capital como propriedade, frente ao capital como função”

Page 222: A economia politica critica de marx

222

(L.III, pp. 363). Daí, nesse conflito de interesses com o prestamista, o capitalista reveste-se de

funções de vigilância, tornando-se um superintendente.

O capital a juros passa a ser a denominação geral do movimento de formação de capital

que está sujeito – ou que pode ser operado – mediante essa relação de mercado. Diz Marx (L.III,

pp.379), que “o processo de acumulação de capital pode ser concebido como uma acumulação de juros

compostos sempre e quando se puder chamar de juros àquela parte do lucro que se converte de novo em

capital, isto é, que serve de novo para absorver trabalho sobrante” (L.III, pp.379).

Crédito e capital fictício. No capítulo XXV Marx volta-se para o processo específico do

comércio de dinheiro, advertindo que ele progride por suas leis próprias, mas fundamenta sua

análise nos resultados na observação da crise de 1847, cujo fundamento foi um desastre agrícola.

No capítulo seguinte apresenta-se uma antecipação do funcionamento da produção

conduzida por grandes corporações, cujo principal traço é a separação entre as funções de gestão

do capital e de gestão das empresas, em que os usos do crédito transcendem suas finalidades

imediatas, tornando-se um modo de abaratamento do uso do capital em geral. Mas essa revisão

das funções do crédito resulta em retomada da avaliação do papel dos meios de circulação no

funcionamento do sistema, o quer dizer, a capacidade das moedas como meio de circulação, ao

tempo em que uma reconsideração do papel do circulante. Aí se coloca a questão do

financiamento do sistema produtivo em seu sentido mais amplo, isto é, compreendendo a

provisão de dinheiro para reprodução do capital produtivo e de dinheiro para novos

empreendimentos.

Page 223: A economia politica critica de marx

223

A questão não se esgota com reconhecer que se trata de capital monetizado, já que o

dinheiro nesse caso torna-se o meio pelo qual o capital ganha capacidade de se deslocar entre

formas de inserção no sistema produtivo. Na verdade, o problema se desloca para a análise do

papel do capital a juros na reprodução do capitalismo avançado. Como surge o capital a juros e

qual seu papel? A transformação do lucro em capital a juros é o grande movimento que Marx

analisa nos capítulos XXX a XXXIII e que abrange dois grandes movimentos: a expansão de

capital dinheiro correspondente ao aumento genuíno da circulação; e a expansão do capital a

juros, que constitui uma denominação de dívidas anteriores geradas no processo produtivo, mas

que de fato já não são parte dele. No sistema capitalista passa a haver um problema concreto,

relativo à reprodução desse capital fictício ou dessa sombra de capital.

A produção capitalista leva a uma acumulação de capital dinheiro cuja reprodução requer

que esse capital encontre aplicações produtivas. A taxa de juros acompanhará a demanda de

dinheiro para novos negócios. Uma vez identificado que a produção capitalista gera capital

dinheiro, com sua própria lógica, com seu modo de reprodução que é a operação do crédito,

torna-se inevitável a discussão do papel do crédito na produção capitalista. Marx identifica o

papel do crédito nos seguintes pontos:

Necessidade do sistema de crédito como veículo para compensar as taxas de lucro.

Diminuição dos gastos de circulação. (Trata-se de economia de dinheiro, que se

obtém reduzindo o uso de dinheiro em muitas transações; acelerando a circulação do meio

circulante; substituindo dinheiro ouro por papel moeda)

Page 224: A economia politica critica de marx

224

Aceleração da circulação na metamorfose das mercadorias, que resulta em

contração do fundo de reserva.

Ampliação da escala de produção com as sociedades anônimas cobrindo áreas

inacessíveis às empresas individuais e abrindo espaço para a transformação de capitalistas em

gerentes134.

É um problema da reprodução ampliada do sistema, que se infere desse desenvolvimento

da argumentação de O Capital. O aumento da quantidade de capital dinheiro – característica das

economias que já enriqueceram – que pode optar por voltar ao mercado apenas como capital de

empréstimo, cria uma divisão entre os capitalistas prestamistas e os capitalistas empresários,

cujos desdobramentos Marx associou ao desenvolvimento da sociedade por ações e aos meios à

disposição do capital bancário. Observamos que os comentários incluídos por Engels,

especialmente no cap. XXVIII sugerem que se ponha mais atenção ao aspecto de composição

do capital dos novos investimentos.

A parte mais desenvolvida do capital é a que se movimenta na esfera mais intensamente

penetrada pelas formas financeiras do capital. Essa parte do capital apóia-se numa combinação

de dois movimentos, que são os de acumulação de capital dinheiro e de desenvolvimento de

novos papéis do crédito na produção capitalista. Parece-nos essencial destacar que o crédito

assume novos papéis, justamente, nas economias mais avançadas, desde as quais se irradia sobre

as demais. O dinamismo do crédito é o do capitalismo avançado. O desenvolvimento do crédito

resulta em alterações do circulante. A função dos bancos apóia-se no circulante.

134 Nesse ponto insere-se uma

excepcional nota de Engels sobre o

adiantamento das formas de empresa

como um elemento dinâmico desse

processo, a nosso ver precursora das

análises de empresa que se colocam

numa perspectiva macroeconômica. É

algo a ser retomado, noutro desenho

de análise, em que se supere essa

aparente circunstância, de que a

empresa seja unicamente uma

referência de análise microeconômica,

e que não a situam como um

componente de uma visão macro

econômica dos interesses do capital.

Page 225: A economia politica critica de marx

225

Uma vez colocada a questão relativa ao papel do crédito nas transformações da produção

capitalista, Marx enfrenta a necessidade de penetrar na constituição do capital bancário, que é o

lugar da produção capitalista onde o dinheiro aparece como capital monetizado (“moneyed

capital”), isto é, como capital a juros. Compreende moeda e títulos e valores, que se transformam

em valores comerciais, letras de câmbio, valores públicos, letras do Tesouro e ações. Esse

conjunto compreende o capital dos bancos e os empréstimos (“banking capital”). Todo esse

material está integrado por uma relação de equivalência.

Essa análise toma novo impulso a partir do capítulo XXIX – As partes integrantes do

capital bancário – que penetra na constituição do capital bancário. A formação do capital

bancário põe a produção capitalista diante de outra escala de oportunidades de reprodução do

capital, cujo pleno significado só pode ser apreciado na perspectiva de dinâmica da

transformação do sistema de produção, que é a do ajuste do capital dinheiro com o capital

efetivo. Em sua evolução, o capital aplicado traduz-se em requisitos diferenciados e crescentes

de capital dinheiro (o financiamento da produção) que, entretanto, enseja uma circulação

adicional (a especulação).

Há, portanto, um problema genuíno, relativo à acumulação de capital-dinheiro, que

envolve a relação geral entre o dinheiro como tal e as moedas específicas e que controla as

condições específicas em que a acumulação pode se sustentar no uso de certas moedas. A

conversibilidade das moedas indica essas condições de uso das moedas por parte dos capitais e

que foge das condições institucionais com que cada país administra seus problemas monetários.

Page 226: A economia politica critica de marx

226

A acumulação de capital-dinheiro resulta numa riqueza – dinheiro, que denomina

dívidas sociais em geral, especialmente, dívida pública, que passa às mãos do sistema bancário,

portanto, que é uma riqueza que depende das condições de sustentação das moedas específicas.

Isso explica porque, diz Marx, está constituída de vestígios de transações concluídas, portanto,

que é um capital fictício. No entanto, esses títulos e obrigações funcionam como capital para

seus proprietários, que são os banqueiros ou outros agentes que se tornam análogos a eles135.

A mutação na transformação do sistema acontece mediante a transformação do capital

dinheiro em capital de empréstimo, que é como as dívidas socialmente acumuladas tornam-se

um meio de viabilizar a acumulação. Como vimos antes, nessa transubstanciação do capital

dinheiro valorizado encontra-se o germe da incerteza do capital financeiro em seu conjunto.

Diremos que o capital financeiro cria as condições objetivas para que o capitalista como tal

emerja do constrangimento de sua situação de proprietário de equipamentos e de seus vínculos

com empreendimentos específicos, e aja exclusivamente com a lógica do capital. É uma idéia

que surge da observação das conversões entre formas do capital, que o controle de certo conjunto

de equipamentos se torna um constrangimento para os capitalistas, tal como suas próprias

condições de treinamento e de qualificação.

Toda essa análise vai se converter no estudo da transformação do capital dinheiro em

capital de empréstimo e vai apontar o caminho pelo qual se identifica a concentração do capital

com a formação do lucro extraordinário.

135 A chamada desintermediação é o

mecanismo pelo qual empresas

comerciais – supermercados e outros

– emitem cartões de crédito e

financiam vendas a prazo , operando

como bancos de varejo ao

consumidor.Essa função se torna um

mecanismo adicional de controle do

consumo através do controle do

crédito aos consumidores. Uma parte

cada vez maior das transações

financeiras se realiza sem a

participação das instituições

financeiras oficializadas.

Page 227: A economia politica critica de marx

227

A FORMAÇÃO DA RENDA FUNDIÁRIA

Preliminares

A questão da renda recebe uma atenção especial de Marx desde sua revisão das idéias dos

Fisiocratas, que aparece nas Teorias da Mais Valia e reaparece no Livro II de O Capital. A

questão fundamental é que os Fisiocratas viram a agricultura como única fonte possível de

produção de mais valia e, por isso, direcionaram a tributação para esse setor. Depois de traçar a

influência das idéias dos Fisiocratas em Adam Smith, Marx aponta que o desenvolvimento da

produção industrial subordinou a formação de capital na produção rural e deslocou o eixo na

produção de mais valia na sociedade em seu conjunto. A nosso ver, aí se encontra uma mudança

radical na análise econômica, que passa a poder perceber a produção de mais valia como um

resultado dos incrementos de produtividade e como um traço da produção capitalista em seu

conjunto. A rigor, essa inversão da análise da renda da terra submete a análise setorial às

grandes determinações da formação de capital. Com Marx, a análise da agricultura, tal como a

da indústria, torna-se uma análise intersetorial.

Há dois problemas iniciais para esclarecer no relativo ao tratamento dado por Marx à

questão da renda da terra, que surgem, respectivamente, de sua suposição de que toda produção

rural é capitalista, e de entender que há um resíduo que não é absorvido, que finalmente é a taxa

Page 228: A economia politica critica de marx

228

diferencial do capital. Esses fundamentos têm que ser revistos por nós, porque desconhecem a

pluralidade da economia rural – desigualmente conduzida e os efeitos da colonização, hoje da

concentração do capital. Esses problemas iniciais estão ligados à questão que aparece na parte

final da análise marxiana da renda da terra, que corresponde à explicação da renda capitalista da

terra e que se resume em que o capital alcance uma renda compatível com o capital acumulado.

O condicionamento da renda da terra às condições da exploração capitalista levanta um

problema histórico concreto relativo ao preço das terras. Veremos que Marx aborda esse

problema de preços em dois níveis, expondo a ambigüidade da relação entre a fixação de preços

das terras pelos proprietários capitalistas e pelos capitalistas arrendatários.

A teoria da renda fundiária de Marx desenvolve-se num sentido oposto ao da teoria da

renda da terra de Ricardo, levando-a à condição de parte integrante da formação do capital nos

segmentos mais avançados do sistema tanto como nos mais atrasados. Historicamente, o

problema se coloca com a inserção da produção rural no contexto da produção capitalista,

quando ela deixa de ser a única possibilidade de se gerar e captar mais valia, para ser uma

modalidade de produção condicionada pela produção industrial136.

Para Marx são duas situações completamente diferentes, de pretender-se explicar como

surge a formação de valor nos usos da terra, ou de se tratar de explicar a formação de uma renda

capitalista da terra, que só pode ser compreendida como parte do espaço de opções do capital

avançado, que controla a renda extraordinária. Algumas citações iniciais são reveladoras desse

caráter da renda fundiária.

136 Ver a exposição de Marx nas

Teorias da Mais Valia, na parte que

crítica a formulação dos Fisiocratas.

Page 229: A economia politica critica de marx

229

“Partimos do principio de que a agricultura, tal como a indústria, está dominada pelo regime

capitalista de produção, isto é, que a agricultura é explorada por capitalistas que de momento só se

distinguem dos demais capitalistas pelo elemento em que investem seu capital e sobre o qual recai o

trabalho assalariado.”

Isso significa que a agricultura será regida por uma composição técnica do capital que

não pode ser percebida por separado da composição orgânica do capital no sistema produtivo em

seu conjunto, portanto, que interdepende da composição técnica do capital na indústria137.

A premissa de que a agricultura caiu sob o império do regime capitalista de produção implica que

domina todas as formas de produção(...) e que se dão em sua plenitude as condições que o caracterizam,

tais como a concorrência dos capitais, a possibilidade de que estes se transfiram de um ramo de produção a

outro...

Não vale, portanto, objetar que existiram e existem outras formas de propriedade territorial e de

agricultura. Essa objeção pode ser dirigida aos economistas que consideram a produção capitalista na

agricultura e a forma de propriedade territorial, não como categorias históricas senão como categorias

eternas138.

O objetivo de Marx, portanto, é conhecer como a forma adequada da propriedade territorial

é criada pelo próprio regime de produção capitalista, ao submeter a agricultura ao império do capital, com

o que a propriedade feudal e a pequena propriedade camponesa combinadas com o regime comunitário,

convertem-se, também, em forma adequada a esse regime de produção, por mais que suas formas jurídicas

possam diferir. L III, pp.575

137 A escala de complexidade do

problema só se revela por completo

quando se vê que o recuo do

assalariamento envolve a necessidade

de novos modos de uso do tempo dos

trabalhadores.

138 Veremos adiante que essa

observação leva a organizar a análise

da produção rural considerando que

as formas de produção rural passam

por modificações, assim como, que

algumas formas de produção são

substituídas por outras. No nosso

caso, por exemplo, até a pecuária

extensiva incorpora inovações

técnicas e o conceito de eficiência na

produção produto por produto se

substitui por um conceito de

eficiência no uso da força de trabalho

em seu conjunto.

Page 230: A economia politica critica de marx

230

Aspectos gerais

Há duas observações principais sobre a teoria da renda da terra em Marx: a renda da terra

surge de movimento do capital no campo e se realiza em condições de mercado. O movimento

de expansão do capital faz com que haja capitais disponíveis para investir na produção rural.

Haverá demanda de terra na medida em que os resultados efetivamente obtidos da produção

rural sejam comparáveis com outras aplicações; e na mesma proporção em que a incerteza dos

custos e dos resultados da produção rural seja aceitável frente aos padrões de incerteza dos

demais setores da produção.

O essencial da abordagem de Marx sobre a formação da renda fundiária consiste em

distinguir que as formas de propriedade são historicamente determinadas, portanto, que não são

permanentes; e que o mecanismo da formação da renda territorial está na “diferença entre a

renda do solo e os juros do capital incorporado nele”. (L.III, 589). “A propriedade territorial, tal

como todas demais formas de propriedade, responde a uma necessidade histórica transitória e

também, por conseguinte, às relações de produção e de troca que dele se derivam” (L.III, Idem).

Diferente e ao contrário de Ricardo, Marx vê a renda da terra no contexto do capitalismo, como

resultado da aplicação rural do lucro extraordinário obtido do conjunto das aplicações de capital.

Logicamente, Marx raciocinou em termos da formação da renda na Europa – tomando a

América e a Ásia como contrapontos – portanto, sem ter razão alguma para considerar aquela

propriedade fundiária patrimonialista do sistema colonial139. Está claro que, se se começa por

139 A reflexão sobre a formação da

renda fundiária no Brasil impõe que

se faça uma revisão dos fundamentos

históricos do problema. Primeiro,

pela combinação de formas

autenticamente capitalistas com

formas pré-capitalistas garantidas

pelo controle político e com formas de

produção baseadas em extrativismo,

que se organizou, com diferentes

matizes, desde o fim do tráfico de

escravos. Segundo, pelo conjunto dos

privilégios que cercaram a condução

da modernização conservadora no

campo, em seus diversos aspectos, que

esteve associada ao controle da

mercantilização das terras. O

essencial no caso é um processo de

redistribuição de terras, que

compreende os dois aspectos, de

reforma agrária e de concentração de

terras por parte de grandes capitais,

em que a reforma agrária se

identifica com soluções tecnológicas

pouco rentáveis, enquanto a

concentração de terras se identifica

com opções tecnológicas de alta

eficiência. No Brasil não há como

ignorar que o processo de

Page 231: A economia politica critica de marx

231

estabelecer que o estudo da renda fundiária parte das condições de desenvolvimento do

capitalismo, será inevitável ter que considerar que as condições de desenvolvimento do

capitalismo nas sociedades ex coloniais e periféricas é determinante da progressão das opções de

escolha de produtos e de formas de produção. Uma elaboração adicional desse argumento

mostra que o controle patrimonialista da terra não é apenas um vestígio pré-capitalista senão

que reflete uma capacidade do sistema capitalista periférico de usar poder político como meio de

garantir vantagens de monopólio.

Isso quer dizer que as formas de produção, tais como a pecuária estabulada ou a pequena

produção diversificada, são realidades que correspondem ao que se entende hoje e aqui por

produção diversificada e por pecuária intensiva, que são dois conceitos sujeitos a qualificação,

que podem ter diferentes significados ao longo do tempo e em diferentes lugares. O

fundamental é reconhecer as condições concretas em que se realiza a produção no meio rural.

No essencial, a formação de renda é um resultado da produção capitalista, que deve ser

apreciada em sua complexidade e não em suas formas mais simples. O importante não é

conhecer cada forma de produção, senão de compreendê-la como parte de um processo que cria e

destrói formas de produção. Contrasta com a proposta – que tem se renovado ao longo do tempo

sob diversas formas – de tomar as formas de produção como categorias invariantes.

Isso significa que a análise da renda territorial em Marx não sofre a ruptura alegada por

muitos, entre a análise da renda rural e a da renda urbana, havendo, uma equivalência entre a

renda do solo e a dos espaços criados, que surge, justamente, quando se vê que a capacidade de

modernização da produção rural é

conduzido por capitais que se

realizaram nas cidades, assim como

não há como não saber que essa

modernização é um processo desigual

e irregular, que constitui uma

mancha mas que permite - e estimula

– a persistência de uma pequena

produção rural – mais ou menos

identificada com produção familiar –

que funciona como ambiente da

reprodução social dos grupos sociais

de excluídos da modernização rural.

A escolha de produtos por parte dessa

pequena produção marginal é

reveladora. Ela escolhe produtos de

baixa rentabilidade – independente

da produtividade do trabalho – mas

que são os únicos cuja

comercialização está ao alcance

desses pequenos produtores. Aqui,

como alhures, torna-se evidente que o

controle do capital no campo se

realiza através do controle da

comercialização.

Page 232: A economia politica critica de marx

232

gerar juros sobre capital incorporado resulta do conjunto das modalidades de controle do

território e não de uma modalidade isolada.

A originalidade da análise da renda fundiária em Marx está em identificar

historicamente a relação entre o controle do patrimônio fundiário e o modo como ele é inserido

no processo de produção. A explicação do desenvolvimento da produção capitalista em seu

conjunto levou Marx a dedicar uma grande parte do Livro III a propor uma explicação da renda

fundiária, em que retoma a discussão desde a base colocada por Adam Smith e revê as bases da

teoria da renda diferencial da terra de Ricardo à luz da formação do controle monopolista da

terra. Smith dissera que o preço da terra é determinado pela renda que ela pode gerar. Isso

logicamente se aplica na explicação do mercado de terras, tanto como na explicação da renda

monopolista das terras. Ricardo tratou essa formação de preços focalizando em condições

comparativas de uso. Desconsidera o monopólio. Marx inverte a análise, partindo do monopólio

e colocando a perspectiva macro econômica do problema.

A principal diferença entre a leitura de Ricardo e a de Marx não é que a primeira se

limite aos aspectos de renda diferencial e a segunda trate do monopólio da terra, senão que a

primeira se refere a uma dada situação da acumulação do capital e a segunda examina a renda da

terra ao longo da acumulação. Com Marx, forma-se uma teoria da renda fundiária, que

acompanha as conseqüências da acumulação sobre a capacidade de acumular.

Hoje, os problemas da renda da terra se bifurcam primeiro, porque se torna mais difícil

distinguir o papel do monopólio, quando o aumento de densidade de capital - representado por

elevação de tecnologia - amplia as possibilidades de aproveitamento das terras; e segundo,

Page 233: A economia politica critica de marx

233

porque há um forte apelo, para usar a teoria da renda da terra para explicar a valorização urbana.

No âmbito das cidades a questão se complica, porque a base da renda da terra torna-se menos

visível, ao depender menos do solo natural e depender mais de valor agregado sobre a formação

dos espaços volumétricos. Mas isso não é a sua substituição pelo trabalho posteriormente

incorporado à terra, senão o seu encobrimento pelo mecanismo indireto de agregação de valor.

Um arranha-céu de 40 andares depende de sua base geotécnica proporcionalmente mais que um

galpão que ocupe uma superfície igual.

A nosso ver, a análise desse problema no campo do pensamento marxista fica a dever à

contribuição de Engels, em seu texto sobre os problemas sociais de moradia140. Como a moradia

é indispensável, ela é uma constante do problema. O capital estende sua capacidade de criar

monopólios às cidades. "Como, pois, resolver o problema da moradia? Na sociedade atual, resolve-se

exatamente do mesmo modo que qualquer outro problema social: pelo nivelamento gradual de oferta e

procura, que reproduz constantemente o problema que, portanto, não é solução. A forma como uma

revolução social resolveria não depende somente das circunstâncias de tempo e lugar, senão de questões de

maior alcance, entre as quais está a supressão das diferenças entre cidade e campo."(pp.337) Engels vê

que as classes sociais resolvem de diferentes modos seus respectivos problemas de moradia,

onde as soluções encontradas pela burguesia condicionam as soluções dos trabalhadores.

Entretanto, os problemas teóricos que permanecem decorrem da mesma problemática

que levou Marx a buscar uma integração da análise dos problemas fundiários no plano do

controle monopolista. A renda do fator terra - representativo de recursos naturais - passa a ver-

se sobre o conjunto da integração dos interesses monopolistas organizados nas cidades. A

140 Friedrich Engels, Contribución al

problema de la vivienda, em C.Marx,

F.Engels, Obras escogidas, Progreso,

Moscou, 1974, 3 vols., vol. II, pp. 314

a 396.

Page 234: A economia politica critica de marx

234

questão consiste em que as cidades oferecem mais oportunidades para a formação de

monopólios que o campo. A análise da renda da terra torna-se a análise do capital gerado pela

urbanização, que é o capital imobiliário.

O processo se repete em condições de maior complexidade. O capital passa a controlar

indiretamente a formação de valor, mediante a construção dos sistemas de infra-estrutura e

controlando as regras de verticalização urbana, que selecionam as oportunidades de formação de

valor para os diferentes capitais.

O mecanismo central da renda fundiária

A análise de Marx parte de situar a renda da terra no contexto da produção capitalista,

portanto, como um resultado de aplicações de capital em mercado, isto é, em condições que

comandam a estruturação e a transformação da produção capitalista em geral, no que ela

subordina e inclui todas as demais formas de organização da produção. A temporalidade da

renda da terra não é a de um ano agrícola, senão a dos retornos dos capitais que procuram

reproduzir-se mediante as rendas que obtêm da propriedade da terra. Diremos que essa

perspectiva de análise deve ser seguida para decodificar a comparabilidade entre as diversas

glebas, que na verdade refere-se a comparações entre unidades produtivas. Trata-se de renda

fundiária, que se manifesta no solo rural trabalhado pela agricultura e no solo urbano ocupado

Page 235: A economia politica critica de marx

235

por edificações, que envolvem um período de depreciação, e, acrescentamos, as possibilidades de

concentração de valor dadas pela verticalização e pela diversificação dos capitais que se

concentram nas cidades141.

Nessa perspectiva de análise, a primeira e mais importante observação sobre o

tratamento dado por Marx à renda do solo, consiste em vê-la como parte de um movimento de

reprodução do capital que usa as oportunidades que encontra, de realizar operações financeiras e

de realizar aplicações com rentabilidade previsível. Apesar de declarar que “a análise da

propriedade territorial cai fora do escopo desta obra” Marx na verdade instala uma visão

moderna da produção agrícola, vendo-a como uma aplicação de capital formado na produção

capitalista em seu conjunto, que, por isso, são comparáveis a quaisquer outras aplicações. Mas

logo distingue, seguindo a linha de análise de Adam Smith, que a produção dos produtos básicos

(alimentos) torna-se referência das demais linhas de produção. A agricultura tem que ser

analisada como algo historicamente formado; e não como algo eterno, que se realiza de um

modo que determina um processo de valorização da terra.

O movimento de expansão e de mudança de composição do capital no campo torna-se a

referência central dos diversos movimentos de formação de renda, que, logicamente, não estão

separados dos movimentos de expansão do capital dinheiro, portanto, do controle dos bancos

sobre a agricultura142. No entanto, a expansão do capital igualmente significa o reordenamento

do capital em seu conjunto, o que significa que os usos de capital já aplicado têm que ser

constantemente revistos.

141 O conceito de solo criado surge

como primeiro ponto de apoio de uma

análise da formação de uma renda

imobiliária urbana que se torna

incomparável com a renda do solo

rural. A complexidade do sistema

fundiário urbano não se esgota na

verticalização - positiva e negativa –

mas parte de relações de domínio que

surgem da permanência ou da não

permanência dos moradores e das

preferências do capital por

determinadas áreas de uma cidade.

142 No Brasil, esse movimento

reveste-se de peculiaridades, que é

preciso esclarecer. A produção

agrícola formou-se a partir da

produção de mercadorias que se

comercializavam em escala

internacional, mas que só podiam ser

realizadas quando em combinação

com outras mercadorias. A produção

açucareira dependeu da produção

primitiva e do extrativismo de

alimentos. Mas a valorização da

terra dependeu do efeito combinado

das diversas formas de exploração

sobre o controle das condições de

ocupação da terra. Mas esse processo

no Brasil não pode ser separado do

processo de comando da

Page 236: A economia politica critica de marx

236

Trata-se, portanto, de qual perfil e velocidade do processo de monopolização, e nele, qual

ou quais os papéis da agricultura no movimento de acumulação. A idéia básica é que o papel da

agricultura não pode ser percebido por separado do papel que assume a produção industrializada.

Assim, há uma formação de rendas do capital, decorrentes da exploração capitalista do campo,

em que se encontram uma renda diferencial e uma renda absoluta, criando uma escala de renda

imobiliária, que não depende dos usos de cada imóvel específico, mas que no conjunto é afetada

pelo conjunto dos usos das glebas.

Marx traz uma inversão fundamental do argumento de Ricardo, quando diz que a renda

do solo só pode realizar-se como renda em dinheiro mediante a produção de mercadorias,

concretamente, por ser parte da produção capitalista. Para que haja renda da terra tem que haver

uma produção de mercadorias suficiente para reproduzir o capital aplicado. Aqui Marx introduz

uma hipótese destinada a colocar a condição de viabilidade capitalista da produção agrícola, que

é de que a produção seja vendida por seus custos de produção, isto é, que não seja vendida por

menos que seus custos143.

A principal diferença do tratamento dado por Marx à renda da terra, comparado com

seus predecessores, está em sua abordagem histórica do problema, comparada com a abordagem

de análise instantânea. A abordagem histórica permite articular as diversas variáveis que

intervêm nesse problema. Isso resulta no tratamento de dois aspectos fundamentais, que são os

de produtividade do trabalho e de transformações do mercado. A análise de Marx da renda

fundiária é, essencialmente, complexa, envolvendo diversos tipos de variáveis, assim como

envolvendo o momento e o modo como essas variáveis devem ser inseridas. Diferentemente de

143 Essa hipótese tem que ser revista

à luz das condições imperantes nas

economias periféricas de hoje, em que

os preços das principais mercadorias,

que pré-condicionam a demanda

interna, são definidos na esfera

internacional. Que a produção seja

colocada a preços não inferiores aos

custos não é suficiente para garantir

que essa produção se realize.

disponibilidade de trabalho

compulsório. Tal comando,

obviamente, compreendeu o

constrangimento dos índios e dos

negros, e, de diversos modos, das

diversas minorias que foram objeto

da violência da expansão colonial.

Esse constrangimento continua, na

forma de falta de ocupação

remunerada para uma parte da

população.

Page 237: A economia politica critica de marx

237

Ricardo, Marx considera os efeitos de diferenças de produtividade na formação da renda

diferencial da terra, assim como considera os efeitos da exploração simultânea de terras de

diversos tipos. Considera, ainda, o efeito da localização das terras em relação com o mercado,

assim como os efeitos dos sistemas de transportes na formação do conjunto das rendas.

Enquanto Ricardo calcula a renda diferencial como originada por uma diferença de

custos de produção, Marx calcula a partir de preços, portanto, ligando-a a condições específicas

de mercado. Sua premissa básica é que aos proprietários interessa a renda que obtém da

totalidade das terras que possuem e não só de um tipo de terras. O fato da propriedade impõe

um perfil de comportamento relativo à receita operacional que se obtém, portanto, que resulta

em oferta de mercadorias produzidas pelo conjunto da propriedade144.

Marx analisa a formação da renda diferencial em condições de preços de produção

constantes, decrescentes e crescentes, portanto, frente a variações negativas e positivas dos

capitais adicionais, examinando variações dos resultados da incorporação de terras de pior

qualidade. Sobre esse conjunto de condições da formação da renda diferencial, Marx passa a

examinar a renda absoluta, que explica como a seguir (L.III, PP. 715) “A essência da renda absoluta

consiste no seguinte: capitais de igual magnitude, invertidos em diferentes ramos da produção produzem,

com a mesma taxa de mais valia e o mesmo grau de exploração, massas diferentes de mais valia, segundo

sua composição orgânica média. Na indústria, essas massas de mais valia se compensam pelo lucro médio e

se distribuem por igual entre os diferentes capitais, como entre partes alíquotas do mesmo capital social.

Mas a propriedade territorial, onde a produção necessita de terra, seja para fins agrícolas, seja para a

extração de matérias primas, impede que essa compensação se efetive, no relativo aos capitais investidos

144 Esse argumento torna-se evidente

quando se estuda a produção de

mercadorias agrícolas para

exportação. Em casos como os de

cacau e de frutas, cada

estabelecimento tem uma parte de

suas terras dedicadas a esses

produtos e outra parte voltada para a

produção de produtos definidos como

de consumo interno, basicamente de

alimentos. Os critérios usados nesses

dois tipos de produtos são

completamente diferentes e o único

elemento que dá a união do conjunto é

o tempo de trabalho. Na análise

econômica da pequena produção, dita

familiar, encontra-se que há um

limite mínimo de ocupação efetiva

dos integrantes da família – ao redor

de 180 homens dias – que indica a

capacidade de satisfazer as

necessidades básicas. Uma ocupação

inferior a esse número indica

carências alimentares. A gestão da

produção familiar, acima de tudo, é a

gestão de um potencial de trabalho

entre aplicações, em que se procura

usar esse trabalho de modo mais

eficiente para o conjunto e não

apenas de modo mais eficiente para

cada produto. Como as atividades

têm calendário estacional e

demandam certa carga por produto

Page 238: A economia politica critica de marx

238

na terra, e absorve uma parte da mais-valia, que de outro modo entraria no jogo da compensação para

formar a taxa média de lucro. A renda forma, então, parte do valor, e mais concretamente, da mais-valia

das mercadorias, com a diferença de que essa parte, em vez de ir parar na classe capitalista, vai parar com

os proprietários, que a extraem dos capitalistas”.

Isso nos leva a uma reflexão sobre as condições da análise rural de hoje. Ora, a partir da

situação em que a formação da renda fundiária se torna parte das determinações do capital em

sua composição técnica de hoje, torna-se supérfluo discutir a renda da terra sem levar em conta

as condições de formação do lucro médio no sistema produtivo em seu conjunto. A valorização

de terras, nos campos e nas cidades, surge como um conjunto de movimentos interdependentes,

em que as decisões do capital são lideradas por decisões do grande capital e em que as condições

de valorização do trabalho são reguladas pela qualificação do trabalho mais qualificado. A

análise de Marx da renda da terra incorpora os elementos de composição do capital indicados no

estudo da reprodução simples – Livro II – em que se distingue a produção de meios de consumo

e meios de produção, mas em que o mercado de trabalho está virtualmente unificado. Este

último aspecto teria que ser revisto no relativo às economias periféricas no que elas contêm

diferenças significativas de integração do mercado de trabalho.

homens hora por ano para cada

hectare de feijão, por exemplo) o

programa de produção da produção

familiar tem que ser posto numa

seqüência de atividades compatível

com os usos do tempo de trabalho

disponível.

Page 239: A economia politica critica de marx

239

TECNOLOGIA

Na leitura de Marx é preciso estabelecer que tecnologia, em seu sentido mais amplo e mais

rigoroso, é o modo da práxis como tal. Isto é, tecnologia é a expressão mais ampla que denota a

realidade enquanto ação social produtiva, enquanto modo de fazer as coisas. Assim, há uma visão

tecnológica do processo social que se completa e confronta com os elencos de técnicas, assim como

os elencos de técnicas correspondem a determinadas condições de desenvolvimento das forças

produtivas.

Concretamente, há tecnologias básicas, tais como as da energia e dos transportes, e

tecnologias complementares, tais como as da produção de vestuário ou de mercadorias para o

lazer. Há tecnologias que variam pouco ao longo do tempo, tais como as da produção de pão e

vinho e outras que variam muito em pouco tempo, tais como as da produção de alimentos

nocivos e de bebidas enganosas. Há tecnologias que são desenvolvidas pelo grande capital e

constituem meios de controle de poder sobre investimentos e outras que são mercadorias

descartáveis, que o sistema capitalista desenvolve e abandona.

A tecnologia em si não é um fato ideológico, mas o modo de produzir, usar e controlar

tecnologia é ideológico naquilo em que representa interesses organizados e em que decide quais

tecnologias serão escolhidas para serem desenvolvidas. A “escolha” de desenvolver o automóvel

como meio de transporte privado deu lugar a um grande número de efeitos em cadeia, que

passou a condicionar o sistema produtivo em seu conjunto.

Page 240: A economia politica critica de marx

240

A questão tecnológica em Marx aparece ao nível do funcionamento do sistema

capitalista em seu conjunto e ao nível dos usos de técnicas em formas específicas de produção.

São dois planos que interagem na progressão do desenvolvimento do sistema de produção, onde,

portanto, distinguem-se as condições materiais de uso de tecnologia, as possibilidades sociais e

técnicas de uso de tecnologia e as características operacionais dos usos de técnicas específicas. A

capacidade da sociedade de usar tecnologia se amplia e muda de forma, à medida que o sistema

se torna mais complexo e que se amplia a escala de uso de recursos. Há uma complementaridade

entre o conhecimento incorporado nas técnicas, que se congela em técnicas específicas, e o

conhecimento incorporado pelos trabalhadores, que varia continuamente, portanto, variando as

possibilidades reais de aproveitarem-se as técnicas disponíveis.

Por isso, a questão tecnológica deve ser apreciada a partir do conjunto de O Capital, sem

prejuízo de levarem-se em conta alguns textos inéditos específicos sobre técnica, que tratam

mais diretamente da relação entre técnicas e uso de recursos naturais e sobre máquinas145. Para

nós, o conteúdo desses textos é considerado como parte do conjunto maior do tratamento da

tecnologia, que não deve ser confundido com as observações específicas sobre técnica.

A questão tecnológica em seu sentido mais amplo, como uma categoria do capital, é uma

dimensão essencial da explicação da produção capitalista desenvolvida por Marx. Por isso

mesmo, não é tratada por separado por ele, senão está incorporada no movimento que desloca a

composição técnica do capital, e está na diferenciação entre o manejo da maquinaria pelo grande

capital e pelo pequeno capital, assim como está nos modos como o sistema de produção maneja

alterações de velocidade na articulação da esfera de produção com a da circulação. Está claro que

145 Karl Marx, Capital y tecnologia,

manuscritos inéditos (1861-1863)

México, Ed. Terra Nova, México,

1980.

Page 241: A economia politica critica de marx

241

na visão de Marx de uma totalização progressiva do sistema de produção, a tecnologia tem o

significado ontológico de modo de fazer como tal, que se manifesta nas diversas formas

específicas de fazer. Tecnologia está na vida social em sua variedade, mas na produção

capitalista tem um significado especial, que é o de que a produção capitalista precisa de

renovação tecnológica, para acionar o mecanismo da mais valia relativa. O mecanismo

examinado por Marx é aquele pelo qual a entrada de novas técnicas reduz o tempo socialmente

necessário para produzir determinadas mercadorias – elevando a produtividade dos

trabalhadores – que, entretanto continuam recebendo salários estabelecidos pela oferta e

demanda de trabalho no mercado.

A tecnologia, portanto, tem subsumido o código de preferências do capital, no relativo a

escolher aquele modo de fazer que lhe permite exercer seu controle sobre o trabalho e sobre os

recursos naturais. O capital prefere aquelas soluções técnicas que lhe permitem extrair mais

valia de um dado conjunto de usos de trabalho. No limite, a escolha de tecnologias é um dos

principais aspectos do imperialismo, que começou pela classificação de produtos e passou a usar

essa classificação para criar diferenciais de preços que não correspondem a diferenças

substantivas de qualidade. A classificação de produtos tais como chá, arroz, café, cacau, fumo,

foi um mecanismo que permitiu que países que não produzem esses produtos passassem a

controlar seus preços.

O mecanismo de deslocamento da composição do capital incide na composição técnica

do capital que se forma e altera as condições de uso do capital acumulado. O problema é que o

capitalismo necessariamente funciona mediante deslocamentos de tecnologia, que introduzem

Page 242: A economia politica critica de marx

242

um padrão de imprevisibilidade no sistema, por mais que cada movimento específico seja

previsível.

O movimento geral da produção de mercadorias compreende substituição de mercadorias

e mudança da funcionalidade das mercadorias, que se projeta na relação de preços, porque

(L.III) o aumento do capital constante na composição do capital permite aos capitalistas realizar

a taxa de mais valia cm menores taxas médias de lucro. Essa regra geral se aplica de diferentes

modos para o pequeno e para o grande capital, em parte porque o grande capital pode trabalhar

com maquinaria nova e deliberar sobre o uso de maquinaria velha, e em parte, porque o grande

capital pode escolher técnicas específicas como integrantes de conjuntos, ou situar as decisões

sobre tecnologia como parte de “famílias” de tecnologia – tais como ele considera as tecnologias

da produção de tecidos, da indústria editorial e das ferrovias146.

Esses aspectos materiais da tecnologia, no entanto, foram vasculhados por Marx em seu

significado em termos de continuidade ou de descontinuidade do trabalho, portanto em seu

significado social. Na perspectiva do processo de acumulação, a tecnologia é uma manifestação

externa da estratégia do capital em sua gestão do capital constante, em que ele procura usar o

aproveitamento do capital constante para transformar os aumentos de produtividade dos

trabalhadores em diminuição do pagamento de salários. Assim, o debate em torno da tecnologia

é um modo indireto de colocar a tendência do sistema a substituir trabalho por capital.

Esse mecanismo se revela em sua inteireza no processamento da maquinaria no processo

de produção, em que a incorporação de técnicas funciona como um mecanismo pelo qual, os

ganhos de produtividade são transformados em capital constante e são captados pelo capital, 145 Karl Marx, op.cit..pp. 71-120.

Page 243: A economia politica critica de marx

243

enquanto os trabalhadores são remunerados com salários médios de mercado. Nesse sentido, a

tecnologia aparece como uma sucessão de técnicas novas, que entram no mercado seguindo

estratégias do capital para prosseguir o movimento de captação de mais valia relativa147. Mas

que é uma progressão que tem conseqüências inevitáveis, em termos de pressionar

negativamente a taxa de salário.

Essa linha de argumentação tem dois desdobramentos, que devem ser enfatizados: o da

transferência dos incrementos de valor e compressão da renda familiar e o da exclusão de

trabalhadores, que se apresenta como um efeito geral do sistema, que retira do mercado um

certo número de trabalhadores e que bloqueia a entrada de outros. Os dois movimentos são

concomitantes e combinados e geram um leque de resultados que se desdobram ao longo do

tempo.

Certamente, essa linha de argumentação subentende a diferenciação entre os modos

operacionais do grande e do pequeno capital, já que somente o grande capital está em condições

de exercer controle sobre o monopólio da produção e da compra de tecnologia. Observe-se que

os elementos conceituais essenciais desse argumento são apresentados por Marx na análise da

produção social do capital, mas são, de fato, desenvolvidos quando estuda o nivelamento da taxa

de lucro, que justamente envolve esse controle do grande capital.

A tecnologia corporifica a relação entre a ciência e a economia, mas essa relação é

conduzida pelos interesses instalados no sistema produtivo, que dão lugar ao estilo

predominante de desenvolvimento e da condução do processo de acumulação de capital e de

renovação da qualificação dos trabalhadores. 147 “ ” op.cit. pp.130.

Page 244: A economia politica critica de marx

244

CAPÍTULO 11. A QUESTÃO

DAS CLASSES SOCIAIS

A percepção da formação de classes na estruturação social conduzida pelo capitalismo apóia-se

primeiro na objetivização de interesses coletivos, para depois penetrar em seus aspectos

subjetivos. Mas está claro que se move desde a fundamentação material das ideologias até a ação

das ideologias na transformação do sistema de produção. Não é, portanto, uma parte da

Economia Política, senão um aspecto que envolve o caráter crítico da análise, no que ela reflete

as representações dos interesses dos participantes do processo socio-produtivo.

Na busca de uma teoria das classes sociais em Marx, é preciso ver que o capítulo com

esse título no Livro III é apenas um fragmento e que as idéias dele sobre classes são parte de

uma visão mais ampla da estruturação social, onde a formação de estamentos aparece como uma

etapa anterior da formação de classes propriamente dita. As relações de classes são a modalidade

de relações que se desenvolvem na sociedade do capital, logicamente, sobre os fundamentos

históricos do capitalismo, desde a escravidão ou desde a servidão feudal. Tacitamente, as

relações de classe mudam, acompanhando o processo que torna o sistema do capital um sistema

de relações despersonalizadas e indiretas.

A teoria das classes sociais em Marx aparece na Ideologia alemã e como um

desdobramento da divisão do trabalho, que dá lugar à consolidação de interesses contraditórios.

Page 245: A economia politica critica de marx

245

A teoria das classes sociais é a teoria das lutas de classes no capitalismo. Mas Marx não limita

esse conflito aos termos da produção capitalista, senão vai aos conflitos de classes nas sociedades

mercantis, desde a escravização. A história das classes é a história de conflitos que se projetam

ao interior do sistema produtivo, que mudam de forma ao expandirem-se os espaços

efetivamente capitalistas das relações.

As classes sociais surgem como conseqüência de diferenciação e conflito de interesse,

distinguindo-se da diferenciação por privilégio. Há classes nas sociedades onde predominam

interesses sobre privilégios e tradições. A relação entre senhor – escravo, trabalhada por Hegel, é

uma relação de classe, em que o senhor se identifica como tal por poder extrair trabalho do

escravo. Mas a sociedade capitalista sistematiza a relação de classe, em que a contradição de

interesses faz com que a própria presença das classes envolva uma luta de posições e de

capacidade para mudar de posições. A relação de classes é a relação de coletivos, que permite

aparecer o ser social.

A teoria econômica registra uma análise de classes desde os Fisiocratas, Adam Smith e

Ricardo, que, entretanto, somente nesse último traduziu-se num modelo de análise em que a

diferenciação de interesses traduz-se em alguma forma de conflito de interesses. Em Marx, a

doutrina das classes passa a registrar a progressão do conflito de interesses inerente à

combinação de exploração – acumulação – exclusão. Por isso mesmo, as relações de classe

desenham os limites de relacionamentos que compreendem um componente estável e outro

instável ou transitório.

Page 246: A economia politica critica de marx

246

A doutrina das classes em Marx é um dos principais pontos que sustentam a tese de que

só se pode captar o essencial de O Capital de uma visão de sua totalidade. Diremos que não só há

uma doutrina de classes em O Capital, como que a função dessa doutrina no conjunto da obra é

muito diferente do que geralmente se lhe atribui. Não se trata simplesmente de que a relação

capitalista produz classes e relações de classe, senão que a estruturação das classes é um

elemento necessário da formação do capital. Podemos em princípio considerar que essa questão

se realiza em dois níveis, que são os de um desdobramento das relações de classe na operação do

capital e nas condições de engajamento do trabalho; e de ruptura de relações de classe

estabelecidas, quando irrompe um movimento de desorganização da produção, que destrói

posições de classe estabelecidas. Essas mudanças aparecem do lado do capital e do lado do

trabalho. A separação entre capitalistas prestamistas e capitalistas empresários e o aparecimento

de situações de acumulação primitiva, são exemplos que reforçam esta visão da doutrina de

classes.

Estas observações somam-se a outras, sobre a ligação entre a formação de classes e a

tensão entre os componentes do capital mais imóveis, como os que estão ligados à renda da

terra; e os que se identificam com as formas mais voláteis do capital, como os financeiros. Como

a formação de classes é inerente à sociedade moderna, as relações de trabalho estão sujeitas a

transformações, são necessárias duas qualificações da análise das relações de classe,

respectivamente, para distinguir os aspectos históricos e de atualidade; e os aspectos objetivos e

subjetivos dos relacionamentos fundados em relações de classe.

Page 247: A economia politica critica de marx

247

A teoria das classes sociais não resolveu o problema causado pela ambigüidade entre as

bases patrimoniais da formação da renda da terra e seu fundamento capitalista. Essa

ambigüidade aparentemente se supera mediante a expansão do capitalismo no campo, que

substitui a propriedade patrimonial herdada, pela propriedade comprada para empreendimentos.

Em termos de hoje, a substituição dos velhos latifúndios formados no período colonial por

propriedades compradas para valorizar capital. No entanto, a experiência oferecida por

pesquisas em diversas regiões do Brasil, bem como em diversos outros países latino-americanos,

leva a rever – restringir - esse pressuposto. A precariedade, e mesmo a ausência, de cálculo

econômico em grande parte dos estabelecimentos agro-pecuários coloca seus proprietários numa

posição que dificilmente pode ser caracterizada como de produção capitalista, por mais que uma

parte de sua produção ingresse no mercado capitalista.

Marx não resolveu esse elemento anódino da composição de classes, senão que continuou

considerando o componente patrimonial da sustentação das classes. A questão do patrimônio

permanece na perspectiva econômica das classes, enquanto sua consistência sócio-cultural pode

dar lugar a controvérsias na relação entre a perspectiva das classes no espaço-tempo de sua

formação e em sua atualidade.

A doutrina das classes ficou aberta em dois aspectos fundamentais: no relativo à posição

dos que não fazem parte diretamente das relações capitalistas de produção e no relativo à

situação dos que são projetados para fora dessas relações.

A leitura da questão das classes nas economias periféricas de hoje obriga a trabalhar com

a perspectiva de formação de classes, mas com o entendimento de que as classes se formam sem

Page 248: A economia politica critica de marx

248

jamais incluir a todos os integrantes do corpo social. A complexidade dos processos de exclusão

soma-se a novos limites de participação em relações estáveis e legitimadas, tornando-se uma

nova regra que reage de volta nas relações das classes propriamente ditas. Longe de se diluir, a

teoria das classes sociais torna-se um instrumento indispensável para penetrar em sociedades

submetidas a rupturas e a desigualdade crescente.

Page 249: A economia politica critica de marx

249

A LEI DO CAPITAL

Em diversos momentos Marx desfia os dois principais elementos da dinâmica social do capital:

a vertigem da mudança social – o novo já nasce velho – e a crise inerente à autofagia do capital,

tensionado entre interesses individuais e necessidades da perpetuação do sistema. Ao olhar esse

movimento do sistema em sua totalidade não há como limitar a teoria da tendência à crise aos

aspectos terminais do processo do capital. A tendência à crise é uma imanência do sistema, isto

é, o modo de funcionamento social do sistema contém um modo de relacionamento baseado em

conflito de interesses que pressupõe uma crise de objetivos do sistema. Esse conflito de interesse

já tinha sido mapeado no modelo de análise de Ricardo como fundamento de uma tendência à

estagnação, que é uma conseqüência final do processo da formação de capital. Em Marx a

questão não é o resultado senão o processo. Já na Contribuição à critica da economia política Marx

aponta à defasagem entre a transformações na composição do capital e a organização social da

produção, quando diz que “as forças materiais de produção entram em contradição com as relações de

produção existentes” e quando diz no Manifesto que o novo nasce velho. A lei do capital é um

presságio que se visualiza desde quando se reconhecem que a renovação da composição técnica

do capital pode avançar mais depressa que as condições de renovação das qualificações do

trabalho.

Ao identificar essa defasagem descobre-se que o sistema produtivo do capital se move

guiado por interesses que se manifestam em condições sociais concretas, entretanto, com

Page 250: A economia politica critica de marx

250

motivações gerais que não podem ser explicadas em termos de consumo, que são as da

acumulação de capital.

Marx concebe a lei do capital como uma derivação dos efeitos da taxa de mais valia na

acumulação, abordando esse problema desde o mecanismo da acumulação dos capitalistas

individuais, considerando as condições de mercado em que cada um deles pode mobilizar sua

taxa de mais valia para realizar seus objetivos de acumulação de capital. Noutras palavras,

descobre o campo de problemas que se encontra entre gerar e captar mais valia e reintegrar a

mais valia ao sistema produtivo. A continuidade da acumulação depende de que haja soluções

consistentes para os capitais específicos. Assim, a esfera de grandes movimentos da

macroeconomia não obscurece o mundo da pluralidade da microeconomia. A lei do capital tem

efeitos externos e internos que atingem as possibilidades de reproduzir-se dos diversos capitais e

que modificam as condições concretas do movimento social de acumulação, naquilo em que ele

envolve relações de poder.

Page 251: A economia politica critica de marx

251

UMA VISÃO RETROSPECTIVA

DO EIXO TEORIA-MÉTODO

“Uma vez que conseguiu afirmar-se como tese, essa tese, esse pensamento, oposto a si

mesmo,desdobra-se em dois pensamentos contraditório,o positivo e o negativo, o sim e o não.A luta

desses dois elementos antagônicos, encerrados na antítese, constitui o movimento dialético”. Marx,

Miséria da Filosofia, pp.96.

Há muitas colocações sobre o método em Marx, que refletem o desenvolvimento de um

processo de trabalho que avança, progressivamente, desde a construção da crítica como modo de

análise e visão de mundo, até converter-se em crítica imamente: crítica, como ele diz, que surge

da própria exposição do processo social da economia burguesa. A nosso ver, trata-se do

movimento que resulta na constituição de sua abordagem estrutural histórica, conduzida

dialeticamente, que descreve o movimento de desdobramento do pensamento teórico como

produto de trabalho, isto é, como um produto ideológico de determinadas sociedades e

civilizações.

Outras abordagens sobre o método de Marx, tal como a de Godelier, apontam aos seus

modos lógicos. Kautsky focaliza na formação da doutrina econômica em Marx. Hobsbawn

desenha o modo de pensar história em seu ensaio sobre as formações pré-capitalistas de Marx.

Page 252: A economia politica critica de marx

252

Dobb trata o pensamento de Marx como uma vertente crítica da economia clássica. O próprio

Marx fala várias vezes sobre método, inclusive no texto dos Grundrisse em que trata de método

em análise social e em outros momentos, em que sua visão de método surge de suas polêmicas.

A questão de método em Marx a nosso ver tem que ser tratada no plano de um

questionamento filosófico - ontológico e categorial – no rastreamento de seus fundamentos em

Aristóteles e em Hegel, quando a abordagem realista da dialética revela com mais força a

identificação com a perspectiva realista do primeiro. Daí, que a compreensão de totalidade

concreta se reporta ao essencial se reporte aos fundamentos metodológicos, isto é, que

contemple a inserção de Marx no contexto dos problemas de método que ele próprio reconheceu

como necessários. Isto significa expor o Marx filósofo, antes do sociólogo e do economista.

Marx não se afastou de Hegel num ponto fundamental, que foi de preferir enfrentar os

problemas do real frente ao do ideal. Sua crítica a Hegel, tal como se encontra nos Manuscritos de

44, consiste em vê-lo como pseudoidealismo, que a rigor seria um idealismo que se autoreproduz

por separado dos movimentos de pensamento genuinamente derivados do mundo real. Em todo

momento está presente a proposta de reconstruir o pensamento social sobre bases

historicamente consistentes. Esse, justamente, é um ponto crucial, da fundamentação histórica

do método, porque a compreensão de que as ideologias são historicamente produzidas, implica

em olhar para os aspectos não materiais da produção, que exatamente o que Hegel fez em suas

Lições de História Universal. Esse aspecto da crítica a Hegel teria que ser revisto primeiro, se

considerando a obra de Hegel em seu conjunto, especialmente as Lições de Filosofia da História,

onde se encontra mais claramente exposta, a relação entre a produção de “idéia” e a cultural.

Page 253: A economia politica critica de marx

253

Segundo, teria que ser revisto, porque em Hegel a dialética caminha sobre movimentos

específicos que são ininteligíveis se separados da relação com o mundo real das sociedades148.

Uma leitura do método incorporado no movimento da obra de Marx é indispensável para

que se compreendam os significados dos resultados que sua análise objetiviza. O progresso da

teoria depende da fundamentação de método. No capítulo inicial sobre método na Crítica da

razão dialética, Sartre denominou o método de Marx de progressivo-regressivo, que considerou

como uma dialética real, por contraste com uma dialética dogmática. Com isso, refere-se ao

contexto da doutrina hegeliana, vendo Hegel com a integridade de sua interpretação, tal como

ela se encontra no conjunto da obra, não apenas como ela foi apresentada como um tema, senão

como ela foi empregada. A observação final destas notas é que se trata de uma filosofia da

realidade, capaz de reintegrar as bases materiais e ideológicas da pessoa que é constrangida a

participar do sistema social sem poder compreender onde se encontra nem que pode fazer sobre

si próprio. Por contraste, essa filosofia desenha os contornos dos processos de alienação, que se

desenvolvem junto com a concentração da capacidade de reproduzir o capital acumulado.

Há dois aspectos de método a destacar na obra de Marx, no relativo ao tema deste ensaio.

Um que corresponde ao modo de fundamentar-se e ao desdobramento de níveis de análise dos

planos mais gerais aos mais específicos. Outro que consiste em explorar cada argumento em

suas conseqüências para a identificação e o desdobramento de outros argumentos a seguir. O

primeiro aspecto se configura no tratamento dos problemas de categorias e dos problemas de

articulação lógica da análise. As idas e vindas entre argumentos antecedentes e conseqüentes, tal

como se vê claramente no tratamento da mais valia absoluta e da relativa, mostram esse

148 Talvez essa dificuldade provenha

de que alguns dos comentaristas

vejam a dialética de Hegel somente

através de sua exposição na Ciência

da Lógica, sem levar em conta sua

presença na obra de Hegel em seu

conjunto. Entretanto, também na

História da Filosofia ela aparece

atavés da vinculação do pensamento

teórico a suas condições históricas.

.

Page 254: A economia politica critica de marx

254

encadeamento de raciocínio, que se ajusta ao que Sartre denominou de progressivo-regressivo.

O segundo aspecto está mais claro no tratamento dos aspectos financeiros, em que se trata,

praticamente, de pesquisar sobre possíveis desdobramentos da tendência inevitável à mudança.

Ao olhar para o potencial explicativo inerente às escolhas de método, ganha mais força a

distinção entre o trabalho de método no corpo central da teoria, onde tem seu maior impacto no

deslocamento do discurso teórico; e nos seus campos subsidiários, onde seu efeito é mais

exploratório e não altera muito a linha central da análise. Entendemos que o essencial da

discussão teórica é alcançar a maior clareza possível no relativo ao corpo central da teoria, que

em última análise determina a clareza sobre suas bifurcações e campos específicos.

Abaixo dessas questões mais profundas do tratamento da questão de método, há aspectos que não

podem ser ignorados, da relação entre o plano superficial e operacional do método e o plano profundo, da

teleologia da análise social, que a liga a uma teoria da ação social, e através desta, ao sentido ou falta de

sentido da acumulação.

Page 255: A economia politica critica de marx

255

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Obras de Marx

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(Grundrisse) México, Fondo de Cultura Econômica, 2 vols. 1986.

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