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http://www.fernandopedrao.com.br/sites/default/files/books/a_economia_politica_critica_de_marx.pdf
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Fernando Pedrão
A Economia Política Crítica de Marx
Salvador
2007
2
De fato, a coisa não se reduz ao seu fim, senão se encontra em seu desenvolvimento, nem o
resultado é o todo real, senão está em sua união com seu devir. HEGEL
A maioria dos homens não reflete sobre o que se lhes apresenta. Mesmo quando instruídos, não
compreendem. Vivem na aparência. HERÁCLITO
Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de
idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se
consolidarem. MARX
Está claro que o método de exposição deve distinguir-se formalmente do método de investigação. A
investigação tenderá a assimilar-se com detalhe à matéria investigada, a analisar suas diversas
formas de desenvolvimento e a descobrir seus nexos internos. Só depois de concluído esse trabalho,
pode o investigador proceder a expor adequadamente o movimento real. MARX
3
Índice
APRESENTAÇÃO 6
UM PRELÚDIO FILOSÓFICO 19 ORIGENS E SENTIDO DE FINALIDADE 25 A linha mestra 25
As leis do capital 30 ORGANIZAÇÃO SOCIAL E IDEOLOGIA 31 A relação capital/trabalho, as relações entre capitalistas e trabalhadores e a divisão do trabalho 31
A ideologia 34 A alienação 42
AS CATEGORIAS DO PROCESSO SOCIAL 50
Das Categorias 50
As categorias do processo da produção capitalista 52
FUNDAMENTOS E SENTIDO DE FINALIDADE DA OBRA DE MARX 61
Teleologia: ontologia e práxis 61
Fundamentos filosóficos 64
Fundamentos econômicos 69
Fundamentos sociais 74
O CONTEXTO PRINCIPAL DO DISCURSO ECONÔMICO E SOCIAL 77
Perfil temático da obra de Karl Marx 78
Fundamentação conceitual 83
Problemas preliminares: a questão do trabalho produtivo 85
Problemas preliminares: dinheiro e renda 86
A estruturação de O Capital 88
A produção (social) de capital 91
A circulação de capital 100
A produção capitalista em seu conjunto 107
GÊNESE E METAMORFOSE DO CAPITAL 120
4
Traços gerais da questão 120
Mercadoria, valor e valorização 122
A questão especial do dinheiro 129
Os modos de apropriação de valor: produção e captação de mais-v alia 132
Mutação da circulação, produção e produção de mais-valia 132
Os processos de trabalho 136
O processo de valorização 137
Capital constante e capital variável 138
Produção e extração de mais-valia 140
Preliminares 140
A jornada de trabalho 142
Taxa e massa de mais-valia absoluta 144
A produção de mais-valia relativa 145
Mais-valia absoluta e mais-valia relativa 149
A questão especial da acumulação primitiva 150
A divisão do trabalho: artesanato, manufatura, produção fabril 151
Maquinaria e grande indústria 155
A cooperação 156
Modos de composição do capital 157
A condição dos trabalhadores: renda salarial, intensidade da ocupação, opções de trabalho 160
A reprodução simples 162
A transformação de mais-valia em capital 162
O movimento geral da acumulação do capital 163
O papel especial do capítulo VI (inédito) do Livro I 167
A CIRCULAÇÃO: ESPAÇO-TEMPO E SITUAÇÃO HISTÓRICA DO CAPITAL 169
Preliminares 169
As metamorfoses do capital 179
A engrenagem das metamorfoses do capital (industrial) 180
O ciclo do capital-dinheiro 181
O ciclo do capital produtivo 186
Gastos de circulação 187
5
Tempo de rotação 188
Capital fixo e capital circulante 189
Rotação global do capital desembolsado e determinação dos ciclos de rotação do capital em geral 190
Tempo de trabalho e período de produção 190
Circulação de mais-valia 191
A reprodução e a circulação do capital social em seu conjunto 192
Antecedentes preliminares 192
A questão geral da reprodução do capital 193
A reprodução simples 195
Acumulação e reprodução em escala ampliada 197
A PRODUÇÃO CAPITALISTA EM SEU CONJUNTO 199
Preliminares 199
Uma primeira reflexão sobre o tema problematizado no Livro III de O Capital 200
A teoria da exploração e a apropriação da reprodução ampliada do capital 202
A arquitetura temática do livro III 205
A conversão de mais-valia em lucro e da taxa de lucro em taxa de mais-valia 212
A taxa média de lucro 216
A tendência decrescente da taxa de lucro 219
O aparecimento e funcionamento do capital a juros 220
A FORMAÇÃO DA RENDA FUNDIÁRIA 227
Preliminares 227
Aspectos gerais 230
O mecanismo central da renda fundiária 234
TECNOLOGIA 239
CAPÍTULO II: A QUESTÃO DAS CLASSES SOCIAIS 244
A LEI DO CAPITAL 249
UMA VISÃO RETROSPECTIVA DO EIXO TEORIA-MÉTODO 251
BIBLIOGRAFIA 255
6
APRESENTAÇÃO
Neste estudo pretende-se oferecer uma visão interpretativa do pensamento econômico e
social de Karl Marx, tal como ele está exposto em O Capital, que é sua forma mais desenvolvida,
apesar de inacabada, situando essa grande apresentação final frente a sua montagem filosófica.
Marx identificou seu objeto de estudo quando elaborou sua Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel; e quando esboçou seu plano de uma crítica da Política, do Direito e da Economia, que
terminou por se concentrar no painel – inacabado – de O Capital. O Capital é o que se
materializou de um projeto muito maior, de crítica e o modo como sua elaboração foi conduzida
foi para dar conta do mundo da produção. O mundo do poder aparece como um baixo contínuo
nessa construção sinfônica e teria que vir à luz com seu próprio movimento em outro trabalho
que Marx planejou, porém jamais teve tempo de elaborar. A expressão crítica na obra de Marx
tem dois significados: o de uma avaliação histórica objetiva e o de mostrar a diferença entre os
fundamentos históricos reais e os fundamentos alegados do poder.
O movimento interno do processo é a história. Para seguir a opção de abordagem do
próprio Marx, de trabalhar com a perspectiva histórica do tema e da teoria, procura-se aqui
situar a formação do pensamento de Marx em seu tempo, assim como se tenta relacionar esse
corpo teórico com a problemática de hoje. Neste empreendimento seguimos a linha de
interpretação representada por Lukács e Meszáros, em que se considera que o rumo estabelecido
7
nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de 1844, prossegue ao longo do amadurecimento da
obra de Marx, entendendo que a distinção entre os trabalhos de Marx jovem e Marx maduro
marca diferenças de complexidade, mas não registra rupturas na concepção da análise.
Essa fisiologia do sistema capitalista de produção avançou através dos Delineamentos de
Crítica da Economia Política (Grundrisse) elaborados em 1856-1857 e publicados em 1904, a
Contribuições à Crítica da Economia Política (publicado em 1859), todos a serem vistos como
material embrionário, mas que não elimina o fato de que a exposição da sinfonia é, realmente, O
Capital. Os dois volumes de Teorias da Mais-valia, elaborados entre 1861 e 1863, foram planejados
como um Livro IV de O Capital, mas foram resumidos e transpostos para o Livro II. Os
Manuscritos de 1844 sinalizam a visão crítica e o fundamento ontológico da empreitada de
explicação da trajetória do homem e enquanto integrante de uma sociedade, abrindo, entretanto,
uma linha de debate com Hegel, que a nosso ver é mais um desenvolvimento contraditório do
pensamento de Hegel, que o contradiz no relativo à fundamentação do Direito e do Estado,
quando se situa com clareza a discordância indicada nos Manuscritos, mas que se consolida em
torno da teoria das classes sociais e da propriedade privada1. Mas todo esse material constitui
um conjunto, que surge como uma síntese no volume de 1859, mas onde ainda não se encontra a
arquitetura de análise que se desenvolve em O Capital. Sem restar nada do mérito das
observações de Raymond Aron, relativas à ruptura orgânica que se encontra entre o material
plenamente desenvolvido e o material desigualmente desenvolvido de Marx, somos levados a
considerar que a riqueza de bifurcações de O Capital não está sequer anunciada nos textos
anteriores.
1 A teoria do Direito de Hegel parte
da determinação do indivíduo, cujas
determinações estão embutidas na
“Idéia” – que é uma transubstanciação
da experiência em racionalidade – e na
ligação orgânica entre a Idéia e o
Estado. Nesse contexto, o Estado tem
atributos de racionalidade que não
dependem de sua relação com a
sociedade civil. Hegel defende uma
individualidade que rejeita a
escravatura porque ela é contraditória
com essa afirmação genérica do
indivíduo, mas presume a propriedade
privada como uma conseqüência dessa
individualidade. Para ele o Estado
deriva dos costumes. “O Estado, como
realidade em ato da vontade
substancial, realidade que esta adquire
na consciência particular de si
universalizada, é o racional em si e
para si. Esta unidade substancial é um
fim próprio absoluto, imóvel, nele a
liberdade obtém seu valor supremo e
assim, este último fim possui um
direito soberano perante os indivíduos
que em serem membros do Estado têm
o seu mais elevado dever” (Filosofia do
Direito, pp.201). Aí a liberdade dos
indivíduos se confunde com seu dever
para com o Estado.
8
A economia política crítica de Marx é crítica e se separa da economia burguesa por duas
razões fundamentais. Primeiro, porque questiona a propriedade privada e segundo, porque situa
historicamente o sistema capitalista de produção, que não é o primeiro e pode não ser o último.
Assim, não é crítica no sentido kantiano dessa expressão, porque revisasse criticamente seus
próprios fundamentos, senão é crítica porque trabalha dialeticamente com os limites da teoria.
O projeto geral de Marx de crítica do conhecimento organizado resulta de uma visão histórica
do conhecimento como produto social, que permite distinguir uma visão aristocrática de uma
visão burguesa, portanto, que legitimaria uma visão popular do conhecimento, tanto como uma
visão dos colonizados frente à visão dos colonizadores – apresentada como única – e que permite
descobrir o colonialismo. A cientificidade desse conhecimento de classe pode ser questionada,
mas sua legitimidade histórica será indiscutível.
Além disso, há uma diferença de sentido de finalidade entre a crítica que se concebe
como ferramenta de uma ruptura com uma ordem supra social de autoridade e a crítica que
surge do próprio exercício de pensar a objetividade do mundo social. Entendemos que a
principal distinção do trabalho de Marx a partir da Contribuição à crítica da Economia Política
(1959) é essa modificação radical do significado de crítica. A crítica constrói através do
movimento negativo da dialética.
Por isso, a nosso ver, as condições explicativas da crítica avançam quando ela desvenda a
contradição monetária do capital, que precisa do dinheiro, mas depende das moedas, que precisa
encontrar aplicações rentáveis suficientes para reproduzir todo o valor acumulado, mas que se
depara com a concentração do controle das oportunidades de aplicação rentável dos capitais.
9
Nessa visão, acolhemo-nos à observação de Marcuse (1967), de que o desenvolvimento do
pensamento de Hegel tornou inevitável uma sociologia. No entanto, é uma sociologia que
avança sobre as contradições necessárias no movimento histórico da organização econômica da
sociedade. A análise critica que se desenvolve sobre a progressão das contradições concretas da
história é a de Marx. Por isso, Marx precisou, desde o primeiro momento, identificar uma
categoria que explique e situe historicamente a exploração do trabalho como nervo central do
processo econômico e não apenas como dado de um momento ou de uma situação. Tal categoria
é a alienação. Neste estudo, especialmente no capítulo 7, torna-se necessário explorar o
significado da alienação na construção da produção capitalista.
Na construção da crítica em seu conjunto, A ideologia alemã tem um papel muito especial
no relativo à identificação sócio-política de categorias econômicas, em mostrar o papel da
ideologia na formação do sistema socio-produtivo do capitalismo e na determinação de sua
superestrutura institucional. Ora, Marx se oporá a Hegel no que para ele a propriedade privada
não pode ser o fundamento legítimo da ordem social, já que ela resulta de uma apropriação
desigual, que prossegue ao longo do desenvolvimento da sociedade, vindo a constituir o
fundamento da produção capitalista.
Um destaque especial deve ser dado à compreensão da divisão do trabalho, que surge
como fundamento material de uma polarização ideológica que se define desde dentro da
organização social da produção e penetra as relações de poder na sociedade em seu conjunto.
“Com a divisão do trabalho, que leva implícitas todas essas contradições e que descansa, por sua vez, na
divisão natural do trabalho no seio da família e na divisão da sociedade em diversas famílias opostas, dá-
10
se, ao mesmo tempo, a distribuição, e, concretamente, a distribuição desigual, tanto quantitativa como
qualitativamente, do trabalho e de seus produtos2...” Diferentemente do que se vê em Adam Smith, a
divisão do trabalho não é apenas uma estratégia de produção que se realiza frente a uma
demanda, senão é uma manobra de controle dos trabalhadores, que se faz mediante a
organização do engajamento do trabalho. A divisão do trabalho é um mecanismo que opera nas
relações entre os capitalistas individuais e os trabalhadores individuais, mas que igualmente
opera nas relações entre nações. É uma situação que se realiza sobre mercadorias específicas e
sobre condições específicas de transacionar com essas mercadorias, mas que se projeta sobre o
controle dos modos específicos de contratar trabalhadores.
Nessa escolha há uma questão de método, que aparece primeiro na escolha dos temas e
do modo de abordá-los; e a seguir, no modo de organizar a análise. Para entender o método e a
obra de Marx, pode-se seguir sua progressão genética, ou acompanhando o desenvolvimento do
tratamento de cada tema. Uma notável continuidade do programa de trabalho de Marx torna
inadequadas separações entre obras de juventude e de maturidade, ou entre obras supostamente
filosóficas e não filosóficas. Melhor, podemos trabalhar na exegese da obra de Marx, com a
suposta diferenciação entre obras de juventude e de maturidade, ou entre obras filosóficas e
supostamente não filosóficas; ou podemos, ainda, olhar a obra de Marx como um conjunto,
especialmente dotado de continuidade, que não chega a ser interrompido por completo, sequer
na produção mais diretamente imposta pelas circunstâncias. Qualquer dessas opções é uma
escolha do leitor de Marx antes que do próprio autor, que, simplesmente, trabalhou no contexto
das transformações de sua época.
2 Karl Marx, Ideología alemã cap.2,
Obras escogidas, Moscou, Progresso,
1974, pp.11
11
Por isso, preferimos uma combinação da abordagem de progressão genética com essa
visão de conjunto da obra, que a coloca como um momento englobante da teoria social, no
sentido dado a esse termo por Karl Jaspers3. Entendemos que a obra de Marx surgiu no final de
um período de grande vitalidade de pensamento social interpretativo da economia, que foi
substituído por um outro período, essencialmente acrítico, de produção de instrumental
analítico: a economia que questiona o significado social da acumulação e a economia que está ao
serviço da acumulação. A economia neoclássica de hoje é parte desse movimento de produção
acrítica de um instrumental formal. A obra de Marx é uma grande ruptura com a subordinação
do pensamento social aos interesses do capital e abre um grande número de linhas de reflexão
sobre a sociedade de hoje.
A visão do conjunto historicamente situado é essencial, inclusive para ser coerente com o
próprio Marx, que olhou a teoria social desse modo. A obra de Marx contém diversas teorias no
sentido limitado desse termo, mas, essencialmente, é a teoria da produção capitalista, cuja
explicação parte da historicidade da vida social e da raiz social da individualidade. Essa é a
premissa que revela o sentido da formação social de valor, ao tempo em que revela a contradição
do sentido de finalidade da acumulação.
A observação inicial que orienta este estudo, é que só se pode compreender O Capital
considerando a totalidade dessa obra, apesar de estar ela desigualmente desenvolvida. O Capital
se coloca como uma leitura historicamente crítica da formação do capital e do capitalismo, que
se vê como um processo em sua totalidade. A noção de totalidade difere radicalmente da noção
de globalidade – trabalhada na macroeconomia marginalista keynesiana, em que na globalidade 3 Karl Jaspers, Razón y existência,
Buenos Aires, Nova, 1956
12
as contradições se dissolvem, enquanto que a totalidade compreende o movimento completo do
processo, com suas contradições. A totalidade se cumpre em seu tempo-espaço histórico e
compreende o modo de se transformar. A concepção do livro corresponde à concepção do
processo que estuda: contém a visão total, a das contradições e a dos componentes do processo.
Os estudos da teoria do valor de Marx, ou que giram em torno do Livro I, isolam parte
de um discurso teórico cujo significado está, precisamente, em sua totalidade. Esta observação
apóia-se em duas referências. Primeiro, no teor de duas cartas de Engels a Victor Adler, com
recomendações relativas a como ler O Capital e no prólogo do mesmo Engels à publicação do
Livro II de O Capital. Especialmente nesse prólogo, Engels ressalta o modo como o livro foi
escrito reiterando o referido a Adler, de que o material apresentado no Livro III teria, em todo
caso, que ser considerado tematicamente como sustentação do exposto no Livro II, apesar de
que este último é, logicamente, antecedente do Livro III. A segunda referência é o tratamento
dado por Marx ao problema de categorias. O livro começa com um tratamento do relativo à
aparência do capital - mercadorias – desenvolvendo uma pesquisa na direção do modo como as
mercadorias são produzidas; e voltando a mostrar como o modo de produzir mercadorias torna-
se o modo de produzir o sistema que produz as mercadorias, e este, por sua vez, revela o
verdadeiro sentido de finalidade do sistema, que produzir mais valia4. Esta visão da obra de
Marx traduz-se numa apreciação crítica da literatura sobre ela, em que há muitos trabalhos
sobre materiais do Livro I de O Capital, e muito pouco material sobre a construção da obra em
seu conjunto, nem sobre o material relativo à circulação de capital.
4 É oportuno aqui citar o ensaio de
Hans Georg Flickinger “O sujeito
desaparecido na teoria marxiana”
(1984), que explora essa linha de
tensão entre o aparente e o essencial
na estruturação de O Capital ,
apontando ao papel necessário dos
elementos da aparência, e,
especificamente, ao significado da
mercadoria. Diremos que o essencial
não se mostra facilmente, e que só se
deixa ver realmente, quando se capta
que se trata de uma progressão de
aspectos da totalidade.
13
A noção de totalidade está no âmago da visão do mundo social em Marx, que é de um
conjunto que se transforma continuamente. A perda da visão de conjunto do mundo social
característica significa perda da capacidade perceber o contexto de conflitos e ajustes de que se
faz a materialidade da sociedade historicamente situada e que mostrará como se formam os
mecanismos de dominação e de subordinação. A totalidade histórica se diferencia da totalidade
em Física, porque compreende o mundo da consciência social, que, para Marx, surge da
coletividade e não da individualidade.
Assim, no mundo social a relação entre aparência e essência e entre formas e modos é
fundamental. O Capital representa o movimento da produção capitalista, desde suas raízes em
movimentos de acumulação violenta até o funcionamento do capital financeiro. Mas, para
apresentar esse movimento, realiza um outro movimento, que parte da explicação das formas
aparentes de riqueza – as mercadorias – para suas formas mais voláteis na esfera do dinheiro.
Não é uma viagem no tempo, já que o capital continua utilizando a chamada acumulação
primitiva, como parte da acumulação avançada; e que os sucessivos movimentos de expansão do
capital financeiro no campo e na valorização urbana, obrigam a ver a atualidade da teoria da
renda do solo. É um jogo que responde pela continuidade da acumulação, ou seja, pela
capacidade da produção capitalista de se perpetuar.
Aí, justamente, está o ponto essencial do questionamento marxiano. A acumulação
depende de uma violência sobre o trabalho, que consiste na capacidade de direcionar a força de
trabalho para operar em função dos interesses do capital. Daí, o essencial do processo do capital
são as condições do trabalho. Em última análise, elas respondem pelas condições de vida dos que
14
dependem de trabalhar, que ficam à disposição do capital e que devem acompanhar os requisitos
de qualificação inerentes às transformações da composição do capital.
A acumulação igualmente depende de que se produza uma estrutura de instituições
compatíveis com as necessidades atuais do processo de acumulação de capital. Como diz Marx,
“(...) a esta propriedade privada corresponde o Estado moderno, paulatinamente comprado, mediante o
sistema de impostos (...). A burguesia, por já ser uma classe, e não um simples estamento, encontra-se
obrigada a organizar-se num plano nacional e já não somente num plano local, e a dar aos seus interesses
comuns uma forma geral” (Ideologia alemã, Oposição entre as concepções materialista e idealista,
Obras Selectas, pp.77) O arcabouço institucional já surge como parte de um conflito de
interesses.
Para isso, o sistema social que responde por essa acumulação usa de duas grandes
estratégias, que são a educação e a violência. A violência é essencial ao sistema e apenas muda
de forma, chegando à violência da moeda. Mas continua contendo todas as formas anteriores,
que lhe permitiram chegar até este ponto. A última violência é a reificação, que reduz a pessoa à
função de trabalho e que deixa sem resposta a anulação dos que são excluídos da oportunidade
de trabalhar. A reificação é uma tendência geral, que está contida nos movimentos que levam à
formação das classes, mas ultrapassa as fronteiras do confronto de classes, atingindo a questão
mais profunda de identidade.
O movimento do discurso no livro vai até os níveis essenciais da produção capitalista,
que são os da concentração do capital, em que se englobam suas diversas formas; e de inversão
do sentido de finalidade da própria reprodução do capital, que passa a ser comandada pelos
15
interesses financeiros. O grande desafio conceitual está em visualizar o capital em sua
complexidade atual e em sua multiplicidade de formas. O capital é o Proteu da mitologia
moderna, cuja pluralidade de formas garante sua unidade interna invisível.
Na composição do discurso em O Capital a nosso ver, há categorias da aparência,
categorias da substância e categorias da transformação, que sustentam o movimento explicativo
da obra de Marx. As primeiras, certamente, são as da pluralidade de formas, onde estão o elenco
das mercadorias e a pluralidade dos meios de produção. As categorias da substância, serão a
totalidade do sistema socio-produtivo e sua complexidade, com sua manifestação na composição
do capital. Finalmente, estão as categorias da transformação, que são a valorização do trabalho e
a mais valia, onde se encontra a possibilidade de um agir diferenciado dos diversos integrantes
da sociedade, que resulta no movimento geral do sistema capitalista. O tratamento dado por
Marx ao problema de categorias torna necessária uma reflexão específica sobre esse ponto, que
procuramos desenvolver no capítulo 4 deste estudo.
Entendemos que em Marx há um manejo de categorias, que pressupõe uma teoria das
categorias, que não está explícita como em Aristóteles e em Kant, mas que constitui as amarras
do andaime geral da análise. Essa teoria das categorias começa com a identificação do papel da
propriedade privada e da alienação e continua com a moeda e o capital, finalizando com a
acumulação e a concentração do capital. O problema de categorias está na fundamentação de
uma análise social histórica, cuja razão de ser consiste em considerar que a história é social e que
o que não se define como social é indiferente para a sociedade. A questão é que ao tratar
racionalmente o contexto social se estabelecem referencias que não podem mais ser ignoradas.
16
Na construção do discurso de O Capital, o uso progressivo de pares de conceitos terá que
ser examinado, mas, sem dúvida, representa os elementos de demarcação dos argumentos. A
relação entre modo e forma, entre forma e conteúdo e entre potência e ato, vêm, diretamente, do
arsenal da Metafísica de Aristóteles. A noção de forma substancial identifica-se com a de capital
valorizado. A solução do problema de separação entre a esfera doméstica e a pública, aparece
através da ligação entre o valor de uso e o valor (de troca), que é o primeiro passo da
reconstituição da integração entre a esfera do individual e do coletivo. A diferença é que em
Marx os pares de conceitos são degraus que levam escada acima, a descortinar a movimentação
do capital dinheiro valorizado, com sua capacidade de empreender em diferentes atividades. A
liquidez é a representação dessa capacidade de passar de uma atividade a outra, mudando de
velocidade.
Com essas referências, neste estudo procura-se seguir o mesmo plano estrutural daquela
obra, começando por categorias enunciativas da aparência do capital, passando à identificação
dos movimentos e dos circuitos em que eles acontecem, chegando à produção social de capital e
à produção capitalista em seu conjunto, procurando expor as contradições inerentes ao processo.
Por isso, é uma exposição que se organiza em torno da progressão de categorias, que se inicia
com uma visão sintética da obra de Marx e de suas referências ontológicas. As referências a
Aristóteles e a Hegel, que são necessariamente vastas e complexas, deveram ser reduzidas ao
mínimo, para que não se tornassem desvios decisivos, em relação com o propósito principal
deste estudo. É preciso não perder de vista que o sentido de finalidade do processo do capital,
que é a acumulação, constrói-se sobre uma irracionalidade inicial, colocada pelo próprio Marx
17
(L.II., pp.31), que segundo ele consiste no fato de que o trabalho gera valor mas não pode ter
valor por separado do capital.
Dessa visão do movimento do capital emergem duas bifurcações: aquela que identifica as
estruturas institucionais e que submete as instituições à pressão dispersiva do próprio capital; e
aquela outra que leva a capacidade de produção à contradição de perpetuar-se na volatilidade do
capital dinheiro. Dessa contradição entre a necessidade de concentrar para acumular e a
dispersão causada pela acumulação torna-se o eixo dessa visão crítica do processo. Voltar à
discussão da renda da terra no final desse percurso, tal como fez Marx, é um desdobramento
inevitável desse curso de análise, que se propõe mostrar a necessidade do capital de encontrar
meios que lhe permitam reproduzir-se indefinidamente, mas que, ao penetrar nessa necessidade
de expansão termina por mostrar o que há de essencial no capital como modo de uma
sociabilidade fundada na desigualdade.
À luz do exposto, parece-nos necessário tomar em conta, que a conclusão do movimento
do capital até sua forma financeira madura leva o sistema a operar em outros patamares de
velocidade, em síntese, desloca constantemente a velocidade do sistema, obrigando os capitais
específicos a encontrarem aplicações suficientes para reproduzir o capital acumulado em
condições em que, entretanto, os diferentes capitalistas têm condições diferenciadas de acesso às
oportunidades de aplicação que viabilizariam sua reprodução. A composição do capital
acumulado impõe um perfil técnico de aplicações, dada a impossibilidade de que algumas
aplicações, dada a impossibilidade de que algumas aplicações, com certa composição técnica
supram a reprodução de outras, de diferente composição técnica.
18
Para os capitalistas em geral, o leque de possibilidades de aplicações fica referenciado
pelas taxas de juros, mas, por oposição, as restrições de liquidez tornam-se parâmetros do
funcionamento do capital no mercado financeiro. Isso, em princípio explica que os capitalistas
operem em todos os segmentos de mercado disponíveis, ou que usem combinações de aplicações
em diversos segmentos de mercado com diferentes composições de capital. O capital aproveitará
todas aquelas oportunidades de aplicação que possam ser parte de um elenco de opções para sua
reprodução. Por isso, a discussão da renda da terra em Marx é, essencialmente, diferente do
tratamento dado a esse tema por Ricardo e ao incorporar criticamente a contribuição de Ricardo
volta à questão levantada por Smith, de que o preço da terra depende da renda que se pode
auferir da produção.
19
UM PRELÚDIO FILOSÓFICO
A obra de Karl Marx resulta de um pensar criticamente a objetividade e de ver a sociedade de
hoje como um resultado em processo de um movimento constituído de afirmações e negações da
vida social em sua condição de processo histórico. Nesse sentido, tem uma ancoragem na
manifestação do espírito objetivo representada por Aristóteles, representando um elo de uma
corrente de pensamento que se desenvolve na perspectiva da objetividade e da objetivização e
um fundamento na reconstrução histórica da filosofia realizada por Hegel. Hegel traz de volta o
método como meio de encontrar uma visão de conjunto da filosofia e de explicar a lógica interna
da transformação ou do transformar-se do mundo. Tal método é a dialética. O olhar da dialética
vê a mudança como algo historicamente necessário, isto é, algo próprio do mundo social. A
objetividade está ligada ao reconhecimento do mundo social. O materialismo em Marx define-
se em primeira mão como uma teoria do conhecimento que se baseia em fontes materiais do
conhecer, que extrai suas referências da história social. Materialismo histórico, portanto, é
aquele modo de ler a história a partir da materialidade da vida social, sobre a qual e com a qual
se a ideologia.
Marx começou por fundamentar sua própria visão crítica da filosofia, com sua Crítica da
filosofia do Direito de Hegel - que não se resume em criticar o conhecimento contemplativo da
realidade, mas que toma a realidade social como tema e constrói uma teoria da ação social
20
historicamente significativa, entendendo que o desenvolvimento da sociedade moderna se dá
mediante uma liberação de forças sociais inerentes à composição de conflito e composição que
resulta em um movimento dialético. Olhar historicamente para a filosofia e entender que a
visão de mundo é o ápice de cada civilização é uma contribuição de Hegel, que se torna um
fundamento do pensamento crítico de Marx. Para situar historicamente esse esforço de
explicação do processo da realidade social de hoje, é preciso começar por rever seus fundamentos
na formação da própria filosofia ocidental.
Desde suas origens, o pensamento sobre o mundo tomou as formas de uma filosofia do
ser (Parmênides) e uma filosofia do tornar-se (Heráclito), que são opostas e complementares. A
linguagem da filosofia do tornar-se é a dialética, que entende que a identidade do ser é
inseparável de seu movimento interno: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, “tudo
muda”, são fragmentos de Heráclito. A idéia de que há uma ordem interna das coisas que pode
ser lida através de uma lei geral encontra-se desde Pitágoras e sua harmonia – ou regularidade
numérica.
Nessas duas correntes e até a síntese representada pela filosofia clássica grega, com
Platão e Aristóteles, surge, como inevitável, uma preocupação com a idéia de princípio, como
princípio de tudo e como princípio explicativo de tudo. A polêmica em torno do princípio gira
em torno de princípios elementais, tais como água e fogo, mas logo se fixa na noção de uma
lógica interna do modo de ser das coisas – o logos – concebido por Heráclito e avança na direção
de tomar o homem como referência do mundo e do conhecimento do mundo (Protágoras).
Como diz Bárbara Cassin, “os sofistas – Górgias então bastante próximo de Protágoras – são um
21
momento necessário da história da filosofia: eles refutam a abstração vazia do ser eleático pela
consideração das coisas efetivas, da realidade do mundo sensível e vivo, pluralidade, movimento,
subjetividade”5.
O reconhecimento do meio social historicamente produzido, com suas instituições, e a
necessidade de situar a materialidade da vida social aparecem em sua plenitude na filosofia
clássica (Aristóteles), distinguindo as esferas da vida privada e a da vida pública. Ressalta que a
objetividade com que Aristóteles trata a vida pública está diretamente ligada a sua não
dependência da Cidade Estado, que é a primeira manifestação de um critério internacional, no
sentido moderno desse termo.
A filosofia grega tendeu a distanciar-se dos condicionamentos da religião, mas o advento
do cristianismo trouxe um novo modo de intolerância e de condicionamento, que adiante
resultou na formalização da Igreja Católica Romana e que gerou seus próprios contrários nas
diversas heresias6, no islamismo e mais tarde no protestantismo. O Islamismo na verdade é uma
variante do grande fluxo de religiões do Oriente Médio, que parte do tronco semita, mas cuja
origem é anterior, tanto quanto Abraão fosse realmente um sumério. A recuperação dessa visão
de uma pluralidade religiosa original é necessária, para desmontar os mitos do judaísmo tanto
quanto do catolicismo.
Desde a Idade Média, a construção de um pensamento independente da autoridade
religiosa tornou-se o modo de criar uma base ideológica que se contrapusesse ao poder despótico
da religião. A gestação desse pensamento livre começou na Idade Média desde dentro da Igreja
Católica – Grosseteste, Abelardo, Nicolas de Cusa, Okham – mas só alcançou visibilidade a
5 Bárbara Cassin, O efeito sofístico,
São Paulo, 34, 2005.
6 O papel das chamadas heresias,
desde o monofisismo, o arrianismo,
até os cátaros e os jansenistas, merece
uma análise especial, não só para
registrar a falta de unidade interna
da Igreja, como para mostrar essa
pluralidade como um traço essencial
da religião organizada, que vem
desde os expurgos de textos da Bíblia
e o esquecimento deliberado de
correntes iniciais como os essênios.
22
partir do século XV e ganhou notoriedade durante a Renascença, quando incorporou o
pensamento grego clássico, que tinha viajado através de Alexandria e do mundo islâmico. O
trajeto da formação de um pensamento científico é, também, o do desvencilhamento da razão e
o do descobrimento do povo como e enquanto coletivo fundamental7. Se as Guerras de Sucessão
(1618-1640) marcaram a substituição do território do monarca pelo território da sociedade na
Europa ocidental, é um longo percurso, coberto por alquimistas e por utopistas, que prefacia o
reconhecimento do ser social da sociedade urbanizada e que vem a mostrar a sociedade como tal.
A noção de totalidade, que surge no mundo do absolutismo do século XVII, torna-se uma
referencia essencial da filosofia de Hegel e do pensamento social de Marx.
A grande revolução social representada pela ascensão da burguesia instala, também, um
estilo de controle social do poder, que combina o conhecimento científico com uma visão crítica
da sociedade. Ao longo do século XVII se gesta a crise do século XVIII, do mesmo modo como
a Revolução Francesa canalizou as colocações dos Enciclopedistas. O Iluminismo em geral
significa a entronização da razão como um único meio legítimo de produção de conhecimento,
mas não supera a contradição entre o sujeito individual intransponível de Descartes8 e a
necessidade de avançar a uma análise dos coletivos sociais que emergiam da superação do
feudalismo.
O fundamental é a organização social da produção, que prepara o terreno para a
Revolução Industrial e que abre as portas para os processos ideológicos do poder baseado no
controle individual da riqueza, isto é, dando um novo sentido ao paradigma da propriedade
privada. A propriedade privada não será mais um estado, mas será a condição fundamental da
7 A poesia de François Villon pode ter
sido mais reveladora do povo que a
filosofia de sua época.
8 A fórmula do cogito, ergo sun” (penso,
logo existo) é a expressão de uma
individualidade sem brechas e sem
acesso ao coletivo social.
23
formação de capital. Sobre essas bases materiais, a burguesia cria uma nova cortina ideológica –
capaz de conduzir a alienação dos trabalhadores – e passa a captar as bandeiras populares e a
criação do Estado nacional, que tinha sido parte do processo do absolutismo, muda de sinal, com
uma aliança das realezas com a burguesia como parte de sua estratégia para controlar a
aristocracia. O projeto de poder do absolutismo se defronta com a ascensão das sociedades
burguesas do século XVII e com um conflito com as aristocracias. Historicamente, a critica de
Marx é uma resposta a esse movimento geral de reorganização da formação de poder econômico
e político que se assenta na organização industrial da produção.
O ambiente do século XVIII, de crise do absolutismo, ou de substituição dos restos do
sistema feudal por um sistema burguês de produção, situa a questão do idealismo. Primeiro,
uma disputa em torno da possibilidade de uma acumulação de conhecimento – que sustenta a
noção de ciência – com uma filosofia das sensações (Kant vs. Hume) e depois, uma questão da
historicidade do conhecimento (Hegel vs. Kant) que levanta a questão em torno dos coletivos da
sociedade moderna. A passagem de sensações a razão, que é uma questão levantada por
Aristóteles, é fundamental na perspectiva da construção de um conhecimento socialmente
legitimado.
A historicidade das relações e das instituições é uma marca do pensamento de Hegel, que
vê a sociedade civil e o Estado como resultados de processos que sintetizam a experiência de
cada nação9. A experiência de cada nação se vê como um processo que envolve suas diversas
atividades e que alcança seu ápice em sua visão de mundo, que se pode interpretar como uma
visão ideológica da história.
9 Lecciones de filosofia de la historia
universal, Madrid, Alianza Editorial, 1986.
24
A formulação do idealismo crítico de Hegel trouxe de volta o modo dialético de pensar –
inaugurado no Ocidente por Heráclito10 – que pode ser definido como a lógica interna do
desenvolvimento do objeto social e de sua subjetividade11. A dialética é o modo necessário de
análise, porque a consciência se forma dialeticamente12 e porque a estrutura conceitual do
conhecimento se desenvolve dialeticamente13. A razão não é somente capaz de criar
conhecimento, como defende Kant, senão que uma conseqüência do desenvolvimento do ser
social, que se apropria de suas próprias faculdades e se insere no mundo. Como disse Marcuse, a
filosofia de Hegel tornou inevitável uma sociologia. Mas ao se defrontar com as contradições
entre a sustentação do Estado e as transformações da sociedade civil em seu conjunto, a filosofia
de Hegel infletiu na direção de uma justificação do Estado pelo Estado, desvirtuando o
dinamismo da relação entre a sociedade e o Estado.
A revelação dos coletivos das sociedades baseadas na mercantilização do trabalho contém
o germe da substituição das relações feudais por relações contratuais. A Revolução Francesa,
surgida no contrapé do declínio do absolutismo francês, tornou-se a principal manifestação
desse sistema que valoriza a individualidade, porque ela representa o modo como o sistema
produtivo pode incorporar aumentos de produtividade do trabalho. Mas é o processo social do
capitalismo que vai fazer surgirem as forças de transformação das relações de poder e que
conduzirão o sistema econômico. Ao apontar esse poder transformador do capitalismo Marx
inaugura um modo de pensar a sociedade que não pode mais ser ignorado.
10 O indiano Nagarjuna, também no século VI b.c., foi autor de um discurso dialético semelhante ao de Heráclito.
11 O exemplo dado por Hegel no prólogo da Fenomenologia do espírito, resume essa visão. Em suas palavras, para que um fruto apareça, ele supera e toma o lugar de uma flor e esta, para aparecer, supera e toma o lugar de um botão. O fruto está dialeticamente contido no botão, mas este botão só pode dar lugar a este fruto. Todos processos são determinados. Não há processos meramente genéricos. 12 G.W.F. Hegel, Fenomenologia del espíritu, México, Fondo de Cultura Económica, 1984. 13 G.W.F. Hegel, La ciencia de la lógica, Buenos Aires, Hachette, 1967, 2 vols.
25
ORIGENS E SENTIDO DE FINALIDADE
...a finalidade última desta obra é descobrir a lei econômica
que preside o movimento
da sociedade moderna (El capital, Prólogo ,pp. xv) 14
A linha mestra
Marx substitui o estudo da realidade social mediado pelos conceitos, tal como tinha feito
Hegel, por uma apresentação direta da realidade social, com suas implicações em revelar os
participantes desse processo e mostrar as determinações materiais de suas ações. O movimento
de mediação se apresenta num sentido inverso ao de Hegel, porque Marx parte de um conceito
que é uma síntese de um processo social, que é o conceito de mercadoria, e constrói uma
progressão de contraposições conceituais até o nível mais amplo, que é o da produção capitalista
tomada como um conjunto, para, a partir dela, reconstruir a compreensão da produção social de
valor, reconhecendo que sua principal referência são as variações do trabalho socialmente
necessário.
14 A busca de uma lei geral
explicativa é o principal traço do que
se veio convencionando chamar de
Economia Clássica e Marx não foge
dessa regra. Veremos que ele destoa
de seus antecessores por buscar uma
lei histórica a partir de uma crítica
do funcionamento do sistema atual de
produção.
26
Tal empreitada impõe explicar os modos do movimento social e a composição dos
integrantes desse movimento, tanto integrantes sociais como dos meramente materiais. O que
se tem chamado de método estrutural histórico de Marx é a expressão metodológica dessa
genética da sociedade capitalista moderna.
Neste ensaio pretende-se estudar essa linha central do pensamento teórico de Marx, tal
como ela está exposta em O Capital, e aproximar esta reflexão da consideração de problemas
específicos das economias periféricas avançadas de hoje, o que é um modo de dizer, refletir sobre
o Brasil. Na redação do corpo do texto apresenta-se uma leitura sintética do movimento teórico
exposto no O Capital. As observações históricas recentes e as relativas à experiência brasileira
ficam concentradas nas notas de rodapé e nas três últimas seções do texto principal.
No estudo do capital, é imperativo considerar os dois problemas filosóficos fundamentais
de ponto de partida e sentido de finalidade. Ambos estão presentes no conjunto da obra de
Marx; e se encontram, em O Capital, na relação entre a identificação de interesses de poder
assentados na materialidade econômica e o reconhecimento da negação de humanismo, imposta
pelas determinações da acumulação. Entendemos que a negação da filosofia – alegada pelo
próprio Marx – deve ser entendida como uma rejeição da esterilidade da metafísica e não como
um abandono dos problemas e do método da filosofia maior.
A linha central é o movimento da vida social conduzido pela materialidade dos
relacionamentos no ambiente das sociedades modernas. O tema de Marx, como diz Lukács, é a
ontologia do ser social. Diremos que é a ontologia do ser social moderno, mesmo quando
presente em sociedades antigas, tal como Aristóteles. Como a vida social depende de sua
27
materialidade, O Capital pretende decifrar a montagem da base material da sociedade capitalista,
que é o produto da civilização ocidental. Subjacente nessa abordagem, há um problema cultural,
no sentido mais amplo do termo, relativo à relação entre o desenvolvimento dessa sociedade
econômica originada na Europa cristã e as demais produções civilizatórias, tanto no plano
original, na relação entre a produção capitalista e a que Marx denominou de modo de produção
asiático, como no relativo a outras produções socioculturais, como a reconhecida hoje nos
fundamentalismos e no oriental como tal de modo geral.
Admitindo que Marx é, antes de tudo, um filósofo alemão como diz Kolakowski (1985), e
que o principal objetivo de O Capital é explicar a produção capitalista, trata-se de estabelecer a
linha mestra da análise da sociedade econômica capitalista, entendendo que tal percurso15 só é
inteligível quando colocado frente a seus fundamentos e seu sentido de finalidade, isto é,
quando visto como uma teleologia. Marx diz que é preciso substituir a atitude da filosofia, de
limitar-se a conhecer o mundo, pela atitude de transformá-lo (Teses sobre Feuerbach, 12). Mas é
evidente que muitos filósofos pretenderam transformá-lo e que o corpo central da obra de Marx
é, justamente, uma contribuição necessária ao conhecer. Simplesmente, trata-se de um modo
especial de conhecer, que é um meta conhecimento, no que é, de fato, conhecer o conhecimento
do mundo, em que é no conhecimento que está a inevitabilidade da atitude de transformar. A
teoria da ação é inseparável de um desenvolvimento do conhecimento teórico, devendo
ultrapassar – mas nunca negar – sua circunstância. O que a teoria da ação social tem de especial
em Marx é que a teoria da ação de coletivos integrantes de sociedades historicamente
determinadas.
15 Percurso no sentido dado por Vico
a esta expressão, isto é, de trajeto
histórico do sujeito do processo social.
Percurso do capitalismo e percurso da
explicação do capitalismo.
28
A relação entre fundamento e sentido de finalidade apresenta o ser social historicamente
formado e em formação, fazendo com que esta teoria seja profundamente filosófica no que ela é,
necessariamente, uma ontologia, como colocou Lúkacs (1979): "A verdadeira construção de O
Capital mostra que Marx lida decerto com uma abstração, mas evidentemente extraída do mundo real. A
composição do livro consiste, precisamente, em introduzir continuamente novos elementos e tendências
ontológicas no mundo, reproduzido inicialmente sobre a base dessa abstração; consiste em revelar as novas
categorias, tendências e conexões surgidas desse modo, até o momento em que temos diante de nós e
compreendemos a totalidade da economia enquanto centro motor primário do ser social".
Um fundamento essencial da doutrina de Marx é a interpenetração, ou a circularidade,
entre produzir e consumir, que sintetiza a circularidade de funções das pessoas e dos grupos
sociais na sociedade moderna. Tal circularidade mostra, ao mesmo tempo, o jogo de dinamismo
e identidade que subjaz na movimentação do mundo. É uma visão oposta à dos economistas
clássicos, que se ativeram ao aspecto externo de separação, sem atentar ao aspecto interno de
identidade. É o mesmo que acontece com a visão das funções de uma cidade – moradia, trabalho,
transporte e lazer – como situações separadas, ou como funções interdependentes, que só se
explicam uma pela outra. Essa circularidade, cuja exposição ocupa as primeiras páginas dos
“Grundrisse”, é essencial para que se entenda a diferença entre a funcionalidade do sistema
enquanto conjunto de funções, que se desloca como conjunto, e a identificação de funções
específicas, que podem ser isoladas como quimicamente puras.
O Capital é um grande projeto de análise da formação da sociedade capitalista, que por
sua novidade - ninguém tentou isso antes - precisou estabelecer o modo de análise compatível
29
com seu tema. Identificamos dois momentos fundamentais desse modo de análise: a definição
de categorias representativas da realidade social e o reconhecimento de circuitos de
relacionamentos, com diferentes velocidades, organizados em ciclos correspondentes às formas
do capital. O reconhecimento de um conjunto inicial de categorias e o desenvolvimento de uma
reflexão ao nível categorial é um dos pilares desse trabalho, que exige uma análise especial,
sobre a perspectiva histórica do pensamento sobre categorias.
O Capital é uma obra dedicada a explicar o dinamismo inerente à materialidade da vida
social, que presume um subsolo ideológico que reconhece como inerente ao mundo social.
Assim, para alcançar esse objetivo de entendê-la, é preciso identificar as categorias da análise de
Marx e o sentido de finalidade latente no rumo das transformações inerentes à produção
capitalista, que não se confunde com tendências específicas latentes no desenvolvimento do
sistema de produção.
Na linha de pensamento hegeliano de que partiu Marx16, entende-se que o poder
explicativo do corpo teórico só se revela cabalmente, quando se expõe sua ancoragem e quando
ele é visto como um processo que contém as tendências de seu próprio desenvolvimento17.
Assim, é preciso conhecer o processo de produção de teoria, que é a prática da teoria ou a
teorização. O fundamento do corpo teórico do pensamento de Marx é uma compreensão do
dinamismo do campo social. As estruturações, por importantes que sejam, são subordinadas.
Não há como explicar a produção capitalista sem perder de vista o essencial que é o processo de
produção capitalista. Por isso, não há como excluir que esse processo tem necessariamente um
rumo, que se revela, progressivamente, na trajetória das transformações objetivas do processo.
16 Acerca da relação contraditória de
Marx com o pensamento de Hegel,
convém citar o próprio Marx, quando
se insurgiu contra a mediocridade dos
pretensos hegelianos e tomou o
partido do hegelianismo de Hegel
contra o dos seus seguidores. “Há
cerca de trinta anos, quando ainda
estava na moda aquela filosofia, tive
a ocasião de criticar tudo que havia
de mistificação na dialética
hegeliana. Mas, coincidindo com
esses resmungões, petulantes e
medíocres epígonos que hoje põem
cátedra na Alemanha culta, deram
em arremeter contra Hegel... Isso foi
o que me decidiu a declarar-me
abertamente discípulo daquele grande
pensador... (Marx, Postfacio à
segunda edição de O Capital)
17 A fenomenologia do espírito, na
linguagem de Hegel, é a produção do
sujeito totalmente constituído, que é
um ser no mundo, um ser social. A
centralização no ser social, Hegel
realizou uma ruptura com o
movimento conceitual de Descartes a
Kant, ligando a determinação da
individualidade a dados externos a
ela. A relação senhor-escravo situa
diferentes condições dessa discussão
da complexidade da esfera social.
30
Certamente, é um ponto controverso, que só pode ser plenamente exposto quando se
entende como processo de sociedades históricas concretas. Há um componente de determinismo
nas leis do desenvolvimento do capitalismo, ou a referência central é a práxis transformadora
destituída de sentido de finalidade? Como fica uma teoria da ação social baseada no poder
revolucionário dos trabalhadores - ou em todo caso dos que estão definidos na sociedade por
venderem tempo trabalho - se há leis próprias do desenvolvimento do capitalismo que fixam o
rumo? O poder transformador está em potência na sociedade; e passa a ter diferentes modulações
quando é libertado, tal como o gênio da lâmpada, por uma força externa ao seu destino.
As leis do capital
Da leitura da obra de Marx, inferem-se leis do capital, tal como leis gerais do funcionamento
da sociedade capitalista. No nosso entender, a primeira lei do capital é que ele se sustenta do
trabalho para criar o valor necessário para se reproduzir e acumular. A segunda lei do capital é
que ele cria suas próprias condições de acumulação, com sua própria incerteza. A terceira lei do
capital é que ele tem que encontrar oportunidades de aplicação, em composição e em escala
suficientes para resolver os problemas de reprodução necessários a sua acumulação. A
reprodução do capital em seu conjunto não está garantida e deve ser afirmada em cada
momento, segundo o capital hoje acumulado enfrenta condições futuras de mercado. O processo
A Fenomenologia do Espírito é a obra
de Hegel que mostra essa produção
do ser social enquanto tal, enquanto a
Ciência da Lógica apresenta a
produção do conceito que é o pensar
objetivizado do sujeito. Não importa
que Marx negue a filosofia
formalmente, externalidade, abrindo
a porta à academicamente,
constituída, ele se move
consistentemente no plano ontológico;
e é nesse plano que podemos comparar
a análise da ontologia de Hegel feita
por Marcuse com a análise da
ontologia de Marx feita por Lúkacs.
31
da formação do capital é irreversível e leva o sistema socio-produtivo a novas contradições,
decorrentes dessa incerteza da reprodução do capital acumulado.
No Livro III de O Capital Marx trata do que denomina de lei do capital, que é a
tendência à queda da taxa de lucro, em si contraditória com a estratégia do capital, de aumentar
a taxa de mais valia em seu movimento de acumular resultando numa tendência à crise do
sistema, determinada pelo modo como se realiza o movimento da acumulação de capital. Mas
trata essa lei como algo que surge do interior do capital, como algo que é lei porque é um
movimento inevitável do capital sobre si próprio.
Parece ser necessário rever essa parte da teoria, já que essa lei geral do capital
corresponde a uma crescente neutralização de força de trabalho, que não é absorvida pelo
mercado de trabalho, representando a sobre-exploração decorrente da compressão da taxa de
salário e a exclusão de um contingente crescente da população, com a conseqüência de que a
sustentação da acumulação requer maior controle social. Assim, a explicação do movimento
técnico do capital converte-se em explicação do processo social de poder que distribui as
oportunidades de acesso à riqueza.
Esta visão sintética do processo do capital será retomada ao final deste trabalho, à luz da
argumentação desenvolvida por Marx, relativa ao processo da produção capitalista em seu
conjunto. A tendência do sistema à crise tanto pode ser vista como resultado de uma contradição
interna do processo, como pode ser entendida como uma conseqüência de forças despertadas
pelo movimento do capital e que constituem outra variante civilizatória, tal como é o confronto
com o colonialismo organizado e com as variantes da modernização do colonialismo.
32
ORGANIZAÇÃO SOCIAL E IDEOLOGIA
A relação capital/trabalho, as relações entre capitalistas e
trabalhadores e a divisão do trabalho
A organização social é a primeira referência na direção de uma compreensão das relações de
poder em seus fundamentos econômicos e políticos. A relação geral entre capital e trabalho se
materializa em relações concretas entre capitalistas e trabalhadores, onde se incorporam
condições especificas de desigualdade entre o modo de participação dos capitalistas e dos
trabalhadores. Diz Marx que “o trabalhador não precisa necessariamente ganhar com o ganho do
capitalista, mas necessariamente perde quando ele perde”. E adiante, “No trabalho toda a diversidade
cultural, espiritual e social da atividade individual sobressai e é paga diferentemente, enquanto o capital
morto caminha sempre no mesmo passo e é indiferente perante a atividade individual efetiva”18. Até aqui
se indica que a relação entre o capital e o trabalho compreende uma complexidade, que é a da
formação histórica do trabalhador. Além disso, é uma relação dinâmica, que se desenvolve junto
com o movimento da acumulação, já que os trabalhadores ficam cada vez mais dependentes da
forma de organização da produção de que participam. Ao tomar a relação capital/trabalho como
um relacionamento entre capitalistas e trabalhadores concretos em determinadas situações,
18 Karl Marx, Manuscritos
econômico-filosoficos, São Paulo,
Boitempo, 2004, pp.25
33
Marx chega com uma revisão decisiva da noção de divisão do trabalho, que ele vê como um
movimento inerente à acumulação por um lado e por outro lado, como um movimento que
distancia os trabalhadores dos frutos de seu trabalho. Ainda nos Manuscritos, Marx distingue
sete aspectos desse problema, que são os seguintes: 1. As oscilações acidentais e súbitas dos
preços atingem menos a renda da terra que a parte da renda dividida entre capitalistas e
trabalhadores; 2.Se a riqueza da sociedade estiver em declínio, o trabalhador sofre ao máximo; 3.
A situação dos trabalhadores só pode melhorar quando a riqueza aumenta, mas nesse caso
aumenta a exploração ; 4. O aumento do número de trabalhadores avilta o salário; 5. A elevação
dos salários desperta no trabalhador a obsessão do enriquecimento; 6. Há sempre mais pessoas
infelizes que felizes; 7. Apesar que é o trabalho que gera riqueza, o trabalhador é controlado
pelos capitalistas e pelos proprietários.
Esses pontos levam a uma observação sintética sobre o significado da divisão do trabalho
na acumulação. Na perspectiva de Marx a divisão do trabalho converte-se em instrumento de
controle da realização do trabalho em geral e em controle da distribuição internacional da renda.
A divisão do trabalho é o mecanismo através do qual se delibera quem fará o que. Os aumentos
de produtividade são, justamente, o meio para que os capitalistas tenham mais o que extrair de
um mesmo número de trabalhadores. Nas palavras de Marx, “Enquanto a divisão do trabalho eleva
a força produtiva do trabalho, a riqueza e o aprimoramento da sociedade, ela empobrece o trabalhador até
a condição de máquina. Enquanto o trabalho suscita o acúmulo de capitais e, com isso, o progressivo bem
estar da sociedade, a divisão do trabalho mantém o trabalhador sempre mais dependente do capitalista,
34
leva-o a maior concorrência, impele-o à caça da sobreprodução, que é seguida por uma correspondente
queda de intensidade”19.
A divisão do trabalho desencadeia a concorrência entre os capitalistas, praticamente,
separando o grande capital do pequeno capital. O grande número de pequenos capitalistas deve
sobreviver no ambiente de mercado em que o grande capital promove a divisão do trabalho e se
reserva os maiores e melhores investimentos. Como a concentração do capital é o movimento
principal determinante da reprodução do capital em geral no sistema de produção capitalista em
seu estagio mais avançado, é preciso entender que o pequeno capital está constituído de
empresas que operam de modo apenas tolerado no mercado conduzido pelo grande capital.
Somente o grande capital pode conduzir a divisão do trabalho no nível da tecnologia mais
avançada e essa será uma vantagem decisiva, com a qual exerce um poder final de controle sobre
os pequenos capitais.
A ideologia
Nossas idéias são a conseqüência necessária da sociedade em que vivemos. HELVECIUS
As mudanças nos fundamentos econômicos levam, mais tarde ou mais cedo, a transformações da
imensa superestrutura em seu conjunto. Ao estudar essas transformações é sempre necessário
19 Karl Marx, op.cit. pp.29
35
distinguir entre a transformação material das condições econômicas de produção, que podem ser
determinadas com a precisão da ciência natural, a legal, política, religiosa, artística ou filosófica –
em resumo as formas ideológicas em que os homens se tornam conscientes desse conflito. Assim
como não se pode julgar um homem pelo que ele pensa de si próprio, tampouco se pode julgar um
período de transformações por sua consciência. Pelo contrário, a consciência deve ser explicada
pelas contradições da vida material, do conflito entre as forças sociais de produção e as relações de
produção (Contribuição. pp. 21)
Acerca de ideologia, há uma divisão fundamental entre aqueles que a vêm como algo que se
forma e reproduz na esfera das idéias e aqueles outros que a vêm como algo que surge da relação
entre a materialidade da vida social e seus aspectos não materiais. A teoria de Marx ocupa um
lugar especial nesse segundo grupo, onde, por isso mesmo, nela a ideologia deve ser procurada
na raiz das relações sociais de produção, já que para ele são as relações de produção que situam
as pessoas em seu coletivo e em seu momento atual20. Entendemos que nessa perspectiva a
esfera da ideologia é produzida historicamente como um desdobramento da vida material, da
qual se destaca, mas a cujo desenvolvimento está ligada.
“As mudanças nos fundamentos econômicos levam mais cedo ou mais tarde à transformação de
toda a imensa superestrutura. Ao estudar tais transformações é preciso distinguir sempre entre a
transformação material das condições econômicas da produção, que podem ser determinadas com a precisão
da ciência natural, e as formas legais, políticas, religiosas, artísticas, em resumo, ideológicas em que os
20 Cabe citar aqui o ensaio de Stuart
Hall, O interior da ciência, em Da
ideologia, (1980), que traça a linha
genética da análise da ideologia na
ciência social de hoje.
36
homens se tornam conscientes desse conflito e lutam por ele. Assim como não se pode julgar um indivíduo
pelo que ele pensa de si próprio, tampouco se pode julgar um período de transformação por sua consciência,
mas, pelo contrário, a consciência deve ser explicada pelas contradições da vida material, pelo conflito
existente entre as forças sociais de produção e as relações de produção. Nenhuma ordem social nunca é
destruída antes que todas as forças produtivas de que ela é capaz tenham sido desenvolvidas, e novas
relações superiores de produção nunca substituem as mais velhas antes que as condições materiais de sua
existência tenham amadurecido dentro da estrutura da velha sociedade.” (Contribuição. pp. 21)
Para Marx a questão da ideologia é o meio de afirmação das classes, que, entretanto, não
se revela inicialmente, senão por seus aspectos negativos, que são os de estranhamento e
alienação. Os trabalhadores só percebem sua condição porque são explorados e porque a
exploração é o verdadeiro modo como os capitalistas mantêm sua própria posição no controle do
capital.
Observe-se que uma leitura atualizada do pensamento de Marx significa uma leitura
capaz de absorver seu sentido de crítica interna do processo social, portanto, onde a leitura dos
acontecimentos de hoje é sempre material para somar-se à visão de totalidade da crítica do
processo do capitalismo. Outro não seria o significado da escolha de Marx de analisar o
capitalismo através de sua expressão na Inglaterra. Lembraremos que cerca de 1850 os processos
políticos da expansão do capital tornavam-se mais evidentes na França que na Inglaterra, tal
como indica a própria leitura de Marx do processo francês, tal como ela aparece no 18 Brumário,
mas que era na Inglaterra onde os movimentos imperiais do capital apareciam em sua plenitude,
37
combinando as transformações da produção industrial com novas formas de subordinação da
produção rural e com um aprofundamento do colonialismo.
A teoria da divisão do trabalho entrou na Economia Política com Adam Smith, que viu
nela o mecanismo pelo qual o capital alcança aumentos de produtividade do trabalho. Uma
leitura cuidadosa de Smith mostra que ele mesmo percebeu que a divisão do trabalho só pode
avançar até onde a demanda justifique incrementos de produção. Marx revisa as idéias de Smith
sobre a divisão do trabalho21 e trata a divisão do trabalho como um processo – e não como uma
situação - que tem os dois resultados de aumentar a produtividade do trabalho e de precipitar
interesses conflitivos22. Segundo ele, a identificação dos grupos de interesse tem sua etapa
estamental23 e passa a relações de classe, ao formalizar-se a produção capitalista. Com isso, dá
um novo sentido à teoria da divisão do trabalho de Adam Smith, reconhecendo, entretanto, ser
aquela teoria o nervo central de uma abordagem realista da organização social da produção.
A divisão do trabalho define interesses contrários e complementares, dos que controlam
capital e dos que vendem tempo de trabalho, que são os fundamentos concretos da ideologia.
Através da divisão do trabalho os capitalistas realizam a separação dos trabalhadores do
processo de produção, que é a principal operação do estranhamento na produção capitalista. Ao
acontecer isso, os interesses dos trabalhadores não se limitam mais a conseguir melhores
salários, senão a conseguir condições que lhes permitam acompanhar o processo de produção e
assim defender sua capacidade futura de mudarem sua condição material de vida.
A ideologia surge como representação de interesses, em que alguns deles aparecem em
sua forma direta, como interesses econômicos e no controle da terra e do trabalho e outros se
21 Karl Marx, Teorias da mais valia,
vol1.
22 É preciso lembrar que para Smith
a divisão do trabalho está ligada à
produtividade – que é a medida de
eficiência do trabalho - e que esta
contém um componente de incerteza,
já que, segundo o próprio exemplo de
Smith, é apenas o acaso que decide se
o caçador encontrará uma lebre ou
um veado e que lhe permitirá obter
mais ou menos carne com o mesmo
tempo de caminhada e a mesma bala.
23 Encontra-se aí uma compreensão
de estamento antagônica à de Weber,
para quem estamentos são formas de
organização com características
próprias que as diferenciam na
relação entre classes e com a vida
política. Para Weber estamentos são
as forças armadas e a Igreja
internacional. Para Marx,
estamentos são formas de
organização que exprimem interesses
antes de consolidarem coletivos
estáveis. Os garimpeiros serão
estamento, as empresas mineradoras
são parte do capital.
38
manifestam de modo indireto na esfera religiosa, na esfera militar e na política. Uma vez
configurada, a ideologia tem sua própria cara e encontra seus meios de expressão, no manejo dos
preconceitos, no uso da religião e na construção de um corpo jurídico que formaliza essa visão
de classe24. A ideologia não será, portanto, um corpo inerte senão que terá suas próprias
transformações, na medida em que refletir as alterações nas relações diretamente determinadas
pelo processo de produção.
Numa leitura atual desse campo temático – da ideologia – não podemos nos eximir de
apontar o papel do debate sobre ideologia no desenvolvimento do pensamento marxista,
destacando as duas visões mais claramente configuradas, de ideologia como falsa consciência –
Lukács – e de ideologia como representação da superestrutura, Gramsci, apesar de que, no nosso
entender, as duas se fundem numa expressão da necessidade crítica de auto-reconhecimento
numa visão crítica da história do sistema capitalista de produção26. Entretanto, há um dado
adicional do pensamento de Gramsci, que é o pressuposto de existência de um partido político
capaz de exprimir o conjunto de interesses e reivindicações da maioria, isto é, do proletariado.
A polêmica sobre ideologia transcendeu o horizonte de uma teoria social crítica, para
tornar-se uma linha divisória entre uma ciência social que questiona seus próprios fundamentos
ideológicos e uma ciência social que os toma como um dado e por isso alega não haver um
problema ideológico. O positivismo não será apenas o modo de trabalhar da ciência, senão sua
capacidade de perceber-se como meio de conhecer. A positivização do conhecimento e sua
separação do processo de transformação do sujeito nesse mesmo conhecer farão com que o
24 O debate recente sobre ideologia
traz dois encaminhamentos
diferentes, mas parcialmente
complementares, respectivamente, de
uma visão de transformação social na
sociedade mundializada e de ideologia
como capacidade de refletir o ponto
de vista dos excluídos. O trabalho de
Istvan Mézsaros (O poder da
ideologia, 2004) é uma importante
contribuição na primeira linha, que,
de todos modos vem sendo
enriquecida por um debate melhor
fundamentado sobre a escravidão.
Entretanto, não há como deixar de
registrar que a análise do contexto
ideológico da periferia continua à
espera de um tratamento
historicamente sustentado e
consistente.
25 A tentativa de Mezsáros de expor
o papel da ideologia na conformação
da sociedade de hoje explora as
contradições ideológicas do
fundamento científico de hoje, mas, a
nosso ver deixa escapar os problemas
da fundamentação da ciência como
tal, que não podem ficar presos aos
problemas do controle social da
ciência.
39
processo de formação de ideologias fique como algo externo à experiência representada pela
participação na vida social.
Nesse sentido, a ideologia é a reflexão do modo de funcionar da economia e da política e
é também o modo de identificar os participantes desses processos. Por exemplo, os imigrantes
de baixa renda provenientes de países mais pobres têm realmente o direito de migrar e depois,
têm realmente o direito de aspirar a ter direitos equivalentes aos trabalhadores dos países aos
quais migram?
Hoje, que vivemos numa época marcada pela estratégia do poder para desqualificar
ideologia como um oposto de racionalidade, para podermos apreciar o significado da luta de
Marx em torno de ideologia, precisamos lembrar que para ele se tratava de separar ideologia de
irracionalidade. Através de suas críticas a Hegel e a Feuerbach, Marx realiza uma tarefa árdua,
de separar a ideologia de teologia, o que é dizer, de colocar a ideologia como uma decorrência das
condições em que se desenvolve a materialidade da vida social e não como algo que surge e que
permanece na esfera do espírito. Ressalta-se, entretanto, que a crítica de Marx atinge mais
duramente aos chamados neohegelianos – Strauss, Bauer e outros – que são filósofos posteriores
a Hegel que, a seu ver, exploraram aspectos parciais do pensamento de Hegel, explorando seu
lado conservador, perdendo seu sentido de totalidade, assim como perdendo a perspectiva de
Hegel da formação do ser social. Pelo contrário, Marx toma de Hegel o sentido de totalidade
específica dos processos sociais, a doutrina da formação do ser social – onde se inclui a doutrina
da relação entre senhor e servo – a teoria do trabalho abstrato27, a doutrina das grandes formas
da história28 além do método dialético29. O conflito com Hegel gira em torno da disputa entre
26 Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos, Universidade de
Birmingham, Da Ideologia, Rio de
Janeiro, Zahar, 1980. Referimo-nos
especificamente aos ensaios de
McDonough, A ideologia como falsa
consciência: Lukács, e de
Hall,Lumley e McLennan, Política e
ideologia: Gramsci.
27 G.W.F.Hegel, Fenomenologia do
espírito. A maior parte dessas
doutrinas de Hegel aparece na
Fenomenologia, como parte de um
discurso maduro, apareceram antes
em forma embrionária na Filosofia
Real e estão submersos na Filosofia
da História. Restringir a crítica de
obra de Hegel aos projetos da
Fenomenologia e da Ciência da
Lógica significa amputar toda sua
riqueza histórica.
28 -------, Lições de História da
filosofia universal. A teoria da
história de Hegel aparece
explicitamente nas Lições de História
da Filosofia Universal, se bem que os
elementos essenciais de teoria da
história estão embutidos na
Fenomenologia do Espírito. Trata-se
de ver objetivamente o movimento da
história como algo que se processa
40
uma visão materialista e uma visão idealista da formação do ser social. Mas não há uma disputa
acerca da primazia de explicar o homem como ser social, que é um dos pontos de ruptura entre
Hegel e Kant30.
A perspectiva da formação social da ideologia surge no contexto da divisão do trabalho,
através do processo de separação dos trabalhadores de seus instrumentos de trabalho, que
prossegue com a perda do conhecimento do processo de produção e com a reificação
(coisificação) dos trabalhadores, que é o processo de estranhamento31. O deslocamento
progressivo da posição dos trabalhadores é um movimento inerente ao processo de exploração.
Nesse sentido, a ideologia é o modo de afirmação do ser social. Esse é tratamento dado por
Lukács em seu último trabalho, A ontologia do ser social.
A realização do estranhamento deixa o trabalhador à mercê da pressão organizada do
poder coercitivo e persuasivo dos interesses do capital, que assume várias formas, diretas e
indiretas, através do Direito e da política – diremos que através da educação e dos meios de
comunicação, que é a alienação. A disputa com a filosofia do Direito de Hegel decorre de
entender que o Estado é uma manifestação de poder de classe, e não apenas um produto genérico
da história. O Estado representa interesses de poder econômico, que encontram sua forma
política, mas que continuam operando também em formas econômicas, isto é, encontrando
modos de obter vantagens econômicas através do aparelho político32.
A discussão das formas da propriedade aparece no início desse trajeto da ideologia,
porque Marx, seguindo o trabalho de Engels sobre a origem do Estado, da propriedade privada e
da família, dirá que este é o Estado que surge da propriedade privada e é a propriedade privada
30 Isso está claro no texto de
Hegel sobre Kant em sua
História da Filosofia vol.III. Essa
ruptura é essencial no
pensamento de Hegel, em que é
fundamental a relação entre a
afirmação da consciência
individual e a afirmação do ser no
mundo. Na Fenomenologia a
consciência surge do processo
pelo qual o ser se situa no mundo
mediante o mesmo processo pelo
qual se apropria de suas sensações
e de sua capacidade de ter
sensações. Em Hegel a
consciência de si leva,
necessariamente, à
objetivamente na vida das nações e
no modo de pensar. A racionalidade
para Hegel é algo historicamente
adquirido. Por isso diz que o real é
racional e o racional é real.
29 -------, Ciencia da lógica. O
método dialético está exposto e é
plenamente empregado na
Fenomenologia. Mas é na Ciencia da
Lógica que Hegel expõe o processo do
método dialético, isto é, onde expõe o
pensar dialético na formação dos
conceitos, ou seja, na movimento de
desenvolvimento que resulta na
formação de conceitos.
41
que sustenta a divisão do trabalho. A propriedade privada é o fundamento material do sistema
capitalista de produção. Ora, o Estado não nasce pronto, senão é produzido pelo mesmo processo
que adiante criará a empresa. O Estado, portanto, é uma entidade que representa a estruturação
do poder político, que, por sua vez, viabiliza o poder econômico. O vai e vem da discussão
ideológica terá esse fundamento concreto irrecorrível.
Assim, diremos que a teoria das classes sociais é inerente à observação do processo
histórico em seu conjunto e não é apenas um registro das relações conflitivas dentro do
capitalismo. Mas que é essencialmente capitalista no modo como se apresenta para nós hoje.
Entendemos que é, justamente, esse desvio conceitual que faz com que certas leituras
superficiais do problema pretendam que a teoria das classes sociais não capta a complexidade da
sociedade fraturada de hoje, ou que a teoria das classes não percebe o contexto etnocultural.
Como colocou o próprio Marx, as relações entre homens livres e escravos nas sociedades
escravocratas é uma relação de classes.
No relativo à formação da sociedade política, as relações de classe são o meio pelo qual a
classe dominante desenvolve o mecanismo de poder baseado no controle ideológico da classe
dominada. Diz Marx, que “As idéias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época; ou
em outros termos, a classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu
poder espiritual dominante. A classe que tem a sua disposição os meios para a produção material dispõe
com isso, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, o que faz que se lhe submetam ao mesmo
tempo as idéias daqueles que carecem dos meios necessários para produzir espiritualmente”33. Identifica-
se aí uma continuidade entre o movimento da formação de classes na esfera econômica e o
33 Karl Marx, Ideologia alemã, em
Obras escolhidas, Moscou,
Progresso, 1974, pp.45
consciência de estar no mundo. Em
muitos sentidos, Hegel é o
contestador de Kant por excelência.
31 Karl Marx, A ideologia alemã.
32 Hoje vemos como esse argumento
ajuda a explicar a corrupção
integrada na estrutura política, em
suas diversas formas, inclusive em
estratégias de favorecimento que não
podem ser formalmente enquadradas
como corrupção.
42
movimento da formação de um mecanismo de dominação na esfera política, onde ele se revela,
nitidamente, como um dispositivo ideológico.
A alienação
A identificação do papel da alienação no modo capitalista de produção é o ponto de partida na
construção do sistema interpretativo de Marx e constitui o fio condutor que liga a crítica da
propriedade privada ao movimento de separação dos trabalhadores de seus instrumentos de
trabalho e dos resultados de sua produção.
Marx identifica o problema da alienação em dois momentos especiais e diferentes de suas
primeiras obras, que são sua crítica da filosofia do direito de Hegel e o Manifesto Comunista.
As teses desenvolvidas na crítica da filosofia do direito de 1843 foram resumidas e integradas no
corpo analítico mais complexo que são os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, que,
por isso, passaram a constituir o corpo de análise – sistema em status nascendi, como o denomina
Meszaros – apesar de ainda não terem incorporado a crítica histórica da materialidade do
sistema do capital, que surgiria com os Grundrisse. Nos Manuscritos já se encontram os
elementos básicos de uma teoria da exploração, que, entretanto, passa a incorporar os elementos
daquela dimensão histórica que permitirá contrastar o sistema capitalista de produção com seus
sistemas antecessores. A alienação passa a ver-se como elemento essencial da produção
43
capitalista, que se aprofunda à medida que a produção se torna mais indireta. Desde aí fica
superada a idéia de uma análise da alienação que não se fundamente em dados da história e que
não trate especificamente do capitalismo. Já no Manifesto o tema central é a alienação imposta
pelo capital, onde por um lado os trabalhadores são isolados como pessoas e por outro lado são
agrupados como operários. A alienação converte-se em controle social.
Em ambos os momentos, a noção de alienação surge como detecção de um processo
social concreto, que tem um pé no controle dos trabalhadores e outro pé no controle de umas
seções do capital por outras. A alienação atinge ao sistema socio-produtivo em seu conjunto e
não só àqueles que estão trabalhando hoje. É um processo que se desenvolve de modo não linear,
impregnando as novas relações de trabalho e de lazer no capitalismo avançado.
A alienação é o processo que torna possível a exploração, portanto, não se limita à esfera
da ideologia. A grande força da alienação é que ela explica a energia que conduz a produção
capitalista através do sem sentido da acumulação. Istvan Meszáros realiza uma exaustiva
revisão dos fundamentos civilizatórios da alienação, reunindo suas raízes ideológicas junto com
suas pistas nos processos concretos da produção burguesa. Constrói um importante modelo
explicativo, que foi recolhido em suas obras posteriores, especialmente em O Poder da Ideologia.
É uma contribuição inestimável, que, entretanto, nos deixa diante de um problema crucial, que é
o de distinguir as diferenças entre identificar ideologia como parte da construção ideológica da
produção capitalista, ou como parte da progressão das contradições da organização social da
produção burguesa. Teremos que ver a alienação como uma força que encontra novas formas de
expressão no ambiente da produção moderna e no da produção ultra-moderna.
44
O propósito de explicar a explicação da materialidade da sociedade moderna levou Marx
a desenvolver uma crítica da teoria de Hegel sobre o Estado, que é parte de uma colocação maior
do mestre da dialética sobre a formação social do poder, que está compactada em sua filosofia do
Direito34. O objetivo final de Hegel é uma teoria do poder na formação da sociedade moderna
que passa por uma economia política, mas que é, essencialmente, uma filosofia do poder. É
necessário ressaltar que Marx centrou sua crítica nesse texto, mas que não desconhece outras
formulações anteriores de Hegel35. Tornou-se consensual entre os leitores de Marx que a
afirmação do rumo de suas pesquisas começa com uma ruptura com o idealismo de Hegel, de
quem, entretanto, Marx absorve o método dialético e a visão histórica, que aplica a sistemas
historicamente situados. No entanto, costuma haver muita simplificação nesse argumento,
atribuindo a Marx um tipo de crítica muito inferior ao escopo de seu projeto intelectual.
A nosso ver, a crítica de Marx a Hegel é muito mais complexa que isso e envolve uma
combinação de elementos positivos e negativos, em que sua crítica parte do conceito central da
dialética hegeliana, a superação/subsunção representada pela expressão aufheben, que se
encontra no prólogo da Fenomenologia; e que se defronta com a contradição dada pela inter-
relação do raciocínio dialético, quando Hegel separa o processo do Estado do processo da
sociedade civil. A argumentação desenvolvida nos Manuscritos depende desse salto de raciocínio
despregado na Crítica da filosofia de Hegel, de 43, em que a disputa conceitual na verdade se revela
como uma querela sobre a historicidade da sociedade e do Estado. Ao ver como se desenvolvem
os argumentos de Marx desde os Manuscritos até a Miséria da Filosofia, temos que considerar que
34 G.W.F.Hegel, Elementos
preliminaries de uma filosofia do
Direito, Lisboa, Presença, 1984.
35 Marx conhecia a Fenomenologia
do Espitito e a Ciência da Lógica,
mas devemos entender que não
conhecia as Lições de História
Universal, que só foram publicadas
depois de sua morte.
45
a crítica da economia nacional também é uma crítica da falsidade ideológica que consiste em
pretender neutralidade quanto à ideologia.
Numa leitura linear da crítica de Marx, dir-se-ia que o Estado hegeliano separado da
sociedade reduz-se a uma realidade positiva, cujo único produto é a burocracia. De fato, nesse
momento do pensamento de Marx surge uma identificação crítica da burocracia, cujo sentido de
finalidade se diferencia do modo histórico do Estado e se torna um aparelho da burguesia. Marx
dedica algumas páginas à burocracia na Crítica da filosofia em que se antecipou à temática de
Weber, vendo, entretanto, o papel da burocracia como instrumento de poder do capital. Mas não
se pode esquecer que foi justamente Hegel quem rompeu com o jus naturalismo36 para erigir o
direito como formalização histórica. Qual será, então, o processo que desveste a condição
histórica do Estado? Marx focaliza sua crítica na objetivização do predicado feita por Hegel, que
permitiu, a este último, tratar o Estado como sujeito do poder, com um sentido de finalidade que
é a reprodução do poder do soberano, isto é, do monarca, por separado da legitimidade que lhe é
dada pelo povo.
Assim, essa crítica que começa como uma análise do processo da análise torna-se uma
reivindicação do fundamento antropológico de processo do poder, onde surge o povo como
presença essencial da sociedade. O povo é o princípio ativo da dialética do poder. Faltará,
portanto, resolver o problema de ligar essa crítica do processo político do poder com a
materialidade da economia.
Esse será o programa de trabalho da crítica da Economia Política. 36 Ver Norberto Bobbio, Quatro
ensaios sobre Hegel
46
Há uma diferença radical entre o papel do descobrimento da teoria da alienação na
formação do corpo de idéias de Marx e o significado que lhe é atribuído na leitura de Meszáros.
A proposta de Meszáros compreende uma identificação do sujeito da análise, que, afinal, é
sujeito do processo de reflexividade que surge no contexto da sociedade burguesa, que é esta
consciência social crítica. A identificação do sujeito é um processo que extroverte as diferenças
de situação das pessoas por sua identidade como trabalhadores ou simplesmente como pessoas –
o que remete essa análise ao corte antropológico do contexto social.
A questão é que nessa análise social há um humanismo que é mais que um humanismo
ético, porque qualifica o humanismo de processos sociais específicos. Nessa qualidade, entra o
trabalho de Meszáros sobre a questão do judaísmo, que ele trata como uma marginalidade e
como uma tradição de individualismo e independência. Observe-se que no estudo de Meszáros
se cruzam duas vertentes de leitura dessa marginalidade, que lhe permitem tratar o judaísmo
como fonte de liberdade. A cultura oficial será uma prisão cultural, porque se converte em
imposição irracional de uma determinada forma. Por exemplo, o formalismo metrificado da
poesia francesa, ou o viés empirista da filosofia inglesa. Marginalidade significa dispor de
liberdade para pensar os processos sociais além de seu enquadramento atual, por isso, em
condições de expor seus fundamentos ideológicos.
Com a teoria da alienação se questiona a combinação do movimento concreto de
separação do trabalhador do processo de produção com o movimento de transfiguração
ideológica do processo produtivo em seu conjunto, que reverte sobre todos seus participantes e
não só sobre os trabalhadores, que são vitimados por essa separação. A alienação é um
47
movimento gerado pela transposição do poder do capital para a esfera do trabalho, onde ele
passa a reger o modo como as pessoas vêm a ser trabalhadores funcionais à reprodução do
capital, ou como protagonizam comportamentos de resistência e procuram se emanciparem da
tutela do capital.
O essencial do processo é que o envolvimento da alienação supera os horizontes de
percepção dos participantes, podendo-se inferir que o escopo da alienação é o do nível histórico
do processo e não o da situação de cada trabalhador no processo. As condições de alienação
variam segundo os integrantes da sociedade são atingidos por movimentos gerais do capital, tal
como pela difusão da mídia eletrônica, ou por estratégias específicas do grande capital.
Logicamente, pesam as iniciativas dos diversos grupos para ampliarem seus espaços de poder,
tal como acontece com os grupos de rendas superiores, que usam sua educação e sua mobilidade
para se associarem ao bloco de poder. Em síntese, o processo de alienação é um aspecto essencial
da sociedade do capital não se restringe às condições de pessoa alguma em particular. Trata-se
de um traço essencial da sociedade do capital e não de pessoas.
Por isso, e não por se tratar em geral de um contexto histórico em que mudam os
significados das relações de produção, é preciso não perder de vista as alterações dialéticas do
arcabouço conceitual, que tornam necessário reconhecer que acontecem mudanças de significado
de conceitos aparentemente invariantes. Conceitos tais como o de indústria, usado por
Meszáros como invariante, deve ser substituído pelos conceitos de grande capital e de pequeno
capital e com uma extensão da análise do aparelho produtivo, que reconstrua a ligação entre as
formas de produção e os mecanismos políticos e operacionais do capital. Ao escolher a
48
denominação indústria Meszaros cai na armadilha que foi evitada por Marx, que consiste em
confundir o modo técnico com o modo de organização social.
O modo técnico, que é a produção industrial, se resolve mediante diferentes escalas de
tamanho dos diversos capitais, cuja organização é a produção industrializada. A organização
social é a que liga a grande indústria ao grande capital e ao capital financeiro e que gera relações
de trabalho que aprofundam a alienação. Cabe aqui, portanto, a observação de Sartre, que
demarcou a diferença entre a visão progressivo-regressiva, que está no centro da prática da
dialética desde Hegel; e a visão geométrica da estrutura conceitual, que se reporta apenas a um
movimento do processo37. No mesmo caminho, Maurice Godelier lembra que “os conceitos de
economia são, segundo Marx, representações do visível”38. Na economia crítica os conceitos aparecem
com seus contrários: emprego vs. desemprego, lucro vs. salário etc. O que não é visível são as
relações sociais de produção, que estão por trás do emprego e do salário. A distinção aristotélica
entre aparência e essência está na raiz desse pensamento crítico. A critica de Marx é uma
combinação do que é visível com o que não é visível.
Ao procurar explicar o processo de alienação através de um jogo de posições
aparentemente fixas, Meszáros revela situações de contradição, mas compromete o poder
explicativo da análise e deixa em aberto uma questão, de método e de interpretação, relativa à
relação entre os níveis de abstração com que se desenvolve a análise e a generalidade dos
problemas. Assim, diante dessa percepção dos problemas históricos da alienação, cabe indagar
quanto se pode generalizar sobre a questão da alienação na sociedade de hoje sem perder a
capacidade de registrar a pluralidade de situações concretas em que ela se apresenta? Esse é um
37 “Desde que se introduz a
temporalidade, deve considerar-se
que no interior do processo temporal
o conceito se modifica.A noção, pelo
contrário, pode definir-se como o
esforço sintético para produzir uma
idéia que se desenvolve a si mesma
por contradições e superações
sucessivas, e que é, pois, homogênea
ao desenvolvimento das coisas.”
(1965).
38 Maurice Godelier, (1965).
49
problema ao qual inevitavelmente se chega quando se reconhece que Marx desenvolveu seus
conceitos sobre uma fundamentação histórica concreta. A essência da teoria marxista da
alienação é a captação desse movimento histórico que substitui posições e erode a identidade do
ser social.
50
CATEGORIAS DO PROCESSO SOCIAL 39
Das categorias
Inicialmente, um esclarecimento relativo ao uso do termo categorias. É um tema que requer
uma análise que não cabe no escopo deste ensaio. Entretanto algo tem que ser dito, porque é
através do aspecto de categorias que se vislumbra melhor a ancoragem do trabalho de Marx em
Aristóteles. No relativo ao modo de enfrentar o problema de identificar categorias de análise
Marx a postura de Aristóteles de ver as categorias na objetividade do mundo social. Potencia e
ato se parecem demais com força de trabalho e trabalho, bem como a doutrina do trabalho
abstrato parece provir da doutrina da forma substancial. Não é somente porque Marx paga um
grande tributo a Aristóteles no Livro I de O Capital, onde reconhece a importância da distinção
entre valor de uso e valor de troca e entre esfera doméstica e esfera de mercado, senão porque a
visão de Aristóteles está presente em diversos aspectos do andaime de O Capital.
Em Aristóteles as categorias são predicamentos inevitáveis na relação entre sujeito e
objeto: espaço, tempo, quantidade, qualidade, extensão. São atributos do real. Em Kant as
categorias são atributos essenciais do pensar: são juízos sintéticos e analíticos. Em Hegel as
categorias são as referências necessárias do processo de formação do sujeito e do processo de
formação do conceito. Por isso, estão submergidas na Fenomenologia do Espírito, que trata da
39 Uma referencia oportuna e –
registra M.Nicolaus na introdução à
versão Pelican Books dos Grundrisse
– que Marx pretendia chamar esse
texto de Categorias da Crítica da
Economia Política
51
formação do sujeito-ente-ser social e estão explícitas na Ciência da Lógica, que trata da formação
do conceito, portanto, onde a formação das categorias é parte da formação da identidade
conceitual do sujeito.
Em Marx, trata-se das categorias do processo que referenciam sua interioridade e sua
exterioridade, sua objetividade histórica e sua subjetividade. São categorias que situam o
essencial do processo social, que representam o que há de substantivo do processo, suas formas e
seus modos de funcionar. Por isso, são as categorias do mudar como tal e enquanto tal. São
inerentes à condição histórica do universo social.
Substantivo é o trabalho, é o valor e é o mercado. O trabalho desenvolve uma variedade
de manifestações, mas é substancialmente trabalho, e por isso, pode passar por metamorfoses,
mas continua sendo trabalho, isto é um esforço socialmente reconhecido. O valor é a expressão
do trabalho para a sociedade. E a mercadoria é a consubstanciação do trabalho no capitalismo.
As formas são as formas técnicas de produção e as formas institucionais e legais. As formas de
produção decorrem do controle das práticas de produção por parte do capital. As formas legais
surgem do controle do poder e são manifestações indiretas de interesse, que começam a
sustentar o capital através da consagração da propriedade privada e do controle de classe da
representação política.
No entanto, ao ver como Marx trata os conceitos explicativos da sociedade do capital,
entendemos que não se pode separar o reconhecimento das categorias do processo em seu
conjunto das categorias do método. Assim, o trabalho é a primeira categoria do processo, que,
52
por outro lado, aparece na polaridade força de trabalho – trabalho. Isso só é possível quando o
trabalho se separa da força de trabalho, isto é, quando o trabalho é mercantilizado.
As categorias do processo da produção capitalista
Nesta parte pretende-se focalizar em algumas categorias da análise de Marx que são de especial
relevância para desvendar os fundamentos ontológicos da visão histórica crítica da sociedade de
hoje. São elas as categorias de totalidade e de composição.
A obra de Marx é uma crítica da sociedade moderna, que ele elabora a partir da
materialidade dos relacionamentos na sociedade capitalista. Tal conjunto de relacionamentos se
organiza em torno de usos de tempo para produzir mercadorias, isto é, mediante uma
substituição dos usos de tempo para objetivos próprios de preferências das comunidades e das
pessoas, por objetivos de produção para sustentar a reprodução do capital atualmente existente.
Por isso sua teoria da divisão do trabalho e sua teoria da renda da terra estão impregnadas da
dimensão tempo, que as diferencia das teorias de seus antecessores, tanto de Smith como de
Ricardo.
Qual mecanismo permite aos detentores do capital controlar os usos do tempo
comercializado, isto é, qual mecanismo permite comandar a produção social de valor? A
indagação de Marx começa por mostrar a circularidade dos momentos em que se apresenta
53
funcionalmente o sistema produtivo (toda produção é consumo, todo consumo torna-se
produção), para situar o conjunto das condições concretas em que a produção se realiza, isto é,
para colocar a produção em situações específicas de complexidade do sistema e de composição
do capital.
Nessa leitura da realidade da economia, há uma teoria da mecânica social montada sobre
uma teoria da mudança social, que se perfila a partir da compreensão de que o sistema produtivo
opera sobre certa composição de trabalho, viabilizada por uma determinada composição do
capital historicamente situada. A composição do trabalho compreende trabalhos socialmente
necessários, isto é, aquele conjunto de trabalhos que são necessários para a reprodução do
capital; e trabalhos socialmente indiferentes, isto é, trabalhos cuja falta não alteraria a
reprodução do capital.
A obra de Marx foi o maior empreendimento jamais feito, de explicação da produção
industrializada, mostrando como ela caminhou no sentido de tornar-se um grande sistema
integrado, na medida em que o capitalismo controlou a produção de tecnologia e o
financiamento, usando-os para controlar o trabalho. e os recursos naturais. Viu, principalmente,
o capitalismo em sua expansão, vendo a crise como uma contradição desse crescimento, quando
a produção capitalista se expandia mediante o modelo energético baseado em carvão.
Obviamente, não viu a grande explosão do capitalismo maduro, baseada na combinação de
petróleo e energia hidrelétrica. Mas antecipou diversos de seus desdobramentos no campo
monetário e na condução da tecnologia. Além disso, viu claramente as contradições dos
movimentos da produção, resultando em ciclos econômicos, bem como a contradição entre a
54
tendência ao aumento da produção, o desperdício e a formação de resíduos. Os custos sociais do
desperdício e do tratamento dos resíduos se acumulariam no sistema, tornando a produção
socialmente mais custosa e contraditória com os próprios interesses capitalistas, de dispor de
recursos abundantes e oportunos.
A explicação da formação da sociedade moderna permite estabelecer previsões sobre o
rumo que seguirão a produção e o consumo? A análise do processo envolve um sentido
determinístico das transformações da vida social, ou essas transformações acontecem sem serem
parte de lei alguma da organização do componente material da vida social moderna, e a análise
social deve desconsiderar as relações de causalidade? O estudo da sociedade pode ser
adequadamente representado como obra de indivíduos isolados, ou tem que situar a ação desses
indivíduos em contextos de interesse e culturais?40 Como tratar dos componentes coletivos da
ação social, sem penetrar na formação desses coletivos?
A relação de determinismo e autodeterminação é uma parte necessária da teoria social,
que confronta leis - entendidas como traços comportamentais genéricos - e a liberdade de agir
dos grupos sociais e das pessoas. Subjacentemente, portanto, a relação determinismo vs.
autodeterminação compreende todo o relativo ao eixo de subordinação - emancipação, que,
finalmente, dá a medida da liberdade de ação que quebra o determinismo. O movimento geral
de acumulação responde pelo determinismo do processo e a luta de classes situa a pluralidade de
confrontos de interesses que se forma no interior desse processo. Por isso, surge a necessidade
de atualizar a compreensão de interesses de classe, para considerar a relação entre os que
trabalham e os que não trabalham, tenham sido excluídos ou jamais tenham sido incluídos.
40 A história social tende a
confrontar com a história de heróis
individuais, ou em todo caso, tende a
situar os heróis como integrantes de
sociedades que valorizam o
individualismo e de grupos sociais
dotados das condições materiais
necessárias para que o individualismo
se realize. Mesmo um personagem tão
voluntarioso como Alexandre III da
Macedonia, foi o produto de um
processo de formação de uma
monarquia militarista e de uma
educação culturalmente desprendida
de ligações com a cultura grega
clássica, que lhe permitiram formar
um projeto de poder reivindicatório
de valores arcaicos em termos
modernos. A relação com um
fundamento arcaic0 – micênico – que
não tinha relação racial nem
continuidade de poder com a Grécia
desgastada pela guerra do
Peloponeso, era um artifício para
legitimar uma nova relação com o
Oriente em que a Grécia macedônica
fosse hegemônica.
55
A inter-relação entre a materialidade da vida social e a estruturação ideológica da
sociedade é uma referência fundamental do pensamento de Marx, que observa como a
acumulação de capital sempre se fez mediante expropriação de capital acumulado em forma
primitiva e mediante controle do trabalho. Tal controle é total na escravidão, quase total na
servidão e torna-se um controle monetário na produção capitalista. Porém mercê do controle das
oportunidades de remuneração, torna-se um controle completo das condições de sobrevivência
dos trabalhadores. É preciso compreender que os capitalistas jamais desejaram empregar
ninguém, que sempre empregaram apenas aqueles necessários à reprodução do capital.
Na constituição do corpo de questionamentos que sustenta a linha central de pensamento
teórico de Marx, destacam-se alguns aspectos essenciais do andaime da teoria, que se indicam a
seguir.
A historicidade da sociedade e o significado social da ascensão da burguesia. Na obra de
Marx, a sociedade atual está historicamente situada, vê-se como sociedade burguesa, que é uma
transformação de modalidades anteriores, conduzida pela expansão do capital41. Tampouco essa
transformação se faz de uma só vez sobre o conjunto da sociedade, senão é gradual e incerta; e
acontece segundo as linhas de expansão do capital e naqueles pontos em que se materializam
novas formas de organização da produção. O reconhecimento da historicidade da sociedade é o
fundamento da crítica à economia política convencional e à análise econômica marginalista, que
tratam com um conceito genérico de sociedade42. A essência dessa crítica é ao marginalismo e ao
positivismo, que se identificaram no contexto da economia ortodoxa. Numa perspectiva atual,
essa crítica atinge, igualmente, a corrente neoclássica hoje reconhecida como ortodoxa e a
41 “Quando se afirma que a
objetividade é uma propriedade
primário-ontológica de todo
ente, afirma-se em conseqüência
que o ente originário é sempre
uma totalidade dinâmica, uma
unidade de complexidade e
processualidade” Lúkacs, Os
princípios ontológicos fundamentais
de Marx, pp.36.
56
corrente keynesiana, que em certos contextos aparece como crítica da análise neoclássica, nesse
caso representada por autores tais como Alfred Marshall, Carl Menger, e os recentes John
Hicks, Paul Samuelson, e seus seguidores. Artefatos teóricos tais como a taxa interna de retorno
- que pressupõem uma conceituação de capital homogêneo - caem nessa crítica. Não se trata de
confrontar uma corrente econômica historicista com uma não historicista, senão de distinguir
aquela análise que trabalha com a densidade histórica dos fenômenos e aquela outra que
considera legítimo abstrair o contexto histórico.
A formação do capital como fundamento da estruturação social pós feudal (Substituição
de trabalho escravo e servil por trabalho assalariado e aumento da apropriação de mais valia)43.
Como o capital se forma mediante mecanismos de compra de força de trabalho, torna-se
necessário explicar as condições de contratação do trabalho. Por extensão, a necessidade de
explicar as condições de contratação dos diversos trabalhos nos diversos segmentos do sistema
de produção. É um ponto fundamental da formação de mercado, que deve ser visto como
produto de um movimento histórico e não como um princípio genérico, nem como uma situação
geral de encontro da demanda e da oferta. Na formulação doutrinária de Marx, além de que o
capital não pode deixar de tomar decisões que afetam à totalidade do capital acumulado, tal
como já tinha advertido Adam Smith, é preciso que ele prossiga na formação de capital,
incorporando capital novo e substituindo capitais já integrados na produção. A formação de
capital representa as possibilidades de mudança dos aspectos técnicos e organizacionais do
sistema, sintetizando a mudança.
43 Observe-se que essa insistência,
no contraponto com a sociedade
feudal, é uma marca da base factual
européia, cuja generalização deve ser
qualificada. A expansão do
capitalismo na América não tem
porque manter essa referência. Em
todo caso, cabe rever os termos dessa
referência ao feudalismo, tal como se
encontra em Perry Anderson (1982) e
em Sweezy et all. (1977). Para
42 "A economia política clássica
apoia-se em duas proposições
fundamentais. A primeira é que a
sociedade (e se trata naturalmente da
sociedade capitalista, ainda que os
clássicos a pensem como sociedade
tout court) baseia-se na relação de
troca, com a conseqüência de que a
explicação do valor de troca é o ato
preliminar da explicação científica da
própria sociedade. A segunda
proposição é que os valores de troca
são, de algum modo, vinculados com
as quantidades de trabalho." Claudio
Napoleoni, Lições... pp.15.
57
A substituição da sujeição que se realiza mediante o vínculo à terra, que caracteriza a
sociedade feudal, pela sujeição causada pela venda do trabalho controlada pelo capital, com a
conseqüente impossibilidade de reprodução dos trabalhadores fora de seu vínculo subordinado
ao capital. A produção capitalista significa exatamente essa compra de tempo de trabalho.
Entretanto, daquele tempo de trabalho, isto é, daquela força de trabalho, necessário à produção
pretendida pelo capital. Significa que o efeito de libertação da relação patrimonial fica restrito às
necessidades especificadas de trabalho para uma dada produção. Numa leitura latino-americana,
neste ponto entra o relativo aos desdobramentos das velhas oligarquias nas elites modernas, que
é fundamental para entender o tipo de modernização ocorrido na América Latina. Não há como,
nem porque, generalizar o efeito da contratação de trabalho além do horizonte da produção
prevista pelo capitalismo em tempo e lugar específicos. Em suma, substituem-se formas de
controle direto por formas de controle indireto.
A relação necessária entre a exploração do trabalho e a continuidade da acumulação de
capital. A apropriação de mais valia se aprofunda, mediante o aumento da produtividade do
trabalho. Não é uma questão restrita às possibilidades de captação de mais valia a partir de
condições dadas de composição do capital, senão que se indica a capacidade de reorganizar o
sistema de produção para novos modos de captar mais valia. A permanência do sistema
capitalista de produção pressupõe que o capital mantém um controle da renovação tecnológica e
dos recursos da natureza, que lhe permite manter um controle do trabalho, suficiente para se
reproduzir. Os trabalhadores são, progressivamente, destituídos de capacidade de reproduzirem
sua força de trabalho por outros meios que não sejam aqueles controlados pelo capital. O
refletir sobre a América, é preciso
trabalhar sobre a diferença entre o
feudalismo e o absolutismo dos
Tempos Modernos, que foi a base de
uma aliança entre a realeza e a
burguesia, em que a aristocracia foi
latino-americano excluída. À parte
de quaisquer outras experiências,
destaca-se a experiência portuguesa
com a era pombalina. As nações
americanas surgiram no confronto
com o absolutismo e não com o
feudalismo, por mais que no próprio
contexto surgissem manifestações de
organização local de poder com certos
traços de semelhança com o
feudalismo.
58
processo de exploração muda de forma, mas a essência de exploração e exclusão continua, sob
novas modalidades de organização da produção e do consumo.
A tendência ao aumento do capital constante relativo ao crescimento do capital variável,
que se traduz em declínio da taxa de lucro, com as alternativas de acirramento da concorrência e
de monopolização. Esse movimento deve ser entendido como um saldo que se acumula ao longo
do tempo, incorporando os diversos aumentos do capital em geral acumulado na sociedade e as
diversas quedas do capital constante, correspondentes aos movimentos de desvalorização que
são parte da transformação do sistema. Por exemplo, as perdas de equipamentos de geração de
energia em formas que são descartadas por ineficientes. Aí estão as perdas dos sistemas de
equipamento incorporados no sistema de produção de energia e as perdas que surgem na
operação de cada sistema44. As linhas mais amplas do movimento são as que correspondem aos
ciclos de longa duração45.
A tendência à crise do sistema de produção, que se desencadeia mediante a
superprodução, que decorre dos desajustes entre a venda necessária para reproduzir o capital
acumulado e as possibilidades de venda ensejadas pela renda disponível, que por isso toma a
forma de crises de superprodução, incidentais, porém cumulativas. Já Ricardo tinha assinalado
essa tendência, em conseqüência da concorrência entre os capitalistas por um espaço de mercado
que é dado por sua própria capacidade de compra. Se as rendas dos trabalhadores tendem a
flutuar em torno do menor pagamento que os capitalistas estão dispostos a fazer e de sua
reprodução enquanto força de trabalho, a renda variável do sistema é a dos capitalistas, que
tenderão a tentar aumentar seus rendimentos mediante diversificação da produção naquela faixa
44 Um exemplo muito comentado no
nosso meio é o de uma grande
caldeira que foi importada para ser
operada com lenha que jamais
entrou em operações no pólo
petroquímico de Camaçari, que
resultou de uma política centralista
do processo industrial.
45 Uma referência necessária nesse
ponto é a composição comentada de
textos de Lucio Coletti intitulada
Marx e a queda do capitalismo
(1976). É fundamental que se trata
de uma tendência e não de um
movimento determinístico e
historicamente delimitado.
59
de produtos que eles próprios podem comprar. Além disso, como se trata de produção a ser
exportada, não há maior preocupação com os possíveis efeitos negativos da compressão da taxa
de salário na formação da demanda desses mesmos produtos industriais.
A exposição crítica do capitalismo envolve, por extensão, algum tipo de especulação sobre
tendências. A questão mais profunda levantada pela obra de Marx nesse sentido refere-se às condições em
que as tendências se formam e às condições para sustentar previsões das tendências, que é uma questão
logicamente anterior à discussão de crises específicas. Há causas externas ao sistema produtivo, tais como
macro variações climáticas e como guerras e terremotos; e há fatores da transformação do sistema, tais
como mudanças das tecnologias básicas, que determinam os conjuntos de tecnologias característicos de cada
etapa da acumulação do capital.
O levantamento feito por Coletti (1974) do tratamento dos processos e dos eventos de
crise no contexto do capitalismo por Marx e seus seguidores, permite-nos ver como evolui o
significado de crise ao longo do processo de monopolização do capital, bem como, nos mostra
que os argumentos em torno da eventualidade ou do determinismo da crise são argumentos
historicamente qualificados. A questão gira em torno de que se entende por crise: situações
críticas ou processos críticos? Ruptura de situações ou mudanças bruscas de rumo em processos,
ou ainda, interrupções de processos?
O sistema de produção tende a gerar crises, além disso, tende a gerar crises desde a esfera
da produção ou na relação entre a produção econômica e a reprodução do bloco de poder? Pode-
se argüir que o sistema tende a três tipos de crise. Uma crise a longo prazo, ligada ao modo de
uso incontrolado de recursos naturais e à tendência ao esgotamento desses recursos. Outro tipo
60
de crise, conseqüente da concentração de capital, que decorre do modo de usar trabalho e de
empregar pessoas no contexto da monopolização do capital. Finalmente, crises econômicas
diretas, de superprodução, pela tensão entre os interesses dos capitalistas de maximizarem seu
lucro e as limitações da demanda. Assim, torna-se inevitável uma retomada da atualidade do
problema mais profundo de crise do sistema econômico de produção, necessariamente, por
confrontar a perda de recursos naturais com a destruição do emprego.
61
FUNDAMENTOS E SENTIDO DE FINALIDADE
DA OBRA DE MARX
Teleologia: ontologia46 e práxis
O ponto de partida da relação de Marx com a filosofia é sua cobrança de que ela não seja
apenas uma reflexão sobre si mesma, portanto, que deixe de ser uma teologia sem Deus e que se
volte para o mundo social. Acima de tudo, trata-se de uma visão crítica do processo histórico da
formação da sociedade moderna, que vê a separação entre teoria e ação social como uma forma
de alienação que põe a teoria social a serviço do poder estabelecido. Esse posicionamento leva a
exigir que a filosofia comece por reconhecer um sujeito e um objeto reais, isto é, um sujeito
historicamente constituído, que não é apenas um homem genérico, senão que é um ser social; e
um objeto historicamente estabelecido, que é o mundo social. Esse modo pensar é que o torna
socialmente significativo e que fundamenta seu caráter crítico, isto é, sua capacidade de perceber
as contradições da vida social. Esse critério servirá como guia para ler a filosofia. Não será
suficiente que a filosofia seja uma antropologia. Ela deverá ser capaz de recompor o estatuto de
humanidade e deverá questionar o telos – o sentido de finalidade – da vida social, que será a
libertação do ser social.
46 Não há como iniciar aqui essa
referência sem identificá-la com o
trabalho de Georg Lúkacs
(Ontologia do ser social, 1984)
62
Que será essa libertação? A libertação não é a superação das necessidades de
sobrevivência, porque o potencial de trabalho dos homens passou a ser canalizado em beneficio
de poucos, através da combinação de propriedade privada e alienação, que são os fundamentos
da exploração no modo de produção capitalista. A liberdade não poderá ser concebida como um
estado original, nem como algo anterior à experiência. A liberdade será algo que se alcança
através da superação da dominação, que é algo concreto, que se materializou em escravidão, em
servidão feudal, e que agora se manifesta na exploração do trabalhador contratado.
A economia política crítica de Marx é, antes de tudo, uma análise dotada de sentido de
finalidade. Desenvolve-se como uma leitura crítica do sistema capitalista de produção, que
entende ser um modo de organização social historicamente situado sujeito a modificações
originadas desde dentro bem como vindas desde fora. É uma crítica da economia política
naquilo em que considera que a economia política não consegue ver historicamente a realidade
social da economia; e descamba na busca de leis tendenciais que surgem de probabilidade
estatística separada de causalidade histórica. Descola daquilo que passa a chamar de metafísica,
por ser esta um exercício de reflexão que não tem esse potencial transformador.
O trabalho de Marx vê a história a partir das condições da economia e da política da
metade do século XIX, quando se defrontava uma consolidação do poder conservador na
Europa, e quando ela começava a se expandir como imperialismo, com o crescimento de uma
classe trabalhadora assalariada. Assim como a filosofia de Hegel esteve marcada pela Revolução
Francesa, a filosofia social de Marx esteve situada no período entre o Brumário de Napoleão III
e a unificação da Alemanha, marcada por um apogeu do conservadorismo consagrado no
63
Tratado de Viena. Há um pensamento socialista na Inglaterra – Hodgskin, Gray, Owen e
outros – e há um movimento na França que vem desde Babeuf. Contrasta com um espaço
germânico proveniente da desintegração do Sacro Império Germânico dividido em reinos, por
isso com uma pluralidade econômica e institucional, que se refletia numa metafísica que não
efetuava essa passagem para a filosofia social, porque tratava com uma realidade econômica
diferente daquela dos países ocidentais. Marx realiza essa ponte entre a tradição da filosofia e a
ciência social, por isso mesmo, tornando-se uma negação da filosofia clássica.
O pensamento de Marx estabelece um eixo da fundamentação da identidade social com o
trabalho socialmente definido, isto é, situa a individualidade das pessoas na produção de
coletivos que se definem em função do trabalho em sociedade, mesmo quando se trata de
coletivos de outra ordem, tais como os religiosos e militares, cuja raiz na materialidade da
sociedade não é explícita à primeira vista. Assim como na relação senhor - escravo o senhor só
pode existir se houver escravo, na sociedade só podem subsistir os que não realizam trabalhos
materiais porque há outros que os fazem. Assim, a questão do ser não pode ficar à restrita à
visão abstrata – desde a doutrina do ser de Parmênides até a do sujeito Descartes47 – senão
requer uma colocação in corporis, de afirmação sobre a materialidade do mundo. Por isso, não
tem sentido isolar uma leitura econômica de O Capital de seu sentido de finalidade, que
transcende a esfera econômica. O significado último de O Capital é mostrar o humanismo
negativo do capitalismo no conflito de interesses entre situações individuais e condições de
classes sociais.
47 A observação vale para os
pensadores posteriores a Descartes,
que continuaram a elaborar no plano
metafísico, até Heiddeger. A
demanda de Marx, de ancorar a
identidade nos processos materiais da
sociabilidade, situa-se na matriz de
inquirição de Aristóteles, na
primazia do mundo externo como
fator prévio da configuração do
mundo interno.
64
Para superar essa falta, mesmo incorrendo em simplificação que pode, adiante, restringir
o poder explicativo desta leitura, anotam-se os fundamentos filosóficos, os econômicos e os
sociais do pensamento de Marx, sabendo que cada um deles é uma redução conceitual, que, de
fato, o pensamento de Marx se remete à totalidade social e representa uma totalidade
explicativa.
Fundamentos filosóficos
É preciso estabelecer que a rejeição de Marx à filosofia consiste realmente em um repúdio à
especulação por si própria, que, no essencial, é a separação da filosofia da teologia. Marx
representa o pensamento da realidade histórica, onde a racionalidade é historicamente formada e
não é uma faculdade abstrata tal como em Kant. O grande passo dado por Hegel, de fundar a
consciência e o conhecimento na história é muito mais que uma mudança de método: é
reconstruir os fundamentos da formação social do conhecimento. Essa herança hegeliana, de
historicidade da razão, é modificada por Marx, que a qualifica socialmente, como uma
racionalidade burguesa. Assim como Hegel precisou romper com Kant para poder estabelecer o
modo dialético do conhecimento, Marx precisou romper com o modo abstrato de Hegel, para
construir uma leitura materialista do sistema econômico, político e cultural conduzido pela
burguesia. Isso não significa que o pensamento de Marx estivesse destituído de significado
65
ontológico. Pelo contrário, o pensamento crítico de Marx é a ontologia do ser social cuja
consistência é anterior ao advento da burguesia. O homem, que foi reduzido a servo pago pelo
capitalismo, é produzido pela formação social e não pela forma de organização da produção.
Há aqui dois aspectos a considerar: os antecedentes filosóficos de que partiu Marx e seu
próprio tratamento da fundamentação de seu corpo doutrinário. A Crítica da filosofia do Direito
de Hegel é um primeiro momento claramente filosófico, em que Marx descobre a alienação como
categoria primordial do sistema do capital, que se concretiza na propriedade privada. Esse
momento se completa com a crítica da dialética hegeliana nos Manuscritos de 44. Até aí, trata-se
de uma crítica ao encaminhamento dado por Hegel a um problema civilizacional da formação da
sociedade moderna. Mas, a partir daí, trata-se de outro problema, qual seja, de levantar as
necessidades de um pensar fundamental da condição humana das sociedades atingidas pela
expansão do capitalismo. Por isso, o questionamento filosófico muda de feição na crítica a
Feuerbach. Uma vez superada a ruptura com a teologia tornava-se necessário voltar os olhos ao
movimento interno de transformação da sociedade. O capital é a força motriz dessa
transformação e deve ser examinado exatamente à luz dessa sua impossibilidade de permanecer
em sua forma atual.
Adiante, O Capital está impregnado de raciocínios sustentados sobre bases metafísicas no
melhor sentido desse termo. Há uma grande diferença entre a crítica da esterilidade da
metafísica e uma visão filosófica que na verdade está em todo esse trabalho que vai à raiz dos
problemas sociais. De fato, a irredutibilidade do homem enquanto trabalhador a formas de
dominação que cerceiam continuamente sua capacidade de decidir de modo autônomo, é o ponto
66
de partida de uma ontologia do ser social que incorpora a pluralidade inerente ã sociedade
burguesa.
Encontram-se diferenças decisivas entre a fundamentação filosófica do período de
questionamento e crítica de antecedentes, que marca a obra de Marx até a crítica a Feuerbach
em 1846, e a que transpira do período de apresentação da exposição interpretativa do sistema
socio-produtivo, que se inicia com os Grundrisse (1856-1857) e que se revela plenamente em O
capital. Por isso, é preciso reconhecer que O Capital difere das demais obras de Marx, por mais
que muitas das teses ali desenvolvidas tenham sido anunciadas em obras anteriores. Deveremos,
entretanto, reconhecer que a Contribuição à critica da economia política de 1849 contém a exposição
mais completa sobre dinheiro e moeda, que está incorporada em O capital de modo menos
explícito.
A fundamentação da argumentação de Marx em Aristóteles aparece em diversos
momentos na primeira etapa, mas revela-se por completo na segunda etapa, principalmente em
O capital, primeiro, indiretamente, através da influência de Aristóteles em Hegel, e depois,
diretamente, na relação entre uma doutrina das categorias e a construção de uma ontologia do
real. Tal como diz o próprio Marx, Aristóteles não pôde resolver o problema de conversão do
valor de uso em valor de troca porque vivia numa sociedade escravista. O problema é que o
desenvolvimento da moeda depende da monetarização das atividades produtivas, que só se
realiza plenamente na produção capitalista avançada.
67
Nesta seção se trata dessa primeira parte, reservando-se a discussão da segunda parte
para um estudo específico das categorias da análise marxiana. Assim, apenas para indicar esses
antecedentes, assinalam-se os seguintes pontos:
A doutrina de Aristóteles sobre valor de uso e valor de troca, sobre a separação da
esfera doméstica e da esfera de mercado, com a superação da organização social representada
pela polis (o alargamento da esfera do valor de troca e a subsunção do valor de uso). Não
confundir a referência à universalidade com a negação das estruturas institucionais nacionais48.
A doutrina de Aristóteles sobre a forma substancial (Metafísica); e a conseqüente
possibilidade de pensar que a forma substancial apareça sob diversas formas, ao se
diversificarem os bens usados pela sociedade49. A forma substancial se percebe quando se
conhecem suficientes manifestações de forma que permitem pensar no abstrato dessa forma. A
forma substancial do trabalho é aquele esforço qualificado de trabalho que tem a capacidade de
realizar os diversos produtos que se pretende obter. Em Marx isso aparece como as formas do
valor, as formas da produção etc. A forma substancial é o trabalho; e há hierarquias de formas,
como se depreende da comparação entre o uso desse conceito para trabalhar com moeda e com
formas de produção.
As teorias das categorias, de Aristóteles e de Kant. Um dos principais momentos da
obra de Marx é o seu tratamento do problema de categorias, que está imerso nas soluções dadas
ao estabelecimento dos termos da análise. Não há um tratamento explícito do problema de
categorias, mas há um complexo manejo de categorias como ferramentas de análise, segundo se
trata dos fundamentos da vida econômica, ou do desenvolvimento da vida econômica no
48 Encontramos essa análise em
Política, onde Aristóteles trabalha
sobre a identificação, separação e
articulação das esferas privada e
pública, mostrando claramente como
as esferas pública e privada
interagem.
49 A doutrina da forma, que
sustenta a polaridade forma –
conteúdo, encontra-se na Metafísica,
onde Aristóteles distingue a
pluralidade das formas concretas e
sua identificação com uma forma
substancial, que estaria subjacente no
conhecimento das formas concretas.
Como o conhecimento das formas
concretas está no domínio das
sensações, encontra-se aí aquele eixo
temático de sensação – razão, de que
encontramos um belo ensaio de
Marco Zingano (Razão e sensação
em Aristóteles, 1998).
68
ambiente do capitalismo. As categorias da análise marxiana apresentam-se em seqüência,
segundo se passa por sucessivos níveis de análise. Inicialmente, é a mercadoria e é o modo de
produção capitalista. Depois é a mais-valia. Em todo caso, são categorias do mudar como tal, tais
como a valorização, a composição orgânica do capital e como o próprio trabalho socialmente
necessário.
A dialética de Hegel enquanto lógica da formação do sujeito. Para Marx, a lógica da
formação do sujeito individual com sua consciência é o processo social em que ele tem lugar. É
preciso distinguir entre a crítica ao modo de pensar de Hegel e a crítica à formação de sistemas
explicativos50; assim como é preciso distinguir entre a crítica a Hegel e ao neo hegelianismo51.
De fato, no desenvolvimento de O Capital, Marx utiliza diversos recursos explicativos de Hegel,
tais como a própria noção de trabalho abstrato e a relação senhor-escravo como base do
relacionamento de poder subsumido no contrato de trabalho52.
A teoria da história de Hegel, tal como exposta em suas Lições da filosofia da história
universal, em que a combinação de aspectos materiais e ideológicos é um dos principais
ingredientes da concepção de Marx de modo de produção.
Separação e interação entre aparência e essência. Essa polaridade aparece entre
interesses (objetivos) e consciência (subjetiva). No desenvolvimento da análise de Marx, o
mundo econômico apresenta inúmeras aparências do essencial, que é a formação de valor e a
concentração do capital.
A questão fundamental da práxis, que constitui uma linha temática cuja origem se
identifica com os gregos, especialmente Aristóteles, e encontra sua formulação mais completa
50 “Assim, o sistema enquanto ideal
contém, sobretudo, o princípio da
completicidade e da conclusividade,
idéias que são a priori inconciliáveis
com a historicidade ontológica do ser,
e que já no próprio Hegel suscitam
antinomias insolúveis” Lúkacs,
op.cit,.
51 Não só pela diferença de estatura
entre Hegel e os "jovens hegelianos",
senão porque uma grande parte da
complexidade do pensamento de
Hegel ficou soterrada pelo fascínio
exercido por seus aspectos mais
brilhantes, ou mais maleáveis aos
usos da burguesia em ascensão na
Alemanha.
52 A relação senhor-escravo de fato
foi primeiro apresentada por
Averróis e certamente incorporada
por Hegel sem referência ao autor
árabe medieval.
69
na filosofia de Hegel. O social se revela como e enquanto ação, que toma as diferentes formas da
prática. A teoria da práxis a rigor é a teoria do agir como um atributo de uma prática social e não
são uma teoria da ação substantiva genérica separada do contexto social em que se realiza.
Assim, a teoria da ação social em Marx confronta claramente com seus equivalentes de Weber,
Parsons e mesmo de Habermas.
Esses elementos são partes da construção de uma visão de mundo que se produz no
contexto do trabalho, tornando necessário esclarecer a diferença entre trabalho enquanto uso
produtivo autônomo de tempo e trabalho enquanto uso de tempo vendido, por isso decidido por
outrem. Levada às suas últimas conseqüências, essa questão implica em que todo o trabalho,
inclusive o autônomo, está indiretamente decidido por condições de mercado, que, por sua vez,
são estabelecidas pelo capital.
Fundamentos econômicos
A análise social empreendida por Marx precisa de uma análise do componente material dos
relacionamentos sociais. Os estudos econômicos da sociedade capitalista desempenham esse
papel, funcionando como uma teoria de comportamentos historicamente situados. A análise
econômica de Marx apoia-se na produção social de valor, e acompanha os processos pelos quais
o valor é socializado, ao ser incorporado nas mercadorias, que são os produtos da atividade social
70
de produzir. Entretanto, a questão em causa não é a produção de alguma mercadoria específica,
senão que é o descobrimento do dinheiro como mercadoria geral, cujo controle permite produzir
qualquer mercadoria específica, desde quando o mercado possa absorver esses produtos. Nesse
sentido, seu verdadeiro antecessor é Adam Smith – não Ricardo – a quem Marx rende tributo
em seu capítulo sobre a renda da terra, quando diz desde Smith não houve progresso algum na
análise da renda da terra. No entanto, a revisão da teoria feita por Marx não autoriza essa
simplificação de que descende de Smith ou de Ricardo, senão que os incorpora criticamente,
bem como a James Steuart. A crítica da teoria assentada sobre bases de análise de economias
nacionais, em contraste com a análise internacional do capital, faz com que todas as doutrinas
da Economia Política sejam revistas mediante um critério que é o que aparece no Livro II.
Na perspectiva de Marx torna-se progressivamente mais complexo e o trabalho torna-se,
inevitavelmente, mais eficiente. Ao entender que o trabalho abstrato muda sempre de conteúdo,
segundo muda a composição de trabalhos concretos que ele representa, e que,
concomitantemente, diminui o trabalho socialmente necessário para a realização do produto
final, Marx estabelece que as variações do valor atual do capital acumulado são proporcionais às
possibilidades materiais de criação de valor pelo trabalho, Essa interdependência está no cerne
do processo econômico do capital, que precisa de trabalho para excluir trabalho.
Uma presunção básica sobre a produção capitalista é que ela aumenta constantemente de
complexidade. Mas, para acompanhar o aumento de complexidade inerente à produção
capitalista, a teoria econômica tem que desenvolver uma linguagem adequada para refletir essa
mudança necessária. Por aí, surge uma teoria da circulação, que permite organizar a análise do
71
movimento da produção capitalista em seu conjunto. Observa-se que a leitura exaustiva da
teoria econômica, que se encontra nas Teorias da Mais Valia, é o registro de um esforço de
resgatar elementos válidos de trabalhos elaborados com outros critérios.
As teorias de Adam Smith e de David Ricardo do valor trabalho, da renda da terra e
da tendência do sistema produtivo à crise. Esses dois autores constituem o principal momento
da economia clássica, que a rigor, na leitura de Marx é mais o fim de uma trajetória do
pensamento teórico que um começo; e que simplesmente teria que ser superada, por ter-se
imobilizado numa teoria da sociedade que não separa os elementos genéricos dos específicos,
portanto, que não vê que a sociedade burguesa industrial deve ser relativizada e comparada com
as anteriores modalidades de organização social. No entanto, Marx soma-se a eles na lei geral
explicativa do funcionamento da produção capitalista.
Uma revisão minuciosa e sistemática da teoria econômica, distinguindo os
fundamentos de uma economia dinâmica ligada a condições históricas concretas do sistema de
produção. As leituras de Marx - As teorias da mais-valia - representam uma crítica do significado
da teoria e não necessariamente uma crítica da consistência de cada contribuição doutrinária.
Uma revisão de pensadores rotulados como mercantilistas tais como Steuart e Petty,
que aportaram elementos essenciais do funcionamento do comércio da era da industrialização.
Nas Teorias da mais valia há uma visão de conjunto das marchas e contramarchas do pensamento
teórico, os Fisiocratas despontam como o principal grupo portador de uma visão de conjunto do
processo econômico, com a ressalva, ainda, de ver as diferenças entre uma visão orgânica de
Quesnay e uma visão instrumental de Turgot.
72
A análise econômica de Marx está marcada por dois aspectos principais, que são os de
considerar que os comportamentos individuais são objetivamente condicionados pela posição
dos indivíduos na organização social da produção; e por considerar que as decisões de produção
resultam em requisitos de dinheiro e de tecnologia, que afetam o sistema de produção em seu
conjunto. Subentende que o capital opera através das formas operacionais que lhe convêm,
portanto, que há grande capital operando através de grandes e de pequenas unidades de
produção; e que o essencial é a capacidade dos capitalistas – controladores e não só gestores de
capital – de utilizarem a totalidade do capital à sua disposição.
Isso tem as conseqüências de tornar irreal qualquer separação entre macro e micro
economia e de levar a analisar os usos de dinheiro para fins produtivos, resultando na
identificação de necessidades concretas de capital dos diversos tipos de empresa. A falácia da
separação entre macro e microeconomia torna-se evidente em nossa época, por exemplo, quando
se coloca como análise microeconômica uma análise da Wal-Mart e como macroeconomia uma
análise da economia de Honduras ou do Haiti. Este é um ponto crucial da análise de empresas,
em que é preciso distinguir o que são necessidades das empresas, de garantir a liquidez
necessária para realizar sua participação no mercado; e o que são opções ou margens de liberdade
das empresas, para empreenderem em renovação tecnológica ou em ampliações.
A análise de Marx dos ciclos do capital dinheiro e do capital produtivo mostra como as
empresas têm que garantir a reprodução do seu capital; e que essa determinação de reproduzir o
capital controlado antecede e regula quaisquer outras decisões. Na prática, significa que a
política de inovação está objetivamente subordinada às determinações da reprodução do capital,
73
que a perspectiva schumpeteriana de empreendedores inovadores, trata na verdade de uma
situação subordinada, totalmente inadequada para explicar a política das empresas no conjunto
de financiamento e tecnologia.
Além disso, na análise econômica de Marx está clara a diferenciação entre a
representação dos interesses do capital e a gestão de empreendimentos específicos, que equivale
a distinguir entre empresa e indústria. O capital pode optar por reproduzir-se na forma
financeira, pode representar uma política de aplicações do capital da empresa e finalmente pode
identificar-se com a aplicação específica que é a fábrica. As estratégias das empresas passam por
cima das condições dos empreendimentos específicos.
Justamente, esse descolamento entre os interesses identificados com a reprodução do
capital e as condições de rentabilidade de empreendimentos específicos, é que permite perceber
que os interesses cifrados na reprodução do capital podem levar a um alargamento das distâncias
entre o perfil das aplicações financeiras e o das aplicações diretas na produção. No Livro II de O
Capital Marx trabalha exaustivamente sobre a contradição entre os interesses identificados com
o circuito do capital dinheiro e os interesses que dependem do circuito produtivo do capital.
Ora, o aumento de complexidade do capital investido torna o sistema cada vez mais dependente
da composição dos tempos dos diversos capitais investidos.
74
Fundamentos sociais
O fundamento social é a identificação de uma sociedade movida por interesses historicamente
formados, que se move mediante conflitos de interesse determinados pela participação na
produção. A sociedade burguesa se forma sobre modalidades de apropriação violenta e
compreende mecanismos de exclusão que operam desde antes da constituição do sistema
capitalista de produção e que continuam operando através de formas modificadas, entretanto
guiadas pelo mesmo principio de controle dos trabalhadores e dos recursos naturais.
No centro da análise histórica de Marx está o contraste entre a sociedade burguesa e o
modo de produção capitalista de um lado e a sociedade feudal e a produção dominial de outro
lado. A produção capitalista surge com uma renovação da propriedade privada, que aparece
como princípio geral e como uma variedade de formas nos diferentes países e nas colônias53.
Sobre ela se transforma trabalho em mercadoria. Ao mercantilizar o trabalho, portanto, ao
colocar os trabalhadores na condição de proprietários de uma força de trabalho que só participa
do mercado quando é alienada, o capital realiza uma operação de duplo significado, que consiste
em liberar forças sociais para transformar o sistema produtivo e em criar novas condições de
exploração. Não é uma simples substituição de formas de exploração, senão é uma operação que
cria novas e mais eficientes condições de mercado. Nesse novo modelo, o comando do sistema
se dá através do controle dos trabalhadores, que é através do controle das oportunidades de
emprego.
53 Cabe-nos abrir a questão relativa
à propriedade privada nos espaços
das colônias – de que fomos parte –
para entender que a formação da
grande propriedade fundiária aqui foi
um desdobramento de um sistema
multiforme de propriedade, em que a
propriedade privada da terra veio
junto com uma visão diferenciada dos
direitos e poderes dos proprietários
das terras.
75
A formação de capital interfere continuamente na organização de relações sociais,
sustentando a diferença entre os que são equivalentes uns aos outros e entre esses e que não são
equivalentes, ou seja, atingindo a qualidade do outro. Mas o capital surge de relações sociais e
não há como pensar que exista antes de relacionamentos de um coletivo. A situação extrema
logicamente é a escravidão, em que o outro é totalmente negado, mas no contexto de relações
desiguais que evoluem desigualmente, o reconhecimento do outro tem sido desigual e envolve
condições de negação mais claras que as de afirmação54.
Se o capital é uma relação social, a acumulação de capital é um processo que cria
condições sociais diferenciadas, especialmente, que cria condições diferenciadas de estruturação
social. A análise social da economia precisa de categorias sociais indicativas das condições de
organização e do modo como a organização está ligada à participação nos resultados da
produção. Essa é a análise de classes, que está submersa no desenvolvimento de O Capital, mas
que tem que ser recuperada como fundamento da formação dos diversos tipos de coletivos da
sociedade moderna, tanto dos coletivos permanentes como dos coletivos temporários.
Nesse ponto se coloca o papel de uma teoria de classes sociais como representação
sintética dos conflitos de interesse que se desenvolvem nas sociedades industriais. A análise de
classes não está restrita às relações diretas de trabalho, senão envolvem o conjunto das relações
determinadas pelas relações diretas de trabalho. No tratamento dado por Marx à questão das
classes sociais distinguem-se dois aspectos necessários para que se compreenda a sociedade
industrializada. Primeiro, as classes surgem de uma convergência e polarização de interesses,
que se formam em organizações sociais anteriores, mas que se transformam, levadas pela
54 A questão do outro é um ponto fundamental da visão ontológica da vida social. A problematização do outro é essencial nas atuais sociedades sub-industrializadas como o Brasil, onde a desigualdade resulta de um conjunto de elementos pertencentes a diferentes momentos da formação do capital, cuja origem está marcada pelo mercantilismo escravista, com seu fundamento em trabalho compulsório e em negação da identidade de todos aqueles submetidos à condição de escravos e de servos. Revela-se igualmente importante, de outro modo, nas atuais relações entre as nações mais ricas e as mais pobres, com diferentes versões, igualmente explosivas, nas relações entre os países da Europa ocidental e suas ex-colônias e nas relações entre os Estados Unidos e as nações dominadas.
76
experiência histórica concreta da sociedade burguesa e pela conseqüente consciência de cada
uma das classes envolvidas nesse processo. As classes sociais não surgem do nada. São
resultados de determinadas sociedades. Segundo, as classes são complexas e heterogêneas. Não
podem ser tratadas como conjuntos simples, comparáveis a estratos ou a grupos transitórios,
sejam eles economicamente determinados ou culturalmente identificados. A novidade é que os
interesses concretos das classes dão lugar a uma reconstituição da identidade de seus integrantes
através da formação de sua consciência histórica. Como diz Lukács, a história da classe é que lhe
dá consistência. Ora, essa frase de Lukács deve ser vista como uma conseqüência da visão do
próprio Marx da formação histórica das classes.
As relações de classe são duplas e compreendem as relações entre os que estão envolvidos
diretamente no processo de produção, que dão lugar a relações entre o conjunto dos que estão
envolvidos no processo e os diversos que não estão, que podem constituir conjuntos ou não.
Entre o exército da produção e o exército de reserva da produção. Mas, que é, realmente, o
exército de reserva? A noção de exército de reserva em Marx refere-se à relação geral entre os
empregados e os que precisam trabalhar para obter renda, portanto, que dependem do emprego
que o capital gera.
77
O CONTEXTO PRINCIPAL DO DISCURSO
ECONÔMICO E SOCIAL
Neste trabalho, a partir deste ponto, trata-se de penetrar no significado histórico do discurso
critico da economia política, que é o objetivo de O capital. Se o discurso da economia política
depende do fundamento jurídico que é a propriedade privada, para sua apresentação, tornou-se
necessário reconstituir seu fundamento sócio histórico, isto é, fez-se necessário mostrar o
sentido progressivo da estruturação da atividade econômica a partir dessa condição posta pela
propriedade privada. O que diferencia a produção capitalista é que ela se realiza mediante
processos de captação de valor que são inseparáveis de um controle do progresso técnico. O
progresso técnico é uma arma que funciona a favor dos capitalistas em sua relação com os
trabalhadores. No entanto, o movimento da substituição de técnicas não pode ser decidido por
nenhum capitalista em particular, mas resulta de uma necessidade do grande capital, como e
enquanto segmento líder do movimento do capital em geral.
“Na produção social de sua existência, os homens inevitavelmente entram em relações definidas,
que são independentes de sua vontade, isto é, relações de produção apropriadas a um dado estágio
do desenvolvimento de suas forças materiais de produção. A totalidade dessas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real sobre o qual se levanta a
78
superestrutura legal e política e à qual correspondem formas definidas de consciência social. O
modo de produção da vida material condiciona o processo geral da vida social, política e
intelectual. Não é a consciência dos homens que determina sua existência, senão é sua existência
social que determina sua consciência” (Contribuição à crítica ...pp.21)
Vemos que há dois significados da técnica, em que, num sentido amplo a técnica é a
regra de como se fazem as coisas em geral, isto é, é a forma da práxis, e num segundo plano é
uma variedade de formas específicas, que não necessariamente são compatíveis umas com as
outras.
Perfil temático da obra de Karl Marx
Neste capítulo pretende-se apresentar um esboço da linha central de argumentação do discurso
econômico e social de Marx, entendendo que essa linha central se desdobra em sucessivas
bifurcações, mas que tem uma notável continuidade no relativo a penetrar nas contradições da
produção capitalista, segundo ela se transforma sob o impacto da concentração do capital. Marx
construiu sua argumentação desde a identificação da propriedade privada e da alienação como
elementos primordiais do sistema capitalista de produção e chegou a uma monumental síntese
preliminar em Contribuições à crítica da economia política (1959).
79
O principal traço epistemológico da obra de Marx está na visão orgânico-evolutiva do
sistema capitalista de produção, que foi apresentado em forma preliminar na Contribuição à
crítica da Economia Política (1859) e em forma conclusiva, porém inacabada em O Capital (1867 a
1883). O modo crítico como essa obra se desenvolve resulta de ver o sistema produtivo como
algo historicamente produzido que, por isso, deve ser visto como um conjunto em
transformação conduzida por suas próprias contradições. Os Lineamentos fundamentais para a
crítica da Economia Política, conhecido como Grundrisse (Esboços) (1857-1858) não foram
autorizados por Marx e somente foram publicados em 1904. Neles, entretanto, encontra-se
material que foi resumido na Contribuição, tornando-se necessária uma leitura progressiva e
comparativa desses textos, para entender o direcionamento dado por Marx em O Capital.
Observe-se que esses Lineamentos foram elaborados dentro de um plano complexo, que exige um
estudo à parte, onde se encontram um grande capítulo sobre dinheiro e outro sobre capital, que
são fundamentos essenciais da versão ulterior em O Capital.
Nada disso, entretanto, elimina o fato de que o desenvolvimento do tema em O Capital é
incomparavelmente mais detalhado, completo e integrado que nas demais obras, e que há
diversas linhas da polêmica sobre o capitalismo que só se encontram em O Capital. A nosso ver
a diferença fundamental entre O Capital e os momentos anteriores da obra de Marx está no
planejamento mesmo dessa última obra, cuja concepção ultrapassa tudo anterior.
Outros textos econômicos, tais como Salário, preço e lucro, são tomados como
preparatórios e condicionados, por terem sido elaborados como material de debate. A polêmica
tem sido apresentada como uma conseqüência da atividade política de Marx, mas entendemos
80
que há muitos indícios de ter sido um recurso usado por ele para esclarecer melhor suas próprias
idéias. Isso ficou muito claro no debate com Proudhon, que em momento algum teve estatura
para contestar O Capital. Uma vez esclarecido o problema das categorias do método, Marx
descarta a polêmica, cujas limitações reconhece.
Encontramos poucas tentativas de trabalhar com uma visão da obra de Marx em seu
conjunto. Se O Capital é a máxima formulação da crítica de Marx é em sua totalidade que está a
estruturação dessa crítica. O fato de que a teoria do dinheiro e da moeda esteja mais
desenvolvida em obras anteriores não elimina o fato de que é em O capital a função do dinheiro
e da moeda está plenamente exposta.
Na compreensão da estruturação da obra de Marx destacam-se os comentários de
Rosdolsky (1989) e de Kautsky (1946), que dão conta do alargamento dos objetivos e do aumento
de complexidade que se apresentaram desde seus delineamentos iniciais até sua forma final. No
entanto, os dois pecam por simplificações. Kautsky por reduzir a teoria econômica de Marx a
uma mecânica da operação do capital e Rosdolsky por tomar a explicação das categorias como
apresentação da teoria. Sinteticamente, essas mudanças podem ser atribuídas à relação entre o
aumento de complexidade do capital - em sua composição e em sua reprodução - e o tratamento
da produção capitalista em seu conjunto. Em clara contradição com a abordagem dos Clássicos
seus antecessores, é um tratamento que focaliza nas variações de uso de trabalho e em emprego
de trabalhadores, antes que em formas de uso de trabalho. Na linguagem de hoje, tais variações
devem ser vistas como irreversíveis, já que correspondem a situações da evolução do capital que
não podem realmente se repetir. Ao identificar a lei da tendência decrescente da taxa de lucro
81
(L. III) Marx revela uma contradição essencial do processo, que é aquela que se estabelece entre
essa tendência decrescente da taxa de lucro e as necessidades do capital, de resultados com que
se reproduzir.
Ao distinguir a força de trabalho inerente ao trabalhador, isto é, sua força de trabalho, e o
trabalho que se realiza formando valor, Marx prepara o terreno para mostrar que a apropriação
de valor é progressiva, e que o poder do capital aumenta, junto com o valor acumulado que ele
comanda55. A questão é que a apropriação de valor se realiza em sistemas mais complexos, onde
o trabalho se torna mais qualificado. Por isso, o coração do problema não é o controle da
tecnologia, senão são as crescentes necessidades da reprodução do capital, que estão por trás do
movimento geral de busca de renovação tecnológica.
As explicações de Rosdolsky estão estruturadas em sua leitura dos Grundrisse, pelo que
apontam à relação entre as teses assinaladas e o que se desenvolveu em O Capital. Baseiam-se
em aspectos necessários para o estudo da produção capitalista em seu conjunto, que é tratar do
modo de produção capitalista em condições históricas concretas. Inicialmente, mostra o resgate
da dialética como modo de pensar que reflete o modo da realidade social da economia. Segundo,
o papel do dinheiro, como principal meio de realização da produção capitalista e como veículo da
circulação de capital. Cabe entender que esse mergulho na produção dos conceitos
estruturadores da análise tem um lugar muito especial na compreensão do processo de trabalho
de Marx em seu conjunto.
Os Grundrisse estão organizados em grandes capítulos temáticos – o dinheiro e o capital –
onde se registra aquela etapa do trabalho de Marx em que ele está no movimento de
55 A influência de Aristóteles é
nítida: força de trabalho e trabalho
correspondem, claramente, à doutrina
de potência e ato que se encontra
desenvolvida na Metafísica.
82
compreender os processos que quer dilucidar, mas onde ainda não concebeu a estrutura
explicativa que ao mesmo tempo é a estrutura interpretativa, que é o que desenvolve em O
Capital. Já se apresenta a complexidade conceitual do trabalho, mas ainda não se encontra a
distinção entre a esfera da exposição abstrata e a esfera do concreto, que é outro dos aspectos
fundamentais de O Capital, tal como diz o próprio Marx ao indicar que no Livro III de O Capital
verá o processo por seus aspectos concretos56.
Os textos filosóficos, especialmente as Teses sobre Feuerbach e a Ideologia Alemã, são aqui
considerados como partes necessárias da explicação do quadro econômico, tratando-se como
referências colaterais, porém integradas com o desenvolvimento da análise social e econômica.
Uma referência especial deve ser dada ao ensaio intitulado Feuerbach, oposição entre as concepções
materialista e idealista, que é o primeiro capítulo da Ideologia Alemã. Ali é onde se apresenta a
relação entre a divisão do trabalho e a formação de ideologia como decorrência do modo
capitalista de produzir.
Mas não se pode perder de vista que a maior parte das reflexões filosóficas de Marx – que
se desenvolvem desde seus primeiros trabalhos - está submergida no texto totalizante de O
Capital. No conjunto da obra de Marx, O Capital se coloca como o ponto máximo de
consciência englobante, no sentido dado a esse termo por Karl Jaspers: a máxima possibilidade
de ver um processo desde um ponto determinado.
56 Esse é outro ponto do modo de
trabalhar de Marx que é nitidamente
extraído do modo de trabalhar de
Hegel, quando ele desenhou a
separação entre a Fenomenologia do
Espírito e a Ciência da Lógica.
83
Fundamentação conceitual
Para compreender o corpo central da obra de Marx, é preciso entender que todo seu
pensamento teórico está assentado sobre categorias de mudança, ou melhor, categorias do mudar57
que contrastam com as categorias de Aristóteles, que são categorias do predicamento ou do
objeto; e com as de Kant, que são categorias do pensar. Nosso convencimento é que a doutrina
de categorias é um dos aspectos principais da obra de Marx, que demandam uma reflexão mais
cuidadosa.
Essas referências necessárias do pensamento teórico, tais como a mercadoria, o modo de
produção, o trabalho, o capital, representam entidades cujo conteúdo necessariamente muda ao
longo do tempo. É um trabalho historicamente situado, isto é, cujo valor corresponde a uma
determinada inserção no processo de produção, em sua trajetória histórica58, O que distingue o
contexto genérico do modo de produção do contexto concreto da formação social é, justamente,
o trabalho situado, cujo valor depende de sua inserção em determinado espaço-tempo de
acontecimentos.
O sentido de finalidade da análise determina a necessidade de uma análise de seus
fundamentos, tanto como tem levado à de suas conseqüências, geralmente vistas como na
tendência à crise do sistema. Uma análise específica de categorias terá que ser realizada adiante,
para estabelecer em qual referencial se situa e pode ser desenvolvida. No escopo deste ensaio
indica-se apenas a necessidade de distinguir categorias da produção em geral e da produção
57 Trata-se do modo de mudar da
sociedade organizada, que
compreende as condições de mudança
dos indivíduos. Ao ver a mudança
como algo inerente e inevitável da
vida social, supõe-se que a análise
social tem que organizar-se como
teoria da mudança, portanto,
remeter-se a condições concretas de
tempo.
58 É um aspecto registrado por José
Artur Giannotti, em seu Certa
herança marxista (2000)., que a
nosso ver deve ser especificado em
termos de quais situações. O trabalho
historicamente situado está num dado
ponto momento da progressão
formativa do sistema de produção; e é
parte do que acontece nesse ponto
momento. Noutras palavras, é
protagonista desse dado ponto
momento.
84
capitalista em especial. Num primeiro grupo de categorias, colocam-se o valor de uso e o valor
de troca, o capital e o trabalho e a mercadoria. Num segundo grupo colocam-se a mais-valia, a
composição do capital, o modo de produção. A concretude do sistema impõe trabalhar com
outras ordens de categoria, tais como são a formação social, a jornada de trabalho, a composição
do capital. Há categorias que situam a materialidade do processo e outras que situam sua textura
ideológica.
É preciso deixar claro que Marx trabalhou com um claro sentido de categorias, onde os
Grundrisse são uma grande pesquisa sobre as categorias moeda e capital, e onde a categoria
trabalho se define progressivamente desde os Manuscritos de 44 até uma apresentação conclusiva
no Livro I de O capital.
O tema de Marx é a sociedade capitalista, que está governada pelas determinações do
modo de produção capitalista (mpc), com suas plenas características de sociedade moderna. Este
modo de produção capitalista consiste de que a produção é decidida pelos interesses privados que
controlam a formação de capital. O mpc consiste de que a produção é realizada mediante a
compra de força de trabalho, que é realizada de tal modo que permite aos compradores (os
capitalistas) apropriarem-se de tempo de trabalho comprado e não comprado.
Ao comprarem trabalho, os capitalistas obtêm o trabalho pago, e o trabalho não pago que
vai junto com esse, que é a mais valia; além de uma contribuição dos trabalhadores ao fundo de
consumo dos próprios capitalistas, já que uma parte do consumo dos capitalistas é atendida
mediante as preferências na composição do produto social.
85
Problemas preliminares: a questão do trabalho produtivo
No primeiro volume, capítulo IV, das Teorias da Mais-Valia, Marx faz uma revisão
pormenorizada da formação dos conceitos de trabalho produtivo e improdutivo, passando pelos
Fisiocratas e pelos Clássicos, apontando, basicamente, dois aspectos fundamentais, que são a
separação entre a visão de trabalho produtivo na produção capitalista e na mercantil e a
ambigüidade da concepção dos Clássicos sobre o tema, que é, praticamente, a concepção de
Adam Smith. O grande achado de Marx sobre esse problema é mostrar que se trata de trabalho
produtivo para a produção capitalista e não para o trabalhador. Em suas palavras, “Trabalho
produtivo no sentido da produção capitalista é o trabalho assalariado que além de reproduzir essa parte do
capital (o capital variável) ainda produz mais valia”. (Teorias da mais-valia, I, pp.132). Adiante, “um
escritor é trabalhador produtivo, não por produzir idéias, mas enquanto enriquecer o editor que publica
suas obras ou enquanto for o trabalhador assalariado de um capitalista”. (op.cit. pp. 137).
A nosso ver, a principal questão que se levanta a partir da conceituação de Marx é que o
trabalho dos trabalhadores pode ser produtivo sempre e quando houver condições para que se
converta em capital, o que depende das condições de desenvolvimento do sistema produtivo e
não pode ser uma definição inicial. Em última análise, isso significa que a produtividade do
trabalho não é somente uma medida da eficiência local do trabalhador, mas é uma medida local
86
de eficiência externamente determinada pelas condições ambiente em que o trabalhador
trabalha, que são proporcionadas pelo capital.
Problemas preliminares: dinheiro e moeda
Na origem do tratamento da moeda em Marx está a necessidade de uma representação do valor
de troca, capaz de registrar o movimento geral de incorporação de valor própria da acumulação
capitalista. O dinheiro é a representação do valor sem ataduras institucionais, exprimindo
plenamente a internacionalização do sistema produtivo. O dinheiro como tal antecede as
condições operacionais de cada país, mas ganha sua identidade na forma de moedas nacionais,
que são manifestações de soberania. O dinheiro é o valor de troca com sua falta de ligação com
as instituições nacionais, enquanto a moeda é a manifestação financeira do poder econômico
dessas instituições. O problema teórico enfrentado por Marx é de explicar a circulação do
capital, entendendo que ela é um movimento progressivamente mais amplo e mais complexo,
que é funcional ao sistema produtivo. A esfera monetária não está separada da esfera real, senão
é o meio pelo qual a esfera real é movimentada. A teoria da moeda é a teoria da circulação do
capital.
O sistema do capital funciona com dinheiro, que é a mercadoria plenamente equivalente.
Isso quer dizer que a função do dinheiro depende da conversibilidade das moedas, ou também,
87
que as possibilidades de uso das moedas dependem do grau de desenvolvimento do uso do
dinheiro no sistema em seu conjunto. A teoria do capital depende de pressupostos sobre a
moeda, que Marx explorou nos Grundrisse, mas que aparentemente perdem importância em O
Capital. Aí, Marx trabalha as funções da moeda no Livro I e o papel da moeda na circulação no
Livro II, mas não esgota essa argumentação em nenhum desses dois lugares. Há um plano de
trabalho de análise do dinheiro na obra de Marx, desde os Manuscritos, que a nosso ver ainda não
foi completamente explorado59.
O problema é que a realização dessas funções da moeda depende de suas condições
históricas de circulação, que desembocam em sua conversibilidade. Vemos que é um problema
que só se resolve quando se passa da análise da produção do capital em geral para uma análise da
produção capitalista tal como ela acontece nos diversos países. Ora, as condições históricas de
circulação da moeda dependem das condições gerais de desenvolvimento do sistema produtivo,
que é o que aparecerá de modo imediato como desenvolvimento das forças produtivas. A
questão da conversibilidade aparece primeiro no contexto de cada economia nacional e passa,
depois, para as relações entre economias nacionais.
59 A valiosa contribuição de Suzanne
de Brunhoff é um passo nessa
direção, mas ainda não esgota a
problemática do papel da moeda como
elemento interativo do
desenvolvimento do processo de
circulação.
88
A estruturação de O Capital
Nesta parte deste trabalho apresenta-se uma visão resumida de O Capital, que será retomada
nas seções seguintes e depois distribuída nos três capítulos seguintes. Neste estudo segue-se a
ordem do trabalho publicado, que, se entende, reflete o plano do autor. O fato de que Marx
tenha começado por elaborar o material do Livro III para depois escrever o Livro I e finalmente
escrever – o que pôde – do Livro II não altera o fato de que a referência dominante é o plano
geral da obra que ele seguiu até o final.
O Capital está organizado em três livros, que cobrem a produção do capital, a circulação
do capital e a produção capitalista em seu conjunto. É a versão mais desenvolvida, inacabada e
desigualmente reconstruída, da explicação crítica da sociedade econômica iniciada nos
Manuscritos de 1844 e sucessivamente apresentada, em forma acabada e preliminar na
Contribuição à crítica da Economia Política; e em partes fundamentais, porém também inacabadas,
nos Grundrisse. Não são apenas momentos de maior desenvolvimento do mesmo campo
temático, senão representam diferentes abordagens. Os Grundrisse são o texto mais
“econômico”, provavelmente porque mostram o esforço do autor para dominar a engrenagem
monetária do capital. Já a Contribuição revela um esforço de visão de conjunto que continua e se
aprofunda em O Capital.
Esses três grandes movimentos foram estruturados segundo uma visão dialética do
silogismo aristotélico, isto é, do silogismo enquanto representação de movimento e não como
89
comparação de posições60. Desenvolvem-se sobre uma conceituação básica da economia como e
enquanto campo de mudança, em que se distinguem três aspectos, que estão explicitados nos
Grundrisse, que são:
a. A identidade de produção e consumo e de produção e distribuição. A produção
é, simultaneamente, consumo, para a finalidade de produzir. Por sua vez, produzir é consumir
os meios que se usa na produção (Grundrisse, L.I, pp.6) É uma posição diametralmente oposta à
das macro economia clássica, que separa produção, distribuição e consumo.
b. A tendência incoercível do capital a sua própria concentração: "O capital, quando
não se reveste de uma forma inadequada - por exemplo, como o pequeno capital, que trabalha por conta
própria - pressupõe já, em certa escala, maior ou menos, a concentração" (Grundrisse, L.II, pp.9).
c. A tendência a uma mudança progressiva do papel do trabalho na reprodução
social, aumentando a participação do trabalho indireto e do trabalho qualificado, portanto,
modificando, qualitativamente, a relação entre capital constante e capital variável.
60 Em Aristóteles encontramos que a
lógica é a representação do
movimento do conhecimento, isto é,.
do movimento do sujeito em seu
conhecer e não uma exposição de
posições idealmente fixas. A relação
entre o que se conhece e o que se
desconhece corresponde a uma
relação entre o imediato e o mediato,
ou seja, trata de situações no tempo
do sujeito, que é um plano de
concretude do tempo. Henri Lefebvre
explorou essa dimensão da lógica (
Lógica formal e lógica dialética,
1970) definindo a dialética como a
lógica do concreto. Parece-nos que o
modo mais correto de enunciar essa
dimensão - na tradição hegeliana - é
de vê-la como a lógica da
concretização do ser.
90
LIVRO I: A PRODUÇÃO DO CAPITAL
1, Mercadoria e dinheiro2. Transformação do dinheiro em capital3. Produção da mais-valia absoluta4. Produção da mais-valia relativa5. Mais-valia relativa e absoluta6. Salário7. O processo de acumulação do capital
LIVRO III: O PROCESSO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA EM SEU CONJUNTO
1, Transformação da mais-valia em lucro e taxa de mais-valia em taxa de lucro2. Como se converte o lucro em lucro médio3. Lei da tendência decrescente da taxa de juros4. Conversão do capital-mercadoria e do capital-dinheiro em capital comercial e capital financeiro como formas do capital mercantil5. Desdobramento do lucro em juros e lucro do empresário em capital a juros6. Conversão do lucro extraordinário em renda da terra7..As rendas e suas fontes
LIVRO II: O PROCESSO DE
CIRCULAÇÃO DO CAPITAL
1. Metamorfose do capital e seu ciclo2. A rotação do capital3. A reprodução e circulação do capital em seu conjunto
ESTRUTURA DE O CAPITAL
91
A produção (social) do capital
Para que haja um sistema capitalista de produção, é preciso que se produza capital. Isso se dá
mediante a canalização de trabalho para produzir valor de troca, sob comando do
direcionamento da produção estabelecido pelos interesses organizados do capital. O capital
compra de fato força de trabalho, que converte em trabalho funcional à reprodução do capital
acumulado, que se incorpora em produção organizada segundo os objetivos e os padrões de
organização estabelecidos pelo próprio capital. Mas o segredo é que os capitalistas usam a força
de trabalho para dela tirar o trabalho que é requerido para a estrutura produtiva que eles
controlam. O sistema depende da propriedade privada em geral e do controle dos meios de
produção por parte dos capitalistas.
Os resultados desse trabalho são mercadorias, que passam a constituir os objetos de
referência das relações capitalistas61. O que elas têm em comum é que todas representam
trabalho e que são comparadas em termos de dinheiro. Mas a mercadoria incorpora o poder de
simbologia da sociedade, tornando-se um substituto útil do sentido de realização das sociedades
não capitalistas - tribais ou teocráticas - entretanto, com uma armadilha, que é sua aparente
utilidade. O fetichismo da mercadoria está associado a essa pseudo-utilidade, que é
artificialmente criada pelo processo do capital; e que passa a captar a energia da sociedade. Há
um complexo problema a ser exposto, se não explicado, em termo de pseudo-utilidade da
61 A experiência latino-americana ,
em que se opera com mercadorias de
circulação mundial e de circulação
local, leva a qualificar as observações
sobre as mercadorias, destacando a
relação entre o papel de cada
mercadoria específica e o horizonte de
mercado em que ela é negociada.
Tecnicamente não há nenhuma
diferença significativa entre as
aguardentes produzidas em países
latino-americanos e em países
europeus, mas as primeiras são
mercadorias locais enquanto as
outras são mercadorias mundiais.
92
mercadoria e pseudo-utilidade do trabalho destinado a produzir mercadorias. Parece-nos que o
fetichismo da mercadoria depende do perfil cultural da sociedade que a produz.
O Livro I apresenta os termos em que se realiza a produção de capital, que é um processo
que se expande no universo da atividade social62. Supostamente, em princípio, não há limites
para essa expansão. Mas é uma expansão que contém seu próprio freio interno, que são as crises
geradas pelo crescimento; e seu próprio freio externo, que são as limitações de recursos para
produzir. No essencial, a teoria da crise reúne os elementos dos freios interno e externo,
combinando elementos de determinismo e de incerteza, necessitando uma leitura do
comportamento cíclico do processo econômico - tal como está na teoria dos ciclos - e uma leitura
do perfil de incerteza, que só se passou a poder fazer sobre as bases do desenvolvimento das
ciências da natureza desde 1960.
A analogia com a expansão do Universo é quase inevitável. O Livro I trata dos
fundamentos da formação do capital nas relações sociais, bem como dos processos específicos
formativos do capital. O fundamental é que o capital é uma relação social baseada no controle
dos meios de produção para produzir, portanto, que se diferencia do controle de recursos que não são
usados para produzir. Mediante esse controle, os capitalistas pré estabelecem as condições em que
os trabalhadores podem trabalhar e quando podem trabalhar. Por isso, o capital tem que
acumular, tanto como o capitalista tem que decidir sobre o capital específico que controla63.
A produção do capital se dá mediante uma produção social de valor, controlada pela
propriedade dos meios de produção e da organização da produção e que se realiza mediante a
produção dirigida de mercadorias. O capitalista surge junto com a mercadoria. As mercadorias
62 Marx ressalta a necessidade de
ligar a noção de produção social à de
sociedades concretas, que é uma
observação que vale para a
conceituação de mercado
(Grundrisse, vol. I, pp 2) O mercado
não é uma abstração financeira,
senão uma situação concreta de
transações entre produtores e
consumidores específicos.
63 Isso quer dizer que os capitalistas
têm que encontrar onde aplicar
capital. Essa questão levantada por
Adam Smith continua em aberto.
Não há garantia prévia de
oportunidades de investimento.
93
são a representação do valor de troca, que leva subsumido o valor de uso. A relação entre valor
de uso e valor de troca transfere-se para a esfera da relação entre mercadorias, que é dizer, entre
valores de troca. Daí, ser preciso conhecer a equivalência de valor entre as mercadorias. Esta é
dada pelo papel do dinheiro na troca.
O capital tem o germe da universalidade no processo de circulação. “No comércio mundial
as mercadorias despregam seu valor em caráter universal. Sua forma independente de valor enfrenta-se
com elas, portanto, sob a forma de dinheiro mundial”. A seguir, “na órbita interna de circulação só pode
servir de medida de valor, portanto, de dinheiro, (que é) uma mercadoria. No mercado mundial reina uma
dupla medida de valor.” (Livro I, pp.99) “O dinheiro mundial funciona como meio geral de pagamento,
como meio geral de compra e como materialização social absoluta da riqueza em geral”. (Livro I, pp. 100)
Entende-se, portanto, que a explicação do movimento básico do capital é monetário; e que a
esfera monetária regula as opções de escolha das mercadorias com que o capital trabalha. Ver-
se-á adiante que esse ponto é fundamental, para explicar o papel do componente mercantil da
produção industrializada.
A circulação é o meio pelo qual aparece a mais valia. A mais valia é a parte do valor
gerado que os capitalistas se apropriam sem pagar aos trabalhadores e que é obtida mediante a
organização da produção e sua comercialização. Mas o estudo da circulação do capital depende
de uma prévia explicação de como se produz o capital que circula; e de como essa circulação
altera a composição do sistema de produção. Destaca-se que nesse Livro I, onde trata da
conversão do dinheiro em capital (pp.139), Marx diz que "no curso de nossa investigação nos
encontraremos com o capital comercial e com o capital a juros, como formas derivadas, e veremos também,
94
porque historicamente essas formas são anteriores à forma básica e moderna do capital". Aí está um
complexo problema teórico, relativo à diferença entre a seqüência temporal do desenvolvimento
do capital e a lógica do aumento de sua complexidade64.
De qualquer forma, a questão a ser respondida refere-se ao mecanismo de conversão do
dinheiro em capital, que é uma operação capitalista por excelência. Marx adverte (pp.121) que
essa operação se dá fora da esfera da circulação, concretamente, onde o capitalista encontre
como completá-la, que é no consumo. Trata-se, evidentemente, do perfil social do consumo.
Não há como imaginar que o capital possa se reproduzir numa sociedade onde a renda esteja
totalmente concentrada, onde um grande consumo de um pequeníssimo número de pessoas
responda pela maioria das compras. A concentração do capital leva a uma tendência à
concentração da renda e à concentração do consumo, traduzindo-se em tendência geral a um
sistema instável.
Assim, a conversão do dinheiro em capital depende do perfil do consumo, que por sua
vez depende da distribuição propriamente dita da renda, que como diz Cannan65, é aquela que se
dá entre grupos. A partir daí, no Livro I trata-se sucessivamente da mais valia absoluta, da mais
valia relativa e da mais-valia em seu sentido mais completo. Sobre esse corpo teórico, trata-se da
reprodução simples e da reprodução ampliada do capital.
A primeira, a rigor, é um artifício, já que corresponde a condições ideais em que o
produto social pode aumentar, mas supõe que a composição do capital se mantém inalterada,
que é algo que não acontece mesmo a curto prazo. A reprodução ampliada contém um
direcionamento implícito da trajetória do produto, que é o rumo seguido pelos interesses do
64 Surpreendentemente, nesse ponto
a compreensão de capital de Böhm
Bawerk aproxima-se da de Marx, no
que este pretendeu que o capital é,
antes de tudo, o principal com que se
empresta, que por definição está
ligado à função do comércio. Assim,
em parte a crítica de Böhm Bawerk a
Marx é uma falácia, já que não
consegue se separar do conceito que
critica.
65 Edwin Cannan distinguia entre
pseudo distribuição, refletida pelos
dados de distribuição interpessoal da
renda e distribuição propriamente
dita, que se dá entre grupos no
contexto da organização do sistema
produtivo. A abordagem de Cannan,
que pode visto como um clássico
tardio, invalida a análise de
distribuição baseada em coeficientes
como o de Gini que registram apenas
um efeito pessoal de uma distribuição
social da renda.
95
capital numa progressão de opções que resultam na tendência da composição do capital. Marx
trata da reprodução simples nos três livros de O Capital e certamente não é por acaso. A
reprodução simples é o campo no qual se apresentam – em germe no início e desenvolvidos
adiante – os elementos relativos à incerteza com que o sistema opera. É nesse ambiente teórico
que se coloca o problema fundamental de que podem se introduzir elementos de incerteza –
através da renovação tecnológica – que podem obstaculizar ou mesmo impedir que a reprodução
se conclua.
O movimento essencial pode ser representado tal como no diagrama 1 a seguir.
DIAGRAMA 1
MERCADORIA-DINHEIRO (CIRCULANTE)
DINHEIRO (RESERVA)
CAPITAL CAPITAL
MAIS-VALIA PRODUÇÃO
96
A interpretação de Marx está baseada nas referências da produção industrializada, que se
representa principalmente nas indústrias, mas que não está limitada a elas, senão que se estende
à agricultura e à prestação de serviços, identificando-se com a reificação das relações de
trabalho66. A produção industrializada é a realizada pelo capital industrial e se concretiza no
modo de tratar os diversos tipos de produção como empreendimentos delimitados no tempo pela
amortização dos capitais investidos, que por sua vez está delimitada pela amortização dos
equipamentos e dos usos de instalações regulados por equipamentos67.
A análise da produção industrializada revela processos que não podem ser percebidos
com igual clareza nas sociedades não industrializadas. O capital se forma mediante a captação
de mais valia, que é o valor representado pelo salário do trabalhador (taxa de mais-valia e capital
variável desembolsado). A mais-valia é extraída no processo de produção e fica, latente,
incorporada nas mercadorias, passando para a esfera do lucro quando as mercadorias são
vendidas. Há dois níveis de extração da mais valia: o que se dá nas condições técnicas atuais,
que é a mais-valia absoluta; e o que surge mediante o controle da renovação tecnológica, que é a
mais-valia relativa. O controle da mais-valia relativa é um aspecto objetivo da produção
capitalista e não uma questão de inventividade ou de subjetividade separadas das condições
concretas da produção.
Por isso, na estruturação de O Capital a exposição do mecanismo da mais valia leva a
análises do funcionamento da maquinaria e da grande indústria - onde se concentra o controle
da tecnologia - e da teoria do salário, cuja determinação fica subordinada aos controles dos usos
da tecnologia e à divisão do trabalho. Encontra-se aí um ponto fundamental, que é a tendência à
66 A destituição do outro como
equivalente leva à retirada do
componente ético e cultural dos
relacionamentos, que se tornam
relações com objetos contratados sem
personalidade ideológica, ou seja,
relações entre sujeitos contratantes e
coisas. A reificação em última
análise é a destruição da
responsabilidade social.
67 Isso se vê claramente no relativo
à produção agrícola, em que se
distinguem as formas de agricultura
que contemplam a preservação do solo
como um patrimônio necessário à
perpetuação dessa atividade,
comparado com a produção agrícola
industrializada que vê o tratamento
do solo como equivalente ao
tratamento dos equipamentos, pelo
que o solo pode ser objeto de cálculos
de custos em que ele aproveitado no
tempo correspondente à duração dos
equipamentos. Isso, logicamente,
coloca a destruição dos solos como
algo externo aos empreendimentos,
sobre o qual as empresas não têm
responsabilidade.
97
concentração do capital, imposta pelo manejo de maquinaria. Para entender isso, é preciso ver
como Marx entendeu a constituição e o desgaste da maquinaria. Viu a maquinaria como um
modo de realizar um conjunto de funções - mecanismo de movimento, de transmissão e
mecanismo ferramenta - que está integrado num conjunto físico sujeito a dois tipos de desgaste,
o interno e o que chamou de moral. O desgaste interno resulta da ação e da inação, do uso e da
falta de uso, como diz, como a espada que enferruja na bainha. O desgaste moral é o que aparece
na literatura econômica neoclássica com o nome de obsolescência, isto é, a perda de valor que
decorre do aparecimento de produtos equivalentes mais novos e mais rentáveis, independente
das qualidades intrínsecas da maquinaria existente.
O desgaste impõe uma reposição suficiente para permitir que a indústria mantenha sua
capacidade de extrair mais valia frente às demais, o que só pode acontecer se ela for capaz de
controlar seus custos de maquinaria. Tal requisito só se satisfaz na grande indústria. O
desdobramento lógico desse argumento é que num sistema de produção em que há grande
indústria, a pequena indústria só existe como contrafação da grande; e sobrevive nas margens de
ordenamento de mercado determinadas pelo modo de acumulação na grande indústria. De nossa
parte, observamos que o desenvolvimento de um segmento de pequena indústria é um
movimento dependente, que se realiza em margens de mercado não cobertas pela grande
indústria, mas onde, em todo caso, ela pode intervir.
Nessas condições converte-se a mais valia em capital, isto é, a venda da produção habilita
o capitalista a destinar a mais valia para a reprodução dos meios de produção antes que para
atender consumo. A conversão da mais valia é o cerne do movimento da acumulação, que
98
permite que o capital se mantenha como capital. Na linguagem econômica corrente atual, é a
formação de capital, que encaminha a reprodução do sistema de produção. Por contraposição, a
reprodução da força de trabalho depende do capital variável, isto é, da arte da renda que retorna
aos trabalhadores.
A reprodução se vê como reprodução simples e como reprodução ampliada, em que a
primeira descreve a reposição do capital e a segunda contempla essa reposição no ambiente de
mudança do sistema de produção. A reprodução simples é uma simplificação, já que em todo
caso o sistema funciona em condições de mudança. Entretanto, é preciso levar em conta que a
reprodução ampliada inclui os movimentos de desvalorização, que se realiza com componentes
positivos e negativos.
Nesse ponto, é preciso ver qual a leitura social desse processo. Para isso, é preciso
compreender a composição do capital. É um dos aspectos conceituais mais importantes de O
Capital. Diz Marx, que "a composição do capital pode interpretar-se em dois sentidos. Segundo o valor,
depende da proporção em que se divide em capital constante ou valor dos meios de produção e capital
variável, ou valor da força de trabalho (...). Segundo seu funcionamento no processo de produção, os
capitais se dividem sempre em meios de produção e força viva de trabalho. Esta composição se determina
pela proporção existente entre a massa dos meios de produção empregados de uma parte e da quantidade de
trabalho necessária para seu emprego. Chamaremos a primeira composição de valor e a segunda de
composição técnica do capital. Há entre elas uma relação de mútua interdependência. Para expressa-la,
dou à composição do valor, enquanto determinada pela composição técnica e reflete as mudanças
nela operadas, o nome de composição orgânica.
99
Quando se fala de composição do capital pura e simplesmente, referimo-nos sempre à
composição orgânica" (Livro I, pp.517). Assim, torna-se claro que Marx considera que o capital
necessariamente muda de forma ao longo do tempo, pelo que os capitais incorporados em
empreendimentos específicos têm que ajustar-se à média dos capitais e à taxa média de lucro.
Ora, a dimensão de composição contrasta com tudo até então dito sobre a constituição do
sistema, porque em última análise trata-se da composição do trabalho, que muda
continuamente, não só acompanhando as alterações do capital acumulado, mas na prática
criando as condições para a formação do capital. A noção de composição é inseparável da de
complexidade e da de processo condutor de aumento da complexidade social da economia, que
responde pelo fundamento cultural e ideológico da atividade econômica. A questão da
complexidade aparece primeiro de modo velado na análise da produção de mercadorias,
subjacente ao fato de que se trata sempre de uma renovação da coleção de mercadorias, em
número, em variedade e em qualidade. Depois aparece como uma característica do capital novo
que se forma sob a pressão da busca de mais-valia relativa.
No fundamental, essa primeira parte desemboca na caracterização da acumulação
capitalista. A predominância do trabalho coletivo sobre o individual, e a impossibilidade de
reproduzir-se a força de trabalho fora do mercado de trabalho estabelecido pelo capital, faz com
que a força de trabalho em seu conjunto, seja levada a contribuir ao movimento geral de
acumulação. Além disso, o incremento do capital torna insuficiente a força de trabalho.
Entretanto, o capital constante aumenta mais que o variável, isto é, aumenta a eficiência do
trabalho vivo para usar o trabalho morto. Diz Marx que "a diminuição do capital variável
100
relativa ao capital constante, ou as mudanças operadas na composição do capital indicam,
aproximadamente, as mudanças que se operam na composição de seus elementos materiais"
(Livro I, pp.527)68. Subjaz que o capital variável aumenta progressivamente no sistema, seja
como trabalho indireto, seja como trabalho potencializado e em aumentos de produtividade.
Toda essa primeira parte conclui com a identificação de uma lei geral da acumulação
capitalista, que descreve como o capital consegue se reproduzir. O capital se reproduz mudando
de composição e estendendo sua esfera de atuação.
A circulação do capital
O Livro II está dominado pela idéia de velocidade diferenciada, associada aos movimentos do
capital entre a esfera produtiva e a de sua forma dinheiro. Compreende a velocidade do capital
dinheiro e as velocidades dos tempos do capital produtivo. O sistema ganha velocidade à medida
que a acumulação de capital absorve mais tecnologia, mas se torna mais instável, porque
depende mais de movimentos de concentração na formação do capital novo e emprega
proporcionalmente menos trabalhadores.
Pode-se dizer, portanto, que as empresas têm que ajustar-se à velocidade suficiente para
sustentar-se perante seus concorrentes. Assim, o estudo da circulação se realiza mediante o das
condições de rotação do capital entre suas formas dinheiro e produtiva; e em seus
68 Encontra-se aí uma antecipação
da teoria dos recursos humanos, que
se dedica a estudar o papel da
educação e da qualificação no
desenvolvimento econômico.
101
desdobramentos na reprodução do sistema em sua composição atual e segundo as regras de
mudança de sua composição.
A circulação parte do ciclo do capital em sua forma dinheiro ao seu ciclo em sua forma
produtiva. O ciclo do capital dinheiro quer dizer, quando se define o papel do capital de
condutor do processo de produção. Esse papel é exercido mediante o poder que é dado pelo
controle do dinheiro. Esse papel é representado por três movimentos da atividade do capitalista,
que são de quando ele se apresenta como portador de dinheiro para comprar trabalho e meios de
produção; de quando usa o trabalho e os meios de produção para produzir; e de quando vende a
produção para retirar sua mais-valia.
É preciso esclarecer o mecanismo do ciclo do capital dinheiro. É uma questão de
adequação do capital às condições em que opera. A quantidade de capital aplicada na produção
deve ser adequada o suficiente para uma produção suficiente para reproduzir o capital
desembolsado. Trata-se, portanto, de capitais específicos, ou seja, de uma análise micro. No
ciclo do capital produtivo a circulação se interrompe, pela simples razão que o capital está
imobilizado. Mas o capital só pode ficar imobilizado porque há dinheiro circulando, que permite
seu retorno à liquidez. Além disso, a preservação do valor do capital imobilizado depende de
continuidade técnica dos meios de produção, isto é, que quaisquer transformações que
porventura aconteçam na composição técnica do capital sejam absorvidas na passagem entre
liquidez e imobilização. Num terceiro momento, o capitalista volta ao mercado como vendedor.
Aí, ele precisa vender seus produtos a preços suficientes para reproduzir o capital desembolsado.
102
Na explicação dos movimentos de circulação, Marx destaca o contraste entre o tempo de
produção, quando o capital fica imobilizado na esfera da produção e o tempo de circulação,
quando o capital está em condições de liquidez (cap. XIII).
Cabe-nos observar que tempo nesse caso tem dois significados, que são os de
oportunidade de quando o capital fica imobilizado e de duração dessa imobilização. Para o
gestor de capitais específicos, configura-se aí uma equação, que consiste em reduzir ao mínimo a
imobilização de capital e manter imobilizado o necessário para realizar as transações suficientes
para reproduzir seu capital. Colocado isso em termos de custos, trata-se de reduzir ao mínimo os
custos de imobilização de capital e elevar ao máximo as receitas que pode obter da liquidez.
Mas, como a imobilização é sempre uma proporção do capital total comprometido no
empreendimento, um objetivo do capitalista é sempre de resolver os problemas de imobilização
através do mercado de dinheiro, isto é, de tentar resolver esse problema comprando e vendendo
dinheiro no mercado.
É um problema que pode ser mais bem apreciado analisando-se as condições em que
operam os diversos capitalistas individuais. A condição de liquidez significa, ao mesmo tempo,
a capacidade de captar a mais valia correspondente aos capitais que operam com alta tecnologia;
e a mobilidade entre formas de aplicação. Assim, sempre que os capitalistas conseguem resolver
suas necessidades de liquidez mediante operações de mercado, estão preservando sua capacidade
de se deslocarem entre aplicações diferentes, portanto, de jogar com o fator diversificação para
elevarem sua taxa de lucro.
103
Esse argumento se desenvolve na comparação entre setores e nas comparações entre
aplicações específicas de capital. Há, portanto, uma questão relativa à sustentação da captação de
mais valia ao longo da concentração de capital, de suas fases concorrenciais até suas condições
monopolísticas, quando a liquidez se torna uma capacidade de pressão adicional para recompor a
captação de mais valia, ou quando são as condições de desenvolvimento das forças produtivas
que dão lugar a condições específicas de monopolização69.
Em seu papel produtivo, isto é, quando está na forma de capacidade de produção
(trabalho + meios de produção) o capital passa por dois processos fundamentais, que são os de
reprodução simples, quer dizer, sem acréscimo de capacidade de produção; e de reprodução
ampliada, isto é, com acréscimo de capacidade de produção.
A reprodução simples significa aquela reposição do sistema produtivo de seu desgaste
para realizar a produção, enquanto a reprodução ampliada compreende as diversas formas pelas
quais o sistema se expande além de repor-se. Observe-se que na prática não há como repor o
sistema sem que se introduzam modificações na composição orgânica do capital, tanto nos
meios de produção como no trabalho, assim como a reprodução ampliada se faz sobre
pressupostos de disponibilidade e de escassez de recursos. A reprodução simples é tratada por
Marx na perspectiva da produção no Livro I e na perspectiva da circulação no Livro II.
Não se pode desconhecer que a expansão do sistema produtivo faz-se com um
incremento progressivo do capital constante; e que a extração de mais valia relativa aumenta
mediante o controle da renovação tecnológica. Assim, não há como separar essa parte da teoria
daquela outra que trata da tendência à concentração do capital, tanto como não se pode ignorar
69 Esse argumento está desenvolvido
no L.II cap. XIII de O Capital,
entretanto, é claro naquelas condições
genéricas que denotam o estado do
capitalismo em tempos de Marx. A
retomada desse argumento no
"capitalismo maduro" de cem anos
depois, por Sweezy e Baran e por
Palloix, o que faz realmente é
realinhar a questão frente às
condições circunstanciais do
funcionamento da economia
capitalista em sua dimensão
internacional.
104
que o aumento do capital constante significa maior comprometimento dos recursos naturais. A
expansão do sistema produtivo abrange cada vez mais pessoas e mais recursos naturais e amplia
o horizonte de riscos com que o capital trabalha.
A análise desenvolvida no Livro II torna necessário explicar os movimentos do capital
em sua forma financeira e as inter-relações entre os movimentos da esfera financeira e os do
capital integrado na produção. Tal explicação financeira é a chave da explicação mais ampla das
velocidades diferenciadas do sistema. Essa movimentação aparece no Livro II na forma da
rotação do capital e no Livro III na forma de sua metamorfose entre mais valia e lucro e entre
formas do lucro.
A questão da rotação do capital é fundamental na construção da análise de Marx. A
rotação do capital deve ser observada em três níveis. Primeiro, ao nível do movimento do capital
em seu conjunto, quando se distingue a rotação do capital desembolsado sobre a do capital em
seu conjunto. Segundo, ao nível do capital desembolsado, que se representa em geral por sua
equivalência com sua expressão financeira. Finalmente, no relativo aos diversos capitais
desembolsados e integrados em diversas situações da produção. Além disso, a rotação do capital
se realiza mediante ciclos, que começam com o capital aparecendo como dinheiro, ingressando
no processo produtivo e convertendo-se em mercadorias.
Há tempos de circulação e há gastos da circulação sendo as variações dos tempos de
circulação resultam em modificações de custos. Há condições de rotação do capital constante e
do capital variável. No relativo à rotação do capital constante, o capital decide sobre si próprio.
No relativo ao capital variável, trata-se do controle exercido sobre a participação dos
105
trabalhadores na produção, já que "só pode funcionar o capital circulante variável de novo no processo
de circulação sempre e quando se venda o produto com que se reproduz se converta em capital dinheiro
e em pagamento de salários" (Livro II, pp.262). Trata-se do tempo de circulação do capital
desembolsado, que é o que efetivamente conta para a produção.
Marx apresenta a movimentação do capital em seu conjunto nas formas de uma
reprodução simples e de uma reprodução ampliada; e nós devemos entender que uma não existe
sem a outra. A reprodução simples só se explica em condições invariantes de composição do
capital; e esta, por sua vez, só se explica em condições invariantes dos meios de produção e do
trabalho. É uma situação hipotética. Primeiro, porque a realização da produção altera os meios
de produção. Segundo, porque o trabalho requerido para produzir e o trabalho produzido,
mudam constantemente como composição de valor e como qualificação disponível. Por fim,
porque a continuidade da formação de capital constante altera a produção antes que se amplie o
mercado. Pelo contrário, é a formação de capital constante que altera o mercado, já que os
capitalistas tentarão, por todos os meios, utilizar seu controle social da produção para optar por
linhas de produção compatíveis com a preservação de seus interesses.
Nesse conjunto, coloca-se a questão da composição do capital, que é um conceito
fundamental, que distingue a análise de Marx da análise dos economistas marginalistas em geral
de sua época e que continuou sendo a principal linha divisória com os marginalistas ortodoxos e
com os dissidentes, como os keynesianos. É a diferença entre totalidade e globalidade, em que a
primeira compreende as contradições e a segunda - utilizada por Keynes - refere-se a conjuntos
de fenômenos semelhantes. A totalidade é o resultado dos movimentos dialéticos de contrários,
106
enquanto a globalidade é apenas uma indicação de uma coleção de elementos não contraditórios
no momento em que são observados.
Marx distingue a composição de valor, que denota o perfil do trabalho, com suas
qualificações; a composição técnica, que denota o perfil dos meios de produção, com sua
tecnologia incorporada; e a composição orgânica, que é a combinação das duas anteriores Em sua
acepção mais completa, é sempre a composição orgânica, que contém a noção de composição
técnica, isto é, a relação entre o trabalho e os meios de produção que ele usa, mostra que o poder
realizador do trabalho que dá sentido aos meios de produção.
A composição do capital muda, constantemente, segundo ele se reproduz, à medida que
se absorvem novas tecnologias e que se descartam outras, acima de tudo, que mudam as escalas
de produção.
DIAGRAMA 2
CAPITAL (MUTANTE)
CICLOS(DINHEIRO, PRODUTOS)
REPRODUÇÃOCIRCULAÇÃO
ROTAÇÃO GERALDIFERENCIADA
107
No Livro II o capítulo VI é de especial interesse para a explicação da economia
contemporânea, já que trata dos gastos de circulação70 Marx distingue os gastos líquidos de
circulação, que são seus custos em termos de compra e venda, seus custos de contabilidade, que
consideram os investimentos nos sistemas de contabilidade. A seguir trata dos custos de
armazenagem, onde entram custos derivados da armazenagem e finalmente os custos de
transporte. Observa-se que a circulação reúne componentes de custos que exigem consumo
direto e indireto de capital, que constituem uma fração da operacionalidade do sistema, que
representa uma diferença entre as condições operacionais do grande e do pequeno capital.
A distribuição desses custos descreve os diferenciais das condições de operações dos
diversos segmentos do capital e segundo sua concentração. Incide sobre o tempo de rotação dos
capitais, que finalmente é outro aspecto dessa desigualdade de condições.
A produção capitalista em seu conjunto
No Livro III trata-se do modo de produção capitalista (mpc) enquanto modo predominante de
produção, que por isso se expande absorvendo o espaço de relações sociais não capitalistas, assim
como se expande aumentando sua produção, em quantidades e em diversidade. Como diz o
próprio Marx, “descobrir e expor as formas concretas que brotam do processo de movimento do capital,
considerado como um todo" Está claro que esse todo é a totalidade das relações sociais envolvidas no
70 A circulação envolve custos que
estão ligados aos riscos da realização
da mais valia – ou da venda do
produto, que são os riscos por
definição dos capitalistas, mas que
eles tratam de evitar ou de transferir,
utilizando as margens de poder do
monopólio. Os dois aspectos, de
custos de comercialização e riscos de
realização, reapareceram no contexto
da economia de hoje, sob as formas de
reconhecerem-se condições especiais
para os monopólios considerados
inevitáveis – que se passa a
denominar de naturais – e de
considerar-se que os custos de
negociação constituem um campo a
ser objeto de competição, onde há
diferenciais de eficiência a serem
buscados.
108
processo da produção capitalista que, portanto, se insere num todo maior, que compreende
aqueles que não estão incorporados pela produção capitalista.
O mpc comanda a força de trabalho atual e o potencial de força de trabalho, que mobiliza
na direção de realizar uma produção que os capitalistas consideram que podem vender. Nesse
processo, tal como se vê no Livro I, os trabalhadores contribuem com trabalho pago, com
trabalho não pago (mais valia) e contribuem para o fundo de consumo dos capitalistas71
Ao passar da reprodução simples para a ampliada, torna-se necessário deslocar a análise
para a esfera dos movimentos do capital em seu conjunto, que é o mesmo que dizer que é uma
análise da totalidade do capital, com toda sua complexidade. No Livro III a análise se realiza
nesse plano da totalidade, que é o modo de dizer que se substitui a análise baseada em
comportamentos individuais pelos da totalidade dos capitalistas e dos trabalhadores. Sobre essa
base delineia-se a constituição de classes, que é inseparável dos conflitos de interesse. Tal
mudança é determinada pelos fenômenos estudados e não por opção do autor. A conversão da
mais valia em lucro só se realiza no mercado, isto é, no âmbito das operações da totalidade dos
capitalistas e dos trabalhadores.
Assim, por fascinantes que sejam as questões da teoria do valor expostas no Livro I, o
grande mistério do capital consiste nesse movimento, pelo qual ele se recompõe ampliando-se,
sobrepujando as incertezas do mercado72. É o movimento posto em marcha pela reinserção dos
lucros no sistema produtivo - por contraposição a sua liquidação no consumo - e nas
conseqüentes alterações da composição do capital. Essa é a esfera da produção capitalista em seu
conjunto, onde se realizam as conversões entre formas de lucro e entre formas de aplicação.
71 A questão relativa ao papel do
fundo de consumo dos capitalistas no
mecanismo de reprodução-
acumulação é uma das inúmeras
questões não concluídas levantadas
por Marx. É uma linha de análise
iniciada por Ricardo, quando separou
a esfera do consumo dos
trabalhadores e a dos capitalistas.
Porém Marx sinaliza na direção de
um conjunto de meios de consumo,
cuja constituição e reposição constitui
uma pressão na modificação da
composição do capital. Pode ser vista
como uma antecipação da teoria do
multiplicador.
72 A leitura atual desse tema
indicaria que o capital se adapta ao
perfil de incertezas do aspecto de
mercado com que trata,
desenvolvendo estratégias de auto
preservação.
109
O Livro III enfrenta um problema fundamental de perenização do sistema de produção,
que é o da taxa de lucro. Já Ricardo tinha equacionado esse problema tomando o lucro como o
componente variável na formação da renda social. Mas Marx apresenta a taxa de lucro como o
resultado obtido da venda do componente não pago do valor, que é parte da mais valia. “O lucro
do capitalista provém, portanto, do fato de encontrar-se em condições de vender algo pelo qual não pagou
nada” (Livro III, pp.58). Assim, “a taxa de mais valia medida pelo capital variável se chama taxa de
mais valia; a taxa de mais valia medida pelo capital total chama-se taxa de lucro” (Livro III, pp. 58).
O problema operacional do lucro para os capitalistas decorre de que se “o remanescente do
valor da mercadoria sobre seu preço de custo nasce no processo direto de produção, mas só se realiza no
processo de circulação” (Livro III, pp.59). De fato, há dois problemas teóricos ligados à
conceituação da taxa de lucro, que são os de nivelamento da taxa de lucro e dos tempos
absorvidos nas esferas de produção e de circulação. Vemos que a taxa de lucro só pode ser
aferida sobre os lucros anteriores realizados; e que o lucro futuro depende das interações entre os
movimentos do capital em seu conjunto e as condições operacionais dos capitais específicos.
A idéia de que a taxa de lucro tende a nivelar-se se entende facilmente, enquanto se
supõe que o movimento geral de acumulação é conduzido, ou pelos menos influenciado pela
participação de capitais que concorrem em mercado aberto. Precisa-se esclarecer que esse
nivelamento da taxa de lucro está ligado a um mecanismo mais complexo de tendência à crise
associada à superprodução. Por sua vez, os tempos absorvidos nas esferas da produção e da
circulação - que conflitam e se complementam - representam usos de tempo que condicionam o
ambiente em que se reproduz o capital. No essencial, trata-se, portanto, de um esquema
110
explicativo que considera lapsos de tempo definidos pela duração das operações reais de
produção e de venda da produção. A realização dos lucros é uma relação entre a produção e o
mercado, que se dá em circunstâncias históricas específicas73.
A realização revela-se como o principal problema do sistema, já que sem ela o capital se
frustra; e surge um problema não considerado pela análise econômica marginalista, que é o de
perda de valor, através da interrupção da reprodução do capital. Nesse ponto, portanto, Marx
abre uma linha de argumentação, que introduz um elemento de incerteza no sistema de
produção74. Podem ser usados vários exemplos para ilustrar essa situação. O mais grave pode
ser o grande programa de irrigação da ex-União Soviética no Mar de Aral, que abortou por falta
de água dos rios alimentadores. O fracasso da pesca de anchovetas no Chile e no Peru na década
de 60, simplesmente porque os cardumes desapareceram. A interrupção do processo de
produção nesses casos não foi um problema de quebra da demanda. Mas no Brasil há diversos
exemplos de quebra de produção agro-pecuária, que significaram interrupção de investimentos
sem qualquer possibilidade de recuperação.
Nesse contexto coloca-se um campo temático definido por Marx como de economia no
uso do capital constante (Livro III, pp.91)75, que de fato reúne considerações sobre a adequação e
a eficiência no uso do capital social público76. Trata da relação entre esse aspecto de ajuste do
sistema de produção e as economias indiretas a serem obtidas desse capital social, que
compreendem economias indiretas de intensidade e eficiência no uso do capital social,
economias indiretas no uso de energia, economias indiretas a serem extraídas de reciclagem e
remanejo de resíduos e implicações generalizadas de todo esse processo na saúde dos
73 Essa parte da análise leva,
necessariamente, ao estudo das
estruturas de mercado, isto é, das
condições ambiente em que operam as
empresas. Mais uma vez, é um ponto
em que se separam e contrastam as
análises da formação histórica das
formas de organização do mercado e
as análises que simplesmente
consideram formas atuais de
organização. As controvérsias sobre
crescimento e equilíbrio mostram-nos
a necessidade de considerar a
competitividade como uma situação
transitória, que pode perdurar, mas
que não pode ser atribuída apenas a
aspectos internos das empresas, senão
de movimentos gerais do sistema de
produção. Por exemplo, como
considerar a competitividade de
empresas que obtinham seus lucros de
sistemas de custos de transporte
marítimo com as tecnologias da
década de 1960, pouco antes de
transformações radicais desse setor?
74 Na verdade, trata-se de uma questão muito mais complexa que a realização do lucro de um ano produtivo específico. Trata-se de prevenir que ocorram perdas de capacidade instalada de produção que decorram de interrupções das seqüências de investimento; e de
111
trabalhadores. São, realmente, quatro campos temáticos que devem ser explorados segundo
experiências acumuladas, hoje constitutivas de diferentes disciplinas. Primeiro, trata-se da
capacidade de melhorar o uso do capital social público, reduzindo seu desgaste e desperdício e
fazendo com que ofereça melhores resultados. Segundo, aproveitando melhor as fontes de
energia que estão alcance do sistema de produção, Terceiro, desenvolvendo uma visão de
conjunto das economias que podem ser obtidas de reciclagem de materiais utilizados na
produção. Por fim, a questão de saúde pública, com seus correspondentes temas, de
desenvolvimento humano, no linguajar mais recente, e de custos "ambientais", tanto como
saúde seja reduzida a um custo. Certamente, esse texto de Marx é uma clara antecipação da
economia da ecologia, ou de uma economia social da ecologia.
O dimensionamento e o ajuste funcional do capital social ao capital produtivo direto –
incorporado nas empresas – é um campo temático da economia atual, que está na base do
planejamento energético; e através dele, ao planejamento dos demais setores de infra-estrutura.
Aparece em dois níveis e em dois momentos, respectivamente, no nível macro, como parte de
planejamento global, setorial e regional; e no nível micro, quando se combina o planejamento
micro com o macro.
O relativo à reciclagem de resíduos – uma antecipação da análise ambiental – está ligada
à anterior, porque sinaliza que o estilo de uso do capital fixo – extra e intra empresa – tem uma
correspondência técnica com a formação de problemas de economia dos resíduos77. A produção
capitalista precisa encontrar soluções de reaproveitamento de resíduos, não pelas razões
ambientais hoje alegadas, senão porque essa economia do reaproveitamento de resíduos é um
perda de qualificações dos
trabalhadores. Observa-se, por
exemplo, o caso da recente
reconcentração de indústrias em São
Paulo - no ABC paulista - onde
houve uma controvérsia,
compreensível mas injustificada, das
prefeituras atingidas por esse
desemprego, de suporem que ficaram
com uma vantagem locacional, dada
pela concentração de trabalhadores
desempregados. De fato, ao serem
desempregados, os trabalhadores
ficam à margem dos processos que
qualificam, tornando-se custos que
não podem ser absorvidos por novos
investimentos. Na perspectiva da
teoria do desenvolvimento, este tema
revela um obstáculo dado pela falta
de variedade da produção, ou pela
impossibilidade de realizar
plenamente e em tempo útil a
produção de um pequeno elenco de
mercadorias.
75 Numa leitura contemporânea, vê-
se que essa economia do capital
constante corresponde à eficiência
energética e ao significado ambiental
do processo de produção,
compreendendo a preferência pelo uso
de fontes renováveis frente a
energéticos não renováveis. No
112
modo de recompor a captação de mais valia. Revela-se como a economia do ambiente é útil à
produção capitalista e não é um sacrifício, nem um custo a ser arcado por razões sociais.
A correspondência com a saúde dos trabalhadores indica outra ordem de problemas
econômicos, que representam outro aspecto negativo da produção, que deve ser reconhecido e
deverá ser absorvido de algum modo. Qual esse custo social e quem deve absorvê-lo? Há uma
questão essencial, relativa a quanto esses problemas resultam da quantidade da produção
realizada e quanto podem ser modificados, segundo o modo de manejar o capital social. A
questão obviamente é o controle da distribuição da renda.
No quadro geral das transformações do capital, no contexto da produção capitalista em
seu conjunto, é fundamental o papel do capital comercial. Marx oferece (L.III, cap. XVI) uma
análise do capital comercial, isto é, do capital adscrito ao funcionamento do segmento comércio.
A principal questão teórica relativa ao capital comercial é que sua velocidade de circulação não
está restrita por engajamentos genéricos no processo de produção. Isso confere ao comércio
graus de liberdade que não estão limitados pelas velocidades específicas do processo de
produção. Mas isso também representa uma vantagem sobre o capital vinculado à indústria, cuja
mobilidade é restrita por processos específicos da produção. Nossa observação sobre essa
matéria é que o capital comercial propriamente dito representa uma liberdade de decidir que está
fora do horizonte de possibilidades do capital engajado na indústria.
O espaço econômico ensejado pela realização sustenta a expansão do capital financeiro,
no sentido mais amplo desse termo. Os bancos encontram oportunidades para invadir a
produção industrial; e através dela, de controlarem a produção agrícola e a formação do capital
essencial, a produção capitalista está
submetida ao condicionamento de
uma disponibilidade decrescente de
recursos e a incerteza relativa ao
acesso a recursos, que não podem ser
tratadas no horizonte de
previsibilidade da amortização do
capital atual. O conceito de modo
energético da produção, que
empregamos em outros trabalhos, dá
conta desse problema, indicando uma
razão de uso de energia, que reflete
uma condição técnica e uma
qualificação dos trabalhadores que
utilizam os recursos. A análise dos
sistemas de irrigação mostra grandes
diferenças de quantidades de água
utilizadas, com equipamentos
equivalentes, indicando diferenças de
condição de qualificação dos
empresários e em menor medida, dos
trabalhadores rurais.
76 Usa-se aqui esta expressão para
denominar o que na linguagem
comum se chama de infra-estrutura e
que Marx vê como parte do capital
fixo (Livro III, 107)
77 A questão específica dos resíduos é
a cara final de todo um perfil de
produção com desperdício, que foi
estudada de modo mais sistemático
por Baran. Entretanto, a proposta de
113
social infra-estrutural. Na explicação do funcionamento do sistema capitalista em seu conjunto
prevalece o pressuposto de que o sistema se transforma, aumentando sua complexidade e sua
instabilidade. Consequentemente, no Livro III Marx examina os mecanismos internos de
dinâmica do sistema, retomando o eixo de discussão da relação entre a taxa de lucro e a
reprodução do sistema. Por isso, a verdadeira escala da teoria da exploração surge do conjunto
do Livro III e não de nenhum texto em particular.
Nos capítulos VIII a XIV Marx estuda a formação da taxa de lucro, a determinação de
uma taxa média de lucro e a tendência decrescente da taxa de lucro, levantando inclusive causas
que contrariam essa tendência. Acontece que a taxa de lucro se forma num ambiente de
mercado que necessariamente muda, acompanhando o aprofundamento da composição orgânica
do capital. Há um problema relativo à necessidade de extrair mais mais-valia, para compensar o
aumento do capital constante; e há um problema de relativo ao mercado de dinheiro, ou seja, ao
modo como o capital que está – ou que fica – na esfera da circulação, passe a influir – e a dirigir
– o capital que está na esfera da produção.
Essa é a nova ordem do controle capitalista da produção. Esse controle segue três rumos,
que são os da financeirização da produção industrial, do controle financeiro da agricultura e do
adiantamento de recursos para a constituição de serviços urbanos. "O dinheiro - considerado aqui
como expressão substantiva de uma soma de valor, em dinheiro ou em mercadorias, pode tornar-se a base
da produção capitalista em capital e deixa de ser, graças a essa transformação, um valor dado, para passar
a ser um valor que se valoriza, se incrementa a si mesmo. Com isso, adquire, além do valor de uso que
análise do próprio Marx contempla
melhor a capacidade do sistema
capitalista, de encontrar novas
formas de formar capital e não
somente de rever a rentabilidade do
atual sistema.
114
possui como dinheiro, um valor de uso adicional que lhe permite funcionar como capital”. (Livro III,
pp.326)
Entretanto, o dinheiro entra a mobilizar uma produção conduzida por uma pluralidade
de capitais, isto é, que em cada país corresponde a diferentes composições orgânicas do capital.
A operacionalidade financeira do sistema depende da comparabilidade dos resultados que
podem ser obtidos nos diversos empreendimentos, nessa pluralidade de condições. Daí, a
explicação do funcionamento do sistema capitalista de produção depende da esfera do capital
financeiro78. Daí, que o estudo do funcionamento do sistema internacionalizado de
financiamento torna-se um requisito necessário para entrar-se hoje no mérito de investimentos
específicos de grande porte.
No capítulo XXVI, Marx vinculou a acumulação de capital dinheiro - que hoje chamam
de financeirização - às condições objetivas de liquidez do sistema. A questão consiste em saber
se esse fenômeno pode ser atribuído a uma crise, ou se é determinado pelas tendências da
acumulação. Supõe-se que a posição de Marx vai com a segunda alternativa, mas a
argumentação desenvolvida nesse capítulo não é clara, abundando em referências à crise de 1847.
Por isso, é preciso retomar um aspecto fundamental desse argumento, que é o papel da teoria
monetária e dos compromissos de crédito na formação da taxa de juros.
O esclarecimento da dimensão financeira da produção é indispensável, para que se saiba
como situar o progresso da produção no contexto da progressão de complexidade dos meios de
produção. Há dois problemas teóricos a resolver: como, quanto e quando financiar, e com que
meios financiar. A resposta do primeiro problema está nos requisitos de financiamento para
78 A expressão capital financeiro foi
introduzida posteriormente por
Hilferding. Marx fala do capital a
juros.
115
cada determinada situação na composição histórica do capital, isto é, na progressão da
composição do capital ao longo do tempo79. A segunda resposta depende de um esclarecimento
dos meios de financiamento, isto é, depende do prévio esclarecimento sobre a esfera monetária.
Nesse ponto, devemos acolher a contribuição de Suzanne de Brunhoff, por dois aspectos pelo
menos. Primeiro, por mostrar o significado epistemológico da opção de Marx, de tratar da
questão da moeda como anterior às determinações da produção capitalista. Segundo, por
mostrar os limites da esfera monetária na configuração do financiamento.
O esclarecimento da dimensão financeira da produção capitalista depende de uma teoria
monetária mais ampla, capaz de seguir a continuidade da produção capitalista propriamente dita
com a produção mercantil mais simples que, entretanto, deve ser capaz de refletir o
desenvolvimento mais complexo da esfera financeira no capitalismo avançado. A especificidade
da questão monetária deve-se à impossibilidade de reduzir os problemas de oferta e demanda de
moeda aos problemas de financiamento, ou seja, ao fato de que a oferta de moeda compreende
problemas mercantis e de entesouramento, que não podem ser percebidos na esfera do
financiamento da produção capitalista propriamente dita. Na verdade, revelam-se a
irredutibilidade da questão monetária e da questão financeira, indicando a necessidade de
avançar na direção de explicar as transformações estruturais da esfera bancária.
O argumento a ser recuperado é que a expansão do capital bancário se faz sobre a
concentração do fundo de reserva dos capitalistas, que é direcionado pelos bancos na formação
do mercado de juros; e que esse mercado necessariamente crescerá, na medida em que a mais
valia do capital dinheiro é reintegrada ao fluxo de circulação, constituindo um mercado
79 O capital escolhe que financiar
em função da rentabilidade do
financiamento. Mas os efeitos do
financiamento sobre a realização da
produção ultrapassam o significado
dessa rentabilidade, correspondendo
na realidade ao movimento de
reprodução do capital. Mais uma vez,
a experiência dos países pouco
industrializados é reveladora. O
financiamento suficiente e adequado
de suas atuais necessidades é
insuficiente e inadequado para que
mude a composição de seu capital na
escala e na composição necessárias
para que sua capacidade de produção
seja modificada.
116
específico. Por isso, ela constitui uma parte do capital que se distancia, cada vez mais, da lógica e
do controle do capital incorporado na produção industrial.
A análise operacional da esfera financeira parte, portanto, do papel do crédito na
produção capitalista (Livro III, cap. XXVII). De nossa parte, dizemos que é preciso estabelecer
quando é uma necessidade da expansão do capital industrial e quanto decorre dos interesses da
própria esfera financeira. Tal sentido da relação orgânica do capital dinheiro é retomada no
capítulo XXX, em que Marx analisa a relação funcional entre o capital dinheiro e o capital
efetivo. O cerne da questão é real, é conseqüência da composição orgânica do capital. São os
tempos dos investimentos, que resultam em desajustes - ou os ajustes variáveis e transitórios -
entre as demandas do capital de diferentes tipos de aplicações; e a liberação de dinheiro das suas
diversas aplicações. O capital gera mecanismos internos de diferenciação, que obrigam a tratar a
esfera financeira como um campo de interesses e tensões, que se torna parte essencial do
mecanismo de acumulação.
O esclarecimento dos problemas da formação de capital é necessário para explicar a
reprodução dos capitais já organizados; mas a explicação das possibilidades de que o capital
continue reproduzindo-se depende de uma análise que se coloque ao nível da produção em seu
conjunto, que portanto possa considerar a capacidade do sistema de tratar com novas condições
de acumulação. Ao passar para a produção capitalista em seu conjunto, Marx enfrenta o
problema central de incerteza que é, justamente, de flutuação das margens de incerteza ao longo da
expansão e das variações de composição de capital.
117
Uma primeira leitura de O Capital sugere um movimento linear progressivo de
substituição de formas mercantis por formas industriais de produção, mediante mecanismos de
conversão de mais valia em lucro, de lucro em lucro médio, de derivação do lucro em renda da
terra, finalmente, de que a realização da mais valia em lucro e do lucro em capital é um processo
sobre o qual recaem as margens de incerteza inerentes à reprodução dos sistemas de produção
historicamente constituídos80. Na verdade é um movimento em espiral, em que os componentes
do sistema são atualizados mediante uma progressão de efeitos recíprocos.
Marx aborda o problema na perspectiva do capital existente, o que significa que de modo
alternativo ao do processo propriamente dito de movimentos do capital, em que essa incerteza é
a própria lei da reprodução do sistema, compreendendo a complexidade do sistema em seu
conjunto e não só a complexidade da composição do capital. A lei da reprodução ampliada é a do
aumento de complexidade, que assume formas materiais do lado do capital, e que representa
aprofundamento de qualificações do lado do trabalho.
Fica, portanto, pendente a interrogação relativa a quem arcará com os custos da
qualificação dos trabalhadores. A resposta óbvia é ser esse um custo que o capital trata de passar
adiante, diretamente aos trabalhadores, ou indiretamente, à sociedade em seu conjunto, através
do Estado. O controle do Estado é parte essencial do processo do capital, já que em sua
concorrência os capitalistas tratam de usar esse poder político para canalizarem vantagens
econômicas.
A visão marxiana do problema projeta duas aberturas desse movimento: a do
desenvolvimento conseqüente das reaplicações dos lucros; e a das progressões de complexidade
80 Entendemos que uma segunda
leitura mostra algo muito diferente,
isto é, tal como na Fenomenologia do
Espírito de Hegel, as formas iniciais
permanecem, com suas próprias
determinações, revelando-se,
entretanto, subordinadas das formas
mais recentes e mais avançadas.
118
do capital e do trabalho. A nosso ver, a questão de fundo que emerge desses dois movimentos é a
impossibilidade prática de operar sistemas mais complexos sem trabalho mais complexo; e a
impossibilidade de usar o trabalho mais complexo em sistemas que não sejam os mais
complexos.
Segundo a análise de Marx, os efeitos do aumento de complexidade se distribuem para
dentro do sistema, a partir daqueles segmentos onde a composição de capital é mais elevada,
àqueles outros de menor densidade ou complexidade da composição do capital. Esse seria o
mecanismo que explica a lógica da relação entre a produção industrial e o controle da terra; e
entre a produção de alta e de baixa tecnologia. Os segmentos de capital que absorvem mais
tecnologia e que alcançam vantagens monopolísticas, passam a regular as condições mínimas de
tecnologia e capitalização com que operam as demais. A exploração da terra será mais
densamente capitalizada em consonância com o nível médio de capitalização do sistema
produtivo.
Mais uma vez, é uma questão de ciclos e de velocidades e de diferenciais de velocidade.
Compara-se a velocidade das conversões entre formas de lucro e de capital, com a velocidade
com que se realizam os efeitos dos deslocamentos de complexidade entre segmentos de
diferentes composições de capital. Subjacentemente, comparam-se as condições para alcançar
essas velocidades. Podemos dizer que se trata da capacidade de gerar e de controlar tecnologia,
mais que da renovação de tecnologia, ou mesmo que da renovação de tecnologia propriamente
dita81.
81 Por exemplo, numa releitura do
modelo de crescimento de Harrod,
cabe comentar que a idéia de uma
taxa garantida de crescimento
envolve um ajuste de composição
entre a composição e a distribuição no
tempo das necessidades de renovação,
mais que uma proporção adequada de
formação de capital.
119
Para as análises de problemas de desenvolvimento, isto é, de transformações de sistemas
de produção82, essas questões são fundamentais, porque assinalam aquelas "áreas" do sistema
produtivo que se mostram mais sensíveis a mudança, e aquelas outras que se definem como
mais estáveis ou como menos dinâmicas em relação a tecnologia. Paralelamente, essas "áreas" de
dinamismo correspondem à presença de trabalho mais qualificado. O "mistério" da acumulação
continua, na decisão de quem paga pela qualificação adequada dos trabalhadores; e na
contradição entre o movimento objetivo de qualificação e as necessidades de qualificação para o
desenvolvimento do sistema.
No contexto da modernização das economias industrializadas, esse problema se apresenta em dois
planos: no da viabilidade operacional da reprodução simples, em condições em que não há controle da
disponibilidade de equipamentos adequados e suficientes para sustentar a produção em seus níveis atuais; e
no das implicações da reprodução ampliada em distribuição da renda, com suas conseqüências em conflitos
entre os grupos envolvidos na produção. Na prática, essas questões não se respondem sem considerar a
especificidade do lucro comercial, tal como ele se apresenta na produção pré-industrial e na
industrializada.
82 Cabe aqui uma revisão da
compreensão de desenvolvimento.
Neste contexto trata-se do
desenvolvimento das forças
produtivas, que é a expansão dos
sistemas de produção em escala e
complexidade, que não
necessariamente está ligado aos
aspectos éticos da noção de progresso.
120
GÊNESE E METAMORFOSE DO CAPITAL
Traços gerais da questão
Neste primeiro movimento da análise crítica da sociedade econômica moderna, Marx trata do
processo social de produção do capital, que é também o movimento de transformação continua do
próprio processo de produção. Assim, vista em perspectiva histórica, a análise da formação de
valor também é a explicação de como esse valor é apropriado pelos capitalistas. Diz Marx que a
produção social de valor no capitalismo se realiza mediante um movimento que começa nos
processos de trabalho, que passa pela separação entre o trabalho anterior e o atual, e que conclui
pelo controle do poder criativo do trabalho atual. Como é o capitalista que retém o conhecimento
dos sucessivos processos tecnológicos, isso lhe dá a vantagem de ser o detentor da memória do
processo de produção. Desde aí, vê-se que o processo de estranhamento, pelo qual o trabalhador é
separado de sua produção, é também um processo de perda de memória83. Nesse movimento, o
valor do capital aplicado na produção aparece como gasto para produzir e como desgaste de meios
de produção. Esse capital é denominado por Marx de constante, porque não tem como mudar, é
valor congelado em determinadas formas. O poder de mudar está no trabalho, que por isso é
variável. Daí, que o capital depende, primordialmente, do controle que exerce sobre o trabalho.
Esse é o sentido da relação entre senhor e escravo, desenvolvida por Hegel: o capital para ser
capital depende do trabalho ao qual domina. A diferença é que aqui muda o modo como o escravo
83 Veremos que uma das principais
características das situações de
subdesenvolvimento é a perda
recorrente da memória da experiência
social, que faz com sempre se esteja
fazendo as mesmas coisas como se
fosse pela primeira vez.
121
serve ao senhor e como o senhor se apropria da força de trabalho do escravo. Na produção
capitalista o capitalista compra o tempo dos trabalhadores, mas, ao mesmo tempo, restringe as
opções de contrato a que eles têm acesso, portanto, desenvolve mecanismos sociais de controle dos
trabalhadores. Adiante veremos que o negativo desse controle é a mobilidade do trabalho.
No desenvolvimento desse argumento, Marx recorre ao seu aspecto contábil, mas na essência
da construção conceitual encontra-se um vestígio ou um paralelismo com aquele argumento de
Kant, que separa o campo do entendimento, que é o campo do que já está dado, do campo da
razão, que é onde se encontra o poder criativo, portanto, a capacidade de alterar o conhecimento.
Essa parte da análise de Marx culmina com a identificação da taxa de mais valia, que se percebe
de um raciocínio a posteriori, que relaciona a variação da mais valia como uma proporção total do
capital. Mas é preciso perceber a diferença entre uma taxa de mais valia, que é inferida do modo
como o trabalhador trabalha; e uma cota historicamente concreta de mais valia, que exprime a
mais valia efetivamente obtida pelo capitalista. O capital move-se na direção de garantir a
captação de uma massa crescente de mais valia.
Para realizar essa parte de sua tarefa, Marx tem o Livro I estruturado praticamente em
duas partes, em que a primeira apresenta os elementos do sistema capitalista de produção e a
segunda expõe o modo como ele funciona. A primeira parte abrange desde a teoria da
mercadoria até a da mais valia, desenhando os elementos da produção industrializada. A
segunda parte compreende a análise da manufatura e da grande indústria, chegando à teoria da
122
reprodução do capital e culminando com uma primeira exposição da acumulação capitalista.
Nessa última parte, mostra a acumulação no âmbito da produção industrial e no mecanismo da
colonização84.
Mercadoria, valor e valorização
A primeira parte do Livro I é a teoria da mercadoria. A teoria do valor está incorporada na
teoria da mercadoria e a formação do valor como tal – o valor de troca que tem subsumido o
valor de uso – é um pré-requisito necessário para que o sistema de produção se organize como
um sistema de produção de mercadorias. Quando Marx opta por começar O Capital com uma
apresentação da teoria da mercadoria de fato realiza uma operação teórica, que consiste em
supor que o sistema de produção em seu conjunto opera segundo os objetivos e as formas da
produção capitalista e que é possível ver toda a produção como produção capitalista. Veremos
adiante que é o mesmo pressuposto que permite considerar que todo o sistema está igualmente
monetizado. Ora a teoria do valor surge de um reconhecimento do valor de uso como resultado
da atividade que se realiza na esfera doméstica, pelo que também se considera que as “regras” da
produção social de valor de uso são universalmente válidas85.
A mercadoria surge da objetivização do valor de troca e consiste em produzir algo que
não é para ser imediatamente consumido, senão que é produzido para ser trocado. No Livro I de
84 Para uma leitura latino-
americana do problema –
representativa em muitos aspectos da
condição de periferia - é preciso
recalcar essa concomitância entre a
acumulação mercantil que sustentou
a industrialização e colonialismo dos
Tempos Modernos, assim como a
concomitância entre a
industrialização e o colonialismo do
imperialismo. A combinação de
colonialismo e sobre exploração –
portanto escravidão aberta ou
disfarçada - tem que ser vista como
parte integrante da acumulação
capitalista e não como um recurso
complementar.
85 Uma leitura atual da produção
social nas economias periféricas
obriga-nos a abrir questão sobre as
condições em que funciona a esfera
doméstica, em que variam as
condições de solidariedade familiar e
em que as famílias se mobilizam como
grupos que participam diretamente no
mercado, transformando suas
atividades domésticas em atividades
de mercado.
123
O Capital, Marx vai às raízes da fundamentação da produção capitalista, que são o modo de
produzir valor social e de captá-lo, para constituir o sistema de relações sociais que se organiza
em função do controle do valor produzido, que por sua vez está ligado à capacidade de produzir
valor. Entretanto, é preciso distinguir os aspectos mecânicos da produção social de valor, de seus
aspectos axiológicos, isto é, de sua raiz em valorações no sentido radical desta expressão. A
produção de valor é uma afirmação do que se reconhece como construtivo da atividade social.
Para realizar essa tarefa, para revelar o modo social de produzir valor, Marx reporta-se à
consubstanciação do valor de troca, que é a mercadoria. O valor de troca sustenta-se no valor de
uso, que é a expressão da utilidade dos bens, que surge de seu uso e da comparação entre usos.
Esse valor de troca reflete o tempo socialmente necessário para produzir as mercadorias, que é o
tempo médio necessário para produzir os bens em certas condições de organização social da
produção. A forma relativa do valor surge de como cada mercadoria se compara com outra de
uma dada coleção de mercadorias; e a forma equivalencial surge de como cada uma delas
equivale às demais em termos de poder de ser trocada.
O estudo da mercadoria é a pesquisa do modo como as sociedades têm procurado
soluções para realizarem sua vida material. É o ponto de partida da análise do processo social de
produção, porque a mercadoria reflete sinteticamente os processos de produção que levaram a
sua realização. A mercadoria reflete a forma social da produção, isto é, o modo pelo qual a
produção se realiza em cada sociedade. Entretanto, a mercadoria é um produto datado, que se
situa num ponto momento da progressão da produção capitalista, cujo valor depende dessa
124
inserção em termos gerais, e, especificamente, de sua inserção no conjunto das mercadorias de
que é parte.
O processo que cria mercadorias torna o dinheiro necessário, isto é, leva à criação de
dinheiro. O dinheiro surge como parte da ampliação do patrimônio, numa intermediação entre
formas de mercadoria, em que a produção de mercadorias pode ser interrompida e o dinheiro
permanecer apenas como uma mercadoria de uso limitado. O dinheiro vem a ser a verdadeira
mercadoria na produção capitalista, onde ele representa a máxima equivalência entre as diversas
mercadorias.
A conversão do dinheiro em capital é um momento fundamental da formação da
produção capitalista, em que o dinheiro separado da atividade produtiva pode ser entesourado
como modo de formar patrimônio86. O dinheiro se converte em capital quando usa valor de uso
para transformar-se em valor de troca. Mas ele só consegue fazer isso quando conta com uma
mercadoria capaz de transformar seu próprio valor de uso em valor de troca, que é a força de
trabalho. A produção de capital faz-se mediante uma combinação de processos de diferentes
rumos e intensidade, em que as categorias tais como mercadoria, valor e dinheiro,
interdependem umas das outras; e só se explicam em condições de dinâmica, num movimento
cujo epicentro é a compra de força de trabalho.
Nesse contexto, o valor social surge de que o fruto do trabalho seja útil para outros. Isso
permite a troca e sustenta a condição de valor relativo – para o possuidor de cada mercadoria – e
de valor equivalente, para os que têm outras mercadorias e querem trocar por esta. O quadro de
equivalências se dá em condições em que haja condições de usar as mercadorias, isto é, só há
86 Essa é a primeira razão para que
se distingam as funções da moeda
como tal, isto é dinheiro, das moedas
específicas, que estão sujeitas a
variações de aceitação -
conversibilidade a outras moedas – e
que se refletem em variações de
preços entre moedas – taxa de câmbio
– quando são menos apreciadas nas
relações internacionais.
125
equivalência em um determinado contexto de desenvolvimento dos meios de produção. A forma
equivalencial representa a esfera das trocas possíveis. Podemos dizer que não há equivalência
alguma, para os que não têm renda suficiente para participar das trocas. Por oposição, a esfera
das trocas significa uma esfera de exclusão. A idéia de uma equivalência universal - ou da
universalidade da equivalência – que já aparece na Contribuição à crítica da Economia Política
(C.C., pp.32), refere-se à universalidade do valor de troca, mas não se mantém, quando se trata
das condições históricas do desenvolvimento das forças produtivas.
Valor relativo e equivalência acontecem num dado ambiente de mercado, isto é,
dependem de que a produção seja levada ao mercado. Desde o ponto em que identifica esse fato
(L I, pp.), Marx distingue a função comercial, de levar a produção ao mercado, do capital
comercial, que se reconhece como o nível de acumulação que corresponde ao capital que realiza
essa função de levar a produção ao mercado. A mercadoria surge quando os capitalistas
conseguem levar a produção mercado, Mais uma vez, nossa leitura das economias periféricas
mostra uma importante incerteza nessa operação.
A partir desse ponto, a noção de tempo revela-se fundamental na estruturação de O
Capital e aparece em dois planos combinados: como o tempo do trabalhador, que é o comprado
pelo salário, e que representa um potencial de força de trabalho; e como o tempo necessário para
produzir uma mercadoria, que depende das condições em que ela é produzida, que transcendem
as habilidades e a energia dos trabalhadores. O movimento geral de formação de valor e de
produção de mercadorias, só se vê em termos de tempo, mediante a combinação dos elementos
internos de tempo, isto é, os tempos inseridos no processo de produção e os tempos de
126
relacionamentos externos. Por aí entra uma questão da produtividade, isto é, do tempo que se
usa para produzir uma dada mercadoria87.
Mas, como esses tempos de trabalho são realizados por pessoas, que estão inseridas em
determinadas condições de capitalização da produção, onde procuram aumentar sua renda, é
preciso considerar que uma mesma pessoa pode realizar ou participar de diferentes tarefas, o que
quer dizer, participar de diferentes condições de uso de capital88. Observe-se que esse tema é
tratado por Marx com seu exemplo de trabalho seqüencial, de fabricação de tecidos e de casacos,
onde raciocina em termos de que participar dessas duas etapas do processo produtivo é um
esforço adicional. A relação entre tecidos – cashmir e casacos – foi habilmente – e talvez
manhosamente – escolhida por Marx que, com esse exemplo privilegiado mostra uma relação de
sucessão orgânica no mundo da produção industrial que raramente se repete.
No entanto, certamente, isso envolve muitas mais possibilidades, do que aquelas
estabelecidas pelo espectro de atividades hoje em curso no sistema produtivo. Assim, sempre
pensando na condição colonial, esse é um argumento a ser explorado pelo outro lado, tratando
da capacidade dos trabalhadores, de mudarem de ocupação, algo que não só está vedado no
ambiente da escravidão, como nos sistemas produtivos dependentes e pouco diversificados.
Diremos que a liberdade dos trabalhadores para venderem sua força de trabalho encobre a
limitação decorrente de suas restrições de acesso às oportunidades de emprego. Está claro que o
controle das oportunidades de emprego é um controle indireto da liberdade no mercado de
trabalho.
87 O tempo no processo produtivo
aparece superficialmente como algo
sempre previsível. No entanto,
encobre uma incerteza, já denunciada
por Adam Smith , com seu exemplo
do caçador, que com um mesmo
esforço de caminhar e com uma
mesma arma pode chegar a resultados
imprevistos segundo encontra um
animal de pequeno porte ou de grande
porte. Em Marx a incerteza no tempo
aparece também no momento da
comercialização, quando o capitalista
pode não encontrar compradores ou
encontrar preços inferiores aos seus
custos de produção ou superiores a
suas expectativas.
88 Encontra-se aí uma primeira pista
da discussão da mobilidade social dos
trabalhadores, que é sua capacidade
de optar entre ocupações, ou de
alterar as condições de contrato de
trabalho e de cessão de mais valia.
Observe-se que essa participação em
diferentes situações de trabalho é
tratada por Marx por seu aspecto
negativo, que é um constrangimento a
participar delas. Na perspectiva de
quem vê a formação do capital num
ambiente colonial, ela tem um aspecto
positivo, que é o de formação de um
tipo de autonomia, que é essa
capacidade de optar, geralmente
associada com a migração.
127
O movimento de formação de valor exige um equivalente geral, que é o dinheiro89. Para
Marx, o movimento da produção de mercadorias e de produção de dinheiro é o mesmo. Por isso,
choca ver que vários autores que se ocuparam desse tema, desde Kautsky até Harvey,
introduzem uma separação positivizante entre essas duas categorias, que, como assinala Tavares
(1976), reduz a leitura de Marx aos termos da análise neoclássica de hoje.
O processo de troca. As trocas são essenciais n formação das relações mercantis Em
Marx encontra-se uma leitura das trocas que transcende o caráter simples e repetitivo das trocas
do comércio. Uma diferença fundamental entre Marx e os economistas marginalistas é o modo
de olhar as trocas. Para Marx, as trocas estão historicamente determinadas pelas características
materiais do processo produtivo, que define o elenco de mercadorias com que se trabalha. A
mercadoria alcança seu papel mediante a troca, que é quando se materializa sua equivalência. A
troca se realiza a partir do estatuto jurídico da propriedade privada, envolvendo a
institucionalidade da posse de coleções específicas de mercadorias. Ao transferir as mercadorias
para aqueles para quem têm valor de uso, o processo de troca propicia um metabolismo social (L.I,
pp.65), em que o dinheiro intermédia a substituição de elencos de mercadorias entre os diversos
participantes do processo. M=> D => M representa essa redistribuição das mercadorias entre
usuários, que faz revelar seu valor de uso como impulsionador da troca.
A circulação das mercadorias ou o dinheiro. O desenvolvimento do valor de uso
encontra-se na criação de condições ilimitadas de troca, que são propiciadas pelo dinheiro. O
dinheiro é a representação dessa possibilidade de troca. O dinheiro é a medida imanente do valor das
mercadorias, que é seu tempo de trabalho (L.I, pp.56). A circulação está historicamente determinada,
89 Desde esse ponto da
argumentação, é preciso trabalhar
com a distinção entre dinheiro e
moeda. Dinheiro é a designação
genérica do equivalente de valor,
enquanto moeda é a expressão do
dinheiro. A moeda concreta supõe
uma capacidade específica do Estado
nacional, para manter essa
representatividade. Sustentar a
moeda, manter sua capacidade de
representar valor tornou-se uma
questão crucial para as economias
periféricas de hoje.
128
isto é, é a circulação das mercadorias que a sociedade produz em cada ponto momento da
história; e não tem sentido pensar em circulação mundial num lugar onde a economia não está
plenamente integrada na esfera do dinheiro mundial. A circulação de dinheiro historicamente
avançou quando aumentou a produção que se troca.
O dinheiro é medida de valor, meio de circulação, e tem um curso estabelecido pelas
mercadorias que troca. A massa de dinheiro em circulação denotará a soma dos preços das
mercadorias e o número de rotações das transações com ela, isto é, a massa de dinheiro depende
da necessidade de trocar para realizar o valor incorporado nas mercadorias. Nessa relação D
(dinheiro circulante) = P (preços ) . M (mercadorias) surge a questão da velocidade no sistema
produtivo, onde a quantidade de dinheiro total decorrerá da velocidade de circulação dada por
variações nos preços e nas quantidades de mercadorias. A questão da velocidade é essencial ao
conjunto da explicação do sistema, mas está explicitada no Livro II, onde Marx desprega a
composição de velocidades desiguais que sustenta a movimentação dos capitais. Colocado em
perspectiva histórica, a velocidade deve ser vista como um atributo das condições de
desenvolvimento de sistemas específicos e nunca como um traço geral da produção capitalista.
Assim como a velocidade no sistema aumenta junto com a redução dos tempos socialmente
necessários para realizar um mesmo elenco de produtos, há limitações aos aumentos de
velocidade, que decorrem da rigidez dos componentes do sistema – estabelecimentos produtivos
– em tecnologia.
129
A questão especial do dinheiro
Marx explora o significado do dinheiro em dois níveis. Primeiro, como uma categoria do
funcionamento do capital e depois, como a mercadoria privilegiada que aciona as operações do
capital. A primeira leitura é a que se encontra nos Grundrisse e a segunda é a que se encontra em
O Capital. No movimento da teoria de Marx, a exposição da comercialização demanda uma
exposição esclarecedora do dinheiro. O controle da comercialização se exprime com dinheiro,
que é “a forma ou manifestação necessária da medida invariante de valor das mercadorias: o
tempo de trabalho” (L. I pp.56). O dinheiro reflete uma complicada equivalência de valor entre
mercadorias, dentre outras razões, porque mudam a lista das mercadorias postas em
equivalência e suas propriedades técnicas. Diz Marx, que “em sua função de medida de valor, o
dinheiro atua como dinheiro imaginário ou ideal” (L. I pp.57); e adiante “O ouro só pode funcionar como
medida de valores, por ser ele também um produto do trabalho, portanto, potencialmente, um valor
variável” (L. I pp.59) 90.
Há uma diferença fundamental entre o dinheiro em geral como tal na produção
capitalista e as moedas, enquanto manifestações de sociedades capitalistas concretas. Em sua
qualidade de moeda, o dinheiro passa a estar sujeito às circunstâncias das sociedades que criam e
sustentam a moeda. Diremos que, como a quantidade de moeda depende da circulação que
prevalece em cada sociedade, a produção capitalista depende da instância nacional, justamente,
por estar aí a capacidade de criar e manter moeda. Passa a haver um problema de sustentar a
90 Essa variabilidade assinala a
distinção dinheiro genérico –
sustentado pelo valor social – e
moedas específicas – sustentadas
pelas bases institucionais do valor
social – havendo, portanto, uma
variabilidade dada pela produção de
valor e outra, dada pelas condições
econômicas, sociais, técnicas e
psicológicas de cada país para
sustentar sua moeda.
130
moeda. Mas há um problema inverso, que provavelmente é onde se vê a perspicácia da análise
de Marx, que é onde o funcionamento da moeda dinheiro como tal surge, justamente, dos
aspectos positivos e negativos, do caráter contraditório das moedas91.
Marx antecipou as transformações da moeda, conseqüentes da pluralidade e
interdependência das formas de dinheiro: “O curso do dinheiro, ao dissociar a lei real da lei nominal
da moeda, sua existência metálica de sua existência funcional, leva implícita a possibilidade de substituir o
dinheiro, em sua função monetária, por contrasenhas feitas de outro material, ou por simples símbolos”
(L.I, pp.84) Ora, essas “contrasenhas” significam um aumento da massa total de circulação
sobre as quantidades efetivamente produzidas e contribuem para a concentração do capital na
razão direta dos diferenciais de velocidade.
Os preços. Nesse ponto encontra-se um aspecto a ser destacado, que é o tratamento dado
por Marx à questão dos preços. Os preços das diversas mercadorias não somente são
interdependentes, como são preços historicamente situados. Não é que o preço do café esteja em
correspondência com os de outros produtos que hoje sejam considerados como seus substitutos,
tais como o chá e outros, senão que o preço do café hoje é parte de uma progressão de histórica
de formação de preços, em que o sistema produtivo tem a capacidade de produzir um
determinado conjunto de produtos e em que surgem e desaparecem produtos que podem ser
considerados como substitutivos.
A diferença fundamental entre Marx e os neoclássicos está em que para ele os preços são
dados históricos, enquanto para esses são apenas dados atuais, sem data. Os preços surgem como
determinação das condições específicas de formação do sistema produtivo em seu conjunto e
91 Essa a nosso ver é a grande
abertura para uma análise dos
processos monetários na perspectiva
do capital – e não só do livro O
Capital - onde a abordagem de Marx
permite ver como o processo da
moeda no capitalismo depende desse
panorama variável, desigual e
incerto das moedas, onde não tem
muito sentido uma teoria da moeda
que parte de igualdade de condições
de monetização e de condições
similares de circulação.
131
não como um problema isolado de formação do preço de uma determinada mercadoria, separado
da transformação do sistema. Os preços do petróleo dependem de condições estruturais de
produção e de uso de petróleo e não de um confronto incidental de oferta e demanda atuais. Por
isso, entende-se o sistema de preços como a cara atual do processo de formação de preços.
Isso tudo tem a ver com as condições em que as mercadorias são produzidas, que são
próprias de cada momento do sistema produtivo. Mas a questão do preço tem em Marx um
fundamento mais complexo, na imersão de valor na mercadoria, que exprime uma relação
necessária com os usos de trabalho social. A incorporação de valor em cada mercadoria é parte
da movimentação de valor no conjunto do sistema, que, entretanto, não garante que essa
mercadoria seja trocada. Marx denomina de incongruência algo que nos parece melhor definido
como restrições qualitativas do sistema, que não permitem que tudo seja trocado por tudo. No
essencial, trata-se de situar historicamente os pressupostos da microeconomia, que deixa de
poder ser resolvida como um problema de micro economia estática.
132
Os modos de apropriação de valor:
produção e captação de mais-valia
Para ajudar a formar uma visão de conjunto do processo de argumentação de Marx, convém
iniciar a leitura da apropriação de valor, que é a primeira parte da grande seção sobre mais valia
absoluta, justamente, estabelecendo esse conceito. Marx começa essa parte de O Capital sem
preâmbulo, discutindo o processo de trabalho e a valorização, sem oferecer um plano dessa
seção. Desde logo, para captar mais valia é preciso produzir, portanto, é preciso encontrar que
produzir para se inserir no mercado.
Mutação da circulação, produção
e produção de mais-valia
A apropriação de valor acontece mediante o desenvolvimento das funções da moeda, como
meio de pagamento e da subseqüente conversão de dinheiro em capital. Esse processo começa
com a chegada das diversas mercadorias ao mercado e com a atribuição de um sentido de
133
universalidade ao dinheiro. Numa primeira etapa, o dinheiro é usado para viabilizar o acesso às
mercadorias, para atender demandas de valor de uso.
O capital surge quando há uma inversão no movimento do manejo das mercadorias. A
circulação aparece primeiro como M =>D =>M. Numa segunda etapa, a universalidade da moeda
viabiliza sua função de reserva de valor, quando então passa a haver uma relação do tipo D => M
=> D. Essa inversão denota a mudança no sentido de finalidade da produção capitalista.
Finalmente, o dinheiro transformado em capital resume esses movimentos em D=> D’.
Esse é o desenvolvimento de um processo que começa com a troca. A troca é o modo de
captar valor de uso para a formação de valor social, isto é, de valor reconhecido por todos no
sistema de produção. O processo de troca é o mecanismo que permite ao capitalista realizar a
formação de capital (L. I, pp. 55). Marx identifica, isto é, separa92, objetivamente o fato do
processo de troca do fato da circulação de mercadorias, já que cada um dos dois tem uma
realidade histórica própria. No conjunto, a troca em geral e a circulação de mercadorias são os
elementos que respondem pela comercialização da produção.
O fundamento da apropriação de valor é a obrigatoriedade da comercialização da
produção. Só se quer ter uma mercadoria enquanto se sabe que ela pode ser vendida93. O
mecanismo básico de apropriação de valor se desenvolve através do processo conjunto de
produção e da circulação. Por isso, na teoria de Marx esses dois termos – produção de
mercadorias e produção de dinheiro – caminham a par e passo, tornando-se necessário neste
ponto inserir o relativo ao aparecimento da moeda e ao papel do dinheiro na determinação da
produção. Tal determinação pode ser representada tal como na igualdade a seguir:
92 Observe-se que separar um
conceito aqui significa reconhecer que
o objeto representado se distingue dos
demais, portanto, que é preciso
encontrar o modo de relacionar uns
objetos com os outros.
93 É preciso ressaltar que o controle
da comercialização é um fundamento
da condição dos capitalistas, que
desse modo podem realizar a mais
valia. O essencial para o capitalista
não é ser produtor, tal como sabemos
da experiência dos produtores
coloniais para exportação. O
fundamental é controlar a capacidade
de vender a produção, que, nesse
caso, é controlar a operação de
exportação.
134
Massa M(mercadorias) . preços = Massa D(dinheiro) . velocidade
O mecanismo de aparecimento da moeda é essencial na teoria de Marx, que sempre situa
a identidade simbólica da moeda sobre seu fundamento real, ao tempo em que, antecipando as
possibilidades de proliferação de outras formas de moeda “ O curso do dinheiro, ao dissociar a lei
real da lei nominal da moeda, sua existência metálica de sua existência funcional, leva implícita a
possibilidade de substituir o dinheiro metálico em sua função monetária por contrasenhas feitas de outros
materiais ou por simples símbolos” (L. I, pp.84). A formação da moeda no contexto do
desenvolvimento do capital mercantil é o verdadeiro passo inicial necessário para que o capital
se desprenda de atividades repetitivas e assuma seu verdadeiro papel criativo.
O processo geral de circulação se realiza mediante as condições particulares de circulação
das mercadorias e de circulação do dinheiro, com as peculiaridades de que essas duas caras do
processo dependem de um ambiente único de confiança, que está apoiado na formação da
sociedade econômica em cada lugar, com sua datação e sua participação na esfera mundial. A
coroação do processo de circulação é o dinheiro mundial.
O processo ganha sua feição definitiva a partir do momento em que o dinheiro se
converte em capital, isto é, de que suas aplicações se separam de objetivos de consumo, para
destinarem-se a objetivos de formação de capital, quando o dinheiro deixa de ser uma
representação da circulação para representar reserva de valor. Não mais ganhar dinheiro para
consumir, senão para aumentar a capacidade de ganhar dinheiro. Esse movimento atinge seu
135
ápice quando se passa de M => D => M para D => M => D e finalmente, para D => M => D’ e
para D => D’.
A passagem de M => D => M até D => D’ representa , ao mesmo tempo, a conversão do
dinheiro em capital e a transformação do sistema de circulação, que passa de estar constituído de
movimentos simples, fortuitos, de circulação, a movimentos complexos, que tendem a se repetir
interminavelmente. É preciso tomar em conta que a realização sistemática da circulação envolve
uma alteração do sistema de circulação, já a circulação simples seria uma troca de valores
semelhantes. Para superar essa circularidade, os capitalistas precisam de uma mercadoria que
crie seu próprio valor de uso, isto é, de uma mercadoria que altere os fluxos de valor de troca no
sistema. Tal mercadoria é a força de trabalho, Por isso, a formação de capital pelo comércio só
acontece quando ele tem a capacidade de fazer trabalhar, direta ou indiretamente.
Por isso, para conseguir que a conversão do dinheiro em capital se concretize, isto é, que
volte ao mundo da produção, os capitalistas precisam contratar trabalho, isto é, precisam
encontrar-se no mercado de trabalho com quem tenha força de trabalho para vender. Noutras
palavras, o capital precisa de quem realize a produção de valor, de quem trabalhe. Por isso,
compra força de trabalho. Nessa operação dão-se as condições para a extração de mais-valia94.
94 Esse movimento do capital enseja
o questionamento do trabalho
compulsório – escravo e servil – que é
obviamente essencial na construção
do caso das economias periféricas. O
capital formou-se com trabalho
compulsório, ou com trabalho
constrangido, isto é, realizado por
trabalhadores livres sem outras
opções de ocupação ou de salário. O
controle do mercado de trabalho
(PEDRÃO, 1995) é parte
fundamental dessa acumulação, que
usou essas vantagens, bem como as de
controle dos recursos naturais, para
concorrer no mercado internacional.
136
Os processos de trabalho
O capital intervém na produção utilizando processos de produção, isto é, modos operacionais
previamente conhecidos, que permitem aos capitalistas fazerem com que o trabalho que os
trabalhadores realizam seja o adequado aos objetivos de produção deles capitalistas. Desse modo,
a força de trabalho transforma-se em trabalho produtivo. O capital controla os trabalhadores
através desse uso direcionado de sua força de trabalho. Tal mecanismo permite determinar
como usar os recursos naturais, que ao serem engajados nesse processo, transformam-se em
meios de produção.
Marx distingue o trabalho, seu objeto e seus meios. Trata-se do trabalho adequado aos
objetivos decididos, dos recursos em sua forma natural, dos meios de trabalho, que são materiais
que já têm incorporado trabalho, ou seja, ferramentas. Os meios de trabalho e o objeto, juntos,
constituem os meios de produção. Diremos que os meios de produção encerram a memória do
processo de produção. E que é essa memória que dá continuidade ao processo produtivo.
Nesse ponto, Marx reconhece a “indústria extrativa” como uma situação excepcional, em
que o capitalismo opera com materiais gerados fora de seu processo de produção, entretanto, não
cai na armadilha de considerá-la como anterior ao processo de produção capitalista. Significa
que o sistema de produção capitalista continua beneficiando-se de produtos que são realizados
mediante contato direto com a natureza, isto é, produção extrativa ou extração, que aderem à
produção capitalista, mas não é realizada com capital acumulado95.
95 Para nós, é fundamental rever a
questão do componente de
extrativismo na produção capitalista
avançada subordinada. Não só em
atividades claramente de extração,
tais como busca de crustáceos e
animais silvestres, mas como um
componente disfarçado ou não
reconhecido da composição de custos,
tal como na indústria de construção
civil, na produção de alimentos e
bebidas e em diversos outros itens.
Não se pode esquecer a importância
das atividades extrativas na
constituição do setor exportador das
economias coloniais, nem o modo
como os setores modernos usam esse
componente primitivo para formar
sua taxa de lucro.
137
O processo de valorização
A valorização é o movimento de formação de valor obtido mediante a incorporação de trabalho
para objetivos reconhecidos pelo capital, que aparece como formação de valor social, isto é, de
valor reconhecido por todos. Consiste na incorporação da produção específica no processo geral
da produção capitalista. Por isso, dizemos, a valorização envolve um problema de continuidade
ou de descontinuidade na seqüência das atividades produtivas, onde os programas de produção
elaborados pelos capitalistas partem de referências da experiência do processo de produção.
Tal experiência se reflete nas listas de produtos e nas características técnicas dos
produtos. Por ex., o hábito de produzir sapatos de couro. O produto quando terminado, é um
valor de uso, que deve ser convertido em valor social, para que supere o valor desembolsado em
sua produção. Para isso, o produto será julgado como valor social médio, que é a referência do
sistema de produção capitalista em seu conjunto.
138
Capital constante e capital variável
Ao estabelecer os conceitos de capital constante e capital variável, Marx entra na constituição
do processo de produção no qual se realiza a extração de mais valia. Capital constante e variável
são, por assim dizer, os termos de uma proposição que é a produção, que através deles se revela
em seu sentido histórico, já que o capital constante é o resultado “decantado” da produção ao
longo do tempo96. Diremos que o valor atual do capital constante depende do modo como se
combinam os diversos equipamentos para objetivos que são definidos depois que eles foram
construídos.
A questão em pauta é a agregação de valor que acontece na produção. Os meios de
produção só incorporam o valor que perdem através de seu desgaste. “Conservar valor
incorporando valor é um dom natural da força de trabalho posta em ação, da força de trabalho viva” (L.
I., pp.156). “A parte do capital que se investe em meios de produção (...) não muda de magnitude” “Em
troca, a parte do capital que se inverte em força de trabalho muda de valor no processo de produção” (L. I,
pp. 158).
Além de reproduzir sua equivalência, a produção capitalista cria um remanescente, que é
a mais valia. Essa parte do capital se converte, constantemente, de constante em variável. Mas
essa não é uma operação automática. Marx aponta dois argumentos para mostrar que é uma
operação arriscada. Primeiro, porque envolve um tempo dentro do qual os diversos produtores
96 Para nós, é fundamental rever a
questão do componente de
extrativismo na produção capitalista
avançada subordinada. Não só em
atividades claramente de extração,
tais como busca de crustáceos e
animais silvestres, mas como um
componente disfarçado ou não
reconhecido da composição de custos,
tal como na indústria de construção
civil, na produção de alimentos e
bebidas e em diversos outros itens.
Não se pode esquecer a importância
das atividades extrativas na
constituição do setor exportador das
economias coloniais, nem o modo
como os setores modernos usam esse
componente primitivo para formar
sua taxa de lucro.
139
podem alterar seus programas de produção. Segundo, porque liga expectativas microeconômicas
com expectativas macroeconômicas97.
As mesmas partes integrantes do capital, que do ponto de vista do processo de trabalho
distinguimos como meios de produção e força de trabalho, do ponto de vista da valorização,
distinguem-se como capital constante e variável. Observe-se nesse ponto, que Marx distingue o
engajamento do trabalho numa dada composição de capital e sua conversão em capital variável,
que significa que o trabalho se torna capital variável quando passa a fazer parte do período
seguinte de produção. Assim, na concepção de capital variável há uma dimensão de
continuidade na participação dos trabalhadores concretos na produção. Diremos que isso
também significa que quando eles são excluídos do processo de produção deixam de ser capital
variável.
Está claro que a valorização atual do capital constante depende de que haja capital
variável que seja compatível com ele, isto é, de que o trabalho que hoje se realiza seja
historicamente contínuo com o que se fez antes.
97 Nós vamos incluir um terceiro
argumento, que resulta do fator de
risco que se encontra na possibilidade
de alteração tecnológica no momento
de comercialização dos produtos.
140
Produção e extração de mais-valia
Preliminares
Por mais-valia, Marx entende a captação de valor gerado pelo trabalho integrado na produção
capitalista e que excede a magnitude que os trabalhadores recebem de volta. Isso significa que é
uma magnitude de valor que só acontece na produção capitalista98. Significa, também, que ela
resulta do poder do capital, de usar força de trabalho para objetivos e segundo programas de
produção que ele decide. Por isso, a extração de mais-valia é inseparável do movimento de
alienação pelo qual os trabalhadores são primeiro privados dos produtos que produziram e
depois são privados de seus instrumentos de trabalho.
Ao concluir-se a produção dos produtos, a mais valia fica em estado latente, na forma
material de produtos, até ser realizada, isto é, até os produtos serem vendidos e convertidos a
um fluxo de dinheiro, cujos destinos são decididos pelo capital. Isso significa que a mais valia
está na esfera do valor, enquanto o lucro está na esfera dos preços. A conversão da mais-valia
em lucro é a conversão de valor em preços, que é o mecanismo pelo qual as produções
individuais se integram no mercado.
A explicação da extração de mais-valia requer que se expliquem os grandes mecanismos
que dão lugar ao seu aparecimento. Nesse sentido, Marx dedica um grande espaço ao estudo da
98 Isso levanta para nós um
problema que não preocupa aos
teóricos que se sentem parte do poder
hegemônico mundial, qual seja, de
como ver o valor extraído da
periferia da produção capitalista e
realizado por atividades extrativas.
O comando – direto ou indireto –
desse trabalho gera ou não mais
valia. Vamos entender que sim,
porque essa produção periférica está
indiretamente controlada. Mas não é
uma transação garantida.
141
divisão do trabalho e ao da maquinaria e da grande indústria. Noutras palavras, a extração de
mais valia num determinado ponto do sistema implica nas inter-relações entre esse ponto e os
demais pontos do sistema. A extração de mais valia não se realiza exclusivamente num
estabelecimento produtivo, senão no sistema produtivo.
Marx distingue a mais-valia absoluta, que se extrai numa dada situação de produção, a
mais-valia relativa, que o capital capta de variações na organização técnica da produção; e a
mais-valia absoluta e relativa, que é a combinação dos aspectos anteriores. São aspectos de uma
realidade que só se vê por inteiro na visão da mais-valia absoluta e relativa.
O perfil do problema apresenta-se na primeira parte – Quota e massa de mais-valia –
onde Marx trata explicitamente dos aspectos quantitativos e somente em parte de modo
explícito, dos aspectos qualitativos. Trata-se de que se identifica a quota de mais-valia e a massa
de mais-valia que acontecem em cada situação específica de produção. Mas não trata de como
essa mais-valia está constituída qualitativamente, isto é, de qualificação dos trabalhadores.
A extração de mais-valia varia ao longo da formação do capital e depende do modo como
ela se produz que, por sua vez, depende de uma condição técnica da produção. Há uma
proporcionalidade entre as despesas com trabalhadores e com meios de produção: “Para valorizar
uma parte do capital investindo-o em força de trabalho, não há mais remédio que investir outra parte em
meios de produção” (L.I., pp. 162). Na verdade, em cada forma de produção há um potencial de
mais valia que pode ser produzida e captada, segundo a atividade contemplada pode absorver
capital e enseja contratação de trabalho99; e a seguir, há uma proporcionalidade específica de
mais-valia, que pode ser produzida nas atuais condições técnicas de produção.
99 Essa primeira variante não seria
necessária ao desenvolvimento do
argumento de Marx, mas é
fundamental para quem se preocupa
com as margens de possibilidade de
aplicações de capital nas economias
periféricas, porque rompe com o
argumento da falta de demanda, para
trabalhar com a premissa de que o
capital sempre opera em função do
mercado mundial, ao qual se dispõe a
dirigir-se em função da mais valia
total que consegue obter em sua base
de origem.
142
Esse mecanismo se entende ainda melhor, quando se vê que há um aspecto interno e
outro externo à produção, no que se refere à mais-valia. O aspecto interno é o que está indicado
pela produção específica; e o externo, o que resulta do trabalho socialmente necessário nessa
produção, que é um dado do sistema de produção em seu conjunto. A taxa de mais-valia, p/v
(mais valia sobre capital variável) reflete as condições históricas concretas da produção
específica. Em cada situação específica, isso corresponde a uma relação entre trabalho
excedente/trabalho necessário, que indica as condições de extração da mais-valia em cada
situação específica de produção100.
A jornada de trabalho
Um esclarecimento sobre a jornada de trabalho é parte da explicação de Marx sobre a mais
valia absoluta, ocupando uma extensa parte desse texto. Introduz-se aqui como um parágrafo
especial subordinado da discussão geral sobre mais valia, que prosseguirá a seguir. Em torno da
jornada de trabalho se materializam os interesses dos capitalistas e os dos trabalhadores. A
jornada de trabalho é a expressão do regime de uso de trabalho na produção, que indica as
condições do contrato de trabalho. Além da luta social acerca do esforço de trabalho, os
interesses do capital e do trabalho se definem em torno do número de horas de trabalho, porque
100 Tornou-se imperativo examinar
esse mecanismo com cuidado, dado
um encaminhamento equivocado, que
se difundiu na literatura histórica
ocidental de desenvolvimento e de
sub-desenvolvimento, inclusive de
autores marxistas. Refere-se a uma
aparente confusão entre taxa de mais
valia e excedente, bem como entre as
condições técnicas de formação de
excedente e as condições históricas
concretas de extração de mais valia.
Hoje interessa muito menos indicar
os autores responsáveis dessa
confusão, que restabelecer o rumo da
reflexão.
143
é onde se realiza o controle sobre a totalidade do tempo dos trabalhadores, inclusive daquelas
horas não contratadas.
A noção de jornada de trabalho em Marx é um dos pontos em que a análise do capital
está mais claramente apoiada em pressupostos da produção fabril. Depende de que o processo de
produção funcione mediante tarefas previamente conhecidas e semelhantes, que podem ser
desempenhadas alternativamente por todos os trabalhadores, ou pela maioria deles. É essencial,
para que se veja como funciona a extração de mais valia. Por isso, é como um parafuso central
da construção teórica.
A jornada de trabalho compõe-se de trabalho necessário e de trabalho excedente.
Observe-se que a noção de necessário aqui se refere ao trabalho socialmente necessário (o
trabalho necessário para repor as forças produtivas gastas na produção) para aquele objetivo de
produção, bem como envolve o significado de necessário para repor as forças do trabalho (L. I.,
pp.177 e 178). Isso significa que o trabalho socialmente necessário diminui segundo os aumentos
de produtividade e que essa diminuição do trabalho socialmente necessário corresponde a um
aumento da taxa e da massa de mais valia.
Por isso, a jornada de trabalho é uma magnitude que varia dentro de certos limites, em
que o mínimo é indeterminado, enquanto o limite máximo é dado pelas forças físicas dos
trabalhadores; e há limites éticos historicamente variados, mas acrescentamos que sempre
dependem da qualificação ou desqualificação do trabalhador como um outro (sujeito)
equivalente ao detentor de poder. Historicamente, a determinação da jornada de trabalho é o
resultado de conflitos de interesses entre capitalistas e trabalhadores, em que desempenham
144
papel especial a pressão demográfica no mercado de trabalho e a oferta de postos de trabalho por
parte do sistema produtivo101. Marx oferece abundantes exemplos, desde a antiguidade até a
produção industrial, destacando as diferenças entre as situações em que os trabalhadores não
têm perspectiva alguma de mudar de situação; e as situações em que surgem condições de
melhoria, dadas no contexto de organização da produção, pelo desenvolvimento de uma
capacidade de defesa dos interesses dos trabalhadores102.
Taxa e massa de mais-valia absoluta
A concepção da mais-valia absoluta parte de uma situação hipotética, em que o valor da força
de trabalho necessária para reposição do gasto social de trabalho se mantém invariante. É uma
simplificação, que tem que ser tratada como uma situação especial, no contexto de uma teoria
dinâmica como a de Marx. É uma simplificação, que não considera as qualificações contidas na
composição do capital. Mas, observa-se que, logicamente, Marx não podia trabalhar esse aspecto
nesse ponto, já que a questão da composição só aparece adiante, quanto trata da mais-valia
relativa.
Na verdade, é uma estimativa da apropriação de valor num período de produção, quando
a massa total de mais-valia pode ser representada por uma dada taxa de mais-valia. É um
raciocínio que se refere a uma dada força de trabalho e a uma dada tecnologia, portanto, que tem
101 Esse é um ponto de especial
interesse para a análise das
economias periféricas – ex colônias –
onde o sistema produtivo jamais foi
capaz de integrar todas as pessoas
que precisam trabalhar.
102 O tema reveste-se de óbvia
importância para a atualidade da
periferia avançada da economia
mundial. A jornada aparentemente se
dilui com a queda do assalariamento,
mas de fato, permanece, como
referência da determinação das
remunerações e como base de cálculo
de tempo, segundo tarefas
incomparáveis. Por exemplo, jornada
em atividades que exigem muita
concentração. Não é o mesmo em
atividades que se definem por tarefas
semelhantes – no que se passou a
chamar de ambiente fordista - ou por
tarefas criativas ou individualizadas.
Há um problema de jornada de
trabalho ligado à disputa em torno do
trabalho aos domingos e do
pagamento de horas extra, que são
duas estratégias do capital para
estender a jornada de trabalho.
145
que ser ajustado para refletir as alterações inerentes à incorporação de tecnologia e aos ajustes na
organização da produção.
A descrição do fenômeno é simples, o que é complexo é determinar os aspectos
estruturais que estão por trás dessa igualdade simples. A mais valia absoluta reflete uma
situação de uso de trabalho, antes que sobre ela intervenha qualquer decisão do capital sobre sua
capacidade de alterar a organização do trabalho.
A produção de mais-valia relativa
Para realizar essa tarefa, Marx desenvolve uma teoria do valor, que parte da distinção de
Aristóteles entre valor de uso e valor de troca, mas que avança sobre as condições sociais da
formação do valor de uso – no ambiente de cooperação doméstica e ligado à materialidade da
utilidade dos resultados da produção – mostrando como a organização do trabalho empregado na
produção de valor de uso constitui a base para a produção de valor de troca. O valor de uso
permanece na sociedade capitalista moderna, representando a utilidade que se atribui
diretamente ao tempo controlado pelo trabalhador. De nossa parte, observamos que o tempo que
o trabalhador extrai do mercado para seu próprio uso – tempo que despende melhorando sua
moradia ou produzindo alimentos para seu próprio consumo – é um manejo de valor de uso que
ele controla contrapondo-se ao capital.
103 Observaremos que essa regra tem
que ser qualificada, para refletir o
modo de funcionamento das
economias coloniais e das periféricas
pouco industrializadas. Ali, a
extração de mais valia se faz
praticamente sem reduzir o trabalho
socialmente necessário, simplesmente
mantendo os trabalhadores com
pagamentos mínimos, mediante o
controle das oportunidades de
contratação.
146
A questão essencial é que a redução do trabalho necessário permite aumentar o trabalho
excedente, portanto, ampliar a extração de mais-valia103. O capital tem o controle da composição
do capital, que lhe permite administrar as tecnologias e os trabalhos a serem empregados. O
controle da tecnologia permite reorganizar a produção, de modo a aumentar a produtividade,
inclusive controlando o tempo de trabalho, portanto, com a possibilidade de aumentar a massa
de mais valia. A extração de mais valia relativa é o modo do capital de abastecer sua expansão.
A mais valia relativa surge como parte do movimento geral de concentração do capital, que tem
lugar, simultaneamente, na esfera da fábrica e na da gestão dos capitais. Por isso, esse
movimento surge da divisão do trabalho e da concentração do capital industrial.
Há uma relação orgânica entre o modo como se produz valor de troca hoje e as condições
de desenvolvimento da economia nacional onde isso acontece, já que o valor de troca depende da
eficiência do sistema produtivo. Nas palavras de Marx, “o que determina a magnitude de valor de
um objeto não é mais que a quantidade de trabalho socialmente necessário, isto é, o tempo de trabalho
socialmente necessário para sua produção” (L.I, pp.7 &2) E continua “A magnitude de valor de uma
mercadoria permaneceria invariável se também permanecesse constante o tempo de trabalho necessário
para sua produção. Mas isso muda ao mudar a capacidade produtiva do trabalho” Mas há um inevitável
componente de acaso subjacente no valor de uso do produto das minas, onde se pode computar o
trabalho socialmente necessário para extrair minério e processar, mas onde não se pode garantir
de antemão quanto minério se encontra em cada mina. O valor de troca contém, insumido, o
valor de uso e vem a ser a forma final de valor percebida pela sociedade econômica. Assim, a
147
teoria do valor revela-se como teoria da mercadoria, que é tudo aquilo que é produzido para ser
trocado, independentemente de qual seja seu uso final.
Essa será a primeira instância da teoria do valor, em que se passa a ver a variedade das
formas de valor necessárias em cada situação do desenvolvimento das forças produtivas ou do
sistema produtivo em seu conjunto. É nessa pluralidade cambiante que se situam as diversas
formas de valor de uso e onde se estabelecem as condições de comparabilidade entre
mercadorias, portanto, onde surgem a forma relativa e a forma equivalencial de valor. A forma
relativa compara os componentes de valor de uma mercadoria frente às demais e a forma
equivalencial refere-se à comparabilidade das mercadorias em termos de seu componente de
valor. O desenvolvimento da produção faz com que a equivalência compreenda mais
complexidade, revelando o papel do dinheiro como e enquanto elemento que representa essa
comparabilidade. O dinheiro torna-se o veículo das trocas, por tanto, da comercialização da
produção104.
Há uma relação orgânica entre o modo como se produz valor de troca hoje e as
condições de desenvolvimento da economia nacional onde isso acontece, já que o valor de troca
depende da eficiência do sistema produtivo. Nas palavras de Marx, “o que determina a magnitude
de valor de um objeto não é mais que a quantidade de trabalho socialmente necessário, isto é, o tempo de
trabalho socialmente necessário para sua produção” (L.I, pp.7 &2) E continua “A magnitude de valor de
uma mercadoria permaneceria invariável se também permanecesse constante o tempo de trabalho
necessário para sua produção. Mas isso muda ao mudar a capacidade produtiva do trabalho” Mas há um
inevitável componente de acaso subjacente no valor de uso do produto das minas, onde se pode
104 Nas nossas reflexões sobre a
economia colonial e sobre os modos
como ela se converte em economia
periférica da produção capitalista
mundialmente integrada, teremos que
examinar as diferenças de
monetização das relações de produção
coloniais e de ver o papel desigual do
dinheiro nas diversas situações de
periferia da acumulação mundial.
Vemos que o controle da
conversibilidade – desde os tempos do
controle da oferta de prata – é o
mecanismo central da colonização,
que por esse meio cria uma diferença
fundamental entre as metrópoles e as
colônias, onde estabelece as condições
de reprodução do capital na esfera
das colônias.
148
computar o trabalho socialmente necessário para extrair minério e processar, mas onde não se
pode garantir de antemão quanto minério se encontra em cada mina. O valor de troca contém,
insumido, o valor de uso e vem a ser a forma final de valor percebida pela sociedade econômica.
Assim, a teoria do valor revela-se como teoria da mercadoria, que é tudo aquilo que é produzido
para ser trocado, independentemente de qual seja seu uso final.
Essa será a primeira instância da teoria do valor, em que se passa a ver a variedade das
formas de valor necessárias em cada situação do desenvolvimento das forças produtivas ou do
sistema produtivo em seu conjunto. É nessa pluralidade cambiante que se situam as diversas
formas de valor de uso e onde se estabelecem as condições de comparabilidade entre
mercadorias, portanto, onde surgem a forma relativa e a forma equivalencial de valor. A forma
relativa compara os componentes de valor de uma mercadoria frente às demais e a forma
equivalencial refere-se à comparabilidade das mercadorias em termos de seu componente de
valor. O desenvolvimento da produção faz com que a equivalência compreenda mais
complexidade, revelando o papel do dinheiro como e enquanto elemento que representa essa
comparabilidade. O dinheiro torna-se o veículo das trocas, por tanto, da comercialização da
produção.
149
Mais-valia absoluta e relativa
A realização desse percurso da formação de valor depende de que as mercadorias sejam levadas
ao mercado, isto é, que sejam expostas ao jogo de trocas. A compreensão de mais valia aparece
em sua forma plena na forma conjunta de mais valia absoluta e relativa. Para explicá-la, Marx
examina a transformação da produção industrial, desde a etapa das manufaturas até a da
produção fabril. Para fins de ordenamento temático desta exposição, para reunir num mesmo
espaço as observações sobre a produção industrial, apresenta-se a seguir um breve comentário
sobre a mais valia absoluta e relativa.
A visão conjunta da mais valia significa a leitura histórica da estrutura da captação de
mais valia, que desse modo é situada nos processos históricos específicos de produção. A
extração de mais valia acontece numa variedade de situações, que são parte de processos com
diversas velocidades de renovação tecnológica e organizacional. Na realidade, só existe essa
mais valia conjunta, que envolve a variedade de situações historicamente próprias de cada
sociedade em cada momento. O essencial é que a mais valia absoluta e relativa mostra o controle
universalizado do trabalho por parte do capital, que passa a considerar-se possuidor da força de
trabalho e senhor das oportunidades de trabalho dos trabalhadores e não só do tempo de trabalho
comprado. A compra de tempo dá um poder indireto aos capitalistas, que aparece em sua
capacidade de gerar produção monopolista.
150
A questão especial da acumulação primitiva
Nesta seção apresenta-se uma digressão que foge da estrutura geral deste estudo, em que
representa uma reflexão destinada a contrastar mais diretamente um tema da estrutura de O
Capital com um mecanismo fundamental da acumulação na periferia do capitalismo. É preciso
distinguir a acumulação primitiva na origem do sistema capitalista de produção de acumulação
primitiva nos segmentos primitivos da produção. Para nós, a acumulação primitiva se realiza
porque a produção capitalista usa a produção extrativa ou de mais baixa tecnologia como um
recurso complementar para controlar custos. Por exemplo, a extração de bambu nativo não
plantado como ingrediente da matéria prima para produção de papel.
A participação de formas primitivas de captação de valor é um componente essencial da
formação econômica dos países periféricos até a atualidade. É um aspecto que terá que ser mais
desenvolvido, para tratar da problemática da periferia do capitalismo, justamente, marcada pela
colonização.
O que se entende como acumulação primitiva na obra de Marx, isto é, anterior ao
processo capitalista de formação de capital, reveste-se de importância decisiva para o estudo da
periferia da acumulação capitalista, especialmente, para tratar da experiência das economias
periféricas diversificadas, tal como a brasileira. Marx trata de acumulação primitiva (L. I.,
cap.XXIV) como daquela obtida mediante a desorganização violenta de formas de produção
existentes. Pressupõe movimentos anteriores regressivos da própria sociedade, tal como
151
aconteceu na própria Inglaterra que ele estudou. Para nós, há qualificações substanciais relativas
à colonização. Aplica-se ao momento inicial da conquista do México e do Peru. Mas não trata
do papel do controle da extração vegetal, animal e mineral, que foi a base do sistema colonial e
continuou como um componente essencial do subsolo da periferia da acumulação e que é
aproveitada pelos capitais dessa periferia e pelos que a ela continuam a afluir, com a mesma
perspectiva colonial. O pressuposto essencial da acumulação primitiva, tal como se vê na
perspectiva da América, é a capacidade de impor e controlar trabalho compulsório, que é algo
que pode ser feito e que é feito dentro da esfera da produção capitalista.
A divisão do trabalho: artesanato,
manufatura, produção fabril.
A questão da divisão do trabalho é fundamental na organização da produção capitalista,
tornando-se necessário revisa-la, desde sua formulação consagrada por Adam Smith. Marx
modificou radicalmente o tratamento desse tema, vinculando-o às condições operacionais da
produção e revelando a combinação de aspectos quantitativos e qualitativos envolvidos na
divisão do trabalho, com suas conseqüências no aperfeiçoamento do produto e do produtor, mas
com suas conseqüências na degradação do trabalhador. É a modalidade de cooperação posta de
152
pé pela produção industrial. Não é um princípio genérico, limitado genericamente pela
demanda, senão está historicamente ligado às formas concretas de produção, desde o pequeno ao
grande artesanato, da pequena à grande manufatura e à produção fabril. No essencial, para
Marx, a divisão do trabalho é m mecanismo de controle dos trabalhadores por parte dos
capitalistas.
Por extensão, a divisão do trabalho se diferencia entre cidade e campo. Não é uma
separação espontânea, senão uma distinção conduzida na manufatura, que criou uma visão de
espaço econômico nacional. Para Marx, as cidades conduzem os processos de transformação do
sistema capitalista de produção, constituindo-se nos lugares por excelência onde avança a
divisão do trabalho. Por exemplo, a referência a tais ou quais tipos de seda, de relógio, de queijos
etc. Marx distingue duas formas fundamentais da manufatura, que são a heterogênea e a
orgânica, significando diversidade e interdependência dos elementos envolvidos na divisão do
trabalho, com o papel do operário coletivo, que representa essa interdependência. A projeção das
conseqüências dessas manufaturas resulta em divisão do trabalho dentro da manufatura e na
sociedade em seu conjunto.
Em síntese, trata-se da divisão do trabalho alcançada pelo sistema de produção,
compreendendo sua pluralidade atual e de formas e suas possibilidades específicas de
aprofundamento. Quanto pode avançar a divisão do trabalho na produção de alimentos e quanto
na de equipamento eletrônico?
A divisão do trabalho é um processo de escala internacional, tanto como o sistema de
produção está internacionalizado; e pode avançar, segundo o modo de internacionalização rebate
153
em cada uma das atividades envolvidas. Nesse sentido, a divisão internacional do trabalho
torna-se o modo de controle internacional da economia, que passa a ter um caráter regional e a
decidir sobre as questões locais da produção.
Historicamente, a produção evoluiu, desde o artesanato em pequena escala, a
concentrações de produção artesanal. O aparecimento das manufaturas mudou decisivamente as
condições de divisão do trabalho. Enquanto no artesanato predomina, de modo quase exclusivo,
a habilidade individual, a manufatura se faz mediante uma organização da produção baseada em
divisão do trabalho, com a substituição de ferramentas individuais dos artesãos por um conjunto
de equipamentos utilizados pelo conjunto. Marx dedica uma atenção especial a analisar as
peculiaridades das manufaturas, vendo-as como as bases técnicas e organizacionais da indústria
propriamente dita.
Na indústria, a produção passa a ser organizada em torno de um uso sistemático de um
conjunto integrado de maquinaria, que passa a determinar o modo de participação dos
trabalhadores. A concepção desse conjunto de maquinaria é uma projeção de uma compreensão
do processo produtivo, que se torna um diferencial de conhecimento dos capitalistas.
Para alimentar a visão retrospectiva da formação da indústria, é preciso esclarecer que se
entende por artesanato, por manufatura e por indústria na obra de Marx, e qual o papel especial
que ele atribui à manufatura.
O artesanato. Para apresentar uma visão de conjunto atualizada do encadeamento das
formas de organização, especialmente, de modo a contemplar o leque de pluralidade das
sociedades periféricas, parece necessário considerar o artesanato como a forma desenvolvida do
154
trabalho individual, que aparece como produção pulverizada; e indiretamente articulada pelo
mecanismo de comercialização. Em função do artesanato, coloca-se a distinção feita por Marx,
entre os trabalhadores que possuem seus próprios instrumentos de trabalho e os que não os têm.
Mas, obviamente, é preciso situar historicamente a esfera de atividades genericamente
denominada de artesanato, bem como reconhecer suas funções em relação com a reprodução do
capital e com as condições de consumo105.
A manufatura. Marx atribui um papel essencial à manufatura, como atividade
capitalista representativa da produção fabril, que aprofunda a especialização dos trabalhadores
individuais, mediante avanços na organização da produção e na comercialização. Distingue as
condições históricas da formação da manufatura – sobre a experiência da Europa ocidental – e os
aspectos organizacionais, apontando às manufaturas que se situam em linha com o
desenvolvimento da produção fabril. Como diz o próprio Marx, não há limites nítidos entre a
esfera da produção manufatureira e a fabril.
Historicamente, Marx vê as manufaturas de dois modos: como resultado de iniciativas
de capitalistas que reúnem especialidades diferentes e complementares e como iniciativas que
concentram competências similares e ganham em escala. Sobre esses dois tipos de experiência,
destaca os aspectos de heterogeneidade e de organicidade, que, finalmente, resultam em divisão
do trabalho dentro da manufatura e dentro da sociedade em seu conjunto106.
105 Neste ponto, introduziremos duas
qualificações na discussão do
artesanato. Primeiro, distinguir o
artesanato utilitário do simbólico, ou
seja, o que interage no consumo
cotidiano e o que atende demandas
religiosas e dos mitos integrados
culturalmente na sociedade. Segundo,
distinguir níveis de qualidade dos
produtos do artesanato, entre os
requisitos de exigência dos diversos
grupos em cada sociedade, desde o
artesanato para elaboração de objetos
altamente especializados e para
objetos de uso comum. Esses dois
critérios sustentam uma classificação
básica do artesanato, que é
igualmente válida para analisar
sociedades industriais e pré-
industriais.
106 No estudo da experiência
brasileira, a análise da manufatura é
fundamental, devendo-se vê-la não só
como antecessora da produção fabril,
senão como sua subordinada e como
uma situação que não
necessariamente leva à produção
155
Maquinaria e grande indústria
A capacidade de cada capitalista individual de extrair mais valia relativa depende de sua
capacidade de aprofundar seu capital constante – ou aumentar a densidade de capital por homem
ocupado - mediante maquinaria. Essa capacidade é desigual entre capitalistas e varia ao longo do
tempo e segundo a composição de aplicações dos capitais.
A constituição de conjuntos de maquinaria resulta em condições diferenciadas de
controle da jornada de trabalho, assim como de controle da contratação de trabalhadores. Mas a
constituição de conjuntos de maquinaria reverte a relação dos trabalhadores com a máquina “Na
manufatura e na indústria manual, o operário se seve da máquina, na fábrica ele serve à máquina” (L.I.,
pp. 549). A maquinização desloca operários de suas posições de trabalho, com a conseqüência
imediata de deprimir suas condições familiares, afetando as remunerações e pressionando a
participação das mulheres com salários mais baixos.
Esse movimento geral de deslocamento deu lugar à discussão sobre supostas
compensações - muito atuais107 - que alguns empregos sejam compensados por outros. Não é,
portanto, que a mesma intensificação do capital leve a outras opções de investimento, senão que
a expansão da grande indústria se detém diante de limitações de mercado. Diante da referência
de mercado, a grande indústria passa a condicionar a pequena indústria, a manufatura e o
trabalho autônomo. Isso destrói a forma anterior de cooperação – ou de organização – entre as
indústrias e substitui por outra, comandada pela grande indústria. Com a ligação entre a
fabril. Há renovação e substituição
na esfera da produção
manufatureira, que atualizada, como
um departamento dependente do
capital industrial. Na reprodução das
economias periféricas avançadas, tal
como a brasileira e a mexicana, há
um importante componente de
manufaturas, inclusive com níveis
muito diferenciados de densidade de
capital, de tecnologia e de
qualificação dos recursos humanos.
Longe de uma situação seqüencial, de
que as manufaturas são,
necessariamente, substituídas pela
produção fabril, elas se vêm como um
componente especial do sistema de
produção, que opera com uma baixa
proporção de equipamentos mas com
um elevado componente de trabalho
qualificado.
107 Essa discussão voltou, nos dias de
hoje, com a suposta substituição de
empregos industriais por empregos
em serviços, que simplesmente os
empregos em serviços correspondem
ao aumento do capital constante na
indústria e na agricultura.
156
operação do grande e do pequeno capital, hoje, é preciso raciocinar em termos de que a
intensidade de trabalho na produção realizada pelo grande capital pré condiciona a intensidade e a
regularidade do trabalho realizado pelo pequeno capital.
Cooperação
O capítulo sobre cooperação é um grande parágrafo, logicamente subordinado na estruturação
da argumentação do Livro I, que trata dos modos de organização historicamente formados,
antes que das formas organizacionais. Mas trata dos modos organizacionais como de algo
estritamente objetivo, que deve ser explicado como um recurso social, que é mobilizado para a
produção capitalista.
Concretamente, a cooperação é o mecanismo do trabalho coletivo. Viabiliza atividades
que de outro modo não poderiam ser realizadas e amplia as possibilidades de trabalho em
atividades que são executadas. Mesmo quando se trata de trabalhos similares, a organização do
esforço resulta em aumento da capacidade efetiva de trabalho. Há tarefas muito simples, que só
são possíveis mediante cooperação. Os exemplos mais óbvios são os de colheitas e de pesca, que
demandam muito trabalho simples simultâneo, mas isso se estende até às formas pré históricas
de caça. Por isso, se bem que o trabalho combinado é essencial à produção capitalista, não pode
ser reduzido aos seus usos no ambiente do capitalismo.
157
No entanto, a produção capitalista impõe certos tipos de cooperação que determinam
subordinação e desqualificação dos trabalhadores. No essencial, os capitalistas podem cooperar
como querem, mas os trabalhadores só podem cooperar segundo estão inscritos na produção nos
mesmos e determinados capitais. É onde vai entrar nossa análise do colonialismo e da criação de
meios de diferenciação entre a esfera da produção central do grande capital e a de seus
desdobramentos periféricos.
Modos de composição do capital
Um dos principais pontos em que os economistas formados na tradição marginalista revelam
dificuldade de entender Marx, é a noção de composição, especialmente, do modo como ela foi
desenvolvida, para explicar a formação do capital. Quase sempre procuram assimilar a
composição do capital ao perfil da demanda, assim como tentam usa-la como categoria de
análise instantânea. Com isso, perdem de vista o essencial, que é o sentido genético da
composição108. Há uma diferença fundamental entre a noção de composição enquanto
magnitude dinâmica e de estruturação. Na prática, a diferença entre o estilo de análise de Marx
e o de Leontief com seu quadro de inter-relações inter-industriais. Tal como notou Lucien
Goldmann, a visão Walras – Leontief das inter-relações inter-industriais é uma redução
conceitual da visão dinâmica de Quesnay.
108 O conceito de composição do
capital é um dos pontos onde se
registra nitidamente a origem
hegeliana do pensamento de Marx:
“A coisa não se reduz ao seu fim,
senão se encontra em seu
desenvolvimento, nem o resultado é o
todo real, senão que o é em união com
seu tornar-se” G.W.F.Hegel,
Fenomenologia do Espírito, pp.8).
158
O conceito de composição do capital foi introduzido por Marx, como referência do
significado orgânico do capital, essencialmente, para representar a combinação de aspectos
sociais e técnicos do capital, com sua valorização dependendo dessa mesma combinação.
Representa um processo – dinâmico – e não pode, por isso,ser confundido com os conceitos de
estrutura e de agregação de fenômenos tal como se faz na macroeconomia de inspiração
keynesiana.
Como um exemplo nosso, o valor social das ferrovias depende do modo como elas estão
incluídas no sistema produtivo, assim como depende de que o trabalho neles realizado seja
compatível com o conjunto de componentes técnicos que se tem acumulado ao longo do
processo109. O conceito de composição ganha mais complexidade com a progressão do sistema
capitalista de produção, quando os componentes materiais do capital correspondem a diferentes
condições de acumulação no trabalho.
A noção de composição do capital é parte essencial da explicação da mais valia relativa,
que é extraída mediante o controle dos movimentos de renovação de técnica e de trabalho, que
também tem sido equivocadamente entendido como baseado no controle de tecnologia. A mais
valia relativa é obtida por conta do controle da composição do capital. Assim, uma visão de
conjunto da questão da composição é fundamental, para fechar a linha de argumentação que
explica a produção de capital. A composição do capital pode ser esquematizada tal como a
seguir.
109 Daí emerge uma noção de capital,
que é muito mais complexa e
profunda que a chamada
heterogeneidade do capital
trabalhada por Piero Sraffa e Joan
Robinson, por não dizer que impugna
a noção de capital homogêneo
utilizada pelos economistas
neoclássicos em geral.
159
DIAGRAMA 3
A composição do capital
Capital constante
Capital variável
Força de trabalho
Meios de produção
(relativa a valor)composição de valor
(relativa a matéria)composição técnica
Composição orgânicado capital
A composição de valor + composição técnica = composição orgânica.
A introdução da noção de composição do capital abre espaço para a análise de dois
aspectos fundamentais de uma economia política dinâmica110, que são os de (a) reconhecer a
relação entre as tendências dos usos de recursos materiais e de trabalho; e (b) reconhecer que o
comportamento cíclico da economia mundial tem diferentes rebatimentos locais, segundo a
composição do capital em cada país e em cada região.
110 Cabe referir aqui a compreensão
de Economia Política expressada por
Engels: “A economia política é, em
seu sentido mais amplo, a ciência das
leis que regem a produção e o
intercâmbio dos meios materiais de
vida na sociedade humana. Produção
e intercâmbio são duas funções
distintas. A produção pode ter lugar
sem intercâmbio, mas o intercâmbio –
precisamente por ser intercâmbio de
produtos – não pode acontecer sem
produção(...)Ambas (essas funções)
se condicionam reciprocamente em
cada momento (...).F. Engels, Anti
Dühring, pp. 139.
160
A condição dos trabalhadores: renda salarial,
intensidade da ocupação e
vida útil no mercado de trabalho
A seção VI do Livro I de O Capital - caps. XVII, XVIII e XIX – está dedicada à análise do
salário ou de forma mais ampla, aos rendimentos dos trabalhadores.. Mas a visão do tratamento
desse tema envolve diversos outros elementos, que cobrem a extensão do assalariamento na
formação e transformação da produção capitalista e como meio de participação da estruturação
de classes e de sua transformação. São três níveis de questionamento: quanto e quantos o
capital assalaria e quanto paga pelo trabalho que compra e qual o papel do salário na mobilidade
dos trabalhadores?
O ponto de partida, certamente, é estabelecer a quantas pessoas o capital assalaria. O
interesse do capital está em contar com um grande número de pretendentes a trabalhador, que é
um número de pessoas que são deslocadas de outras atividades, ou que em todo caso estão
disponíveis para serem contratadas. Esse interesse é o que está tratado no capítulo sobre
acumulação primitiva. Esse é o modo de manter a pré-condição de uma disponibilidade de
trabalho barato111. A questão social do trabalho começa a aparecer através da contradição entre a
necessidade do capital em geral, de contar com um mercado de trabalho organizado e os
111 Não gostaríamos de confundir
essa pré-condição histórica com a
forma estática - ou indeterminada –
de colocar o problema como de uma
oferta ilimitada de mão de obra, tal
como na versão de W. A Lewis.
161
objetivos dos capitais específicos, de lucrarem com a mais valia relativa, para o que precisam de
um ambiente contumaz de desemprego.
No relativo aos salários no processo social de produção do capital, Marx ressalta os
seguintes aspectos.
O que gera valor é o trabalho objetivo que se realiza, mas o capitalista compra
força de trabalho e fica com a iniciativa de direcionar a força de trabalho como melhor lhe
convém.
O trabalhador tem que comparecer a esse mercado desigual e irregular, porque
não tem como vender seu trabalho de modo independente do capital.
O capitalista encontra-se no mercado de trabalho com trabalhadores e não com o
trabalho, pelo que usa suas vantagens de controle de mercado sobre o potencial de trabalho.
O trabalho que se materializa torna-se propriedade do capitalista.
Nesse mercado de trabalho, o valor e os preços da força de trabalho se
transfiguram em salário. Nesse contexto, “o regime do dinheiro esconde o tempo que o operário
assalariado trabalha grátis” (L.I , pp. 452).
162
A reprodução simples
Há um problema especialmente complicado no relativo à chamada reprodução simples, que, de
fato, descreve as condições imediatas de reprodução do sistema. Ao mostrar que o
funcionamento do sistema transforma todo capital, mais tarde ou mais cedo, em capital acumulado ou
em mais valia capitalizada, (L.I, pp. 479), Marx aponta ao sentido implícito do capital, que opera
com a lógica da acumulação. Mesmo se observado em suas determinações imediatas, o capital
tende a acumular. De fato, ou há acumulação ou há desvalorização.
A transformação da mais-valia em capital
Nesta parte revela-se plenamente a compreensão de que o movimento do capital é uma espiral
que se estende segundo as condições ambiente que permitem a reinserção da mais valia no
processo de reprodução do capital. A transformação da mais valia em capital se realiza segundo
a capacidade dos capitalistas de operarem plenamente com seu capital no mercado de produtos,
que lhes permite operarem com controle do mercado local de trabalho. Trata-se, portanto, de
163
condições operativas dos capitais específicos, que chegam a condições também específicas de
mercado.
O movimento geral da acumulação do capital
Os elementos apresentados por Marx até esse ponto constituem o conjunto da análise dos
fundamentos que permitem iniciar a discussão do movimento de acumulação de capital. Esse
movimento é exposto de modo progressivo, primeiro na esfera da produção propriamente dita e
depois – tal como exposto no Livro III – no relativo à produção capitalista em seu conjunto. Na
primeira aproximação examina os mecanismos internos da acumulação, que giram em torno da
produção e captação de mais valia, resultando na primeira abordagem da reprodução do sistema,
que é a de uma reprodução com alterações não significativas do valor acumulado112 e dos
conjuntos de tecnologias utilizadas113.
Esta primeira abordagem da acumulação desdobra-se em quatro pontos interdependentes,
que são: a conversão da mais valia em capital, a composição do capital, a acumulação primitiva e
a acumulação na esfera do sistema de produção. Veremos adiante que o movimento geral de
acumulação não se contém nesses termos e que só se completa quando engloba a esfera política
como mecanismo complementar da esfera econômica.
112 A argumentação apresentada no
capítulo XXI sobre a reprodução
simples do sistema produtivo supõe
condições invariantes, que só são
explicáveis em períodos com duração
irrelevante, que é um modo de dizer,
em estática. Mas o encaminhamento
da análise não permite supor tempo
nulo. Assim, a abordagem correta é
de raciocinar em termos de tempo
limite e jamais de estática.
113 A situação combinada de valor e
tecnologia é tratada por Marx
adiante, no capítulo XXIII, no
relativo à composição do capital – ver
diagrama 3 – ao iniciar a exposição
das condições da acumulação.
164
A conversão da mais-valia em capital é o mecanismo mesmo da acumulação, que se
processa sobre a progressão de alterações da composição do capital. “A conversão da mais valia
como capital ou a reversão a capital da mais valia chama-se acumulação de capital,” L.IIIpp.488,
“Analisada de um modo concreto, a acumulação se reduz à reprodução do capital em escala progressiva”
L.III, pp. 490. Uma observação inevitável neste caso é que a acumulação ganha novos contornos
e novo significado à medida que avança o próprio processo do capital.
Mas a recondução da mais valia ao processo de produção depende da possibilidade prática
de eles serem efetivamente utilizados, como meios de produção e como meios de vida, isto é, de
sua utilidade futura, ou seja, que a acumulação é um mecanismo progressivo, que se realiza
numa trajetória não garantida: “ a mais-valia só é susceptível de transformar-se em capital, porque o
produto excedente, cujo valor a representa, já encerra os elementos materiais de um novo capital (L.I,
pp.489) , “reproduzindo-se em forma de capital”( LI, 490). Isso significa que esse excedente se
materializa como meios de produção e como meios de vida, portanto, reproduzindo o capital e
reproduzindo o trabalho. É o trabalho adicional deste ano que cria o capital necessário para
captar o trabalho que realizará a produção do ano seguinte. A preparação de terras este ano
enseja a contratação de trabalho para o plantio do ano vindouro. A relação do capital com o
trabalho revela-se dinâmica, conduzida pelas quantidades e pela composição do trabalho que os
capitalistas contratam para dar continuidade à acumulação e não só por conta da produção
imediata. A noção de progressividade do sistema explica-se mediante as alterações da
composição do capital.
165
Ao passar da escala individual para a da generalidade dos capitalistas, a mais valia deixa
de ver-se como “fundo individual de consumo dos capitalistas”, para ver-se como “fundo de
acumulação”. Este último é o meio pelo qual se processa a acumulação, levando a um aumento
do capital constante maior que o do variável. Essa continuidade orgânica entre o que transcorre
na esfera dos capitais individuais e o que transcorre com o capital em seu conjunto em cada
estágio do desenvolvimento torna improcedentes as observações de muitos autores que
classificam Marx como macroeconomia. Diremos que a análise de Marx do capital justamente é
infensa a essa separação entre macro e micro e que se realiza simultaneamente nesses dois
níveis.
Em torno da relação móvel entre capital constante e capital variável surge uma
conceituação renovada de produtividade. Comenta Marx, que “o grau social de produtividade do
trabalho reflete-se no volume relativo de meios de produção que o operário converte em produto durante
certo tempo e com a mesma tensão da força de trabalho. A massa de meios de produção com que um
operário opera cresce ao crescer a produt9ividade do trabalho” (L I, pp. 525). Nesse movimento os
capitalistas valem-se de sua capacidade de decidir sobre a gestão de sua capacidade de acumular,
valendo-se das diversas formas de acumulação primitiva ao seu alcance e das formas de
colonização.
Ao enfrentar o movimento de acumulação em seu sentido mais amplo, Marx abre,
também, completamente, a questão relativa à interação entre os aspectos quantitativos e
qualitativos. A acumulação se faz mediante alterações da ocupação, que envolvem uma
diminuição relativa do trabalho variável frente ao aumento da produção. A progressão da
166
acumulação capitalista determina um excesso de população operária, porque a reprodução do
capital se faz a partir de sua base técnica atual, mas não sobre uma base técnica invariante.
Como a demanda (atual) de trabalho não depende do capital total (passado), senão do capital
variável (passado), essa demanda de trabalho diminui progressivamente, à medida que aumenta
o capital total. Tal mecanismo é adicionalmente ampliado pelo movimento de centralização do
capital.
Esse é o mecanismo que dá lugar ao aparecimento do exército de reserva. Ressalta que,
segundo a argumentação desenvolvida nessa seção, não há como absorver o contingente de
trabalhadores constituindo o exército industrial de reserva, ficando em aberto apenas casos
específicos. Segundo Marx, o exército de reserva é um contingente móvel, que se renova em
função de mecanismos internos e externos do sistema de produção,sendo que os mecanismos
externos são aqueles conduzidos através da violência do poder, que aparece denominada de
acumulação originária, ou primitiva114.
Finalmente, o mesmo movimento que alimenta o exército de reserva, leva ao
aparecimento do que Marx chama de “hostes transumantes”, que são os grandes fluxos
migratórios diretamente causados por pressões crônicas de repulsão, que atingem grupos sociais
inteiros, não só pelo perfil imediato de trabalhadores, mas incluindo aspectos étnicos e culturais.
Nas sociedades americanas, está claro que as fraturas criadas pelo sistema colonial escravista e
servil são mais amplas e profundas que as imediatamente denotadas pelo sistema de
assalariamento.
114 A acumulação primitiva tem um
papel especial na experiência das
sociedades americanas em geral, nas
duas situações de terem sido colônias
e na de exercerem comportamentos
predatórios nas versões mais recentes
da modernização. Ressaltamos a
necessidade de retomar o argumento
relativo ao extrativismo,
especialmente, porque na experiência
dos países americanos o extrativismo
é parte integrante da acumulação
primitiva, que passa a ser
reorganizado e continua fazendo
parte da versão periférica da
produção capitalista. O extrativismo
continua na base da pirâmide do
sistema de produção, funcionando
como meio de obter valor de trabalho
que é realizado numa obscura de
relações incertas entre o
assalariamento e formas mais
primitivas de remuneração, muitas
vezes envolvendo trabalho familiar.
167
O papel especial do capítulo VI (inédito) do Livro I
Esse texto teria sido planejado como síntese – ou culminação – temática do Livro I. Por isso se
desenvolve como uma espécie de resposta à formação de conceitos naquele tomo. Mas, a nosso
ver, representa o descolamento da análise das formas aparentes da produção capitalista e a
análise dos processos que situam essa produção em seu contexto sócio-histórico. É preciso
registrar que há um movimento de depuração e de aprofundamento dos usos dos conceitos ao
longo do desenvolvimento do Livro I, que não se resume ao fato, alegado pelo próprio Marx na
Miséria da filosofia, de que as condições do método dialético levam a uma inversão no uso de
categorias. Conceitos tais como os de subsunção e de acumulação retornam com maior riqueza
de significado.
Marx começa o capítulo VI com a revelação “simples” de que o verdadeiro objetivo do
capital é gerar mais valia. Nesse texto, Marx retoma e desenvolve a tese fundamental
(apresentada no Capítulo V sobre mais valia absoluta e relativa), de que a produção capitalista
evolui de ser uma produção de mercadorias para tornar-se uma produção de mais valia. O
capital procura aumentar a proporção de trabalho excedente sobre o trabalho socialmente
necessário realizado pelos trabalhadores. O sistema reproduz as relações que produzem mais
valia, isto é, o sistema se reproduz no que tem de essencial, através de suas modificações
formais. Nesse movimento, a mais valia é subsumida no novo capital que se forma, dando lugar
ao desenvolvimento das forças produtivas. A expansão do sistema socioprodutivo prossegue
168
através da absorção de novas tecnologias e de novas formas de consumo. O capital alcança sua
verdadeira identidade ao revelar-se como processo de valorização que envolve a produção de
valor em seu conjunto.
Ao mesmo tempo, nessa exposição Marx revela os movimentos progressivamente mais
complexos entre as transformações do capital em seu conjunto e as do valor de uso nele
incorporado. O trabalho vivo, atual, é condicionado, subjugado pelo capital que ele mesmo
formou, mas retém seu potencial criativo. “Uma parte do valor de uso com que o capital se apresenta
no interior do processo de produção é a própria capacidade viva de trabalho, mas uma capacidade de
trabalho de especificidade determinada, correspondente ao particular valor de uso dos meios de produção, e
é uma capacidade de trabalho impulsora, uma força de trabalho que, ao manifestar-se, se orienta para um
fim, que converte os meios de produção em momentos objetivos de sua atividade, fazendo-os passar, por
conseguinte da forma original do seu valor de uso para a nova forma do produto” (Marx, Capítulo VI
inédito de O Capital, pp.45).
169
A CIRCULAÇÃO: ESPAÇO–TEMPO E SITUAÇÃO
HISTÓRICA DO CAPITAL
“O problema, tal como se coloca diretamente, é este: como se repõe a base do produto anual o valor do
capital absorvido pela produção e como se entrelaça o movimento desta reposição com o consumo da mais
valia pelos capitalistas e o do salário pelos operários? Trata-se, portanto, em primeiro lugar, da reprodução
simples”. L.II. pp.351
Preliminares
Do ponto de vista do amadurecimento da obra, o Livro II é o arremate. Não só por ter sido
escrito por último e absorver o maior desenvolvimento conceitual, como por ser onde se
substitui uma teoria da acumulação individual por uma teoria da acumulação social. Além disso,
é onde Marx sintetiza e absorve o arsenal conceitual daqueles dos seus predecessores que
reconhece como mais importantes. O fato de ser a parte onde há textos menos desenvolvidos,
ou onde foi maior a intervenção de Engels não desmente a importância desse documento no
conjunto de O capital, fora do qual não pode ser adequadamente apreciado. Por isso, talvez seja a
parte menos compreendida daquela obra. Esse viés fica patente, por exemplo, na análise de Rosa
Luxemburgo que focaliza no Livro II, ressalta o caráter capitalista da reprodução e explora seus
170
desdobramentos e contradições, mas tende a separar suas teses da construção do conjunto. Na
composição de O capital a reprodução é o movimento de reincorporação produtiva de mais valia,
representando o poder de extrair e de reincorporar a mais valia. O movimento básico da
reprodução surge da relação orgânica entre o capital desembolsado e o capital aplicado,
resumindo as condições de aplicação de capital novo e as condições de uso do capital em sua
forma financeira. Por trás da mecânica do movimento da reprodução encontra-se toda a
problemática da composição do sistema produtivo. O significado da acumulação enquanto força
de controle social surge da identificação das inter-relações necessárias entre a reprodução
simples e a reprodução ampliada do capital.
Tal como acontece com o Livro I, o Livro II de O Capital divide-se em duas partes, em
que a primeira cobre os mecanismos de circulação integrados na produção e chega até a
explicação dos mecanismos que ligam a acumulação individual ao movimento geral de
acumulação, enquanto na segunda parte apresenta a explicação da reprodução simples e a
acumulação e reprodução em escala ampliada. Por isso, é nessa segunda parte que se encontra o
essencial da teoria da acumulação.
Os mecanismos da circulação de capital constituem uma referência geral dos modos
como a sociedade usa dinheiro e de como o modo de usar dinheiro torna-se um mecanismo de
diferenciação entre aqueles que podem controlar os tempos das suas aplicações de capital e
aqueles outros que dependem dos tempos que lhes são impostos pelo sistema de produção em
seu conjunto. O controle dos tempos é essencial na condução dos conteúdos técnicos do capital
em seu conjunto. A explicação principal da reprodução do capital encontra-se na reprodução
171
simples, onde se apresenta a engrenagem dos relacionamentos entre os segmentos industriais do
sistema produtivo.
A maioria dos estudos da obra de Marx concentra-se no material do Livro I e desvia do
material do Livro II, ou não chega até ele. Entretanto ali se encontra a ligação entre a produção
social de capital e as transformações do mercado. É a combinação da esfera da produção com a
da comercialização, onde se encontra a comercialização da produção capitalista. Nas palavras de
Marx, o processo cíclico do capital (neste caso, o modo como ele retorna ao processo produtivo),
desenvolve-se em três fases. Primeiro, o capitalista aparece no mercado de mercadorias e no
mercado de trabalho como comprador D=> M, transformando dinheiro em mercadorias e em
contratos de trabalho. Segundo, é o uso produtivo das mercadorias compradas, que é a realização
da produção. Na terceira fase, o capitalista volta como vendedor M => D. A fórmula geral
desses três movimentos é a seguinte
D – M... P ... M’ – D”
As linhas pontilhadas representam as interrupções do processo.
Ali está a mecânica do capital como tal e enquanto capital incorporado ao sistema de
produção. É uma análise necessária para entender o que vem depois, isto é, para entender, não
somente como, mas porque acontecem necessariamente aquelas conversões entre formas de
capital que sustentam o movimento geral de sua acumulação. O sentido de progressão inerente a
172
esse processo combina o relativo a alterações de composição do capital com o relativo a
alterações nas condições de mercado.
Grande parte dos pressupostos da produção de capital, relativos à possibilidade de venda
da produção, ou a sua “comerciabilidade”, surge nesta segunda parte, em que se observa o
relativo à realização da comercialização da produção, que surge ao considerar-se a circulação de
capital em seu sentido mais amplo. A manobra sutil dos capitalistas consiste em produzir aquilo
que será comprado, mesmo quando essa demanda ainda não existe, ou quando essa mercadoria
ainda não existe. Na construção de sua análise, Marx aceita o pressuposto de que há condições
técnicas e operacionais para que o valor gerado seja absorvido como capital, isto é, que não haja
frustração da formação de capital. Esse pressuposto – assumido explicitamente por ele –
constitui uma simplificação que retira desta parte da análise os elementos de incerteza da
reprodução, que logicamente não podem ser ignorados, principalmente pelo fato de que a
continuidade do sistema pressupõe aumento de escala de produção e de complexidade.
No entanto, há uma questão relativa à garantia ou à incerteza da venda dos produtos, que
não pode ser esquivada, sob pena de introduzir-se uma distorção fatal na compreensão do
capitalismo. Essencialmente, trata-se de que só se produz àquilo que pode ser vendido, pelo que
há um mecanismo em cadeia entre o que é comercializável e tudo aquilo que se trata de tornar
comercializável, influindo nas condições em que os compradores compram. O que se tornará
comercializável é objeto de publicidade e de manobras de intervenção institucional no mercado,
desde a busca de contratos de governo até manobras para condicionar os consumidores. Nada
mais longe da suposta soberania do consumidor a que se apegam os neoclássicos!
173
Neste capítulo deste ensaio apresentam-se comentários ao Livro II de O Capital,
ressaltando dois problemas fundamentais ali enfrentados, que são os de romper com o espaço –
tempo da sociedade pré–industrial, para trabalhar com a pluralidade de tempos do ambiente
industrial; e de retomar a articulação da esfera individual com a do coletivo, através do
movimento financeiro do capital. Mais claramente que antes, configuram-se, a distinção entre a
esfera do individual e do coletivo e sua combinação no contexto da progressão e do aumento de
complexidade do capital enquanto sistema115. Passar diretamente da síntese do Livro I à do
Livro II parece ser o caminho logicamente mais curto, entretanto, convém ressaltar as
interdependências entre o material ali exposto e o que consta do Livro III116.
No Livro II concentra-se um esforço de depuração conceitual, que obriga o leitor a
mover-se com os momentos de maior densidade conceitual do livro anterior, porque se vêm os
movimentos como tal do capital enquanto magnitude. A incorporação de mais valia revela-se
como o meio de modificação dos atributos do capital, cuja funcionalidade histórica revela-se
como um fundamento da própria valorização.
A visão de que o movimento do capital se desenvolve como uma espiral retoma-se de
outro modo, mostrando a expansão do capital como um movimento geral de hélice dupla, que
surge da combinação de um processo cíclico e de um processo periódico, que toma a forma de
reprodução do sistema produtivo. O que Marx denomina de processo cíclico é o conjunto dos
modos de capital dinheiro, capital produtivo e capital mercadoria que são parte da produção de
mercadorias. O processo periódico é o movimento resultante dos ajustes de componentes de
capital fixo e capital circulante, sobre períodos de produção das mercadorias e períodos de
115 A individualidade é algo
determinado pelas condições objetivas
em que as pessoas participam dos
mecanismos de coletividade, tais
como os modos como têm acesso ao
que podem produzir ou ao que podem
comprar.
116 Nesse sentido, melhor transcrever
algumas observações de Engels, que,
como codificador da forma final de O
Capital, conhecia melhor que
ninguém essas interdependências.
“Livro II, seção I. Deve-se ler
cuidadosamente o capítulo 1, que
tornará mais fácil a leitura dos
capítulos II e III. O capítulo IV
também deve ser lido com cuidado.
Os capítulos V e VI são fáceis e o
capítulo VII trata de coisas
acessórias Os capítulos VII a IX da
seção II são importantes, bem como o
X e o XI. Também o XII e o XIV.
Em troca, os capítulos XV,XVI e
XVII basta apenas ler. A seção III
contém uma magnífica exposição... do
ciclo total de mercadoria e dinheiro
na sociedade capitalista. A exposição
é magnífica quanto a conteúdo, mas
terrivelmente pesada quanto a
forma.....Eu deixaria a leitura dessa
seção para o final, depois de estudar o
Livro III. Friedrich Engels, Carta a
Victor Adler em O Capital.
174
trabalho inseridos nesses períodos de produção. A combinação do processo cíclico e do processo
periódico dá lugar à reprodução do capital e com ela, à reprodução do sistema produtivo.
Esse movimento é alimentado por relações de causalidade diferentes, mas
interdependentes. Esses dois movimentos são os que representam os tempos do capital na
forma mercadoria e na forma dinheiro. O movimento de hélice dupla está constituído do ciclo
do capital dinheiro e do ciclo do capital produtivo, que são antagônicos e complementares,
representando movimentos contrários que se complementam.
O movimento dessa segunda parte de O Capital é o movimento da circulação de capital -
entendida como parte da progressão do capital e não como circulação em geral, nem de um
capital invariante - vista em seu conjunto, que mais uma vez aparece em três movimentos, que
são os das metamorfoses do capital.
O ciclo do capital dinheiro é o movimento de valorização do dinheiro. Compreende três
fases em que (a) o capitalista vai ao mercado como comprador de mercadorias, (b) usa as
mercadorias compradas para produzir e (c) vende as mercadorias produzidas, manejando uma
quebra do processo, em que realiza a mais valia produzida. O ciclo do capital produtivo é o
movimento de reprodução do capital no sistema produtivo. Compreende a reprodução simples,
em que o capitalista absorve completamente a mais valia para seu consumo e o da reprodução
ampliada, em que uma parte da mais valia se reintegra ao sistema produtivo, ampliando e
modificando sua capacidade de produzir. O ciclo do capital mercadoria é o movimento do
capital transformado em capacidade de realizar novos empreendimentos.
175
Adiante, ao tratar dos ciclos do capital em seu conjunto, Marx de fato antecipa uma visão
de diferenciação entre os sucessivos movimentos cíclicos, em que cada ciclo corresponde a
diferentes composições de capital e de trabalho, representando situações não comparáveis de
complexidade e de inter-relação entre os componentes do sistema de produção. Os ciclos não são
“incidentes” da produção capitalista, senão conseqüências de contradições entre os objetivos dos
capitais individuais e o modo de funcionamento do sistema em seu conjunto. Adiante, no Livro
III, Marx apresentará um capítulo específico sobre a lei interna de transformação do capital.
Ao usar as mercadorias para produzir, o capitalista enfrenta-se com o fato de que os
trabalhadores compram para seu consumo, isto é, que o sistema precisa que eles realizem suas
compras. Desde aí, anuncia-se a diferença entre a produção de bens necessários e de bens
supérfluos. O progresso da tecnologia, que aparecerá na diminuição do tempo médio necessário
para produzir, torna-se um elemento de diferenciação entre os consumidores e os produtores,
naquilo em que os ganhos de tecnologia são apropriados pelos capitalistas enquanto os
trabalhadores consomem na medida de seu salário.
A visão das metamorfoses do capital em seu conjunto revela a diferença entre os modos
como os capitalistas e os trabalhadores chegam ao mercado, comprando para consumir ou
comprando para produzir, já que essas metamorfoses envolvem as mudanças progressivas de
composição do capital que se incorpora ao sistema produtivo.
A reprodução do sistema produtivo, isto é, a reposição das suas forças, depende do que
acontece com a mais valia. A reprodução do capital depende da circulação da mais-valia, que
176
muda de forma, acompanhando as mudanças de composição do capital em seu conjunto. Para
Marx, reprodução compreende a reposição dos meios de produção e da capacidade de usá-los.
Marx distingue duas situações básicas em que na primeira a mais valia é consumida
pelos capitalistas, que é a reprodução simples, e a segunda, em que a mais valia é reintegrada ao
sistema produtivo, que é a reprodução ampliada. A reprodução se faz mediante o conjunto dos
diversos movimentos de rotação, que revelam o tempo médio com que o sistema opera.
Entendemos que a aceleração dos componentes mais rápidos do sistema não
necessariamente implica em aceleração do sistema em seu conjunto, mas que a aceleração dos
componentes mais lentos, tais como os da produção rural, se propagam no sistema em seu
conjunto, modificando seu tempo médio. Essa pode ser uma linha importante de explicação do
processo de subdesenvolvimento, naquilo em que ele consiste na incapacitação dos
subdesenvolvidos para retransmitirem a velocidade de seus setores mais dinâmicos ao conjunto
de sua produção.
A parte relativa às metamorfoses do capital trata dos movimentos internos de
transformação do capital em geral no ambiente da produção industrial. A parte que trata da
rotação do capital explica a variedade das velocidades dos diversos capitais em suas aplicações.
Tem-se que entender que se trata da produção industrializada em seu conjunto, onde a produção
fabril é, simplesmente, a modalidade transitoriamente mais moderna do processo de produção.
Esses movimentos internos do capital explicam como se situam historicamente os custos
da circulação. Finalmente, a parte que trata da reprodução e da acumulação, expõe como essa
177
pluralidade de movimentos se reintegra num movimento conjunto do capital, que resulta no
movimento geral de acumulação com seu perfil cíclico.
No conjunto, no Livro II há duas partes, que podem ser caracterizadas, respectivamente,
como de análise dos circuitos da formação do capital produtivo na esfera dos capitais individuais
e de desenvolvimento da movimentação do capital na circulação em seu conjunto. Esta divisão
entrecruza com a outra anteriormente apresentada, deste mesmo livro em duas partes, porque a
circulação em seu conjunto é, justamente, como se explica a reprodução simples.
O tempo é fundamental no Livro II. É o tempo histórico dos acontecimentos, que nunca
se reproduz como foi antes e que encerra uma incerteza acerca de como terminará. É o tempo
que transcorrerá durante a depreciação do capital novo. É através de uma apropriação do tempo
no sistema produtivo, que se descobrem os circuitos do capital dinheiro, do capital produtivo e
do capital mercadoria estão regulados pelos tempos de rotação e de circulação, estabelecendo
como e quanto o capital pode captar mais valia. Trata-se de uma circulação historicamente
determinada, que se transforma ao incorporar atividades que operam com maior velocidade de
circulação, que terminam por alterar as velocidades com que funcionam as atividades
tradicionais.
Observe-se que Marx introduz a categoria composição na 3a seção, quando se dispõe a
integrar produção e circulação, mas que somente essa categoria amarra os elementos
apresentados na 1a seção. Entenda-se que as explicações dos ciclos do capital só se completam
quando se entende porque há diferentes velocidades do capital – que tendem a se tornarem mais
desiguais e diferentes umas das outras - o que só a composição explica.
178
DIAGRAMA 4
A circulação do capital
Rotação(tempos de rotação etempos de circulação
tempos e gastos de circulaçãoperíodo de trabalho etempo de produção
Reprodução(simples e ampliada)
Metamorfoses do capital(ciclos do capital-dinheiro,
do cpital produtivo e docapital-mercadoria)
Há, portanto, um problema de combinação das velocidades dos componentes do capital e
de velocidade diferenciada do capital, em suas diferentes formas operacionais. No Livro II,
mais que em qualquer outra parte de O Capital, desprega-se o perfil de economia dinâmica e de
análise dinâmica da economia, que fazem da análise de Marx um desenvolvimento crítico da
economia clássica em total oposição ao rumo seguido pelo marginalismo e pela análise estática.
Aqui, o sistema produtivo se reproduz essencialmente mediante mudanças de composição.
179
Observa-se, ainda, a diferença entre essa dinâmica baseada na progressão de um sistema
que se amplia e que se torna mais complexo, e a análise dinâmica de matriz marginalista, que
exprime um dinamismo de serialidade, sem entrar jamais em problemas de transformação de
estruturas. Identifica-se, assim, a diferença entre as análises de estruturas e de sistemas e as
análises de séries estatísticas.
As metamorfoses do capital
A noção de metamorfose, que é essencial na crítica da sociedade econômica empreendida por
Marx, abrange ao sistema em seu conjunto, bem como se aplica aos dois componentes desse
conjunto que são o capital e o trabalho, bem como se aplica ao sistema institucional. Observa-se
que, no desenvolvimento da análise apresentada em O Capital a metamorfose do capital é a
transformação do capital enquanto expressão econômica, mas carrega, potencialmente, uma
metamorfose política.
180
A engrenagem das metamorfoses do capital (industrial)
A primeira parte do Livro II de O Capital dedica-se às metamorfoses do capital, isto é, aos seus
movimentos internos – comparados com os movimentos externos, que são os de reprodução –
determinados pelas características próprias da produção industrial. Essas transformações
internas não acontecem por separado do ambiente em que o capital opera, pelo que são parte da
progressão de efeitos externos projetados pelo próprio capital. É um ponto demarcatório do
pensamento de Marx no contexto da Economia Política: contrapor-se à separação – tão comum
que passa despercebida – entre a análise do capital e a do mercado. A economia não histórica,
que sempre vê a forma atual como forma final do processo econômico, não se sente na obrigação
de trabalhar com alterações do modo de funcionamento do capital, seja integrado em empresas
ou fora delas. Por isso, mesmo quando analisa estruturas de mercado, refere-se a perfis
invariantes de comportamento dos diversos participantes. Não contempla alterações
progressivas dos comportamentos dos participantes.
Na seção sobre as metamorfoses do capital consideram-se, explicitamente,
comportamentos que são próprios do capital industrial, e que se transformam junto com a
concentração do capital em geral.
181
O ciclo do capital-dinheiro
Trata-se de extrair o movimento do capital na forma dinheiro, ou simplesmente da forma
dinheiro, do movimento do capital em seu conjunto, mediante a análise das formas que ele
assume. A nosso ver, a chave explicativa dessa análise é que Marx aqui se dispôs a realizar uma
tarefa equivalente à que Hegel fez com a Ciência da Lógica na exposição do processo de formação
da consciência, que foi, justamente, de separar o movimento do conceito da coisa do movimento
da coisa propriamente dita. O ciclo do capital dinheiro compreende três situações, que são o
ciclo do capital na forma dinheiro, o ciclo do capital na forma produtiva e o da realização da
mercadoria valorizada. O ciclo do capital produtivo conclui com a formação do fundo de
reserva, com que os capitalistas garantem sua capacidade de realizar despesas não determinadas
pelas condições atuais do processo de produção.
Marx começa por enunciar sinteticamente o movimento do capital em suas três fases já
apresentadas no Livro I do ponto de vista da produção do capital. Tais fases são as seguintes:
1. D => M . O capitalista compra mercadorias
2. O capitalista usa as mercadorias no processo produtivo
3. O capitalista volta ao mercado como vendedor M=> D.
Isto quer dizer que D=> M => D realmente é
D – M...P...M’ =>D’
182
onde dinheiro e mercadoria estão acrescentados de mais valia, isto é, estão valorizados.
Nesse ponto Marx declara-se interessado em explorar o mecanismo de conversão de dinheiro
em mercadoria + mais valia. Ora, para isso é preciso explicitar os momentos em que entra a
força de trabalho, ou seja, ainda, é preciso separar os movimentos de valorização dos de
comercialização. De fato, o sistema avança mediante as alterações da esfera da comercialização,
que facultam aos capitalistas a possibilidade de fazer cálculos de rentabilidade por antecipação.
Verifica-se que os capitalistas podem trabalhar com perspectivas objetivas de
efetivização de demanda, e não apenas com condições atuais de demanda efetiva. Certamente
este ponto terá que ser explorado, para superar a contradição aparente – que está no centro da
teoria de Keynes - entre condições históricas de distribuição da renda e condições subjetivas de
decisão dos capitalistas.
Sem avisar ao leitor, Marx entra a explicar a parte que omitiu, que é: ( M => P ),
dizendo que as mercadorias que o capital comprou (para produzir) resolvem-se em T (trabalho)
e Mp (meios de produção). Isso quer dizer que
T
D => M
Mp
Ou
183
D -> M (T, Mp),
Já que o capital só faz isso para voltar ao mercado de mercadorias.
Significa que há um mercado de trabalho e um mercado de mercadorias, que tem
aspectos quantitativos e qualitativos, em que os aspectos qualitativos levam a distinguir
trabalho necessário e trabalho excedente. No entanto, é um ponto onde o argumento de Marx
exige uma explicação adicional, qual seja de que o capital – P – na representação simbólica de
Marx representa as possibilidades de usos alternativos do capital, segundo as opções técnicas
que lhe são possíveis em mercado. Diremos que o capital representado por P não é o capital
valor em geral, senão é a representação das possibilidades tecnológicas incorporadas ao longo da
história do sistema de produção. P é o capital historicamente concreto.
De qualquer modo, P representa certas margens de flexibilidade, que se comparam com a
forma financeira que é o capital dinheiro117. Este, em princípio, tem toda flexibilidade que o
sistema enseja. Mas, na prática depende da mobilidade dos capitalistas individuais.
Essa mobilidade do capital dinheiro denota uma circulação geral de mercadorias, bem
como registra a presença de ciclos independentes do capital em sua forma dinheiro e em sua
forma material, que é quando ele é, efetivamente, capital produtivo. O dinheiro será, portanto,
a forma como o capital se desembolsa, que é o fundamento da função do dinheiro como meio de
pagamento.
D M T
Mp
117 A flexibilidade do capital dinheiro
depende da conversibilidade da
moeda e do acesso a adquirir os
equipamentos mundialmente
disponíveis.
184
onde a circulação na sociedade em geral se decompõe em D => Mp e
D => T, quando compra meios de produção e quando compra trabalho.
Do ponto de vista do capitalista, a fórmula D => T exprime a compra de trabalho gerador
de mais valia. Mas D => indica uma opção de um modo específico de obter mais valia, enquanto
o capital dinheiro, por definição, funciona com a equivalência geral das mercadorias. Ao
materializar–se em capital produtivo, o capital ganha acesso a uma condição com que pode ter
lucro. Para o trabalhador os meios de produção são necessários para que ele possa trabalhar, mas
são propriedade alheia. “No momento em que ambas as partes se enfrentam no ato D => T, ou T =>D
na perspectiva do trabalhador, existe já e se dá por suposta uma relação de classe entre capitalista e
trabalhador assalariado” (L. II, pp.32) 118
O movimento inverso é o ciclo do capital na forma produtiva, quando ele sai da
circulação monetária e entra no tempo do chamado consumo produtivo, que é seu desgaste na
produção. Tal uso acontece mediante a já conhecida compra de meios de produção.
Comprova-se que são dois circuitos diferentes. Ao imobilizar o capital, o capitalista
passa a precisar de dinheiro119. A sustentação da posição do capitalista frente às alterações do
mercado exige que ele disponha, constantemente, de dinheiro, inclusive para manter o fluxo de
pagamento aos trabalhadores, que na verdade está ligado ao pagamento de Mp e à essência da
produção. O produto que gera está carregado de mais valia, que deve ser realizada, mediante a
venda do produto no mercado. Resumindo, o dinheiro só pode funcionar como capital quando é
usado para comprar trabalho; e isso depende de pré-condições, tal como só pode ser usado para
118 Neste ponto a relação de classe
aparece como decorrência pura e
simples da relação capitalista
imediata. No entanto, o essencial é a
desigualdade desse relacionamento,
em que “as condições de realização do
trabalho estão separadas de seu
proprietário” (L. II, pp. 33). Marx
insiste em que não interessa saber
como se deu a separação entre o
trabalhador e a capacidade de
realizar o trabalho, mas acaba por
admitir que a relação desigual apenas
se explícita, mas que já estava latente
na relação comercial. Veremos,
adiante, como este último ponto é
essencial, para trabalhar com a
formação das relações de classe no
âmbito das sociedades mercantis
escravistas exportadoras. Reduzir as
relações de classe à atualidade de sua
forma industrial, significa ignorar,
deliberadamente, a continuidade dos
processos sociais sob as formas de
organização política.
119 Essa necessidade de dinheiro foi,
depois, trabalhada por Knut
Wicksell, que nela viu o mecanismo
objetivo de dinamismo das empresas,
contrastando com a versão
subjetivista de Joseph Schumpeter,
que a atribuiu à criatividade de
185
comprar escravos se há escravidão antes desse ato específico de compra. Esse exemplo do
próprio Marx levanta, entretanto, uma questão de razão prática. Se alguém, incidentalmente,
por um ato criminoso esporádico ou por desespero de penúria, vende uma criança a alguém em
melhores condições para cuidar dela, isso significa que se instala um sistema de escravidão? Os
fatos esporádicos denotam sempre a presença de um sistema?
O segundo movimento da análise das metamorfoses do capital ocupa-se do capital em
sua forma produtiva. Nessa parte, especificamente, é preciso não perder de vista que se trata da
produção. Ora, o capital torna-se produtivo quando está investido das propriedades técnicas
incorporadas nas mercadorias, mas, lembramos, não são mercadorias isoladas, senão
mercadorias constitutivas de capacidade instalada de produção. O ciclo do capital produtivo é o
momento em que o capital se cristaliza em certa forma técnica, numa fábrica de bicicletas ou
numa padaria. Não só numa fábrica de bicicletas, mas numa determinada fábrica capaz de
produzir determinados tipos de bicicletas.
Finalmente, considera-se a função do capital-mercadoria valorizado.
A observação conclusiva dessa primeira parte é que o capital investimento na forma
mercadorias valorizadas está investido das propriedades técnicas desse conjunto específico de
mercadorias. Noutras palavras, o capital pode fazer o que está tecnicamente incorporado nas
mercadorias de que ele se compõe, ou seja, tornou-se investimento. Nessas condições, há um
problema de compatibilidade da composição do capital com a composição da formação de
capital, que se apresenta a cada capitalista individual como um problema de desafio na
incorporação de novas tecnologias no sistema de produção já instalado.
empreendedores. É fundamental
ressaltar que a análise de Marx nesse
aspecto é conceitualmente muito mais
desenvolvida que a desses autores
posteriores.
186
O ciclo do capital produtivo
O ciclo do capital produtivo desenvolve-se nos níveis de reprodução simples e no da
reprodução ampliada, segundo se vêm as esferas de circulação. A reprodução simples é quando a
mais valia se gasta integralmente com renda.
No ponto em que considera os destinos que são dados às mercadorias valorizadas – M’ –
(L.II, pp. 58), Marx introduz uma consideração sobre os usos dessas mercadorias, em que sua
reintrodução no processo produtivo previne que se tornem simples dinheiro aritmético. Tal
observação envolve a possibilidade do contrário, isto é, de como sua não reincorporação impede
a obstaculiza a reprodução do sistema. Esse é, a nosso ver, o ponto de partida da análise do
mecanismo econômico do colonialismo, baseado na filtração de recursos do sistema para o
exterior.
Na prática, tanto pode acontecer que a mais valia se gaste integralmente, como que se
capitalize integralmente; e que sua capitalização se realize no sistema ou que passe a integrar
outros sistemas. A grande questão que se coloca, para o futuro do sistema e dos capitalistas
específicos, é a decisão acerca dos destinos que serão dados à mais-valia.
É preciso ter claro que o ciclo do capital produtivo está tecnicamente ancorado na
composição do capital, segundo ela indica as tecnologias utilizadas e a competência em seu uso.
Numa visão da pluralidade de linhas de atividade, entende-se que o ciclo do capital produtivo
187
em seu conjunto é a integral dos seus diversos ciclos e do modo como eles dependem uns dos
outros.
Gastos de circulação
O capítulo VI do Livro II de O Capital trata dos custos representados pelo tempo despendido
nas operações mercantis de conversão de mercadoria em dinheiro e de dinheiro em mercadoria.
São as operações que são dadas por supostas na igualdade keynesiana P (poupança) =
I(investimento), bem como são campos de incerteza e de custos sociais que parcialmente
tratados na chamada economia das transações de hoje em dia. Marx trata desse campo temático
de modo muito mais abrangente, primeiro, porque o coloca como parte da reprodução do
sistema produtivo em seu conjunto e não só como um problema incidental, como faz a teoria
neoclássica. Segundo, porque revela as áreas de incerteza subjacentes nessas duas etapas
mercantis, que foram ignoradas pela teoria keynesiana. Observe-se que isso compreende os
custos ativos, incorridos pelas operações realizadas, e os custos passivos, decorrentes de tempo
perdido na manutenção do capital.
A questão levantada por Marx refere-se a uma tendência inerente à produção capitalista,
de um aumento dos custos de circulação. “À medida que aumenta a escala de produção e que se
acentua a força produtiva do trabalho, através da cooperação, da divisão do trabalho, da maquinaria etc.,
188
cresce a massa das matérias primas, das matérias auxiliares etc., absorvidas pelo processo diário de
reprodução. Esses elementos têm que estar disponíveis no lugar da produção” (L.II, pp.126).
Tempo de rotação
Há uma questão essencial relativa ao papel do tempo na movimentação de dinheiro. Como
influi o tempo de rotação na magnitude do capital desembolsado. Na análise desenvolvida no
Livro II esse fenômeno surge desde dentro dos tempos tecnicamente previstos no movimento
produtivo do capital. Mas ao manejar seus próprios argumentos relativos à relação orgânica
entre os períodos do capital dinheiro e do capital mercadoria, vemos que a ordem do tempo na
produção é externa a qualqujer solução técnica específica; e se refere ao ordenamento
comandado pela acumulação, que é a ordem da gestão da mais valia.
Na produção industrializada ampliam-se as diferenças de velocidade de rotação do
capital entre atividades, segundo elas estão reguladas por tempos de produção externos aos
processos produtivos, ou podem ser reorganizadas, segundo os tempos de produção são
controlados e ainda, segundo se trata de processos de produção cujos produtos finais podem ser
realizados em menos tempo. O tempo de rotação determina o relacionamento dos capitalistas
com o sistema financeiro.
189
O tempo de rotação, por extensão, significa o modo como cada capitalista consegue usar
a velocidade do seu capital, como parte de sua formação de capital. Podemos adiantar que um
diferencial de velocidade a seu favor é uma vantagem em relação com os juros médios do
mercado; e que um diferencial negativo resulta num custo, ou numa transferência de valor aos
bancos.
Capital fixo e capital circulante
O capital aparece sob inúmeras formas, que ao mesmo tempo assinalam o modo como ele
participa da produção. Em sua materialidade o capital aparece como capital fixo e como capital
circulante. O capital cujas propriedades são invariantes é o capital fixo, enquanto o que muda de
forma na produção é o circulante. Na prática, o capital fixo são os conjuntos de equipamentos e
de instalações, enquanto o capital circulante são as matérias primas e as secundárias. A relação
orgânica entre o capital fixo e o capital circulante evolui de determinados modos e formas
segundo se desenvolvem os meios de produção. A operação do capital materialmente
constituído estabelece necessidades de desembolso de capital. Essa relação entre os desembolsos
de dinheiro e as combinações de capital fixo e de capital financeiro é o mecanismo interno da
reprodução simples do capital.
190
Rotação global do capital desembolsado e
determinação de ciclos de rotação do capital em geral
A rotação geral do capital desembolsado não é somente a rotação média do conjunto das
atividades de cada sistema de produção em particular, senão que para cada capitalista é essa
rotação afetada pelo desempenho do sistema financeiro, já que os efeitos do sistema financeiro
são diferentes para os diversos capitalistas. Vale dizer que a rotação geral do capital não é um
movimento uniforme do sistema, senão é uma determinante do modo como opera cada um dos
diversos capitalistas.
Tempo de trabalho e período de produção
O tempo utilizado trabalhando é sempre um tempo de produção, mas o período de produção
envolve outros componentes, tais como maturação da produção, que prolongam o tempo
necessário para a conclusão do produto. Tal extensão do período de produção, em todo caso,
significa imobilização do capital constante, portanto, traduz-se numa restrição para acelerar o
uso do capital variável, em outras palavras, restringe a produtividade do trabalho. Diremos que
o tempo de trabalho efetivo será sempre afetado pela presença de novos empreendimentos e
191
pelos tempos que os capitalistas absorvem para encaminhar novos empreendimentos. No
exemplo dado pelo próprio Marx, o período de produção do trigo de inverno pode ser de oito
meses, dos quais somente uma parte consiste em tempo de trabalho, já que uma parte dos oito
meses corresponde ao tempo de maturação do cereal, antes que se possa intervir no processo de
colheita.
Circulação de mais-valia
Logicamente, os tempos absorvidos em períodos de produção limitam a velocidade com que o
capital pode fazer circular a mais valia, portanto, são limitações reais da formação de lucros dos
capitalistas. A circulação da mais valia é afetada pelo crédito, que interfere nas possibilidades
dos capitalistas individuais de transformarem a mais valia em capital produtivo, isto é, de
ampliar sua capacidade de acumularem. Marx acompanha a circulação de mais valia na esfera da
reprodução simples e na da reprodução ampliada, isto é, examina o papel da circulação de mais
valia para a reposição do capital em sua forma atual e em sua progressão de mudança de forma.
É preciso ter em conta que essa investigação não pode ser confundida com a análise dos
mecanismos da reprodução simples e da ampliada, que concluem o circuito da análise
desenvolvida no Livro II. A circulação de mais valia é um dado das condições operacionais do
192
capital em geral, enquanto a reprodução é uma situação do sistema socioprodutivo concreto do
capital.
A reprodução e circulação do capital social
em seu conjunto
Antecedentes e preliminares
Nesta parte Marx retoma a perspectiva da totalidade do processo em seu caráter orgânico
propriamente dito, isto é, da sociedade econômica como um organismo em expansão. A esfera
dos capitais individuais e a das mercadorias são dois aspectos do movimento do capital, em que
essas individualidades são fugazes e representam formas precárias. “Os ciclos dos capitais
individuais se entrelaçam uns com os outros, se pressupõem e condicionam mutuamente, e esse
entrelaçamento é, precisamente, o que forma a dinâmica do capital social em seu conjunto” (L.II. pp. 316).
Nessa seção III Marx dispõe-se a explicar o processo de circulação do capital social em
seu conjunto. Para entendê-lo, é preciso expor o processo geral de circulação, com tudo que ele
implica em termos de operacionalidade do capital dinheiro.
193
Um primeiro ponto crítico é a necessidade de capital dinheiro das empresas, ligada à
duração do período de trabalho, que é o financiamento da produção, compreendendo o
financiamento de risco. O nível de desenvolvimento do sistema produtivo, compreendendo a
composição do capital, indica uma necessidade irredutível de capital, que é uma restrição
“técnica” da reprodução do sistema de produção120.
A questão geral da reprodução do capital
A questão geral da reprodução do capital compreende a reprodução simples e a reprodução
ampliada. A reprodução simples pressupõe que as relações entre os setores de bens de consumo e
de bens de capital não mudam, porque não há alteração significativa do capital constante.
Tecnicamente, essa falta de alterações do capital constante – maquinaria etc. – impede que os
eventuais investimentos tenham um efeito global de modificarem o sistema. A segunda parte
do Livro II está ocupada pela teoria da reprodução do capital, em que a acumulação se torna
visível na reprodução ampliada. Marx nos diz que a reprodução simples não é uma simples
situação hipotética, mas reconhece que a produção capitalista não pode prescindir de
modificações técnicas, que terminam por caracterizar a reprodução ampliada.
Para expor a engrenagem da reprodução Marx, recorre ao seu famoso modelo de dois
setores – o de produção para consumo e o da produção para capital – onde os usos de trabalho e
120 Encontra-se aqui um ponto
fundamental da análise do
desenvolvimento e do
subdesenvolvimento, que se tornou
parte essencial do pensamento latino-
americano sobre planejamento.
Trata-se da distinção entre o
financiamento estruturalmente
necessário para a reprodução do
sistema produtivo em sua composição
atual, o financiamento
estruturalmente necessário para
alterar essa estrutura produtiva, e o
financiamento dos programas
específicos de investimento
destinados a desempenhar esse papel.
194
de meios de produção estão regulados pelas relações técnicas entre essas duas esferas da
produção. Veremos, entretanto, que o essencial é que mudam as condições de uso de trabalho na
reprodução ampliada, porque ali é onde se manifestam as pressões do ciclo econômico.
A questão financeira está submersa nesse modelo, porque na reprodução ampliada há
novos usos de capital, que desencadeiam nova demanda de dinheiro; e porque desse modo o
sistema produtivo passa a demandar capital novo a um ritmo mais acelerado que o do desgaste
do capital constante. Esse é o principal fundamento da teoria dos ciclos em Marx, que vai
aparecer adiante (Livro III) como a lei geral da tendência à queda da taxa de lucro. Nesta parte,
portanto, o principal problema que se enfrenta é o da articulação entre o Departamento I e o
Departamento II, já que essa articulação vista na perspectiva da reprodução simples é uma
relação invariante, e vista na perspectiva da reprodução ampliada, é uma relação que muda
constantemente.
Voltando ao modo de análise escolhido por Marx, cabe perguntar por que ele deu tanta
ênfase à análise da reprodução simples, quando o modo de operar do capitalismo é a reprodução
ampliada? Entendemos que a resposta é que a análise da reprodução simples é onde se coloca a
engrenagem básica da reposição do capital e é a instância em que de fato opera uma grande parte
do capital. Grande parte dos capitalistas consome integralmente ou em parte a mais valia que
capta. O capitalismo também é autofágico. Por isso, somente a análise da reprodução simples
pode ajudar a desvendar o processo de seleção entre capitalistas, que se estende desde o pequeno
ao grande capital.
195
A reprodução simples
Esta é a parte mais complexa do Livro II, onde Marx coloca a questão geral da reposição do
valor junto com a reposição dos meios materiais de produção. Logo, diz que se trata de “como se
repõe a base do produto anual sobre o valor do capital absorvido na produção e como se
entrelaça o movimento dessa reposição com o consumo de mais-valia” ( L II,pp.351). Ora, isso
tem tudo a ver com o modo como os capitalistas se apropriam de tecnologia, que é o mecanismo
que permite que o volume de trocas se mantenha com preços menores. Para isso, é preciso que a
demanda se mantenha. Por isso, torna-se logicamente necessário penetrar no mecanismo da
formação da demanda, que é o que Marx passa a fazer com seu modelo de dois setores da
produção social: o setor I produtor de meios de produção e o setor II produtor de meios de
consumo. A idéia básica é que em cada um desses dois grandes setores as diversas atividades
formam um conjunto, pelo qual se passa a ver a organização produtiva da sociedade em seu
conjunto. Diremos que a macroeconomia surge de condições produtivas concretas, ao contrário
da generalização macroeconômica abstrata de Keynes.
Em cada um dos dois setores há um componente de capital constante e outro de capital
variável e o foco da análise que se segue está nas interdependências orgânicas entre os dois.
A análise da relação entre os mecanismos dos setores está em que uma parte do capital
constante é absorvida na produção, mas que uma parte do capital fixo passa para os produtos,
isto é, o desgaste de capital para produzir passa como valor para o produto realizado. No
196
entanto, no sistema em seu conjunto, a reprodução funciona através da captação dos resultados
da produção, que se dá na captação de mais valia e no pagamento de salários, que é como se
realiza o poder de compra com que se vendem os produtos finais. O sistema funciona, portanto,
sobre as condições como se distribuem os salários entre os setores da produção.
Veremos adiante que o setor II encerra um outro mecanismo de diferenciação do
conjunto, que se dá através da diversificação do consumo, com a introdução de artigos de luxo.
Esses artigos modificam a composição do consumo por classes sociais e por estratos de classe.
Absorvendo essas mudanças, a análise de Marx volta-se para a circulação de dinheiro no
sistema combinado, levantando a contradição fundamental entre as necessidades do sistema de
se reproduzir preservando as condições de captação de mais valia e o imperativo de realizar esse
objetivo controlando a renovação tecnológica.
O que determina a reprodução simples é a circunstância de que o capitalista absorve mais
valia para seu consumo em parte em seu conjunto. O produto inclui as partes que repõem o
capital, bem como o fundo de consumo – consumo intermediário, na linguagem da
contabilidade social de hoje. A reprodução simples acontece com um quadro invariante de
valores objetivos dos meios de produção. As bases materiais das relações entre capitalistas não
mudam.
Na descrição da reprodução simples, Marx trabalha com seu conhecido modelo de dois
setores, em que o setor I corresponde aos meios de produção e o setor II corresponde aos meios
de consumo, sendo que cada um deles se compõe de capital constante e capital variável. A
reprodução simples pressupõe que as relações entre os setores produtores de bens de consumo e
197
os de bens de capital não mudam, porque não há alterações significativas do capital constante.
Tecnicamente, essa falta de alterações do capital constante – maquinaria, etc. – impede que os
eventuais investimentos tenham um efeito final de alteração do sistema121.
Esse modelo de dois setores deve ser lido à luz do material apresentado nas seções
anteriores, quer dizer, que incorpora o relativo à articulação entre produção e circulação. Daí,
Marx trabalha com dois planos de análise da circulação, que são os da circulação entre os setores
e dentro de cada setor. A circulação entre os setores contempla as interdependências técnicas,
constituindo a base de que partiu a análise de Fel’dman e depois a de Leontief.
Mas a circulação dentro de cada setor envolve uma distinção entre consumo necessário e
consumo suntuário, que não poderia ser absorvida na estrutura da análise marginalista. No
esquema de Marx não é uma distinção caprichosa, porque se refere aos meios de consumo
necessários à reprodução dos trabalhadores, assim como envolve uma definição de quais
elementos do consumo não alteram a capacidade de produzir.
Acumulação e reprodução em escala ampliada
Uma vez exposto o modo de funcionamento do modelo de dois setores. Marx extrai suas
conseqüências dinâmicas, apontando seus resultados cumulativos, no que passa a ser a
acumulação de capital em geral, a partir do acréscimo de capital constante em cada um dos dois
121 Em seus estudos sobre a
acumulação de capital, Rosa
Luxemburgo focalizou nos
mecanismos da reprodução, a
nosso ver, mostrando
contradições da reprodução
simples que a tornam apenas
um caso especial da
reprodução ampliada. Essa
não é a proposta de Marx, que
atribui um papel próprio à
reprodução simples, que é o
ambiente onde se trabalha
com um referencial de
tecnologia sem mudanças nas
tecnologias básicas, isto é,
naquelas de maior impacto
indireto no sistema produtivo.
198
setores; e suas perdas, ou esterilizações, no entesouramento. O movimento de acumular se
revela como um resultado do agir da variedade dos capitalistas. A acumulação brota dos
movimentos dos capitais, no sentido em que eles tendem a fundir-se no aumento da capacidade
de acumular do sistema de produção organizado. Mas ela não é um movimento linear: é um
movimento que se alimenta da retirada de dinheiro do processo produtivo num movimento
geral de controle da mais valia.
Como conclusão provisória, vemos que no nível do desenvolvimento da argumentação
que se encontra no Livro II a reprodução ampliada, isto é, a acumulação aparece como um
movimento interno de cada um dos dois departamentos em que está organizada a produção. No
entanto, o movimento geral de acumulação transcende as formas específicas de organização da
produção material, colocando-se ao nível do movimento conjunto do capital, que compreende a
forma financeira. Além disso, a reprodução ampliada envolve as alterações institucionais e os
elementos de incerteza inerentes ao movimento do sistema, que podem ser provisoriamente
ignorados enquanto se trata de um plano de tecnologias invariáveis, mas que não pode ser
ignorado quando se trata de juntar as modificações quantitativas com alterações qualitativas do
sistema produtivo. Por isso, o significado pleno da acumulação só aparecerá no Livro III,
quando se tenha concluído a análise das conversões do capital entre suas formas operacionais.
199
O PROCESSO DA PRODUÇÃO CAPITALISTA
EM SEU CONJUNTO
A formação do capital fictício chama-se capitalização Marx, L.III., pp.439
Preliminares
O Livro III trata da acumulação de capital como tal e em seu sentido mais amplo. Esse
processo acontece através da acumulação de capital dinheiro, que permite realizar as mudanças
de composição “descobrir e expor as formas concretas que brotam do processo do movimento do capital
considerado como um todo”. Nessa exposição encontra-se uma combinação de elementos de micro
e de macroeconomia. A acumulação começa no plano individual através da diferença entre o
custo do investimento e o custo da produção, onde uma parte do custo de produção é absorvido
pelos trabalhadores.
200
Uma primeira reflexão sobre o tema
problematizado no Livro III de O Capital.
A questão central que se coloca no Livro III refere-se aos usos dos diversos capitais, como parte
da engrenagem comportamental incorporada no sistema produtivo e não como uma mera
coleção de eventos individuais de uso de capitais disponíveis que poderiam ser usados de outros
modos. A noção de alternativas de usos dos capitais ganha outro significado quando é vista
como uma progressão de alternativas condicionadas correspondendo a condições específicas da
composição do capital em setores de produção. Os capitais individuais são parte de um
movimento geral do sistema e os investimentos específicos se situam nesse conjunto. Isso
significa que o emprego dos capitais depende das condições em que operam os capitalistas. Não
se pode esperar que agricultores pouco informados participem de investimentos de alta
tecnologia, como tampouco se pode esperar que seja igualmente fácil para todos diversificar suas
linhas de atividade. Mesmo para as grandes empresas, a diversificação é sempre um teste
decisivo, quando se compara sua competência para realizar tarefas já definidas, com sua
competência para compreender o mercado em seu conjunto e trabalhar com cenários do futuro.
No essencial, é a questão levantada por Adam Smith: todos capitalistas decidem o tempo
todo sobre a totalidade de seu capital, mas que está modificada pela compreensão de Marx do
sistema produtivo em transformação. Mas, diremos, com diferente capacidade de decidir. Por
201
isso, a produção capitalista depende do que os capitalistas conseguem fazer com seu capital. Há
nisso um aspecto de capacidade de cada capitalista e de incerteza do ambiente em que ele opera.
A incerteza está impregnada na continuidade da formação de capital. Esse problema está tratado
por Marx no trajeto da análise que vai dos usos do capital constante à formação da taxa de lucro,
com seu subseqüente nivelamento e com a tendência geral do sistema à queda da taxa de lucro.
Nesse movimento, é da necessidade dos capitalistas de se protegerem dos riscos de cada
empreendimento, retirando sempre uma parte de seu capital na forma de dinheiro, que vai se
alimentar o capital bancário, gerando um circuito de financiamento que não é mais parte da
circulação no interior das empresas. Esse capital busca taxas de lucro superiores às que pode
obter no ciclo produtivo. Nesse ponto, há um aumento de velocidade da circulação do dinheiro
no sistema produtivo em seu conjunto.
Daí, diremos, aumenta a incerteza do sistema, quanto à capacidade dos capitalistas para
comandarem efetivamente o emprego de seus capitais. Seguindo a visão de Marx, percebe-se
que esse processo não pode acontecer de modo suave, ou sem que alguns capitalistas sejam
prejudicados. A reprodução do sistema produtivo requer que seus integrantes estejam à altura de
sua complexidade, assim como o exercício das capacidades dos capitalistas depende de que o
sistema produtivo ganhe em complexidade o suficiente para absorver o capital acumulado. Mais
uma vez, seguindo as linhas de raciocínio de Marx sobre a reprodução simples – Livro II –
vemos que a transubstanciação do capital dinheiro valorizado em capital a juros depende de que
o sistema produtivo em seu conjunto ofereça oportunidades de lucro compatíveis com a
remuneração de todos os capitais anteriores e todas as condições de trabalho. Ora, essas
202
oportunidades de gerar lucro diminuem do mesmo modo como diminuem as oportunidades de
construir usinas hidrelétricas,
É a imprevisibilidade inerente ao sistema, que se configura quando se realizam
substituições entre equipamentos122. Não há uma continuidade necessária entre as aplicações
anteriores e as futuras, senão que as aplicações futuras são o campo em que se realizam as
diferenciações entre os diferentes capitalistas no relativo à sua capacidade de conduzir a
reprodução de seu capital. O ciclo não será, portanto, somente o ciclo gerado pela
superprodução, mas também resultará dessa decalagem entre a forma futura possível e a forma
anterior do capital. A capacidade dos capitalistas para modificarem a composição de suas
aplicações é um aspecto da própria transformação do sistema produtivo, em que se incluem
diferenciações entre o grande e o pequeno capital.
A teoria da exploração e a apropriação
da reprodução ampliada do capital
O grande tema que se desenvolve no Livro III de O Capital é a teoria da exploração, que
aparece através da exposição das formas concretas de estruturação e de transformação do capital
e que é levada a suas contradições, quando se converte em tendência decrescente do lucro. Para
122 Observe-se que na explicação da
formação de movimentos cíclicos de
média duração a substituição de
equipamentos indica os momentos em
que os capitais têm que optar entre
diferentes formas de organização da
produção.
203
realizar a exploração o capital tem que envolver trabalhadores. A tendência à queda da taxa de
lucro é a contradição da exploração.
Como a exploração é o modo de realimentação do capital, a explicação da exploração
ataca o movimento interno do capital, no modo como ele se realiza na organização social da
produção. O Livro III cobre a teoria da exploração e estabelece que a lógica irracional do capital
– a acumulação – só pode se realizar através da exploração, que é a explicação social da captação
de mais valia. A teoria da exploração compreende três partes, em que a primeira se estende da
primeira à terceira seção do Livro III, isto é, vai da explicação da taxa de mais valia até a
identificação da lei da tendência decrescente da taxa de lucro, com suas contra tendências. A
segunda compreende o desenvolvimento do capital na esfera do comércio e da comercialização
do dinheiro, onde se vêm aspectos concretos da circulação, portanto, como uma abordagem
diferente e complementar daquela do Livro II. A terceira contempla a mobilidade do capital
financeiro e seu poder de participar de diferentes setores e de combinar formas de produção e
chega até a renda da terra. As condições históricas da exploração dependem, segundo Marx,
portanto, das condições de desenvolvimento do sistema capitalista de produção, nisso incluídas
a presença de formas pretéritas de produção e a presença de condições específicas de articulação
entre o novo e o velho.
Em todo esse movimento há duas referências que se combinam, que são a relação entre a
taxa de mais valia e a taxa de lucro e a relação entre a composição do capital e a taxa de mais
valia. A composição do capital - que foi identificada no Livro I como expressão da tecnificação
do capital – reaparece aqui como uma categoria do capital em seu conjunto, que situa e
204
diferencia as sucessivas situações de organização da produção. A exploração se realiza mediante
situações concretas de controle da produtividade dos trabalhadores, que é uma condição que se
desenvolve em certas condições históricas de composição do capital.
Para alcançar esse objetivo principal do projeto do livro em seu conjunto, nessa parte do
trabalho há três grandes movimentos, que são a determinação da taxa média de lucro, chegando
à identificação da tendência à queda da taxa de lucro; as conversões entre formas de capital,
chegando até a renda extraordinária; e a passagem da renda extraordinária para a renda da terra.
Para Marx o que interessa explicar da renda da terra não é uma renda originária da terra, senão a
renda da terra que surge da expansão do capital no campo, com suas conseqüências de substituir
as antigas relações de produção por relações capitalistas, isto é, substituir camponeses por
trabalhadores assalariados. Neste estudo trata-se da renda da terra em outro capitulo específico.
Somente a partir dessa observação central é possível colocar o problema fundamental da
apropriação dos resultados da reprodução ampliada do capital, que surge da mobilidade do
grande capital de alta tecnologia, que já incorporou as formas mais avançadas de capital
financeiro e que desloca a esfera da circulação para o nível das contradições do capital
concentrado.
O problema levantado por Rosa Luxemburg relativo à apropriação da mais valia gerada
na reprodução ampliada, que seria um ponto não superado por Marx123, desaparece, quando se vê
que a esfera da circulação se reorganiza, conduzida pela lógica da concentração e já não só pela
da acumulação. Por isso, entendemos que é no âmbito da movimentação do grande capital
123 Rosa Luxemburg, A acumulação
de capital, São Paulo, Nova
Cultural, 1985.
205
concentrado que surgem novos delineamentos de exploração, que permeiam o sistema produtivo
até as suas formas mais simples, de pequeno capital e de baixa tecnologia.
A arquitetura temática do Livro III
Diz Marx, (pp.45) que “(...) o processo de produção capitalista em seu conjunto representa a unidade
do processo de produção e do processo de circulação. Aqui no Livro III não se trata de formular reflexões
gerais acerca dessa unidade, são, pelo contrário, de descobrir e expor as formas concretas que brotam do
processo de movimento do capital considerado como um todo”.
Em sua arquitetura, o Livro III mostra como se formam as rendas do capital, como essa
formação de renda resulta numa tendência geral e como, ao mesmo tempo, ela reverte nas
diversas formas de ativos rentáveis, tanto na esfera do capital a juros como na da renda da terra,
configurando a complexidade do mercado de capitais na produção industrial. Nesse percurso,
Marx apresenta uma teoria do lucro, uma teoria da formação do capital bancário e uma teoria do
modo de aplicação do capital. Observamos que nas Teorias da Mais Valia, vol. II, Marx
desenvolveu comentários minuciosos às teorias de Adam Smith e David Ricardo, sendo que no
relativo ao primeiro há uma observação que o situa acima de Ricardo, contrariando a opinião
difundida de que Marx teria Ricardo como seu antecessor privilegiado.
206
Nessa análise das rendas do capital, distinguimos três movimentos, que são os de
explicar a formação e as transformações do lucro até sua forma de lucro médio; de explicar a
tendência decrescente da taxa de lucro; e de decomposição da taxa de lucro nas formas com que
opera o capital, das mais móveis às mais imóveis. Nesse conjunto o movimento do comércio,
compreendendo a comercialização da produção e o comércio enquanto forma própria de
atividade, ocupam um lugar especial, em que Marx dedica o cap. XVI a analisar – e distinguir –
o capital que se dispõe a imobilizar-se em mercadorias com a única finalidade de trocá-las por
dinheiro; e o capital que assume o custo da imobilização para liquidar a produção industrial.
Nessa análise a nosso ver é preciso introduzir a diferença entre o comércio das economias pré-
industriais e o que se realiza como parte do conjunto das atividades da produção industrializada.
A primeira parte cobre a formação do lucro e a identificação de seus efeitos na definição
de um perfil geral de comportamento do capital, que é um processo cuja conclusão é a teoria da
tendência decrescente da taxa de lucro. A segunda parte ocupa-se das conversões entre formas
operacionais do capital, analisando a formação do capital financeiro nas transformações do
mercado de dinheiro. Finalmente, a terceira parte estuda as formas de reprodução do capital
baseadas no controle da terra, acompanhando a formação de valor nos ativos imóveis em sua
relação com o movimento geral de aplicação dos capitais.
O capítulo sobre o nivelamento da taxa de lucro é fundamental nesse conjunto e tem
diferentes significados, segundo se trata de um sistema produtivo que opera com um tema
produtivo que opera com um elenco de empresas que trabalham com taxas próximas da média,
ou se trata de um sistema que opera com grande dispersão de taxas de lucro. “O fato de que os
207
capitais que põem em movimento quantidades desiguais de trabalho vivo produzam quantidades desiguais
de mais valia pressupõe que o grau de exploração, ou a taxa de mais-valia, são os mesmos e que as
diferenças são compensadas. Isso pressupõe concorrência entre operários e migração.” (L.III, pp.180)
Ressaltamos de nossa parte que o extenso trabalho de Marx sobre a renda da terra tem
um fundamento histórico na teoria da acumulação primitiva e dois desdobramentos, a serem
mencionados agora e retomados adiante neste estudo como um capítulo especial. São eles, a
necessidade de explicar o papel do controle da terra – na realidade, o controle dos recursos
naturais – a reprodução de capital progressivamente mais complexo; e a necessidade de
desenvolver a teoria do controle dos recursos naturais, especialmente na do monopólio
energético em suas várias formas, e de explicar a formação do capital imobiliário em seu
conjunto124.
Isso tem diversas implicações, dentre outras, por exemplo, de considerar que a formação
da renda da terra tem uma relação indireta, entretanto orgânica, essencial, com os movimentos
de formação do capital financeiro. Longe de ser um aspecto da formação do capitalismo
industrial, a formação de um capital imobiliário continua sendo um componente essencial da
estratégia de reprodução do capital nas sociedades industriais avançadas.
A exploração capitalista da agricultura seria uma conseqüência da mobilidade do capital
“financeirizado”, que teria a capacidade de se deslocar entre esferas de aplicação de recursos, que
poderia comparar em sua perspectiva de retornos financeiros a escala. Não se pode, entretanto,
confundir essa visão de Marx, que depende de sua teoria de equivalência de valor – apresentada
124 Destacamos duas referências
marxianas nesse ponto: as
observações de Marx sobre a inter-
relação dinâmica entre cidade e
campo, na progressão histórica da
divisão do trabalho; e o trabalho de
Engels sobre a moradia.
208
no Livro I – com a comparabilidade atribuída pela teoria neoclássica de uma taxa interna de
retorno – Robert Solow, 1967 – que desdenha os aspectos de heterogeneidade do capital.
DIAGRAMA 5
Visão panorâmica da produção capitalista em seu conjunto
SEÇÕES TEMAS
1. Transformação da mais-valia em lucro
2. Transformação do lucro em lucro médio
3. Tendência da taxa de lucro
4. Capital comercial
5. Transformação do lucro em juros e capital
financeiro
6. Transformação do lucro em renda do solo
7. As rendas
Explicação da formação do lucro da taxa de
lucro
Na formação da taxa de lucro são essenciais a rotação do capital constante e as economias
de capital constante, que se realizam à medida que aumenta o capital total envolvido na
produção. A rotação do capital constante é um dado objetivo das alterações de composição dos
capitais envolvidos na produção, que reverte em incrementos de produtividade do trabalho. Por
209
sua vez, as economias de capital constante compreendem diversas formas de atuação das
empresas individuais, que se traduzem em modificações do ambiente de produção, inclusive
para alterar as tendências da formação da taxa de lucro. Há economias internas e externas, com
economias de uso de energia e das instalações125, aproveitamento de resíduos da produção126 e
economia mediante inventos. O fundamental é entender que a economia de capital constante é
parte essencial da perspectiva capitalista de gestão do valor acumulado.
A administração do capital constante reflete-se no sistema de preços, tornando
necessário ligar o movimento geral de acumulação, que se estende no tempo, ao tratamento das
condições imediatas de mercado. É preciso distinguir entre a amortização dos equipamentos já
em operações e a política das empresas para manejar problemas de amortização em seu capital
em seu conjunto. Nesse último ponto, aflora todo o relativo à formação de monopólios, que
permitem que as empresas monopolísticas manejem depreciação e amortização como se não
fossem operações sujeitas a risco.
O Livro III difere dos anteriores em vários aspectos, dentre outros, porque a participação
mais generalizada e profunda de Engels dá um toque de equilíbrio à estrutura do texto, e porque
a proposta de trabalho mesmo é de separar–se de volta da análise do desenvolvimento do
conceito, realizada no Livro II e retomar o desenvolvimento do processo em si, numa
perspectiva de totalidade127. No Livro III, Marx trata dos elementos constitutivos da produção
capitalista, já na qualidade de substantivos; e os sujeitos do processo – capitalistas e
trabalhadores – aparecem como coletivos organizados e não mais como participações genéricas.
A visão de um processo de estruturação social que muda intrinsecamente, tal como a
125 A questão das economias no uso
de energia é uma notável antecipação
do tratamento do modo energético da
produção, que envolve a relação entre
a composição de fontes, o modo e o
sistema de transmissão e os perfis de
uso de energia, na produção e para
consumo pessoal. A economia no uso
dos edifícios, obviamente está ligada
à anterior, mas refere-se ao
departamento específico do
desenvolvimento de uma tecnologia
da construção civil adaptada às
condições ambientais.
126 O aproveitamento sistemático de
resíduos modifica o sistema de
produção, levando a internalizar
novos processos de produção
derivados, com um significado
econômico muito além das economias
imediatas. Nesse sentido, a
reciclagem é um desdobramento
natural da expansão da produção
industrial.
127 A participação de Engels no
Livro III é decisiva. Em carta a
Victor Adler, ele faz as seguintes
recomendações sobre a leitura do
Livro III. Aqui são importantes na
seção I os capítulos I a IV, em troca
são menos importantes para a.
210
composição do capital, é uma idéia muito forte, que se impõe, a partir do momento em que a
composição do capital é usada como meio para fundamentar a diferença entre a esfera dos
comportamentos individuais e os comportamentos coletivos, que se apresentam como
comportamentos de classe.
Não se trata de construir um modelo explicativo, mas de expor o movimento histórico
da formação do capital no ambiente que ele próprio cria. Em vez de construir o complexo
andaime do edifício, trata-se de mostrar como ele se constrói de dentro para fora. Por isso
mesmo, dessa parte de O Capital emerge outro modelo, que é o de explicação da dinâmica do
capital através de uma teoria do lucro. Ora, a formação do lucro é o resultado de uma dinâmica
das relações de produção cujo eixo é a exploração.
No Livro III apresenta-se o grande movimento da acumulação do capital em contraponto
com sucessão de movimentos de conversão de umas formas de capital em outras, que sustenta
aquele grande movimento. Nele, ascendem as formas mais móveis e mais voláteis do capital,
frente às imóveis e mais lentas. A revelação do capital financeiro surge junto com a das
simbólicas, cuja presença se descortina plenamente em todas as formas do capital no capitalismo
maduro. Segundo o próprio Marx, trata-se de “descobrir e expor as formas concretas que brotam do
processo de movimento do capital como um todo” (L.III, pp.45). Mas uma leitura progressiva –
regressiva tal como propõe Sartre, mostra outro objeto de análise. No Livro III desenvolve-se
uma teoria da dinâmica interna do capitalismo que, além disso, oferece os elementos de uma
teoria da mobilidade social, que será um tema obrigatório do estudo das economias periféricas.
armação geral.os capítulos V,VI e
VII. Seção II. Importantíssimos, os
capítulos VIII,IX e X. Pode-se ler de
passagem os XI e XII. Seção III.
Toda ela importantíssima. Seção IV.
Muito importante também e de fácil
leitura os capítulos XVI a XX.
Seção V Importantíssimos os
capítulos XXI a XXVIII. Menos
importante o XXVIII.Importante o
capítulo XXIX. Carecem de
importância os capítulos XXX a
XXXII.São importantes os capítulos
XXXII a XXXIV. Sobre as trocas
internacionais, o XXXV e é
interessante o XXXVI.Seção VI...
são importantes os capítulos
XXXVII e XXXVIII. Menos
importantes, o XXXIX, o XL, o
XVLI, XVLII. Seção VII. Muito
bela. Infelizmente, fragmentária e
com fortes marcas da insônia.
211
O Livro III acompanha a formação das remunerações do capital, segundo elas surgem
nos âmbitos operacionais do capital e vão ao âmbito da formação dos juros. O capital move-se
em busca de aumentar o lucro total que obtém do que desembolsa128. Para isso, usa seu controle
das condições de trabalho e do contrato de trabalho.
A condução dos interesses do capital para autoreproduzir-se, faz-se a partir da taxa de
lucros, que deve ser vista como a expressão financeira da mais valia. Isso significa que os
capitalistas específicos operam com o referencial de um espectro de lucros nas condições
específicas de cada economia nacional em cada momento histórico. A cada capitalista em
particular, esse espectro de situações de lucro aparece representado por uma taxa média de lucro,
frente à qual se situam as situações específicas de lucro de cada aplicação de capital. O problema
teórico de esclarecer a taxa média de lucro, por extensão, é o de situar a lucratividade do capital
frente a situações específicas de acumulação e de constituição do mercado, ou ainda, de expor à
luz a relação entre a acumulação realizada e a capacidade de acumular.
A análise da formação da taxa de lucro parte da diversidade específica de situações em
que os capitais são aplicados, que se representa pela composição orgânica e pela rotação do
capital. A diversidade dos capitais está, em todo caso, demarcada pela esfera nacional, onde a
estruturação institucional corresponde à estruturação dos meios de produção. Assim, podemos
dizer que há um fundamento institucional na opção doutrinária de trabalhar com a noção de
taxa média de lucro. Ora, na perspectiva dinâmica cm que trabalha Marx, a taxa média de lucro
é proporcional à composição orgânica e às transformações do mercado, pelo que, será sempre
inseparável da tendência à queda da taxa de lucro.
128 Há uma questão relativa a
quanto os capitalistas conseguem
desembolsar. Na realidade, os
capitalistas têm que desembolsar o
suficiente para pelo menos reproduzir
o capital que já acumularam. Isso
envolve que haja condições objetivas
de mercado para isso e que os
capitalistas saibam usar seu capital.
Nesse ponto, entra o argumento de
Max Weber, sobre a competência dos
capitalistas.
212
A conversão da mais-valia em lucro
e da taxa de lucro em taxa de mais-valia
No Livro III, Marx parte de uma revisão da formação do lucro dos capitalistas individuais,
distinguindo o preço de custo do custo em valor. Distingue o que custa ao capitalista e o que
custa de fato produzi-la. “O custo capitalista mede-se pelo investimento e o custo real pelo investimento
em trabalho” (L.III, pp.46). Formação de preço, que depende de mercado; e formação de valor,
que resulta da organização social da produção. Logicamente, a mais valia não é parte do custo do
capitalista, mas entra a formar seu lucro. A determinação do lucro aparece através da distinção
entre preço de custo (custo ao capitalista) e custo em valor (custo social). A diferença surge,
primeiro, de que nos custos do capitalista não está o valor representado pela mais valia.
Segundo, ele aparece porque o capital variável desembolsado (trabalho realizado em etapas
anteriores do processo produtivo) não entra na produção, senão é substituído por força de
trabalho (trabalho novo).
A seguir, Marx embrenha-se numa análise do mecanismo de uso da mais valia na
produção, que conclui numa proposição que situa o rumo da análise do Livro III, qual seja, de
que “Assim, a mais valia sai, tanto do capital desembolsado, que entra no preço de custo da mercadoria,
como da parte que não entra nela; noutras palavras, sai tanto do capital fixo como do circulante” (L.III,
pp. 53).
213
Marx começa por examinar a formação da taxa de lucro, que é o ponto de partida da
explicação do mecanismo motor da produção capitalista. Aqui temos uma diferença
fundamental em relação com a teoria de Ricardo. Enquanto Ricardo vê os lucros dos capitalistas
como um componente variável na formação do produto social, que tende a minguar, por efeito
da rigidez dos salários e das rendas, bem como da concorrência entre capitalistas, Marx parte da
formação do lucro individual, para mostrar que os capitalistas extraem primeiro seu lucro, para
então remunerarem o trabalho.
A questão está realmente na relação entre a taxa de lucro e a de mais valia. O
desempenho dos capitalistas individuais em geral decorrerá dos resultados que obtenham na
captação de mais valia na formação da taxa de lucro. Para acompanhar essa análise de Marx, é
preciso considerar dois aspectos: o fundamento que lhe permite trabalhar com a hipótese de uma
taxa de mais valia invariante e os elementos que permitem trabalhar com variações do capital
constante, em quantidade e composição.
A hipótese de uma taxa de mais valia invariante explica-se em função de pressupostos
sobre a composição do capital, que a rigor só se modifica em conseqüência de alterações do
sistema produtivo em seu conjunto, jamais por um fator isolado. Mesmo assim, a suposição de
uma taxa de mais valia invariante é um recurso provisório, e só pode ser aceita enquanto se
trabalha com uma dada etapa da acumulação.
O que situa a posição do capitalista frente à acumulação não é o fato geral do lucro, senão
o fato específico da taxa de lucro, isto é, a medida da capacidade do capitalista para extrair lucro
daquela proporção de capital variável que mobiliza mediante seu desembolso de capital
214
constante. A venda, que é a unidade mínima do movimento de circulação, se realiza também
como manifestação do tempo de circulação129. Já vimos, pelo exposto no Livro II, que o tempo
de circulação resulta das condições de rotação do capital.
Não se pode perder de vista que o objetivo do Livro III é verificar como a formação da
taxa de lucro influi no movimento da produção capitalista em seu conjunto, que é a grande
resposta à tese do estado estacionário da Escola Clássica e à tese da tendência do sistema à crise.
Por isso, uma vez estabelecido como a taxa de lucro é internamente regulada pela taxa de mais
valia, Marx passa a examinar como ela é externamente regulada pela gestão do capital constante
no sistema, primeiro pela rotação do capital, que acontece no processo de circulação, e logo, pelo
modo de uso do capital constante, onde se obtém economias. No desenvolver dos argumentos
do Livro III vê-se que a gestão do capital constante se torna o ponto focal da condução do capital
em seu conjunto.
A questão das variações do capital constante revela-se progressivamente mais
complicada, porque envolve as modificações do ambiente de mercado e as estratégias dos
capitalistas individuais, tanto quando elas resultam em tendências gerais como quando
aparecem como eventos esporádicos. Marx considera duas linhas básicas de estratégia dos
capitalistas, que são as de usar os acréscimos de capital constante como meio de ampliar a
captação de mais valia; e as de fazer economias de capital constante. Observe-se que o conjunto
dos argumentos que regem a relação entre a gestão do capital e o meio ambiente aparece como
iniciativas determinadas pelo interesse dos capitalistas de obter renda do aproveitamento de
resíduos do que por qualquer espécie de altruísmo. (L.III. Cap. VI).
129 Encontra-se aqui uma questão que
foi passada por alto pela teoria
econômica, ou que ficou fora do
campo de visão da análise estática,
que corresponde ao ajuste entre os
tempos de produção e os de
circulação, que, logicamente, se
realiza de diferentes modos e
velocidades, segundo avançam a
acumulação e o aumento de densidade
de capital por homem ocupado. No
entanto, esse ajuste se desloca
segundo a circulação se desenvolve e
se reflete na estruturação do
mercado, tanto como as modificações
na produção. Marx assinala que o
processo direto de produção e o de
circulação “se cruzam” modificando-
se mutuamente.
128 Há uma questão relativa a
quanto os capitalistas conseguem
desembolsar. Na realidade, os
capitalistas têm que desembolsar o
suficiente para pelo menos reproduzir
o capital que já acumularam. Isso
envolve que haja condições objetivas
de mercado para isso e que os
capitalistas saibam usar seu capital.
Nesse ponto, entra o argumento de
Max Weber, sobre a competência dos
capitalistas.
215
Assim, não se pode desconsiderar que há alguns dados básicos das condições de gestão
dos capitais individuais, que permitem inferir alguns comportamentos básicos, mas que os
situam em relação com os movimentos de preços, isto é, com as tendências de mercado. Já ao
distinguir as diferenças entre os componentes móveis e imóveis do capital – patrimônio e capital
produtivo – Marx estabelece referências dos padrões individuais de comportamento, que põem
limites da própria generalização.
Mas essas situações individuais não são base suficiente para explicar os comportamentos
dos capitalistas independentes, porque não se trata de situações similares, senão de uma
pluralidade de capitais de diferente composição orgânica130. Pelo contrário, Marx parte,
justamente, da diversidade da composição orgânica, como dado inicial da análise da conversão
do lucro em lucro médio.
As diferenças de composição orgânica devem ser vistas em dois níveis: ao nível dos
capitais individuais e ao dos setores de produção. Essas diferenças resultam numa diversidade
das taxas de lucro, cuja consistência em princípio só se explica mediante diferentes tempos de
rotação do capital aplicado131. Esse é o argumento usado por Marx para explicar o que podemos
chamar de equilíbrio interno da taxa de investimento.
130 Esse é um ponto específico em que
o conceito de totalidade separa a
análise de Marx da que se
desenvolveu na esfera do
marginalismo. A premissa de que o
sistema funciona com diferentes
composições orgânicas de capital
torna inaceitável um raciocínio linear
de agregação da esfera do individual
para a do coletivo, como foi feito por
Schumpeter em sua reapresentação
do princípio do fluxo circular e como
faz a macroeconomia neoclássica.
131 Observe-se que esse argumento
praticamente não se modifica quando
se admitem diferentes estruturas de
mercado.
216
A taxa média de lucro
A formação da taxa de lucro é o grande argumento que se desenvolve no Livro III, para
explicar a transformação da produção capitalista em seu conjunto. No que se pode denominar de
administração do capital, Marx deixa, outra vez, em aberto a diferença entre as condições de
gestão de capitais individuais e uma visão de conjunto da auto-organização em relação com a
pluralidade de condições de rentabilidade. Tal auto-organização, obviamente, só pode ser
explicada à luz de dados da formação histórica do mercado, que, na prática, significa considerar
como se formam as margens de controle do mercado. Nesse ponto, entretanto, (L.III, pp.164),
Marx limita essa argumentação às condições de concorrência, que podem ser tomadas como essa
referência ao mercado, mas que não necessariamente contemplam a progressão de desigualdade
no mercado.
A formação da taxa de lucro descansa sobre a composição do capital e a escala de
produção, em que os capitais individuais têm que ser administrados de modo a procurarem
aquelas condições de participação no mercado que evitam um desempenho inferior ao geral.
Para explicar esses comportamentos individuais, Marx recorre, de volta, à discussão da
composição, recuperando a análise da composição técnica, que toma como aquela restrição
operacional do sistema que regula a composição de valor. Nessa argumentação, observamos dois
ou três momentos que devem ser explicitados. Primeiro, as diferenças de taxa de lucro em um
217
país resultam de diferenças de rotação dos capitais, além das diferenças de composição
orgânica132.
A necessidade lógica de explicar um comportamento homogêneo dos diferentes capitais,
portanto, de capitais estruturados sobre diferentes composições técnicas, leva Marx, adiante, no
capítulo X, a trabalhar com a hipótese de uma compensação dos lucros, que funciona como
referência das novas aplicações. Tal hipótese sustenta-se sobre dois pressupostos, que são os de
perfeita substutibilidade de produtos, isto é, de que as funções dos produtos são equivalentes,
como meios de produção ou como meios de consumo; e de perfeita mobilidade dos
trabalhadores, que, logicamente, significa que as expressões trabalho simples e trabalho
complexo representam situações de domínio de técnicas de produção e capacidade econômica de
deslocar-se de um local de trabalho a outro. Ambas as premissas são simplificações, que só
podem ser admitidas como provisórias. Na realidade, essas hipóteses só são válidas em
condições plenamente concorrenciais, isto é, igualmente concorrenciais para os capitais e para os
trabalhadores. Tal pressuposto, sabemos, é externo a cada situação específica de cada capital
específico, obrigando a deslocar a análise para o plano de uma macroeconomia dinâmica.
Nesse ambiente concorrencial, a taxa de lucro se forma na negociação de um certo elenco
de mercadorias, que têm diferentes funções, como meios de produção ou como meios de
consumo, ou alternando-se entre essas duas funções. Na análise da formação da taxa de lucro
(L.III, pp. 192 a 194), Marx recorre às propriedades técnicas desse elenco de mercadorias, onde as
diferenças de qualidade e de condições de produção ensejam o lucro do comércio. É preciso
ressaltar que esse capítulo X oferece os fundamentos de uma teoria da economia do comércio,
132 Nesse ponto, é fundamental
lembrar que a composição orgânica é
a composição de valor qualificada
pela composição técnica.
218
que, surpreendentemente, deixou de ser um tema explorado pelos economistas, que
desconsideraram o poder do comércio na determinação do sistema de produção. O lucro do
comércio surge da circulação de mercadorias e de dinheiro, e tem o poder de sinalizar quais
mercadorias podem ativar o capital já incorporado no sistema. Por exemplo, a comercialização
de óleo de arroz indica uma possibilidade de uso da capacidade de produção existente na
produção de óleos vegetais. Como o lucro do comércio depende da rotação de mercadorias, há
uma tendência a preferir mercadorias que se vendem com mais facilidade.
O capítulo XI trata da relação entre a formação da taxa de lucro e a taxa de salário, isto é,
trata da relação entre o padrão distributivo e a composição dos investimentos. Aí, há uma
pergunta inevitável, sobre se a composição dos investimentos necessários pode ser alcançada
sem que se altere a composição dos salários. Os deslocamentos entre preços e lucros explicam se
os capitalistas estão dispostos a absorver salários mais altos, ou se eles precisam pagar os salários
necessários para realizar os investimentos necessários. Marx mantém essa argumentação no
nível da relação entre a taxa de lucro e a taxa de mais valia, o que, logicamente, leva a discutir a
tendência da taxa de lucro, que, efetivamente, aparece no famoso capítulo XIII, dedicado à
tendência decrescente da taxa de lucro. Parece-nos fundamental marcar que a explicação do
nivelamento da taxa de lucro exige introduzir um argumento que dê conta da ligação entre a
composição técnica do capital acumulado e a do novo capital que se forma. Tal leitura da
progressão técnica do sistema só surge da compreensão da totalidade do modelo e não está em
nenhum capítulo específico.
219
A tendência decrescente da taxa de lucro
A tendência à queda da taxa de lucro é a lei inerente ao sistema de produção capitalista. O
essencial do pensamento de Marx sobre a tendência da taxa de lucro é que ela tende a declinar
porque o capital tem sucesso em aumentar a proporção de capital constante sobre capital
variável.
A questão da tendência geral do sistema de produção é um tema essencial da Economia
Política, que se trata em duas grandes vertentes, segundo essa tendência é associada a uma
tendência igualmente essencial, a que o sistema opere mediante flutuações cíclicas, ou segundo
se considera que as flutuações são incidentais133. O fundamento dos ciclos está em causas
naturais, ou eles derivam do modo de funcionamento do sistema produtivo? Marx distanciou-se
de Ricardo em dois pontos principais: atribuiu os movimentos cíclicos às mudanças de
composição do capital, portanto, ao dinamismo do movimento do sistema; e juntou um
argumento micro econômico com a visão macro econômica do problema. Para Marx, trata-se de
uma tendência a uma queda relativa da taxa de lucro, conseqüente da diminuição da proporção
de capital variável na formação do produto social, isto é, de um movimento que está
umbilicalmente ligado às tecnologias empregadas na produção.
A questão geral da tendência à queda da taxa de lucro traduz-se na questão específica do
perfil do ciclo.
133 São flutuações de uma
determinada demanda, ou são
alterações progressivas da
composição do capital? A noção de
variações progressivas, significa
alterações de uma progressão, cujos
deslocamentos requerem alterações
progressivas da composição da
demanda.
220
Ao completar o percurso teórico que vai até a lei da taxa decrescente de lucro, Marx
apresenta movimentos que contrapõem essa tendência, destacando o aumento da taxa de
exploração. Ora, o aumento da taxa de exploração é, justamente, o que acontece quando os
salários são contidos e reduzidos, enquanto aumenta a produtividade do trabalho.
O aparecimento e o funcionamento do capital a juros
Uma vez que estabelece como se forma o lucro e determina seu papel na reprodução do sistema
de produção, Marx passa a analisar como se divide o lucro, examinando aquela parte do dinheiro
que passa a ser usado como capital. A taxa média de lucro define um mercado para as operações
a juros, em que a uma proporção constante entre os juros e o lucro total, o capitalista produtivo
estará disposto a abrir mão de uma parte dos lucros, para realizar um ganho que de outro modo
não obteria.
A taxa de juros obedece a tendências históricas do mercado. A taxa de juros sobre quando
é preciso tomar dinheiro custe o que custar, para pagar pendências da reprodução do capital.
Seguindo essa mesma lógica, diremos que só quando se trata de pagar necessidades de capital
para investimentos impostos pela própria acumulação e para pagar dívidas acumuladas.
221
Segundo Marx, os juros caem primeiro, pela oferta de dinheiro dos rentistas; e segundo,
porque o desenvolvimento do sistema de crédito permite concentrar poupança e aumentar a
oferta de dinheiro.
Assim, o desenvolvimento do sistema faz mudar o papel das operações com capital
mercadoria. Para Marx, o essencial da formação de um mercado de juros é que a divisão entre
partes do capital produtivo e do capital a juros dá lugar a uma divisão qualitativa do mercado,
pela qual se definem as funções dos capitalistas produtivos e dos prestamistas, com o
esclarecimento de que ambas as funções estão predeterminadas pelos tempos do capital
produtivo. A equivalência em termos de tempo de imobilização faz com que todos os
capitalistas, inclusive os que trabalham com dinheiro próprio, considerem a imobilização do
dinheiro mercadoria como referência desse mercado. A estratégia do capital, por conseguinte,
consistirá em aumentar a velocidade de rotação, reduzindo os custos da imobilização. No
entanto, precisamos observar que a possibilidade prática de executar essa estratégia depende da
disponibilidade de opções de aplicação de capital, que é um dado da extensão e da diversidade do
mercado.
Nesse ponto Marx enfrenta o problema da separação dos papéis do capitalista
prestamista e do empresário. A divisão qualitativa entre capitalista e empresário acontece no
contexto específico do mercado em que se formam os juros. Como todo capitalista em princípio
tem acesso à função de prestamista, verificam-se duas posições, que são parte da lógica do
capital. Diz Marx, que “o capital a juros é o capital como propriedade, frente ao capital como função”
222
(L.III, pp. 363). Daí, nesse conflito de interesses com o prestamista, o capitalista reveste-se de
funções de vigilância, tornando-se um superintendente.
O capital a juros passa a ser a denominação geral do movimento de formação de capital
que está sujeito – ou que pode ser operado – mediante essa relação de mercado. Diz Marx (L.III,
pp.379), que “o processo de acumulação de capital pode ser concebido como uma acumulação de juros
compostos sempre e quando se puder chamar de juros àquela parte do lucro que se converte de novo em
capital, isto é, que serve de novo para absorver trabalho sobrante” (L.III, pp.379).
Crédito e capital fictício. No capítulo XXV Marx volta-se para o processo específico do
comércio de dinheiro, advertindo que ele progride por suas leis próprias, mas fundamenta sua
análise nos resultados na observação da crise de 1847, cujo fundamento foi um desastre agrícola.
No capítulo seguinte apresenta-se uma antecipação do funcionamento da produção
conduzida por grandes corporações, cujo principal traço é a separação entre as funções de gestão
do capital e de gestão das empresas, em que os usos do crédito transcendem suas finalidades
imediatas, tornando-se um modo de abaratamento do uso do capital em geral. Mas essa revisão
das funções do crédito resulta em retomada da avaliação do papel dos meios de circulação no
funcionamento do sistema, o quer dizer, a capacidade das moedas como meio de circulação, ao
tempo em que uma reconsideração do papel do circulante. Aí se coloca a questão do
financiamento do sistema produtivo em seu sentido mais amplo, isto é, compreendendo a
provisão de dinheiro para reprodução do capital produtivo e de dinheiro para novos
empreendimentos.
223
A questão não se esgota com reconhecer que se trata de capital monetizado, já que o
dinheiro nesse caso torna-se o meio pelo qual o capital ganha capacidade de se deslocar entre
formas de inserção no sistema produtivo. Na verdade, o problema se desloca para a análise do
papel do capital a juros na reprodução do capitalismo avançado. Como surge o capital a juros e
qual seu papel? A transformação do lucro em capital a juros é o grande movimento que Marx
analisa nos capítulos XXX a XXXIII e que abrange dois grandes movimentos: a expansão de
capital dinheiro correspondente ao aumento genuíno da circulação; e a expansão do capital a
juros, que constitui uma denominação de dívidas anteriores geradas no processo produtivo, mas
que de fato já não são parte dele. No sistema capitalista passa a haver um problema concreto,
relativo à reprodução desse capital fictício ou dessa sombra de capital.
A produção capitalista leva a uma acumulação de capital dinheiro cuja reprodução requer
que esse capital encontre aplicações produtivas. A taxa de juros acompanhará a demanda de
dinheiro para novos negócios. Uma vez identificado que a produção capitalista gera capital
dinheiro, com sua própria lógica, com seu modo de reprodução que é a operação do crédito,
torna-se inevitável a discussão do papel do crédito na produção capitalista. Marx identifica o
papel do crédito nos seguintes pontos:
Necessidade do sistema de crédito como veículo para compensar as taxas de lucro.
Diminuição dos gastos de circulação. (Trata-se de economia de dinheiro, que se
obtém reduzindo o uso de dinheiro em muitas transações; acelerando a circulação do meio
circulante; substituindo dinheiro ouro por papel moeda)
224
Aceleração da circulação na metamorfose das mercadorias, que resulta em
contração do fundo de reserva.
Ampliação da escala de produção com as sociedades anônimas cobrindo áreas
inacessíveis às empresas individuais e abrindo espaço para a transformação de capitalistas em
gerentes134.
É um problema da reprodução ampliada do sistema, que se infere desse desenvolvimento
da argumentação de O Capital. O aumento da quantidade de capital dinheiro – característica das
economias que já enriqueceram – que pode optar por voltar ao mercado apenas como capital de
empréstimo, cria uma divisão entre os capitalistas prestamistas e os capitalistas empresários,
cujos desdobramentos Marx associou ao desenvolvimento da sociedade por ações e aos meios à
disposição do capital bancário. Observamos que os comentários incluídos por Engels,
especialmente no cap. XXVIII sugerem que se ponha mais atenção ao aspecto de composição
do capital dos novos investimentos.
A parte mais desenvolvida do capital é a que se movimenta na esfera mais intensamente
penetrada pelas formas financeiras do capital. Essa parte do capital apóia-se numa combinação
de dois movimentos, que são os de acumulação de capital dinheiro e de desenvolvimento de
novos papéis do crédito na produção capitalista. Parece-nos essencial destacar que o crédito
assume novos papéis, justamente, nas economias mais avançadas, desde as quais se irradia sobre
as demais. O dinamismo do crédito é o do capitalismo avançado. O desenvolvimento do crédito
resulta em alterações do circulante. A função dos bancos apóia-se no circulante.
134 Nesse ponto insere-se uma
excepcional nota de Engels sobre o
adiantamento das formas de empresa
como um elemento dinâmico desse
processo, a nosso ver precursora das
análises de empresa que se colocam
numa perspectiva macroeconômica. É
algo a ser retomado, noutro desenho
de análise, em que se supere essa
aparente circunstância, de que a
empresa seja unicamente uma
referência de análise microeconômica,
e que não a situam como um
componente de uma visão macro
econômica dos interesses do capital.
225
Uma vez colocada a questão relativa ao papel do crédito nas transformações da produção
capitalista, Marx enfrenta a necessidade de penetrar na constituição do capital bancário, que é o
lugar da produção capitalista onde o dinheiro aparece como capital monetizado (“moneyed
capital”), isto é, como capital a juros. Compreende moeda e títulos e valores, que se transformam
em valores comerciais, letras de câmbio, valores públicos, letras do Tesouro e ações. Esse
conjunto compreende o capital dos bancos e os empréstimos (“banking capital”). Todo esse
material está integrado por uma relação de equivalência.
Essa análise toma novo impulso a partir do capítulo XXIX – As partes integrantes do
capital bancário – que penetra na constituição do capital bancário. A formação do capital
bancário põe a produção capitalista diante de outra escala de oportunidades de reprodução do
capital, cujo pleno significado só pode ser apreciado na perspectiva de dinâmica da
transformação do sistema de produção, que é a do ajuste do capital dinheiro com o capital
efetivo. Em sua evolução, o capital aplicado traduz-se em requisitos diferenciados e crescentes
de capital dinheiro (o financiamento da produção) que, entretanto, enseja uma circulação
adicional (a especulação).
Há, portanto, um problema genuíno, relativo à acumulação de capital-dinheiro, que
envolve a relação geral entre o dinheiro como tal e as moedas específicas e que controla as
condições específicas em que a acumulação pode se sustentar no uso de certas moedas. A
conversibilidade das moedas indica essas condições de uso das moedas por parte dos capitais e
que foge das condições institucionais com que cada país administra seus problemas monetários.
226
A acumulação de capital-dinheiro resulta numa riqueza – dinheiro, que denomina
dívidas sociais em geral, especialmente, dívida pública, que passa às mãos do sistema bancário,
portanto, que é uma riqueza que depende das condições de sustentação das moedas específicas.
Isso explica porque, diz Marx, está constituída de vestígios de transações concluídas, portanto,
que é um capital fictício. No entanto, esses títulos e obrigações funcionam como capital para
seus proprietários, que são os banqueiros ou outros agentes que se tornam análogos a eles135.
A mutação na transformação do sistema acontece mediante a transformação do capital
dinheiro em capital de empréstimo, que é como as dívidas socialmente acumuladas tornam-se
um meio de viabilizar a acumulação. Como vimos antes, nessa transubstanciação do capital
dinheiro valorizado encontra-se o germe da incerteza do capital financeiro em seu conjunto.
Diremos que o capital financeiro cria as condições objetivas para que o capitalista como tal
emerja do constrangimento de sua situação de proprietário de equipamentos e de seus vínculos
com empreendimentos específicos, e aja exclusivamente com a lógica do capital. É uma idéia
que surge da observação das conversões entre formas do capital, que o controle de certo conjunto
de equipamentos se torna um constrangimento para os capitalistas, tal como suas próprias
condições de treinamento e de qualificação.
Toda essa análise vai se converter no estudo da transformação do capital dinheiro em
capital de empréstimo e vai apontar o caminho pelo qual se identifica a concentração do capital
com a formação do lucro extraordinário.
135 A chamada desintermediação é o
mecanismo pelo qual empresas
comerciais – supermercados e outros
– emitem cartões de crédito e
financiam vendas a prazo , operando
como bancos de varejo ao
consumidor.Essa função se torna um
mecanismo adicional de controle do
consumo através do controle do
crédito aos consumidores. Uma parte
cada vez maior das transações
financeiras se realiza sem a
participação das instituições
financeiras oficializadas.
227
A FORMAÇÃO DA RENDA FUNDIÁRIA
Preliminares
A questão da renda recebe uma atenção especial de Marx desde sua revisão das idéias dos
Fisiocratas, que aparece nas Teorias da Mais Valia e reaparece no Livro II de O Capital. A
questão fundamental é que os Fisiocratas viram a agricultura como única fonte possível de
produção de mais valia e, por isso, direcionaram a tributação para esse setor. Depois de traçar a
influência das idéias dos Fisiocratas em Adam Smith, Marx aponta que o desenvolvimento da
produção industrial subordinou a formação de capital na produção rural e deslocou o eixo na
produção de mais valia na sociedade em seu conjunto. A nosso ver, aí se encontra uma mudança
radical na análise econômica, que passa a poder perceber a produção de mais valia como um
resultado dos incrementos de produtividade e como um traço da produção capitalista em seu
conjunto. A rigor, essa inversão da análise da renda da terra submete a análise setorial às
grandes determinações da formação de capital. Com Marx, a análise da agricultura, tal como a
da indústria, torna-se uma análise intersetorial.
Há dois problemas iniciais para esclarecer no relativo ao tratamento dado por Marx à
questão da renda da terra, que surgem, respectivamente, de sua suposição de que toda produção
rural é capitalista, e de entender que há um resíduo que não é absorvido, que finalmente é a taxa
228
diferencial do capital. Esses fundamentos têm que ser revistos por nós, porque desconhecem a
pluralidade da economia rural – desigualmente conduzida e os efeitos da colonização, hoje da
concentração do capital. Esses problemas iniciais estão ligados à questão que aparece na parte
final da análise marxiana da renda da terra, que corresponde à explicação da renda capitalista da
terra e que se resume em que o capital alcance uma renda compatível com o capital acumulado.
O condicionamento da renda da terra às condições da exploração capitalista levanta um
problema histórico concreto relativo ao preço das terras. Veremos que Marx aborda esse
problema de preços em dois níveis, expondo a ambigüidade da relação entre a fixação de preços
das terras pelos proprietários capitalistas e pelos capitalistas arrendatários.
A teoria da renda fundiária de Marx desenvolve-se num sentido oposto ao da teoria da
renda da terra de Ricardo, levando-a à condição de parte integrante da formação do capital nos
segmentos mais avançados do sistema tanto como nos mais atrasados. Historicamente, o
problema se coloca com a inserção da produção rural no contexto da produção capitalista,
quando ela deixa de ser a única possibilidade de se gerar e captar mais valia, para ser uma
modalidade de produção condicionada pela produção industrial136.
Para Marx são duas situações completamente diferentes, de pretender-se explicar como
surge a formação de valor nos usos da terra, ou de se tratar de explicar a formação de uma renda
capitalista da terra, que só pode ser compreendida como parte do espaço de opções do capital
avançado, que controla a renda extraordinária. Algumas citações iniciais são reveladoras desse
caráter da renda fundiária.
136 Ver a exposição de Marx nas
Teorias da Mais Valia, na parte que
crítica a formulação dos Fisiocratas.
229
“Partimos do principio de que a agricultura, tal como a indústria, está dominada pelo regime
capitalista de produção, isto é, que a agricultura é explorada por capitalistas que de momento só se
distinguem dos demais capitalistas pelo elemento em que investem seu capital e sobre o qual recai o
trabalho assalariado.”
Isso significa que a agricultura será regida por uma composição técnica do capital que
não pode ser percebida por separado da composição orgânica do capital no sistema produtivo em
seu conjunto, portanto, que interdepende da composição técnica do capital na indústria137.
A premissa de que a agricultura caiu sob o império do regime capitalista de produção implica que
domina todas as formas de produção(...) e que se dão em sua plenitude as condições que o caracterizam,
tais como a concorrência dos capitais, a possibilidade de que estes se transfiram de um ramo de produção a
outro...
Não vale, portanto, objetar que existiram e existem outras formas de propriedade territorial e de
agricultura. Essa objeção pode ser dirigida aos economistas que consideram a produção capitalista na
agricultura e a forma de propriedade territorial, não como categorias históricas senão como categorias
eternas138.
O objetivo de Marx, portanto, é conhecer como a forma adequada da propriedade territorial
é criada pelo próprio regime de produção capitalista, ao submeter a agricultura ao império do capital, com
o que a propriedade feudal e a pequena propriedade camponesa combinadas com o regime comunitário,
convertem-se, também, em forma adequada a esse regime de produção, por mais que suas formas jurídicas
possam diferir. L III, pp.575
137 A escala de complexidade do
problema só se revela por completo
quando se vê que o recuo do
assalariamento envolve a necessidade
de novos modos de uso do tempo dos
trabalhadores.
138 Veremos adiante que essa
observação leva a organizar a análise
da produção rural considerando que
as formas de produção rural passam
por modificações, assim como, que
algumas formas de produção são
substituídas por outras. No nosso
caso, por exemplo, até a pecuária
extensiva incorpora inovações
técnicas e o conceito de eficiência na
produção produto por produto se
substitui por um conceito de
eficiência no uso da força de trabalho
em seu conjunto.
230
Aspectos gerais
Há duas observações principais sobre a teoria da renda da terra em Marx: a renda da terra
surge de movimento do capital no campo e se realiza em condições de mercado. O movimento
de expansão do capital faz com que haja capitais disponíveis para investir na produção rural.
Haverá demanda de terra na medida em que os resultados efetivamente obtidos da produção
rural sejam comparáveis com outras aplicações; e na mesma proporção em que a incerteza dos
custos e dos resultados da produção rural seja aceitável frente aos padrões de incerteza dos
demais setores da produção.
O essencial da abordagem de Marx sobre a formação da renda fundiária consiste em
distinguir que as formas de propriedade são historicamente determinadas, portanto, que não são
permanentes; e que o mecanismo da formação da renda territorial está na “diferença entre a
renda do solo e os juros do capital incorporado nele”. (L.III, 589). “A propriedade territorial, tal
como todas demais formas de propriedade, responde a uma necessidade histórica transitória e
também, por conseguinte, às relações de produção e de troca que dele se derivam” (L.III, Idem).
Diferente e ao contrário de Ricardo, Marx vê a renda da terra no contexto do capitalismo, como
resultado da aplicação rural do lucro extraordinário obtido do conjunto das aplicações de capital.
Logicamente, Marx raciocinou em termos da formação da renda na Europa – tomando a
América e a Ásia como contrapontos – portanto, sem ter razão alguma para considerar aquela
propriedade fundiária patrimonialista do sistema colonial139. Está claro que, se se começa por
139 A reflexão sobre a formação da
renda fundiária no Brasil impõe que
se faça uma revisão dos fundamentos
históricos do problema. Primeiro,
pela combinação de formas
autenticamente capitalistas com
formas pré-capitalistas garantidas
pelo controle político e com formas de
produção baseadas em extrativismo,
que se organizou, com diferentes
matizes, desde o fim do tráfico de
escravos. Segundo, pelo conjunto dos
privilégios que cercaram a condução
da modernização conservadora no
campo, em seus diversos aspectos, que
esteve associada ao controle da
mercantilização das terras. O
essencial no caso é um processo de
redistribuição de terras, que
compreende os dois aspectos, de
reforma agrária e de concentração de
terras por parte de grandes capitais,
em que a reforma agrária se
identifica com soluções tecnológicas
pouco rentáveis, enquanto a
concentração de terras se identifica
com opções tecnológicas de alta
eficiência. No Brasil não há como
ignorar que o processo de
231
estabelecer que o estudo da renda fundiária parte das condições de desenvolvimento do
capitalismo, será inevitável ter que considerar que as condições de desenvolvimento do
capitalismo nas sociedades ex coloniais e periféricas é determinante da progressão das opções de
escolha de produtos e de formas de produção. Uma elaboração adicional desse argumento
mostra que o controle patrimonialista da terra não é apenas um vestígio pré-capitalista senão
que reflete uma capacidade do sistema capitalista periférico de usar poder político como meio de
garantir vantagens de monopólio.
Isso quer dizer que as formas de produção, tais como a pecuária estabulada ou a pequena
produção diversificada, são realidades que correspondem ao que se entende hoje e aqui por
produção diversificada e por pecuária intensiva, que são dois conceitos sujeitos a qualificação,
que podem ter diferentes significados ao longo do tempo e em diferentes lugares. O
fundamental é reconhecer as condições concretas em que se realiza a produção no meio rural.
No essencial, a formação de renda é um resultado da produção capitalista, que deve ser
apreciada em sua complexidade e não em suas formas mais simples. O importante não é
conhecer cada forma de produção, senão de compreendê-la como parte de um processo que cria e
destrói formas de produção. Contrasta com a proposta – que tem se renovado ao longo do tempo
sob diversas formas – de tomar as formas de produção como categorias invariantes.
Isso significa que a análise da renda territorial em Marx não sofre a ruptura alegada por
muitos, entre a análise da renda rural e a da renda urbana, havendo, uma equivalência entre a
renda do solo e a dos espaços criados, que surge, justamente, quando se vê que a capacidade de
modernização da produção rural é
conduzido por capitais que se
realizaram nas cidades, assim como
não há como não saber que essa
modernização é um processo desigual
e irregular, que constitui uma
mancha mas que permite - e estimula
– a persistência de uma pequena
produção rural – mais ou menos
identificada com produção familiar –
que funciona como ambiente da
reprodução social dos grupos sociais
de excluídos da modernização rural.
A escolha de produtos por parte dessa
pequena produção marginal é
reveladora. Ela escolhe produtos de
baixa rentabilidade – independente
da produtividade do trabalho – mas
que são os únicos cuja
comercialização está ao alcance
desses pequenos produtores. Aqui,
como alhures, torna-se evidente que o
controle do capital no campo se
realiza através do controle da
comercialização.
232
gerar juros sobre capital incorporado resulta do conjunto das modalidades de controle do
território e não de uma modalidade isolada.
A originalidade da análise da renda fundiária em Marx está em identificar
historicamente a relação entre o controle do patrimônio fundiário e o modo como ele é inserido
no processo de produção. A explicação do desenvolvimento da produção capitalista em seu
conjunto levou Marx a dedicar uma grande parte do Livro III a propor uma explicação da renda
fundiária, em que retoma a discussão desde a base colocada por Adam Smith e revê as bases da
teoria da renda diferencial da terra de Ricardo à luz da formação do controle monopolista da
terra. Smith dissera que o preço da terra é determinado pela renda que ela pode gerar. Isso
logicamente se aplica na explicação do mercado de terras, tanto como na explicação da renda
monopolista das terras. Ricardo tratou essa formação de preços focalizando em condições
comparativas de uso. Desconsidera o monopólio. Marx inverte a análise, partindo do monopólio
e colocando a perspectiva macro econômica do problema.
A principal diferença entre a leitura de Ricardo e a de Marx não é que a primeira se
limite aos aspectos de renda diferencial e a segunda trate do monopólio da terra, senão que a
primeira se refere a uma dada situação da acumulação do capital e a segunda examina a renda da
terra ao longo da acumulação. Com Marx, forma-se uma teoria da renda fundiária, que
acompanha as conseqüências da acumulação sobre a capacidade de acumular.
Hoje, os problemas da renda da terra se bifurcam primeiro, porque se torna mais difícil
distinguir o papel do monopólio, quando o aumento de densidade de capital - representado por
elevação de tecnologia - amplia as possibilidades de aproveitamento das terras; e segundo,
233
porque há um forte apelo, para usar a teoria da renda da terra para explicar a valorização urbana.
No âmbito das cidades a questão se complica, porque a base da renda da terra torna-se menos
visível, ao depender menos do solo natural e depender mais de valor agregado sobre a formação
dos espaços volumétricos. Mas isso não é a sua substituição pelo trabalho posteriormente
incorporado à terra, senão o seu encobrimento pelo mecanismo indireto de agregação de valor.
Um arranha-céu de 40 andares depende de sua base geotécnica proporcionalmente mais que um
galpão que ocupe uma superfície igual.
A nosso ver, a análise desse problema no campo do pensamento marxista fica a dever à
contribuição de Engels, em seu texto sobre os problemas sociais de moradia140. Como a moradia
é indispensável, ela é uma constante do problema. O capital estende sua capacidade de criar
monopólios às cidades. "Como, pois, resolver o problema da moradia? Na sociedade atual, resolve-se
exatamente do mesmo modo que qualquer outro problema social: pelo nivelamento gradual de oferta e
procura, que reproduz constantemente o problema que, portanto, não é solução. A forma como uma
revolução social resolveria não depende somente das circunstâncias de tempo e lugar, senão de questões de
maior alcance, entre as quais está a supressão das diferenças entre cidade e campo."(pp.337) Engels vê
que as classes sociais resolvem de diferentes modos seus respectivos problemas de moradia,
onde as soluções encontradas pela burguesia condicionam as soluções dos trabalhadores.
Entretanto, os problemas teóricos que permanecem decorrem da mesma problemática
que levou Marx a buscar uma integração da análise dos problemas fundiários no plano do
controle monopolista. A renda do fator terra - representativo de recursos naturais - passa a ver-
se sobre o conjunto da integração dos interesses monopolistas organizados nas cidades. A
140 Friedrich Engels, Contribución al
problema de la vivienda, em C.Marx,
F.Engels, Obras escogidas, Progreso,
Moscou, 1974, 3 vols., vol. II, pp. 314
a 396.
234
questão consiste em que as cidades oferecem mais oportunidades para a formação de
monopólios que o campo. A análise da renda da terra torna-se a análise do capital gerado pela
urbanização, que é o capital imobiliário.
O processo se repete em condições de maior complexidade. O capital passa a controlar
indiretamente a formação de valor, mediante a construção dos sistemas de infra-estrutura e
controlando as regras de verticalização urbana, que selecionam as oportunidades de formação de
valor para os diferentes capitais.
O mecanismo central da renda fundiária
A análise de Marx parte de situar a renda da terra no contexto da produção capitalista,
portanto, como um resultado de aplicações de capital em mercado, isto é, em condições que
comandam a estruturação e a transformação da produção capitalista em geral, no que ela
subordina e inclui todas as demais formas de organização da produção. A temporalidade da
renda da terra não é a de um ano agrícola, senão a dos retornos dos capitais que procuram
reproduzir-se mediante as rendas que obtêm da propriedade da terra. Diremos que essa
perspectiva de análise deve ser seguida para decodificar a comparabilidade entre as diversas
glebas, que na verdade refere-se a comparações entre unidades produtivas. Trata-se de renda
fundiária, que se manifesta no solo rural trabalhado pela agricultura e no solo urbano ocupado
235
por edificações, que envolvem um período de depreciação, e, acrescentamos, as possibilidades de
concentração de valor dadas pela verticalização e pela diversificação dos capitais que se
concentram nas cidades141.
Nessa perspectiva de análise, a primeira e mais importante observação sobre o
tratamento dado por Marx à renda do solo, consiste em vê-la como parte de um movimento de
reprodução do capital que usa as oportunidades que encontra, de realizar operações financeiras e
de realizar aplicações com rentabilidade previsível. Apesar de declarar que “a análise da
propriedade territorial cai fora do escopo desta obra” Marx na verdade instala uma visão
moderna da produção agrícola, vendo-a como uma aplicação de capital formado na produção
capitalista em seu conjunto, que, por isso, são comparáveis a quaisquer outras aplicações. Mas
logo distingue, seguindo a linha de análise de Adam Smith, que a produção dos produtos básicos
(alimentos) torna-se referência das demais linhas de produção. A agricultura tem que ser
analisada como algo historicamente formado; e não como algo eterno, que se realiza de um
modo que determina um processo de valorização da terra.
O movimento de expansão e de mudança de composição do capital no campo torna-se a
referência central dos diversos movimentos de formação de renda, que, logicamente, não estão
separados dos movimentos de expansão do capital dinheiro, portanto, do controle dos bancos
sobre a agricultura142. No entanto, a expansão do capital igualmente significa o reordenamento
do capital em seu conjunto, o que significa que os usos de capital já aplicado têm que ser
constantemente revistos.
141 O conceito de solo criado surge
como primeiro ponto de apoio de uma
análise da formação de uma renda
imobiliária urbana que se torna
incomparável com a renda do solo
rural. A complexidade do sistema
fundiário urbano não se esgota na
verticalização - positiva e negativa –
mas parte de relações de domínio que
surgem da permanência ou da não
permanência dos moradores e das
preferências do capital por
determinadas áreas de uma cidade.
142 No Brasil, esse movimento
reveste-se de peculiaridades, que é
preciso esclarecer. A produção
agrícola formou-se a partir da
produção de mercadorias que se
comercializavam em escala
internacional, mas que só podiam ser
realizadas quando em combinação
com outras mercadorias. A produção
açucareira dependeu da produção
primitiva e do extrativismo de
alimentos. Mas a valorização da
terra dependeu do efeito combinado
das diversas formas de exploração
sobre o controle das condições de
ocupação da terra. Mas esse processo
no Brasil não pode ser separado do
processo de comando da
236
Trata-se, portanto, de qual perfil e velocidade do processo de monopolização, e nele, qual
ou quais os papéis da agricultura no movimento de acumulação. A idéia básica é que o papel da
agricultura não pode ser percebido por separado do papel que assume a produção industrializada.
Assim, há uma formação de rendas do capital, decorrentes da exploração capitalista do campo,
em que se encontram uma renda diferencial e uma renda absoluta, criando uma escala de renda
imobiliária, que não depende dos usos de cada imóvel específico, mas que no conjunto é afetada
pelo conjunto dos usos das glebas.
Marx traz uma inversão fundamental do argumento de Ricardo, quando diz que a renda
do solo só pode realizar-se como renda em dinheiro mediante a produção de mercadorias,
concretamente, por ser parte da produção capitalista. Para que haja renda da terra tem que haver
uma produção de mercadorias suficiente para reproduzir o capital aplicado. Aqui Marx introduz
uma hipótese destinada a colocar a condição de viabilidade capitalista da produção agrícola, que
é de que a produção seja vendida por seus custos de produção, isto é, que não seja vendida por
menos que seus custos143.
A principal diferença do tratamento dado por Marx à renda da terra, comparado com
seus predecessores, está em sua abordagem histórica do problema, comparada com a abordagem
de análise instantânea. A abordagem histórica permite articular as diversas variáveis que
intervêm nesse problema. Isso resulta no tratamento de dois aspectos fundamentais, que são os
de produtividade do trabalho e de transformações do mercado. A análise de Marx da renda
fundiária é, essencialmente, complexa, envolvendo diversos tipos de variáveis, assim como
envolvendo o momento e o modo como essas variáveis devem ser inseridas. Diferentemente de
143 Essa hipótese tem que ser revista
à luz das condições imperantes nas
economias periféricas de hoje, em que
os preços das principais mercadorias,
que pré-condicionam a demanda
interna, são definidos na esfera
internacional. Que a produção seja
colocada a preços não inferiores aos
custos não é suficiente para garantir
que essa produção se realize.
disponibilidade de trabalho
compulsório. Tal comando,
obviamente, compreendeu o
constrangimento dos índios e dos
negros, e, de diversos modos, das
diversas minorias que foram objeto
da violência da expansão colonial.
Esse constrangimento continua, na
forma de falta de ocupação
remunerada para uma parte da
população.
237
Ricardo, Marx considera os efeitos de diferenças de produtividade na formação da renda
diferencial da terra, assim como considera os efeitos da exploração simultânea de terras de
diversos tipos. Considera, ainda, o efeito da localização das terras em relação com o mercado,
assim como os efeitos dos sistemas de transportes na formação do conjunto das rendas.
Enquanto Ricardo calcula a renda diferencial como originada por uma diferença de
custos de produção, Marx calcula a partir de preços, portanto, ligando-a a condições específicas
de mercado. Sua premissa básica é que aos proprietários interessa a renda que obtém da
totalidade das terras que possuem e não só de um tipo de terras. O fato da propriedade impõe
um perfil de comportamento relativo à receita operacional que se obtém, portanto, que resulta
em oferta de mercadorias produzidas pelo conjunto da propriedade144.
Marx analisa a formação da renda diferencial em condições de preços de produção
constantes, decrescentes e crescentes, portanto, frente a variações negativas e positivas dos
capitais adicionais, examinando variações dos resultados da incorporação de terras de pior
qualidade. Sobre esse conjunto de condições da formação da renda diferencial, Marx passa a
examinar a renda absoluta, que explica como a seguir (L.III, PP. 715) “A essência da renda absoluta
consiste no seguinte: capitais de igual magnitude, invertidos em diferentes ramos da produção produzem,
com a mesma taxa de mais valia e o mesmo grau de exploração, massas diferentes de mais valia, segundo
sua composição orgânica média. Na indústria, essas massas de mais valia se compensam pelo lucro médio e
se distribuem por igual entre os diferentes capitais, como entre partes alíquotas do mesmo capital social.
Mas a propriedade territorial, onde a produção necessita de terra, seja para fins agrícolas, seja para a
extração de matérias primas, impede que essa compensação se efetive, no relativo aos capitais investidos
144 Esse argumento torna-se evidente
quando se estuda a produção de
mercadorias agrícolas para
exportação. Em casos como os de
cacau e de frutas, cada
estabelecimento tem uma parte de
suas terras dedicadas a esses
produtos e outra parte voltada para a
produção de produtos definidos como
de consumo interno, basicamente de
alimentos. Os critérios usados nesses
dois tipos de produtos são
completamente diferentes e o único
elemento que dá a união do conjunto é
o tempo de trabalho. Na análise
econômica da pequena produção, dita
familiar, encontra-se que há um
limite mínimo de ocupação efetiva
dos integrantes da família – ao redor
de 180 homens dias – que indica a
capacidade de satisfazer as
necessidades básicas. Uma ocupação
inferior a esse número indica
carências alimentares. A gestão da
produção familiar, acima de tudo, é a
gestão de um potencial de trabalho
entre aplicações, em que se procura
usar esse trabalho de modo mais
eficiente para o conjunto e não
apenas de modo mais eficiente para
cada produto. Como as atividades
têm calendário estacional e
demandam certa carga por produto
238
na terra, e absorve uma parte da mais-valia, que de outro modo entraria no jogo da compensação para
formar a taxa média de lucro. A renda forma, então, parte do valor, e mais concretamente, da mais-valia
das mercadorias, com a diferença de que essa parte, em vez de ir parar na classe capitalista, vai parar com
os proprietários, que a extraem dos capitalistas”.
Isso nos leva a uma reflexão sobre as condições da análise rural de hoje. Ora, a partir da
situação em que a formação da renda fundiária se torna parte das determinações do capital em
sua composição técnica de hoje, torna-se supérfluo discutir a renda da terra sem levar em conta
as condições de formação do lucro médio no sistema produtivo em seu conjunto. A valorização
de terras, nos campos e nas cidades, surge como um conjunto de movimentos interdependentes,
em que as decisões do capital são lideradas por decisões do grande capital e em que as condições
de valorização do trabalho são reguladas pela qualificação do trabalho mais qualificado. A
análise de Marx da renda da terra incorpora os elementos de composição do capital indicados no
estudo da reprodução simples – Livro II – em que se distingue a produção de meios de consumo
e meios de produção, mas em que o mercado de trabalho está virtualmente unificado. Este
último aspecto teria que ser revisto no relativo às economias periféricas no que elas contêm
diferenças significativas de integração do mercado de trabalho.
homens hora por ano para cada
hectare de feijão, por exemplo) o
programa de produção da produção
familiar tem que ser posto numa
seqüência de atividades compatível
com os usos do tempo de trabalho
disponível.
239
TECNOLOGIA
Na leitura de Marx é preciso estabelecer que tecnologia, em seu sentido mais amplo e mais
rigoroso, é o modo da práxis como tal. Isto é, tecnologia é a expressão mais ampla que denota a
realidade enquanto ação social produtiva, enquanto modo de fazer as coisas. Assim, há uma visão
tecnológica do processo social que se completa e confronta com os elencos de técnicas, assim como
os elencos de técnicas correspondem a determinadas condições de desenvolvimento das forças
produtivas.
Concretamente, há tecnologias básicas, tais como as da energia e dos transportes, e
tecnologias complementares, tais como as da produção de vestuário ou de mercadorias para o
lazer. Há tecnologias que variam pouco ao longo do tempo, tais como as da produção de pão e
vinho e outras que variam muito em pouco tempo, tais como as da produção de alimentos
nocivos e de bebidas enganosas. Há tecnologias que são desenvolvidas pelo grande capital e
constituem meios de controle de poder sobre investimentos e outras que são mercadorias
descartáveis, que o sistema capitalista desenvolve e abandona.
A tecnologia em si não é um fato ideológico, mas o modo de produzir, usar e controlar
tecnologia é ideológico naquilo em que representa interesses organizados e em que decide quais
tecnologias serão escolhidas para serem desenvolvidas. A “escolha” de desenvolver o automóvel
como meio de transporte privado deu lugar a um grande número de efeitos em cadeia, que
passou a condicionar o sistema produtivo em seu conjunto.
240
A questão tecnológica em Marx aparece ao nível do funcionamento do sistema
capitalista em seu conjunto e ao nível dos usos de técnicas em formas específicas de produção.
São dois planos que interagem na progressão do desenvolvimento do sistema de produção, onde,
portanto, distinguem-se as condições materiais de uso de tecnologia, as possibilidades sociais e
técnicas de uso de tecnologia e as características operacionais dos usos de técnicas específicas. A
capacidade da sociedade de usar tecnologia se amplia e muda de forma, à medida que o sistema
se torna mais complexo e que se amplia a escala de uso de recursos. Há uma complementaridade
entre o conhecimento incorporado nas técnicas, que se congela em técnicas específicas, e o
conhecimento incorporado pelos trabalhadores, que varia continuamente, portanto, variando as
possibilidades reais de aproveitarem-se as técnicas disponíveis.
Por isso, a questão tecnológica deve ser apreciada a partir do conjunto de O Capital, sem
prejuízo de levarem-se em conta alguns textos inéditos específicos sobre técnica, que tratam
mais diretamente da relação entre técnicas e uso de recursos naturais e sobre máquinas145. Para
nós, o conteúdo desses textos é considerado como parte do conjunto maior do tratamento da
tecnologia, que não deve ser confundido com as observações específicas sobre técnica.
A questão tecnológica em seu sentido mais amplo, como uma categoria do capital, é uma
dimensão essencial da explicação da produção capitalista desenvolvida por Marx. Por isso
mesmo, não é tratada por separado por ele, senão está incorporada no movimento que desloca a
composição técnica do capital, e está na diferenciação entre o manejo da maquinaria pelo grande
capital e pelo pequeno capital, assim como está nos modos como o sistema de produção maneja
alterações de velocidade na articulação da esfera de produção com a da circulação. Está claro que
145 Karl Marx, Capital y tecnologia,
manuscritos inéditos (1861-1863)
México, Ed. Terra Nova, México,
1980.
241
na visão de Marx de uma totalização progressiva do sistema de produção, a tecnologia tem o
significado ontológico de modo de fazer como tal, que se manifesta nas diversas formas
específicas de fazer. Tecnologia está na vida social em sua variedade, mas na produção
capitalista tem um significado especial, que é o de que a produção capitalista precisa de
renovação tecnológica, para acionar o mecanismo da mais valia relativa. O mecanismo
examinado por Marx é aquele pelo qual a entrada de novas técnicas reduz o tempo socialmente
necessário para produzir determinadas mercadorias – elevando a produtividade dos
trabalhadores – que, entretanto continuam recebendo salários estabelecidos pela oferta e
demanda de trabalho no mercado.
A tecnologia, portanto, tem subsumido o código de preferências do capital, no relativo a
escolher aquele modo de fazer que lhe permite exercer seu controle sobre o trabalho e sobre os
recursos naturais. O capital prefere aquelas soluções técnicas que lhe permitem extrair mais
valia de um dado conjunto de usos de trabalho. No limite, a escolha de tecnologias é um dos
principais aspectos do imperialismo, que começou pela classificação de produtos e passou a usar
essa classificação para criar diferenciais de preços que não correspondem a diferenças
substantivas de qualidade. A classificação de produtos tais como chá, arroz, café, cacau, fumo,
foi um mecanismo que permitiu que países que não produzem esses produtos passassem a
controlar seus preços.
O mecanismo de deslocamento da composição do capital incide na composição técnica
do capital que se forma e altera as condições de uso do capital acumulado. O problema é que o
capitalismo necessariamente funciona mediante deslocamentos de tecnologia, que introduzem
242
um padrão de imprevisibilidade no sistema, por mais que cada movimento específico seja
previsível.
O movimento geral da produção de mercadorias compreende substituição de mercadorias
e mudança da funcionalidade das mercadorias, que se projeta na relação de preços, porque
(L.III) o aumento do capital constante na composição do capital permite aos capitalistas realizar
a taxa de mais valia cm menores taxas médias de lucro. Essa regra geral se aplica de diferentes
modos para o pequeno e para o grande capital, em parte porque o grande capital pode trabalhar
com maquinaria nova e deliberar sobre o uso de maquinaria velha, e em parte, porque o grande
capital pode escolher técnicas específicas como integrantes de conjuntos, ou situar as decisões
sobre tecnologia como parte de “famílias” de tecnologia – tais como ele considera as tecnologias
da produção de tecidos, da indústria editorial e das ferrovias146.
Esses aspectos materiais da tecnologia, no entanto, foram vasculhados por Marx em seu
significado em termos de continuidade ou de descontinuidade do trabalho, portanto em seu
significado social. Na perspectiva do processo de acumulação, a tecnologia é uma manifestação
externa da estratégia do capital em sua gestão do capital constante, em que ele procura usar o
aproveitamento do capital constante para transformar os aumentos de produtividade dos
trabalhadores em diminuição do pagamento de salários. Assim, o debate em torno da tecnologia
é um modo indireto de colocar a tendência do sistema a substituir trabalho por capital.
Esse mecanismo se revela em sua inteireza no processamento da maquinaria no processo
de produção, em que a incorporação de técnicas funciona como um mecanismo pelo qual, os
ganhos de produtividade são transformados em capital constante e são captados pelo capital, 145 Karl Marx, op.cit..pp. 71-120.
243
enquanto os trabalhadores são remunerados com salários médios de mercado. Nesse sentido, a
tecnologia aparece como uma sucessão de técnicas novas, que entram no mercado seguindo
estratégias do capital para prosseguir o movimento de captação de mais valia relativa147. Mas
que é uma progressão que tem conseqüências inevitáveis, em termos de pressionar
negativamente a taxa de salário.
Essa linha de argumentação tem dois desdobramentos, que devem ser enfatizados: o da
transferência dos incrementos de valor e compressão da renda familiar e o da exclusão de
trabalhadores, que se apresenta como um efeito geral do sistema, que retira do mercado um
certo número de trabalhadores e que bloqueia a entrada de outros. Os dois movimentos são
concomitantes e combinados e geram um leque de resultados que se desdobram ao longo do
tempo.
Certamente, essa linha de argumentação subentende a diferenciação entre os modos
operacionais do grande e do pequeno capital, já que somente o grande capital está em condições
de exercer controle sobre o monopólio da produção e da compra de tecnologia. Observe-se que
os elementos conceituais essenciais desse argumento são apresentados por Marx na análise da
produção social do capital, mas são, de fato, desenvolvidos quando estuda o nivelamento da taxa
de lucro, que justamente envolve esse controle do grande capital.
A tecnologia corporifica a relação entre a ciência e a economia, mas essa relação é
conduzida pelos interesses instalados no sistema produtivo, que dão lugar ao estilo
predominante de desenvolvimento e da condução do processo de acumulação de capital e de
renovação da qualificação dos trabalhadores. 147 “ ” op.cit. pp.130.
244
CAPÍTULO 11. A QUESTÃO
DAS CLASSES SOCIAIS
A percepção da formação de classes na estruturação social conduzida pelo capitalismo apóia-se
primeiro na objetivização de interesses coletivos, para depois penetrar em seus aspectos
subjetivos. Mas está claro que se move desde a fundamentação material das ideologias até a ação
das ideologias na transformação do sistema de produção. Não é, portanto, uma parte da
Economia Política, senão um aspecto que envolve o caráter crítico da análise, no que ela reflete
as representações dos interesses dos participantes do processo socio-produtivo.
Na busca de uma teoria das classes sociais em Marx, é preciso ver que o capítulo com
esse título no Livro III é apenas um fragmento e que as idéias dele sobre classes são parte de
uma visão mais ampla da estruturação social, onde a formação de estamentos aparece como uma
etapa anterior da formação de classes propriamente dita. As relações de classes são a modalidade
de relações que se desenvolvem na sociedade do capital, logicamente, sobre os fundamentos
históricos do capitalismo, desde a escravidão ou desde a servidão feudal. Tacitamente, as
relações de classe mudam, acompanhando o processo que torna o sistema do capital um sistema
de relações despersonalizadas e indiretas.
A teoria das classes sociais em Marx aparece na Ideologia alemã e como um
desdobramento da divisão do trabalho, que dá lugar à consolidação de interesses contraditórios.
245
A teoria das classes sociais é a teoria das lutas de classes no capitalismo. Mas Marx não limita
esse conflito aos termos da produção capitalista, senão vai aos conflitos de classes nas sociedades
mercantis, desde a escravização. A história das classes é a história de conflitos que se projetam
ao interior do sistema produtivo, que mudam de forma ao expandirem-se os espaços
efetivamente capitalistas das relações.
As classes sociais surgem como conseqüência de diferenciação e conflito de interesse,
distinguindo-se da diferenciação por privilégio. Há classes nas sociedades onde predominam
interesses sobre privilégios e tradições. A relação entre senhor – escravo, trabalhada por Hegel, é
uma relação de classe, em que o senhor se identifica como tal por poder extrair trabalho do
escravo. Mas a sociedade capitalista sistematiza a relação de classe, em que a contradição de
interesses faz com que a própria presença das classes envolva uma luta de posições e de
capacidade para mudar de posições. A relação de classes é a relação de coletivos, que permite
aparecer o ser social.
A teoria econômica registra uma análise de classes desde os Fisiocratas, Adam Smith e
Ricardo, que, entretanto, somente nesse último traduziu-se num modelo de análise em que a
diferenciação de interesses traduz-se em alguma forma de conflito de interesses. Em Marx, a
doutrina das classes passa a registrar a progressão do conflito de interesses inerente à
combinação de exploração – acumulação – exclusão. Por isso mesmo, as relações de classe
desenham os limites de relacionamentos que compreendem um componente estável e outro
instável ou transitório.
246
A doutrina das classes em Marx é um dos principais pontos que sustentam a tese de que
só se pode captar o essencial de O Capital de uma visão de sua totalidade. Diremos que não só há
uma doutrina de classes em O Capital, como que a função dessa doutrina no conjunto da obra é
muito diferente do que geralmente se lhe atribui. Não se trata simplesmente de que a relação
capitalista produz classes e relações de classe, senão que a estruturação das classes é um
elemento necessário da formação do capital. Podemos em princípio considerar que essa questão
se realiza em dois níveis, que são os de um desdobramento das relações de classe na operação do
capital e nas condições de engajamento do trabalho; e de ruptura de relações de classe
estabelecidas, quando irrompe um movimento de desorganização da produção, que destrói
posições de classe estabelecidas. Essas mudanças aparecem do lado do capital e do lado do
trabalho. A separação entre capitalistas prestamistas e capitalistas empresários e o aparecimento
de situações de acumulação primitiva, são exemplos que reforçam esta visão da doutrina de
classes.
Estas observações somam-se a outras, sobre a ligação entre a formação de classes e a
tensão entre os componentes do capital mais imóveis, como os que estão ligados à renda da
terra; e os que se identificam com as formas mais voláteis do capital, como os financeiros. Como
a formação de classes é inerente à sociedade moderna, as relações de trabalho estão sujeitas a
transformações, são necessárias duas qualificações da análise das relações de classe,
respectivamente, para distinguir os aspectos históricos e de atualidade; e os aspectos objetivos e
subjetivos dos relacionamentos fundados em relações de classe.
247
A teoria das classes sociais não resolveu o problema causado pela ambigüidade entre as
bases patrimoniais da formação da renda da terra e seu fundamento capitalista. Essa
ambigüidade aparentemente se supera mediante a expansão do capitalismo no campo, que
substitui a propriedade patrimonial herdada, pela propriedade comprada para empreendimentos.
Em termos de hoje, a substituição dos velhos latifúndios formados no período colonial por
propriedades compradas para valorizar capital. No entanto, a experiência oferecida por
pesquisas em diversas regiões do Brasil, bem como em diversos outros países latino-americanos,
leva a rever – restringir - esse pressuposto. A precariedade, e mesmo a ausência, de cálculo
econômico em grande parte dos estabelecimentos agro-pecuários coloca seus proprietários numa
posição que dificilmente pode ser caracterizada como de produção capitalista, por mais que uma
parte de sua produção ingresse no mercado capitalista.
Marx não resolveu esse elemento anódino da composição de classes, senão que continuou
considerando o componente patrimonial da sustentação das classes. A questão do patrimônio
permanece na perspectiva econômica das classes, enquanto sua consistência sócio-cultural pode
dar lugar a controvérsias na relação entre a perspectiva das classes no espaço-tempo de sua
formação e em sua atualidade.
A doutrina das classes ficou aberta em dois aspectos fundamentais: no relativo à posição
dos que não fazem parte diretamente das relações capitalistas de produção e no relativo à
situação dos que são projetados para fora dessas relações.
A leitura da questão das classes nas economias periféricas de hoje obriga a trabalhar com
a perspectiva de formação de classes, mas com o entendimento de que as classes se formam sem
248
jamais incluir a todos os integrantes do corpo social. A complexidade dos processos de exclusão
soma-se a novos limites de participação em relações estáveis e legitimadas, tornando-se uma
nova regra que reage de volta nas relações das classes propriamente ditas. Longe de se diluir, a
teoria das classes sociais torna-se um instrumento indispensável para penetrar em sociedades
submetidas a rupturas e a desigualdade crescente.
249
A LEI DO CAPITAL
Em diversos momentos Marx desfia os dois principais elementos da dinâmica social do capital:
a vertigem da mudança social – o novo já nasce velho – e a crise inerente à autofagia do capital,
tensionado entre interesses individuais e necessidades da perpetuação do sistema. Ao olhar esse
movimento do sistema em sua totalidade não há como limitar a teoria da tendência à crise aos
aspectos terminais do processo do capital. A tendência à crise é uma imanência do sistema, isto
é, o modo de funcionamento social do sistema contém um modo de relacionamento baseado em
conflito de interesses que pressupõe uma crise de objetivos do sistema. Esse conflito de interesse
já tinha sido mapeado no modelo de análise de Ricardo como fundamento de uma tendência à
estagnação, que é uma conseqüência final do processo da formação de capital. Em Marx a
questão não é o resultado senão o processo. Já na Contribuição à critica da economia política Marx
aponta à defasagem entre a transformações na composição do capital e a organização social da
produção, quando diz que “as forças materiais de produção entram em contradição com as relações de
produção existentes” e quando diz no Manifesto que o novo nasce velho. A lei do capital é um
presságio que se visualiza desde quando se reconhecem que a renovação da composição técnica
do capital pode avançar mais depressa que as condições de renovação das qualificações do
trabalho.
Ao identificar essa defasagem descobre-se que o sistema produtivo do capital se move
guiado por interesses que se manifestam em condições sociais concretas, entretanto, com
250
motivações gerais que não podem ser explicadas em termos de consumo, que são as da
acumulação de capital.
Marx concebe a lei do capital como uma derivação dos efeitos da taxa de mais valia na
acumulação, abordando esse problema desde o mecanismo da acumulação dos capitalistas
individuais, considerando as condições de mercado em que cada um deles pode mobilizar sua
taxa de mais valia para realizar seus objetivos de acumulação de capital. Noutras palavras,
descobre o campo de problemas que se encontra entre gerar e captar mais valia e reintegrar a
mais valia ao sistema produtivo. A continuidade da acumulação depende de que haja soluções
consistentes para os capitais específicos. Assim, a esfera de grandes movimentos da
macroeconomia não obscurece o mundo da pluralidade da microeconomia. A lei do capital tem
efeitos externos e internos que atingem as possibilidades de reproduzir-se dos diversos capitais e
que modificam as condições concretas do movimento social de acumulação, naquilo em que ele
envolve relações de poder.
251
UMA VISÃO RETROSPECTIVA
DO EIXO TEORIA-MÉTODO
“Uma vez que conseguiu afirmar-se como tese, essa tese, esse pensamento, oposto a si
mesmo,desdobra-se em dois pensamentos contraditório,o positivo e o negativo, o sim e o não.A luta
desses dois elementos antagônicos, encerrados na antítese, constitui o movimento dialético”. Marx,
Miséria da Filosofia, pp.96.
Há muitas colocações sobre o método em Marx, que refletem o desenvolvimento de um
processo de trabalho que avança, progressivamente, desde a construção da crítica como modo de
análise e visão de mundo, até converter-se em crítica imamente: crítica, como ele diz, que surge
da própria exposição do processo social da economia burguesa. A nosso ver, trata-se do
movimento que resulta na constituição de sua abordagem estrutural histórica, conduzida
dialeticamente, que descreve o movimento de desdobramento do pensamento teórico como
produto de trabalho, isto é, como um produto ideológico de determinadas sociedades e
civilizações.
Outras abordagens sobre o método de Marx, tal como a de Godelier, apontam aos seus
modos lógicos. Kautsky focaliza na formação da doutrina econômica em Marx. Hobsbawn
desenha o modo de pensar história em seu ensaio sobre as formações pré-capitalistas de Marx.
252
Dobb trata o pensamento de Marx como uma vertente crítica da economia clássica. O próprio
Marx fala várias vezes sobre método, inclusive no texto dos Grundrisse em que trata de método
em análise social e em outros momentos, em que sua visão de método surge de suas polêmicas.
A questão de método em Marx a nosso ver tem que ser tratada no plano de um
questionamento filosófico - ontológico e categorial – no rastreamento de seus fundamentos em
Aristóteles e em Hegel, quando a abordagem realista da dialética revela com mais força a
identificação com a perspectiva realista do primeiro. Daí, que a compreensão de totalidade
concreta se reporta ao essencial se reporte aos fundamentos metodológicos, isto é, que
contemple a inserção de Marx no contexto dos problemas de método que ele próprio reconheceu
como necessários. Isto significa expor o Marx filósofo, antes do sociólogo e do economista.
Marx não se afastou de Hegel num ponto fundamental, que foi de preferir enfrentar os
problemas do real frente ao do ideal. Sua crítica a Hegel, tal como se encontra nos Manuscritos de
44, consiste em vê-lo como pseudoidealismo, que a rigor seria um idealismo que se autoreproduz
por separado dos movimentos de pensamento genuinamente derivados do mundo real. Em todo
momento está presente a proposta de reconstruir o pensamento social sobre bases
historicamente consistentes. Esse, justamente, é um ponto crucial, da fundamentação histórica
do método, porque a compreensão de que as ideologias são historicamente produzidas, implica
em olhar para os aspectos não materiais da produção, que exatamente o que Hegel fez em suas
Lições de História Universal. Esse aspecto da crítica a Hegel teria que ser revisto primeiro, se
considerando a obra de Hegel em seu conjunto, especialmente as Lições de Filosofia da História,
onde se encontra mais claramente exposta, a relação entre a produção de “idéia” e a cultural.
253
Segundo, teria que ser revisto, porque em Hegel a dialética caminha sobre movimentos
específicos que são ininteligíveis se separados da relação com o mundo real das sociedades148.
Uma leitura do método incorporado no movimento da obra de Marx é indispensável para
que se compreendam os significados dos resultados que sua análise objetiviza. O progresso da
teoria depende da fundamentação de método. No capítulo inicial sobre método na Crítica da
razão dialética, Sartre denominou o método de Marx de progressivo-regressivo, que considerou
como uma dialética real, por contraste com uma dialética dogmática. Com isso, refere-se ao
contexto da doutrina hegeliana, vendo Hegel com a integridade de sua interpretação, tal como
ela se encontra no conjunto da obra, não apenas como ela foi apresentada como um tema, senão
como ela foi empregada. A observação final destas notas é que se trata de uma filosofia da
realidade, capaz de reintegrar as bases materiais e ideológicas da pessoa que é constrangida a
participar do sistema social sem poder compreender onde se encontra nem que pode fazer sobre
si próprio. Por contraste, essa filosofia desenha os contornos dos processos de alienação, que se
desenvolvem junto com a concentração da capacidade de reproduzir o capital acumulado.
Há dois aspectos de método a destacar na obra de Marx, no relativo ao tema deste ensaio.
Um que corresponde ao modo de fundamentar-se e ao desdobramento de níveis de análise dos
planos mais gerais aos mais específicos. Outro que consiste em explorar cada argumento em
suas conseqüências para a identificação e o desdobramento de outros argumentos a seguir. O
primeiro aspecto se configura no tratamento dos problemas de categorias e dos problemas de
articulação lógica da análise. As idas e vindas entre argumentos antecedentes e conseqüentes, tal
como se vê claramente no tratamento da mais valia absoluta e da relativa, mostram esse
148 Talvez essa dificuldade provenha
de que alguns dos comentaristas
vejam a dialética de Hegel somente
através de sua exposição na Ciência
da Lógica, sem levar em conta sua
presença na obra de Hegel em seu
conjunto. Entretanto, também na
História da Filosofia ela aparece
atavés da vinculação do pensamento
teórico a suas condições históricas.
.
254
encadeamento de raciocínio, que se ajusta ao que Sartre denominou de progressivo-regressivo.
O segundo aspecto está mais claro no tratamento dos aspectos financeiros, em que se trata,
praticamente, de pesquisar sobre possíveis desdobramentos da tendência inevitável à mudança.
Ao olhar para o potencial explicativo inerente às escolhas de método, ganha mais força a
distinção entre o trabalho de método no corpo central da teoria, onde tem seu maior impacto no
deslocamento do discurso teórico; e nos seus campos subsidiários, onde seu efeito é mais
exploratório e não altera muito a linha central da análise. Entendemos que o essencial da
discussão teórica é alcançar a maior clareza possível no relativo ao corpo central da teoria, que
em última análise determina a clareza sobre suas bifurcações e campos específicos.
Abaixo dessas questões mais profundas do tratamento da questão de método, há aspectos que não
podem ser ignorados, da relação entre o plano superficial e operacional do método e o plano profundo, da
teleologia da análise social, que a liga a uma teoria da ação social, e através desta, ao sentido ou falta de
sentido da acumulação.
255
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