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UNIVERSIDADE DE BRASLIA INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
A ECONOMIA SIMBLICA DA CULTURA POPULAR SERTANEJO-NORDESTINA
Autor: Elder Patrick Maia Alves
Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Braslia|UnB como parte dos requisitos para obteno do ttulo de doutor.
Braslia, abril de 2009.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
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UNIVERSIDADE DE BRASILIA INSTITUTO DE CIENCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
TESE DE DOUTORADO
A ECONOMIA SIMBLICA DA CULTURA POPULAR SERTANEJO-NORDESTINA
Autor: Elder Patrick Maia Alves
Orientadora: Doutora Mariza Veloso Motta Santos
Banca: Profa.Dr.Mariza Veloso Motta santos (UnB) Profa.Dr.Maria Anglica Madeira (UnB) Prof. Dr. Edson Silva de Farias (UnB) Profa. Dr. Maria Celeste Mira (PUC|SP) Prof. Dr. Frederico Barbosa da Silva (IPEA) Suplente: Prof. Dr. Joo Gabriel Lima Cruz Teixeira (UnB)
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
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memria de minha av, Alice Lopes Maia. meus pais. Luisa Maia.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
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AGRADECIMENTOS Quando comecei a erguer esse trabalho algumas pessoas prximas e queridas estavam
aqui, outras se sequer conhecia...Gratido, palavra-TUDO. Me valerei da sua totalidade
para arvorar minha saudade e apresentar minha dvida.
Agradeo a Universidade de Braslia (UnB). Seus professores e funcionrios,
especialmente aos servidores da secretaria da Ps-graduao, Evaldo e Ablio. Agradeo a
minha orientadora, Mariza Veloso, pela liberdade, rigor, segurana e confiana. Agradeo
ao Cnpq pela bolsa de estudos imprescindvel consecuo desta pesquisa. Minha famlia,
gratido eterna.
Professor Brasilmar, sem a sua amizade e afeto nada disso seria possvel. Obrigado.
Edson, obrigado. Ldia, sua sutileza e elegncia fitam essas pginas. Saudade de So
Lzaro. Luisa, minha filha, voc existe demais, at me apavora. Fernando Cardoso, amigo
na dor e na alegria, na Baa da Guanabara e na Baa de Todos os Santos. Fernando
Rodrigues, companheiro de trincheira. Maria, Clara (muito Clara, bem clarinha....) a
manh que anuncia nossa cidade, que faz da UnB um reservatrio de afeto e saudade.
Janilce Rodrigues e Evaldo Coutinho, obrigado por ter me feito brasileiro e baiano em
Braslia. Osvaldo, grande amigo de poesia, obrigado. Diogo, amigo de reflexividade.....
Agradeo a todo pessoal de Sobradinho, Xande, Cida, Lel, Daniel, Gustavo, Bruno,
Isabel, Rafa, Paulo Gabriel, Angelina, Luize, Jorge, Gilvan, Celinho, Celina, Maria Paz e
outros. Aos Amigos do PET: Bruno, Carlo e Andrs. A meus amigos e amigas do Rio:
Paola, Luiz, Fernanda, Clara Leal, Aline, Tiago e outros. A todo pessoal de Monjolos:
Dona Neide, Seu Jair, v Sua, Soraia, Janete, Everton, Esmeralda, Paulo, Nieilton e
outros. A meus primos, Jarbas e Joo Pedro. minha gerao de Salvador: Alex, Rosvel,
Diego, Moacir, Cabea, Theo, Lo, Bruno, Maurcio, Carlos, Maria Maranho e outros.
Aos amigos do mestrado e doutorado: Mara, Gilberto, Luiza, Marcela, Guilherme, Cris,
Simone, Santiago, Gabriel, Oto, Braitner, Chiquinho da livraria. Wlisses, grande
irmo.Muito obrigado.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
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RESUMO
Este trabalho tem como horizonte temtico as transformaes ocorridas no mbito da
produo simblico-cultural contempornea, notadamente no que diz respeito s novas
faces e fases do processo de industrializao do simblico com as polticas culturais
pblicas. Diante dessa temtica, a pesquisa buscou objetivar precisamente as interfaces
entre determinadas polticas culturais pblicas e o advento de uma nova formao
discursiva (o repertrio discursivo UNESCO) para a estruturao de um mercado de bens e
servios culturais bastante especfico, ancorado fundamentalmente no valor social
conferido categorias como tradio e autenticidade. As interfaces entre os processos
mencionados plasmaram uma rede de interdependncias assaz complexa, integrada por
distintos planos empricos, tenses polticas e lutas culturais, alm de processos
intersubjetivos, como o consumo simblico e a construo social do gosto. O objetivo do
trabalho consiste, assim, em desvelar e compreender os principais eixos de tessitura dessa
rede, composta simultaneamente por quatro processos: os impactos da intensificao do
processo de industrializao do simblico (hoje tambm digitalizao do simblico); o
advento de uma nova formao discursiva em mbito transnacional, tributria das lutas
poltico-culturais em defesa da diversidade cultural, da identidade e das chamadas
culturas tradicionais e populares, lutas essas marcadas pelas novas relaes entre as
categorias de cultura e desenvolvimento; a implementao de determinadas polticas
culturais (como o Programa Cultura Viva e o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial
PNPI), que atualizam e potencializam o valor social atribudo s categorias de tradio e
autenticidade, pondo em circulao alguns signos institucionais de distino, como os
pontos de cultura e o ttulo de Patrimnio Cultural do Brasil, muitas vezes utilizados com
objetivos polticos e econmicos; por fim, o consumo simblico orientado pela busca da
experincia de consumir bens e servios culturais reputados como profundamente
autnticos e tradicionais, como a literatura de cordel, os objetos de barro da arte
figurativa e o forr|baio, presentes em determinadas linguagens artsticas, como o
cinema, o teatro e a literatura. Esses quatro processos conjugados configuram a economia
simblica da cultura popular sertanejo-nordestina.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
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ABSTRACT
The thematic horizon of this paper focus on the transformations that occurred in the scope
of the contemporary cultural-symbolic production mainly in matters of the new faces and
phases of the industrialization of the symbolic process within the public cultural politics.
Facing this theme, this research seeked to show precisely the interfaces between the
definite public cultural politics and the advent of a new discourse formation (the discourse
repertoire of UNESCO) for the structuring of a very specific cultural market of goods and
services, anchored fundamentally in the given social value of the categories of tradition
and authenticity. The interfaces between the mentioned processes has shaped a complex
net of interdependences integrated by distinct empirical plans, political tensions and
cultural fights beyond the inter-subjective processes as a symbolic consumption and the
social construction of taste. The objective of this paper consists thus, in revealing and
understanding the main axes of texture of this net, composed simultaneously by four
processes ; The impacts of the intensification of the industrialization of the symbolic
(today also called digitalization of the symbolic); The advent of a new discourse formation
in the transnational scope, tributary of the cultural-political fights in the defense of the
cultural diversity , identity and the so called traditional and popular cultures. These fights
were marked by the new relations between the categories of culture and development, the
implementation of certain cultural politics( such as the show called Programa Cultura
Viva-Living Culture Show and Programa Nacional do Patrimonio Imaterial - PNPI-
National Program of the Imaterial Patrimony), that have updated and potencialized the
social value attributed to the cathegories of tradition and authenticity placing in
circulation some distinguished institutional signs such as cultural points and the title of
Brazillian Cultural Patrimony, many times used for economical or political purposes, and
finally the symbolic consumption guided by the search of the experience to consume
goods known as deeply authentic and traditional, such as Twine Literature (Literatura
de Cordel),objects made of adobe from the figurative art and Forr/Baiodance, present
in some determined artistic languages such as the movies, the theater and literature. These
four conjugated processes configure the symbolic economy of the popular sertanejo-
North.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
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RESUM
Cette oeuvre a comme horizon thmatique les transformations produites dans le domaine
de la production symbolique-culturelle contemporaine, spcialement en ce qui concerne les
nouvelles faces et phases du procs de industrialisation du symbolique avec les politiques
culturelles publiques. En face du thme propos, la recherche a eu comme but objectiver,
avec exactitude, les interfaces entre certaines politiques culturelles publiques et
lavnement dune nouvelle formation discursive (le rpertoire discursive de lUNESCO)
pour lstructuration dun march de produits et services culturelles assez spcifique, bas
fondamentalement sur la valeur sociale emprunte des catgories comme tradition et
authenticit. Les interfaces entre les procs mentionns ont dessin un rseau
dinterdpendance assez complexe, intgr par des distinctes plans empiriques, des
tensions politiques et des disputes culturelles, en plus, des procs intersubjectives, comme
la consommation symbolique et la construction sociale du got. Lobjective de loeuvre est
de dvoiler et de comprendre les principaux axes du tissu de ce rseau, compos au mme
temps par quatre procs : les impacts dintensification du procs dindustrialisation du
symbolique (connu aussi comme digitalisation du symbolique) ; lavnement dune
nouvelle formation discursive dans le domaine transnational, subordonne par des disputes
politique-culturelles qui dfendent la diversit culturelle, lidentit et les cultures
traditionnelles et populaires, ces disputes, ainsi, sont marques par des nouvelles relations
entre les catgories de culture et dveloppement ; limplmentation de certaines politiques
culturelles( comme le Programme Cultura Viva et le Programme National du Patrimoine
Immatriel PNPI), que misent en nouvelle et potentialisent la valeur sociale attribues
des catgories de tradition et authenticit , en mettant en scne quelques signes
institutionnels de distinction, comme les points de culture et le titre de Patrimoine Culturel
du Brsil, utilis plusieurs de fois avec des objectives politiques et conomiques ; pour
conclure, la consommation symbolique oriente par la recherche de la exprience de
consommer produits et services culturelles jugs comme profondment authentiques et
traditionnelles, comme la littrature de cordel, les objets de dargile de lart figurative et le
forr/baio, prsents dans certaines langages artistiques, comme le cinma, le thtre et la
littrature. Ces quatre procs conjugus configurent lconomie symbolique de la culture
populaire sertanejo -nordestina.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
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Sumrio Introduo............................................................................................................................01 1 Captulo. Modernizao cultural: produo simblica, construo e usos da categoria de cultura popular. 1.1 Arte,tcnica e memria: o serto e a formao do seu significado diante do processo de industrializao do simblico...............................................................................................11 1.2 Critica e resignao: o trnsito constante entre as categorias nativas e as categorias analticas: a fora poltica da categoria de indstria cultural.............................................76 1.3 A produo das categorias nativas. Cultura popular e serto: cultura e poltica entre os intelectuais-artistas dos anos cinqenta e sessenta......................................................100 1.3.1 O movimento folclrico brasileiro: 1947-1964........................................................105 1.3.2 O ISEB e o CPC da UNE.........................................................................................123 1.33 O Cinema Novo.........................................................................................................132 2 Captulo. O advento de uma nova formao discursiva: o repertrio discursivo UNESCO. 2.1 A produo simblica contempornea e as novas relaes entre as categorias de cultura e desenvolvimento..................................................................................................139 2.2 Diversidade cultural, patrimnio imaterial e identidade: a UNESCO e a conformao de um apelo global..............................................................................................................164 2.3 A formao de novas categorias nativas: o serto diante da economia da criatividade e das indstrias criativas.......................................................................................................186 3 Captulo. Estado, mercado simblico e polticas culturais pblicas: tecendo o serto. 3.1 O estado e a dinmica da economia da cultura no Brasil: poltica cultural e mercado simblico.............................................................................................................................214 3.1.1 Produo: financiamento e trabalho.........................................................................216
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
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3.1.2 Circulao: equipamentos culturais pblicos...........................................................225 3.1.3 Demanda e consumo: o consumo institucional, o consumo corporativo e o consumo familiar...............................................................................................................................230 3.2 O lugar das culturas populares no sistema Minc: o serto diante do processo de constitucionalizao da cultura..........................................................................................238 3.2.1 Cultura Viva: os pontos de cultura como selos institucionais de reconhecimento..................................................................................................................253 3.2.2 O PNPI: o serto e a institucionalizao das polticas de patrimnio cultural imaterial............................................................................................................................ 267 3.2.3 O registro da Feira de Caruaru: a formao de um ttulo de distino..................283 3.3 Autenticidade, tradio e identidade cultural-corporativa: o serto e as empresas culturalmente responsveis...............................................................................................301 4 Captulo: os consumidores de emoes: consumindo autenticidade e experimentando o serto................................................................................................................................332
4.1 Consideraes finais................................................................................................ 359
5. Referencias bibliogrficas...........................................................................................361
5.1 Documentos citados e consultados.......................................................................... 371
5.2 Stios consultados.......................................................................................................373
5.3 Filmes citados.............................................................................................................374
5.4 Ficha tcnica dos filmes analisados......................................................................... 375
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
10
Introduo Esse trabalho busca apresentar e analisar os principais feixes de processos empricos
que, em seu conjunto, estruturam hoje no Brasil um mercado de bens e servios culturais
ancorado no valor social conferido tradio e autenticidade da cultura popular
sertanejo-nordestina. Entre outros aspectos, o serto nordestino, desde as primeiras
dcadas do sculo passado, foi classificado e reputado por algumas geraes de
intelectuais-artistas brasileiros, notadamente nos anos cinqenta e sessenta, como uma
espacialidade que guarda os elementos mais vibrantes e autnticos da cultura e da
identidade nacional. Essa classificao passou por mudanas, sofrendo atualizaes e
ressignificaes. Diante dessas vicissitudes, importa perceber, contudo, em que medida o
valor social atribudo cultura popular do serto nordestino impregna de significado um
conjunto de bens e servios culturais inscritos na experincia de consumo simblico de
determinados grupos de status (WEBER, 1994).
Um dos principais eixos de estruturao e consecuo de tais servios e bens culturais
so as polticas culturais pblicas, formuladas e implementadas por rgos e instituies da
administrao cultural pblica (nos trs nveis administrativos e governamentais: unio,
estados e municpios), que atuam diretamente como legitimadoras e potencializadoras do
valor social conferido s categorias de tradio e autenticidade. A atuao da
administrao cultural pblica, entretanto, s pode ser compreendida luz de processos
discursivos transnacionais que estreitam as interfaces das polticas culturais desenvolvidas
no Brasil com o tema do patrimnio cultural imaterial, das indstrias da criatividade, do
direito autoral e, sobretudo, das relaes contemporneas entre as categorias de cultura e
desenvolvimento.
Com efeito, diante desse arranjo de processos e interdependncias, este trabalho
buscou apresentar, problematizar e analisar, em cada um dos captulos que compem o
texto, as condies sociolgicas de possibilidades responsveis pela tessitura de uma
configurao social assaz complexa e multifacetada, composta por diferentes recursos
polticos e culturais, como as mediaes contemporneas entre arte e tcnica; as lutas
polticas e culturais pela obteno de ttulos institucionais de reconhecimento e distino
(selos e prmios); os usos e contra-usos simblicos e materiais desses ttulos institucionais;
alm de uma nova trama discursiva tecida em mbito transacional que, entre outros
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
11
aspectos, trouxe para a ordem do dia do planejamento governamental categorias e temas
como indstrias da criatividade, patrimnio cultural imaterial, cultura e desenvolvimento.
Como de pode depreender, para a tessitura dessa configurao social h distintas
ordens de processos empricos, cujas tenses e acomodaes concorrem para a estruturao
de uma economia de sons, imagens, signos, objetos artsticos, suportes tcnicos e
linguagens estticas bastante especifica. Diante desse arranjo, ainda durante a confeco e
apresentao do projeto de qualificao desta pesquisa1, cunhou-se o seguinte problema de
pesquisa: quais as condies sociolgicas responsveis pela estruturao de uma economia
de bens e servios culturais ancorada fundamentalmente no valor social atribudo s
categorias de tradio e autenticidade? Depurando mais a indagao: sob que condies
sociais especificas se atualiza e se potencializa o valor social atribudo tradio e
autenticidade das expresses e manifestaes da cultura popular sertanejo nordestina?
Buscando responder tal indagao, o trabalho de pesquisa foi iniciado por uma
investigao simultaneamente terica e emprica, que consistiu em compreender as
complementaridades e tenses envolvendo arte, tcnica e mercado cultural no decurso do
processo de modernizao cultural no Brasil. Tais complementaridades e tenses tiveram
como solo comum a regularidade entre os trnsitos simblicos e urbanos durante o
processo de modernizao nacional, cujos resultados concorreram, em mios as
transformaes sociais do sculo XX, para a formao de determinadas memrias sociais.
O processo de industrializao do simblico (CANCLINI, 2003) diz respeito a um
amplo movimento de desenvolvimento de processos scio-tcnicos de produo e
transmisso de signos, imagens e sons que, aliado aos processos de urbanizao e
industrializao, gestou mercados especficos de bens e servios culturais, responsveis
pela produo de determinados significados e a formao de memrias. Com efeito, a
primeira seo do primeiro captulo busca demonstrar como, atravs da imbricao entre
um complexo de tcnicas, linguagens e mercados simblicos, se instituiu no Brasil um
trnsito simblico permanente entre os espaos urbanos e rurais. O gnero musical
forr|baio, por exemplo, foi resultado desse trnsito permanente.
decisivo ressaltar que, para a estruturao da economia de signos e smbolos da
cultura popular sertanejo-nordestina, cada uma das condies de possibilidades
apresentadas e analisadas nos quatro captulos deste trabalho correspondem a processos 1 Qualificao de projeto de doutorado, realizada no doa 09 de dezembro de 2006, no Programa de Ps-Grduao em Sociologia, Departamento de Sociologia da Universidade de Braslia (PPG-SOL-UnB).
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
12
empricos interdependentes. Desse modo, o processo de industrializao do simblico no
algo que antecede ou simplesmente contorna o objeto emprico desta pesquisa. Primeiro,
o processo de industrializao do simblico constitutivo das vicissitudes do processo de
modernizao nacional. por meio dele e a partir de seus impactos que, na longa durao
scio-histrica (ELIAS, 2001), a narrativa de significado do serto nordestino ganhou
densidade simblica e carter nacional. Segundo, foi mediante as reaes ao processo de
industrializao do simblico (expanso dos mercados culturais urbanos e consolidao do
valor de exposio) que determinados grupos de intelectuais e artistas assumiram posturas
polticas bastante criticas, desdobradas em muitas direes, mas cujos resultados, direta ou
indiretamente, acabaram conformando uma espcie de estatuto social da pureza e da
autenticidade ligado a narrativa de significado do serto nordestino. Terceiro, a
intensificao do processo de industrializao do simblico nas ltimas dcadas do sculo
XX corroborou de maneira direta para a ascenso das economias contemporneas de
servios, no interior das quais os bens e servios culturais abarcam uma multiplicidade de
atividades, simultaneamente econmicas e simblicas.
Esses trs aspectos esto condensados nas trs sees que compem o primeiro
captulo, mas os efeitos e desdobramentos empricos do processo de industrializao do
simblico esto espraiados por todo o texto. Nesse sentido, o processo de industrializao
do simblico uma condio de possibilidade que estrutura e mantm uma regularidade
bastante definida, notadamente no que diz respeito s interfaces entre arte, tcnica,
mercados culturais e a formao das memrias sociais. Essa regularidade aparece hoje
como um dos fatores que condiciona a formao institucional de determinadas polticas
culturais, as novas relaes entre as categorias de cultura e desenvolvimento, assim como o
consumo de bens e servios culturais reputados e experimentados sob o signo da pureza,
autenticidade, da diversidade e da criatividade artstico-popular. Em outros termos,
em meio as novas faces e fazes do processo de industrializao do simblico que as
expresses e manifestaes das chamadas tradies populares se realizam e tornam-se
possveis, sobretudo no que tange s aes polticas constitudas diante das ameaas de
padronizao e homogeneizao cultural.
O mesmo vale para o tratamento terico e metodolgico dos processos empricos
presentes na organizao do segundo captulo, qual seja, o surgimento de novas categorias
poltico-culturais que, no seu conjunto, apontam para a emergncia de uma nova formao
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
13
discursiva (FOUCAULT, 1986). Tal formulao discursiva marcada pelos
desdobramentos simblicos e polticos derivados das novas relaes contemporneas entre
as categorias de cultura e desenvolvimento. A categoria cultura era concebida, sobretudo
por parte dessas elites nacionais e internacionais, segundo a compreenso tributria dos
trechos e convenes publicados pela ONU|UNESCO durante a sua constituio, logo aps a
Segunda Guerra Mundial. Esses trabalhos, por sua vez, foram informados pelos postulados
tericos da antropologia social 2, cuja concepo de cultura diz respeito a uma totalidade
vivida no cotidiano, ou seja, um conjunto abrangente de hbitos, costumes, crenas e
valores.
Por seu turno, a categoria desenvolvimento (tributria das transformaes que o termo
progresso sofreu desde o final dos anos trinta do sculo passado) designava um processo
ligado s transformaes materiais (aumento da infra-estrutura urbana, dos nveis de
industrializao, aumento do nmero de trabalhadores, dinamizao das trocas monetrias,
aumento dos fluxos comerciais, etc.) de vastos conjuntos de populaes, isto , a
modernizao material de um modo geral. At os anos setenta, cultura e desenvolvimento
eram experimentados, tanto pelas elites tcnico-cientficas frente dos estados nacionais
(sobretudo os estados latino-americanos em acelerado processo de urbanizao e
industrializao, como Brasil e Mxico, por exemplo), quanto pelas elites tcnico-
cientficas transnacionais (entre elas muitos cientistas sociais que integravam rgos do
sistema ONU, como a Comisso Econmica para o Desenvolvimento da Amrica Latina
CEPAL), segundo um registro de tenso e antagonismo.
A partir dos anos setenta esse antagonismo foi atenuado e, de l para c, os termos
passaram a ser acomodados, o que permitiu a operacionalizao do que se chama neste
trabalho de repertrio discursivo UNESCO, que, por sua vez, passou a ser o lastro de
inspirao terico-legal da maioria das polticas culturais pblicas em todo o mundo. A
rigor, o movimento de aproximao e acomodao entre as categorias cultura e
desenvolvimento e de conformao do repertrio discursivo UNESCO foi um dos principais
responsveis pela recm valorizao das polticas culturais para as culturas populares no
mbito da nova arquitetura poltico-institucional erguida a partir da instaurao do Sistema
Federal de Cultura (SFC) no Brasil. No entanto, para se compreender essas mudanas e
2 Ver, por exemplo, o clssico ensaio intitulado Raa e cultura, encomendado pela organizao ao antroplogo francs Claud Levi-Strauss.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
14
deslocamentos preciso voltar a ateno para as transformaes econmicas
experimentadas a partir do fim dos anos sessenta do sculo passado.
As referidas mudanas so ao mesmo tempo uma condio e o resultado de
constituio das economias de servios e de estruturao do capitalismo ps-industrial
(BELL, 1973). Por exemplo, a expanso do tempo livre durante os anos sessenta e setenta
deslocou algumas atividades que antes eram ocupadas com o trabalho cotidiano para as
prticas de lazer e diverso. Essas, por sua vez, desencadearam um mosaico de servios de
entretenimento que ampliaram ainda mais a esfera cultural laica (WEBER, 1984), cujos
rebatimentos foram decisivos para a insero dos bens e servios culturais nas contas e nos
clculos da economia mundial. O aumento do tempo livre, no obstante, decorreu do
aumento da escolarizao e dos processos de intelectualizao em geral, demandados pelos
novos processos que deram origem as tecnologias da informao e a digitalizao dos
fluxos informacionais e comunicacionais. Ambos, por sua vez, so faces relacionais de um
processo ampliado de desmaterializao das mercadorias e desindustrializao do
capitalismo contemporneo (BELL, 1973). Os efeitos desses processos, como se v ao
longo do texto, deslocaram os bens e servios culturais para o ncleo das economias de
servios, o que assegurou a pujana poltico-econmica de uma das novas faces do
processo de industrializao do simblico, que passou a ser tambm digitalizao do
simblico. Diante dessas transformaes, alguns organismos de planejamento e de
normatizao transacionais, como a prpria UNESCO, buscaram dilatar os conceitos de
cultura e desenvolvimento.
A dilatao dessas categorias ocorreu em duas direes. Primeiro, o conceito de
desenvolvimento foi objeto de uma reviso conceitual que atenuou a nfase econmico-
material de seu registro de significado. Desenvolvimento, segundo o sistema ONU, deveria
abarcar diversos aspectos da vida social, entre eles, o desenvolvimento cultural. A partir
dos anos oitenta a organizao passou a criar novos ndices de aferio do
desenvolvimento, que cada vez mais passou a ser acompanhado do epteto humano ou
em parceria com a categoria de qualidade de vida. Esses ndices, entre eles o mais notrio,
o IDH (ndice de Desenvolvimento Humano), deveriam apreender e mensurar aspectos
como qualidade de habitao, acesso educao, acesso sade, nvel de renda, acesso
produo cultural e o lazer, e no to somente se ater ao desenvolvimento material.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
15
O desenvolvimento cultural, um dos critrios das novas formas de mensurao do
desenvolvimento, no era outra coisa se no um instrumento que buscava estabelecer o
grau de acesso aos bens e servios culturais postos em circulao em todo o mundo, ou
seja, do fluxo de servios e atividades culturais dispostos nos diversos mercados
simblicos audiovisual, cinematogrfico, editorial, fonogrfico, etc. Ao se dilatar o
conceito de desenvolvimento simultaneamente o sistema ONU, acompanhado de ouros
agentes transacionais, como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), e
governos nacionais, dilatou tambm o conceito de cultura. Por um lado, a totalidade dos
hbitos, crenas, costumes e valores continuavam informando a compreenso desses
agentes, por outro, o desenvolvimento ampliado (humano) reclamava o acesso ao universo
de bens e servios culturais acionados e intensificados por ocasio das novas faces do
processo de industrializao do simblico.
Eis ai o duplo registro que, nos anos noventa, deu origem aos direitos culturais
contemporneos, presentes nas principais convenes e instrues normativas da UNESCO
e assinadas pelos paises membros, inclusive o Brasil, que nessa dcada (sobretudo a partir
de 2003) passou a acionar esses direitos segundo a categoria de cidadania cultural. Esses
dois registros esto inscritos no que se chama no decurso desse trabalho de repertrio
discursivo UNESCO. O Brasil se inseriu nesse movimento de dilatao conceitual com
vistas a criar matrizes slidas de justificao de determinadas polticas culturais
contemporneas.
Os efeitos prticos do processo de dilatao conceitual envolvendo as categorias
cultura e desenvolvimento comearam a ocorrer a parti dos anos noventa. A partir desse
momento, o que antes era concebido de maneira tmida e hesitante como economia da
cultura ganhou novos contornos conceituais, novas tcnicas de planejamento, de gesto
governamental e uma nova dinmica de consumo e fruio. Mediante a ao de alguns
governos europeus e das elites tcnico-cinetficas encerradas em organismos como o BID e
a UNESCO, o conjunto de tcnicas que compunham os complexos artstico-culturais
abrangentes nomeados e filtrados segundo o conceito de indstria cultural sofreu uma
alterao substancial.
Esse complexo que era filtrado e traduzido segundo a categoria de industria cultural
passou a perder parte de sua pecha de estigmatizao, isto , as ferozes criticas que lhe
eram imputadas. O conceito de indstria cultural, atravs de alguns aspectos trabalhados
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
16
no primeiro captulo, sofreu um esvaziamento, tanto analtico (isto , enquanto categoria
analtica) quanto tico-moral (ou seja, enquanto uma posio normativa inscrita em um
sistema de lutas culturais). Esse duplo esvaziamento retirou-lhe parte do vigor que possua.
A categoria de indstria cultural foi objeto de reformulaes que ocorreram,
simultaneamente, a conformao de outras, como, por exemplo, a mais importante delas: a
categoria de indstria da criatividade.
A critica tico-moral inscritas no conceito de indstria cultural derivava, e ainda
deriva, da compreenso de que a autonomizao e formulao do valor de exposio
(BENJAMIN, 1980) criou, e ao mesmo tempo foi criada, pela produo em massa dos
bens simblico-culturais, reduzindo assim as possibilidades criativas e propriamente
artsticas presentes no valor de aura. Em meio ao acervo de mudanas aludidas antes,
formulou-se uma compreenso geral nos anos noventa de que a expanso da esfera cultural
laica em todo o mundo e, por conseguinte, da economia da cultura, assim como a
respectiva diferenciao do consumo e dos grupos de status no interior dessas
configuraes, no poderia ser apreendida nem instrumentalizada (nem segundo o registro
analtico, tampouco o registro tico-moral) luz de conceitos como indstria cultural.
No incio desta dcada, os principais agentes poltico-culturais destacados antes
produziram uma inverso terio-conceitual com grandes reverberaes prticas. O que
antes era visto como um processo anticriativo, resultado da rotinizao da indstria e de
seus sistemas de controle e padronizao, passou-se a ser visto como algo eminentemente
criativo. O captulo busca situar e esquadrinhar essa mudana paradigmtica, chamando
ateno para o advento de novas categorias e cdigos normativos, como as categorias de
diversidade, indstrias da criatividade e patrimnio cultural imaterial. Como resultado
dos efeitos prticos tributrios das novas relaes entre cultura e desenvolvimento, as
polticas culturais no Brasil passaram a abrigar novas matrizes de justificativas. Uma
dessas matrizes foi sedimentada ao longo do processo de modernizao nacional: o
imperativo de constituio e consolidao da identidade nacional.
O imperativo de valorizao e consolidao da identidade nacional passa a se
inscrever no interior de uma racionalidade discursiva que abarca algumas direes
complementares. No entanto, o ncleo dessa racionalidade consiste em aproximar (quase
fundir) os conceitos de cultura e desenvolvimento. O processo de dilatao conceitual
ocorrido com as categorias de cultura e desenvolvimento criou as condies para a
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
17
formulao de novas categorias conceituais, como indstrias da criatividade, economia
criativa e patrimnio cultural imaterial, responsveis pela criao de novos recursos
discursivos e polticos. Tais recursos esto sendo manejados e remanejados por agentes
especficos de poder, como o Ministrio da Cultura no Brasil e a UNESCO, no sentido de
sedimentar novos marcos de legitimao para a implementao de determinados temas das
polticas culturais contemporneas, notadamente o tema da cultura popular.
A utilizao desses recursos, isto , sua operacionalizao prtica, vem ocorrendo
atravs da implementao de determinadas polticas culturais, desenvolvidas no mbito do
Sistema Federal de Cultura (SFC), como o Programa Cultura Viva e o Programa Nacional
do Patrimnio Imaterial (PNPI), assim como o todo o processo de constitucionalizao da
cultura levado a termo notadamente pela Secretaria de Polticas Culturais (SPC) do
Ministrio da Cultura. Os efeitos prticos dessas aes so analisados e apresentados no
terceiro captulo deste trabalho. Ali esto condensados dados de ordem quantitativa e
qualitativa, reunida com vistas a fornecer o panorama emprico e analtico acerca das
formas de usos e contra-usos polticos e econmicos dos signos institucionais de
reconhecimento e distino (como os selos de cultura do Programa Cultura Viva e o ttulo
de Patrimnio Cultural do Brasil concedido pelo PNPI) postos em circulao pela
administrao cultural pblica, sobretudo no mbito da unio e dos estados.
O terceiro captulo, nesses termos, procura tornar visveis os contornos das formas de
utilizao dos recursos discursivos, jurdicos e simblicos fomentados e consolidados no
decurso desta dcada, como a Conveno Sobre a Proteo e Promoo da Diversidade
das Expresses Culturais e a Conveno Para Salvaguarda do Patrimnio Cultural
Imaterial, ambas publicadas pela UNESCO. Esses mecanismos atestam como a
operacionalizao das polticas culturais e, por conseguinte, os efeitos prticos decorrentes
da implementao destas, devem sua existncia ao advento de uma nova formao
discursiva, o repertrio discursivo UNESCO, que aciona e materializa um conjunto de
prticas discursivas.
A ltima seo do terceiro captulo busca matizar alguns dados luz da
problematizao realizada nas sees anteriores do captulo, objetivando as polticas
culturais desenvolvidas pelas empresas controladas pelo Estado, como a Petrobrs e o
Banco do Nordeste. Objetiva, por exemplo, destacar a atuao e operacionalizao
especifica do Programa BNB de Cultura, assinalando a compreenso especifica que o
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
18
banco guarda sobre a cultura popular sertanejo-nordestina e os mecanismos de usos dos
registros expressivos, ldicos e simblicos da cultura popular sertanejo-nordestina para
promover e legitimar a marca institucional da empresa.
Entretanto, tanto os mecanismos de uso e quanto os efeitos prticos tributrios da
implementao de determinadas polticas culturais, podem ser melhor compreendidos se as
especificidades das instituies da administrao cultural forem apontadas no mbito da
economia da cultura no Brasil. Para tanto, buscou-se iniciar o terceiro captulo com uma
descrio dos eixos de atuao da administrao cultural pblica no panorama da
produo, circulao e consumo dos bens e servios culturais, explorando as interfaces
empricas entre esses eixos e a circunscrio de mercados simblicos especficos,
materializados a partir de determinados eventos (como o ciclo de festejos juninos no serto
nordestino) e aes institucionais, como a rede de editais pblicos.
A ltima condio de possibilidade, analisada e problematizada no 4 captulo,
concerne estruturao de um esquema de disposies presentes e acionados a parir de
uma estrutura social de personalidade (ELIAS, 2001), cujos valores mais caros (apreo
pelas manifestaes arstico-populres e pelas categorias normativas que essas portam e
mobilizam, como criatividade e autenticidade) encontram ressonncia nos espaos
sociais de entretenimento e diverso, como o ciclo de juninas no serto nordestino. No
obstante, esses espaos s se realizam mediante as tramas de relaes tecidas por meio das
novas tecnologias digitas e dos dispositivos contemporneos de negociao da identidade e
de realizao da gramtica social do gosto, que Zigmunt Bauman chama de cibervida
(BAUMAN, 2008).
Na longa durao scio-histrica (ELIAS, 2001) possvel constatar os ndices de
constituio dessa estrutura social de personalidade, nomeada no texto, com a ajuda de
autores como Marcelo Ridenti, de brasilidade romntico-revolucionria. A travs de
alguns exemplos, o captulo envereda por uma senda que, entre outros aspectos, lava a
perceber como a brasilidade romntica deve sua constituio ao apreo normativo que
certas clivagens das classes mdias urbanas escolarizadas atribuem ao valor de aura e,
portanto, aos contedos ldico-artsticos produzidos pelas chamadas culturas populares,
em especial a cultura popular sertanejo-nordestina. Em uma palavra, o captulo busca
demonstrar, luz das discusses realizadas nos captulos que o precedem, que so as
classes mdias urbanas escolarizadas os grandes inventores do valor de aura
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
19
contemporneo e, portanto, os legitimadores das tradies populares. Esse ethos
romntico-encantado guarda uma relao direta com a estruturao de um sistema de usos
e contra-usos poltico-culturais - realizados e dinamizados por agentes variados, como
governos, empresas e artistas das tradies populares, mais especificamente das
tradies ldico-artsticas sertanejo-nordestinas.
Em face dos processos e das condies de possibilidade problematizadas e analisadas
neste trabalho, assim como de suas interpenetraes e atravessamentos, possvel sustentar
a seguinte hiptese de trabalho: nas ltimas duas dcadas o valor scio-histrico atribudo
s manifestaes, expresses e criaes esttico-artsticas da cultura popular sertanejo
nordestina vem se materializando nas aes institucionais realizadas pela administrao
cultural pblica brasileira, notadamente os estados nordestinos e a unio, cuja
operacionalizao e concretizao passa pelas novas faces e fazes do processo de
industrializao do simblico e pela incorporao e acomodao de prticas discursivas
engendradas em mbito transnacional. Os elos de interdependncia entre esses processos se
estreitaram bastante nos ltimos anos no Brasil, forjando uma configurao social assaz
especifica: a economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
20
Captulo I. Modernizao cultural: produo simblica, construo e usos da
categoria de cultura popular.
1.1 Arte, tcnica e memria: o serto e a formao do seu significado diante do processo de industrializao do simblico.
O analfabeto do futuro no ser quem no sabe escrever, e sim quem no sabe fotografar.
Walter Benjamin
A memria uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda o passado em funo do presente. Mario Vargas Losa Quem comprar essa histria no empreste ela a ningum Guarde ela em sua mala Cuide dela muito bem Diga a quem quiser comprar Que o autor ainda tem Jacinto Jose Dantas - Cordelista
O que se segue parte de um esforo terico e emprico que busca conjugar no mesmo
movimento de modernizao nacional alguns processos. O objetivo consiste em evidenciar
que as peculiaridades da modernizao cultural brasileira dispensam alguns postulados
tericos, como a equao conceitual envolvendo os nveis de cultura e o pressuposto da
dependncia e colonizao tecnolgica. A partir do arranjo de interdependncias sociais que
foram se estabelecendo entre tcnica e arte no processo de industrializao do estoque de
smbolos nacionais, uma chave analtica seguida no texto: a formao do significado do
serto e a galvanizao de uma memria social ligada ao interior da regio Nordeste esteve e
est diretamente ligada a expanso dos mercados culturais nos principais centros urbanos do
pas.
Essa expanso no seria possvel sem a incorporao de dispositivos tcnicos e as
transformaes urbanas prprias do modo de produo capitalista. Com efeito, o que se
pretende destacar que uma das faces mais importantes do processo de modernizao
nacional, a industrializao do simblico (CANCLINI, 2003), evidencia o entrelaamento
estrutural e de longa durao scio-histrica (ELIAS, 2001) entre economia e cultura. O
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
21
texto busca estabelecer, assim, um fio analtico que permita compreender, mediante os
trnsitos simblicos e econmicos entre os espaos urbanos e rurais, como as produes
econmicas e simblicas concorreram para a formao de uma memria especfica, a
memria social do serto nordestino.
* * *
O ms de Maro guarda um vaticnio decisivo para o cotidiano rural do serto
nordestino: se at do dia 19 no chover (dia de So Jos), certamente o ano ser de grande
dificuldade e privao. O terceiro ms de cada ano, tal como a cortina de um espetculo,
abriga um segredo s revelado pouco antes do ato inicial da obra, pelo menos para aqueles
que tm dificuldades de interpretar a obscura linguagem da natureza. Durante todo o ms o
cu objeto de incurses dos olhares, torna-se palco das mais severas observaes, todo o
relevo, a fauna e a flora passam a ser meticulosamente observados e acompanhados, numa
espcie de experincia de duplicao do olhar. Todo espao, enfim, ganha contornos de um
suspense aterrador, que j faz parte da estrutura de emoes dos sertanejos (ELIAS, 1994).
Em Janeiro de 2008 reuniram-se no serto cearense, nas imediaes da cidade de
Sobral, cerca de trinta adivinhadores da chuva, como assim so chamados. O encontro de
janeiro foi mais um que se realiza desde o final dos anos setenta. So senhores e senhoras
que, de acordo com a incorporao dos saberes legados pelos pais e parentes, assumiram
uma espcie de autoridade meteorolgica. So reconhecidos pelas comunidades e vilarejos
do serto nordestino como profetas da chuva, so os mensageiros da abundncia ou da
privao. Seu trabalho consiste em observar todo o sistema cosmolgico natural e vaticinar:
se haver fartura ou no, se ser um ano bom ou no.
O dia de So Jos uma espcie de confirmao, um ltimo alento. Se durante os meses
de janeiro e fevereiro no chover e a natureza no oferecer nenhum indcio (um mero sinal
que seja, por mais irrisrio que parea) de que haver chuva nas prximas semanas, resta
esperar o fatdico dia, que assim representa a porta para onde se d acesso a um ano de
penria. comum se ouvir relatos na tradio oral sertaneja de anos que oferecem todos os
sinais de um ano de seca, mas, ao contrrio das previses, o ano apresentou uma abundncia
alvissareira, exatamente porque no dia de So Jos (padroeiro do Estado do Cear e de cerca
de 20 municpios daquele estado) choveu, ainda que uma chuva tmida e irregular.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
22
No preciso dizer que, muitas vezes, as previses dos profetas da seca so
diametralmente opostas quelas realizadas pelos meteorologistas profissionais, munidos de
sofisticados recursos tecnolgicos contemporneos que lhes assegura traar grandes mapas
de previso. Essa aparente frico no chega a ameaar a legitimidade dos dois grupos, cada
um, sua maneira, possui mecanismos de prestgio e parcelas de acerto que lhes permitem
conviver, estabelecendo um sistema de acomodaes e convivncias. No ltimo encontro,
por exemplo, organizado pela Secretaria de Cultura do Cear (Secult-CE), alguns
meteorologistas profissionais, membros de institutos de pesquisas do Estado e de outras
regies, ouviram atentamente as indagaes e justificativas dos profetas da chuva ou da
seca.
Na contemporaneidade scio-econmica do serto nordestino a chuva no , no entanto,
mais to decisiva, no decide mais de maneira to peremptria os regimes de alimentao e
felicidade. No porque o fenmeno climtico da seca no ocorra mais, antes o contrrio.
Ocorre que a partir do incio dos anos noventa duas aes governamentais corroboraram
para erguer uma nova estrutura econmica nos mdios e pequenos municpios nordestinos,
ou seja, exatamente aqueles que mais sofriam com as longas estiagens: a equiparao das
aposentadorias rurais a um salrio mnimo e a avalanche de novos municpios criados a
partir do processo de municipalizao. Essas duas aes administrativas reorganizaram o
cenrio econmico sertanejo de maneira que ainda est por ser feita uma investigao que
alcance as reais dimenses dessa mudana.
A equiparao do salrio rural ao salrio urbano, realizada logo no incio da gesto
Collor (1990-1992), fez com que antigas economias locais pouco monetarizadas, que
dependiam apenas da irregularidade de algumas colheitas anuais de algum produto agrcola
(feijo, milho, algodo, etc.), passassem a contar com um volume de dinheiro crescente e
regular, pois o sistema de pagamento das aposentadorias ocorria sempre nos primeiros dias
teis de cada ms. A equiparao do salrio rural ao urbano beneficiou um gigantesco
nmero de famlias, que contavam com um casal de idosos, estabelecendo assim uma
economia de escala crescente a partir da previso de um pagamento mensal. Segundo o
IBGE3, alguns municpios da regio passaram em pouco tempo a desativar completamente
suas lavouras. O fluxo de moeda circulante e a previsibilidade de um novo ciclo de recurso
dinamizaram a abertura de crdito e criaram, por parte do poder pblico, a necessidade do
3 Estatsticas do sculo XX no Brasil, www.ibge.gov.br
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
23
estabelecimento de instituies financeiras pagadoras e arrecadadoras, como bancos e casas
lotricas.
Logo a lavoura e a pecuria, que dependiam do regime de chuva, se tornaram
secundrias. O Fluxo migratrio do serto nordestino mudou de direo durante a dcada de
noventa do sculo passado. Antes as correntes migratrias apontavam para os ncleos
urbanos do centro-sul do pas e suas regies metropolitanas, a maioria partindo de mdios e
pequenos municpios de Estados como Cear, Bahia e Pernambuco. Agora, aps a
estabilizao das economias locais em torno de um sistema de pagamento regular, o fluxo
passou a ser das zonas rurais mais afastadas em direo aos centros urbanos dos mdios e
pequenos municpios. Mas esse quadro no seria o mesmo sem uma segunda transformao:
a municipalizao de parte dos recursos federais destinados sade e educao, que antes
eram transferidos para os Estados e s depois destinados aos municpios.
Essas transferncias deram maior autonomia poltico-financeira aos municpios
brasileiros, sobretudo aos mdios e pequenos. No Nordeste, regio responsvel pelo segundo
maior contingente populacional do pas e tambm com o segundo maior nmero de
municpios dentre as cinco grandes regies nacionais, o impacto maior foi sentido no volume
de recursos que as pequenas prefeituras passaram a administrar. Logo a necessidade de
modernizao e profissionalizao dos recursos tcnico-administrativos entrou na agenda
dos poderes constitudos. Muitas prefeituras que mal tinham sede administrativa, que no
possuam se quer uma estrutura bsica de servios de sade e educao, viram a constituio
de fundos de penso de servidores municipais, organizaram concursos pblicos para
contratao de servidores, sindicatos de servidores foram instalados, enfim, uma categoria
profissional, que antes s existia nos mdios e grandes municpios nacionais, passou a
ganhar relevo no sistema das profisses ligadas o Estado. Com efeito, mais um setor
importante passa a irrigar as pequenas economias locais, j monetarizadas por conta da
equiparao salarial das aposentadorias mencionadas antes.
Esse processo de regularidade de pagamento e monetarizao passou a impactar
sobremaneira na modernizao dos comrcios locais. Segundo o SEBRAE (Servio Brasileiro
de Apoio as Micro e Pequenas empresas) o nmero de pequenas empresas abertas nos
pequenos municpios brasileiros do incio dos anos noventa at 2002 duplicou4. No por
caso que o empreendimento comercial, das modalidades comerciais analisadas na pesquisa,
4 Pesquisa anual de micro e pequenas empresas, SEBRAE, 2002. www.sebrae.org.br
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
24
que mais cresceu foi o setor farmacutico. Ora, com a regularidade do pagamento
assegurada para idosos muitos donos de estabelecimentos farmacuticos criam sistemas de
crdito que lhes permitem cativar o fregus. Como a maioria dos aposentados rurais, hoje
residentes em centros urbanos ou semi-urbanos, esto em uma fase que necessitam de
medicamentos de uso regular, que muitas vezes excedem o oramento familiar, a farmcia se
converteu em uma espcie de credirio da sade.
Outro empreendimento que assistiu a um crescimento vertiginoso foram as locadoras de
vdeo, na sua maioria hoje locadoras de DVDs. Em funo do aumento da circulao
monetria, em grande parte em decorrncia do nmero de novos assalariados, novos
servios, entre eles os servios culturais, passaram a ser demandados e ofertados. Essas
novas formas de assalariamento, assim como de resto as mudanas implicadas nas reformas
administrativas experimentadas pelo Estado brasileiro e nas reformas de mercado ocorridas
nos anos noventa, alargaram a importncia que o setor de servios passou a ter na economia
brasileira, hoje um setor decisivo para o padro de acumulao vigente no capitalismo
contemporneo.
A envergadura das mudanas aludidas ultrapassa os objetivos desse trabalho, sobretudo
nesse instante. As mesmas foram mencionadas apenas para apontar a direo da mudana na
qual se situa a questo scio-cultural das secas, ou seja, a reduo do seu status de grande
problema coletivo do serto nordestino. O encontro dos profetas da chuva abre um sem
nmero de frentes analticas, uma delas ser retomada mais frente, por ora busca-se
perseguir, atravs do exemplo emprico de uma memria social em particular, a linha de
tessitura que envolve a costura de um processo social mais amplo: a relao entre arte,
tcnica e memria em meio ao processo de industrializao do simblico. Assim, o que se
segue um movimento que tenta apreender a gnese social de um significado a partir das
fraturas, tenses e complementaridades da esfera cultural laica (WEBER, 2004). Nesse
sentido, o exemplo da historia social das secas no serto nordestino corresponde a um ponto
de inflexo decisivo nesse movimento.
Ao contrrio dos dias atuais, nas ltimas dcadas do sculo XIX o regime de chuva era a
regularidade mais importante do complexo social formado pelo serto nordestino. Durante o
ms de Maro de 1877 as coisas no foram muito diferentes no que toca aos hbitos e
costumes de previses meteorolgicas. Embora nenhum encontro de profetas da chuva
tenha sido realizado, as previses dos mesmos se confirmaram: ser lia-se nas crnicas
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
25
jornalsticas de Fortaleza5 um ano de grande seca. De fato o mencionado ano foi o
primeiro de uma seca que durou at 1879. Esse perodo, assim como os ltimos anos do
sculo XIX, foi marcado por uma profunda ambivalncia: por um lado, o serto nordestino
foi palco de uma das mais severas estiagens registrada na longa histria social das secas,
como evidencia Marco Antnio Villa6, por outro, foi objeto de uma enxurrada de imagens e
signos que correspondem a um elo decisivo no processo de formao do serto nordestino
como uma unidade de significado e um monoplio de Sentido7.
A grande seca de 1877-79 inaugurou um sistema de tenso, cujo ncleo gira em torno
das tcnicas de modernizao das informaes, que passam, a partir da segunda metade do
sculo XIX, ligar o Brasil aos fluxos informacionais e comunicacionais em todo mundo e as
distintas e longnquas regies nacionais. A seca desse perodo se tornou uma das maiores
catstrofes humanas no porque ceifou a vida de aproximadamente meio milho de pessoas
(cerca de 4% da populao brasileira), com mais de dois milhes de retirantes, mas,
sobretudo porque corroborou na montagem de um grande drama social moderno. Mediante o
grande fluxo de imagens, fotografias e fotogramas publicados regularmente na imprensa
jornalstica dos principais cidades brasileiras do perodo, instaurou-se um sistema de tenso
com tema e face: o serto-Nordeste como uma regio-problema, como sntese de tudo que
no se desejava ser.
A seca, em seu incio, vitimou principalmente o Estado do Cear, mas logo se estendeu
para outros estados da regio. No fim de 1877 o escritor, jornalista e peta Jos do Patrocnio
foi enviado pelo Jornal A Gazeta de Notcia, do Rio de Janeiro, para cobrir os eventos
cotidianos do flagelo. Tratava-se da primeira incurso jornalstica para cobrir um evento in
loco da histria da imprensa brasileira. Dois anos depois, Patrocnio publicou no Rio de
janeiro O retirante, livro que d incio literatura scio-histrica das secas. A modernizao
dos recursos grficos, visuais e estticos, combinados melhoria na qualidade do papel e
expanso do pblico leitor nos centros urbanos do pas, assim como a melhoria da infra-
estrutura de transmisso das informaes, fizeram com que a seca fosse acompanhada de
grande interesse poltico, cujos rebatimentos culturais so de grande relevo aqui. Marco
5 O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1937, (Acervo da Biblioteca Nacional), anlise da dcada dos trinta e quarenta, realizada no Ms de outubro e novembro de 2007. 6 Marco Antnio Villa, Vida e morte no serto. Editora tica, 1 edio, So Paulo, 2001, p.39. 7 Elder Alves, A configurao Moderna do serto. Dissertao de mestrado defendida em dezembro de 2004 junto ao Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade de Braslia (PPG-SOL-UNB).
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
26
Antnio Vila, falando especificamente sobre a profuso de epidemias entre os retirantes, nos
d uma dimenso do alcance daquela seca.
A notcia das epidemias na provncia do Cear era espelhada pela imprensa por todo pas. O uso do telgrafo permitiu sua rpida circulao. Na Bahia, O Monitor, de 03 de Janeiro de 1878, publicou o seguinte telegrama de Recife: horrorosas notcias acabam de chegar do Cear. As estradas esto juncadas de cadveres em estado de putrefao e sendo pastos de urubus e ces. O Cearense, cujos nmeros chegavam Corte e a diversas provncias, descreveu a situao de Acarati. Na cidade a mortalidade alcanou mdia de cem pessoas por dia. Um simples anncio de ajuda reuniu seis mil mulheres esqueletos ambulantes-, segundo o jornal, que acabou gerando um grande tumulto e vrias mortes. (VILLA, 2004, p.39)
Esse trecho de Villa assaz elucidativo. Abundava o nmero de publicaes sobre a
seca (jornais e revistas), sobre o cotidiano da tragdia sertaneja. Mais de dez jornais foram
criados para acompanhar e divulgar o flagelo. O mais importante deles foi O Retirante, que
continuou sendo editado mesmo aps o fim da seca de 1877/79. Editado em Fortaleza e
tambm impresso ali, o Jornal era distribudo na Corte e nas principais provncias do pas.
Fundado por um grupo de jornalistas e intelectuais, o jornal trazia os seguintes dizeres em
sua capa: O Retirante: orgam das victimas da seca. Em pesquisa realizada na Biblioteca
Nacional8, no Rio de Janeiro, verificou-se que, de 1877 a 1880, O Retirante foi um dos
jornais semanais com maior nmero de tiragem e maior regularidade de impresso do final
do sculo XIX.
Durante toda segunda metade do sculo XIX foram instaladas, nas principais capitais
provinciais, grficas, oficinas e pontos de impresses de jornais e revistas. A facilitao da
importao de mquinas e instrumento grficos, obtidos a partir dos acordos comercias com
a Inglaterra, resultantes das alianas estabelecidas a partir da suspenso do trfico de
escravos, ajudou na montagem de muitos jornais e revistas. No Rio de Janeiro das trs
dcadas finais do sculo havia mais de vinte jornais de circulao diria, um circuito
definido de produo literria via imprensa-folhetim, quatro agncias de notcia, sendo duas
internacionais, um sistema de telgrafos interligando as provncias de Minas Geram, Esprito
Santo e So Paulo capital do Imprio, mais de dez tipografias, um nmero significativo de
livrarias, alm de um crescente fluxo de passageiros transitando pelas recm inauguradas
estradas de ferro (ALONSO, 2001, p.87).
8 Pesquisa realizada entre os meses de outubro e novembro de 2007.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
27
Houve nesse momento a emergncia de um processo urbano-cotidiano que sustentou as
transformaes grficas das dcadas seguintes. Esse movimento trouxe, de maneira
irrevogvel, a experincia esttica e emocional do consumo de imagens, signos e a
potencializao de foras visuais. Impe-se assim uma nova pedagogia do olhar e como tal a
modulao e estruturao de uma nova sensibilidade, acarretando novas maneiras de
exercitar o olhar, ou, como adverte Martin-barbero, novos mecanismos que se impem ao
exerccio do ver (MARTIN-BARBERO, 1998, p. 58).
Em meio a esse processo, o fato mais significativo existente, e que o jornal O Retirante
revela de maneira candente, e que de resto est presente em todos os demais jornais e
revistas da poca, foi o abundante nmero de imagens fotogrficas, gravuras e fotogramas.
Essa a unidade analtica que interessa nesse momento, ou seja, a fotografia. Mas no a
fotografia em si, interessa pens-la em meio ao processo social de industrializao do
simblico, e mais especificamente no que diz respeito a sua trama de possibilidades junto ao
incipiente mercado editorial brasileiro e a todo um conjunto de dispositivos tcnicos que
passam a modelar, a partir dos ltimos anos do sculo XIX, a percepo social, implicando
uma nova educao do olhar, do ouvir, do sentir, de uma nova estrutura de emoes.
(ELIAS, 1994). Peter Burke acentua como, de maneira quase que simultnea, no final do
sculo XIX, o mundo ocidental passou a sentir de perto a interao entre as diversas
descobertas, inventos e, por conseguinte, as interdependncias entre alguns nveis
tecnolgicos.
interessante comparar a histria inicial do cinema com a histria inicial do gramofone. Uma levava as pessoas para fora de casa, e a outra, como a televiso, o inverso. O fotgrafo francs Nadar concebeu em linguagem bastante apropriada um daguerreotipo acstico que reproduz com fidelidade e continuamente todos os sons sujeitos a sua objetividade. Como Sarnoff muito depois dele, Nadar sugeriu uma caixa na qual melodias poderia ser gravadas e fixadas, como a cmara obscura capta e fixa imagens. Ele chamou sua mquina de fongrafo. (BURKE, 2004, p.76).
As primeiras fotografias sobre as vitimas da seca foram publicadas no dia 20 de Julho de
1877, em O besouro, do Rio de Janeiro. Tratava-se de um conjunto de registros fotogrficos
exibindo corpos de crianas e adultos esqulidos e famintos. Era em sua maioria fotografias
de crianas subnutridas em franca aparncia cadavrica. Essa foi apenas a primeira leva de
fotografias que, naquele ano, inundariam as pginas dos principais jornais e suplementos
literrios do Rio de Janeiro. O impacto dessas publicaes foi maior nos nichos de
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
28
intelectuais reformistas que gravitavam em torno da corte, que transitavam em torno dos
crculos literrios e polticos existentes nas fronteiras das instituies imperiais, como o
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB), a Academia Imperial de Belas Artes, o
parlamento nacional, as faculdades imperiais, os colgios secundrios e os clubes militares
(ALONSO, 2001).
As fotografias exibiam as expresses de dor e desalento, misturando-se aos relatos e
fragmentos de relatos dos retirantes, transcritos pelos jornalistas ao visitarem os locais de
maior misria e penria. As gravuras e fotogramas tambm so fortes, ferem, tal qual uma
lana, o olhar mais desavisado. Muitos jornais passam a incorporar a fotografia como uma
tcnica que atesta a veracidade das reportagens. Duas dcadas aps a grande seca de 1877/79
a fotografia foi empregada em larga escala durante o conflito de Canudos, do qual se tem um
dos mais ricos acervos iconogrficos. A fotografia, em uma palavra, confere um novo
significado ao contedo jornalstico.
Figura 01. Fotografias de famlias de retirantes. Grande seca de 1877-79.
Fonte: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
29
A fora das notcias e das reportagens passou a ser medida pelo grau de realismo e
mincia inscritos nas fotografias que ilustram e acompanham a notcia-fato. Em outros
termos, o fato s se torna fato e legitimado como algo digno de notcia se traz como
atestado de existncia as fotografias que o confirmam. O fato para se consagrar e passar a
existir como um evento no necessita mais apenas da notcia comentada, ou seja,
simplesmente descrita e relatada, precisa, antes de tudo, ser apresentada com uma
fotografia, que vem acompanhada de uma legenda explicativa. Esse passa a ser ento o
modelo, a unidade complementar: notcia, fotografia e legenda. O fato da fotografia se
tornar imprescindvel para a legitimidade do fato-notcia demonstra uma crena slida em
sua tcnica, em seus mecanismos de captura e exibio do real tal como ele . Todavia, o
impacto esttico e semiolgico da fotografia vai muito alm do campo da experimentao
do foto jornalismo, invade a percepo visual propriamente pelos efeitos que causa nas
novas linguagens tcnico-artsticas, como o cinema, as artes grficas e visuais, a
publicidade, entre outras.
O impacto perceptivo de uma fotografia, ou melhor, de uma imagem composta de
corpos amontoados, de famlias esqulidas, de crianas famintas, de pessoas desconhecidas,
imprime um tipo de sensao ligada, entre outras coisas, a compresso da relao tempo-
espao na modernidade. As fotografias, e o encadeamento imagtico do qual elas fazem
parte, corroboram para a montagem de uma paisagem humana que impactou na composio
da auto-imagem nacional (ELIAS, 2001) construda a partir dos principais centros urbanos.
O imperativo da privao, da dor e da violncia no se coadunava muito a um ideal
civilizatrio de saneamento, beleza e ordem.
As fotografias se impuseram como um ndice de modernizao que fazem parte das
profundas conseqncias da modernidade (GIDDENS, 1992). Por um lado, as imagens so
vistas como um dado inconteste do avano tcnico e, portanto, da sintonizao progressiva
do pas s realizaes europias; por outro, trazem lume muitos aspecto polticos que no
se acomodavam ao ideal antes mencionado. Essa ambivalncia constitutiva da estrutura da
modernidade, que traz, como ressalta Giddens, o aumento da influncia daquilo que no
est aqui aqui(GIDDENS, 1992). Ou seja, atravs dos fluxos comunicacionais e simblicos
certas espacialidades (como o serto nordestino) longnquas se aproximam, impactando em
outras e comprimindo, assim, o espao. Algo que torna um espao especfico dotado de
A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina
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realidade e existncia; existir passa a ser algo intimamente ligado a ser fotografado,
visibilizado e reproduzido.
Ao mesmo tempo em que essas so funes realizadas por especialistas que fazem parte
dos novos sistemas de peritos, aqueles responsveis pelo manuseio e domnio das tcnicas:
fotgrafos, retratistas, tcnicos, etc. As fotografias podem ser pensadas como fichas
simblicas inscritas na compresso e nas novas modalidades de experimentar o espao-
tempo, no deslocamento da noo de realidade, que passa a se transformar de acordo com os
smbolos que passam a represent-la, ou melhor, dos smbolos que em conjunto passam a
dizer o que e o que no a realidade.
A fotografia resultado das transformaes e experimentaes tecnolgicas do sculo
XIX. Surge na Frana e depois se expande por todo o mundo como olho da impessoalidade e
da nova gramtica da realidade. Seu advento implicou um conjunto de remanejamentos no
interior das formas de construo dos objetos artsticos e, sobretudo, nas experincias
visuais responsveis, entre outras, pela tessitura das memrias coletivas modernas. Jacques
Le Goff ressalta: a fotografia revoluciona a memria, multiplica-a e democratiza-a, d-lhe
uma preciso e uma verdade visual nunca antes atingida. (LE GOFF, 2005, p.211).
As mudanas produzidas pela fotografia nos modos de classificar o real, aguaram o
olhar curioso do critico alemo Walter Benjamin. As reflexes de Benjamin acerca da
fotografia se situam num espectro mais geral de sua teoria esttica e, por conseguinte, na
sua concepo de mmesis.9 Benjamin recorre ao conceito de imagem para diferenciar o
fluxo de smbolos da idia de retrato. Assim como lana-mo do conceito de fisiognomia
para nomear tudo que no paisagem. Essas duas noes, de imagem e fisiognomia, se
completam. A imagem, constituda pela totalidade de fotografias dispersas, apreende os
microcosmos do cotidiano, instaurando a possibilidade de novas aberturas de sentido, que
s so possveis pela nova educao do olhar. J a fisiognomia revela as mincias da
economia de expresses humanas, que no nem o retrato (j que a imagem transpe e
expande a unidade fixa do retrato), nem tampouco a paisagem, conquanto diz respeito a
outro tipo de captura do dado natural e real, a instantneidade da experincia humana.
A fotografia nos mostra essa atitude, atravs de seus recursos auxiliares: cmara,
lente, ampliao. S a fotografia revela esse inconsciente tico, como s a
9 Esse conceito, cujo advento remonta a filosofia grega pr-socrtica, sofre um deslocamento da obra do filosofo alemo, passa de um atributo de representao e reproduo para uma fora tambm expressiva e vinculada a todo processo de auto-constutuio das memrias psicossociais.
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psicanlise revela esse inconsciente pulsional. Caractersticas estruturais, tecidos celulares, com os quais operam a tcnica e a medicina, tudo isso tem mais afinidades originais com a cmara que a paisagem impregnada de estados afetivos, ou o retrato que exprime a alma de seu modelo. Mas ao mesmo tempo fotografia revela os aspectos fisionmicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minsculas, suficientemente ocultas e significativas para encontrarem refgio nos sonhos diurnos, e que agora, tornando-se grandes e formulveis, mostram que a diferena entre a tcnica e a magia uma varivel totalmente histrica.(BENJAMIN, 2002, p.12).
Em seu celebre ensaio intitulado Pequena histria da fotografia ressalta que: os
fotgrafos que passaram das artes plsticas fotografia, no por razes oportunsticas, no
acidentalmente, no por oportunismo, constituem hoje a vanguarda dos especialistas
contemporneos (BENJAMIN,1980, p.57). O deslocamento dos grupos artsticos a partir
do advento da fotografia e as novas formas de exerccio do olhar se imbricam no
movimento de insero da fotografia no foto jornalismo. O deslocamento dos grupos de
pintores no interior das ocupaes artsticas passou a ser sentido aps o aprimoramento dos
recursos da tcnica fotogrfica. Em meados dos anos setenta do sculo XIX, por exemplo,
muitos fotgrafos (notadamente os fotgrafos retratistas) em So Paulo realizavam
fotografias em tamanho natural, atravs de uma tcnica de ampliao conhecida como
cmara solar. A partir do crescimento urbano experimentado nas ltimas dcadas do sculo,
cidades como Rio e So Paulo assistiram a um surto de crescimento do numero de atelis e
lojas de retratos. Outra tcnica que logo atraiu a ateno e o interesse do publico foi a foto
pintura, que estabeleceu uma acomodao momentnea no mercado de retratos e no
mercado editorial como um todo, pois consistia em ampliar a fotografia at o tamanho
original, depois cort-la sobre um papel ou tela e ento pint-la a leo, guache ou pastel.
Um outro exemplo, tambm retirado do sculo XIX, ainda mais esclarecedor. Diante
da escassez de concursos de belas artes, que conferiam bons valores financeiros aos seus
vencedores, no perodo final de derrocada da monarquia brasileira, o Pintor Victor Meireles
resolveu criar uma companhia de pintura de grandes quadros de exaltao, os chamados
panoramas. Eram grandes pinturas que consistiam em apresentar ao pblico fatos picos,
tornados ainda mais clebres atravs da grandeza e do nmero de pessoas interessadas em
apreciar tais obras. A empresa criada consistiria na cobrana de ingressos, algo que poderia
resultar em grandes ganhos e corroborar para a volta dos concursos imperiais.
Vicejando a possibilidade de apresentar alguns panoramas (todos com temticas
brasileiras, ora a natureza exuberante, ora as batalhas de independncia e/ou as glrias do
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Imprio) durantes os Sales de Arte da Europa, como as Exposies Universais de
Bruxelas e Paris, a Meireles & Langerock resolveu pintar uma imensa vista do Rio de
Janeiro. A tela seria exibida em um imenso galpo, com um eixo de engrenagem rotativa
que permitiria o pblico observar a imensa paisagem ser desfraldada. Os pintores j
possuam experincia nesse tipo de empreendimento tcnico-artstico, o prprio Meireles
havia pintado anos antes um panorama com cerca de 115 metros de comprimento por 14,5
de altura, abarcando um espao total de 1667 metros quadrados, movimentando-se em um
salo de cerca de 36 metros de dimetro10.
Feito o trabalho, os autores e scios trouxeram na bagagem a justificativa de que, alm
de mostrar a fulgurante e exuberante natureza nacional, acabaram incentivando a vinda de
imigrantes europeus, numa espcie de arte imigrantista (DURAND, 1989), exatamente
em um perodo de substituio do trabalho escravo. Encorajado pelo sucesso obtido na
Europa, Meireles contraiu emprstimos para a consecuo de novos projetos, ainda mais
ambiciosos, entre eles um que resultaria na pintura da chegada de Cabral ao Brasil, por
ocasio da comemorao dos quatrocentos anos da descoberta, e que deveria estar pronto
at o incio de 1900. Para tanto, estudou a rota de chegada de Cabral e viajou at o local de
desembarque. No entanto, os projetos posteriores a exibio europia no lograram o
mesmo xito, inclusive o de comemorao do quarto centenrio do descobrimento. A
empresa comeou a apresentar dificuldades financeiras e, antes mesmo de concluir os
projetos, pediu insolvncia. A rpida expanso das novas tcnicas de produo de imagens,
como o cinematgrafo (resultado dos desdobramentos tecnolgicos da fotografia), cujo
apelo popular logo se fez sentir, selaram o destino dos panoramas, assim como das demais
modalidades de grande pintura de paisagens e eventos.
A existncia dos panoramas e, particularmente, seu xito nas exposies europias
atestam uma mudana nas demandas por mecanismos que permitissem a ampliao do
olhar. A utilizao da chapa fotogrfica como matriz de um processo de reproduo de
imagens, mais tarde ampliado para as telas cinematogrficas e posto em movimento, no
pode ser tomado apenas como nico fator. As linhas de fora que constituem e informam
esse movimento so mais complexas e multifacetadas. A composio de um acervo de
imagens nos centros urbanos a partir do sculo XIX se desenvolve como uma regularidade
que envolve uma mirade de processos, cujo resultado cotidiano repousa na acumulao de
10 Jos Carlos Duran, Arte, privilgio e distino. Editora Perspectiva, 1 edio, So Paulo, 1989, p.39.
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experincias visuais que se configura como uma segunda natureza, incorporada agora ao
aparelho tico-visual, que toma de assalto a percepo de crticos, artistas, jornalistas,
escritores e intelectuais.
O processo de tecnizao que abarca os novos dispositivos de reproduo de imagens
amplia o alcance do olhar porque traz consigo a no-exigncia do olhar treinado, ou seja,
um olhar que desconhece os cdigos de apreciao e fruio esttica sintonizado
ambincia material da arquitetura dos sales de exposio, galerias e museus. O denso
movimento de modulao do olhar tambm, e precisamente por conta disso, um
movimento de dilatao dos espaos, a partir dos quais se tece a nova economia dos signos
urbanos, sustentada no consrcio entre materialidade e imaterialidade. O fluxo das
transformaes urbano-industriais carrega a necessidade de ampliao dos servios de
visualizao e informao, ou seja, daqueles que passam a vender o que os outros tm a
vender. A publicidade se situa ai em um campo bifronte, como um canal que permite
incorporar a fotografia, o cinema e as demais tcnicas estticas que alimentem os surtos de
experimentao. A mencionada tecnificao , antes de tudo, uma tecnificao da
totalidade da vida. Preocupado em relacionar esse fenmeno com o mundo cotidiano da
vida, Jurgen Habermas ressalta:
De certa maneira, as questes prticas relativas direo do Estado, s estratgia e administrao, tambm antes deveriam ser solucionadas com a utilizao de um saber tcnico. No entanto, uma transformao do saber tcnico em conscincia prtica no se alterou hoje s na ordem da grandeza. A massa do saber tcnico j no se reduz s tcnicas pragmaticamente apreendidas dos ofcios clssicos. (...) Hoje nos sistemas industrialmente mais desenvolvidos, importa empreender a tentativa enrgica de tomar nas rdeas uma mediao que at agora se imps em termos de histria natural, entre o progresso tcnico e a prxis vital das grandes sociedades industriais. (HABERMAS, 1978, p.46.)
Os mesmos efeitos no-programados das experimentaes tcnicas que resultaram no
aparecimento da fotografia tambm engendraram o cinema. Os primeiros cinematgrafos
(instrumentos de exibio e reproduo das imagens capturadas pelas cmaras) surgiram na
Frana e muito cedo se espalharam pelo mundo. O Rio de Janeiro, de acordo com os
regimes de expanso urbana, diferenciao social e consumo simblico do incio do sculo
passado, chegou a ser no perodo a segunda cidade em nmero de cinematgrafos, que
eram instalados em antigos teatros e casas de shows, as chamadas casas de espetculo. De
to abundante na vida cotidiana na cidade, o espao compreendido entre o Teatro
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Municipal e a Biblioteca Nacional passou a ser denominado de Cinelndia, dada a
quantidade de salas de cinema que passaram a se fixar no local a partir das primeiras
dcadas do sculo. Antes da Cinelndia, as fitas eram exibidas na Rua do Ouvidor, em
mquinas ainda denominadas de omniograph. Em uma das primeiras exibies alguns
expectadores, ao observarem uma tomada em que uma locomotiva aumentava de tamanho
medida que se aproximava da cmara (em um movimento de deslocamento em direo ao
olho da lente), acabaram abandonado a sala de exibio, temendo que o vago invadisse a
sala e os atropelasse. Relatos como esse tambm ocorreram na Europa (CALDAS e
MONTOURO, 2006).
Era ento a imagem em movimento. Um fluxo frentico de cenas intercaladas que
permitiam fotografia ganhar vida. Mesmo ritmo assumido pelos centros urbanos
nacionais, que passava ento a se configurar como verdadeiras florestas de signos (SENET,
2001). Se a fotografia se inseria em um constante fluxo de movimentos, o cinema passava a
ser a prpria expresso do movimento. Se a fotografia tinha a prerrogativa de congelar e
sintetizar a multiplicidade do real, o cinema acionava um movimento frentico, o dilogo
entre as fotografias e seu aprimoramento da capacidade de reproduo. Muitos cineastas
localizados na trama de formao do cinema brasileiro, como Lucio Mauro, comearam na
fotografia. O prprio Afonso Segretto (considerado o primeiro a realizar imagens no Brasil,
quando ento realizou algumas vistas da Baa de Guanabara) tinha iniciado na fotografia,
assim como seu irmo Paschoal Segretto, dono de uma das primeiras salas de exibio,
chamada Salo de Paris no Rio. O relato mencionado acima demonstra todo o
estranhamento inicial, mas que logo iria ser aplacado e rotinizado de acordo com a profuso
de mquinas de captura, reproduo, transmisso e enquadramento da imagem. Uma
crnica do poeta Olavo Bilac do incio do sculo revela bem a relao do cinema com a
redefinio do espao urbano e os efeitos semiolgicos sobre a percepo e as maneiras de
olhar.
J h na Avenida Central quatro ou cinco cinematgrafos; e, alm das casas
especialmente destinadas para esses espetculos, j a mania cinematogrfica invadiu todos os teatros e tomou conta de todas as paredes e de todos os andaime em que possvel esticar um vasto quadrado de pano branco. Agora, depois dos fongrafos da Rua do Ouvidor, os cinematgrafos da Avenida Central. E daqui a pouco no poderemos mais dar um passo pela cidade, sem encontrar um desses lenis alvos em que as cenas da vida humana aparecem deformadas pelo tremor convulsivo da fita. (Apud CALDAS e MONTOURO, 2006, P.30).
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O cinema j nasce impregnado das mais variadas e modernas tcnicas, em meio aos
recursos matrias e simblicos que as experimentaes industriais permitiram, como a
descoberta de novos combustveis, lentes de longo alcance, fuso de materiais, descobertas
de novas matrias-primas, entre outras. A instalao das primeiras casas e salas de cinema
no Rio de Janeiro s foi possvel a partir da inaugurao da energia eltrica, fornecida a
partir da usina hidroeltrica de Caxias, construda para abastecer o centro da cidade em
meio s transformaes urbanas do incio do sculo XX, que resultaram na inaugurao da
Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco. Por isso, inteiramente ingnuo e estril,
dividir, por exemplo, a histria do cinema brasileiro em fases muito definidas, reservado
para o incio do sculo XX (o perodo compreendido de 1898 a 1920) como fase artesanal, e
a fase seguinte (partir dos anos trinta), como fase de industrializao11.
A experincia de ampliao do olhar se d em termos de volume e dimenso, aliando
incurses microscpias e macroscpicas. Essa realizao da tcnica, que d novos
contornos fruio esttica, definida por Benjamin como um movimento em direo a
destruio da aura. Pensando na longa durao, o critico refaz o percurso de constituio
dos objetos artsticos na inteno de confrontar o que ele chamou de valor de culto e valor
de exposio. Durante a transio do longo perodo medieval at o sculo XIX os artefatos
artsticos estiveram engolfados numa experincia mgico-mstica responsvel pela
formao de um valor de culto semelhante aos rituais religiosos mais sagrados, o que
acabou conferindo ao mundo artstico (msica, pintura, literatura, entre outros) um
invlucro aurtico. Esse carter mstico no advm somente do fato de ter sido a igreja
catlica a maior produtora e distribuidora de smbolos do perodo medieval (fato
confirmado atravs dos muitos ar-fresco, xilogravuras com temas religiosos, esculturas,
telas e catedrais revestidas de desenhos e imagens), mas tambm da permanncia da
ritualidade que marca a contemplao dos objetos artsticos.
O que de importncia decisiva que esse modo de ser aurtico da obra de a