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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA A ECONOMIA SIMBÓLICA DA CULTURA POPULAR SERTANEJO-NORDESTINA Autor: Elder Patrick Maia Alves Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília|UnB como parte dos requisitos para obtenção do título de doutor. Brasília, abril de 2009.

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  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    A ECONOMIA SIMBLICA DA CULTURA POPULAR SERTANEJO-NORDESTINA

    Autor: Elder Patrick Maia Alves

    Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Braslia|UnB como parte dos requisitos para obteno do ttulo de doutor.

    Braslia, abril de 2009.

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    UNIVERSIDADE DE BRASILIA INSTITUTO DE CIENCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    TESE DE DOUTORADO

    A ECONOMIA SIMBLICA DA CULTURA POPULAR SERTANEJO-NORDESTINA

    Autor: Elder Patrick Maia Alves

    Orientadora: Doutora Mariza Veloso Motta Santos

    Banca: Profa.Dr.Mariza Veloso Motta santos (UnB) Profa.Dr.Maria Anglica Madeira (UnB) Prof. Dr. Edson Silva de Farias (UnB) Profa. Dr. Maria Celeste Mira (PUC|SP) Prof. Dr. Frederico Barbosa da Silva (IPEA) Suplente: Prof. Dr. Joo Gabriel Lima Cruz Teixeira (UnB)

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    memria de minha av, Alice Lopes Maia. meus pais. Luisa Maia.

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    AGRADECIMENTOS Quando comecei a erguer esse trabalho algumas pessoas prximas e queridas estavam

    aqui, outras se sequer conhecia...Gratido, palavra-TUDO. Me valerei da sua totalidade

    para arvorar minha saudade e apresentar minha dvida.

    Agradeo a Universidade de Braslia (UnB). Seus professores e funcionrios,

    especialmente aos servidores da secretaria da Ps-graduao, Evaldo e Ablio. Agradeo a

    minha orientadora, Mariza Veloso, pela liberdade, rigor, segurana e confiana. Agradeo

    ao Cnpq pela bolsa de estudos imprescindvel consecuo desta pesquisa. Minha famlia,

    gratido eterna.

    Professor Brasilmar, sem a sua amizade e afeto nada disso seria possvel. Obrigado.

    Edson, obrigado. Ldia, sua sutileza e elegncia fitam essas pginas. Saudade de So

    Lzaro. Luisa, minha filha, voc existe demais, at me apavora. Fernando Cardoso, amigo

    na dor e na alegria, na Baa da Guanabara e na Baa de Todos os Santos. Fernando

    Rodrigues, companheiro de trincheira. Maria, Clara (muito Clara, bem clarinha....) a

    manh que anuncia nossa cidade, que faz da UnB um reservatrio de afeto e saudade.

    Janilce Rodrigues e Evaldo Coutinho, obrigado por ter me feito brasileiro e baiano em

    Braslia. Osvaldo, grande amigo de poesia, obrigado. Diogo, amigo de reflexividade.....

    Agradeo a todo pessoal de Sobradinho, Xande, Cida, Lel, Daniel, Gustavo, Bruno,

    Isabel, Rafa, Paulo Gabriel, Angelina, Luize, Jorge, Gilvan, Celinho, Celina, Maria Paz e

    outros. Aos Amigos do PET: Bruno, Carlo e Andrs. A meus amigos e amigas do Rio:

    Paola, Luiz, Fernanda, Clara Leal, Aline, Tiago e outros. A todo pessoal de Monjolos:

    Dona Neide, Seu Jair, v Sua, Soraia, Janete, Everton, Esmeralda, Paulo, Nieilton e

    outros. A meus primos, Jarbas e Joo Pedro. minha gerao de Salvador: Alex, Rosvel,

    Diego, Moacir, Cabea, Theo, Lo, Bruno, Maurcio, Carlos, Maria Maranho e outros.

    Aos amigos do mestrado e doutorado: Mara, Gilberto, Luiza, Marcela, Guilherme, Cris,

    Simone, Santiago, Gabriel, Oto, Braitner, Chiquinho da livraria. Wlisses, grande

    irmo.Muito obrigado.

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    RESUMO

    Este trabalho tem como horizonte temtico as transformaes ocorridas no mbito da

    produo simblico-cultural contempornea, notadamente no que diz respeito s novas

    faces e fases do processo de industrializao do simblico com as polticas culturais

    pblicas. Diante dessa temtica, a pesquisa buscou objetivar precisamente as interfaces

    entre determinadas polticas culturais pblicas e o advento de uma nova formao

    discursiva (o repertrio discursivo UNESCO) para a estruturao de um mercado de bens e

    servios culturais bastante especfico, ancorado fundamentalmente no valor social

    conferido categorias como tradio e autenticidade. As interfaces entre os processos

    mencionados plasmaram uma rede de interdependncias assaz complexa, integrada por

    distintos planos empricos, tenses polticas e lutas culturais, alm de processos

    intersubjetivos, como o consumo simblico e a construo social do gosto. O objetivo do

    trabalho consiste, assim, em desvelar e compreender os principais eixos de tessitura dessa

    rede, composta simultaneamente por quatro processos: os impactos da intensificao do

    processo de industrializao do simblico (hoje tambm digitalizao do simblico); o

    advento de uma nova formao discursiva em mbito transnacional, tributria das lutas

    poltico-culturais em defesa da diversidade cultural, da identidade e das chamadas

    culturas tradicionais e populares, lutas essas marcadas pelas novas relaes entre as

    categorias de cultura e desenvolvimento; a implementao de determinadas polticas

    culturais (como o Programa Cultura Viva e o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial

    PNPI), que atualizam e potencializam o valor social atribudo s categorias de tradio e

    autenticidade, pondo em circulao alguns signos institucionais de distino, como os

    pontos de cultura e o ttulo de Patrimnio Cultural do Brasil, muitas vezes utilizados com

    objetivos polticos e econmicos; por fim, o consumo simblico orientado pela busca da

    experincia de consumir bens e servios culturais reputados como profundamente

    autnticos e tradicionais, como a literatura de cordel, os objetos de barro da arte

    figurativa e o forr|baio, presentes em determinadas linguagens artsticas, como o

    cinema, o teatro e a literatura. Esses quatro processos conjugados configuram a economia

    simblica da cultura popular sertanejo-nordestina.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

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    ABSTRACT

    The thematic horizon of this paper focus on the transformations that occurred in the scope

    of the contemporary cultural-symbolic production mainly in matters of the new faces and

    phases of the industrialization of the symbolic process within the public cultural politics.

    Facing this theme, this research seeked to show precisely the interfaces between the

    definite public cultural politics and the advent of a new discourse formation (the discourse

    repertoire of UNESCO) for the structuring of a very specific cultural market of goods and

    services, anchored fundamentally in the given social value of the categories of tradition

    and authenticity. The interfaces between the mentioned processes has shaped a complex

    net of interdependences integrated by distinct empirical plans, political tensions and

    cultural fights beyond the inter-subjective processes as a symbolic consumption and the

    social construction of taste. The objective of this paper consists thus, in revealing and

    understanding the main axes of texture of this net, composed simultaneously by four

    processes ; The impacts of the intensification of the industrialization of the symbolic

    (today also called digitalization of the symbolic); The advent of a new discourse formation

    in the transnational scope, tributary of the cultural-political fights in the defense of the

    cultural diversity , identity and the so called traditional and popular cultures. These fights

    were marked by the new relations between the categories of culture and development, the

    implementation of certain cultural politics( such as the show called Programa Cultura

    Viva-Living Culture Show and Programa Nacional do Patrimonio Imaterial - PNPI-

    National Program of the Imaterial Patrimony), that have updated and potencialized the

    social value attributed to the cathegories of tradition and authenticity placing in

    circulation some distinguished institutional signs such as cultural points and the title of

    Brazillian Cultural Patrimony, many times used for economical or political purposes, and

    finally the symbolic consumption guided by the search of the experience to consume

    goods known as deeply authentic and traditional, such as Twine Literature (Literatura

    de Cordel),objects made of adobe from the figurative art and Forr/Baiodance, present

    in some determined artistic languages such as the movies, the theater and literature. These

    four conjugated processes configure the symbolic economy of the popular sertanejo-

    North.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

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    RESUM

    Cette oeuvre a comme horizon thmatique les transformations produites dans le domaine

    de la production symbolique-culturelle contemporaine, spcialement en ce qui concerne les

    nouvelles faces et phases du procs de industrialisation du symbolique avec les politiques

    culturelles publiques. En face du thme propos, la recherche a eu comme but objectiver,

    avec exactitude, les interfaces entre certaines politiques culturelles publiques et

    lavnement dune nouvelle formation discursive (le rpertoire discursive de lUNESCO)

    pour lstructuration dun march de produits et services culturelles assez spcifique, bas

    fondamentalement sur la valeur sociale emprunte des catgories comme tradition et

    authenticit. Les interfaces entre les procs mentionns ont dessin un rseau

    dinterdpendance assez complexe, intgr par des distinctes plans empiriques, des

    tensions politiques et des disputes culturelles, en plus, des procs intersubjectives, comme

    la consommation symbolique et la construction sociale du got. Lobjective de loeuvre est

    de dvoiler et de comprendre les principaux axes du tissu de ce rseau, compos au mme

    temps par quatre procs : les impacts dintensification du procs dindustrialisation du

    symbolique (connu aussi comme digitalisation du symbolique) ; lavnement dune

    nouvelle formation discursive dans le domaine transnational, subordonne par des disputes

    politique-culturelles qui dfendent la diversit culturelle, lidentit et les cultures

    traditionnelles et populaires, ces disputes, ainsi, sont marques par des nouvelles relations

    entre les catgories de culture et dveloppement ; limplmentation de certaines politiques

    culturelles( comme le Programme Cultura Viva et le Programme National du Patrimoine

    Immatriel PNPI), que misent en nouvelle et potentialisent la valeur sociale attribues

    des catgories de tradition et authenticit , en mettant en scne quelques signes

    institutionnels de distinction, comme les points de culture et le titre de Patrimoine Culturel

    du Brsil, utilis plusieurs de fois avec des objectives politiques et conomiques ; pour

    conclure, la consommation symbolique oriente par la recherche de la exprience de

    consommer produits et services culturelles jugs comme profondment authentiques et

    traditionnelles, comme la littrature de cordel, les objets de dargile de lart figurative et le

    forr/baio, prsents dans certaines langages artistiques, comme le cinma, le thtre et la

    littrature. Ces quatre procs conjugus configurent lconomie symbolique de la culture

    populaire sertanejo -nordestina.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

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    Sumrio Introduo............................................................................................................................01 1 Captulo. Modernizao cultural: produo simblica, construo e usos da categoria de cultura popular. 1.1 Arte,tcnica e memria: o serto e a formao do seu significado diante do processo de industrializao do simblico...............................................................................................11 1.2 Critica e resignao: o trnsito constante entre as categorias nativas e as categorias analticas: a fora poltica da categoria de indstria cultural.............................................76 1.3 A produo das categorias nativas. Cultura popular e serto: cultura e poltica entre os intelectuais-artistas dos anos cinqenta e sessenta......................................................100 1.3.1 O movimento folclrico brasileiro: 1947-1964........................................................105 1.3.2 O ISEB e o CPC da UNE.........................................................................................123 1.33 O Cinema Novo.........................................................................................................132 2 Captulo. O advento de uma nova formao discursiva: o repertrio discursivo UNESCO. 2.1 A produo simblica contempornea e as novas relaes entre as categorias de cultura e desenvolvimento..................................................................................................139 2.2 Diversidade cultural, patrimnio imaterial e identidade: a UNESCO e a conformao de um apelo global..............................................................................................................164 2.3 A formao de novas categorias nativas: o serto diante da economia da criatividade e das indstrias criativas.......................................................................................................186 3 Captulo. Estado, mercado simblico e polticas culturais pblicas: tecendo o serto. 3.1 O estado e a dinmica da economia da cultura no Brasil: poltica cultural e mercado simblico.............................................................................................................................214 3.1.1 Produo: financiamento e trabalho.........................................................................216

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

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    3.1.2 Circulao: equipamentos culturais pblicos...........................................................225 3.1.3 Demanda e consumo: o consumo institucional, o consumo corporativo e o consumo familiar...............................................................................................................................230 3.2 O lugar das culturas populares no sistema Minc: o serto diante do processo de constitucionalizao da cultura..........................................................................................238 3.2.1 Cultura Viva: os pontos de cultura como selos institucionais de reconhecimento..................................................................................................................253 3.2.2 O PNPI: o serto e a institucionalizao das polticas de patrimnio cultural imaterial............................................................................................................................ 267 3.2.3 O registro da Feira de Caruaru: a formao de um ttulo de distino..................283 3.3 Autenticidade, tradio e identidade cultural-corporativa: o serto e as empresas culturalmente responsveis...............................................................................................301 4 Captulo: os consumidores de emoes: consumindo autenticidade e experimentando o serto................................................................................................................................332

    4.1 Consideraes finais................................................................................................ 359

    5. Referencias bibliogrficas...........................................................................................361

    5.1 Documentos citados e consultados.......................................................................... 371

    5.2 Stios consultados.......................................................................................................373

    5.3 Filmes citados.............................................................................................................374

    5.4 Ficha tcnica dos filmes analisados......................................................................... 375

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

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    Introduo Esse trabalho busca apresentar e analisar os principais feixes de processos empricos

    que, em seu conjunto, estruturam hoje no Brasil um mercado de bens e servios culturais

    ancorado no valor social conferido tradio e autenticidade da cultura popular

    sertanejo-nordestina. Entre outros aspectos, o serto nordestino, desde as primeiras

    dcadas do sculo passado, foi classificado e reputado por algumas geraes de

    intelectuais-artistas brasileiros, notadamente nos anos cinqenta e sessenta, como uma

    espacialidade que guarda os elementos mais vibrantes e autnticos da cultura e da

    identidade nacional. Essa classificao passou por mudanas, sofrendo atualizaes e

    ressignificaes. Diante dessas vicissitudes, importa perceber, contudo, em que medida o

    valor social atribudo cultura popular do serto nordestino impregna de significado um

    conjunto de bens e servios culturais inscritos na experincia de consumo simblico de

    determinados grupos de status (WEBER, 1994).

    Um dos principais eixos de estruturao e consecuo de tais servios e bens culturais

    so as polticas culturais pblicas, formuladas e implementadas por rgos e instituies da

    administrao cultural pblica (nos trs nveis administrativos e governamentais: unio,

    estados e municpios), que atuam diretamente como legitimadoras e potencializadoras do

    valor social conferido s categorias de tradio e autenticidade. A atuao da

    administrao cultural pblica, entretanto, s pode ser compreendida luz de processos

    discursivos transnacionais que estreitam as interfaces das polticas culturais desenvolvidas

    no Brasil com o tema do patrimnio cultural imaterial, das indstrias da criatividade, do

    direito autoral e, sobretudo, das relaes contemporneas entre as categorias de cultura e

    desenvolvimento.

    Com efeito, diante desse arranjo de processos e interdependncias, este trabalho

    buscou apresentar, problematizar e analisar, em cada um dos captulos que compem o

    texto, as condies sociolgicas de possibilidades responsveis pela tessitura de uma

    configurao social assaz complexa e multifacetada, composta por diferentes recursos

    polticos e culturais, como as mediaes contemporneas entre arte e tcnica; as lutas

    polticas e culturais pela obteno de ttulos institucionais de reconhecimento e distino

    (selos e prmios); os usos e contra-usos simblicos e materiais desses ttulos institucionais;

    alm de uma nova trama discursiva tecida em mbito transacional que, entre outros

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

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    aspectos, trouxe para a ordem do dia do planejamento governamental categorias e temas

    como indstrias da criatividade, patrimnio cultural imaterial, cultura e desenvolvimento.

    Como de pode depreender, para a tessitura dessa configurao social h distintas

    ordens de processos empricos, cujas tenses e acomodaes concorrem para a estruturao

    de uma economia de sons, imagens, signos, objetos artsticos, suportes tcnicos e

    linguagens estticas bastante especifica. Diante desse arranjo, ainda durante a confeco e

    apresentao do projeto de qualificao desta pesquisa1, cunhou-se o seguinte problema de

    pesquisa: quais as condies sociolgicas responsveis pela estruturao de uma economia

    de bens e servios culturais ancorada fundamentalmente no valor social atribudo s

    categorias de tradio e autenticidade? Depurando mais a indagao: sob que condies

    sociais especificas se atualiza e se potencializa o valor social atribudo tradio e

    autenticidade das expresses e manifestaes da cultura popular sertanejo nordestina?

    Buscando responder tal indagao, o trabalho de pesquisa foi iniciado por uma

    investigao simultaneamente terica e emprica, que consistiu em compreender as

    complementaridades e tenses envolvendo arte, tcnica e mercado cultural no decurso do

    processo de modernizao cultural no Brasil. Tais complementaridades e tenses tiveram

    como solo comum a regularidade entre os trnsitos simblicos e urbanos durante o

    processo de modernizao nacional, cujos resultados concorreram, em mios as

    transformaes sociais do sculo XX, para a formao de determinadas memrias sociais.

    O processo de industrializao do simblico (CANCLINI, 2003) diz respeito a um

    amplo movimento de desenvolvimento de processos scio-tcnicos de produo e

    transmisso de signos, imagens e sons que, aliado aos processos de urbanizao e

    industrializao, gestou mercados especficos de bens e servios culturais, responsveis

    pela produo de determinados significados e a formao de memrias. Com efeito, a

    primeira seo do primeiro captulo busca demonstrar como, atravs da imbricao entre

    um complexo de tcnicas, linguagens e mercados simblicos, se instituiu no Brasil um

    trnsito simblico permanente entre os espaos urbanos e rurais. O gnero musical

    forr|baio, por exemplo, foi resultado desse trnsito permanente.

    decisivo ressaltar que, para a estruturao da economia de signos e smbolos da

    cultura popular sertanejo-nordestina, cada uma das condies de possibilidades

    apresentadas e analisadas nos quatro captulos deste trabalho correspondem a processos 1 Qualificao de projeto de doutorado, realizada no doa 09 de dezembro de 2006, no Programa de Ps-Grduao em Sociologia, Departamento de Sociologia da Universidade de Braslia (PPG-SOL-UnB).

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    12

    empricos interdependentes. Desse modo, o processo de industrializao do simblico no

    algo que antecede ou simplesmente contorna o objeto emprico desta pesquisa. Primeiro,

    o processo de industrializao do simblico constitutivo das vicissitudes do processo de

    modernizao nacional. por meio dele e a partir de seus impactos que, na longa durao

    scio-histrica (ELIAS, 2001), a narrativa de significado do serto nordestino ganhou

    densidade simblica e carter nacional. Segundo, foi mediante as reaes ao processo de

    industrializao do simblico (expanso dos mercados culturais urbanos e consolidao do

    valor de exposio) que determinados grupos de intelectuais e artistas assumiram posturas

    polticas bastante criticas, desdobradas em muitas direes, mas cujos resultados, direta ou

    indiretamente, acabaram conformando uma espcie de estatuto social da pureza e da

    autenticidade ligado a narrativa de significado do serto nordestino. Terceiro, a

    intensificao do processo de industrializao do simblico nas ltimas dcadas do sculo

    XX corroborou de maneira direta para a ascenso das economias contemporneas de

    servios, no interior das quais os bens e servios culturais abarcam uma multiplicidade de

    atividades, simultaneamente econmicas e simblicas.

    Esses trs aspectos esto condensados nas trs sees que compem o primeiro

    captulo, mas os efeitos e desdobramentos empricos do processo de industrializao do

    simblico esto espraiados por todo o texto. Nesse sentido, o processo de industrializao

    do simblico uma condio de possibilidade que estrutura e mantm uma regularidade

    bastante definida, notadamente no que diz respeito s interfaces entre arte, tcnica,

    mercados culturais e a formao das memrias sociais. Essa regularidade aparece hoje

    como um dos fatores que condiciona a formao institucional de determinadas polticas

    culturais, as novas relaes entre as categorias de cultura e desenvolvimento, assim como o

    consumo de bens e servios culturais reputados e experimentados sob o signo da pureza,

    autenticidade, da diversidade e da criatividade artstico-popular. Em outros termos,

    em meio as novas faces e fazes do processo de industrializao do simblico que as

    expresses e manifestaes das chamadas tradies populares se realizam e tornam-se

    possveis, sobretudo no que tange s aes polticas constitudas diante das ameaas de

    padronizao e homogeneizao cultural.

    O mesmo vale para o tratamento terico e metodolgico dos processos empricos

    presentes na organizao do segundo captulo, qual seja, o surgimento de novas categorias

    poltico-culturais que, no seu conjunto, apontam para a emergncia de uma nova formao

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    13

    discursiva (FOUCAULT, 1986). Tal formulao discursiva marcada pelos

    desdobramentos simblicos e polticos derivados das novas relaes contemporneas entre

    as categorias de cultura e desenvolvimento. A categoria cultura era concebida, sobretudo

    por parte dessas elites nacionais e internacionais, segundo a compreenso tributria dos

    trechos e convenes publicados pela ONU|UNESCO durante a sua constituio, logo aps a

    Segunda Guerra Mundial. Esses trabalhos, por sua vez, foram informados pelos postulados

    tericos da antropologia social 2, cuja concepo de cultura diz respeito a uma totalidade

    vivida no cotidiano, ou seja, um conjunto abrangente de hbitos, costumes, crenas e

    valores.

    Por seu turno, a categoria desenvolvimento (tributria das transformaes que o termo

    progresso sofreu desde o final dos anos trinta do sculo passado) designava um processo

    ligado s transformaes materiais (aumento da infra-estrutura urbana, dos nveis de

    industrializao, aumento do nmero de trabalhadores, dinamizao das trocas monetrias,

    aumento dos fluxos comerciais, etc.) de vastos conjuntos de populaes, isto , a

    modernizao material de um modo geral. At os anos setenta, cultura e desenvolvimento

    eram experimentados, tanto pelas elites tcnico-cientficas frente dos estados nacionais

    (sobretudo os estados latino-americanos em acelerado processo de urbanizao e

    industrializao, como Brasil e Mxico, por exemplo), quanto pelas elites tcnico-

    cientficas transnacionais (entre elas muitos cientistas sociais que integravam rgos do

    sistema ONU, como a Comisso Econmica para o Desenvolvimento da Amrica Latina

    CEPAL), segundo um registro de tenso e antagonismo.

    A partir dos anos setenta esse antagonismo foi atenuado e, de l para c, os termos

    passaram a ser acomodados, o que permitiu a operacionalizao do que se chama neste

    trabalho de repertrio discursivo UNESCO, que, por sua vez, passou a ser o lastro de

    inspirao terico-legal da maioria das polticas culturais pblicas em todo o mundo. A

    rigor, o movimento de aproximao e acomodao entre as categorias cultura e

    desenvolvimento e de conformao do repertrio discursivo UNESCO foi um dos principais

    responsveis pela recm valorizao das polticas culturais para as culturas populares no

    mbito da nova arquitetura poltico-institucional erguida a partir da instaurao do Sistema

    Federal de Cultura (SFC) no Brasil. No entanto, para se compreender essas mudanas e

    2 Ver, por exemplo, o clssico ensaio intitulado Raa e cultura, encomendado pela organizao ao antroplogo francs Claud Levi-Strauss.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    14

    deslocamentos preciso voltar a ateno para as transformaes econmicas

    experimentadas a partir do fim dos anos sessenta do sculo passado.

    As referidas mudanas so ao mesmo tempo uma condio e o resultado de

    constituio das economias de servios e de estruturao do capitalismo ps-industrial

    (BELL, 1973). Por exemplo, a expanso do tempo livre durante os anos sessenta e setenta

    deslocou algumas atividades que antes eram ocupadas com o trabalho cotidiano para as

    prticas de lazer e diverso. Essas, por sua vez, desencadearam um mosaico de servios de

    entretenimento que ampliaram ainda mais a esfera cultural laica (WEBER, 1984), cujos

    rebatimentos foram decisivos para a insero dos bens e servios culturais nas contas e nos

    clculos da economia mundial. O aumento do tempo livre, no obstante, decorreu do

    aumento da escolarizao e dos processos de intelectualizao em geral, demandados pelos

    novos processos que deram origem as tecnologias da informao e a digitalizao dos

    fluxos informacionais e comunicacionais. Ambos, por sua vez, so faces relacionais de um

    processo ampliado de desmaterializao das mercadorias e desindustrializao do

    capitalismo contemporneo (BELL, 1973). Os efeitos desses processos, como se v ao

    longo do texto, deslocaram os bens e servios culturais para o ncleo das economias de

    servios, o que assegurou a pujana poltico-econmica de uma das novas faces do

    processo de industrializao do simblico, que passou a ser tambm digitalizao do

    simblico. Diante dessas transformaes, alguns organismos de planejamento e de

    normatizao transacionais, como a prpria UNESCO, buscaram dilatar os conceitos de

    cultura e desenvolvimento.

    A dilatao dessas categorias ocorreu em duas direes. Primeiro, o conceito de

    desenvolvimento foi objeto de uma reviso conceitual que atenuou a nfase econmico-

    material de seu registro de significado. Desenvolvimento, segundo o sistema ONU, deveria

    abarcar diversos aspectos da vida social, entre eles, o desenvolvimento cultural. A partir

    dos anos oitenta a organizao passou a criar novos ndices de aferio do

    desenvolvimento, que cada vez mais passou a ser acompanhado do epteto humano ou

    em parceria com a categoria de qualidade de vida. Esses ndices, entre eles o mais notrio,

    o IDH (ndice de Desenvolvimento Humano), deveriam apreender e mensurar aspectos

    como qualidade de habitao, acesso educao, acesso sade, nvel de renda, acesso

    produo cultural e o lazer, e no to somente se ater ao desenvolvimento material.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    15

    O desenvolvimento cultural, um dos critrios das novas formas de mensurao do

    desenvolvimento, no era outra coisa se no um instrumento que buscava estabelecer o

    grau de acesso aos bens e servios culturais postos em circulao em todo o mundo, ou

    seja, do fluxo de servios e atividades culturais dispostos nos diversos mercados

    simblicos audiovisual, cinematogrfico, editorial, fonogrfico, etc. Ao se dilatar o

    conceito de desenvolvimento simultaneamente o sistema ONU, acompanhado de ouros

    agentes transacionais, como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), e

    governos nacionais, dilatou tambm o conceito de cultura. Por um lado, a totalidade dos

    hbitos, crenas, costumes e valores continuavam informando a compreenso desses

    agentes, por outro, o desenvolvimento ampliado (humano) reclamava o acesso ao universo

    de bens e servios culturais acionados e intensificados por ocasio das novas faces do

    processo de industrializao do simblico.

    Eis ai o duplo registro que, nos anos noventa, deu origem aos direitos culturais

    contemporneos, presentes nas principais convenes e instrues normativas da UNESCO

    e assinadas pelos paises membros, inclusive o Brasil, que nessa dcada (sobretudo a partir

    de 2003) passou a acionar esses direitos segundo a categoria de cidadania cultural. Esses

    dois registros esto inscritos no que se chama no decurso desse trabalho de repertrio

    discursivo UNESCO. O Brasil se inseriu nesse movimento de dilatao conceitual com

    vistas a criar matrizes slidas de justificao de determinadas polticas culturais

    contemporneas.

    Os efeitos prticos do processo de dilatao conceitual envolvendo as categorias

    cultura e desenvolvimento comearam a ocorrer a parti dos anos noventa. A partir desse

    momento, o que antes era concebido de maneira tmida e hesitante como economia da

    cultura ganhou novos contornos conceituais, novas tcnicas de planejamento, de gesto

    governamental e uma nova dinmica de consumo e fruio. Mediante a ao de alguns

    governos europeus e das elites tcnico-cinetficas encerradas em organismos como o BID e

    a UNESCO, o conjunto de tcnicas que compunham os complexos artstico-culturais

    abrangentes nomeados e filtrados segundo o conceito de indstria cultural sofreu uma

    alterao substancial.

    Esse complexo que era filtrado e traduzido segundo a categoria de industria cultural

    passou a perder parte de sua pecha de estigmatizao, isto , as ferozes criticas que lhe

    eram imputadas. O conceito de indstria cultural, atravs de alguns aspectos trabalhados

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    16

    no primeiro captulo, sofreu um esvaziamento, tanto analtico (isto , enquanto categoria

    analtica) quanto tico-moral (ou seja, enquanto uma posio normativa inscrita em um

    sistema de lutas culturais). Esse duplo esvaziamento retirou-lhe parte do vigor que possua.

    A categoria de indstria cultural foi objeto de reformulaes que ocorreram,

    simultaneamente, a conformao de outras, como, por exemplo, a mais importante delas: a

    categoria de indstria da criatividade.

    A critica tico-moral inscritas no conceito de indstria cultural derivava, e ainda

    deriva, da compreenso de que a autonomizao e formulao do valor de exposio

    (BENJAMIN, 1980) criou, e ao mesmo tempo foi criada, pela produo em massa dos

    bens simblico-culturais, reduzindo assim as possibilidades criativas e propriamente

    artsticas presentes no valor de aura. Em meio ao acervo de mudanas aludidas antes,

    formulou-se uma compreenso geral nos anos noventa de que a expanso da esfera cultural

    laica em todo o mundo e, por conseguinte, da economia da cultura, assim como a

    respectiva diferenciao do consumo e dos grupos de status no interior dessas

    configuraes, no poderia ser apreendida nem instrumentalizada (nem segundo o registro

    analtico, tampouco o registro tico-moral) luz de conceitos como indstria cultural.

    No incio desta dcada, os principais agentes poltico-culturais destacados antes

    produziram uma inverso terio-conceitual com grandes reverberaes prticas. O que

    antes era visto como um processo anticriativo, resultado da rotinizao da indstria e de

    seus sistemas de controle e padronizao, passou-se a ser visto como algo eminentemente

    criativo. O captulo busca situar e esquadrinhar essa mudana paradigmtica, chamando

    ateno para o advento de novas categorias e cdigos normativos, como as categorias de

    diversidade, indstrias da criatividade e patrimnio cultural imaterial. Como resultado

    dos efeitos prticos tributrios das novas relaes entre cultura e desenvolvimento, as

    polticas culturais no Brasil passaram a abrigar novas matrizes de justificativas. Uma

    dessas matrizes foi sedimentada ao longo do processo de modernizao nacional: o

    imperativo de constituio e consolidao da identidade nacional.

    O imperativo de valorizao e consolidao da identidade nacional passa a se

    inscrever no interior de uma racionalidade discursiva que abarca algumas direes

    complementares. No entanto, o ncleo dessa racionalidade consiste em aproximar (quase

    fundir) os conceitos de cultura e desenvolvimento. O processo de dilatao conceitual

    ocorrido com as categorias de cultura e desenvolvimento criou as condies para a

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    17

    formulao de novas categorias conceituais, como indstrias da criatividade, economia

    criativa e patrimnio cultural imaterial, responsveis pela criao de novos recursos

    discursivos e polticos. Tais recursos esto sendo manejados e remanejados por agentes

    especficos de poder, como o Ministrio da Cultura no Brasil e a UNESCO, no sentido de

    sedimentar novos marcos de legitimao para a implementao de determinados temas das

    polticas culturais contemporneas, notadamente o tema da cultura popular.

    A utilizao desses recursos, isto , sua operacionalizao prtica, vem ocorrendo

    atravs da implementao de determinadas polticas culturais, desenvolvidas no mbito do

    Sistema Federal de Cultura (SFC), como o Programa Cultura Viva e o Programa Nacional

    do Patrimnio Imaterial (PNPI), assim como o todo o processo de constitucionalizao da

    cultura levado a termo notadamente pela Secretaria de Polticas Culturais (SPC) do

    Ministrio da Cultura. Os efeitos prticos dessas aes so analisados e apresentados no

    terceiro captulo deste trabalho. Ali esto condensados dados de ordem quantitativa e

    qualitativa, reunida com vistas a fornecer o panorama emprico e analtico acerca das

    formas de usos e contra-usos polticos e econmicos dos signos institucionais de

    reconhecimento e distino (como os selos de cultura do Programa Cultura Viva e o ttulo

    de Patrimnio Cultural do Brasil concedido pelo PNPI) postos em circulao pela

    administrao cultural pblica, sobretudo no mbito da unio e dos estados.

    O terceiro captulo, nesses termos, procura tornar visveis os contornos das formas de

    utilizao dos recursos discursivos, jurdicos e simblicos fomentados e consolidados no

    decurso desta dcada, como a Conveno Sobre a Proteo e Promoo da Diversidade

    das Expresses Culturais e a Conveno Para Salvaguarda do Patrimnio Cultural

    Imaterial, ambas publicadas pela UNESCO. Esses mecanismos atestam como a

    operacionalizao das polticas culturais e, por conseguinte, os efeitos prticos decorrentes

    da implementao destas, devem sua existncia ao advento de uma nova formao

    discursiva, o repertrio discursivo UNESCO, que aciona e materializa um conjunto de

    prticas discursivas.

    A ltima seo do terceiro captulo busca matizar alguns dados luz da

    problematizao realizada nas sees anteriores do captulo, objetivando as polticas

    culturais desenvolvidas pelas empresas controladas pelo Estado, como a Petrobrs e o

    Banco do Nordeste. Objetiva, por exemplo, destacar a atuao e operacionalizao

    especifica do Programa BNB de Cultura, assinalando a compreenso especifica que o

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    18

    banco guarda sobre a cultura popular sertanejo-nordestina e os mecanismos de usos dos

    registros expressivos, ldicos e simblicos da cultura popular sertanejo-nordestina para

    promover e legitimar a marca institucional da empresa.

    Entretanto, tanto os mecanismos de uso e quanto os efeitos prticos tributrios da

    implementao de determinadas polticas culturais, podem ser melhor compreendidos se as

    especificidades das instituies da administrao cultural forem apontadas no mbito da

    economia da cultura no Brasil. Para tanto, buscou-se iniciar o terceiro captulo com uma

    descrio dos eixos de atuao da administrao cultural pblica no panorama da

    produo, circulao e consumo dos bens e servios culturais, explorando as interfaces

    empricas entre esses eixos e a circunscrio de mercados simblicos especficos,

    materializados a partir de determinados eventos (como o ciclo de festejos juninos no serto

    nordestino) e aes institucionais, como a rede de editais pblicos.

    A ltima condio de possibilidade, analisada e problematizada no 4 captulo,

    concerne estruturao de um esquema de disposies presentes e acionados a parir de

    uma estrutura social de personalidade (ELIAS, 2001), cujos valores mais caros (apreo

    pelas manifestaes arstico-populres e pelas categorias normativas que essas portam e

    mobilizam, como criatividade e autenticidade) encontram ressonncia nos espaos

    sociais de entretenimento e diverso, como o ciclo de juninas no serto nordestino. No

    obstante, esses espaos s se realizam mediante as tramas de relaes tecidas por meio das

    novas tecnologias digitas e dos dispositivos contemporneos de negociao da identidade e

    de realizao da gramtica social do gosto, que Zigmunt Bauman chama de cibervida

    (BAUMAN, 2008).

    Na longa durao scio-histrica (ELIAS, 2001) possvel constatar os ndices de

    constituio dessa estrutura social de personalidade, nomeada no texto, com a ajuda de

    autores como Marcelo Ridenti, de brasilidade romntico-revolucionria. A travs de

    alguns exemplos, o captulo envereda por uma senda que, entre outros aspectos, lava a

    perceber como a brasilidade romntica deve sua constituio ao apreo normativo que

    certas clivagens das classes mdias urbanas escolarizadas atribuem ao valor de aura e,

    portanto, aos contedos ldico-artsticos produzidos pelas chamadas culturas populares,

    em especial a cultura popular sertanejo-nordestina. Em uma palavra, o captulo busca

    demonstrar, luz das discusses realizadas nos captulos que o precedem, que so as

    classes mdias urbanas escolarizadas os grandes inventores do valor de aura

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    19

    contemporneo e, portanto, os legitimadores das tradies populares. Esse ethos

    romntico-encantado guarda uma relao direta com a estruturao de um sistema de usos

    e contra-usos poltico-culturais - realizados e dinamizados por agentes variados, como

    governos, empresas e artistas das tradies populares, mais especificamente das

    tradies ldico-artsticas sertanejo-nordestinas.

    Em face dos processos e das condies de possibilidade problematizadas e analisadas

    neste trabalho, assim como de suas interpenetraes e atravessamentos, possvel sustentar

    a seguinte hiptese de trabalho: nas ltimas duas dcadas o valor scio-histrico atribudo

    s manifestaes, expresses e criaes esttico-artsticas da cultura popular sertanejo

    nordestina vem se materializando nas aes institucionais realizadas pela administrao

    cultural pblica brasileira, notadamente os estados nordestinos e a unio, cuja

    operacionalizao e concretizao passa pelas novas faces e fazes do processo de

    industrializao do simblico e pela incorporao e acomodao de prticas discursivas

    engendradas em mbito transnacional. Os elos de interdependncia entre esses processos se

    estreitaram bastante nos ltimos anos no Brasil, forjando uma configurao social assaz

    especifica: a economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    20

    Captulo I. Modernizao cultural: produo simblica, construo e usos da

    categoria de cultura popular.

    1.1 Arte, tcnica e memria: o serto e a formao do seu significado diante do processo de industrializao do simblico.

    O analfabeto do futuro no ser quem no sabe escrever, e sim quem no sabe fotografar.

    Walter Benjamin

    A memria uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda o passado em funo do presente. Mario Vargas Losa Quem comprar essa histria no empreste ela a ningum Guarde ela em sua mala Cuide dela muito bem Diga a quem quiser comprar Que o autor ainda tem Jacinto Jose Dantas - Cordelista

    O que se segue parte de um esforo terico e emprico que busca conjugar no mesmo

    movimento de modernizao nacional alguns processos. O objetivo consiste em evidenciar

    que as peculiaridades da modernizao cultural brasileira dispensam alguns postulados

    tericos, como a equao conceitual envolvendo os nveis de cultura e o pressuposto da

    dependncia e colonizao tecnolgica. A partir do arranjo de interdependncias sociais que

    foram se estabelecendo entre tcnica e arte no processo de industrializao do estoque de

    smbolos nacionais, uma chave analtica seguida no texto: a formao do significado do

    serto e a galvanizao de uma memria social ligada ao interior da regio Nordeste esteve e

    est diretamente ligada a expanso dos mercados culturais nos principais centros urbanos do

    pas.

    Essa expanso no seria possvel sem a incorporao de dispositivos tcnicos e as

    transformaes urbanas prprias do modo de produo capitalista. Com efeito, o que se

    pretende destacar que uma das faces mais importantes do processo de modernizao

    nacional, a industrializao do simblico (CANCLINI, 2003), evidencia o entrelaamento

    estrutural e de longa durao scio-histrica (ELIAS, 2001) entre economia e cultura. O

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    21

    texto busca estabelecer, assim, um fio analtico que permita compreender, mediante os

    trnsitos simblicos e econmicos entre os espaos urbanos e rurais, como as produes

    econmicas e simblicas concorreram para a formao de uma memria especfica, a

    memria social do serto nordestino.

    * * *

    O ms de Maro guarda um vaticnio decisivo para o cotidiano rural do serto

    nordestino: se at do dia 19 no chover (dia de So Jos), certamente o ano ser de grande

    dificuldade e privao. O terceiro ms de cada ano, tal como a cortina de um espetculo,

    abriga um segredo s revelado pouco antes do ato inicial da obra, pelo menos para aqueles

    que tm dificuldades de interpretar a obscura linguagem da natureza. Durante todo o ms o

    cu objeto de incurses dos olhares, torna-se palco das mais severas observaes, todo o

    relevo, a fauna e a flora passam a ser meticulosamente observados e acompanhados, numa

    espcie de experincia de duplicao do olhar. Todo espao, enfim, ganha contornos de um

    suspense aterrador, que j faz parte da estrutura de emoes dos sertanejos (ELIAS, 1994).

    Em Janeiro de 2008 reuniram-se no serto cearense, nas imediaes da cidade de

    Sobral, cerca de trinta adivinhadores da chuva, como assim so chamados. O encontro de

    janeiro foi mais um que se realiza desde o final dos anos setenta. So senhores e senhoras

    que, de acordo com a incorporao dos saberes legados pelos pais e parentes, assumiram

    uma espcie de autoridade meteorolgica. So reconhecidos pelas comunidades e vilarejos

    do serto nordestino como profetas da chuva, so os mensageiros da abundncia ou da

    privao. Seu trabalho consiste em observar todo o sistema cosmolgico natural e vaticinar:

    se haver fartura ou no, se ser um ano bom ou no.

    O dia de So Jos uma espcie de confirmao, um ltimo alento. Se durante os meses

    de janeiro e fevereiro no chover e a natureza no oferecer nenhum indcio (um mero sinal

    que seja, por mais irrisrio que parea) de que haver chuva nas prximas semanas, resta

    esperar o fatdico dia, que assim representa a porta para onde se d acesso a um ano de

    penria. comum se ouvir relatos na tradio oral sertaneja de anos que oferecem todos os

    sinais de um ano de seca, mas, ao contrrio das previses, o ano apresentou uma abundncia

    alvissareira, exatamente porque no dia de So Jos (padroeiro do Estado do Cear e de cerca

    de 20 municpios daquele estado) choveu, ainda que uma chuva tmida e irregular.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    22

    No preciso dizer que, muitas vezes, as previses dos profetas da seca so

    diametralmente opostas quelas realizadas pelos meteorologistas profissionais, munidos de

    sofisticados recursos tecnolgicos contemporneos que lhes assegura traar grandes mapas

    de previso. Essa aparente frico no chega a ameaar a legitimidade dos dois grupos, cada

    um, sua maneira, possui mecanismos de prestgio e parcelas de acerto que lhes permitem

    conviver, estabelecendo um sistema de acomodaes e convivncias. No ltimo encontro,

    por exemplo, organizado pela Secretaria de Cultura do Cear (Secult-CE), alguns

    meteorologistas profissionais, membros de institutos de pesquisas do Estado e de outras

    regies, ouviram atentamente as indagaes e justificativas dos profetas da chuva ou da

    seca.

    Na contemporaneidade scio-econmica do serto nordestino a chuva no , no entanto,

    mais to decisiva, no decide mais de maneira to peremptria os regimes de alimentao e

    felicidade. No porque o fenmeno climtico da seca no ocorra mais, antes o contrrio.

    Ocorre que a partir do incio dos anos noventa duas aes governamentais corroboraram

    para erguer uma nova estrutura econmica nos mdios e pequenos municpios nordestinos,

    ou seja, exatamente aqueles que mais sofriam com as longas estiagens: a equiparao das

    aposentadorias rurais a um salrio mnimo e a avalanche de novos municpios criados a

    partir do processo de municipalizao. Essas duas aes administrativas reorganizaram o

    cenrio econmico sertanejo de maneira que ainda est por ser feita uma investigao que

    alcance as reais dimenses dessa mudana.

    A equiparao do salrio rural ao salrio urbano, realizada logo no incio da gesto

    Collor (1990-1992), fez com que antigas economias locais pouco monetarizadas, que

    dependiam apenas da irregularidade de algumas colheitas anuais de algum produto agrcola

    (feijo, milho, algodo, etc.), passassem a contar com um volume de dinheiro crescente e

    regular, pois o sistema de pagamento das aposentadorias ocorria sempre nos primeiros dias

    teis de cada ms. A equiparao do salrio rural ao urbano beneficiou um gigantesco

    nmero de famlias, que contavam com um casal de idosos, estabelecendo assim uma

    economia de escala crescente a partir da previso de um pagamento mensal. Segundo o

    IBGE3, alguns municpios da regio passaram em pouco tempo a desativar completamente

    suas lavouras. O fluxo de moeda circulante e a previsibilidade de um novo ciclo de recurso

    dinamizaram a abertura de crdito e criaram, por parte do poder pblico, a necessidade do

    3 Estatsticas do sculo XX no Brasil, www.ibge.gov.br

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    23

    estabelecimento de instituies financeiras pagadoras e arrecadadoras, como bancos e casas

    lotricas.

    Logo a lavoura e a pecuria, que dependiam do regime de chuva, se tornaram

    secundrias. O Fluxo migratrio do serto nordestino mudou de direo durante a dcada de

    noventa do sculo passado. Antes as correntes migratrias apontavam para os ncleos

    urbanos do centro-sul do pas e suas regies metropolitanas, a maioria partindo de mdios e

    pequenos municpios de Estados como Cear, Bahia e Pernambuco. Agora, aps a

    estabilizao das economias locais em torno de um sistema de pagamento regular, o fluxo

    passou a ser das zonas rurais mais afastadas em direo aos centros urbanos dos mdios e

    pequenos municpios. Mas esse quadro no seria o mesmo sem uma segunda transformao:

    a municipalizao de parte dos recursos federais destinados sade e educao, que antes

    eram transferidos para os Estados e s depois destinados aos municpios.

    Essas transferncias deram maior autonomia poltico-financeira aos municpios

    brasileiros, sobretudo aos mdios e pequenos. No Nordeste, regio responsvel pelo segundo

    maior contingente populacional do pas e tambm com o segundo maior nmero de

    municpios dentre as cinco grandes regies nacionais, o impacto maior foi sentido no volume

    de recursos que as pequenas prefeituras passaram a administrar. Logo a necessidade de

    modernizao e profissionalizao dos recursos tcnico-administrativos entrou na agenda

    dos poderes constitudos. Muitas prefeituras que mal tinham sede administrativa, que no

    possuam se quer uma estrutura bsica de servios de sade e educao, viram a constituio

    de fundos de penso de servidores municipais, organizaram concursos pblicos para

    contratao de servidores, sindicatos de servidores foram instalados, enfim, uma categoria

    profissional, que antes s existia nos mdios e grandes municpios nacionais, passou a

    ganhar relevo no sistema das profisses ligadas o Estado. Com efeito, mais um setor

    importante passa a irrigar as pequenas economias locais, j monetarizadas por conta da

    equiparao salarial das aposentadorias mencionadas antes.

    Esse processo de regularidade de pagamento e monetarizao passou a impactar

    sobremaneira na modernizao dos comrcios locais. Segundo o SEBRAE (Servio Brasileiro

    de Apoio as Micro e Pequenas empresas) o nmero de pequenas empresas abertas nos

    pequenos municpios brasileiros do incio dos anos noventa at 2002 duplicou4. No por

    caso que o empreendimento comercial, das modalidades comerciais analisadas na pesquisa,

    4 Pesquisa anual de micro e pequenas empresas, SEBRAE, 2002. www.sebrae.org.br

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    24

    que mais cresceu foi o setor farmacutico. Ora, com a regularidade do pagamento

    assegurada para idosos muitos donos de estabelecimentos farmacuticos criam sistemas de

    crdito que lhes permitem cativar o fregus. Como a maioria dos aposentados rurais, hoje

    residentes em centros urbanos ou semi-urbanos, esto em uma fase que necessitam de

    medicamentos de uso regular, que muitas vezes excedem o oramento familiar, a farmcia se

    converteu em uma espcie de credirio da sade.

    Outro empreendimento que assistiu a um crescimento vertiginoso foram as locadoras de

    vdeo, na sua maioria hoje locadoras de DVDs. Em funo do aumento da circulao

    monetria, em grande parte em decorrncia do nmero de novos assalariados, novos

    servios, entre eles os servios culturais, passaram a ser demandados e ofertados. Essas

    novas formas de assalariamento, assim como de resto as mudanas implicadas nas reformas

    administrativas experimentadas pelo Estado brasileiro e nas reformas de mercado ocorridas

    nos anos noventa, alargaram a importncia que o setor de servios passou a ter na economia

    brasileira, hoje um setor decisivo para o padro de acumulao vigente no capitalismo

    contemporneo.

    A envergadura das mudanas aludidas ultrapassa os objetivos desse trabalho, sobretudo

    nesse instante. As mesmas foram mencionadas apenas para apontar a direo da mudana na

    qual se situa a questo scio-cultural das secas, ou seja, a reduo do seu status de grande

    problema coletivo do serto nordestino. O encontro dos profetas da chuva abre um sem

    nmero de frentes analticas, uma delas ser retomada mais frente, por ora busca-se

    perseguir, atravs do exemplo emprico de uma memria social em particular, a linha de

    tessitura que envolve a costura de um processo social mais amplo: a relao entre arte,

    tcnica e memria em meio ao processo de industrializao do simblico. Assim, o que se

    segue um movimento que tenta apreender a gnese social de um significado a partir das

    fraturas, tenses e complementaridades da esfera cultural laica (WEBER, 2004). Nesse

    sentido, o exemplo da historia social das secas no serto nordestino corresponde a um ponto

    de inflexo decisivo nesse movimento.

    Ao contrrio dos dias atuais, nas ltimas dcadas do sculo XIX o regime de chuva era a

    regularidade mais importante do complexo social formado pelo serto nordestino. Durante o

    ms de Maro de 1877 as coisas no foram muito diferentes no que toca aos hbitos e

    costumes de previses meteorolgicas. Embora nenhum encontro de profetas da chuva

    tenha sido realizado, as previses dos mesmos se confirmaram: ser lia-se nas crnicas

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    25

    jornalsticas de Fortaleza5 um ano de grande seca. De fato o mencionado ano foi o

    primeiro de uma seca que durou at 1879. Esse perodo, assim como os ltimos anos do

    sculo XIX, foi marcado por uma profunda ambivalncia: por um lado, o serto nordestino

    foi palco de uma das mais severas estiagens registrada na longa histria social das secas,

    como evidencia Marco Antnio Villa6, por outro, foi objeto de uma enxurrada de imagens e

    signos que correspondem a um elo decisivo no processo de formao do serto nordestino

    como uma unidade de significado e um monoplio de Sentido7.

    A grande seca de 1877-79 inaugurou um sistema de tenso, cujo ncleo gira em torno

    das tcnicas de modernizao das informaes, que passam, a partir da segunda metade do

    sculo XIX, ligar o Brasil aos fluxos informacionais e comunicacionais em todo mundo e as

    distintas e longnquas regies nacionais. A seca desse perodo se tornou uma das maiores

    catstrofes humanas no porque ceifou a vida de aproximadamente meio milho de pessoas

    (cerca de 4% da populao brasileira), com mais de dois milhes de retirantes, mas,

    sobretudo porque corroborou na montagem de um grande drama social moderno. Mediante o

    grande fluxo de imagens, fotografias e fotogramas publicados regularmente na imprensa

    jornalstica dos principais cidades brasileiras do perodo, instaurou-se um sistema de tenso

    com tema e face: o serto-Nordeste como uma regio-problema, como sntese de tudo que

    no se desejava ser.

    A seca, em seu incio, vitimou principalmente o Estado do Cear, mas logo se estendeu

    para outros estados da regio. No fim de 1877 o escritor, jornalista e peta Jos do Patrocnio

    foi enviado pelo Jornal A Gazeta de Notcia, do Rio de Janeiro, para cobrir os eventos

    cotidianos do flagelo. Tratava-se da primeira incurso jornalstica para cobrir um evento in

    loco da histria da imprensa brasileira. Dois anos depois, Patrocnio publicou no Rio de

    janeiro O retirante, livro que d incio literatura scio-histrica das secas. A modernizao

    dos recursos grficos, visuais e estticos, combinados melhoria na qualidade do papel e

    expanso do pblico leitor nos centros urbanos do pas, assim como a melhoria da infra-

    estrutura de transmisso das informaes, fizeram com que a seca fosse acompanhada de

    grande interesse poltico, cujos rebatimentos culturais so de grande relevo aqui. Marco

    5 O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1937, (Acervo da Biblioteca Nacional), anlise da dcada dos trinta e quarenta, realizada no Ms de outubro e novembro de 2007. 6 Marco Antnio Villa, Vida e morte no serto. Editora tica, 1 edio, So Paulo, 2001, p.39. 7 Elder Alves, A configurao Moderna do serto. Dissertao de mestrado defendida em dezembro de 2004 junto ao Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade de Braslia (PPG-SOL-UNB).

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    26

    Antnio Vila, falando especificamente sobre a profuso de epidemias entre os retirantes, nos

    d uma dimenso do alcance daquela seca.

    A notcia das epidemias na provncia do Cear era espelhada pela imprensa por todo pas. O uso do telgrafo permitiu sua rpida circulao. Na Bahia, O Monitor, de 03 de Janeiro de 1878, publicou o seguinte telegrama de Recife: horrorosas notcias acabam de chegar do Cear. As estradas esto juncadas de cadveres em estado de putrefao e sendo pastos de urubus e ces. O Cearense, cujos nmeros chegavam Corte e a diversas provncias, descreveu a situao de Acarati. Na cidade a mortalidade alcanou mdia de cem pessoas por dia. Um simples anncio de ajuda reuniu seis mil mulheres esqueletos ambulantes-, segundo o jornal, que acabou gerando um grande tumulto e vrias mortes. (VILLA, 2004, p.39)

    Esse trecho de Villa assaz elucidativo. Abundava o nmero de publicaes sobre a

    seca (jornais e revistas), sobre o cotidiano da tragdia sertaneja. Mais de dez jornais foram

    criados para acompanhar e divulgar o flagelo. O mais importante deles foi O Retirante, que

    continuou sendo editado mesmo aps o fim da seca de 1877/79. Editado em Fortaleza e

    tambm impresso ali, o Jornal era distribudo na Corte e nas principais provncias do pas.

    Fundado por um grupo de jornalistas e intelectuais, o jornal trazia os seguintes dizeres em

    sua capa: O Retirante: orgam das victimas da seca. Em pesquisa realizada na Biblioteca

    Nacional8, no Rio de Janeiro, verificou-se que, de 1877 a 1880, O Retirante foi um dos

    jornais semanais com maior nmero de tiragem e maior regularidade de impresso do final

    do sculo XIX.

    Durante toda segunda metade do sculo XIX foram instaladas, nas principais capitais

    provinciais, grficas, oficinas e pontos de impresses de jornais e revistas. A facilitao da

    importao de mquinas e instrumento grficos, obtidos a partir dos acordos comercias com

    a Inglaterra, resultantes das alianas estabelecidas a partir da suspenso do trfico de

    escravos, ajudou na montagem de muitos jornais e revistas. No Rio de Janeiro das trs

    dcadas finais do sculo havia mais de vinte jornais de circulao diria, um circuito

    definido de produo literria via imprensa-folhetim, quatro agncias de notcia, sendo duas

    internacionais, um sistema de telgrafos interligando as provncias de Minas Geram, Esprito

    Santo e So Paulo capital do Imprio, mais de dez tipografias, um nmero significativo de

    livrarias, alm de um crescente fluxo de passageiros transitando pelas recm inauguradas

    estradas de ferro (ALONSO, 2001, p.87).

    8 Pesquisa realizada entre os meses de outubro e novembro de 2007.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    27

    Houve nesse momento a emergncia de um processo urbano-cotidiano que sustentou as

    transformaes grficas das dcadas seguintes. Esse movimento trouxe, de maneira

    irrevogvel, a experincia esttica e emocional do consumo de imagens, signos e a

    potencializao de foras visuais. Impe-se assim uma nova pedagogia do olhar e como tal a

    modulao e estruturao de uma nova sensibilidade, acarretando novas maneiras de

    exercitar o olhar, ou, como adverte Martin-barbero, novos mecanismos que se impem ao

    exerccio do ver (MARTIN-BARBERO, 1998, p. 58).

    Em meio a esse processo, o fato mais significativo existente, e que o jornal O Retirante

    revela de maneira candente, e que de resto est presente em todos os demais jornais e

    revistas da poca, foi o abundante nmero de imagens fotogrficas, gravuras e fotogramas.

    Essa a unidade analtica que interessa nesse momento, ou seja, a fotografia. Mas no a

    fotografia em si, interessa pens-la em meio ao processo social de industrializao do

    simblico, e mais especificamente no que diz respeito a sua trama de possibilidades junto ao

    incipiente mercado editorial brasileiro e a todo um conjunto de dispositivos tcnicos que

    passam a modelar, a partir dos ltimos anos do sculo XIX, a percepo social, implicando

    uma nova educao do olhar, do ouvir, do sentir, de uma nova estrutura de emoes.

    (ELIAS, 1994). Peter Burke acentua como, de maneira quase que simultnea, no final do

    sculo XIX, o mundo ocidental passou a sentir de perto a interao entre as diversas

    descobertas, inventos e, por conseguinte, as interdependncias entre alguns nveis

    tecnolgicos.

    interessante comparar a histria inicial do cinema com a histria inicial do gramofone. Uma levava as pessoas para fora de casa, e a outra, como a televiso, o inverso. O fotgrafo francs Nadar concebeu em linguagem bastante apropriada um daguerreotipo acstico que reproduz com fidelidade e continuamente todos os sons sujeitos a sua objetividade. Como Sarnoff muito depois dele, Nadar sugeriu uma caixa na qual melodias poderia ser gravadas e fixadas, como a cmara obscura capta e fixa imagens. Ele chamou sua mquina de fongrafo. (BURKE, 2004, p.76).

    As primeiras fotografias sobre as vitimas da seca foram publicadas no dia 20 de Julho de

    1877, em O besouro, do Rio de Janeiro. Tratava-se de um conjunto de registros fotogrficos

    exibindo corpos de crianas e adultos esqulidos e famintos. Era em sua maioria fotografias

    de crianas subnutridas em franca aparncia cadavrica. Essa foi apenas a primeira leva de

    fotografias que, naquele ano, inundariam as pginas dos principais jornais e suplementos

    literrios do Rio de Janeiro. O impacto dessas publicaes foi maior nos nichos de

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    28

    intelectuais reformistas que gravitavam em torno da corte, que transitavam em torno dos

    crculos literrios e polticos existentes nas fronteiras das instituies imperiais, como o

    Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB), a Academia Imperial de Belas Artes, o

    parlamento nacional, as faculdades imperiais, os colgios secundrios e os clubes militares

    (ALONSO, 2001).

    As fotografias exibiam as expresses de dor e desalento, misturando-se aos relatos e

    fragmentos de relatos dos retirantes, transcritos pelos jornalistas ao visitarem os locais de

    maior misria e penria. As gravuras e fotogramas tambm so fortes, ferem, tal qual uma

    lana, o olhar mais desavisado. Muitos jornais passam a incorporar a fotografia como uma

    tcnica que atesta a veracidade das reportagens. Duas dcadas aps a grande seca de 1877/79

    a fotografia foi empregada em larga escala durante o conflito de Canudos, do qual se tem um

    dos mais ricos acervos iconogrficos. A fotografia, em uma palavra, confere um novo

    significado ao contedo jornalstico.

    Figura 01. Fotografias de famlias de retirantes. Grande seca de 1877-79.

    Fonte: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    29

    A fora das notcias e das reportagens passou a ser medida pelo grau de realismo e

    mincia inscritos nas fotografias que ilustram e acompanham a notcia-fato. Em outros

    termos, o fato s se torna fato e legitimado como algo digno de notcia se traz como

    atestado de existncia as fotografias que o confirmam. O fato para se consagrar e passar a

    existir como um evento no necessita mais apenas da notcia comentada, ou seja,

    simplesmente descrita e relatada, precisa, antes de tudo, ser apresentada com uma

    fotografia, que vem acompanhada de uma legenda explicativa. Esse passa a ser ento o

    modelo, a unidade complementar: notcia, fotografia e legenda. O fato da fotografia se

    tornar imprescindvel para a legitimidade do fato-notcia demonstra uma crena slida em

    sua tcnica, em seus mecanismos de captura e exibio do real tal como ele . Todavia, o

    impacto esttico e semiolgico da fotografia vai muito alm do campo da experimentao

    do foto jornalismo, invade a percepo visual propriamente pelos efeitos que causa nas

    novas linguagens tcnico-artsticas, como o cinema, as artes grficas e visuais, a

    publicidade, entre outras.

    O impacto perceptivo de uma fotografia, ou melhor, de uma imagem composta de

    corpos amontoados, de famlias esqulidas, de crianas famintas, de pessoas desconhecidas,

    imprime um tipo de sensao ligada, entre outras coisas, a compresso da relao tempo-

    espao na modernidade. As fotografias, e o encadeamento imagtico do qual elas fazem

    parte, corroboram para a montagem de uma paisagem humana que impactou na composio

    da auto-imagem nacional (ELIAS, 2001) construda a partir dos principais centros urbanos.

    O imperativo da privao, da dor e da violncia no se coadunava muito a um ideal

    civilizatrio de saneamento, beleza e ordem.

    As fotografias se impuseram como um ndice de modernizao que fazem parte das

    profundas conseqncias da modernidade (GIDDENS, 1992). Por um lado, as imagens so

    vistas como um dado inconteste do avano tcnico e, portanto, da sintonizao progressiva

    do pas s realizaes europias; por outro, trazem lume muitos aspecto polticos que no

    se acomodavam ao ideal antes mencionado. Essa ambivalncia constitutiva da estrutura da

    modernidade, que traz, como ressalta Giddens, o aumento da influncia daquilo que no

    est aqui aqui(GIDDENS, 1992). Ou seja, atravs dos fluxos comunicacionais e simblicos

    certas espacialidades (como o serto nordestino) longnquas se aproximam, impactando em

    outras e comprimindo, assim, o espao. Algo que torna um espao especfico dotado de

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    30

    realidade e existncia; existir passa a ser algo intimamente ligado a ser fotografado,

    visibilizado e reproduzido.

    Ao mesmo tempo em que essas so funes realizadas por especialistas que fazem parte

    dos novos sistemas de peritos, aqueles responsveis pelo manuseio e domnio das tcnicas:

    fotgrafos, retratistas, tcnicos, etc. As fotografias podem ser pensadas como fichas

    simblicas inscritas na compresso e nas novas modalidades de experimentar o espao-

    tempo, no deslocamento da noo de realidade, que passa a se transformar de acordo com os

    smbolos que passam a represent-la, ou melhor, dos smbolos que em conjunto passam a

    dizer o que e o que no a realidade.

    A fotografia resultado das transformaes e experimentaes tecnolgicas do sculo

    XIX. Surge na Frana e depois se expande por todo o mundo como olho da impessoalidade e

    da nova gramtica da realidade. Seu advento implicou um conjunto de remanejamentos no

    interior das formas de construo dos objetos artsticos e, sobretudo, nas experincias

    visuais responsveis, entre outras, pela tessitura das memrias coletivas modernas. Jacques

    Le Goff ressalta: a fotografia revoluciona a memria, multiplica-a e democratiza-a, d-lhe

    uma preciso e uma verdade visual nunca antes atingida. (LE GOFF, 2005, p.211).

    As mudanas produzidas pela fotografia nos modos de classificar o real, aguaram o

    olhar curioso do critico alemo Walter Benjamin. As reflexes de Benjamin acerca da

    fotografia se situam num espectro mais geral de sua teoria esttica e, por conseguinte, na

    sua concepo de mmesis.9 Benjamin recorre ao conceito de imagem para diferenciar o

    fluxo de smbolos da idia de retrato. Assim como lana-mo do conceito de fisiognomia

    para nomear tudo que no paisagem. Essas duas noes, de imagem e fisiognomia, se

    completam. A imagem, constituda pela totalidade de fotografias dispersas, apreende os

    microcosmos do cotidiano, instaurando a possibilidade de novas aberturas de sentido, que

    s so possveis pela nova educao do olhar. J a fisiognomia revela as mincias da

    economia de expresses humanas, que no nem o retrato (j que a imagem transpe e

    expande a unidade fixa do retrato), nem tampouco a paisagem, conquanto diz respeito a

    outro tipo de captura do dado natural e real, a instantneidade da experincia humana.

    A fotografia nos mostra essa atitude, atravs de seus recursos auxiliares: cmara,

    lente, ampliao. S a fotografia revela esse inconsciente tico, como s a

    9 Esse conceito, cujo advento remonta a filosofia grega pr-socrtica, sofre um deslocamento da obra do filosofo alemo, passa de um atributo de representao e reproduo para uma fora tambm expressiva e vinculada a todo processo de auto-constutuio das memrias psicossociais.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    31

    psicanlise revela esse inconsciente pulsional. Caractersticas estruturais, tecidos celulares, com os quais operam a tcnica e a medicina, tudo isso tem mais afinidades originais com a cmara que a paisagem impregnada de estados afetivos, ou o retrato que exprime a alma de seu modelo. Mas ao mesmo tempo fotografia revela os aspectos fisionmicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minsculas, suficientemente ocultas e significativas para encontrarem refgio nos sonhos diurnos, e que agora, tornando-se grandes e formulveis, mostram que a diferena entre a tcnica e a magia uma varivel totalmente histrica.(BENJAMIN, 2002, p.12).

    Em seu celebre ensaio intitulado Pequena histria da fotografia ressalta que: os

    fotgrafos que passaram das artes plsticas fotografia, no por razes oportunsticas, no

    acidentalmente, no por oportunismo, constituem hoje a vanguarda dos especialistas

    contemporneos (BENJAMIN,1980, p.57). O deslocamento dos grupos artsticos a partir

    do advento da fotografia e as novas formas de exerccio do olhar se imbricam no

    movimento de insero da fotografia no foto jornalismo. O deslocamento dos grupos de

    pintores no interior das ocupaes artsticas passou a ser sentido aps o aprimoramento dos

    recursos da tcnica fotogrfica. Em meados dos anos setenta do sculo XIX, por exemplo,

    muitos fotgrafos (notadamente os fotgrafos retratistas) em So Paulo realizavam

    fotografias em tamanho natural, atravs de uma tcnica de ampliao conhecida como

    cmara solar. A partir do crescimento urbano experimentado nas ltimas dcadas do sculo,

    cidades como Rio e So Paulo assistiram a um surto de crescimento do numero de atelis e

    lojas de retratos. Outra tcnica que logo atraiu a ateno e o interesse do publico foi a foto

    pintura, que estabeleceu uma acomodao momentnea no mercado de retratos e no

    mercado editorial como um todo, pois consistia em ampliar a fotografia at o tamanho

    original, depois cort-la sobre um papel ou tela e ento pint-la a leo, guache ou pastel.

    Um outro exemplo, tambm retirado do sculo XIX, ainda mais esclarecedor. Diante

    da escassez de concursos de belas artes, que conferiam bons valores financeiros aos seus

    vencedores, no perodo final de derrocada da monarquia brasileira, o Pintor Victor Meireles

    resolveu criar uma companhia de pintura de grandes quadros de exaltao, os chamados

    panoramas. Eram grandes pinturas que consistiam em apresentar ao pblico fatos picos,

    tornados ainda mais clebres atravs da grandeza e do nmero de pessoas interessadas em

    apreciar tais obras. A empresa criada consistiria na cobrana de ingressos, algo que poderia

    resultar em grandes ganhos e corroborar para a volta dos concursos imperiais.

    Vicejando a possibilidade de apresentar alguns panoramas (todos com temticas

    brasileiras, ora a natureza exuberante, ora as batalhas de independncia e/ou as glrias do

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    32

    Imprio) durantes os Sales de Arte da Europa, como as Exposies Universais de

    Bruxelas e Paris, a Meireles & Langerock resolveu pintar uma imensa vista do Rio de

    Janeiro. A tela seria exibida em um imenso galpo, com um eixo de engrenagem rotativa

    que permitiria o pblico observar a imensa paisagem ser desfraldada. Os pintores j

    possuam experincia nesse tipo de empreendimento tcnico-artstico, o prprio Meireles

    havia pintado anos antes um panorama com cerca de 115 metros de comprimento por 14,5

    de altura, abarcando um espao total de 1667 metros quadrados, movimentando-se em um

    salo de cerca de 36 metros de dimetro10.

    Feito o trabalho, os autores e scios trouxeram na bagagem a justificativa de que, alm

    de mostrar a fulgurante e exuberante natureza nacional, acabaram incentivando a vinda de

    imigrantes europeus, numa espcie de arte imigrantista (DURAND, 1989), exatamente

    em um perodo de substituio do trabalho escravo. Encorajado pelo sucesso obtido na

    Europa, Meireles contraiu emprstimos para a consecuo de novos projetos, ainda mais

    ambiciosos, entre eles um que resultaria na pintura da chegada de Cabral ao Brasil, por

    ocasio da comemorao dos quatrocentos anos da descoberta, e que deveria estar pronto

    at o incio de 1900. Para tanto, estudou a rota de chegada de Cabral e viajou at o local de

    desembarque. No entanto, os projetos posteriores a exibio europia no lograram o

    mesmo xito, inclusive o de comemorao do quarto centenrio do descobrimento. A

    empresa comeou a apresentar dificuldades financeiras e, antes mesmo de concluir os

    projetos, pediu insolvncia. A rpida expanso das novas tcnicas de produo de imagens,

    como o cinematgrafo (resultado dos desdobramentos tecnolgicos da fotografia), cujo

    apelo popular logo se fez sentir, selaram o destino dos panoramas, assim como das demais

    modalidades de grande pintura de paisagens e eventos.

    A existncia dos panoramas e, particularmente, seu xito nas exposies europias

    atestam uma mudana nas demandas por mecanismos que permitissem a ampliao do

    olhar. A utilizao da chapa fotogrfica como matriz de um processo de reproduo de

    imagens, mais tarde ampliado para as telas cinematogrficas e posto em movimento, no

    pode ser tomado apenas como nico fator. As linhas de fora que constituem e informam

    esse movimento so mais complexas e multifacetadas. A composio de um acervo de

    imagens nos centros urbanos a partir do sculo XIX se desenvolve como uma regularidade

    que envolve uma mirade de processos, cujo resultado cotidiano repousa na acumulao de

    10 Jos Carlos Duran, Arte, privilgio e distino. Editora Perspectiva, 1 edio, So Paulo, 1989, p.39.

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

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    experincias visuais que se configura como uma segunda natureza, incorporada agora ao

    aparelho tico-visual, que toma de assalto a percepo de crticos, artistas, jornalistas,

    escritores e intelectuais.

    O processo de tecnizao que abarca os novos dispositivos de reproduo de imagens

    amplia o alcance do olhar porque traz consigo a no-exigncia do olhar treinado, ou seja,

    um olhar que desconhece os cdigos de apreciao e fruio esttica sintonizado

    ambincia material da arquitetura dos sales de exposio, galerias e museus. O denso

    movimento de modulao do olhar tambm, e precisamente por conta disso, um

    movimento de dilatao dos espaos, a partir dos quais se tece a nova economia dos signos

    urbanos, sustentada no consrcio entre materialidade e imaterialidade. O fluxo das

    transformaes urbano-industriais carrega a necessidade de ampliao dos servios de

    visualizao e informao, ou seja, daqueles que passam a vender o que os outros tm a

    vender. A publicidade se situa ai em um campo bifronte, como um canal que permite

    incorporar a fotografia, o cinema e as demais tcnicas estticas que alimentem os surtos de

    experimentao. A mencionada tecnificao , antes de tudo, uma tecnificao da

    totalidade da vida. Preocupado em relacionar esse fenmeno com o mundo cotidiano da

    vida, Jurgen Habermas ressalta:

    De certa maneira, as questes prticas relativas direo do Estado, s estratgia e administrao, tambm antes deveriam ser solucionadas com a utilizao de um saber tcnico. No entanto, uma transformao do saber tcnico em conscincia prtica no se alterou hoje s na ordem da grandeza. A massa do saber tcnico j no se reduz s tcnicas pragmaticamente apreendidas dos ofcios clssicos. (...) Hoje nos sistemas industrialmente mais desenvolvidos, importa empreender a tentativa enrgica de tomar nas rdeas uma mediao que at agora se imps em termos de histria natural, entre o progresso tcnico e a prxis vital das grandes sociedades industriais. (HABERMAS, 1978, p.46.)

    Os mesmos efeitos no-programados das experimentaes tcnicas que resultaram no

    aparecimento da fotografia tambm engendraram o cinema. Os primeiros cinematgrafos

    (instrumentos de exibio e reproduo das imagens capturadas pelas cmaras) surgiram na

    Frana e muito cedo se espalharam pelo mundo. O Rio de Janeiro, de acordo com os

    regimes de expanso urbana, diferenciao social e consumo simblico do incio do sculo

    passado, chegou a ser no perodo a segunda cidade em nmero de cinematgrafos, que

    eram instalados em antigos teatros e casas de shows, as chamadas casas de espetculo. De

    to abundante na vida cotidiana na cidade, o espao compreendido entre o Teatro

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

    34

    Municipal e a Biblioteca Nacional passou a ser denominado de Cinelndia, dada a

    quantidade de salas de cinema que passaram a se fixar no local a partir das primeiras

    dcadas do sculo. Antes da Cinelndia, as fitas eram exibidas na Rua do Ouvidor, em

    mquinas ainda denominadas de omniograph. Em uma das primeiras exibies alguns

    expectadores, ao observarem uma tomada em que uma locomotiva aumentava de tamanho

    medida que se aproximava da cmara (em um movimento de deslocamento em direo ao

    olho da lente), acabaram abandonado a sala de exibio, temendo que o vago invadisse a

    sala e os atropelasse. Relatos como esse tambm ocorreram na Europa (CALDAS e

    MONTOURO, 2006).

    Era ento a imagem em movimento. Um fluxo frentico de cenas intercaladas que

    permitiam fotografia ganhar vida. Mesmo ritmo assumido pelos centros urbanos

    nacionais, que passava ento a se configurar como verdadeiras florestas de signos (SENET,

    2001). Se a fotografia se inseria em um constante fluxo de movimentos, o cinema passava a

    ser a prpria expresso do movimento. Se a fotografia tinha a prerrogativa de congelar e

    sintetizar a multiplicidade do real, o cinema acionava um movimento frentico, o dilogo

    entre as fotografias e seu aprimoramento da capacidade de reproduo. Muitos cineastas

    localizados na trama de formao do cinema brasileiro, como Lucio Mauro, comearam na

    fotografia. O prprio Afonso Segretto (considerado o primeiro a realizar imagens no Brasil,

    quando ento realizou algumas vistas da Baa de Guanabara) tinha iniciado na fotografia,

    assim como seu irmo Paschoal Segretto, dono de uma das primeiras salas de exibio,

    chamada Salo de Paris no Rio. O relato mencionado acima demonstra todo o

    estranhamento inicial, mas que logo iria ser aplacado e rotinizado de acordo com a profuso

    de mquinas de captura, reproduo, transmisso e enquadramento da imagem. Uma

    crnica do poeta Olavo Bilac do incio do sculo revela bem a relao do cinema com a

    redefinio do espao urbano e os efeitos semiolgicos sobre a percepo e as maneiras de

    olhar.

    J h na Avenida Central quatro ou cinco cinematgrafos; e, alm das casas

    especialmente destinadas para esses espetculos, j a mania cinematogrfica invadiu todos os teatros e tomou conta de todas as paredes e de todos os andaime em que possvel esticar um vasto quadrado de pano branco. Agora, depois dos fongrafos da Rua do Ouvidor, os cinematgrafos da Avenida Central. E daqui a pouco no poderemos mais dar um passo pela cidade, sem encontrar um desses lenis alvos em que as cenas da vida humana aparecem deformadas pelo tremor convulsivo da fita. (Apud CALDAS e MONTOURO, 2006, P.30).

  • A economia simblica da cultura popular sertanejo-nordestina

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    O cinema j nasce impregnado das mais variadas e modernas tcnicas, em meio aos

    recursos matrias e simblicos que as experimentaes industriais permitiram, como a

    descoberta de novos combustveis, lentes de longo alcance, fuso de materiais, descobertas

    de novas matrias-primas, entre outras. A instalao das primeiras casas e salas de cinema

    no Rio de Janeiro s foi possvel a partir da inaugurao da energia eltrica, fornecida a

    partir da usina hidroeltrica de Caxias, construda para abastecer o centro da cidade em

    meio s transformaes urbanas do incio do sculo XX, que resultaram na inaugurao da

    Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco. Por isso, inteiramente ingnuo e estril,

    dividir, por exemplo, a histria do cinema brasileiro em fases muito definidas, reservado

    para o incio do sculo XX (o perodo compreendido de 1898 a 1920) como fase artesanal, e

    a fase seguinte (partir dos anos trinta), como fase de industrializao11.

    A experincia de ampliao do olhar se d em termos de volume e dimenso, aliando

    incurses microscpias e macroscpicas. Essa realizao da tcnica, que d novos

    contornos fruio esttica, definida por Benjamin como um movimento em direo a

    destruio da aura. Pensando na longa durao, o critico refaz o percurso de constituio

    dos objetos artsticos na inteno de confrontar o que ele chamou de valor de culto e valor

    de exposio. Durante a transio do longo perodo medieval at o sculo XIX os artefatos

    artsticos estiveram engolfados numa experincia mgico-mstica responsvel pela

    formao de um valor de culto semelhante aos rituais religiosos mais sagrados, o que

    acabou conferindo ao mundo artstico (msica, pintura, literatura, entre outros) um

    invlucro aurtico. Esse carter mstico no advm somente do fato de ter sido a igreja

    catlica a maior produtora e distribuidora de smbolos do perodo medieval (fato

    confirmado atravs dos muitos ar-fresco, xilogravuras com temas religiosos, esculturas,

    telas e catedrais revestidas de desenhos e imagens), mas tambm da permanncia da

    ritualidade que marca a contemplao dos objetos artsticos.

    O que de importncia decisiva que esse modo de ser aurtico da obra de a