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A EDUCAÇÃO AINDA PODE SER TRANSFORMADORA (?)(!)
“A educação é um ato de amor e, por isso, um ato
de coragem. Não pode temer o debate. A análise da
realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena
de ser uma farsa.” (FREIRE : 1967)
Este material foi produzido por um grupo de cinco estudantes da Universidade de São
Paulo, que cursaram juntos a disciplina História do Brasil Independente I. A proposta da
disciplina foi observar o Brasil do século XIX sob a ótica pouco recorrente das lutas e tensões
sociais que permearam o período, muitas das quais fincaram raízes em nossas instituições,
territórios, cidades, e formas de sociabilidade e cultura. Fomos convidados a perseguir
afetivamente esses desdobramentos, até os conflitos sociais e existenciais que caracterizam
nosso tempo, veloz, de universidades públicas enforcadas por seus próprios muros, de
desesperança em todos os elementos do processo educativo, descrença em nosso potencial
e em nossas práticas de transformação da sociedade. Neste processo de questionamentos,
fomos a campo na cidade antiga do Rio de Janeiro, passando pelos principais
estabelecimentos dos poderes Imperial e Republicano (não tão distintos quanto poderíamos
imaginar), e também pelo locus de resistência que é o Instituto dos Pretos Novos, sítio
arqueológico desrespeitado pelo poder público que luta para guardar resquícios das ossadas
de escravizados ainda não vendidos despejados num cemitério no bairro do Valongo.
Acreditamos que é importante contar a você esse percurso quando sugerimos este
material, pois ele está imbuído desses seis meses de construção. É desse ponto de vista e
momento específicos que nos voltamos à atuação do historiador-educador em sala de aula
e pensamos através deste material uma possibilidade de abordar a História brasileira
agenciando seus afetos, saberes e sensações, e aqueles de seus educandos e educandas.
Concordamos com Paulo Freire em ter as pessoas concretas como centro das dinâmicas de
construção do conhecimento. Pessoas concretas que estão inerentemente vinculadas à
realidade, e portanto, têm suas condições de existência como ponto de partida e de retorno
de uma discussão como esta, a respeito do século XIX no Rio de Janeiro.
Partindo dessas premissas, não faria sentido apresentarmos a você um material linear,
rígido, fechado, já que desconhecemos a realidade da sua sala de aula. O que virá nas
próximas páginas são sugestões de como abordar um tema específico dentro deste contexto
histórico: os trabalhadores livres ligados às artes manuais e suas formas de organização e
convivência. Não escolhemos este tema por acaso, mas porque se trata de um grupo social
pouco observado, que foge à dicotomia das análises comuns sobre o período (senhor x
escravo; monarquia x república; centralização x federalismo).
Entendemos que refletir com um grupo de estudantes do segundo ano do Ensino
Médio, que se aproxima do fim de sua educação escolar e do ingresso no mercado de
trabalho (quando ainda não trabalha), sobre as motivações, contradições e desafios dos
trabalhadores livres urbanos oitocentistas, tem o potencial de ser não apenas um movimento
de conhecimento, mas também de reconhecimento. Consideramos que o nosso grupo,
vocês, e os educandos com quem forem debater este material, somos “homens e mulheres
comuns” tanto quanto estes artesãos eram no século XIX. A visão que continua
predominando hoje, mais de um século depois, é a da incapacidade de nossa expressão, de
termos voz genuína ou qualquer forma de decisão legítima e autônoma. É no que queria
acreditar a Coroa e os latifundiários escravistas ou liberais que cavaram seu espaço no
poder. É a forma como somos até hoje retratados pelos grandes conglomerados de
comunicação e ridicularizados pelas instâncias políticas representativas que seguem
refletindo as mesmas poucas famílias poderosas de então.
Negamo-nos a reproduzir essa visão da História brasileira. Apesar de nossas estruturas
sociopolíticas terem se apoiado na rejeição ao diálogo e à democracia, os diferentes povos
brasileiros são marcados e marcaram por múltiplas experiências de expressão e organização.
As formas opostas de poder e repressão de fato limitaram a potência organizativa em nosso
país, e continuam impondo barreiras a ela nos dias de hoje. Nosso convite para observar e
discutir essas questões com jovens estudantes vem da certeza de que compreender e discutir
os problemas da vida concreta nos ensina a criar novos caminhos e soluções. Num momento
doloroso, em que se sente de forma inédita a fragilidade da democracia construída depois
da ditadura civil-militar, reforçamos o convite de Freire ao debate, à participação:
“A democracia que, antes de ser forma política, é forma de
vida, se caracteriza, sobretudo por forte dose de transitividade de
consciência no comportamento do homem. Transitividade que não
nasce e nem se desenvolve a não ser dentro de certas condições em
que o homem seja lançado ao debate, ao exame de seus problemas e
dos problemas comuns. Em que o homem participe”.
(FREIRE: 1967)
É neste sentido que o material que se segue não será linear. Ele possui uma
aproximação cronológica no formato de texto corrido, que narra a constituição das
corporações de ofício e das irmandades em Portugal, sua vinda e adaptação ao Brasil, e as
interações jurídico-legais em relação ao Estado durante todo o decorrer do século XIX.
Entendendo o tema como aprofundamento possível no debate a respeito do período, que já
foi trabalhado anteriormente em termos mais amplos, você pode usar este texto preliminar
para sua própria preparação ou como base para diálogos com os educandos, da forma
como preferir. A partir de então apresentamos algumas atividades, direcionadas a temas
que convergem no assunto central, mas podem ser trabalhados de forma independente, e
são bastante voltadas ao mapeamento das relações passado-presente. A bibliografia
utilizada está compilada numa lista, mas em cada conteúdo fornecemos a bibliografia
específica que pode ser aproveitada para aprofundamento.
Resta agora esclarecer dois aspectos finais deste material: a interdisciplinaridade e a
preocupação com a linguagem. Em relação ao primeiro tópico, o olhar intertemporal aqui
proposto não poderia se esgotar na perspectiva exclusiva de uma área do conhecimento. A
ideia é que o conteúdo sociopolítico preliminar ao debate já tenha sido abordado por você
nas aulas de História, porém, se houver interesse, a utilidade do material seria expandida
vigorosamente com uma abordagem de outras disciplinas. Como sugestões, as relações
literárias poderiam ser abordadas por professores de Língua Portuguesa (gramática e
literatura); a questão da expansão urbana e o trabalho com mapas podem servir à disciplina
de Geografia; as clivagens sociais e concepções ideológicas são um campo possível para o
debate na Sociologia e na Filosofia; as charges e obras analisadas ao longo de todo o
material podem ser aproveitadas pela disciplina de Arte; e ainda temos tópicos relacionados
às Ciências Naturais, como o próprio processo artesanal de produção dos sapatos em suas
etapas distintas, e as relações sanitaristas com as habitações coletivas onde viviam esses
trabalhadores. Estes indicativos nos parecem interessantes, mas só a partir da interação com
a equipe de educadores que você integra poderia ser desenvolvida alguma proposta
interdisciplinar efetiva para lidar com o material.
Quanto à linguagem, sabemos que as estruturas da comunicação e da língua detêm
capacidade imensa de perpetuar e disseminar relações de históricas e sociais encharcadas
de poder. No assunto de que vamos tratar, é muito comum que se denomine escravos aos
negros e negras trazidos à força do continente africano para trabalhar no modo de
produção escravocrata e latifundiário do Brasil. Aqui, evitaremos este termo, fugindo do
costume de naturalizar a condição de escravização que marcou a história dessas
populações e, assim, de nosso país. Aqui, faremos referência a tais pessoas pelo nome de
escravizados, tendo em mente a transitoriedade da condição de escravidão.
Torcemos para que o convite tenha te instigado, e em caso positivo, seguimos juntos
pelo restante do caminho que você irá criar.
Adonias Batista, Ana Carolina S. M. Mazzotini, José Rodolfo Chufan
G. Mendes, Pedro Marques e Rafael Poveron Ferreira
Referências
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? São Paulo: Paz e Terra, 2011.
POR QUE ESTUDAR OS TRABALHADORES
LIVRES URBANOS NO SÉCULO XIX?
Para além das visões estruturais e de dualidades bastante exploradas na nossa
historiográfia (senhor x escravo; monarquia x república; centralização x federalismo),
conforme já colocado anteriormente, propomos o estudo de uma classe intermediária, que
não conforma a elite nem tampouco os escravizados. Os trabalhadores livres urbanos tiravam
o próprio sustento de seu trabalho, ou muitas vezes também com a utilização do trabalho de
escravizados, porém não dispunham de uma relação com o Estado que lhes desse garantias
com relação à atividade econômica e manutenção de condições de vida. Como meio de
se auto-ajudarem e se fortalecerem na relação com o estado, estes trabalhadores se
associavam nas chamadas irmandades, corporações de ofício e associações.
Utilizamos a noção de classe em Thompson, considerando-a como um fenômeno
sociohistórico de identidade e oposição a outros grupos, que se constrói gradativamente a
partir do compartilhamento de experiências. Para Thompson, classe não pode existir sem
consciência de classe. Nas associações esta consciência de classe é explícita, e a partir
delas pessoas comuns encontraram anteparo para seus interesses e mesmo uma força
pessoal, por se reconhecer como parte de algo maior, que lhes deu a oportunidade de se
colocar na sociedade de diversas formas, as quais muitas vezes nos parecem impensáveis.
Os trabalhadores livres contribuíram para o debate público, produziram literatura,
tiveram sua força e participação política, bem como foram retratados em importante
iconografia. Foram, portanto, sujeitos da história. Algumas destas contribuições estão
colocadas neste trabalho e podem ser utilizadas como atividade em sala de aula.
Procuramos examinar também de que forma este grupo de relacionava com os demais
extratos da sociedade, sua conformação e conflitos internos, o posicionamento político e a
relação com o Estado. Como dito, o uso do trabalho dos escravizados era comum e a
relação com os negros é problematizada por nós.
As associações fizeram parte de um Rio de Janeiro do séc. XIX que já não existe como
tal, pois em grande parte foi transformado, num processo que envolveu transformações
geográficas produto de concepções políticas. Por isso tratamos também de mostrar no
trabalho de que maneira o Rio de Janeiro das corporações se transformou. Como capital do
império e até hoje entre os centros mais importantes do Brasil, é imprescindível entender este
meio urbano para entender a história do país. Dentre as muitas associações escolhemos as
dos sapateiros do Rio de janeiro como objeto a ser observado, pela sua relevância neste
universo, que será melhor explicitada na sequência.
Referências
THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa, voi. I. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997. v. I.
O CASO DOS SAPATEIROS
COMO E POR QUE OBSERVAR AS
PERSONAGENS DESSE GRUPO SOCIAL
Ao longo deste material, vamos utilizar o exemplo das experiências associativas dos
sapateiros para discutirmos a realidade dos artistas mecânicos neste Rio de Janeiro do século
XIX. Nosso olhar não se voltou por acaso para essa categoria de artesãos, mas por três
motivos principais: a importância do sapato como elemento de distinção social da época; a
presença expressiva de sapateiros na cidade na virada para o século XIX; a relevância de
sua articulação política sobretudo no começo do século.
Em primeiro lugar, é fundamental ter em mente que a estrutura escravocrata da
sociedade brasileira transformou o sapato num elemento decisivo de distinção social, pois
seu uso era proibido aos escravos (como nos mostra a imagem 1). Podemos entender esse
contexto como um fator de estímulo à confecção desses artefatos pelos artistas mecânicos,
ou até mesmo como fator que dotava essa categoria de artesãos de maior prestígio e
relevância sociais.
Podemos constatar a força simbólica dos sapatos
na época a partir da charge ao lado, feita por
Julião Machado e publicada no jornal D. Quixote
em 16 de maio de 1917. Nessa edição
comemorativa dos quase trinta anos de
assinatura da Lei Áurea, a ideia de uma mulher
negra sendo atendida por um vendedor de
sapatos branco ainda choca pela inversão de
papéis. Esta senhora negra bem vestida diz (na
linha de baixo): "Ande di pressa, moço! São duas
horas e já divia está no instituto di belleza!". O
registro de sua maneira de falar, que funde a
oralidade africana e a tentativa de adequação à
língua formal, revela uma visão caricata dessa população - no período de grande tensão
social após 13 de maio, quando a luta dos negros e negras ex-escravizados por igualdade e
cidadania sofria uma transformação profunda, sendo este até hoje um passado não
resolvido em nossa sociedade.
Talvez em decorrência desse primeiro aspecto, os sapateiros eram maioria entre os
oficiais mecânicos cariocas na virada para o século XIX. Em 1792, o almanaque municipal do
Rio de Janeiro apresentou a Relação Geral de todos os Oficiais examinados, que se acham
trabalhando ao Público com Lojas abertas dos diferentes Ofícios mecânicos existentes nesta
Cidade, até ao princípio do presente ano. Nessa listagem, temos 28 sapateiros, 16 ourives, 12
alfaiate, 9 barbeiros e sangradores, 8 marceneiros, 7 carpinteiros, 7 pedreiros, 5
espingardeiros, 4 ferreiros, 2 serralheiros, 2 tanoeiros, 2 caldeireiros e 1 funileiro. Tendo em
mente as tensões sóciorraciais mencionadas, é interessante observar o predomínio de
brancos entre os artesãos; apenas nos ofícios de marceneiro, barbeiro e sangrador -
atividades mais comuns entre negros libertos e escravizados - constava no registro do
Almanaque alguma especificação quanto à cor e/ou condição social.
O último fator que motiva um olhar mais aproximado aos sapateiros, e provavelmente está
vinculado aos dois motivos já descritos, é o forte apelo político desenvolvido pela
organização dos sapateiros, que influenciou a ação de outras corporações na defesa de
seus interesses comerciais. Eles se representavam frente ao poder constituído e ao restante da
sociedade das mais diversas maneiras, como em festas religiosas, participando em eventos
de mobilização e conflito social, através de homenagens prestadas aos representantes do
Estado, consolidando seus mecanismos jurídicos de legitimação como estatutos, entre outras.
A história da organização dos sapateiros no Rio de Janeiro
começa em 1754, data aproximada do surgimento da Irmandade
de São Crispim e São Crispiniano, padroeiros dos sapateiros.
Segundo a mitologia cristã,
Crispim e Crispiniano foram dois
irmãos sapateiros que viveram na
época romana, convertidos ao
cristianismo na adolescência. Eles
teriam fugido da perseguição
romana em direção à região da
Galícia sem sucesso, sofrendo
torturas e o martirio. O dia 25 de
outubro é dedicado a eles no
calendário cristão.
INSPIRAÇÃO E ORIGEM
AS CORPORAÇÕES EM PORTUGAL
A organização dos artífices mecânicos em corporações de ofício é uma prática que
se origina no decorrer da Idade Média europeia, inspirada no modelo mental e político-
jurídico do corporativismo da segunda escolástica. Segundo esse pensamento, muito
presente nas penínsulas ibérica e italiana até meados do século XVII, a ordem divina
sobrenatural, a ordem da família e a ordem da cidade têm o mesmo grau de importância e
devem ser igualmente valorizadas. Essas origens nos ajudarão a compreender, séculos
depois, o forte vínculo entre religião, sociedade e trabalho, que orienta as formas associativas
de trabalhadores urbanos do Rio de Janeiro ao longo do século XIX.
No reino europeu de unificação
precoce1 que mais tarde viria a colonizar o Brasil
os artesãos já se reuniam, no ano de 1383, na
“Casa dos Vinte e Quatro”. Esta célebre
organização tinha a incumbência de fiscalizar a
administração municipal, definindo os interesses
do povo. A partir de 1572, as atividades de artes
mecânicas são regulamentadas em Portugal,
através da criação de uma estrutura que
envolvia assembleias, eleições, critérios para
carta-exame, entre outros procedimentos.
Já no século XVIII, por demanda do juiz de Lisboa, a representação dos ofícios na
Casa passa a ser mais organizada, conforma as bandeiras dos santos padroeiros são
vinculadas aos respectivos grupos de artesãos. Como exemplo, temos São José, cuja
bandeira representa os pedreiros, carpinteiros e marceneiros; São Jorge santo dos ferreiros,
serralheiros, latoeiros, funileiros, seleiros e outros trabalhadores dos metais; o Senhor Bom
Homem ligado aos alfaiates; Santo Elói sendo reivindicado pelos ourives de ouro e prata; e,
finalmente, a dupla que tomaremos como exemplo para nossas discussões: São Crispim e São
Crispiniano, santos vinculados ao ofício dos sapateiros.
As bandeiras funcionavam como uma hierarquia profissional, que estabelecia alguns
ofícios mais nobres dentro da área como cabeças e outros como anexos2. Todos os membros
de cada irmandade, ao adentrar, se tornavam responsáveis por organizar rituais e
obrigações relacionadas à Bandeira de sua irmandade. Esses deveres envolviam o cuidando
com as procissões e festas do respectivo santo padroeiro, e também um esforço conjunto
1 Portugal foi o primeiro “Estado Moderno” a se unificar, ainda em 1139. 2 No caso dos sapateiros, o ofício cabeça seria propriamente o de sapateiros fabricantes de sapatos de luxo ou
para os ricos; e teríamos como ofícios anexos os curtidores de couro e artesãos de correias, entre outros.
entre os irmãos para a construção da igreja da irmandade dedicada aos santos. A Casa dos
24 exerceu uma enorme influência política nas instâncias deliberativas do Estado português
durante muito tempo, sendo extinta apenas em 31 de maio de 1834. Sua defesa exaustiva do
modelo corporativista gerou forte oposição e disputa contra os grupos liberais de Portugal, e
repercutiu num clima de desconfiança e hostilidade de muitos liberais brasileiros em relação
a suas congêneres instituídas aqui na América do Sul, em terras tupiniquins.
O QUE ACONTECE DO LADO DE CÁ?
As corporações cruzam o atlântico
e se desenvolvem no Brasil colonial
As irmandades de caridade e confrarias laicas, juntamente ao Senado da Câmara3,
são consideradas como instituições das mais características do império marítimo português,
que ajudaram a manter unidas as suas diferentes colônias. Essas duas instituições já foram
descritas pelo historiador inglês Charles Ralph Boxer4 "apenas com um ligeiro exagero, como
os pilares gêmeos da sociedade colonial portuguesa desde o Maranhão até Macau.
Garantiam uma continuidade que governadores, bispos e magistrados passageiros não
podiam assegurar".
Partindo desse ponto de vista, o esforço de estudar essas instituições tem um grande
potencial de expandir nossa compreensão sobre reações e adaptações do poder
metropolitano português diante das características e disputas sociopolíticas travadas em
cada um dos territórios colonizados; permitindo uma análise do grau de sucesso com que a
Coroa conseguiu “exportar” suas instituições e manter o “controle” sobre suas colônias.
Aqui no Brasil, o processo eleitoral das Câmaras Municipais era bastante restrito aos
homens nobres e donos de terra, como a maior parte da nossa estrutura política. Ainda assim,
especialmente na cidade do Rio de Janeiro, as Câmaras conquistaram um grau considerável
de autonomia, chegando ao ponto de lançar por sua conta taxas e arrecadações, indo
3 O Senado da Câmara, ou Câmara Colonial, era a instância político-administrativa dos municípios nas colônias
de Portugal. 4 Charles Ralph Boxer (1904-2000) foi um historiador e militar britânico, que desenvolveu amplas pesquisas a
respeito do Império colonial português em todos os continentes.
Referências
BOXER, Charles Ralph. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa, Edições 70, 1981.
BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Municipais no Império Português: O Exemplo do
Rio de Janeiro. Revista brasileira de História, vol. 18, nº 36. São Paulo: 1998.
muito além da simples administração dos impostos criados pela metrópole. É possível
interpretar essa postura das Câmaras como uma manifestação da tendência brasileira ao
auto-governo, movimento responsável por inúmeros conflitos com a administração central,
antes e depois da transferência da Corte para o Rio de Janeiro. Um outro aspecto pode ser
ressaltado, que relaciona as Câmaras às irmandades e corporações: a participação de
mestres de ofício nas câmaras até o ano de 1824.
O SÉCULO XIX NO RIO DE JANEIRO
Corporações, irmandades e associações
Corporações e Irmandades
Vinda de Portugal e reinvenção na colônia Antes de continuarmos nosso percurso pela história das irmandades, corporações e
associações que vieram de Portugal e se reinventaram no Brasil, vamos elencar as principais
características dessas organizações aqui na colônia. Alguns elementos são essenciais para
compreendermos o funcionamento das corporações de ofícios no Brasil colonial, e entre eles
podemos destacar os seguintes:
Referências
SIQUEIRA, Mariana Nastari. Escravidão e Antigo Regime em tempos de mudanças: o
conflito entre a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano e a Câmara; Rio de Janeiro,
segunda metade do século XVIII e início do XIX. ANPUH - Anais do XXVI Simpósio Nacional
de História. São Paulo : julho 2011. https://www.luminpdf.com/viewer/fLSGBaoTP3cvTddSi.
SILVA, Mônica Martins da. Entre a Cruz e o Capital: a decadência das corporações de
ofícios após a chegada da família real (1808-1824). Palestra no Arquivo Geral da Cidade
do Rio de Janeiro.
O compromisso mestre-aprendiz, que determinava estabelecimento de vínculo
profissional entre o artesão-mestre pelo processo de ensino-aprendizagem realizado no
interior das oficinas. Cada mestre poderia ter, no máximo, quatro aprendizes. O exame
era o teste prático ao qual o oficial se submetia, após o período de aprendizagem
(que deveria necessariamente exceder quatro anos), para poder exercer legalmente
determinado ofício mecânico. O teste era aplicado pelo juiz do ofício, juntamente com o
escrivão do ofício. Caso fosse aprovado nessa instância, o artesão teria sua “carta de
exame” analisada pela Câmara. Dado que qualquer artesão com carta de exame e
autorização poderia obter licença para abrir loja, prevalecia uma estrutura social mista
dentro das irmandades, de modo que os interesses de comerciantes e mestres muitas
vezes se confundiam.
Pois bem, tendo em mente essas características fundamentais, podemos voltar ao
nosso caminho pela história dessas organizações, passando por alguns momentos relevantes
e indo em direção ao Rio de Janeiro oitocentista. Já no ano de 1549, começam a chegar
oficiais mecânicos no Brasil, que estavam vinculados à Companhia de Jesus e alinhados aos
interesses portugueses de constituir o aparato colonial. Eles se distribuem pelas principais
cidades do país, sobretudo os polos canavieiros do nordeste, de forma que no século XVII
acontece uma conquista política importante desses artesãos: conseguem eleger doze
mestres para a Câmara Municipal da cidade de Salvador em 1641, através de uma
entidade semelhante à Casa dos Vinte e Quatro que atuava no meio urbano da Bahia.
A partir dessa e de outras demonstrações de um aumento do poder e influência das
corporações e irmandades sobre a vida e a economia locais, elas passaram a ser vistas
como ameaça por grande parte dos defensores do liberalismo. Sua presença ostensiva na
arena política também parecia representar um perigo ao poder constituído, de que as
A forte relação com a irmandade correspondente, referência religiosa para a
bandeira do ofício e santo padroeiro. Subordinadas às ordens religiosas, as irmandades
eram compostas por leigos e ligavam-se ao Clero Secular . Se formavam a partir da
elaboração de um compromisso, que seguia padrões jurídicos e eclesiásticos e era
aprovados pelo bispado e antes de receber o aval do rei. As irmandade atuavam no
sentido de controlar a atividade dos artesãos: fiscalizavam juízes conduziam os trâmites
legais de contratação, habilitação e licença, cobravam joias e mensalidades dos
mestres, e tinham o poder de impedir a habilitação.
Essas organizações eram referência moral e profissional, atuando num sentido de
ajuda mútua e segurança que ia muito além do simples exercício do controle,
abrangendo também a defesa jurídica de membros encarcerados e beneficiando suas
famílias; agindo como fonte creditícia fundante para a sustentação econômica dos
Existia um controle régio sobre a irmandade, que se dava pela necessidade da
aprovação imperial dos compromissos desses artífices.
Quanto à articulação política, não houve aqui uma organização comparável à
Casa dos 24, mas a representação dos artífices no Senado da Câmara pelos seus mestres
era uma pauta ao menos desde 1624, quando foi justificada por um ouvidor público, o
qual sugeriu à Câmara que pedisse licença ao rei para eleger dois mestres do povo "por
haver nesta cidade muito crescimento de gente e de pobre/a da terra que de tudo tem
necessidade". Esses mestres artesãos eleitos foram muito atuantes nos séculos XVII e XVIII, e
foi através dessa participação e do poder de peticionar que as irmandades se
apropriavam das instituições e mecanismos da política e do governo orientando-os de
alguma forma no sentido de seus interesses e objetivos.
camadas populares conquistassem um espaço de reivindicação no interior do debate
legislativo. A reação se manifestou em diversas medidas de contenção das associações ao
longo do século XVIII, como a extinção do juiz do povo no ano de 1713, “devido à sua
intensa atuação junto aos “interesses do povo”. Como a argumentação deixa claro, eles
estavam sendo abolidos justamente por realizar a função para a qual foram criados:
representar o povo.
Apesar dos esforços repressivos, a presença das corporações se expande fortemente
na cidade do Rio de Janeiro nos anos 1700, de forma que em 1792 havia uma série de ofícios
de artistas mecânicos, inclusive com eleição de juízes de mesa da irmandade. Segundo o
Almanaque da cidade, esses artistas mecânicos totalizavam 103 mestres, que se distribuíam
entre sapateiros (28), ourives (16) alfaiates (12), barbeiros e sangradores (9), marceneiros (8),
carpinteiros (7), e outros de menor quantidade, que juntos eram proprietários de 1037 lojas e
oficinas artesanais. Dois anos depois, este número havia aumentado para 111 mestres.
A vinda da família real portuguesa e da corte para a cidade do Rio de Janeiro em
1808, não só alterou o status da cidade para capital do Império português como também
exerceu fortes influências sobre o sistema de corporações de ofício. Entre essas mudanças,
podemos destacar a circulação de ideias europeias iluministas, relacionada à política
pombalina5 que pretendia secularizar o governo; o grande influxo populacional e comercial
que foi estimulado; a elevação do Rio de Janeiro como o maior e mais importante centro de
importação e reexportação de africanos para o Brasil; e finalmente o desmantelamento do
pacto colonial protecionista e decorrente abertura dos portos brasileiros ao comércio com
nações estrangeiras.
Certamente, com esse novo cenário cosmopolita do Rio de Janeiro do século XIX, os
artesãos que integravam as corporações receberam novas influências e tendências para
seu próprio trabalho. No entanto, eles buscavam a todo custo manter a estrutura
tradicional das relações que estabeleciam o ofício e a irmandade (bastante mesclados na
experiência brasileira). A contradição está no fato de que faziam esse movimento de
mudança e adaptação recorrendo aos códigos do Antigo Regime6. Nesse cenário de
mudanças e persistências das corporações, temos, de um lado, um esforço cada vez maior
de normatizar cada o ofício de sapateiro, que envolve conflitos com a Câmara quando a
irmandade responsável julgava necessário; e no sentido da manutenção, o que podemos
chamar de “política da diferença” - a intenção objetiva das irmandades coloniais de manter
seus próprios nichos funcionando de forma independentemente e sem integração.
5 O Marquês de Pombal (1699 a 1782) foi um estadista português pertencente à nobreza. Alinhava-se aos ideais
liberais do despotismo esclarecido, e nesse intuito promoveu diversas reformas políticas e econômicas em Portugal
no sentido de conciliar desenvolvimento econômico pela abertura comercial ao forte governo absolutista. 6 A referência a Antigo Regime no contexto do Brasil colônia pretende ressaltar a manutenção de uma “estrutura
colonial tardia”, que levou à perpetuação das bases socioeconômicas do Antigo Regime por meio da
consolidação de uma nova elite de comerciantes na capital do Império.
Constituição de 1824:
O fim das corporações
Já em 1823, durante os debates
da Assembleia Constituinte, estava em
pauta o então Artigo 17 que
determinava a proibição das
irmandades. Curiosamente, é o político
liberal José da Silva Lisboa, (futuro
Visconde de Cairu) a única voz que vai
se manifestar pela permanência das
corporações e irmandades, segundo os
argumentos de que seria interessante
preservar a função socializadora de tais
instituições, que incutiam no trabalhador
valores morais e uma educação para o
trabalho que o Estado não tinha
condições de prover, e sem a qual uma
série de possíveis aprendizes seria abandonada para o ócio. Cairu desconsiderava o
argumento de que as irmandades representariam uma ameaça política, refutando que aqui
no Brasil elas não eram organizações tão incisivas politicamente como a Casa dos Vinte e
Quatro em Portugal.
Por fim, o velho político é vencido no debate e a Constituição Imperial de 1824
promove a extinção legal de todas as irmandades. O clima político internacional exerceu
forte influência liberal sobre a Carta de Dom Pedro I: Adam Smith havia publicado seu livro
“Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações” em 1776, e
recentemente a Inglaterra e a França haviam proibido as guildas de trabalhadores manuais -
estruturas medievais semelhantes às corporações. Eis o trecho mencionado:
“TÍTULO 8º - Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos
Brasileiros
(...) Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por
base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do
Império, pela maneira seguinte:
(...) 25) Ficam abolidas as corporações de ofícios, seus juízes, escrivães, e mestres.”
Outro movimento em curso no período, e que influenciou fortemente o futuro (de
extinção) das associações, foi a migração de setores relevantes da atividade comercial
mercantil do Rio de Janeiro para a área dos mecanismos de financiamento. Entre os fatores
de tal mudança estavam a percepção das vantagens dessa atividade econômica em
relação à comercialização agrícola, e os incentivos fiscais da própria coroa ao setor (pela
criação do Banco do Brasil, de companhias de seguros, e do mercado de créditos). O
governo Imperial assim fazia conforme a riqueza dos homens de negócio começava a ser
investida na nova sede do Império Português. Neste momento, as redes de crédito e
financiamento entre membros das corporações de ofício se tornaram um alvo relevante para
os grandes negociantes em processo de consolidação.
As artes mecânicas integram o processo de diversificação das atividades urbanas e
de complexificação social do Brasil no período, que tem ligações com o surgimento de novas
linhas de produção de exportação. Contudo, as irmandades não apenas ofereciam amparo
material, seguro e socorros aos artífices, como também mediavam e controlavam suas
atividades econômicas e sua relação com a Coroa. Portanto, o interesse do setor financeiro
em extinguir as corporações visava também apagar o domínio religioso sobre os ofícios
mecânicos e relações econômicas urbanas (especialmente a função credora); e esvaziar o
poder político do juiz do ofício que representava as corporações nas Câmaras Municipais,
conforme esses novos atores emergiam na esfera política.
FIM DAS CORPORAÇÕES,
COMEÇO DAS ASSOCIAÇÕES
Da Constituição de 1824
à regulamentação de 1860
A extinção das corporações, em 1824, e a extinção do Senado da Câmara e da figura
do juiz do povo, em 1828, foram um golpe forte à participação política dos artesãos no
cenário carioca. Em parte, foram de fato minados os vínculos construídos ao longo da história
entre as irmandades leigas, o aprendizado artesanal e os ofícios mecânicos. Por outro lado,
algumas atividades continuaram vinculadas ao sistema das corporações, desempenhando
papeis remanescentes que conservavam sua importância, como a oferta de empréstimos e
crédito, e parte das relações de mestrança e aprendizado - que foram requisitadas por
fábricas e manufaturas até a década de 1840. As irmandades sobreviveram descoladas dos
vínculos profissionais e de uma atuação econômica significativa, a qual foi realmente
usurpada pelos grupos comerciais que pretendiam participar do desenvolvimento industrial
nascente.
Os anos iniciais do governo de D. Pedro I, que começa com a Independência em
1822, são considerados um período altamente autoritário, de repressão às manifestações
públicas e de ideias, que resultou num processo de retraimento da esfera pública na Corte.
Nesse momento inicial, praticamente desapareceram os jornais, as sociedades secretas e as
associações livres; panorama que começou a se reverter rapidamente com a revitalização
do Congresso e da imprensa a partir de 1826. Assim, ao longo da década de 1830, foram
formadas diversas associações, sobretudo sociedades de auxílio mútuo com fins e atividades
diversas.
A proliferação dessas associações e sociedades mutualistas simultaneamente
preenchia uma lacuna deixada pela ausência das irmandades na esfera da ação social de
proteção e seguridade, e fomentava a criação de novos elos entre setores sociais diversos,
que se associavam a partir de múltiplos princípios, resgatando princípios de solidariedade das
irmandades. Diversas características das antigas irmandades e corporações de ofício foram
mantidas, assim como as intenções de proteção e auxílio mútuo; a função de seguradora de
saúde e de trâmites funerários; a semelhança do procedimento de adesão7; a ajuda e os
socorros aos sócios (incluindo beneficência à família de sócios falecidos); e o socorro jurídico
efetivo em casos de prisão. Seus fundos se constituíam de forma idêntica: pagamento de
mensalidades e joias de adesão. Conforme deliberava o Conselho, essas quantias eram
colocadas em giro no mercado financeiro crescente da cidade.
Entre os aspectos que diferenciavam as associações surgidas a partir dos anos de
1830, temos, sobretudo, a liberdade estabelecida entre os membros de se desligarem, caso
não mais pretendam se dedicar às artes. Conforme o Estatuto de uma associação criada em
1835, “todo o sócio pode demitir-se dos empregos da Sociedade, participando ao
conselheiro os motivos que a isso lhe deram lugar e fazendo entrega de tudo quanto tiver em
seu poder pertencente à sociedade”. Além disso, as associações pretendiam se
responsabilizar pela distribuição de atividades ligadas às artes que representava pela cidade,
dando garantias em relação ao trabalho dos artífices.
As sociedades de auxílio mútuo, que proliferaram a partir da década de 1830, teriam
ainda muito a dizer sobre a história da prática associativista inaugurada pelas antigas
corporações de ofícios que, embora apagadas em suas características originais, deixaram
sua influência nas práticas e objetivos das sociedades mutualistas com base profissional
inauguradas no Rio de Janeiro a partir da década de 30 do século XIX, e que haveriam de
proliferar no Segundo Reinado.
E onde estavam os sapateiros neste momento?
Entre 1822 e 1842, um período considerável depois da promulgação da Constituição,
os ofícios de alfaiate, sapateiro, serralheiro, torneiro e latoeira manifestaram uma tendência à
alta. Nesse meio tempo, contudo, não há registro de novas associações exclusivas de
sapateiros, sendo muito mais comuns associações de auxílios mútuos que congregavam
diversos ofícios, ou imigrantes de mesma nacionalidade. Um exemplo seria a Imperial
7 Esquema do procedimento de filiação das corporações que se mantém nas sociedades: aceitação do candidato pelo
conselho → pagamento da jóia → quitação da dívida → recebimento do diploma → pertencimento de facto.
Sociedade Auxiliadora das Artes Mechanicas, Libeares e Beneficente, que foi criada em 25
de março de 1835 e pretendia reunir os artistas residentes no Rio de Janeiro que tivessem
aprendido ou que exercessem alguma arte mecânica ou liberal. A finalidade apontada em
seus estatutos relacionava-se a “melhorar as artes quanto em si couber; e socorrer seus
membros e suas famílias”.
Entre 1842 e 1850, o impacto das transformações econômicas se intensificou, e foi
registrado um aumento considerável de alguns ofícios, como abridores de metais; alfaiates,
barbeiros, sangradores, marceneiros, pintores, sendo que o crescimento incidiu
principalmente nas atividades ligadas à construção, indicando um surto de construções. Esse
processo de deslocamento econômico e comercial também ajuda a elucidar a dificuldade
de se encontrar informações a respeito da organização de sapateiros nesse período.
RELAÇÕES COM O “ESTADO”
De 1860 em diante
Após a normatização das associações em 1860, o estado passou a regular a conduta
de como deveria ser o processo burocrático das aberturas. Se algum grupo de pessoas
tivesse interesse em organizar-se coletivamente deveriam comparecer à delegacia mais
próxima do local que de reunião e seguir os procedimentos impostos pelo delegado e
subdelegado. A partir daí, deveriam escrever um estatuto com todas as suas normas e
apresentá-lo na Seção dos Negócio do império do Conselho de Estado, que fariam as
devidas correções e então estariam aptas a funcionarem.
Depois da liberação, aquelas associações que que se interessarem poderiam ainda
publicar seus estatutos nos jornais, com o intuito de atraírem mais membros. Assim, a
formação e funcionamento dessas associações passa a estar relacionada com o Estado e
torna-se necessário que seus membros passem pela burocracia estatal. Considerando que as
associações mútuas haviam incorporado funções das corporações de ofício, como a
transmissão de conhecimento (Pereira de Jesus, 2007), notamos a importância das
associações mútuas após 1860: era a única forma de associação entre trabalhadores livres
Referências
LOBO, Eulalia Maria Lahmeyer; Otavio Canavarros, Zakia Feres Elias, Simone Novais e
Lucena Barbosa Madureira. Estudo das categorias socioprofissionais, dos salários e do
custo da alimentação no Rio de Janeiro de 1820 a 1930. In Revista brasileira de Economia,
vol. 27, nº 4. Pp. 129-176. Rio de Janeiro: Outubro/Dezembro 1973.
que eram devidamente reconhecida e incorporada ao Estado, já que as corporações de
ofício foram proibidas em 1824 e o sindicato encontrava-se ainda em forma muito incipiente.
As pesquisas historiográficas indicam que essas associações contribuíram para “a
formação e o fortalecimento de uma cultura cívica entre os trabalhadores, indispensável ao
processo de construção da cidadania no Brasil. Além disso, a experiência mutualista
representou um nível significativo da capacidade de organização da sociedade civil
brasileira em torno do direito à proteção social. O mutualismo funcionava como locus de
agregação de identidades e interesses compartilhados, reforçando os laços de solidariedade
horizontais, e edificando espaços de sociabilidade e lazer para seus integrantes.” (Pereira de
Jesus, 2007) É fundamental lembrar que, se as associações mútuas foram espaços de
construção de cidadania, elas eram legalizadas e, muitas vezes, até subsidiadas pelo Estado.
O que se pode observar com essa lei, é que o número de associações cresceu
consideravelmente, tendo em vista os documentos levantados por PEREIRA DE JESUS, em que
a grande maioria dos pedidos na Corte era para a abertura e criação de estatutos, sendo
poucas delas referentes à mudanças e adaptações nos estatutos de associações
previamente existentes. Esse grande número de pedidos provavelmente é consequência do
decreto 2.711 e da lei 1.083 de 1860. Podemos da um destaque para o fato de que de todas
a associações criadas, 50% eram as chamadas beneficentes ou mútuas, cabendo destacar
que as associações mútuas poderiam incorporar para si o mundo do trabalho e função de
resistência. No que diz respeito às pretensões claramente políticas dessas associações, eram
censuradas pelo Conselho de Estado já no processo de aprovação dos estatutos, quando
eram retiradas, por exemplo, partes em que constavam a criação e circulação de jornais
formativos, intercâmbios com trabalhadores europeus, ou ainda a criação de comissões
políticas nas associações que pleiteavam estatutos.
Embora a mutuais fossem associações de colaboração horizontal, entre os membros
do grupo, muitas vezes o Estado entrava com subvenções. Os membros recorriam ao Estado
nos momentos de grande necessidade; quando precisavam de permissão para a realização
de atividades festivas. Aspecto interessante esse, pois devido à participação efetiva do
Estado, ficava impossível definir as mutuais como sendo de cunho público ou privado, sendo
que o próprio Estado tinha dificuldade em identificá-las.
Como estes grupos viam o Estado?
Nos estudos historiográficos, foram feitas algumas tentativas de analisar quais eram os
interesses e as visões populares sobre o Estado no contexto de consolidação institucional e
expansão territorial do Estado brasileiro da segunda metade do século XIX. O que se buscava
era compreender o interesse da população, qual posição parecia mais vantajosa frente ao
poder constituído: observar, participar ou ignorar a Monarquia - e depois a República.
Na relação entre o povo comum e a monarquia, observada em documentos como as
súplicas e as homenagens8, a pauta da garantia de necessidades básicas de vida,
predomina em relação a possíveis reivindicações sociopolíticas. Contudo, também é possível
compreender que ao se dirigir ao Imperador como representante máximo do poder
constituído e possível fonte de recursos primordiais, essas pessoas obedeciam seu sentido de
sobrevivência e a lógica de negociação que orienta até hoje a dinâmica do poder nas
relações sociais brasileiras, em que serviço e lealdade são oferecidos aos poderosos, em
troca de proteção e recompensas.
Observando essa relação com mais complexidade do que uma conclusão
precipitada de paternalismo ou mesmo conservadorismo desses trabalhadores pobres,
podemos entender que sua postura frente o Estado articula uma aparente apatia,
indiferença, distanciamento e personalismo - que podemos e devemos conceber enquanto
meio estratégico para suprir suas necessidades básicas. Também é importante ressaltar o
grande potencial que a parcela de apatia dessa relação possui para se tornar revolta,
porque diversos conflitos sociais do século contaram com a presença destes grupos de
trabalhadores.
Tendo em mente os interesses dos trabalhadores nesses contatos com a monarquia -
representada sobretudo pela figura carismática de D. Pedro II o “pai dos pobres”, podemos
compreender que acontece uma ressignificação da imagem que a monarquia e a corte
criam a respeito desse monarca, tanto pela população em geral como pelas elites
dissidentes.
Os estatutos das associações, regulamentados pela legislação de 1860, não
mencionavam diretamente pedidos de proteção especial ao imperador, contrastando com
a versão oficial que ilustrava o Imperador como “pai dos pobres”. Muitos desses grupos
entendiam seu estatuto como esse apelo de auxílio, porém outras visavam a garantia de suas
vias institucionais de existência, por considerarem essa organização social e possivelmente
política como um direito, já que elas serviam como via para a expressão de apelos coletivos
com finalidades objetivas, como a preservação no mercado de trabalho e a consolidação
de mecanismos de proteção e inserção sóciopolítica.
8 As súplicas eram pedidos que chegavam ao Imperador, geralmente enviados por membros das elites. As poucas
súplicas da gente comum envolviam tipos variados de auxílio financeiro. As homenagens eram manifestações em
forma de documentos e solenidades públicas, em que as associações de trabalhadores livres prestavam
reverência ao Imperador.
Referências
JESUS, Ronaldo Pereira de. A Revolta do Vintém e a Crise na Monarquia.
JESUS, Ronaldo Pereira de. O Povo e a Monarquia: a apropriação da imagem do
imperador e do regime monárquico entre a gente comum da corte (1870-1889).
ATIVIDADE 2
É POSSÍVEL CATEGORIZAR AS CORPORAÇÕES DE OFÍCIO,
IRMANDADES OU ASSOCIAÇÕES DENTRO DE UM QUADRO OU
VERTENTE POLÍTICO-IDEOLÓGICA DEFINIDA?
A caricatura abaixo foi feita em 1840, por Rafael Mendes de Carvalho. O pintor,
desenhista, caricaturista, litógrafo, arquiteto e cenógrafo nasceu em Laguna (SC) e viveu
aproximadamente entre 1817 e 1870. Além das caricaturas, sabe-se que pintou uma
aquarela representando a Entrada da Esquadra Nacional na Vila de Laguna, na repressão à
Farroupilha em 15 de Novembro de 1839.
Na imagem, um cabo
eleitoral procura um pobre
sapateiro e lhe mostra a sua
chapa. A resposta, porém, é
que o sapateiro aponta para
duas estampas que se acham
na parede de seu ofício: a
primeira mostra uma escada
formada pelo povo e um
político a subir por ela em busca
do poder; na segunda estampa
o candidato já no topo da
escada dá um pontapé
naquele que lhe ajudou a subir.
Essa caricatura pode nos
servir como um sinal de alerta: é
muito recorrente desconsiderar
o potencial analítico da gente
comum, e supor que a
população geral da corte - da
qual fazem parte os trabalhadores mecânicos - não tinha uma percepção própria a respeito
do universo político e do poder. Esse tipo de julgamento sobrevive ainda nos dias de hoje,
quando certas camadas da população são acusadas de “não saberem votar”. Discordamos
dessa percepção, e vamos buscar elementos que nos mostrem que os sapateiros e artesãos
tinham sim uma visão própria da política carioca no século XIX.
De acordo com o cenário político-ideológico da época, muitas podem ser as
categorizações dadas às corporações de ofício, irmandades, e todas as organizações nas
quais observamos o mutualismo e a ajuda em comunidade no ambiente urbano brasileiro do
século XIX, e mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Liberais, conservadores,
abolicionistas, federalistas, moderados, republicanos, realistas: muitas eram as vertentes de
pensamento que compunham os debates políticos no momento. Contudo, quando os
grupos privilegiados se viam ameaçados, frequentemente abandonavam suas diferenças
ideológicas em prol da manutenção do sistema de poder. Frente a esse contexto, cabe a
reflexão sobre como deveríamos, ou melhor, poderíamos categorizar tais organizações a
respeito de seu posicionamento político-ideológico.
Sabemos, graças à documentação, que esses grupos tiveram, uma participação
política evidente dentro do desenvolvimento e estabelecimento do Estado brasileiro no
século XIX: inúmeras eram as requisições feitas pelas corporações de ofício, frente à abertura
dos portos, buscando proteção contra os produtos estrangeiros. A argumentação parece
girar em torno de uma valorização da indústria/manufatura “nacional”, da liberdade de
comércio, e do mantimento dos valores e tradições, herdados há tantos anos, passados de
mestre para aprendiz. Poderíamos dizer que, por terem críticas à abertura dos portos, que
esses indivíduos eram a favor do antigo regime? Mas, se pregam a liberdade do seu próprio
comércio, não seriam liberais? E se querem que as tradições continuem, seriam eles
conservadores?
Resposta: Em primeiro lugar, se queremos entender o que pensavam tais indivíduos,
temos que definir as motivações para sua união em instituições de mutualismo. Este nada
mais é do que um mecanismo para a auto-ajuda entre indivíduos de um grupo. Tais pessoas
se agrupavam numa busca para enfrentar mais facilmente as adversidades vindas da
metrópole e depois do Estado brasileiro em si. Empréstimos eram feitos aos membros, reuniões
estabelecendo preços no caso das corporações, e festas eram dadas no caso das
irmandades. Face às dificuldades de viver, o mutualismo se mostrava uma forte ferramenta
de sobrevivência a essas pessoas. Diferentes discursos serviam para justificar tal união, de
acordo com o tipo de associação que se desejava constituir: caso fosse uma corporação de
ofício, o caráter econômico era de grande importância, assim como o mantimento da
moralidade tradicional; nas irmandades, a justificativa religiosa era a que ganhava mais
importância, muitas vezes associada a algum santo em específico.
Embora o discurso exalte temas diferentes de acordo com o tipo de instituição que se
deseja formar, a principal motivação de união entre esses homens parece ser uma
motivação de classe. Aqui se deve tomar cuidado ao utilizar esse termo: é difícil falar em
classes sociais no século XVIII ou XIX no contexto urbano carioca. Para se assegurar que não
seremos anacrônicos, o sentido de classe aqui desejado não é aquele da tomada de
consciência de classe, que levaria ao processo revolucionário, segundo Marx, mas sim de
que esses homens se união frente às dificuldades materiais comuns de suas vidas. Não há
tomada de consciência, nos moldes marxistas, nesse período, nem um processo
revolucionário em andamento. O que há é uma união entre pessoas, buscando auxílio
mútuo, em face de uma realidade difícil de ser vivida.
Pois então, se o que une de facto essas pessoas são questões relativas a necessidades
materiais, enquanto os discursos justificatórios exaltam diferentes temas, como poderíamos
categorizá-los dentro de um grupo ideológico-político definido?
A resposta é: não podemos.
As corporações, irmandades, associações mutualistas, etc., todas buscavam um
objetivo: melhores condições de viver e praticar seu ofício. Inúmeros interesses entram em
jogo: a vontade de enriquecer por parte dos comerciantes, a de propagar sua fé por parte
dos religiosos, a de simplesmente melhorar suas condições de vida, obter status social e
jurídico. Todas essas organizações, embora passando por processos de hereditariedade em
muitos casos, se apresentam de forma muito fluida ideologicamente: hora parecem
concordar com os liberais, como nas justificativas das corporações de ofício, exaltando a
liberdade de comércio individual, mas têm sérias ressalvas a uma das medidas mais liberais
da época: a abertura dos portos.
A lógica liberal do laissez faire lhes auxilia quando justifica seu pequeno comércio
artesanal, mas interfere quando abre caminho para a competição com o produto exterior.
Por outro lado, nas discussões sobre a separação entre o Estado e a Igreja, grande pauta da
agenda liberal, as irmandades e as corporações se posicionaram contra, levando em conta
o tradicionalismo e conservadorismo que acreditavam ser base para as suas vidas. É claro
que todos eles entravam em contato com as ideologias da época, através dos folhetins, das
leituras públicas nas praças, e como indivíduos pertencentes a uma sociedade, também
formavam suas opiniões políticas. Mas categorizá-los como pertencentes ao partido liberal ou
ao conservador é absurdo. As ambiguidades presentes em seus discursos, frente ao nosso
modo de observar essas ideologias (de forma muito bem definida e concreta), não podem
deixar de ser notadas e levadas em consideração.
Uma das discussões mais presentes no século XIX era a questão da escravidão. As
teorias racialistas inundavam as mentes dos escravocratas, dando-lhes argumentação para
que continuassem a explorar a mão de obra negra, fosse ela escravizada ou liberta. O
racismo, presente até hoje em nossa sociedade, demarcava muito bem: o negro é
considerado inferior ao branco. O movimento abolicionista, que foi se fortalecendo após a
metade do século, se utilizava do argumento liberal da igualdade entre os homens, e que a
Nação só poderia ser construída caso a escravidão tivesse fim. A proibição do tráfico de
escravizados, vinda da pressão internacional e das inúmeras reivindicações e lutas feitas por
negros e seus apoiadores1 no território nacional, dificultava ainda mais o processo de
aquisição da mão de obra negra escravizada. E na sociedade, a discussão também era
colocada em pauta.
Uma série de justificativas foram elaboradas, tanto a favor como contra a escravidão.
No caso das corporações de ofício especificamente, o fim da escravidão aumentaria ainda
mais um problema crescente: a concorrência com a mão de obra negra liberta.
Importantíssimo lembrar que também nesse grupo há muito de uma ideologia de repúdio aos
negros, característica da sociedade da época (e também do Brasil de hoje).
Como exemplos, utilizando o caso da Irmandade de São Crispim e São Crispiano que
representava os sapateiros, temos o Termo de 1764, que proibia o exame2 desses
indivíduos, além da restrição de que os mesmos estivessem à frente de lojas de
sapateiro; o Edital de 1770, no qual se determina que “os três aprendizes permitidos a cada
Mestre sejam meninos brancos, ou ao menos pardos livres e nunca pretos e pardos cativos”; e
por fim o Regimento 1817, no qual consta que “não poderão os examinadores examinar a
pardos, nem a pretos, sem que estes lhes mostrem por certidão em como são livres e forros”.
“Ao arbitrarem sobre a proibição do exame de “pardo e preto cativo”, frisando que os
aprendizes deveriam ser “brancos” ou pelo menos “pardos livres”, tentava-se bloquear a
ascensão social de cativos no interior da regulação do ofício de sapateiro, buscando manter
esses elementos apenas como força de trabalho complementar. A julgar pela constante
atualização da norma restringindo a inserção destes elementos no ofício, é de se imaginar
que a ascensão hierárquica de escravizados e libertos na corporação profissional ocorresse e
que fosse constantemente fontes geradoras de conflitos.
1 Constituídos principalmente de uma classe média que incluía jornalistas, advogados, profissionais liberais; e
também por alguns políticos e donos de terras. 2 Teste prático ao qual o oficial se submetia, após o período de aprendizagem (que deveria
necessariamente exceder quatro anos), para poder exercer legalmente determinado ofício mecânico. O teste
era aplicado pelo juiz do ofício, juntamente com o escrivão do ofício. Caso fosse aprovado, sua “carta de exame”
era passada pela Câmara.
Entre os ofícios apontados com maior concentração de livres, encontra-se o de
sapateiro. De acordo com registros das corporações e inventários de escravizados,
aproximadamente durante os vinte anos entre 1795 e 1815, os “livres examinados” totalizaram
179, ou 27,5% e os “escravos” foram 20, ou 8,4%. A mesma tensão que polarizava bachareis,
políticos e proprietários de terra pela defesa ou combate à escravidão, estava presente no
grupo dos sapateiros. Observando esse conflito mais de perto, através de uma disputa
judicial, é possível identificar aspectos importantes a respeito dos sapateiros neste período,
inclusive uma clivagem social importante dentro do grupo.
ESTUDO DE CASO: “RELAÇÕES EXTERIORES”
Questão da Guarda Nacional (criada em 18 de agosto de 1831 por esta lei)
120: As medidas de proteção aos caixeiros nacionais e as revoltas contra os portugueses
caminharam juntas. A desvalorização da moeda e a alta de preços vão afetar a população urbana.
O empobrecimento da classe urbana, de pequenos comerciantes, militares empregados públicos, de
comércio e outros, estão em concordância com os movimentos de rebelião.
Passam os comerciantes, em especial os portugueses, a ser responsabilizados pelos males que
afligiam o povo. A nacionalização do comércio a varejo posta em foco pela Revolução Praieira e
pelos sediciosos pernambucanos que, defendendo-a, visaram sobretudo uma ampliação de mercado
do trabalho para os nacionais. A posição dos jornais da Guarda Nacional na Corte foi sempre
nacionalista, na defesa dos problemas que atingiam diretamente aos membros da corporação.
Justiniano José da Rocha comentando, em pleno II Reinado, essas queixas na Assembleia,
declarava todavia: "Principiou-se a attribuir a Guarda Nacional todos os inconvenientes que pesão
sobre a população nacional; so os brasileiros estão excluidos do commercio, se os não querem para
caixeiro, é porque estão sujeitos a Guarda Nacional, se o nosso official mechanico não pode competir
com o estrangeiro que chega ao paiz, nem mesmo com os generos estrangeiros, é porque paga elle
só o oneroso imposto do serviço da Guarda Nacional..."
CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850.
Companhia Editora Nacional. São Paulo : 1977.
ATIVIDADE 3
DIFERENÇAS SOCIAIS
Comentário: a ilustração representa a “loja opulenta” de um sapateiro português que
castiga seu escravo. Ao lado, mais dois cativos de aluguel. Observando a aplicação do
castigo, está a mulher do sapateiro, uma mulata que amamenta o filho.
ESTUDO DE CASO: DISPUTAS JURÍDICAS ENTRE SAPATEIROS
Em 1771, ainda poucos anos depois do regimento de 1764 que proibiu a venda de
sapatos pelas ruas da cidade, a Irmandade de São Crispim e São Crispiano recorre à justiça
através de um apelo à Câmara, demandando fiscalização para a regra criada
recentemente.
A questão ainda incomodava quarenta anos depois, quando em 1813 a irmandade
envia ao rei uma representação e um abaixo-assinado contendo nomes de 101 artífices, nos
quais são criticados “os inconvenientes, que se seguião à mesma Irmandade, aos mais
suplicantes, e athe ao Publico de se venderem pelas ruas obras feitas em cazas particulares
por escravos captivos, mulheres e pessoas imperitas”. O que alegavam como motivação era
a pressão sofrida com a concorrência estrangeira; a efetiva ruptura de um dos princípios do
sistema de coporações (o controle da irmandade sobre as atividades do ofício); e a ameaça
que a venda de sapatos por escravos ao ganho1, escravizados domésticos, e mulheres
representava às regras de tradição e compromisso que regiam as relações mestre-aprendiz.
O problema da irmandade com a venda de sapatos por indivíduos não pertencentes
a ela continua na década seguinte, em documentos de 1820 e 1827, quando se define por
lei que estes infratores deveriam ser presos e multados por desobediência ao Senado. A
verba arrecadada com as multas seria distribuída entre a própria irmandade e o Conselho de
Estado.
Pois bem, essas apelações deixam bem claro o ponto de vista da Irmandade de São
Crispim e São Crispiano: não querem permitir que pessoas excluídas da hierarquia oficial das
corporações consigam, no espaço público, comercializar seus sapatos “ilegais”. Mas será
que todos os sapateiros do Rio de Janeiro concordavam com isso? Preferimos novamente
duvidar desse discurso unificador, e observar uma outra voz de sapateiros que se manifestam
sobre o mesmo assunto no jurídico.
Ainda no século XVIII, em 1780, José da Silva, Manoel Francisco, e outros sapateiros
“examinados”, enviam uma representação à Câmara reivindicando a liberação da venda
ambulante de sapatos e artigos afins, se colocando contrários ao já citado Termo de 1764.
Essa disputa interna pode ser analisada do ponto de vista das diferenças sociais existentes
entre os sapateiros e seus respectivos públicos. As pessoas de baixa estima social e condições
financeiras precárias seriam a clientela desses vendedores ambulantes de sapatos, que eram
sapateiros de poucas posses e seus escravos ao ganho, dois personagens aparentemente
opostos, mas que no caso dessas famílias mais pobres que ainda assim tinham escravizados,
muitas vezes poderiam ser vistos trabalhando conjuntamente nas ruas e praças. Faziam
consertos e comercializavam sapatos simplórios e outros elementos do calçado (como as
correias), o que lhes rendeu a nomenclatura de “sapateiros remendões”. As lojas de
sapateiros que se mobilizavam contra a venda ambulante muito provavelmente tinham
como público parcelas nobres da população carioca - dada a importância social do sapato
na sociedade escravocrata.
Assim, podemos entender de uma forma mais complexa a relação entre os sapateiros
cariocas na virada para o século XIX e a escravidão. Existia uma notável clivagem social
entre os sapateiros, que resulta na diversidade de interesses defendidos por esses artistas
mecânicos. Muitas vezes, essa diversidade é relevada porque, ao contrário do modelo
português, aqui não se desenvolveram bandeiras diferentes para ofícios cabeça e anexos,
1 Aqui foi mantido o termo “escravo” pois se trata da expressão utilizada na época para descrever essa parcela
específica dos escravizados urbanos.
de forma que se congregavam à Irmandade de São Crispim e São Crispiniano todos os
artífices que se enquadrassem sob a designação genérica de sapateiros, muito embora esses
oficiais frequentemente realizassem tarefas outras que não propriamente as relacionadas
com a fabricação de calçados.
Não nos surpreende que um tema tão candente como a escravidão trouxesse à tona
as disputas internas deste grupo: a tensão jurídica descrita vem apenas confirmar tal
hierarquia. No contexto, a Irmandade representou os interesses dos fabricantes de calçados
de luxo em proibir a venda ambulante; por outro lado, um grupo de sapateiros remendões
lutava pela liberação desse tipo de comércio, pois vendiam sapatos e outros artigos para
transeuntes junto com seus escravos ao ganho, e necessitavam dessa renda.
Havia mestres sapateiros mais proeminentes, que buscavam estabelecer uma
esfera de poder a partir da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano, com o objetivo
de exercer a hegemonia2 sobre a regulação, a produção e a comercialização da
atividade de sapateiro e outras afins mediante a “construção de relações socialmente
úteis” na irmandade. A partir desse espaço de congregação de todos os artesãos deste
ofício, procuravam dominar, ou monopolizar o poder de exercer a hegemonia sobre este
ramo de comércio a varejo. No entanto, havia ainda alternativas para a construção de
sociabilidade entre os oficiais mecânicos que se sentiam alijados desse centro de poder.
2 Geralmente, se refere ao mundo político. É uma situação posterior à disputa, quando um grupo ou indivíduo estabelece o
controle sobre determinado grupo, de forma que seus interesses prevalecem sem ameaça. A disputa de hegemonia foi bastante discutida pelo filósofo, político e jornalista italiano Antonio Gramsci (1891-1937).
Mesmo entre os negros ainda cativos, o meio urbano trazia uma série de novas
possibilidades que eram inexistentes no meio rural, onde o isolamento estava atrelado a uma
violência ainda maior, e a perspectivas de liberdade eram mais restritas. Essas características
específicas da vida escravizada urbana eram ainda mais marcantes na cidade do Rio de
Janeiro, que ao longo do século XIX sofreu intensas modificações urbanas e sociais devido à
transferência da família real (1808) e montagem de todo o aparato central do Império e,
mais tarde, da república. Era muito comum que ocorressem revoltas de negros cativos, em
insurgência contra seus proprietários, e principalmente, contra os comerciantes que
intermediavam as transações comerciais dessas pessoas-mercadoria, que tinham como uma
de suas principais motivações a recusa absoluta frente à transferência para fazendas no
interior do país, tendo vivenciado a experiência urbana do Rio de Janeiro.
Os donos de escravizados encaminhavam ao poder público os Pedidos de Licenças
para Escravos saírem ao Ganho. Quando acatados, estava previsto que os negros
exercessem funções profissionais nas ruas da cidade, que iam desde funções mais
qualificadas, como barbeiros, sapateiros e artesãos, até trabalhos braçais. O dinheiro ganho
era dividido entre o sustento desses negros e uma parte que era entregue aos proprietários. É
importante ressaltar alguns aspectos da dinâmica dos escravos ao ganho: em alguns casos,
a única fonte de sustento da casa era obtida por meio dos escravos ao ganho,
principalmente nas famílias mais pobres ou quando os proprietários eram mulheres ou viúvas.
Além disso, era comum que estes negros e negras não vivessem no interior da casa de seus
proprietários, no espaço que lhes era reservado (nas adjacências da cozinha e da sala de
jantar, separado por um corredor do restante da casa, como mostra a imagem), mas
tivessem suas próprias residências pela cidade e levassem o dinheiro ao proprietário nas
datas combinadas. Essa prática se chamava “morar por si”, e gerou inclusive debates
legislativos como em 1838, quando um projeto do Código de Postura, que continha em um
de seus 19 artigos a proibição do morar por si, foi barrado na Câmara.
Um último aspecto fundamental dos escravos ao ganho que vamos observar aqui é a
possibilidade financeira que este tipo de serviço gerava, na medida em que as
características desses serviços flexibilizavam o potencial de fiscalização e repressão dos
senhores, e muitos cativos transformaram este alívio numa oportunidade de juntar dinheiro
para comprar suas cartas de alforria. Enquanto os senhores, e seus descendentes, podem
enxergar nesse desvio financeiro um “roubo” do dinheiro que deveria ser retornado ao
proprietário, escolhemos compreender essa prática como uma mínima forma de
recuperação de tudo aquilo que foi violentamente arrancado destes negros e negras e de
seus antepassados pela exploração escravista.
A necessidade constante de serviços e produtos no meio urbano estimulava muitos
dos negros libertos a habitarem as cidades e fazerem ali algum ofício que lhes providenciasse
sustento. No Rio de Janeiro trabalhavam sobretudo como pescadores, sapateiros,
carpinteiros, carregadores, mas também faziam serviço de barcas de transporte - como era o
caso em Recife e Olinda. Esses negros, além de representarem individualmente uma ameaça
ao comércio das corporações de ofício, faziam eles mesmos suas próprias associações em
forma de resistência: as associações negras. Nelas também se praticava o mutualismo, de
forma muito mais forte por vezes, frente à dificuldade que era ser negro, mesmo liberto, num
país escravista. Como exemplos, podemos citar as Sociedade Nação Conga, a Sociedade
União Lotérica Cadeira de Ouro, a Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de
Cor, a Sociedade Libertadora da Escravidão, e a Companhia Garantia de Emancipação.
Nessas associações, eles foram capazes de sobreviver, desenvolver laços entre si, e
fazer sobreviver sua cultura, costumes e religião, hábitos tão recriminados pelos brancos. Isso
se reflete muito hoje no que são as Escolas de Samba, tanto no Rio de Janeiro como em São
Paulo. Dentro das escolas, a comunidade se exalta, promove festas, se ajuda nos momentos
de dificuldade, e compõe sambas que exaltam o negro, sua história e cultura. Muitas das
características remetem à cultura negra, inclusive ritmicamente: as batidas de surdo e de
caixa são originárias dos antigos batuques aos orixás.
ATIVIDADE 5
OS TRABALHADORES LIVRES NO DEBATE PÚBLICO
Poucas fontes são tão eficientes para revelar o clima de uma época como as ideias,
representações e discursos que circulam nos grandes meios de comunicação. No Rio de
Janeiro do século XIX, os debates sobre temas sóciopolíticos marcavam presença nos jornais
e aconteciam em leituras e encontros nas praças públicas. Além disso, assim como nos dias
de hoje, as pessoas produziam arte que retratava e refletia sobre a época e sobre o mundo
em que viviam.
Desde os viajantes europeus que vinham conhecer os habitantes e costumes de
nossas terras tropicais, até os próprios homens comuns que são o foco deste estudo,
passando por membros das camadas médias e elites envolvidos nos temas sóciopolíticos da
época (especialmente os bachareis e profissionais liberais), muito se escreveu sobre essa
realidade. Podemos buscar, através desses escritos, a sensação dessas diferentes
personagens em relação ao contexto e à presença das irmandades, dos sapateiros e de suas
práticas.
O contato com essas produções se torna muito mais valioso à medida em que nos
perguntamos quem seriam e onde estariam estes jornalistas, poetas, viajantes, se vivessem
nos dias de hoje, ao nosso redor. Cada “grupo de autores” pode ser analisado
separadamente e em relação.
GRUPO 1 – O SAPATEIRO SILVA, UM POETA QUE RESISTIU AO
ESQUECIMENTO Este poeta carioca do século XIX foi retirado do esquecimento histórico de forma
improvável - alguns escritos seus foram encontrados “por acaso” enquanto uma
pesquisadora buscava materiais para tratar de um outro tema. Nada melhor do que
conhecê-lo segundo dois poemas de sua autoria com tom de apresentação, para em
seguida discutirmos alguns aspectos de sua obra:
1.
Se quiser tomar lá o seu cordório,
Os desencaixes meus afoito leia,
Que gostará mais deles que da ceia,
Que onte à noite comeu no Refeitório.
Não nego que meu Padre Frei Honório
Goste mais do molinho da lampreia,
Porém a frigideira cá da veia
Causa a todos melhor consolatório.
Ao menos o bom Rio de Janeiro
Não possui um gênio desta casta,
Por mais e mais que corra seu roteiro.
Tem possuído alguns de afasta-afasta:
Porém nunca um Poeta sapateiro,
Que tenha um tal humor; adeus, que basta.
2.
As Rimas de João Xavier de Matos
São obras de um gênio bem completo;
Mas melhor não faz ele um bom Soneto,
Do que eu faço alguns sapatos.
Se ele só procura gênios gratos,
Eu quero Cordovão do mais seleto;
Queixa-se ele do seu ingrato afeto,
Eu me alegro de ver gênios ingratos
Bem sei que toda corte de Lisboa
Aplausos mil lhe dá com bizarria:
Que a fama do seu verso o mundo atroa;
Porém eu tenho cá outra valia,
Porque todo o Brasil já me apregoa
Primaz de Parnasal sapataria.
Quem foi?
Joaquim José da Silva viveu entre o fim do século XVIII e meados do século XIX.
Segundo algumas fontes, o Sapateiro tinha um irmão cônego chamado João Pereira da
Silva, cuja vida foi bem documentada: estudou no Colégio dos Jesuítas, escreveu versos em
português e em latim, foi professor de Latim e Retórica em Lisboa. Por outro lado, do
Sapateiro não se sabe nada além do que ele mesmo declara em seus versos, já que ele não
passava de um homem comum da época, ainda por cima com uma expressão bastante
rejeitada pelos padrões literários e, principalmente, por seu conteúdo ácido.
Contexto literário
Ao longo do século XVIII, se constitui a identidade cultural do homem de letras: é
letrado e bacharel, profissional liberal ligado pela beca à classe dos proprietários territoriais
ou à nobreza lusitana por apadrinhamento, ou então membro mesmo das elites.
Simultanemente, e como consequência, formam-se os mecanismos de exclusão que atuam
até hoje sobre o autor popular de diversas maneiras. No desenvolvimento de todos os
movimentos literários, podemos observar que emerge uma literatura característica do sistema
literário vigente, a “literatura oficial”; enquanto uma outra se desenvolve em paralelo e pode
ser chamada de “contraliteratura”, sendo a ela relegadas as margens deste sistema artístico-
comunicativo.
Elementos de sua obra
Estrutura e conteúdo: A poesia do Sapateiro combina os modelos poéticos
consagrados da época, cujo referencial era o arcadismo e a forma soneto, com um
conteúdo povoado por elementos de humor marcadamente popular e não-formal. Ele
quebra a unidade da produção poética de seu tempo, acrescentando a ela a gargalhada,
a grossura e o nonsense.
Identidade: Era quase obrigatório que um possível intelectual estivesse acompanhado
de beca ou batina, símbolos de diploma nos saberes privilegiados de então. Contudo,
Sapateiro Silva se caracteriza não como poeta e sim como artífice, e assim sendo, só poderia
produzir uma sátira vinda de baixo, de um ator que não se encaixa na definição dos homens
de letras de então.
Interlocução: Este é outro elemento torna o Sapateiro Silva tão especial. Ele ri das
hierarquias, das regras sociais e valores estéticos dominantes, mas esse deboche se direciona
aos seus iguais, àqueles que se comunicam através de uma outra lógica, de um humor e
uma linguagem que não cabem na Arcádia. Dialoga com outros sapateiros, com a gente
das ruas, com os pobres da cidade Real, e não com os interlocutores por excelência do
debate público. Assim ele desqualifica não só os mais poderosos do que ele, mas também
dos que partilham com ele de um mesmo papel, representando uma espécie de Bufão que
se permitia rir mesmo daqueles que o convidavam aos banquetes, e de suas tradições.
Alguns trechos de obras do sapateiro refletem aspectos dos trabalhadores mecânicos
abordados nas outras atividades. Abaixo estão os links para acessar sua obra completa e
outras referências de análise.
Trecho de Soneto
A identidade de sapateiro como um
estigma na sociedade em que vive
Mas que importa que outro se me oponha
Por querer ser pateta, ou ser felice,
Se comigo assentei por fontorrice
Ser hoje o grande Duque de Borgonha?
Já contente no meu gaudério estado
Tenho fardas, palácios, e dinheiro:
Já não peço a ninguém nada emprestado.
Porém leve o diabo o meu roteiro,
Que apesar das farófias do Ducado,
Todos me lêem nas costas - sapateiro.
Trecho de Soneto
Os santos padroeiros e o aspecto da
religiosidade dos artistas mecânicos
Não se enfade, menina, dessa sorte,
Por São Paulo me espere mais uns dias,
Que os sapatos irão nas noites frias,
Pois não quer São Crispim que agora os corte.
Praza a Deus que eu de todo vença a morte,
Que verá como em três Ave-Marias
Lhe faço pra estragar as francesias
Sapatos de cetim com sola forte.
Glosa
Dialoga com outros artesãos, seus
iguais, e não com os homens de letras
Senhor Mestre Alfaiate, este calção
Está como os sapatos, que eu lhe fiz?
De que serve o dedal, tesoura e giz,
Se não sabe pagar-lhe com a mão?
Você não é alfaiate, é remendão,
Eu bem podia crer o que se diz;
Porém como por asno nunca quis,
Justo é sinta o mal sem remissão.
Já outro que ali mora junto à Sé
Bem conhecido, Antônio Marroquim,
Me deitou a perder um guarda-pé.
Se eu daqui a dez anos, para mim,
Não fizer um calção de sufulié,
Não me chamem jamais Mestre Joaquim.
Referências:
SÜSSEKIND, F. & VALENÇA, R. T. O Sapateiro Silva Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1983.
Página que reúne informações sobre o Sapateiro e sua obra, criada por estudantes do
Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP) em 2001, disponível em:
www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Sapateiro/
ATIVIDADE 6
ASSOCIAÇÃO DE ARTISTAS MECÂNICOS E TRABALHISMO:
UMA TRAJETÓRIA?
É comum confundir as associações de socorro mútuo como sendo uma espécie de
proto-sindicalismo. Devemos pensar nelas como contemporâneas e colaborativas, em certo
grau. A ideia da atividade é propor aos alunos a reflexão de como foi se formando o
movimento operário no Brasil, importante para formação cívica dos cidadãos. Podemos
propor uma análise que vai desde a proibição das corporações de ofício (1824) até a
proliferação das mutuais após normatização de 1860. Com a proibição, as classes de
trabalhadores so viram um jeito de se organizarem dentro da lei: nas associações mutualistas.
Segundo Ronaldo Pereira de Jesus, “ as mutuais teriam sido os únicos mecanismos legalmente
possíveis de agregação dos trabalhadores entre o final do século XIX e início do XX, sem o
qual dificilmente o movimento sindical teria se desenvolvido.”
Aqui podemos propor uma análise: o Estado proibiu as corporações, ou seja, a
maneira dos trabalhadores se organizarem e se auto protegerem. Porém esses trabalhadores
encontram nas mutuais uma forma legal de organização. E partir daí se desenrola um
movimento entre trabalhadores que depois de décadas vai surgir no final do século o
movimento sindicalista. A pergunta seria: por que mesmo o Estado proibindo essas
organizações foi inevitável o surgimento dos movimentos de resistência?
O professor poderia tentar influir no aluno o senso de solidariedade que permeava
aqueles grupos no final da primeira metade e durante toda a segunda metade do século
XIX. Relações horizontais que gerariam uma união de pessoas em luta por melhores
condições de trabalho. Segue uma ordem de acontecimentos: os trabalhadores se
organizam para se protegem e colaborarem uns com os outro; essas associações passam a
comportar mais trabalhadores ao longo do tempo, principalmente após o decreto 2.711 e a
lei 1.083, ambos de 1860; com cada vez mais membros, as mutuais passam a exercer um
papel mínimo de associações de resistência, apesar de seu principal objetivo ainda ser
assistencialista.
A mutuais não devem ser entendidas como associações proto-sindicais, mas sim como
base para o surgimento destas. Foi dentro das associações mutualistas que os trabalhadores
começaram e questionar as faltas de apoio do Estado, e decidiram unir-se ativamente para
combater as opressões estatais contra os trabalhadores. De fato, existem muitos aspectos
que podem ser considerados como fragilidades dessas organizações, como seu
corporativismo que impossibilita uma articulação mais generalizada dos trabalhadores
manuais e elementos paternalistas da relação de proteção estabelecida com o Imperador
D. Pedro II. É importante pontuar que essas fraturas fazem parte das experiências políticas e
sociais comuns à cultura que permeava o sistema de valores, ideias e instituições no qual
estavam inseridos estes trabalhadores, em posição desprivilegiada. Estes são alguns dos
problemas estruturais que em certa medida podem ser observados até os dias de hoje na
sociedade brasileira, e que se refletem nos desafios que nossas organizações trabalhistas
ainda não conseguiram superar.
ATIVIDADE 7
PARALELOS NO TEMPO: MUTUALISMO E ESTADO NO SÉCULO
XIX E HOJE
O tema das associações mútuas, formadas a partir de 1860 sob amparo do Estado,
permite-nos pensar a relação entre Estado e Sociedade Civil, observando como essa relação
verifica-se no presente. A bibliografia referente às associações mútuas da segunda metade
do XIX demonstra que elas foram espaços de construção de cidadania e que foram capazes
de aumentar o nível de organização da sociedade civil brasileira. Além disso, eram espaços
que mantinham um vínculo com o Estado brasileiros: sua constituição passava pela
burocracia do Estado e há até mesmo relatos de casos em que o Estado subsidiava,
financeiramente, o funcionamento dessas instituiçõs. É muito interessante notar que há, aqui,
uma relação simbiótica entre a sociedade civil organizada e o Estado, diferente do que
houve com as corporações de ofício pós-independência, que foram proibidas.
A grande pergunta na qual se baseia essa atividade é: essa relação de simbiose entre
Estado e Sociedade Civil organizada verifica-se hoje? Nos dias de hoje, quando a sociedade
civil se organiza e reivindica direitos, qual é a reação do Estado? Cabe, aqui, mostrar para o
aluno como essa relação muitas vezes não é de simbiose, como foi no caso das associações
mútuas do XIX, mas de indiferença ou até mesmo repressão. Por exemplo, há os saraus de
periferia em São Paulo, que muitas vezes não tem amaparo ou subsídio do Estado. O Museu
do Valongo, observado na experiência de campo no Rio de Janeiro, também passa por essa
indiferença. As PECs do atual congresso, que visam desmobilizar os trabalhadores, podem ser
exemplos muito ricos de como o Estado se coloca contra a Sociedade Civil, desarticulando e
reprimindo sua organização e a formação da cidadania.
Cabe, ao professor, construir esses paralelos com experiências que sejam palpáveis
para a realidade do aluno. O espectro de exemplos disponíveis para a escolha do professor
é muito extenso: vai desde o rap da periferia até as associações de bairro. A escolha irá
depender da realidade socio-econômica dos alunos a quem o professor se dirige. Segue
uma lista com sugestões: PECs e precarização do trabalho, atividade sindical, associações de
bairro, associações culturais, cortiços cariocas que sobrevivem1, etc.
Pode-se utilizar como exemplo, inclusive, as irmandades existem desde o século XIX,
como a de São Crispiano e São Crispim, no Rio de Janeiro. São irmandades que, apesar do
cunho religioso, mantém um vínculo com o mundo do trabalho - São Crispim e São Crispiano
eram sapateiros. A Irmandade está, até hoje, no centro do Rio, Rua Carlos Sampaio, número
342:
1A seguinte notícia pode ser mostrada em sala: http://oglobo.globo.com/rio/corticos-do-seculo-xix-sobrevivem-
em-meio-modernizacao-do-rio-10737056
Foto do espaço interno da Irmandade de São Crispim e São Crispiano.
Procissão da irmandade de São Crispim e São Crispiano
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