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Marion Chesney A educação de Felicity

A educação de Felicity - static.fnac-static.com · ela assumira todos os maneirismos de uma grande beldade. A irmã gémea, Amy, era um contraste gritante. Alta, de ... um jogador

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Marion Chesney

A educação de

Felicity

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capítulo 1

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É triste a consciência de que o nosso interior não acom-panha o ritmo do nosso exterior. São as dores lomba-

res, as rugas à volta dos olhos, a pele fl ácida sob o queixo, o vigor que desaparece do passo; todas as manifestações exteriores do envelhecimento formam um escudo lamen-tavelmente endurecido que reveste a alma eternamente jovem e esperançosa.

Tal era o caso das irmãs Tribble. A cada nova tempo-rada social ambas renovavam as esperanças, sofrimentos e alegrias da adolescência. Eram gémeas e ninguém sabia ao certo qual a sua idade, mas corriam rumores de já terem atingido o meio século de existência. Todavia ainda sonha-vam com o seu mais-que-tudo, e na privacidade da sala de estar, depois de saraus, festas, bailes tradicionais ou de máscaras, as duas analisavam juntas cada brilho irresistí-vel no olhar e cada esperançoso aperto da mão.

Euphemia, ou Effy, Tribble tinha a vantagem de ter adquirido a falsa reputação de ter sido uma beldade. Quando

A grande bênção da velhice, a que nunca falha, se tudo o mais falhar, é ter uma fi lha.

r e v e r e n d o d r . o p i m i a n

Nem todas as fi lhas são boas.m r . f a l c o n e r

t h o m a s l o v e p e a c o c k , g r y l l g r a n g e

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jovem fora amaldiçoada com um cabelo cor de areia, pes-tanas a combinar e uma fi gura pequena e roliça. Agora o cabelo era uma nuvem de prata, a fi gura elegante e usava as pestanas discretamente escurecidas com pó de carvão. A pele delicada era apenas levemente marcada por rugas e ela assumira todos os maneirismos de uma grande beldade.

A irmã gémea, Amy, era um contraste gritante. Alta, de ombros quadrados e ar masculino, pele grossa e uma massa de cabelos grisalhos. Não tinha peito nem rabo e tinha uns pés grandes e chatos que atirava para a frente como barba-tanas. Era frequente Effy lamentar em suspiros o facto de ela própria ter recusado propostas de casamento para não deixar a sua querida Amy sozinha, e Amy, que se tinha em muito pouca conta, quase acreditava em tal fi cção, embora a realidade fosse a contrária: Amy é que havia recusado duas propostas de casamento por lealdade a Effy – que se agarrara a ela a chorar, dizendo-lhe que os pretendentes queriam apenas brincar com os afetos dela.

O facto de alguém ter proposto casamento a qualquer uma das duas era já de si um milagre, pois nenhuma delas tinha dote. A mãe morrera quando eram jovens e o pai era um jogador que foi ao encontro do Criador numa nuvem de fumo de charuto no meio das mesas de jogo de St. James durante uma singular sucessão de falta de sorte.

A casa de campo foi vendida para pagar as dívidas. Não teria passado pela cabeça das irmãs nem em sonhos desfazerem-se da casa na cidade, porque a cidade signi-fi cava a temporada social, o que, por sua vez, signifi cava casamento.

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O dinheiro que tinham no momento da morte do pai foi guardado no banco, fazendo levantamentos à medida das necessidades. Nem pensar em investi-lo, ambas con-siderando a Bolsa de Valores apenas uma outra versão de antro de jogatina. E assim os anos foram passando e o dinheiro diminuindo. Um por um, os criados foram sendo despedidos, até restar apenas uma mulher da limpeza que ia todos os dias.

Mas elas iam-se mantendo felizes com a partilha de sonhos e, aliada a ela, uma esperança de segurança fi nan-ceira. A tia, uma tal Mrs. Cutworth, que morava em Strea-tham e que era muito rica, tinha prometido deixar-lhes tudo em testamento. Há anos que as irmãs viajavam até Streatham para visitar a velha e intratável senhora, que parecia estar sempre às portas da morte, mas que nunca fazia a passagem.

Um certo dia de novembro, quando o gelo reluzia nos parques e um sol baixo e rubro no horizonte lançava à Londres fuliginosa um olhar maligno, as irmãs Tribble decidiram partir numa sege de praça, tentando não conta-bilizar o custo total de todas as viagens de sege pagas ao longo dos anos para as levar até Streatham.

Amy viajava bem agasalhada numa capa de peles. Embora já tivesse peladas em alguns sítios, ela pintara-as com tinta castanha, esperando que não fossem muito evi-dentes. Na cabeça usava uma touca às riscas e por cima um enorme chapéu de feltro preto do tipo usado pelos salteado-res de estrada. Effy estava envolta em tantos cachecóis e xai-les compridos que era difícil perceber o que usava por baixo.

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Pouco depois, os edifícios cobertos de fuligem deram lugar a pequenas casas, também elas cobertas de fuligem, e a painéis publicitários da fábrica de graxa Warren Blac-king, como se fosse necessário adicionar mais aquele apon-tamento ao negrume geral. Sombras azuis estendiam-se à sua frente na estrada coberta de gelo à medida que o sol se punha. Mas ambas se sentiam aconchegadas no sonho do que fariam com o dinheiro quando Mrs. Cutworth mor-resse.

– Carvão – disse Amy, batendo com entusiasmo os grandes pés para cima e para baixo no chão da carruagem. – Teríamos lareiras acesas até nos quartos.

– E uma criada de quarto – acrescentou Effy. – Que digo? Um batalhão inteiro de criados.

– E três refeições por dia – disse, por sua vez, Amy.– E dotes. – Effy considerava um bom dote mais impor-

tante do que comida ou calor.Effy era suave e tímida por fora, mas com um interior

duro como aço, o traço distintivo de uma mulher verdadei-ramente feminina. Amy era bruta, rude e desajeitada, sol-tando ocasionalmente blasfémias bastantes terríveis, mas capaz também de ser sentimental e lírica. Tinha por hábito dar dinheiro aos mendigos até Effy a proibir de andar com dinheiro, para refrear tal generosidade equivocada e irres-ponsável.

Assim que a carruagem atravessou aos solavancos os portões e subiu a curta distância até à mansão de Mrs. Cutworth, elas viram a carruagem do médico.

– Achas que...? – começou Effy em tom ansioso.

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– Não, não acho – cortou Amy secamente. – Ela está sempre a chamar o médico.

Saíram da carruagem e Amy bateu à porta, uma batida enérgica que ecoou pela casa.

A porta foi aberta por um mordomo de cara redonda e expressão lúgubre.

– Triste notícia, minhas senhoras – disse ele com voz desolada. – A senhora foi-se.

– Saiu? – perguntou Amy.O mordomo apontou para cima.– Foi para os anjos.Os belos olhos cinzentos de Amy cintilaram e ela des-

viou-os do mordomo para a escada sombria, como se tivesse já visões de jantares de carne assada, aposentos aquecidos e um bando de criados à sua espera no cimo da escadaria. Effy levou rapidamente um lenço aos olhos para esconder o entusiasmo.

– Vamos prestar as nossas últimas homenagens – disse Amy.

As gémeas subiram lentamente os degraus, apesar da forte tentação de desatar a correr.

O médico saía do quarto quando se aproximaram da porta.

– Caranguejo com manteiga – anunciou ele. – Eu bem a avisei para nem lhe tocar, mas ela não me deu ouvidos... foi a sua morte.

Baxter, a criada de quarto de Mrs. Cutworth, acabava de fechar as cortinas da cama quando as irmãs Tribble entraram na penumbra do aposento.

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Era uma mulher já de certa idade, alta e magra, e assim que viu as irmãs Tribble, desatou num pranto, com gran-des e medonhos soluços a agitarem-lhe o corpo.

– Pronto, pronto – tentou consolá-la Amy. – Acalme-se. Afi nal não foi uma coisa inesperada.

– Nada – soluçou Baxter. – Como é que ela foi capaz de fazer isto comigo? Nem um vintém me deixou, ela que me prometeu riquezas em testamento.

– Não chore – disse Effy com vivacidade. – Nós não a deixaremos desamparada, Baxter.

– Como? – respondeu a criada com brusquidão. – Ela também não vos deixou nada!

Amy sentiu-se fi sicamente doente.– Está exausta, Baxter – cortou ela muito pronta. – Como

pode saber uma coisa dessas?A criada limpou os olhos com a ponta do avental de

musselina.– Porque eu li o testamento.Effy afastou as cortinas da cama e olhou para o rosto

morto da tia. Mrs. Cutworth exibia um sorriso, como se estivesse a saborear a consternação e a mortifi cação delas.

– Onde está esse testamento?– Na escrivaninha – respondeu Baxter. – Eu mostro-vos.Foi até uma escrivaninha no canto do quarto e abriu

a tampa. Tirou um rolo de pergaminho amarrado com uma fi ta cor-de-rosa de um dos escaninhos e estendeu-o em silêncio.

Amy pegou nele e, seguida por Effy, foi até à janela e puxou a cortina. Uma luz pálida e cinzenta penetrou no quarto.

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Com Effy a espreitar-lhe por cima do braço, Amy leu o documento num silêncio horrorizado. Mrs. Cutworth tinha deixado todos os seus bens terrenos a um tal de Mr. Desmond Callaghan.

– Quem é Mr. Callaghan? – perguntou ela.– Um tonto – respondeu Baxter com amargura. – Um

coquete. Começou a aparecer por cá há mais de um ano.– Porque não nos avisou? – exigiu saber Effy.– Eu não levei a sério – explicou Baxter. – Ele costu-

mava adulá-la e ela ria-se nas costas dele e dizia que ele só estava atrás do dinheiro.

As mãos de Amy apertaram o testamento com mais força e ela notou com irritação que o seu último par de luvas boas estava descosido no dedo indicador da mão direita.

– A vontade que tenho é de destruir isto – disse ela.– Eu também pensei o mesmo – concordou Baxter.

– Mas ela enviou uma cópia ao advogado. As senho-ras podiam contestar o testamento. Mr. Callaghan não é parente. Certamente conseguiriam provar que ele é apenas um intrujão.

– Seria preciso dinheiro para lutar por isso em tribunal – raciocinou Effy. – E o advogado dela diria que ela estava de mente sã.

Baxter recomeçou a chorar e Amy deu-lhe umas pal-madinhas constrangidas no ombro.

– Eu vou escrever-lhe uma boa carta de referência, Baxter, e se o pior vier a acontecer, está convidada para vir apertar o cinto connosco.

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As duas irmãs mantiveram-se em silêncio enquanto a mala-posta cruzava aos sacões os sulcos congelados

na estrada de regresso a Londres.Até que, por fi m, Amy disse intempestivamente:– Que o diabo a carregue! Espero que tenha tido uma

morte lenta.– Não digas isso! – admoestou Effy, chocada. – Pode ser

o julgamento de Deus sobre nós. Sabes bem que nunca gos-támos dela. Só fi ngíamos que sim para receber o dinheiro.

– Isso não é completamente verdade – contrariou Amy duramente. – Nós sempre fomos atenciosas com ela. Aturámos-lhe o rancor e as mudanças de humor. Éramos os únicos parentes que ela tinha. Pelo que sabemos, o dinheiro teria vindo para nós quer a visitássemos quer não. Mas fi zemo-lo pelo sentido do dever, e sabes disso! Ela era cruel e insultuosa. No entanto, como também sabes, grande parte da nossa motivação em ir vê-la era por sen-tirmos pena dela. Era uma pessoa tão amarga e solitária. Além disso, de que outra maneira duas mulheres de san-gue nobre como nós iriam conseguir arranjar dinheiro? A sociedade só nos permite duas opções: casar ou esperar que alguém morra. Eu é que gostaria de estar morta. Nin-guém vai querer casar com uma de nós.

Effy começou a chorar. Amy tinha dito fi nalmente o até então indizível.

Amy passou o braço pelos ombros da irmã.

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– Eu sou mesmo uma alimária. É claro que alguém vai querer casar contigo. És tão bonita. Com mil diabos! Deve haver alguma solução. O que temos para vender?

– Nada – lamentou Effy. – Não há mais nada.– Há a casa.Effy mostrou-se angustiada. Ela preferia morrer de

fome num bom endereço do que viver de forma mais modesta num local pouco recomendável. O choro dela intensifi cou-se ainda mais.

– Oh, querida. Esquece o que eu disse – pediu Amy em desespero. Mas, subitamente, o seu rosto iluminou-se. – Já sei! Temos uma coisa para vender. Nós mesmas.

– Como cortesãs? – perguntou Effy, secando os olhos e parecendo mais animada com a perspetiva de uma fantasia muito interessante. – Podíamos ser como a Harriet Wilson e ter o duque de Wellington a pagar pelos nossos serviços.

– Não, não. Podemos ser acompanhantes. Pensa só! Somos pessoas muito bem relacionadas que pertencem à nata da sociedade.

– A nata da sociedade não enche barriga – comentou Effy, irritada.

– Ouve... há muito comerciante e novo-rico que daria bom dinheiro para ter a oportunidade de entrar na alta sociedade.

– Mas como é que vamos encontrar essas pessoas? – perguntou Effy. – Quero dizer, pode levar anos e anos. Nós não conhecemos gente do povo.

– Pomos um anúncio, caramba. Anunciamos. Assim como a Warren Blacking.

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Algumas semanas mais tarde, Mr. Benjamin Haddon hesitava na calçada em frente à casa das irmãs Tribble

em Holles Street. Sentia-se perdido e deslocado. Estivera afastado de Londres durante muitos anos, a trabalhar arduamente para a Companhia Britânica das Índias Orien-tais, até que um serviço insignifi cante para um marajá rico e a recompensa generosa daí resultante lhe concederam fortuna e liberdade. Antes de virar para Holles Street, ele caminhara ao longo de Oxford Street, ofuscado pelo bri-lho das lojas. Perguntou-se se as gentes que a percorriam aos magotes alguma vez pensariam no tempo, não muito remoto, em que aquela rua era ainda uma trincheira som-bria, uma Via Dolorosa, ao longo da qual os infelizes eram levados para a Triple Tree, nome pelo qual era conhecido o cadafalso de Tyburn. Estimava-se que cerca de quinhen-tas mil pessoas tinham já encontrado o seu fi m naquela forca infernal, mas agora era como se nunca tivesse exis-tido. Tudo era novo e diferente. Até a moda tinha mudado. As senhoras andavam praticamente nuas, e ele tinha difi -culdade em diferenciar uma meretriz de uma dama. Foi por isso que pensou nas irmãs Tribble. Elas certamente não tinham mudado. Faziam parte das suas lembranças da Lon-dres que ele havia conhecido antes de partir para a Índia.

Embora, na época, ele não fosse um jovem de bolsa muito recheada, era de boas famílias e chegara a ser con-vidado para vários eventos sociais. Mas, infelizmente, as roupas que usava eram marcadamente rurais e pouco

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sofi sticadas e as senhoras prontamente o ignoravam. Todas, exceto as irmãs Tribble. Amy e Effy Tribble mos-travam-se sempre encantadas quando ele convidava uma delas para dançar. Na sua inocência e ainda envolto em boas recordações da juventude, Mr. Haddon não se deu conta que as irmãs Tribble teriam fi cado encantadas por dançar com qualquer pessoa, ambas já saturadas das lon-gas noites passadas com o grupo que permanecia a um canto a fazer ofício de corpo presente. Ele recordava-as como sendo pessoas fi áveis e amáveis. Será que ainda esta-vam vivas e que ainda viviam em Holles Street? Notou que a placa de bronze da porta, já do século passado, antes de os números de rua terem sido inventados, dizia claramente tribble. Bateu à porta.

A princípio não reconheceu Amy, que veio atender. Só viu uma mulher alta e ossuda que usava uma touca pavo-rosa e um avental de serapilheira amarrado por cima do vestido.

Ambos se fi taram em silêncio. Amy viu um homem magro e muito alto, ligeiramente curvado, vestido com um casaco simples mas caro. O cabelo grisalho estava penteado para trás e amarrado na nuca com uma fi ta, de maneira antiquada.

– A sua patroa está? – perguntou ele, estendendo o seu cartão de visita.

Amy leu a inscrição e corou.– Sou eu, Mr. Haddon. Miss Amy Tribble. Não admira

que não me tenha reconhecido. É dia de folga dos criados. Entre, entre.

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Mas eu não o teria reconhecido, pensou Amy. A ima-gem que tenho dele é muito longínqua. Lembro-me de ele ser uma pessoa amável e de boas famílias, mas muito pobre.

Ela conduziu-o até à sala de estar, onde Effy se encon-trava sentada diante da lareira vazia, embrulhada em tan-tos xailes que só se via a ponta do nariz vermelho de frio.

– Effy, querida – disse Amy. – Este é Mr. Benjamin Haddon. Lembras-te? Ele esteve na Índia.

Effy afastou vários xailes e deu a mão a beijar a Mr. Haddon.

– Encantada – murmurou ela. – A última vez que nos encontrámos foi no baile dos Chumley, se estou recor-dada. Eu usava um vestido leve branco com um debrum de padrão grego dourado, muito bonito, e tinha, deixe-me ver, três plumas na cabeça.

– Está ainda mais bonita, Miss Effy – disse ele, galante –, ao passo que eu me tornei bastante curvado e amarelo.

– Como foi na Índia? – perguntou Amy, enquanto pen-sava se devia descer e decantar a última e preciosa garrafa de vinho do Porto.

Ele sorriu. Ainda tem os próprios dentes, pensou Amy, tal como nós. Que estranho. Não é costume ver pessoas da nossa idade com os dentes todos, e no entanto, aqui estão três exemplos reunidos.

– Demasiado calor – disse ele. – Cheia de cor e vio-lenta. Sonhei tantas vezes com o céu cinzento e a chuva fi na, mas agora que regressei, sinto-me angustiado ao des-cobrir que não sou capaz de me acostumar. Foi por isso

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que vim vê-las. Sempre foram tão amáveis comigo quando eu era um jovem sem tostão. Como têm passado? O vosso pai ainda é vivo?

– Não, o pai já morreu há muito.Effy tirou mais alguns xailes e começou a abanar-se, os

olhos azuis namoriscadeiros por cima do leque. Amy pen-sou com azedume que era típico de Effy pôr-se a abanar um leque quando a sala estava fria como um túmulo.

Mr. Haddon olhou em redor. Percebeu que havia muito pouca mobília, sem enfeites ou bibelots de qualquer espé-cie. Eram perfeitamente visíveis os retângulos mais claros no papel de parede desbotado onde antigamente teriam estado pendurados quadros.

– Tornei-me muito rico – anunciou ele abruptamente. – Peço que me deixem ajudá-las.

Dois pares de olhos chocados fi taram-no. As irmãsTribble sentiam-se obrigadas pelas leis férreas das conven-ções sociais. Era muito comme il faut aguardar que um parente idoso morresse ou casar com alguém detestável com o simples intuito de arranjar dinheiro, mas aceitar caridade? Nunca!

– Parece-me que, infelizmente, lhe causámos uma impressão errónea – disse Amy. – Estamos a dois passos de nos tornarmos mulheres trabalhadoras, por isso não há necessidade de ter piedade de nós.

– Que género de trabalho?Effy apresentou um recorte dobrado e muito manu-

seado do jornal The Morning Post e apontou em silêncio para um anúncio publicitário. Ele pegou no monóculo e leu-o com atenção.

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– Já tiveram respostas?– Sinceramente, ainda não – confessou Amy, lançando

um olhar de advertência a Effy. Tinham tido duas respos-tas, mas as famílias que apareceram de visita fi caram niti-damente desencorajadas pela casa gélida e pela falta de criados.

– Deixem-me pensar – disse ele. – Na minha opinião colocaram o tipo de anúncio errado.

– O que quer dizer? – perguntou Effy em voz aguda, esquecido já o tom namoradeiro.

– Nesta época muito dada ao sentimentalismo – come-çou ele, devagar – os pais muitas vezes arruínam as fi lhas satisfazendo-lhes todos os caprichos. Certamente já viram algumas assim, difíceis. São tão mimadas e selvagens que ninguém lhes pega. Mas se pusessem um anúncio a ofere-cerem-se para educar jovens difíceis, pais absolutamente desesperados são capazes de responder... se entendem o que quero dizer. – Ele tossiu e acrescentou diplomatica-mente: – As classes médias são capazes de se igualar em riqueza às classes altas. Um aristocrata não se importa-ria, desde que pensasse estar a providenciar o ensino cor-reto para a sua fi lha antes do início da temporada social. Afi nal, uma das vossas frases favoritas costumava ser que conseguiam transformar o pior em melhor.

Seguiu-se um longo silêncio. Effy olhava para Amy de olhos arregalados.

– Meu Deus! Acho que acertou na mouche! – excla-mou Amy, de repente, saindo da sala a correr e regressando logo depois com caneta e papel.

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– Faço questão de levar já em seguida o vosso novo anúncio para o jornal – disse Mr. Haddon. – Deixem-me, pelo menos, fazer isso por vós.

Os três trabalharam ativamente, escrevendo e cortando e reformulando até fi carem satisfeitos.

– Isto vai atraí-los – anunciou Mr. Haddon por fi m, quando todos olhavam para o resultado fi nal.

Se tem uma Filha Desobediente, Rebelde ou Indisciplinada, duas Senhoras da Nobreza ofere-cem-se para Preparar a dita Filha para apresentação à sociedade e Educar o que pode parecer Inedu-cável. Formação Religiosa e Social. As Sementes do Decoro plantadas em Terreno até então Árido. Nós conseguimos transformar o Pior em Melhor.

As cartas deverão ser endereçadas para XYZ, Perfumaria Cruickshank, 12, Haymarket.

Os perfumistas tinham um serviço de recolha de cartas para os anunciantes.

– Vou levá-la já – garantiu Haddon. – Vemo-nos amanhã.Assim que ele saiu, Amy disse tristemente:– Vamos ter de lhe contar a verdade. Não podemos

continuar a dizer que os criados estão de folga.– É um homem muito bem-posto – comentou Effy,

sonhadora. – Reparaste no olhar eloquente que me lançou quando se inclinou para me beijar a mão?

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Mas, pela primeira vez, Amy não partilhou das especu-lações românticas da irmã.

– É melhor eu ir à despensa ver se consigo descortinar alguma coisa para comermos – disse ela. – Amanhã vamos a casa de Lady Rochester. Come o mais que puderes, Effy.

– Oh, assim farei. Mas não me envergonhes outra vez.– O que queres dizer com isso?– Sabes muito bem o que quero dizer, Amy. Na festa

dos Peterson, deixaste-os escandalizados quando tentaste enfi ar aquela comida toda numa bolsa do tamanho de uma mala e foste apanhada. Por causa disso, nunca mais nos convidaram.

– Na altura, pareceu-me uma boa ideia – confessou Amy, amuada.

Ela passou a hora seguinte na cozinha tentando trans-formar um pedaço de carne do cachaço de borrego num guisado nutritivo. Um estrondo vindo da rua fê-la deixar a panela e subir os degraus de acesso à rua. Viu um carvoeiro inclinado sobre o postigo do carvão. Atrás dele estava a carroça, carregada com sacos de carvão.

– Pare com isso! – ordenou Amy bruscamente. – Nós não encomendámos carvão.

– Foi Mr. Haddon que encomendou e pagou – explicou o carvoeiro, irritado.

– Muito bem, pode continuar – aceitou Amy. – Tinha-me esquecido – justifi cou, recuando e descendo as escadas para dentro de casa.

Sentiu um calor especial no coração. Qualquer outro homem poderia ter enviado fl ores ou chocolates, mas só o

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perspicaz Mr. Haddon teria a ideia de lhes enviar carvão. Se lhes tivesse perguntado se gostariam de carvão, as irmãs teriam recusado, porque isso seria aceitar caridade. Mas isto! Isto era um presente.

Amy desceu para a cave vazia e, de mãos apertadas e olhos a brilhar, fi cou à espera que a avalanche de carvão descesse pela calha.

Dois dias depois, no condado de Sussex, a condessa de Baronsheath encontrava-se sentada a uma bonita

escrivaninha na sua sala de estar. Abriu uma gaveta, tirou um exemplar do The Morning Post e leu o anúncio das irmãs Tribble uma e outra vez. Seria uma brincadeira? Seriam aquelas autodenominadas senhoras da nobreza realmente nobres? Haveria alguém no mundo inteiro capaz de educar a sua fi lha, Lady Felicity Vane?

A condessa ouviu gritos e exclamações lá fora. Guar-dou às pressas o jornal na gaveta e foi até à janela. Um grupo de jovens a cavalo, liderados pela sua fi lha, Lady Felicity, atravessavam o roseiral, enquanto um jardineiro escocês pulava e vociferava como um gnomo enfurecido para as costas dos cavaleiros.

Lady Baronsheath voltou a sentar-se, sentindo as per-nas bambas. O que podia ela fazer? O primeiro baile de debutantes de Felicity era naquela mesma noite e, em vez de se embelezar, ela preferia destruir o roseiral com o grupo de convidados masculinos mais barulhento da casa.

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Era tudo culpa do marido, pensou Lady Baronsheath com amargura. Ele queria um fi lho, sempre quis ter um fi lho, e ela só fora capaz de lhe dar uma menina. Então, ele passou a tratar a fi lha como se ela fosse um rapaz, satis-fazendo-lhe todos os caprichos. Agora preparava-se para navegar para a América para uma visita prolongada, dei-xando à mulher a responsabilidade de levar Lady Felicity para Londres para a sua primeira temporada.

Bem vistas as coisas, nem deveria haver necessidade de nada disso, pensou Lady Baronsheath, irritada, conside-rando o bom partido que tinham mesmo à porta. O marquês de Ravenswood, seu vizinho e recentemente retornado da guerra. Era bonito, elegante e rico. Era um pouco mais velho, já na casa dos trinta, e Felicity tinha dezanove anos, mas um homem mais velho era certamente o que ela precisava para lhe pôr algum travão. Todos os sonhos de Lady Baronsheath de ver a fi lha noiva do marquês na noite do baile há muito que haviam desaparecido. O marquês já conhecera Lady Felicity e parecia desprezá-la, e a simples presença dele pare-cia sempre trazer ao de cima o pior de Felicity.

Às vezes, a exuberância do marido e da fi lha fazia Lady Baronsheath sentir-se emurchecida e exausta. A casa era muito elegante e bastante moderna, construída no estilo pseudoclássico do século xvi, com duas graciosas alas a estenderem-se de ambos os lados do edifício principal. Os quartos eram cheios de luz e muito bem decorados. Mas toda a casa cheirava sempre a roupa húmida, a cavalos e a cães. Felicity montava quase todos os dias, sempre vestida com roupas masculinas.

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