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8669 A ELEGIBILIDADE INDÍGENA COMO QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS: O CASO YATAMA VS. NICARÁGUA * THE INDIGENOUS ELIGIBILITY AS A HUMAN RIGHT ISSUE: THE YATAMA VS. NICARAGUA CASE. João Henrique Vasconcelos Arouck RESUMO A presente comunicação intenta pôr em relevo os direitos políticos de grupos indígenas a partir do caso Yatama vs. Nicarágua resolvido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 23 de Junho de 2005. Procura-se destacar a elegibilidade indígena como questão de direitos humanos a partir do debate teórico relativo aos pressupostos compreensivos efetuados nas interpretações sobre questões humanitárias e, em seguida, a partir de inferências práticas do caso na forma dos argumentos judiciais disponíveis. A divisão do artigo em aspectos teóricos e práticos realiza-se por mera distribuição metodológica: de um lado buscar-se-á debater os horizontes da compreensão hermenêutica, em situações de alteridade, a partir da assunção formal da universalidade do ser humano enquanto sujeito de direitos; de outro, será dada primazia às falhas dos partícipes processuais em justificar, no caso, as fontes positivas evocadas no intermédio do próprio processo; o que se constitui, acredita-se, como um problema da teoria, tendo em vista as exigências do debate judicial em se tratando de direitos humanos. De modo geral, a hipótese em teste refere-se ao modelo compreensivo da hermenêutica filosófica e da atitude interpretativa como possíveis vias para possibilitar consensos dialógicos sobre o que sejam, para os intérpretes, situações de vulnerabilidade humana. Isto facilitaria, afinal, o reconhecimento consciente de outros direitos (humanos) ainda obscurecidos em razão de óbices preconceituais relativos à significação real destes direitos quando debatidos por seus intérpretes oficiais. É neste sentido que os direitos políticos de grupos indígenas, no caso analisado, se tornam uma questão pontual para a discussão de hipóteses aplicáveis à reflexão hermenêutica sobre o significado autêntico de direitos humanos e, também, ao problema da falta de fundamentação de teses jurídicas contrárias que, livremente evocadas, não justificariam a sua razão de ser enquanto pedidos de denegação. A falta de justificações de teses jurídicas pode ser considerada, teoricamente, como um óbice a debates judiciais mais apropriados aos conceitos universais que integram a ontologia dos direitos humanos. Tais melhoramentos se determinam em prol da resolução mais justa de processos sobre questões humanitárias, a partir do reconhecimento consensual de situações de vulnerabilidade que ensejariam, por fim, a busca legítima pelo que se considere a melhor decisão; mesmo que através da dialética característica – e inafastável – de processos judiciais que se reputem mais adequados a discussões sobre conceitos e noções jurídicas universais. PALAVRAS-CHAVES: DIREITOS HUMANOS; DIREITOS POLÍTICOS; DEMOCRACIA; MINORIAS; ALTERIDADE; HERMENÊUTICA; INTERPRETAÇÃO. * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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A ELEGIBILIDADE INDÍGENA COMO QUESTÃO DE DIREITOS

HUMANOS: O CASO YATAMA VS. NICARÁGUA*

THE INDIGENOUS ELIGIBILITY AS A HUMAN RIGHT ISSUE: THE

YATAMA VS. NICARAGUA CASE.

João Henrique Vasconcelos Arouck

RESUMO

A presente comunicação intenta pôr em relevo os direitos políticos de grupos indígenas a partir do caso Yatama vs. Nicarágua resolvido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 23 de Junho de 2005. Procura-se destacar a elegibilidade indígena como questão de direitos humanos a partir do debate teórico relativo aos pressupostos compreensivos efetuados nas interpretações sobre questões humanitárias e, em seguida, a partir de inferências práticas do caso na forma dos argumentos judiciais disponíveis. A divisão do artigo em aspectos teóricos e práticos realiza-se por mera distribuição metodológica: de um lado buscar-se-á debater os horizontes da compreensão hermenêutica, em situações de alteridade, a partir da assunção formal da universalidade do ser humano enquanto sujeito de direitos; de outro, será dada primazia às falhas dos partícipes processuais em justificar, no caso, as fontes positivas evocadas no intermédio do próprio processo; o que se constitui, acredita-se, como um problema da teoria, tendo em vista as exigências do debate judicial em se tratando de direitos humanos. De modo geral, a hipótese em teste refere-se ao modelo compreensivo da hermenêutica filosófica e da atitude interpretativa como possíveis vias para possibilitar consensos dialógicos sobre o que sejam, para os intérpretes, situações de vulnerabilidade humana. Isto facilitaria, afinal, o reconhecimento consciente de outros direitos (humanos) ainda obscurecidos em razão de óbices preconceituais relativos à significação real destes direitos quando debatidos por seus intérpretes oficiais. É neste sentido que os direitos políticos de grupos indígenas, no caso analisado, se tornam uma questão pontual para a discussão de hipóteses aplicáveis à reflexão hermenêutica sobre o significado autêntico de direitos humanos e, também, ao problema da falta de fundamentação de teses jurídicas contrárias que, livremente evocadas, não justificariam a sua razão de ser enquanto pedidos de denegação. A falta de justificações de teses jurídicas pode ser considerada, teoricamente, como um óbice a debates judiciais mais apropriados aos conceitos universais que integram a ontologia dos direitos humanos. Tais melhoramentos se determinam em prol da resolução mais justa de processos sobre questões humanitárias, a partir do reconhecimento consensual de situações de vulnerabilidade que ensejariam, por fim, a busca legítima pelo que se considere a melhor decisão; mesmo que através da dialética característica – e inafastável – de processos judiciais que se reputem mais adequados a discussões sobre conceitos e noções jurídicas universais.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITOS HUMANOS; DIREITOS POLÍTICOS; DEMOCRACIA; MINORIAS; ALTERIDADE; HERMENÊUTICA; INTERPRETAÇÃO. * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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ABSTRACT

The article intends to put on relevance the political rights of Indian groups taking under analysis the elements of a judicial case: the Yatama vs. Nicarágua processed and judged by the Interamerican Court of Human Rights (23 June 2005). The right to be elected is emphasized through the dialectical elements of the present case – as judicial arguments – and by its inevitable theorical tasks; it means: by the hermeneutic presuppositions that informs the interface of interpretation’s processes about human issues that are externalized, in law discourses, by its practical interpreters. The present division of a theorical and a practical side is done for a methodological distribution: in the first aspect, the philosophical hermeneutic approach is discussed as a pertinent theorical matter to optimize the understanding of human right’s universality by its practical significances. The other side tries to evidence the difficulties that appear when the interpreter invokes the coercive authority of law to fundament judicial reasonings as to reject a human right demand – even when it is demanded abstractly by the other part. It is discussed as a failing when those kinds of arguments do not legitimize the factual and non-justified coercion of formal norms in the immediate practice of Law. The present investigation can be seen as a hypothetical test to affirm a comprehensive model of interpretation for human rights issues as a way to trespass logical irresolutions about these rights and to reinforce its ontology; recognizing, so, others kinds or manifestations of the human rights historical phenomena. This possibility would be seen as real since the prejudices of factual interpreters would be discussed and exposed to rational public debate in cleared terms, that is to say: when the normative evocation is justified by its ethical or political justification – beyond the positive referring process. The Yatama case helps us to situate the political rights of Indian groups as a problem from what is the adequate interpretation from an abstract demand. This process must be leaded in a basis of a enlightened public debate which naturally tends to authentic opinions (or even to consensus) about what is a human right beyond the factual data disposed in legal texts which are beginnings, not an end itself, for human rights practical recognition.

KEYWORDS: HUMAN RIGHTS; POLITICAL RIGHTS; DEMOCRACY; MINORITIES; ALTERITY; HERMENEUTICS; INTERPRETATION.

1. Introdução

Os argumentos judiciais do caso Yatama Vs. Nicarágua podem ser analisados como um material profícuo para discussões situadas sobre direitos políticos indígenas. A contemporização teórica de questões definíveis como humanitárias podem ganhar cada vez mais espaço quando também interpretadas, em seu modo de ser, pelas práticas judiciais rotineiras. Tal é destacado de maneira positiva tanto pela quantidade numérica de questões de humanidade submetidas a cortes internacionais quanto pela qualidade das sentenças que poderiam representar, teoricamente, a mediação temporalizada entre a reivindicação abstrata de direitos humanos e a tentativa de se justificar eventuais denegações; que se tornariam legitimadas, ressalte-se, apenas pela possibilidade de

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demonstração de sua adequação a partir dos mecanismos dialógicos da formação de consensos.

O caso promove, para a pesquisa, a discussão da elegibilidade indígena reivindicada como matéria de direitos humanos. Tem-se por violação abstrata o indeferimento judicial ao exercício daquele direito em duas regiões autônomas da Nicarágua. No âmbito da abstração, o nicho teórico está em saber se a denegação pode ser justificada apenas por fontes normativas e administrativas do estado da Nicarágua, sem que se considerem outros parâmetros normativos presentes na própria constituição nicaragüense e nas convenções internacionais de direitos humanos. É preciso ressaltar, ademais, que o tipo de análise, por casos decididos, ganha maior relevância teórica quando é capaz de demonstrar a falta de argumentos aptos a justificar os atos normativos que denegam e vão de encontro aos direitos humanos já pactuados e, em os havendo, quando se demonstra; de outra maneira, que os argumentos apresentados para a denegação – como base para decisões denegatórias – não são capazes de sugerir um (re)início propício para a futura aceitação consensual no sentido íntegro da jurisprudência no tempo.

De modo prático – no esteio de uma possível ontologia de processos judiciais aptos ao debate sobre direitos humanos – a aceitação consensual a partir de uma lógica, ou hermenêutica substancialista, levada a cabo pelos partícipes do processo – mesmo que a despeito dos interesses em jogo – pode legar condições para que, eventualmente, a resolução de casos sobre direitos humanos se revista, aos olhos de todos, como a identidade final de convicções coletivas ou universais que se encontram e reconhecem intersubjetivamente o preceito autêntico de direitos humanos que emerge como resultado da discussão apropriada de sua universalidade, mesmo que, de início, as partes estejam defendendo interesses diametralmente opostos.

No caso, a violação concreta refere-se ao indeferimento da justiça nicaragüense à pretensão de representação política a ser exercida pelos próprios indígenas através de pessoa jurídica constituída para este fim: a Yatama (“Yapti Tasba Masraka Nanih Asla Takanka”). O partido, de âmbito regional – aceitável no sistema nicaragüense; dispunha-se a inscrever candidatos para concorrerem às eleições municipais do ano 2000. A cadeia de fatos que engendrou a reivindicação por direitos humanos se inicia quando publicada resolução pelo “Consejo Supremo Electoral” (equivalente, no Brasil, ao Tribunal Superior Eleitoral) que inabilitava todos os candidatos da Yatama para disputar as eleições do ano 2000. O partido, então, promove vários recursos judiciais (os “recursos de amparo”) para que pudesse garantir a elegibilidade daqueles que estavam inscritos em listas eleitorais formadas após as deliberações comunitárias indígenas.

O esgotamento das instâncias se realiza por ocasião do indeferimento de um “recurso de amparo” pela Suprema Corte da Nicarágua. A Corte justificou a denegação alegando apenas a impossibilidade do órgão em revogar ou ignorar a resolução publicada pelo “Consejo Supremo Electoral”. Após denúncia formal da Yatama, de organizações defensoras dos direitos humanos e dos direitos indígenas; a Comissão Interamericana de Direitos Humanos se manifestou contra o teor da resolução publicada pelo “Consejo Supremo Electoral” concluindo que o ato decisório não levava em conta o direito consuetudinário, os valores, usos e costumes do grupo indígena que tencionava exercer a elegibilidade e a eventual representação eletiva nas próprias estruturas democráticas do Estado nicaragüense. A Comissão também se manifestou contra o teor das decisões

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judiciais denegatórias que, acatando, sem justificar por quê[1], a resolução do “Consejo”, não demonstrou relativizar, adequadamente, os padrões burocráticos costumeiros do estado nicaragüense frente aos padrões também costumeiros[2] dos indígenas, em um caso que exigiria uma aplicação mais complexa do direito positivo – tendo em vista que, eticamente, não se deve pressupor hierarquia material entre ordens sociais e, mais ainda, entre códigos jurídicos distintos.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos formulou as recomendações de praxe para que o estado nicaragüense garantisse o exercício dos direitos políticos dos pré-candidatos indígenas a partir de adaptações futuras na lei eleitoral nicaragüense e também por reformas adequadas na lei processual para que se lhes facilitassem o acesso à justiça através da relativização de seus padrões e costumes. Da mesma forma, a Comissão recomendou que o estado nicaragüense procedesse a indenizações justificáveis por razões de eqüidade, haja vista o prejuízo material que os candidatos indígenas sofreram ao se adaptarem aos padrões formais da lei eleitoral interna; esforço tal, que não reconhecido pela jurisdição interna, gerou prejuízos e desordem comunitária; aproximando-os de uma situação de vulnerabilidade. Após a resposta do estado – da qual não foi constatada qualquer tipo de reparação – a Comissão decide, por fim, submeter o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Já se pode constatar, desde já, o fato do apego injustificado da justiça nicaragüense a requisitos formais da lei eleitoral que, a priori, se legitimaria apenas para a conservação ou promoção da técnica e racionalidade exigida para a realização burocrática e idônea de eleições inter alia aos pressupostos irrecusáveis da concepção democrática interpretada junto ao conceito formal de eleição. Ao não interpretar a reivindicação indígena através de uma postura minimamente relativista, não evocando outras fontes normativas disponíveis; como por princípios de política e democracia presente em constituições e pelos textos das convenções internacionais de direitos humanos –, as teses denegatórias ao exercício do direito reivindicado correm, teoricamente, o risco de não se tornarem justificáveis – no futuro – por não rearticularem, de maneira justa, as concepções fundamentais da democracia nas próprias práticas eleitorais.

No silogismo próprio das aplicações rotineiras do direito positivo, a escolha da premissa inter alia à interpretação razoável do fato posto à indução não se torna legitima per se, que dizer, apenas por manifestar-se através da lógica formal. A justificação hermenêutica da decisão antecede a prática silogística – a “operação” do direito – não por uma anterioridade de etapa, mas sim pela própria univocidade inafastável da vivência do intérprete com relação à sua análise de natureza lógico-formal. Neste expediente, a vivência “moral” e “política” do intérprete oficial não logram estar separadas dos raciocínios lógicos que comunicam, aos outros, os processos ou os caminhos de decisão escolhidos para sentenças coercivas. A falta de justificação da premissa normativa (a resolução do “Consejo”) citada como fundamento da decisão da Suprema Corte Nicaragüense denota, em termos simples, a falta de interesse dos magistrados em proceder à relativização adequada de seus padrões jurídicos em práticas de rotina e, mesmo não o fazendo, através do reconhecimento de outras fontes disponíveis no próprio sistema nicaragüense. O caso demonstra, afinal, a não-relativização da ordem jurídica abstrata – que está à mão para a melhor decisão – diante da alteridade de costumes e valores con-temporâneos[3] à vigência do direito estatal nicaragüense; no caso, os valores do grupo representado pelo partido Yatama.

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Isto porque a alteridade de costumes indígenas, quando corretamente interpretada, pode ser destacada transversalmente (por interpretações reconhecíveis por outros) ao conjunto dos padrões vigentes através de uma simples razão de semelhança[4] efetuada na compreensão hermenêutica. A tarefa é exeqüível na medida em que se admita o fato de que a própria alteridade é relativa: a diferença determinada em outras vigências culturais humanas pode ser assemelhada com a do próprio intérprete porque estas não diferem quando se pressupõe – na prática dos direitos humanos – uma unidade antropológica ou mesmo transcendental. Por ser de ordem imagética, pelo menos naquilo que aparece à mão em um primeiro momento, o intérprete oficial deve forçar-se a imaginá-la a partir dos elementos pressupostos em sua própria educação e formação ética, pois o que é humano nunca deve ser compreendido como “totalmente” estranho.

Ora, o fato da vivência con-temporizada de ordens sociais (humanas) diferentes, mas semelhantes no todo transcendental da unidade ontológica do homem; já é em si um pressuposto da convergência possível de co-princípios a serem discernidos por intérpretes oficiais, já que o conteúdo de sentido destes princípios se “universalizam” no ser-com inafastável da convivência temporal. Tal ocorre, ressalte-se, mesmo a despeito de diferenciações existenciárias e de configuração imagética. Isto porque a vida natural do homem em uma temporalidade antropológica comum já é por si só um fator para diálogos e interpretações identitárias. Com isso, deve ser válida a opinião de que não existe alteridade absoluta quando se busca compreender a unidade irrecusável de presenças viventes na mesma gradação epocal, apesar de se encontrarem em sistemas simbólicos diferentes, porém semelhantes no “todo” da unidade presencial (vital).

Não obstante a relevância teórica da temática hermenêutica da relativização em situações que envolvem reivindicações por direitos humanos, os aspectos práticos do caso Yatama se mostram imediatos para os debates da teoria política – democracia – e da teoria do direito – jurisdição como tarefa hermenêutica e de interpretação. Isto porque os parâmetros da violação concreta são claros: nega-se ao grupo indígena o direito à participação no expediente democrático do estado nicaragüense para a defesa de interesses minoritários que se tornam, todavia, legítimos, porque ligados à tradição histórica e jurisprudencial referentes à reivindicação de direitos políticos. Frente a isto, não seria imprudente ressaltar, de antemão, a legitimidade da reivindicação do partido indígena na medida em que o indeferimento judicial das cortes nicaragüenses configura, mesmo em um nível abstrato, uma violação a direitos humanos, pois induz o grupo a uma posição marginal para a condução política de interesses localizados e de repercussão comunitária. Ressalte-se, ainda, que a situação de vulnerabilidade imediata do grupo demandante é teoricamente demonstrável já que a impossibilidade em participar na deliberação oficial da municipalidade diz respeito a interesses rotineiros, não-abstratos. Assim, o prejuízo da marginalização política é, neste caso, materialmente discernível (judicializável) e, portanto, ainda mais prejudicial à determinação comunitária do grupo, caso permaneçam em uma situação próxima da vulnerabilidade devido à falta da representação de interesses peculiares e vitais.

Considerando estas premissas, a presente comunicação terá dois eixos de análise: a) os elementos da teoria que possibilitam a crítica sobre o problema da não justificação legítima de teses jurídicas que não reconhecem ou denegam direitos humanos – mesmo que por sua reivindicação abstrata; b) a exposição das operações silogísticas realizadas na jurisdição nicaragüense – aqui defendidas como causa da situação de violação; e que ainda demonstrariam a indiferença de intérpretes oficiais com relação à necessidade da

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relativização de padrões jurídicos a partir de compreensões hermenêuticas adequadas a questões universais de humanidade.

Mesmo que tenhamos por referência um caso concreto – como mote para a exposição de problemas afetos à interpretação – a discussão deverá ser situada em nível teórico, mais do que pela reprodução expositiva do acórdão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Procura-se entrever, neste esteio, até que ponto questões humanitárias podem ser suscitadas pela compreensão hermenêutica de situações fáticas e não apenas por silogismos feitos a partir da consideração arbitrária de alguns elementos factuais subsumidos à literalidade abstrata da lei escrita.

2. Aspectos Teóricos: A necessidade da Justificação de Teses Jurídicas no Debate Judicial sobre Direitos Humanos e a Razão de Semelhança em casos de Alteridade.

As teses jurídicas dispostas na dialética judicial[5] devem ter como objetivo principal sugerir elementos teóricos capazes de integrá-las ontologicamente ao significado contemporizado de princípios historicamente pactuados. Não se afirma, com isso, que o expediente judicial deva se pautar tão somente pela exposição convincente de conceitos demonstrativos da permanência e validade de princípios deontológicos a partir de repetições retóricas dos textos das convenções internacionais de direitos humanos ou da reivindicação concreta do caso. O que se propõe é que a racionalidade do processo contraditado de teses jurídicas em casos de direitos humanos deve determinar-se por aquilo que lhe dá maiores condições para legitimar-se por si mesma, qual seja: a linguagem e a lógica substancialista dos princípios pactuados que; mesmo a despeito da distância temporal (histórica) de sua emergência, ainda se constituem como a única fonte apropriada para argumentos de justificação tanto de teses jurídicas denegatórias quanto de teses referentes à reivindicação de direitos humanos.

Para ser claro: a assunção dessas premissas – a da necessidade de justificar eticamente as teses jurídicas apresentadas em processos – mitiga as distâncias artificiais que afastam os conteúdos éticos de sua tarefa prática e, também, as separações formais daquilo que comumente consideram como assuntos restritos à teoria do direito e, de outro lado, referentes apenas à concepção prática e profissional[6]. Para além desta separação estanque e improdutiva, o que se defende aqui, de antemão, é que a dialética procedimental relativa a casos de humanidade deve se revestir de seus conteúdos éticos inafastáveis. Tais conteúdos de sentido, além de situar a significação real dos direitos humanos em sua originalidade imanente, possibilitam o consenso – como identidade ou semelhança de convicções universais –, bem como sua comunicabilidade enquanto fundamento do direito; e não apenas como uma reformulação retórica dos direitos fundamentais, do ativismo político ou da ideologia do pós-guerra.

De outro modo, a necessidade da justificação adequada de teses jurídicas apresentadas por partes processuais – o motivo concreto de sua exposição como argumento de reivindicação/denegação – torna-se premente pelo ethos universalizado que envolve a própria compreensão prática dos direitos humanos: trata-se, permanentemente, de um assunto ou matéria ética, na medida em que a discussão sobre a necessidade ou não da

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deferência coerciva em prol destes direitos emerge de sofrimentos ou alienações que atingem a determinação do ser humano como um todo – como unidade antropológica ou, se quisermos, transcendental –. Para mais, é dizer: de sofrimentos relativos a uma determinação antropológica – o modo de ser identitário de um grupo, uma nação – que se torna, afinal, a condição irreversível de seu próprio ser e estar no mundo como pessoa, grupo e, acima de tudo, como ente vivo. Daí afirmar-se que não se trata de um sofrimento metafísico, fruto do desrespeito alheio a uma identidade única que se quer forçosamente respeitada, mas sim a uma condição inafastável, ou seja, a uma determinação no mundo que se torna digna em si mesma já que originária e irreversível.

A abertura hermenêutica[7] que se exige no trato com situações de vulnerabilidade e na interpretação da reivindicação por direitos humanos baseiam-se, justamente, neste ethos fundamental que concerne ao que os textos legais denotam como a “dignidade” própria ao ser humano e que transcenderia a dignidade abstrata do sujeito de direitos, tal como vislumbrada pelas concepções civilistas. Esta especificidade justifica, assim, a premência da busca por modos dialéticos adequados ao debate judicial sobre direitos humanos para além da exposição mecanizada de fontes legais que, mesmo vigentes, não conseguem, por vezes, lograr a sua legitimação ética no viés de sua mera demonstração – o automatismo do referenciamento positivo das inúmeras fontes legais ficaria, neste caso, em um segundo plano; em prestígio a debates que viabilizem a manualidade das noções jurídicas universais próprias aos direitos humanos.

No âmbito teórico – relativo à busca pela melhor compreensão[8] sobre a dignidade “transcendental” do ser humano em si mesmo – certo cuidado fenomenológico deve estar presente quando da interpretação efetuada através dos paradigmas de crítica ao positivismo ou por premissas referentes ao movimento de refundação das ciências humanas. No bojo de interpretações conflitantes, a prioridade está em saber até que ponto é possível demonstrar, teoricamente, possibilidades reconhecíveis para uma aproximação maior do conhecimento formal com as questões de alteridade; já que tais questões exigiriam ao intérprete que constatasse a vulnerabilidade e o sofrimento alheio enquanto resultado de uma compreensão vivencial e não apenas pelo modo da subsunção própria ao expediente rotineiro do direito. Entrementes, para o intérprete que não entende a razão de ser da moralidade vigente – na qual se encontra imerso em/por seus próprios pré-juízos – a questão se torna mais dificultosa já que as situações como a do caso Yatama envolvem partícipes processuais que possuem vivência apenas semelhante, porém não identitárias à sua.

De outro modo quer-se dizer que: as compreensões autênticas efetuadas por intérpretes que procuram compreender a sua própria moralidade – como pressupostos condicionantes da interpretação de fatos e situações – podem ser vistas como o esteio mais adequado para a produção de consensos judiciais sobre o significado universal de direitos humanos a partir daquilo que se mostra semelhante em uma situação que envolve concepções advindas de sistemas simbólicos não-identitários. Tal ocorre, precipuamente, em diálogos de indígenas com não-indígenas, onde a universalidade de direitos humanos ganha sua condição prática a partir da possibilidade racional em se reconhecer a semelhança e não apenas a identidade, como condição para o reconhecimento da universalidade e aceitação de co-princípios nas situações que envolvam sistemas simbólicos virtualmente semelhantes. Contudo, mesmo com tais possibilidades, o expediente da jurisdição e da prática jurídica como um todo é capaz de

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empreender raciocínios de equidade a partir da razão de semelhança? Em caso afirmativo, a sofisticação antropológica seria uma condição sine qua?

Por ora, pode-se dizer apenas que a índole prática da questão está em saber até que ponto aquele que opina por discursos formais pode falar de maneira autêntica para que, mesmo pelo sistema auto-referenciado do direito positivo, sua fala se torne um evento produtivo – compartilhável – pelos agentes que reivindicam e contraditam em debates judiciais pautados na alteridade. Assumindo a premissa de que a lógica dos direitos humanos introduz, na prática, parâmetros de linguagem universal; a atenção aqui dada à possibilidade de falas originais (autênticas), vinculadas a uma produção racional de discursos adequados; é suscitada em prol do argumento de que modos positivistas de interpretação dificultam compreensões mais aproximadas àquilo que o evento de positivação material de direitos humanos “tem realmente a dizer” para a autocompreensão coletiva da experiência do direito no tempo e, obviamente, para a vida dos seres humanos como um todo.

A epistemologia positivista – como organização metódica para a interpretação abstrata de normas pelo modo da aferição subsuntiva – se legitima como autêntica até o ponto em que represente uma decorrência “natural” – inafastável ou irrecusável – do modo de ser e das possibilidades compreensivas de uma dada época a partir de práticas vigentes, porém já legitimadas por um padrão consensual mínimo. A crítica formal a este modo de se falar sobre o direito não pressupõe, todavia, divisões preconceituosas entre os que prestigiam a autoridade de normas abstratas em relação a outros que prestigiariam – como sobrepujança transcendental – direitos “naturais”, tábuas principiológicas ou mesmo toda a infinidade de conceitos de teoria política vislumbradas, erroneamente, pela lógica do dever-ser. Talvez, arrisque-se dizer, a lógica positivista – com sua estética reprodutiva – se permaneça na praticidade do direito enquanto houver uma “fala do Estado” que procure legitimar sua faticidade repetindo-se à exaustão na identidade que têm apenas consigo mesma – daí falar-se de sua “auto-referência” permanente.

Nem o “positivista”, tampouco o seu crítico, são capazes de provar ou demonstrar que podem interpretar, aplicar, conhecer, compreender ou analisar de modo melhor do que outros, em razão do fato de que a norma abstrata está cada vez mais ensimesmada na forma de textos públicos avulsos que já não possuem a literalidade subjetiva capaz de legitimar o texto legal por sua pura exegese – como, historicamente, nos textos da moral religiosa ou, mais recentemente, no Code Napoléon do contexto francês. A contingencialidade do direito – no sentido da velocidade da publicação de atos normativos a serem utilizados na sua “aplicação” – perde em racionalidade porque o expediente democrático não possui procedimentos de argumentação aptos a controlar a ideologia substancial dos atos normativos que publica. Quer-se dizer, afinal, que o conteúdo problemático do direito não é um problema objetivo – pressupondo-se, ludicamente, a infinidade de normas abstratas como “objeto” do direito e estando aptas a regularem a incógnita do mundo da vida –, mas referente à possibilidade ou não de saber até que ponto uma comunidade de intérpretes pode conformar-se, adequadamente, para discussões produtivas e resoluções seguras acerca de questões morais, jurídicas e de princípios comuns que concernem, diretamente, à vida concreta de seres humanos compreendidos por sua igualdade natural e não apenas política.

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Veja-se que, historicamente, a resolução de casos pela consideração unilateral de fontes normativas – um dos elementos mais contundentes do método positivo[9] – possui sua autenticidade quando da sofisticação técnica do direito romano pela Lei das Doze Tábuas e, alhures, com a compilação do Corpus Juris Civile. Mesmo assim, já nestes modelos primorosos de técnica e linguagem jurídica, a questão sobre sua legitimidade já é suscetível a opiniões da interpretação crítica na medida em que os mecanismos institucionais de organização societária perdem sucessivamente o vínculo antropológico de legitimação através do respeito “natural” à autoridade per se tal como se daria; idealmente, em comunidades entrelaçadas pelo primado da fraternidade.

Desta forma, o problema da legitimidade vincula-se cada vez mais – em um ínterim histórico de continuidade abstrata – à questão de saber justificar (aos olhos de todos) atos normativos que não se justificam por si mesmos como no padrão do antigo direito consuetudinário e, em menor grau, no padrão dos diplomas históricos. A vivência moderna do direito – por sua heteronomia não justificada aos que não vivenciaram os séculos de construção formal das instituições – carece de processos permanentes de justificação, pois, empiricamente, os atos normativos tendem a ser publicados em velocidade e quantidade cada vez maior. Por estas razões, o problema da legitimidade é o calcanhar de Aquiles dos intérpretes que falam por exposições ou subsunções utilizando apenas o direito positivo, já que a reprodução da “fala” ensimesmada do Estado pode perder o vínculo com a lógica substancial do que é “justo” mesmo que a reprodução diga respeito a “leis” vigentes e oriundas da maioria política de um estado soberano. É deste modo – e por estas dificuldades – que a positividade, enquanto filosofia e método só existe, absolutamente, na representação da natureza.

A autocompreensão crítica da mentalidade positiva lega novos conceitos para entender-se porque a linguagem do positivismo não é capaz de compreender a vigência de direitos universais quando ignora a tensão permanente entre jus e positum. Por exemplo, o que a filosofia alemã chama de “mundo da vida” [10] significa à compreensão hermenêutica do direito aquilo que necessariamente escapa ao controle formal da subsunção, quer dizer, refere-se à contingencialidade vivencial que não pode ser moldada pelas formas retóricas da fala pautada em enquadramentos abstratos. O positivista clássico, orgulhoso de sua lúdica subsuntiva, se torna; atualmente, um intérprete parcial por confiar excessivamente em modelos epistemológicos de organização e não de compreensões produtivas que se tornem adequadas a contemporizar os princípios éticos (de justiça) a partir da produção incontrolável de normas abstratas oriundas do expediente democrático. Para ser mais claro: o positivista clássico confia unilateralmente na subjetividade monádica de sua subsunção, quer dizer, nos elementos “factuais” que escolhe subsumir àquilo que também escolhe para configurar-se como parâmetro normativo legítimo.

Frente a isto, admita-se a hipótese de que a pormenorização excessiva do direito positivo passa a dificultar, cada vez mais, a subsunção simples de uma premissa menor que deva ser algo através da premissa maior. Neste quadro de dificuldades formais, o jurista científico assume – quando eventualmente consiga elaborar o silogismo correto – apenas a “fala do Estado” já que: a) não atenta para as outras possibilidades de subsunção oferecidas pela sistemática do próprio direito positivo na ordem interna e internacional; b) ignora a obrigatoriedade ética em justificar o parâmetro normativo escolhido para que possa convencer os envolvidos de que sua tese é a melhor possível

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para a vida dos destinatários, já que “falar-se pelo Estado” individualmente e por modos literais é pura metafísica ou literatura oficial.

Assim, o apego à subjetividade formal do modo de ser positivista pode chegar ao absurdo de levar o intérprete a confundir sua própria presença com o significado geral e abstrato de instituições que precedem a sua experiência concreta do mundo – uma “totalitariedade” perigosa, principalmente para os que julgam. Frente a isto, qual uma tarefa ética; a pergunta kantiana voltada ao “que devo fazer?” deve se imiscuir ao expediente de intérpretes oficiais, para que cada vez mais a relação problemática entre ego e autoridade seja equalizada na autocompreensão de instituições políticas e institutos jurídicos como expressão pura da soberania popular e não dos fetiches meritocráticos ou da opinião que se tem sobre si mesmo. Isto porque a emissão de atos jurisdicionais – decisões coercivas – deve legitimar-se constantemente; nem tanto por não se constituir diretamente das maiorias políticas, mas, principalmente, em prol da possibilidade de se publicizar ainda mais os atos normativos que se reputem, pela própria experiência judicial, como “acertos” do expediente democrático e da ordem internacional. Em outras palavras: a partir da justificação de atos normativos que se reputem como os mais adequados para a resolução de problemas mundanos; sendo, pois, a tese mais adequada para argumentações em debates substanciais a partir de conceitos universais.

O processo de justificação ganha ainda mais relevância na dialética judicial, já que textos legais são evocados sucessivamente em razão de argumentos que, em um primeiro momento, exigiriam, para sua aceitação inicial, correspondências imediatas (exegéticas) com o direito positivo. O aspecto produtivo da justificação da positividade através de argumentos reivindicativos ou, de outro lado, para a manutenção de um status quo através da denegação de uma reivindicação ética, encontra-se na possibilidade de que no decorrer expositivo de teses jurídicas – admitindo-se um procedimento contraditório que vá do superficial ao substancial – as motivações reais das partes sejam expostas gradualmente pelo do rol de convicções universais que se pressupõe defenderem[11]. Por conseguinte, quando as convicções são assumidas em um confrontamento produtivo entre pedir, contraditar e resolver; a questão debatida, mesmo em seu a priori jurídico, se imiscui no âmbito de sua imanência filosófica, ética e moral, sendo, ainda, um campo propício para renovações na conceitualidade do direito e da tarefa de significar, na prática, o que são direitos humanos em sua originalidade e universalidade.

Dworkin[12] atenta para estes fenômenos produtivos ao afirmar que as divergências entre votos de juízes se tornam relevantes quando divergem sobre a própria ontologia do direito mesmo que em decisões rotineiras. É neste sentido, por conseguinte, que se deve legar mais importância às possibilidades latentes da dialética judicial e das práticas jurídicas imediatas, já que a produtividade do conhecimento do direito – enquanto acúmulo advindo de experiências pessoais – não logra autenticidade a partir de elucubrações individuais da teoria. A produtividade e utilidade do discurso jurídico depende, afinal, da comunhão contemporizada de interesses[13] humanos reconhecíveis e respeitáveis em razão de noções mínimas do que significa “humanidade” e para que serve a “sociabilidade”, pressupostamente aceita na formação educacional de intérpretes oficiais.

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Tendo em vista as vicissitudes de casos concretos, o otimismo imputado à dialética inerente ao processamento de questões humanitárias (falando-se, aqui, de maneira nominal); ou seja, os casos em que se evocam normas abstratas de direitos humanos a partir da alegação de situações de vulnerabilidade; deve-se à possibilidade de que, na seqüência racional e contraditada de argumentos; as convicções éticas transpareçam na forma da motivação real e constatável que, de fato, levaram aos preceitos normativos escolhidos, ou seja, como justificação concomitante à apresentação adequada das fontes positivas pelos partícipes que, por motivos oriundos de suas convicções éticas e, mesmo políticas, não reconheçam, por acaso, a incidência de direitos humanos naquele caso. Diga-se, contudo, que não há um aparato lógico concebido a priori para tanto. Pode-se dizer apenas que a compreensão autêntica das questões de fundo concernentes a debates universais relativos à igualdade antropológica do homem pode possibilitar consensos que se tornam cada vez mais necessários em práticas corriqueiras das jurisdições internas.

Tal resulta, ao final, em mecanismos transcendentais (formais) de afirmação da univocidade imanente do Anthropos enquanto vitalidade pura – os direitos humanos como promoção da vida do homem em suas mais variadas determinações simbólicas – e não por perversões que tentam se justificar pela razão histórica – como pode ser constatado nas noções de superioridade ocidental, do racismo[14] e de outras disposições subjetivas que impossibilitam a compreensão autêntica de sistemas simbólicos que porventura se aproximem através do exercício hermenêutico da razão de semelhança[15].

A necessidade de consensos – sobre conceitos humanísticos – deve emergir, também, da confrontação dialética de partes que evocam teses jurídicas e não apenas da produção teórica. Isto porque os direitos humanos não são um discurso ideológico, nem apenas mais um ramo recente do direito a ser conhecido por reproduções literais das convenções, a partir do método positivo. A literalidade normativa das convenções sobre direitos humanos simbolizam mais um status quo temporalizado que necessitaria de desdobramentos substanciais e não apenas normativos já que haveria, neste último caso, redução ao infinito: os textos posteriores repetiriam com outras palavras o evento inicial. Como ressaltado, a literalidade do direito positivo moderno é objetiva e alheia a talentos pessoais. Não há nenhum gênio literário que mereça ser seguido à risca por aquilo que é e diz (mens legislatore); tal qual se pode encontrar, em exemplos históricos, nos antigos textos judaicos ou, posteriormente, na pregação cristã do final do Império Romano. É inapropriado, portanto, buscar-se compreender os direitos humanos tão somente como um compartimento contemporâneo do direito positivo (uma invenção ou um “ramo” recente do direito) ou como resultado da ideologia do pós-guerra – embora tal argumento possa servir para se compreender o significado de sua literalidade inicial e o grau de validade (legitimidade) que subjaz à conformação internacional daquele período.

Desta maneira, o significado histórico a ser interpretado da promulgação das convenções internacionais de direitos humanos deve ser interpelado por efetuações hermenêuticas; já que lá há algo a dizer que não pode ser desvelado apenas pela reconstrução teórica ou pela repetição catequética de sua literalidade. Neste esteio, conhecer do significado dos direitos humanos exige, acima de tudo, que se interprete sua significação ontológica – a razão de ser de sua instrumentalidade para o tempo – para que a fala de sua positividade ganhe sentido reconhecível por qualquer pessoa e

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que possa, afinal, se assemelhar a outros sistemas simbólicos provenientes do direito consuetudinário de outros povos ou minorias. Esta postura contribui para a compreensão universal do significado dos direitos humanos enquanto um evento em prol da univocidade imanente do ser humano e que já que serviria para aproximar pessoas a partir da assunção de disposições que envolvam o reconhecimento da dignidade inafastável do outro.

Estas disposições se medeiam por noções éticas de “certo” e “errado” que possam, por acaso, ser reconhecidas e discutidas pela maior parte de intérpretes referenciados, objetivamente, a um mesmo sistema de pré-juízos e que possam, ainda assim, reconhecer a semelhança de outros “sistemas”. As questões humanas – como resultados de ofensas consideradas “maiores” porque indignas à condição mesma de ser humano – necessitam, para mais do que uma subsunção aleatória do aparato coercivo, de decisões eticamente adequadas para o presente e dispostas em prol da integridade do direito para o futuro. A apresentação de teses jurídicas a partir de subsunções lúdicas, mesmo que se revistam dos mecanismos retóricos e estéticos da literatura oficial, não remete os intérpretes às noções universais e internamente convictas sobre aquilo que é considerado – aos olhos de todos – como “certo” e “errado”. Apenas com sua demonstração inter alia à justificação substancial de sua razão de ser para a questão debatida; é que as fontes do direito positivo podem lograr dispor intérpretes à hermenêutica de sistemas binários – subjetivamente convictos nas partes – sobre aquilo que se considera, eticamente, “certo” e “errado”. No estágio de aferições duais sobre o que se “julga” certo e errado o consenso se torna possível já que referenciado ao pathos das convicções de pessoas que agem por boa fé. Tal se diferencia, ressalte-se, de sistemas cognitivos e semânticos determinados apenas por resultados categóricos do que é “lícito” e “ilícito”, já que estas categorias não se legitimam por si mesmas – como, ao contrário, acontece na certeza eticamente convicta sobre condutas reputadas como a melhor ou a pior para a integridade do ser humano em nível presencial e simbólico.

O resultado consensual a partir de certezas convictas torna-se ainda mais produtivo porque estabelece parâmetros substanciais para a experiência posterior do direito – tal como escreve Dworkin em sua Teoria da Integridade. As reflexões contemporâneas sobre o direito – na superação que desejam realizar sobre o método positivo – trazem a validade ética e moral (no sentido da moralidade pública e política) como um aspecto inseparável da teoria e da prática jurídica. É claro que, para se chegue a estágios propícios ao consenso, a dialética procedimental do processo judicial deve procurar afirmar-se cada vez mais sobre: a) mecanismos interpessoais de cortesia[16] que propiciem o agregamento de outras falas que não a fala do Estado – já que esta fala possui identidade apenas consigo mesma, ou seja, é incapaz de articular a fala semelhante de códigos jurídicos não-identitários; b) mecanismos mais precisos para trespassar discussões protelatórias decorrentes da repetição de teses jurídicas que se diferenciam apenas por apresentarem-se sob outros parâmetros de direito positivo – ou seja: reivindica-se o mesmo através de apresentações sucessivas de teses abstratas praticamente inesgotáveis; c) procedimentos substanciais para a condução moral do debate em paralelo à apresentação literal de fontes do direito positivo pelas teses das partes – o aspecto procedimental deste quesito exigiria talentos pessoais dos sujeitos envolvidos, principalmente dos juízes.

Estas premissas devem ser usadas, inicialmente, para interpretações autênticas sobre as regras procedimentais que estruturam o processo do expediente jurisdicional. A

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literalidade das normas procedimentais de casos judiciais é objetiva – pois não há um gênio produtor que a criou. A objetividade literal do direito positivo permite a validade do argumento de que, pelo menos imageticamente, haja uma “textura aberta” da norma tal como concebera Hart. É possível afirmar, por conseguinte, que a fala do Estado – alheia à justificação da razão de ser sua coercividade imanente – é apenas uma das linguagens que a interpretação corriqueira pode produzir. Mesmo que seja assumida como a fala ultimada do direito, o modo comunicativo do Estado – que cada vez mais perde sua antiga sofisticação estética pela diminuição atual do tempo útil à escrita autêntica e pelo jacobinismo inevitável das modernas articulações democráticas – pode se sofisticar por conceitos universais e pela compreensão adequada do advento da positivação de direitos humanos para a experiência do direito como um todo.

Quer-se dizer, com isso, que interpretações pragmáticas sobre regras do procedimento legal podem lograr uma aproximação maior com a questão humanitária na medida em que se compreenda a ontologia do processo de direitos humanos por um modo dialético que se reinicia quando teses jurídicas se confundem – em uma relação de identidade – com as convicções éticas das partes (por aquilo em que de fato se acredita). A tese final – aferida de reinícios onde se expõe motivações reais através do procedimento – pode, ocasionalmente, estabelecer-se como sentença a partir do con-senso comum de convicções que se correspondem substancialmente porque ligados a princípios éticos reconhecíveis por todos. Quando as convicções compartilhadas por partes opostas se materializam em sentenças judiciais, a experiência futura da jurisdição sobre direitos humanos ganha em elementos substanciais para manter sua Integridade enquanto órgão transcendente à soberania estatal porque relacionado, justamente, ao ser humano concebido pela unidade antropológica e pela moderna igualdade política – uma das premissas para se compreender porque se deve respeitar a “dignidade da pessoa humana”, sabendo-se, por conseguinte, o fundamento filosófico deste pleonasmo.

Para mais, a tarefa de se legitimar o direito positivo expondo-os por seu código ético e ontológico – por sua razão de ser para aquela situação – ganha espaço apropriado para que pressupostos normativos sejam autenticamente aceitos pelos destinatários – como no respeito popular ao gênio individual de legisladores políticos e religiosos no passado. O que se defende, afinal, é que a processualidade do debate rotineiro retorne às suas determinações originárias onde falas contraditadas se ultimam em conclusões éticas gerais e aceitáveis por qualquer agente aberto ao diálogo; já entendido como fator de humanidade e não de pura coercividade. Tal não deve ser interpretado como apologia irrestrita às noções primitivas do debate oratório, mas como um mote para se pensar na própria ontologia do processo enquanto conjunto de possibilidades esquecidas que ainda podem emergir e estabelecer diálogos autênticos em questões de direito e sobre o que seja, naquele caso, um direito humano.

Esta autenticidade deve simbolizar a aproximação cada vez maior do conhecimento formal das partes que “operam” o direito em práticas de rotina junto ao significado autêntico dos direitos humanos – compreendendo-se melhor o seu fundamento enquanto unidade antropológica e não como uma lúdica inconseqüente; uma ideologia de políticos ou por simples invenção do mode de vie ocidental. A disposição para o reconhecimento da unidade do ser humano, enquanto fruto do exercício de uma filosofia prática, não é metafísica porquanto presencial: em processos judiciais – principalmente em cortes com boas condições materiais – os diálogos abertos à alteridade de concepções semelhantes, como a de grupos minoritários com relação à maioria política

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e, como no caso Yatama, a de indígenas e não-indígenas; possuem condições de se realizarem a partir dos mecanismos concretos da cortesia – que exigiriam paciência, tato e imersão em uma filosofia prática do sensus communis e do talento cosmopolita e humanista, – indispensável a juízes e demais intérpretes oficiais.

Ademais, a dialética ideológica de casos concretos pode lograr condições desenvolvendo-se em concepções hermenêuticas propícias à lógica substancial dos direitos humanos a partir dos mecanismos procedimentais já existentes no direito positivo interno e na ordem jurídica internacional. O fim do curso processual, como fim resolutivo de questões de direito, podem gerar preceitos autênticos quando abstraído dos níveis em que as falas contraditadas ganham apelo substancial, ou seja, quando se tornam questões éticas e aproximadas à vivência imediata do ser humano univocamente concebido. Nesses níveis, a literalidade da discussão ganha maior sofisticação porque as teses jurídicas de ambas as partes já não evocam as fontes corriqueiras, pois as normas abstratas “adequadas” já lograram serem identificadas a partir dos resultados decorrentes da justificação ideológica das fontes normativas anteriormente e, muitas das vezes, aleatoriamente evocadas.

Desta forma, os acertos dos expedientes democráticos internos – que promovem a integridade ética de suas legislações – e da ordem internacional, são identificados em suas “normas mais adequadas” porque foram conduzidas por discussões que possibilitaram aos partícipes discutir sobre convicções éticas recíprocas e verdadeiras. De modo esquemático, a relação é circular: as convicções morais e éticas, qual um pathos inicial, situa a questão em seus parâmetros consensuais e, em já se falando sobre a mesma coisa e reconhecendo os motivos éticos da reivindicação e do pedido de denegação, a discussão volta para seu âmbito ético irrecusável já sob os parâmetros lingüísticos e normativos do direito positivo – que serviria, no processo sobre direitos humanos; como o padrão consensual mínimo sobre o que se pode e se deve fazer frente à situação. A identidade final das convicções, possibilitada pela própria lógica universal que envolve as questões humanas, pode se manifestar como fenômeno da prática jurídica mesmo que de início estejam determinadas por posições diametralmente opostas. É dizer: a lógica universal inerente à substancialidade dos direitos humanos permite aos intérpretes – quando estes se conduzem de modo ético – que exponham suas motivações reais sobre a reivindicação ou a denegação que acreditem ser, sinceramente, uma questão de direito e não apenas de opinião política, interesses despropositados ou preconceitos estéticos, sobre o que seja o “melhor” e “único” modo de ser para o “agir” do homem no mundo.

A razão de semelhança – que ajudaria a promover o encontro possível de convicções iniciadas em sistemas simbólicos diferenciados – não deve ser vista como uma deferência piedosa do juiz ou da parte oposta para aquele que vive “de modo diferente” e que reivindica uma condescendência despropositada, mas como parte integrante de modelos compreensivos aptos a se aproximarem cada vez mais do significado real dos direitos humanos, quando reivindicados, e no que trazem de melhoramentos para a vida con-temporizada do homem concebido nos condicionamentos de uma unidade antropológica inafastável. Assim, as convicções identitárias que logram maior possibilidade entre seres humanos referidos ao mesmo sistema simbólico – como o consenso existente sobre aquilo que é considerado “errado”pela vivência ocidental – podem ser tornar, ao menos, semelhantes, nas situações que envolvem alteridade. Tal ocorre quando a relativização hermenêutica de padrões sociais e jurídicos passa a

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permitir, ao intérprete, que reconheça, por sua boa fé, a humanidade e o “agir” assemelhado do outro. Para intérpretes oficiais, que agem em processos, esta tarefa consiste em vislumbrar os co-princípios de conduta que ordens jurídicas distintas compartilham mutuamente através da unidade con-temporizada do anthropos que, primordialmente, ainda mantém sua univocidade através de uma condição unívoca natural – mesmo que tal univocidade se manifeste por sistemas simbólicos diferenciados, como no caso das diferenças encontradas entre concepções de indígenas e não-indígenas.

Com efeito, através do viés lógico e pela disposição hermenêutica que informa a atitude interpretativa[17] na prática do direito, a universalidade pressuposta na própria linguagem dos direitos humanos permite, afinal, que convicções identitárias ou semelhantes sejam compartilhadas pelos que participam de processos abertos à lógica substancialista capaz de justificar a razão de ser das normas abstratas evocadas por partes contrárias e, evidentemente, pela própria parte reivindicante. Todavia, como já ressalvado, a condução idônea de discussões complexas – sinceras, já que concernentes à condição e à determinação mundana de seres humanos – dependeriam de interpretações mais elaboradas sobre a cortesia possível entre seres que compartilham da unidade antropológica – que aqui se assume como inafastável – mesmo a despeito das diferenciações simbólicas que os separam quando dispostos nos procedimentos formalizados de processos judiciais. Quer-se sugerir, pois, que o processamento e o julgamento de questões humanas de cunho universal possam, cada vez mais, ganhar seu esteio apropriado de acordo com a ontologia que lhas precedem. Mesmo que a idéia de uma cortesia natural entre seres humanos seja fruto de um suposto romantismo rousseauniano, ou da indiferença com relação a uma (outra) suposta natureza agressiva dos homens quando, como pensara Hobbes, se encontram em um estado natural de divergência competitiva; a sua validade persiste enquanto critério legítimo para a elaboração de procedimentos aptos ao diálogo autêntico e àquilo que os homens esperam de si mesmos, dos outros e das suas instituições jurídicas, seja de qual sistema simbólico possam provir.

3. Aspectos Práticos: notas sobre os raciocínios judiciais denegatórios não justificados no caso Yatama.

A jurisdição, enquanto “racionalização” integradora do direito produzido pelos procedimentos da democracia, não deve perder a qualidade histórica de apresentar-se como a instância mais propícia à discussão e reconhecimento dos fundamentos do direito a partir de sua praticidade absoluta e através dos elementos auto-referenciados de sua positividade. Mesmo que o empirismo de juízes e de partes processuais ligadas a aplicações automatizadas das fontes normativas da política rotineira seja inevitável; a jurisdição não pode perder a função de aperfeiçoar a vigência de positividades a partir da integração dessas fontes aos fundamentos do direito através da compreensão adequada dos casos concretos – ou seja: do que estes casos têm realmente a dizer para a globalidade dos direitos humanos, no sentido de uma aproximação cada vez maior junto ao que se pode considerar como seu significado autêntico.

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A matéria de princípio, contra qualquer objeção positivista, não está em leis revogadas – já que a lógica substancial transcende as formas retóricas de atos normativos vigentes e de leis revogadas – mas sim nas conseqüências produtivas advindas da compreensão hermenêutica situada pelo diálogo aberto pautado em demandas de convicção que justificariam a legitimidade dos atos emanados pela rotina política da democracia – trata-se, pois, de uma tarefa ética e não de “operação” do direito. De todo modo, a compreensão de situações de fato a partir da lógica substancial dos direitos humanos não simboliza, ademais, desprestigio às fontes internas, nem ativismo ideológico, nem mesmo um ato puro da boa fé. Deve-se, afinal, defender a idéia de que tais direitos fazem parte da lógica decisória de questões corriqueiras, mas que ainda assim se revestem de um apelo humanitário e global. Deste modo, afirme-se que: a positividade dos direitos humanos, mesmo que oriunda de convenções internacionais deve fazer parte do expediente mais elementar das jurisdições internas.

As normas abstratas de direitos humanos que poderiam, de antemão, integrar o expediente interno da jurisdição nicaragüense – quando, por exemplo, da resolução da demanda indígena no ultimo recurso de amparo interposto na Suprema Corte – referem-se, formalmente, à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Cumpre dizer, afinal, que as alegações do partido Yatama lograram reconhecimento apenas na sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos[18]. O fundamento abstrato do pedido concerne ao art. 1º do Pacto de San José da Costa Rica (obrigação de respeitar os direitos); ao art. 2º (dever de adotar disposições de direito interno); ao art. 8º (concernente às “garantias judiciais”); ao art. 23º (referente aos direitos políticos da elegibilidade e do sufrágio universal igualitário e por voto secreto); ao art. 25º (que visa à “proteção judicial”). Substancialmente, o teor dos dispositivos evocados a partir da Convenção Americana se alinha à tradição histórica da materialidade das constituições. Daí refutar-se, como impróprio, qualquer argumento que exclua a positividade destas normas abstratas a partir da tese do sopesamento ou do respeito às normas procedimentais expedidas pelo órgão eleitoral (a resolução do “Consejo Supremo Electoral” nicaragüense).

É pela correspondência substancial entre o comprometimento internacional por direitos humanos (do qual o estado nicaragüense é signatário) que a jurisdição – enquanto interpretação vinculada, também, à compreensão de questões humanas de apelo universal – deve regular o excesso de fontes internas ao conduzir o debate para sua matéria de princípio, ou seja, para discussões que exponham os fundamentos do direito em prol de soluções que ganhem em integridade para o futuro de outras gerações[19]. Neste mesmo esteio, o caso Yatama pode demonstrar até que ponto a jurisdição interna se desqualifica em sua razão de ser – enquanto instância de melhoramento da teleologia positiva – quando reduz a atuação jurisdicional a expedientes puramente administrativos e burocráticos.

A relação entre jus e positum – que também remete à relação discutida por Habermas entre validade (geltung) e fato (faktizität) [20]– deve ser assumida enquanto tensão rotineira em prol da legitimidade do direito vigente e que ganharia maiores possibilidades na própria resolução judicial de casos concretos. As qualidades pessoais daquele que julga – uma das justificações das prerrogativas que possui – deve mediar as dificuldades quantitativas do expediente democrático não as assumindo para si. Isto não pode, nunca, ser confundido como desrespeito à filosofia política da democracia e da idéia de leis decorrentes de maiorias políticas. Trata-se, pois, de uma reorganização

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produtiva do que a vigência positiva oferece enquanto parâmetro normativo mais adequado para a linearidade temporal (íntegra) de casos concretos a serem resolvidos. De outro modo: o entendimento meramente formal dos conceitos de vigência e eficácia apenas gera aporias e a visão grotesca do mundo da vida – ou da faktizität – enquanto um jogo a ser regrado com normas claras, definidas e de aplicação automática a ser efetuada pelo “operador do direito” – isto é, afinal, pura metafísica já que o texto público da positividade não pensa por si mesmo; não se aplica ao mundo por sua vontade literal ou pela mens de seu legislatore.

Este tipo de crítica é enfatizado para se demonstrar que no caso concreto a que nos referimos; a situação de violabilidade sobre direitos políticos proveio, mormente, de posturas imediatistas no cerne da jurisdição nicaragüense e que ensejariam a compreensão do caso Yatama como questão precípua de direitos humanos.

Pela sentença do caso (pág. 46) constata-se que antes da publicação da resolução pelo “Consejo Supremo Electoral”, que inabilitava os candidatos da Yatama a participarem das eleições municipais (das regiões da “RAAN” e da “RAAS”), havia, formalmente, uma situação favorável ao exercício da elegibilidade de indígenas neste país. Tal é constatado pela Corte Interamericana – na análise dos “feitos provados” – no que se refere às possibilidades fáticas anteriores à publicação da lei eleitoral nº 331 de 24 de janeiro de 2000. Isto porque nas leis eleitorais anteriores – de 1990 e 1996 – não havia qualquer preceito que obrigasse associações populares – constituída para a defesa de interesses indígenas – à conversão em partido político para que, tão somente por esta “forma”, os indígenas pudessem defender interesses nas estruturas democráticas do estado. Ao revés das leis anteriores, a lei eleitoral nº 331 já pode ser vista como o “início” de um confrontamento improdutivo entre a necessidade burocrática da formalização dos procedimentos estatais – para a realização de eleições – frente ao direito consuetudinário dos indígenas. A violação vai do abstrato ao concreto quando da publicação da resolução pelo “Consejo Supremo Electoral” que, ao aplicar a nova lei sem qualquer relativização, acaba por denegar aos candidatos da Yatama o direito à participação nas eleições municipais das regiões da RAAN e da RAAS no ano 2000.

Como já ressalvado no item anterior, deve-se saber até que ponto o raciocínio subsuntivo pode se configurar como uma justificação per se do direito positivo em sua pretensão permanente de legitimidade. No caso em tela, a denegação de direitos políticos – iniciada com a publicação da resolução por interpretações automatizadas em subsunções pelos parâmetros da nova lei – se justificaria, a priori, pelo não cumprimento, pelos indígenas, das formalidades impostas pela nova lei eleitoral nicaragüense. O não cumprimento formal diz respeito à suposta falta de inscrição de candidatos indígenas em uma lista oficial a ser utilizada para a homologação oficial de candidatos. Os indígenas da Yatama alegaram que a lista foi conformada, embora não tenha sido considerada pelos órgãos eleitoras que não o fizeram em razão do fato de que um dos três partidos que se coligariam à Yatama – sendo que um desses três seria o partido que representaria a “bandeira” eleitoral – não atingiu a porcentagem de inscritos exigida pela nova lei eleitoral. A Yatama promoveu “recurso de revisão” contra o teor da resolução publicada pelo “Consejo Supremo Electoral” para que, então, pudesse continuar o processo de homologação por sua própria bandeira e a partir dos candidatos que inscrevera em sua própria lista. Não obtiveram resposta do órgão.

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A análise da situação volta, portanto, ao seu estágio inicial: as seqüências de subsunções efetuadas pelos parâmetros da nova lei podem justificar – de maneira “justa” – a denegação de direitos políticos? Melhor ainda: a não observância de regras formais por parte dos indígenas tornaria “injusta” a sua participação nas eleições? No primeiro caso, trata-se de violação de direitos políticos na medida em que se trata de um grupo que, por sua alteridade, poderia enfrentar situações de vulnerabilidade na medida em que seus interesses – pautados pelo mesmo fato da alteridade – não encontrariam respaldo na atuação positiva do poder público. É temeroso alegar má fé dos agentes estatais quando realizam denegações deste tipo, porém não há dúvida de que se pode constatar, aqui, a falta de interesse; a incapacidade para o diálogo e a falta de tato para lidar com situações de alteridade. Tendo em vista um dano evidente – a ausência de representação política – que levaria necessariamente a uma situação de vulnerabilidade (como ofensa à dignidade e à determinação vivencial de seres humanos); pode-se dizer, afinal, que as teses pautadas na automação imediatista da subsunção não justificam a atuação estatal neste caso. Trata-se, ademais, de pura coerção.

A mesma falta de tato e capacidade para lidar com situações que envolvem alteridade e a mesma desconsideração com a necessidade da relativização hermenêutica sobre padrões jurídicos vigentes – porém diferentes – pode ser constatada no procedimento efetuado pela Suprema Corte da Nicarágua. É nesta instância que, por fim, as normas abstratas de direitos humanos poderiam ser evocadas de maneira mais incisiva, tendo em vista o fato inconteste de sua desconsideração no expediente jurisdicional da suprema corte nicaragüense. A corte seguiu o raciocínio subsuntivo da aplicação espaço-temporal do direito positivo e reafirmou apenas a faticidade da resolução – a legislação interna “cumprida” às cegas – sem atentar-se para sua validade (legitimidade) que dependeria de sua justificação ética (razão de ser) a partir de interpretações e exposições argumentativas mais complexas e aberta à refutações dialógicas. Com isto, quer-se dizer que a pormenorização excessiva do direito positivo – aumentada quando a jurisdição assume as dificuldades do expediente democrático na aplicação do direito – deve validar-se não por sua demonstração ou reprodução literária, mas sim por argumentos que traduzam a razão de ser daquela “norma” para os interesses do estado ou da sociedade frente a uma reivindicação ética de um grupo minoritário. Não seria injusto para ninguém que, afinal, os candidatos da Yatama participassem das eleições. Neste sentido, a obrigação em justificar a denegação justificando-se o próprio parâmetro normativo escolhido – e não apenas demonstrando a sua vigência – se torna ainda maior.

No último “recurso de amparo” promovido pela Yatama, a Suprema Corte nicaragüense argumentou que, em razão de regras procedimentais internas, não poderia anular as decisões resolutivas do “Consejo Supremo Electoral”. É dizer: levou em consideração apenas um padrão da normatividade, sem atentar-se para outros padrões que possuem a mesma faticidade e que ainda se encontram em uma “instância” de maior validade ou legitimidade: como, no caso, as normas abstratas de direitos humanos. Além do mais, já com os recursos internos do direito positivo nicaragüense – como os direitos fundamentais presentes na constituição – a tarefa hermenêutica da relativização já poderia ser efetuada: a lei eleitoral anterior (mais benéfica) não possui ultratividade, mas o fato de sua vigência em um período imediatamente anterior é um dado a ser considerado para a compreensão da situação como um todo – mesmo pelo “operador” mais robotizado da norma jurídica.

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A desconsideração das instâncias positivas de maior validade – como os direitos constitucionais fundamentais e as normas abstratas de direitos humanos presentes nas convenções pactuadas – é um dos déficits maiores na aplicação do direito positivo. O positivismo enquanto metódica subjetiva que organiza a ordenação legal sem interpretar a faticidade (obviedade do que existe) desta organização no que ela possui de mais ou menos válido (legitimidade) é um dos entraves à compreensão humanizada da prática jurídica oficial. A pormenorização excessiva das legislações leva o debate teórico sobre o direito ao problema inafastável de sua legitimidade imanente. Em termos simples: a auto-referência contemporânea do direito positivo deve ser entrecortada pelo que deve ser considerado como acerto(s) legítimo(s) do expediente democrático. A qualificação do que é legítimo; não é, ao todo, uma tarefa de cunho monocrático. O esteio da legitimação é coletivo e denota um dos modos mais sólidos de exercício da cidadania fora ou dentro de processos judiciais. Se a aplicação do direito – jurisdição – fosse puro silogismo (confrontamentos de premissas formais); a criação de softwares poderia muito bem facilitar o trabalho dos “operadores”. Todavia, trata-se de um encontro de pessoas com pessoas; onde os fundamentos da vida em sociedade e do ser-com ganhariam condições de encontrarem seus princípios fundadores nos diálogos produtivos que podem produzir mediante os já evoluídos mecanismos da Cortesia em procedimentos judiciais.

Deste modo, não se trata, ademais, de desinteresse ou incapacidade técnica para o reconhecimento de padrões positivos de maior legitimidade, mas sim de incapacidade para o entendimento e para diálogos de alteridade. A indiferença pelo modo de ser do outro que é conosco deve e pode ser mitigada pela compreensão plena do que significa a emergência normativa dos direitos humanos na história e, obviamente, como um padrão positivo de maior legitimidade. Daí afirmar-se que sua desconsideração no expediente jurisdicional rotineiro é uma falta ética e, para os que não acreditam ou não entendem a praticidade deste ethos; trata-se, então, de simples imperícia e falta de zelo com as conquistas históricas da positividade e do manual que este instrumental pode dispor ao melhoramento da vida humana univocamente concebida.

4. Conclusão

A tarefa de justificação de argumentos formulados pelo direito positivo deve ser assumida como parte inafastável do expediente judicial. Os questionamentos críticos da teoria do direito – ultimada pelos modelos compreensivos da hermenêutica filosófica – servem para que diante das condições materiais oferecidas pelo instrumental legislativo, as proposições jurídicas de reivindicação ou denegação possam ser mais bem justificadas para que, assim, possam servir como fundamento legítimo para o que se procura obter com decisões judiciais no presente e em prol do futuro (integridade). Desta maneira, a crítica – como razão de reconstrução – não recai absolutamente sobre preceitos jurídicos abstratos. Para mais do que criticar-se o direito abstrato em si mesmo a pesquisa pela teoria do direito – ou pela teoria dos direitos humanos – também deve guiar-se pelos seus vieses mais práticos, é dizer, pela razão da escolha, bem como pelos motivos ideológicos e políticos que levaram partes processuais a escolher suas teses. A falha do modelo de regras – enquanto epistemologia para o direito positivo – está em

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pressupor um preenchimento absoluto da esfera do “dever ser” com relação ao mundo do “ser”, de outra maneira: por pressupor que para cada fato do mundo há um preceito claro e definitivo, como em um jogo desportivo em relação às suas faltas abstratamente cominadas.

A escolha de um preceito e não de outro denota, na maioria das vezes, o amálgama de pré-concepções de ordem ideológica (filosófica, política e epistemológica) que, quando reconstruídas pela teoria (ou pela prática rotineira dos próprios intérpretes), revelam, no mais, preconceitos ilegítimos assumidos e “mascarados” nos e pelos argumentos de teses jurídicas que não conseguem se legitimar por sua simples demonstração. Se o caminho que leva à resolução de litígios se pautasse na ultimação ontológica do que se quer com a idéia de processo, a discussão de questões humanas a partir do instrumental do direito positivo poderia pôr à sua melhor exposição tudo aquilo que o aparato legislativo traz para o que sociedades ou comunidades desejam conjuntamente para si. Melhor dizendo: se a ontologia do processo fosse assumida como aferição gradual das motivações reais dos que pedem e pretendem legitimidade através de seus próprios argumentos; o direito positivo poderia cada vez mais se instrumentalizar na ultimação do que tem a oferecer enquanto rol de textos públicos para discussões situadas sobre o bem comum e não apenas enquanto preceito fático da coercividade estatal.

Tal instrumentalização aconteceria como evento imediato do mundo – em casos concretos – a partir do rol de preceitos abstratos disponíveis que exigiriam justificações paulatinas – para que, afinal, a motivação real das escolhas normativas transparecesse à discussão pública levada a cabo por intérpretes que assumem tanto a fala do Estado, quanto a fala de minorias, de grupos políticos ou de indivíduos. A exposição de motivações convictas – que se identificam a um fundo comum de princípios universais – se imiscuiria, assim, com aquilo que o processo de direitos humanos deve ser enquanto debate substancial de concepções e convicções sobre política e sobre o que é o direito para a vida de pessoas em igual tratamento.

Desta forma, o decurso contínuo da justificação de preceitos normativos exporia a todos o fundo comum de princípios compartilhados e reconhecíveis por todos. Neste seguimento produtivo, a boa fé do legislador da maioria política de um estado não seria usada para fundamentar – de modo retórico – as motivações preconceituosas que se queiram revestir como norma universal. É desta maneira que, se quisermos falar pela metáfora fenomenológica, a “coisa mesma”, a ser conhecida na experiência de processos judiciais sobre direitos humanos, transpareceria aos intérpretes naquilo que possui de significativo para a integralidade posterior do direito: o preceito abstrato dependeria, para sua validade absoluta – enquanto parâmetro de resolução legítima –, de justificações éticas, políticas e filosóficas que seriam, também, um assunto corrente do expediente judicial interno, mesmo em sociedades complexas e velozes. Aquilo que se quer com princípios de ética, moral e política seriam cada vez mais compreendidos – na manualidade que oferecem – porque discutidos no cotidiano e na vida mundanamente compartilhada. A coisa mesma do processo – que justificaria a fortiori sua razão de ser – estaria à mão para opiniões legítimas porque sinceramente dispostas por sujeitos éticos que agem por bom senso e por uma racionalidade comunicativa eticamente reconhecível por outros em sua razão de ser.

Tal se configura na matéria de princípio que a questão humana exige para sua resolução, mesmo a despeito de toda construção coerciva disposta por um rol inumerável de

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preceitos normativos abstratos das ordens internas frente à positividade dos direitos humanos. De outra maneira, isto simboliza a exigência ética de que os sujeitos efetivos que representam opiniões universais na contingência de sua rotina passem a assumir a realidade de direitos humanos em sua significação política, ética e filosófica. O processo enquanto sucedâneo procedimental de atos substanciais de justificação da coercividade eleita por parâmetro ganha, desta maneira, em integridade para a sua experiência futura. É por esta via, ainda, que discussões sobre afirmações de direitos humanos abstratos ou da velha questão aporética da eficácia da fonte normativa ganha seu esteio próprio: a forma racional da dialética judicial tenderia a expor a questão moral, ética, filosófica, política e humanitária na reconstrução hermenêutica do próprio direito positivo a partir de sua unidade imanente.

Teoricamente, a assunção destas premissas possibilita que, nos iter finais da resolução judicial de questões humanas, as convicções subjacentes à escolha de preceitos normativos possam finalmente lograr um encontro ou um desacordo racional porque justificado na realidade das motivações concretas. No último caso – o de desacordo de argumentos morais de convicção – a autoridade formal legada à jurisdição passa a ganhar, pelo menos, em elementos substanciais de ponderação e racionalização de interesses convictos opostos. Ter-se-ia, enfim, por tais premissas, a verdadeira ratio decidendi da sentença judicial no sentido de que, ao entrever sua verdadeira racionalidade, as instituições jurídicas pactuadas passam a ganhar em argumentos de legitimidade para debates autênticos em qualquer outra contestação de ordem contingente.

É possível concluir, por fim, que a legitimação da jurisprudência enquanto fonte normativa eficaz para o debate e resolução de casos de direitos humanos ganha, neste esteio característico, o fundamento deontológico para sua auto-referência; a partir do expediente rotineiro da jurisdição já motivada por uma dialética substancial e produtora de conceitos adequados – contemporizados em sua universalidade – de política, filosofia e direitos humanos.

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[1] Cf. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007; HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade, vol. I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. Seja como filosofia ou como razão prática; a possibilidade de justificação das fontes normativas enquanto viés pragmático para o enfretamento do problema da legitimidade do direito singulariza-se nas obras de Dworkin e Habermas

[2] Cf. GEERTZ, Clifford. Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Questão de debate fecundo seria a crítica à falta de disposição para extrair conceitos jurídicos semelhantes (portanto, passíveis de serem relativizados na prática) a partir dos valores indígenas, ao se debater judicialmente estas questões. A disposição para o diálogo (tornado rotina) dirimiria até eventuais faltas de sofisticação antropológica de intérpretes diretamente envolvidos.

[3] Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. – 3ª Ed. -, 2.v. Petrópolis: Vozes, 1989. O ser-com da presença da vida humana e sua relação com um tempo humanamente

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compartilhado (o vivente antropológico [humano] em sua atualidade absoluta) não é um assunto místico nem misterioso, tampouco misantropológico. Heidegger trabalha o tema em suas devidas bases filosóficas (ontológicas) em sua obra da fase inicial.

[4] Cf. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 6ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1992 (p. 33 a 60). A razão de semelhança faz parte da genealogia do que se concebe por “epistemologia”. Foucault conduz a razão de semelhança a partir de sua construção histórica enquanto ferramenta da representação: desde a geometria euclidiana, a semelhança ganha relevo para as humaniore, passando, todavia, a ter um papel secundário a partir do século XVI. Em sua instrumentação conceitual, a razão de semelhança foi, durante um ínterim secular, a melhor “arte” da representação de símbolos visíveis e invisíveis.

[5] Cf. DWORKIN, Ronald. “Princípio, Política, Processo”. In: Uma Questão de Princípio. – 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005. (p. 105 a 133). É salutar que se compreenda o processo judicial a partir de sua ultimação enquanto processo de exatidão. Pela otimização de mecanismos, a probabilidade em se cometer injustiça – via decisões – diminui. O caminho para tanto se encontra, todavia, menos no aprimoramento formal da lei do que em melhoramentos na própria dialética substantiva da argumentação.

[6] Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. – 2ª Ed.– São Paulo: Martins Fontes, 2007 (p. 12 a 21). Referimo-nos, aqui, à crítica de Dworkin sobre os limites da abordagem profissional para a melhor compreensão da prática do direito a partir de outras nuances – como a dos princípios éticos imanentes e de fundo comum aos intérpretes.

[7] Cf.GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999. A principal obra de Gadamer reaviva a discussão filosófica sobre a validade dos métodos de interpretação; propondo, como complementação necessária, a compreensão sobre aquilo que, de fato, acontece quando do fenômeno da interpretação e não sobre aquilo que ela “deve ser” para o entendimento e compreensão de textos e fatos. O esteio fenomenológico da obra (Husserl e Heidegger) permite a extensão da universalidade hermenêutica para qualquer conteúdo de significação.

[8] Cf. GEERTZ, Clifford. O Saber Local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa In: O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 1998. A dignidade do ser humano vislumbrada em uma perspectiva universal exige modelos compreensivos; principalmente em situações onde a relativização de valores e conceitos se torna essencial para o entendimento intersubjetivo.

[9] Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. – 6ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998. É o confrontamento de fatos apenas com normas abstratas.

[10] Cf. GADAMER, op. cit. p. 326. Conceito desenvolvido de modo inicial por Wilhelm Dilthey e pela fenomenologia proposta por Edmund Husserl.

[11] Cf. HABERMAS, Direito e Democracia. Op. cit. p. 43. As convicções formam um complexo indiscernível de expectativas e orientações axiológicas. Sua importância para

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a compreensão da prática jurídica está em sua irrecusabilidade: seu conjunto forma um tipo de validade que se reveste do mesmo fato da norma. Refletem, afinal, a substancialidade do direito positivo – pelo menos em relação aos bens ou interesses fundamentais.

[12] Cf. DWORKIN, O Império do Direito. Op. cit. p. 390. Não há como separar o complexo de convicções do fenômeno da interpretação.

[13] Cf. PERELMAN, Chäim. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica. – 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005. O conceito de auditório universal formulado pelos que trabalham os elementos lógicos da Retórica tem validade hermenêutica, pois surge de uma dificuldade contemporizada da comunicação racional.

[14] Cf. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras , 2004. A compreensão da significação real dos direitos humanos também exige – pelo menos para a interpretação de sua normatividade primeira – que se leve em conta a reação humanista do pós-guerra com relação a disposições políticas inapropriáveis à vida política contemporânea.

[15] Cf. BOBBIO, Noberto. Dicionário de Política.- por Noberto Bobbio, Nicola Matteuci e Gianfranco Pasquino. Brasília, Editora UnB, 1986. (p. 447) A razão de semelhança – enquanto determinação racional da representação –, ganha maiores disposições práticas no estruturalismo metódico e no estruturalismo antropológico: nestes dois modelos a razão de semelhança seria o resultado da interpretação estrutural de elementos que se convertem em outro conjunto de elementos. A tensão entre o Mesmo e o Outro; serve-se também, da lógica aristotélica para sua melhor demonstração e comunicação. Para tanto vide ARISTÓTELES. Órganon. Trad. Edson Bini. Bauru - São Paulo: Edipro, 2005.

[16] Cf. DWORKIN, O Império do Direito, op. cit. p. 85. Dworkin sugere que o fenômeno da cortesia necessita de interpretações filosóficas a partir da compreensão de seu ethos histórico e que se tornariam, ainda, essenciais para o entendimento da prática social do direito.

[17] DWORKIN, Ronald. O Império do direito. op. cit. p. 56.

[18]Cf. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Yatama Vs. Nicarágua. Sentencia de 23 de Junio de 2005. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.

[19]Cf. HOLMES, Stephen. Precommitment and the paradox of democracy. In: ELESTER, Jon & SLAGSTAD, Rune (eds.). Constitutionalism and Democracy. Cambridge, Cambridge University Press, 1988.. O debate teórico sobre a melhor interpretação da constituição ou do direito positivo como um todo também pode ser mediada pela independência de cada geração de intérpretes. Todavia, a melhor interpretação deve também ser disposta como antevisão para o futuro das outras gerações.

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[20]Cf. HABERMAS, Direito e Democracia. Op. cit. p. 153. É corrente o problema da legitimidade do direito positivo a partir da reciprocidade tensa e inafastável destes dois parâmetros – o que é fato (lei) e a sua irrecusável pretensão de legitimidade perante intérpretes e atores sociais.