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A ENFERMARIA Nº 6 e outros contos Anton Tchekov ANTON Pavlovitch TCHEKOV nasceu em Tapanrog, nas margens do mar de Azov, na Rússia , em 1860, e morreu em Hadenweilcr, na Alemanha, em 1904. Neto de camponeses, re cebeu uma formação escolar precária, na província. Para prover às necessidades económ  família e custear os seus estudos de Medicina, em Moscovo, Tchekov escreve contos  humorísticos e crónicas, que publica em jornais. Em 1884 é editada a sua primeira r olha de contos. Datam também dessa altura as primeiras peças de teatro: Os Malefício do Tabaco (1886), Ivanov (1887, a mais importante das obras deste período), O Urso  (1888), O Pedido de Casamento (1888) e O Casamento (1889). É com a publicação de um novela, Â lístepc (1888), que Tchekov vê consolidada a sua posição de escritor. Dos s humorísticos em que colaborava, passa a escrever para revistas literárias; e o con to, até então considerado género menor na Rússia, assume nova importância. Em 1890 v ela ilha de Sacalina, lugar de deportação dos condenados a trabalhos forçados, e des eve-a num livro objectivo e comovente (1893). Viaja pelo estrangeiro em 1891, e compra uma propriedade nos arredores de Moscovo. Preocupado com a sorte dos camp oneses, manda construir escolas e estradas. Os anos de 1891 a 1897 são bastante fért eis para a sua obra: desta época data A Enfermaria nº 6, uma das suas novelas mais n otáveis. Toda a dramaturgia tchekoviana é caracterizada por uma aversão aos acontecim ntos espectaculares ou "teatrais". Entretanto, o encontro com a arte de Stanisla vski e o Teatro de Arte de Moscovo é decisivo para o desenvolvimento da concepção cé  de Tchecov. A Gaivota (1896) fracassa aquando da sua estreia em Moscovo, que co incide com o agravamento da tuberculose de que Tchekov padecia há anos. Passa o In verno de 1897-1898 em Nice, e em 1899 compra uma propriedade em Yalta, na Crimei a. Só após o seu casamento com Olga Knipper (1898), primeira actriz do Teatro de Art e, de Stanislavski, têm início os seus triunfos dramáticos. É nos últimos anos de vi  Tchecov escreve as melhores peças da sua produção: O Tio Vânia (l 899), As Três Irm ) e O Pomar das Cerejeiras, a sua obra-prima (1904). Ao lado de Gogol e Gorki, T chekov é dos maiores contistas da literatura russa. Debruçando-se piedosamente sobre  os diversos tipos sociais da época, Anton Tchecov não revela nas suas obras quaisqu er tendências políticas ou religiosas, ao contrário de tantos escritores russos. Não tante a sua irreligiosidade, confere às coisas mais insignificantes um conteúdo dens amente filosófico e uma tonalidade estranhamente mística. Versão portuguesa de Maria Luísa Anahory e Editorial Verbo Composto e impresso por Gris, Impressores Lisboa 1972 Livros RTP Biblioteca Básica Verbo nº 67 ANTON TCHEKOV A ENFERMARIA Nº 6 e outros contos A ENFERMARIA NÚMERO SEIS I No pátio do hospital existe um pequeno pavilhão rodeado de um autêntico matagal de c dos, urtigas e cânhamo silvestre. Tem o tecto oxidado, a chaminé meio destruída, os graus da entrada apodrecidos e cobertos de erva, e do estuque restam vestígios. A fachada dá para o hospital e as traseiras para o campo, e deste separa-o uma vedação e madeira, pintada de cinzento e encimada por pregos. Estes pregos com os bicos para cima, a vedação e o próprio pavilhão oferecem aquele aspecto característico, tr  repulsivo, que no nosso país apenas os hospitais e as prisões apresentam.

A Enfermaria Nº 6 e Outros Contos - Anton Tchekov

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    A ENFERMARIA N 6 e outros contosAnton Tchekov

    ANTON Pavlovitch TCHEKOV nasceu em Tapanrog, nas margens do mar de Azov, na Rssia, em 1860, e morreu em Hadenweilcr, na Alemanha, em 1904. Neto de camponeses, recebeu uma formao escolar precria, na provncia. Para prover s necessidades econmfamlia e custear os seus estudos de Medicina, em Moscovo, Tchekov escreve contoshumorsticos e crnicas, que publica em jornais. Em 1884 editada a sua primeira rolha de contos. Datam tambm dessa altura as primeiras peas de teatro: Os Malefciodo Tabaco (1886), Ivanov (1887, a mais importante das obras deste perodo), O Urso(1888), O Pedido de Casamento (1888) e O Casamento (1889). com a publicao de um

    novela, lstepc (1888), que Tchekov v consolidada a sua posio de escritor. Dos s humorsticos em que colaborava, passa a escrever para revistas literrias; e o conto, at ento considerado gnero menor na Rssia, assume nova importncia. Em 1890 vela ilha de Sacalina, lugar de deportao dos condenados a trabalhos forados, e deseve-a num livro objectivo e comovente (1893). Viaja pelo estrangeiro em 1891, ecompra uma propriedade nos arredores de Moscovo. Preocupado com a sorte dos camponeses, manda construir escolas e estradas. Os anos de 1891 a 1897 so bastante frteis para a sua obra: desta poca data A Enfermaria n 6, uma das suas novelas mais notveis. Toda a dramaturgia tchekoviana caracterizada por uma averso aos acontecimntos espectaculares ou "teatrais". Entretanto, o encontro com a arte de Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscovo decisivo para o desenvolvimento da concepo cde Tchecov. A Gaivota (1896) fracassa aquando da sua estreia em Moscovo, que coincide com o agravamento da tuberculose de que Tchekov padecia h anos. Passa o In

    verno de 1897-1898 em Nice, e em 1899 compra uma propriedade em Yalta, na Crimeia. S aps o seu casamento com Olga Knipper (1898), primeira actriz do Teatro de Arte, de Stanislavski, tm incio os seus triunfos dramticos. nos ltimos anos de viTchecov escreve as melhores peas da sua produo: O Tio Vnia (l 899), As Trs Irm) e O Pomar das Cerejeiras, a sua obra-prima (1904). Ao lado de Gogol e Gorki, Tchekov dos maiores contistas da literatura russa. Debruando-se piedosamente sobreos diversos tipos sociais da poca, Anton Tchecov no revela nas suas obras quaisquer tendncias polticas ou religiosas, ao contrrio de tantos escritores russos. No tante a sua irreligiosidade, confere s coisas mais insignificantes um contedo densamente filosfico e uma tonalidade estranhamente mstica.

    Verso portuguesa deMaria Lusa Anahory

    e Editorial Verbo

    Composto e impresso porGris, ImpressoresLisboa 1972

    Livros RTPBiblioteca Bsica Verbo n 67

    ANTON TCHEKOVA ENFERMARIA N 6 e outros contos

    A ENFERMARIA NMERO SEIS

    I

    No ptio do hospital existe um pequeno pavilho rodeado de um autntico matagal de cdos, urtigas e cnhamo silvestre. Tem o tecto oxidado, a chamin meio destruda, os graus da entrada apodrecidos e cobertos de erva, e do estuque restam vestgios. Afachada d para o hospital e as traseiras para o campo, e deste separa-o uma vedao e madeira, pintada de cinzento e encimada por pregos. Estes pregos com os bicospara cima, a vedao e o prprio pavilho oferecem aquele aspecto caracterstico, trrepulsivo, que no nosso pas apenas os hospitais e as prises apresentam.

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    Se no tendes receio das urtigas, caminhemos pelo estreito atalho que conduz ao pavilho, e lancemos um olhar ao que se passa no interior. Abrimos a primeira portae entramos no vestbulo. Aqui, junto lareira, h montanhas de objectos e roupas. Cchas velhas, batas esfarrapadas, calas, camisas de riscas azuis, sapatos rotos einteis: todos estes trapos esto amontoados, amarrotados, remexidos, meio apodrecidos, emanando um cheiro pestilento.Permanentemente deitado sobre este lixo, com o cachimbo entre os dentes, est o trapeiro Nikita, velho soldado reformado, de gales desbotados. Tem a expresso do homem que gosta de beber; sobrancelhas arqueadas, que lhe do o aspecto de um mastimdas estepes e o nariz vermelho; de estatura baixa, seco e nervoso;mas tem um fsico que se impe e possui mos enormes. Pertence quela classe de pessoas simples, cum

    idoras do seu dever e obstinadas, que pem a ordem acima de tudo, sinceramente convencidas de que o emprego da fora indispensvel. Bate ao acaso, na cara, no peitonas costas, em qualquer parte, com a certeza de que de outro modo no poderia manter a ordem.

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    Entramos em seguida numa diviso grande, muito espaosa, que ocupa todo o pavilho, lvo o vestbulo. As paredes esto pintadas num tom azulado, e o tecto est enegrecidcomo nessas isbs onde no existe chamin: v-se que acendem a lareira no Inverno e esta deita muito fumo. As janelas esto protegidas por dentro com vares de ferro. Ocho cinzento, e tem tbuas lascadas. Cheira a couve azeda, a fumo da torcida da mparina, a percevejos e a amonaco, dando este cheiro nauseabundo a impresso de ter

    mos entrado numa jaula de feras.Nesta sala esto dispostas vrias camas, fixadas ao cho. Sempre sentados ou deitadoh homens envergando as fardas azuis do hospital, e tendo na cabea gorros como osusados noutros tempos para dormir. So os loucos.So cinco ao todo. Apenas um de origem nobre; os outros so operrios. O primeiro, o entrada, alto e magro, com bigode arruivado e lustroso, e olhos hmidos; est ado, com a cabea apoiada nas mos e o olhar perdido no vcuo. Passa os dias e as noes envolto em profunda tristeza, abanando a cabea, suspirando e sorrindo amargamente; raras vezes intervm na conversa e em regra no responde s perguntas. Come e be maquinalmente, quando o servem. A avaliar pela tosse que lhe rasga o peito, pela magreza em que se encontra e pela palidez da face, sofre de um princpio de tuberculose pulmonar.A seguir est um velhinho, mirrado mas muito vivo, que no pra de se mexer, com a s

    barbicha em bico, e cabelo escuro e encarapinhado como o de um negro. Passa o dia a andar de uma janela para a outra, ou ento permanece sentado no seu catre, com as pernas cruzadas maneira turca, assobiando como um pintassilgo, cantando a meia-voz e rindo com um riso suave. A sua alegria infantil e animao bate no peito eabana a porta. o judeu Moiseika, imbecilizado desde que h vinte anos perdeu o juo, quando um incndio destruiu a sua oficina de chapus. o nico habitante da sala nmero seis a quem permitido sair do pavilho, e at dhospital, para a rua. um privilgio de que desfruta h muito, provavelmente devidao seu tempo de recluso e ao facto de ser um doido tranquilo e inofensivo: o bobo da cidade, que todos se acostumaram a ver pelas ruas, rodeado de garotos e ces.Com a sua bata e o seu ridculo gorro, de alpergatas ou descalo, e s vezes at semlas, vai e vem, parando nas portas das lojas e pedindo

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    esmola. Aqui, do-lhe uma cdea de po, ali um kopek , de modo que volta ao pavilhoestmago cheio e rico. Mas Nikita tira-lhe tudo quanto traz. O soldado fa-lo com brutalidade, muito meticulosamente, passando revista aos bolsos e invocando Deuscomo testemunha de que no voltar a deixar sair o judeu, ao mesmo tempo que afirmano haver coisa pior do que a desordem.Moiseika gosta de fazer favores. D gua aos seus companheiros, cobre-os quando esta dormir, promete trazer-lhes dinheiro quando for rua e confecciona-lhes gorrosnovos. D ainda de comer ao seu vizinho da esquerda, que paraltico. E faz tudo is

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    , no por compaixo ou consideraes de carcter humanitrio, mas para imitar Gromovvizinho da direita, que o domina sem que ele disso se aperceba.Ivan Dmitrich Gromov, de origem nobre, trinta e trs anos, antigo oficial de diligncias do julgado e secretrio provincial, sofre de mania da perseguio. Permanece deado na cama, como um novelo, ou anda de um lado para o outro como se desse um passeio higinico; rara a vez em que fica sentado. Mostra-se sempre excitado, inquieto, num estado de grande tenso, como se esperasse algum acontecimento confuso e indefinido. Basta o mais pequeno rudo no vestbulo ou um grito no ptio para que erga cabea e se conserve alerta: esto a perguntar por ele? Procuram-no? E nestes instantes o seu rosto reflecte grande inquietao e medo.Agrada-me a sua cara comprida, de mas de rosto salientes, sempre plida e infeliz,

    spelho de uma alma atormentada pela luta e por um sentimento de medo que nunca oabandona. Tem uns tiques estranhos e doentios, mas os finos sulcos, que um profundo e sincero sofrimento deixou no seu semblante, denotam inteligncia, e os seusolhos deixam transparecer um brilho carinhoso e sadio. Agrada-me a sua personalidade: corts, prestvel e extraordinariamente delicado no trato com toda a gente, xcepo de Nikita. Quando algum perde um boto ou a colher, levanta-se da cama no minstante e entrega-lhos. D os bons-dias aos companheiros todas as manhs, e ao deitar-se deseja-lhes as boas-noites.Alm da tenso permanente e dos tiques, a sua loucura tem outra forma de manifestar-se. Por vezes, ao anoitecer, embrulha-se na sua

    ' Kopek: unidade divisionria da moeda russa (N. do T.)

    9bata, e tremendo e batendo os dentes principia a andar com um passo rpido de um canto para o outro e por entre as camas. E como se tivesse um forte acesso de febre. Pela maneira como pra de sbito e contempla os seus companheiros, nota-se que tem alguma coisa muito importante para lhes dizer; mas, reflectindo melhor, chega concluso de que no lhe daro ouvidos ou no o compreendero; sacode com impaciea, e continua a caminhar. Mas depressa o desejo de falar se torna mais forte e drdea solta lngua; fala com calor, apaixonadamente. () seu discurso desordenadobril, como em delrio; nem sempre se compreende o que diz; mas mesmo assim deixa perceber, pelas palavras e pela voz, qualquer coisa que denota extrema bondade. Quando fala, distinguem-se nele o louco e o homem. difcil traduzir para o papel osseus desvarios. Fala da maldade humana, da violncia que espezinha a justia, da be

    la vida que com o andar dos tempos reinar na Terra, das grades e das janelas, quea cada instante lhe recordam a obstinao e a crueldade dos opressores. Tudo um cco amontoado de coisas velhas mas no caducas.

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    II

    O funcionrio Gromov, h doze para quinze anos, vivia na cidade com a famlia, em caprpria, situada na rua principal. Tinha dois filhos: Serguei e Ivan. Serguei, quando frequentava o quarto ano, contraiu uma tsica galopante e morreu. Foi o princpio de uma srie de calamidades que caram subitamente sobre a famlia dos Gromov. Umsemana depois do enterro de Serguei, o velho pai foi processado por desfalque e

    desvio de fundos, e no tardou em morrer na enfermaria da priso, vitimado por uma febre tifide. A casa e o seu recheio foram vendidos em almoeda; Ivan Dmitrich e asua me ficaram sem o mnimo recurso.Antes, enquanto o pai era vivo, Ivan Dmitrich vivia em S. Petersburgo, estudavana Universidade, recebia todos os meses sessenta ou setenta rublos e no sabia o que eram necessidades; depois, tivera que mudar completamente de vida. Via-se obrigado a dar lies muito mal pagas e a fazer escrita desde manh noite, mas no depor isso de passar fome, pois mandava me tudo quanto ganhava. Ivan Dmitrich no aentou, perdeu a coragem, a sua sade declinou e, abandonando os estudos, foi paracasa. Ali, na pequena cidade, graas a empenhos, obteve um lugar de professor. Mas

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    no se entendeu com os seus colegas, nem lhe agradaram os alunos, e depressa apresentou a demisso. A me morreu. Ivan vagueou sem trabalho durante seis meses, sem outro alimento alm de po e gua, e entrou finalmente para oficial de diligncias dobunal, cargo que ocupou at lhe ser concedida baixa por doena.Nunca, nem mesmo nos seus anos de estudante, deu a sensao de ser um homem so. Foiempre plido, magro e constipava-se facilmente. Um copo de vinho causava-lhe tonturas e ataqueshistricos. Gostava de companhia, mas o seu carcter irritvel e os seus receios impiam-no de ter intimidade com algum, e carecia de amigos. Falava sempre com desprezo da gente das cidades, dizendo que a sua torpe ignorncia e a vida sedentria quelevavam eram qualquer coisa de degradante e repulsivo. Falava com voz de tenor,

    alta e apaixonada, descontente e indignada, ou com entusiasmo e desassombro, e era sempre sincero. Chegava sistematicamente a uma concluso, fosse qual fosse o tema: a vida na cidade era desgostante e aborrecida; a sociedade carecia de nvel, era uma vida absurda e obscura e os nicos elementos que contribuam para lhe dar algum imprevisto eram a violncia, a grosseira corrupo e a hipocrisia. Os facnoras eam prsperos e bem vestidos, enquanto os homens honrados se alimentavam de migalhas. Faziam falta escolas, um jornal local com uma orientao honesta, um teatro, conferncias pblicas, coeso dos intelectuais. Nas suas apreciaes sobre as pessoas ema grandes pinceladas de branco e negro, sem admitir nenhum outro tom de matiz: para ele, a humanidade dividia-se em honrados e canalhas, sem meio termo. Das mulheres e do amor falava sempre apaixonadamente, com entusiasmo, mas nem uma vez esteve enamorado.Na cidade, apesar da dureza dos seus julgamentos e do seu nervosismo, gostavam d

    ele, e na sua ausncia davam-lhe o carinhoso diminutivo de Vnia. A sua delicadeza inata, o seu esprito prestvel, a sua dignidade e pureza moral, a sua labita coada, seu aspecto doentio e as suas desgraas familiares despertavam um sentimento bom,carinhoso e triste; alm disso, era culto e tinha lido muito; e em tudo lhe faziam f, sendo considerado na cidade um verdadeiro dicionrio de consulta.Lia muito. Passava largas horas no clube, acariciando nervosamente a barbicha efolheando revistas e livros; notava-se pela sua expresso que no lia, mas que devorava, quase sem tempo de assimilar. H que pensar que a leitura era para ele um hbito doentio, porque se lanava com igual avidez sobre tudo o que lhe chegava s mos, mesmo jornais e calendrios de anos anteriores. Em casa lia sempre deitado.

    III

    Uma manh de Outono, com a gola do casaco subida e espezinhando a lama, Ivan Dmitrich dirigia-se por vielas e ptios traseiros a casa de um operrio onde devia cumprir um mandato judicial. listava de humor sombrio, como todas as manhs. Numa das vielas passou por dois prisioneiros, carregados de correntes, conduzidos por quatro soldados armados de espingardas. Muitas vezes se encontrara j com presos, e sempre despertavam nele sentimentos de piedade e mgoa; mas desta vez produziram neleuma impresso especial e estranha. Pareceu-lhe que tambm o podiam carregar de grilhetas e conduzi-lo por entre a lama priso. Depois de resolver o assunto com o operrio, de volta a casa, encontrou ao p dos Correios um inspector da Polcia, seu coecido, que o cumprimentou e o acompanhou durante alguns passos. Isto pareceu-lhesuspeito. J em casa, durante todo o dia, no lhe saam do pensamento os presos e osoldados com as espingardas; uma incompreensvel inquietao de esprito impedia-o dconcentrar na leitura. Ao cair da tarde no acendeu o candeeiro de petrleo no seu

    quarto, e a noite passou-a de vela, pensando que podiam prend-lo, agrilho-lo e metlo na priso. Sabia-se inocente e podia mesmo assegurar que nunca mataria ningum, nqueimaria nem roubaria nada; mas seria acaso to difcil cometer um delito sem querer e sem inteno? No seria admissvel uma calnia, um erro judicirio, enfim? No secular experincia do povo diz que ningum pode estar seguro contra o risco de carregar com os alforjes do mendigo ou ir parar cadeia. E o erro judicirio, com o actual sistema de administrao da justia, seria muito possvel, e nem teria nada de aordinrio. Aqueles que em virtude da sua profisso esto em contacto com os sofrimeos alheios, por exemplo, os juizes,

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    os polcias e os mdicos, com o decorrer do tempo insensibilizam-se a tal ponto, pela fora do hbito, que ainda que o quisessem no poderiam olhar os seus clientes senom um sentimento de indiferena; por outro lado, no se diferenciam em nada do mujique que no curral degola carneiros e bezerros sem sequer se aperceber do sangue.Com essa atitude convencional e insensvel em relao pessoa humana, para despojar inocente de todos os seus direitos e bens, e conden-lo ao presdio, o juiz apenas necessita de uma coisa: tempo. Apenas tempo para observar certas formalidades, para o que lhe pagavam, e tudo termina. Quem podia esperar justia e defesa naquelauldeiazinha suja, a duzentas verstas do caminho de ferro? E no seria ridculo pensa

    r na justia quando qualquer aco violenta era acolhida pela sociedade como razoveaceitvel, enquanto qualquer acto de piedade, por exemplo, uma absolvio, provocavama verdadeira exploso de sentimentos vingativos de descontentamento?Pela manh Ivan Dmitrich levantou-se apavorado, com a fronte coberta de um suor frio e intimamente convencido de que de um momento para o outro podiam vir prend-lo. Se os dolorosos pensamentos da vspera tardavam tanto em abandon-lo pensava era porque havia neles qualquer ponta de verdade. Realmente, no podiam acudir-lhe cabesem alguma razo.Um guarda municipal passou lentamente diante da janela. Teria decerto as suas razes. Dois homens pararam em silncio diante da casa. Por que motivo estavam silenciosos?E para Ivan Dmitrich principiaram dias e noites de pesadelo. Imaginava que quantos passavam diante das suas janelas e entravam no ptio eram denunciantes e esbirr

    os. Pelo meio do dia costumava passar o chefe da Polcia. Na sua carruagem, puxadapor dois cavalos, vinha da sua herdade nos arredores da cidade, e dirigia-se para a sua repartio; mas Ivan Dmitrich achava sempre que ele ia demasiado depressa ecom uma expresso especial: ia, sem dvida, anunciar que tinha aparecido na cidadeum delinquente de grande importncia. Ivan Dmitrich estremecia sempre que batiam porta, e ficava angustiado quando a dona da casa recebia um hspede novo; quando seencontrava com polcias e guardas, sorria e assobiava para mostrar indiferena. Passava as noites sem pregar olho, sempre espera de que o viessem prender; mas suspirava e fingia ressonar para que a dona da casa imaginasse que dormia porque no dormir seria prova de que tinha remorsos na

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    conscincia. Que indicao! Os factos e a lgica levavam-no convico de que todosores eram um absurdo e uma psicopatia, porque, na realidade, bem vistas as coisas, a deteno e a cadeia no constituam preocupao quando se possua a conscinciamas quanto mais lgicos eram os seus raciocnios, tanto maior e mais dolorosa era asua inquietao espiritual, era como se um eremita quisesse abrir uma clareira na selva virgem para nela viver: quanto mais afanosamente trabalhava com o machado, mais espesso e vigoroso crescia o bosque. Ivan Dmitrich, vendo a inutilidade dosseus intentos, acabou por desistir, deixou de ressonar e entregou-se inteiramente ao desespero e ao medo.Principiou a evitar as pessoas; procurava estar szinho. O cargo que ocupava, quej antes lhe desagradava, tornou-se-lhe insuportvel. Temia que lhe fizessem uma partida, que lhe metessem dinheiro no bolso a fim de o acusarem de cumplicidade, ouque ele prprio cometesse em documentos oficiais, sem querer, qualquer erro equiv

    alente a uma falsificao, ou perdesse uma soma que no fosse sua. Coisa estranha: nca, em nenhuma altura, fora o seu pensamento to lcido nem a sua imaginao to fragora, quando todos os dias descobria mil motivos diferentes para sentir srias apreenses pela sua liberdade e a sua honra. Em contrapartida, diminuiu sensivelmente o seu interesse pelo mundo exterior, sobretudo pelos livros, e a memria principiou a tra-lo.Ao chegar a Primavera, quando a neve comeou a derreter, apareceram num barranco ao p do cemitrio dois cadveres em adiantado estado de decomposio uma mulher e um com sinais de morte violenta. Na cidade no se falava seno nestes dois cadveres e os presumveis assassinos. Ivan Dmitrich, para que no se pudesse pensar que fora el

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    e o autor do crime, caminhava sorridente pelas ruas, e ao encontrar qualquer conhecimento empalidecia e exaltava-se, insistindo em que no havia nada mais revoltante que o assassinato de pessoas -fracas e indefesas. Mas no tardou a cansar-se desta hipocrisia, e depois de reflectir chegou concluso de que na sua situao o mr seria esconder-se na cave da casa. Ali permaneceu um dia, uma noite e outro dia, at que, morto de frio, depois de escurecer, caminhando silenciosamente como umladro, meteu-se no quarto, onde se deixou ficar at de manh sem se mexer, prestanateno ao menor rudo. s primeiras horas, antes de o Sol nascer, chegaram alguns ios. Ivan Dmitrich bem sabia que tinham vindo chamados

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    pela dona da casa, para arranjar o forno da cozinha; mas o medo levou-o a pensarque eram polcias disfarados. Saiu dissimuladamente do quarto, e, aterrorizado, sem gorro e sem casaco, deitou a correr pela rua. Perseguiam-no os ces a ladrar, algum gritou nas suas costas, o vento silvava-lhe aos ouvidos. Ivan Dmitrich pensouque toda a violncia do mundo se unira atrs dele, tentando alcan-lo.Agarraram-no, levaram-no para casa, e mandaram a senhoria procura do mdico. O doutor Andrei Efimich, de quem falaremos mais adiante, receitou-lhe compressas frias na cabea e gotas de loureiro e ginjas; abanou tristemente a cabea e saiu, dizendo dona da casa que no voltaria, visto ser impossvel fazer fosse o que fosse quanas pessoas queriam endoidecer. Como em casa no o podiam tratar, Ivan Dmitrich foi pouco tempo depois levado para o hospital e a o instalaram na sala de doenas veneas. No dormia de noite, mostrava-se caprichoso e incomodava os vizinhos, e por i

    sso no tardaram em lev-lo, por ordem de Andrei Efimich, para a enfermaria nmero ss.Passado um ano, na cidade tinham esquecido completamente Ivan Dmitrich; e os seus livros, que a dona da casa amontoara num tren, sob um telheiro, foram levados pelos garotos.

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    IV

    O vizinho da esquerda de Ivan Dmitrich, como j dissemos, era o judeu Moiscika. Oda direita era um mujiquc adiposo, obeso, de cara inexpressiva e estpida, um animal imvel, gluto e sujo, que de h muito havia perdido a capacidade de pensar e sen

    r. Emanava dele constantemente um cheiro ftido e asfixiante.Nikita, encarregado da limpeza, batia-lhe sem d nem piedade;mas o mais impressionante no era baterem-lhe, a isto ainda nos podemos acostumar , mas o facto de aquele animal insensvel no reagir de maneira alguma aos golpes, nem por um som ou um movimento, nem pela expresso do olhar, limitando-se a baloiar ligeiramente como umpesado barril.O quinto e ltimo habitante da enfermaria nmero seis era um homem que fora em tempos empregado dos Correios, onde fazia a seleco das cartas, fora um indivduo pequenmagro, loiro, de expresso caritativa, ainda que levemente maliciosa. A julgar pelo seu olhar inteligente e tranquilo, de expresso serena e jovial, guardava no seu ntimo um segredo muito importante e aprazvel. Debaixo da almofada e do enxergo ultava qualquer coisa que no mostrava a ningum, no por medo de que lho pudessem tar ou roubar, mas por vergonha. As vezes aproximava-se da janela, de costas para

    os companheiros, colocava um objecto no peito e contemplava-o com a cabea inclinada; mas, se naquele momento algum se aproximava, perturbava-se e escondia-o. No era difcil, contudo, adivinhar o seu segredo.- D-me os parabns - dizia frequentemente a Ivan Dmitrich , fui proposto para a Ordem de Sto. Estanislau de segunda classe, com estrela. A segunda classe com estrela concedida apenas aos

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    estrangeiros, mas comigo, no sei porqu, pretendem abrir uma excepo - e sorria, en

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    hendo os ombros, admirado. - Confesso que no contava com isso!- No entendo nada desses assuntos - respondia Ivan Dmitrich sombriamente.- Mas mais tarde ou mais cedo hei-de consegui-lo, sabe? - prosseguia o antigo seleccionador de cartas, piscando o olho com astcia. Obterei sem dvida a Estrela Polar sueca. uma ordem que vale o esforo de a conseguir. Cruz branca e fita negra, ede muito bonito efeito.Decerto, em nenhum outro local era a vida to montona como no pavilho. De manh, oentes, excepo do paraltico e do mujique gordo, lavavam-se no vestbulo, numa ba, e secavam-se com as fraldas das suas batas. Em seguida tomavam ch em xcaras de folha, que Nikita trazia do pavilho principal. A cada um correspondia uma xcara. Aomeio-dia comiam sopa de couve e papas de farinha, e ao anoitecer jantavam as pa

    pas que tinham sobejado do almoo. Nos intervalos permaneciam deitados, dormiam, olhavam pela janela e passeavam de um lado para o outro, e assim todos os dias. Oprprio antigo seleccionador de cartas falava sempre das mesmas condecoraes.Eram muito poucas as caras novas que se viam na enfermaria nmero seis. Havia tempo que o mdico deixara de admitir mais loucos, e no so muitos, neste mundo, os afionados de manicmios. Uma vez em cada dois meses aparecia no pavilho Simio Lazarico barbeiro. No vamos falar de como cortava o cabelo aos loucos e da maneira comoera ajudado por Nikita neste empreendimento, nem da confuso que se gerava entreos enfermos sempre que aparecia o barbeiro com o seu sorriso de alcolico.Ningum mais aparecia no pavilho. Os doentes estavam condenados, dia aps dia, a vem unicamente Nikita.Mas ultimamente corria pelo hospital um rumor muito estranho: dizia-se que o mdico comeara a visitar a enfermaria nmero seis.

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    V

    Estranho rumor!O doutor Andrei Kfimich Raguin era um homem notvel no seu gnero. Dizia-se que havia sido muito devoto na juventude, tencionando seguir a carreira eclesistica;que em 1863, ao terminar os seus estudos no liceu, se preparava para ingressar no seminrio, mas que seu pai, doutor em Medicina e cirurgio, no o tomou a srio e declacategoricamente que no o consideraria como filho se ele se ordenasse pope. No seiat que ponto isto verdade, mas o prprio Andrei Ffimich confessou mais de uma vez ue nunca sentira vocao pela Medicina nem pelas cincias aplicadas em geral.

    Fosse como fosse, ao terminar os estudos na Faculdade no se fez sacerdote. No mostrava grande devoo e no incio da sua carreira mdica parecia-se to pouco com um pmo no momento em que principia a nossa histria.Tinha o aspecto pesado, vagaroso, de um mujiquc, e pelas suas feies, a barba, o cabelo liso, a compleio forte e grosseira, fazia lembrar um estalajadeiro gordo, dado bebida, e de maneiras bruscas. O seu rosto, de expresso grave, era sulcado porfinas veias azuis, olhos pequenos e nariz vermelho. Muito alto e de ombros largos, tinha braos e pernas enormes, e parecia capaz de matar uma pessoa de um s golpe. Mas o seu andar era suave e cauteloso, como ondulante; quando encontrava algumno estreito corredor, parava sempre primeiro, cedendo o lugar; e com voz que no era de baixo, como seria de esperar, mas fina e suave como de tenor, dizia: "Perdo!" Um pequeno inchao impedia-o de usar colarinhos duros, engomados, e por isso vestia sempre camisa de linho ou de algodo. A sua maneira de trajar no era de mdico

    Os fatos duravam-lhe dez anos e a roupa nova, que

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    costumava comprar na loja de um judeu, parecia to coada e enxovalhada como a anterior. Com a mesma labita, recebia os doentes, comia e fazia visitas. No o fazia por esprito de mesquinhez, mas porque nada se importava consigo prprio.Quando Andrei Efimich chegou cidade para tomar posse do seu cargo, o "estabelecimento de beneficincia encontrava-se num estado deplorvel. Nas salas, corredores eptio do hospital, o cheiro era a ponto de tornar difcil respirar. Os servitas, as

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    enfermeiras e seus filhos dormiam nas enfermarias dos doentes. Queixavam-se de que as baratas, os percevejos e os ratos lhes tornavam a vida impossvel. Na seco dcirurgia no conseguiam acabar com a erisipela. Apenas existiam dois bisturis em todo o hospital; no dispunham de um nico termmetro;e as banheiras serviam para guaar batatas. O inspector, a encarregada da roupa e o assistente roubavam os doentes, e dizia-se do antigo mdico, o predecessor de Andrei Efimich, que vendia de contrabando o lcool do hospital e tinha um verdadeiro harm constitudo por enfermeire doentes. Na cidade eram conhecidas todas estas irregularidades, e at as exageravam, mas toleravam-nas com a maior tranquilidade. Alguns argumentavam, para asjustificar, que no hospital s havia gente do povo e mujiques, que no tinham o direito de estar descontentes, pois em suas casas viviam muito pior. No era possvel da

    r-lhes faiso!Outros diziam que a cidade, s por si, sem a ajuda do zemstvo, no podia custear umbom hospital; e era graas a Deus que existia um, apesar de mau. E o zemstvo, recm-constitudo, no abria estabelecimentos sanitrios na cidade nem nos arredores, a prexto de que a cidade possua j o seu hospital.Depois de uma reviso geraljAndrei Efimich chegou concluso de que semelhante instuio hospitalar era imoral e altamente nociva para a sade das pessoas. Parecia-lheue a nica soluo era mandar os doentes para casa e encerr-la. Considerou, no entaque isto no dependia apenas da sua vontade e que no seria eficiente: se se eliminasse a imundcie fsica e moral de um local, aquela provavelmente transferia-se paraoutro. Havia que esperar que desaparecesse por si prpria. Alm disso, se tinham aberto este hospital e o toleravam, era sinal de que as pessoas necessitavam dele;os males

    ' zemstvo: organismo autnomo com determinada tendncia liberal, que, escala proviial e distrital, mantinha hospitais e centros de ensino. Institudos em 1864, desapareceram em 1917 (N. do T.)

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    desta vida e todas as suas vilanias so necessrios, j que se convertiam com o tempem qualquer coisa de til, como o estrume em terra negra. No h no mundo bem que naua origem no contivesse uma aco abjecta.Uma vez tomada posse do seu cargo, Andrei Efimich no mostrou ligar grande importncia a todas estas anomalias. Fez uma nica coisa: pediu aos servitas e enfermeirasque no dormissem nas enfermarias. Mandou tambm colocar duas vitrinas para os instr

    umentos. Quanto ao inspector, encarregada da roupa, ao assistente e ao materialcirrgico, continuaram nos seus antigos lugares.Andrei Efimich apreciava no mais alto grau a inteligncia e a honestidade, mas para organizar sua volta uma vida inteligente e honesta faltava-lhe o carcter e a f o direito que lhe assistia. No sabia em absoluto mandar, proibir e insistir. Eracomo se tivesse feito voto de nunca levantar a voz nem empregar o imperativo. Custava-lhe dizer "d-me" ou "traz-me" ;quando queria comer, pigarreava indeciso e dizia cozinheira: "Se pudesse tomar uma chvena de ch...", ou "Se eu pudesse comer.".Dizer ao inspector que deixasse de roubar ou despedi-lo, ou suprimir por completo aquele cargo intil e parasitrio, era superior s suas foras. Quando o enganaou adulavam, ou lhe apresentavam uma conta que sabia ser falsa, tornava-se vermelho como um caranguejo e sentia-se culpado; mas, apesar de tudo, assinava. Quando os doentes se queixavam de passar fome ou dos maus tratos das enfermeiras, atr

    apalhava-se e balbuciava, como se fosse ele o culpado:Est bem, est bem, vou-me ocupar disso... Provavelmente trata-se de um mal-entendido...De princpio Andrei Efimich trabalhou arduamente. Dava consulta todas as manhs at ra da comida, operava e, inclusivamente, assistia aos partos. As senhoras diziamque diagnosticava com preciso as doenas, sobretudo em mulheres e crianas. Mas coo decorrer do tempo tudo isto acabou por aborrec-lo, pela sua monotonia e evidente inutilidade. Hoje recebia trinta doentes, amanh eram trinta e cinco e depois deamanh quarenta, e assim um dia aps outro, um ano atrs do outro, sem que a mortalade diminusse, continuando os doentes a afluir. Prestar uma assistncia eficaz aos

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    quarenta doentes que vinham consulta desde manh at hora do jantar' era fisicam

    ' O jantar na Rssia era servido s trs horas (N. do T.).

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    impossvel; redundava num logro. Se durante um ano tinha examinado doze mil doentes, segundo diziam, significava que tinha enganado doze mil pessoas. Internar osdoentes graves e trat-los segundo as regras da cincia tambm no era possvel porqregras existiam, mas no havia cincia; e se punha de parte a filosofia e se limitava a seguir com rigor as regras, como os outros mdicos, necessitava para isso, aci

    ma de tudo, limpeza e arejamento, e no sujidade; e uma alimentao s, e no a sopapugnante couve azeda; e bons auxiliares, e no ladres.Alm do mais, para qu impedir que as pessoas morram, se a morte o fim normal e lde cada um? Que acontecia se um ricao ou um funcionrio vivia cinco ou dez anos mais? Se se considera que o objectivo da Medicina consiste em aliviar a dor, surgea pergunta: Para qu alivi-la? Em primeiro lugar, dizem que a dor leva o homem pfeio e, em segundo, que se a humanidade aprende, efectivamente, a aliviar as suasdores com a ajuda de plulas e gotas, abandonar por completo a religio e a filosof, em que at agora encontrara no apenas defesa contra todos os males mas tambm a feicidade. Pushkin, na hora da sua morte, sofreu dores horrveis, o pobre Heine esteve paraltico vrios anos. Ento, por que razo no havia de padecer doenas qualqueEfimich ou qualquer Mastriona Savishna, cujas vidas no possuam qualquer contedo e eriam completamente vazias e parecidas com as de uma ameba se no fossem os sofrim

    entos?Acabrunhado com estas concluses, Andrei Efimich abandonou tudo e deixou de ir diariamente ao hospital.

    VI

    A sua vida decorria da seguinte maneira: levantava-se geralmente s oito, vestia-se e tomava o ch. Sentava-se, em seguida, a ler no seu escritrio ou ia ao hospital.Ali, num corredor estreito e escuro, juntavam-se os doentes externos, esperandoa hora de serem recebidos. Junto deles, fazendo muito barulho com as suas botasno cho de ladrilhos, passavam os servitas e as enfermeiras transportando os mortos e os urinis; as crianas choravam; soprava o vento; e caminhavam com aspecto abatido os doentes internos, enfiados nas suas batas. Andrei Efimich sabia que para

    os doentes com febre, os tuberculosos e os sensveis aquilo era um tormento, masque podia fazer? No escritrio, esperava-o Serguei Sergueich, o assistente, um homem pequeno, anafado, de cara redonda barbeada e lavada, de maneiras suaves, que,com o seu amplo fato novo, mais parecia um senador do que um assistente. Tinhanumerosa clientela na cidade, usava gravata branca, e achava que sabia mais do que o prprio mdico, que no exercia clnica privada. A um canto do escritrio estavgrande imagem com a correspondente lmpada e, a seu lado, um genuflexrio forrado debranco. Nas paredes havia retratos de prelados, uma vista do Mosteiro de Seviatogorsk e vrias coroas secas de flores de aciano. Serguei Sergueich era um homem religioso e gostava de sumptuosidade. A imagem fora adquirida por ele. Aos domingos, um doente, obedecendo s suas ordens, lia em voz alta o livro de oraes, depois o que o prprio Serguei Sergueich percorria todas as salas com o incensrio, perfumando-as conscienciosamente.

    Os doentes so muitos e o tempo pouco, pelo que tudo se reduz a um breve interrogatrio e receita de um remdio qualquer, um unguento ou uma purga de leo de rcinoei Efimich deixa-se ficar sentado.

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    com a cara apoiada numa das mos, pensativo, e faz as perguntas maquinalmente. Serguei Sergueich, tambm sentado, esfrega as mos e intervm de vez em quando.- Padecemos doenas e sofremos doenas - proclama - porque no rezamos conforme dea Deus misericordioso.

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    Andrei Efimich no pratica cirurgia; perdeu o hbito, e a vista do sangue produz-lheuma sensao desagradvel. Quando tem que mandar abrir a boca a uma criana para lhaminar a garganta e o pequeno chora e se defende com as mozinhas, o barulho causa-lhe nuseas e enchem-se-lhe os olhos de lgrimas. Apressa-se a escrever a receita efaz um gesto para que a me leve quanto antes a criana.Com a agradvel sensao de que, graas a Deus, no tem doentes privados e ningum vd-lo, Andrei Efimich instala-se no seu escritrio, logo que chega a casa, e comea ler. L muito e sempre com intenso prazer. Gasta metade do seu ordenado em livros,estando trs divises do andar que ocupa a abarrotar com livros e revistas velhas.O que mais lhe agrada so as obras de Histria e Filosofia. De Medicina assina apenas a publicao O Mdico, que principia sistematicamente a ler pelas ltimas pginas.

    tura prolonga-se sempre durante vrias horas, sem nenhuma interrupo, e no o cansal com tanta rapidez e nsia como noutros tempos Ivan Dmitrich, mas devagar, e tratando de assimilar bem o sentido, parando com frequncia nos pargrafos que mais lhe agradam ou que no entende. Ao lado do livro est sempre uma garrafa de vodka e pepinos de salmoura ou uma ma de conserva, tudo colocado em cima da toalha, sem pratos.De meia em meia hora, sem desviar os olhos do livro, serve-se de um copo de vodka, bebe-o, e a seguir, sem olhar, procura s apalpadelas o pepino e come um bocado.s trs horas aproxima-se silenciosamente da porta da cozinha, pigarreia e diz:Se pudesse comer, Dariushka...Depois do jantar, bastante mau e servido sem asseio, Andrei Hfimich, de braos cruzados, passeia pelas divises da sua casa e medita. De quando em quando ouve-se ranger a porta da cozinha e v-se assomar a cara corada e sonolenta de Dariushka.

    - Andrei Efimich, no sero horas de lhe servir a cerveja? - pergunta, solcita.- No, ainda no... - responde Andrei. - Prefiro esperar um pouco... Prefiro...Ao cair da tarde costuma chegar Mikail Averianich, o chefe dos Correios, a nica pessoa, em toda a cidade, cuja companhia no o aborrece.Mikail Avcriunich fora em tempos um fazendeiro muito rico e servira na cavalaria; mas arruinara-se e, j na velhice, a necessidade obrigara-o a ingressar no Departamento dos Correios. O seu aspecto era jovial e resplandecente de sade, usava umas magnficas patilhas grisalhas, as suas maneiras denotavam boa educao e possua voz forte e agradvel. Era bom e sensvel, mas impulsivo. Se algum vinha reclamar aCorreios, no aceitava os protestos ou comeava a raciocinar por sua conta, ficavamuito corado, frentico, e gritava com voz de trovo: "Calem-se!" De tal modo que odepartamento alcanara a reputao de um lugar onde as pessoas tinham medo de ir. Miil Averianich apreciava e estimava Andrei Efimich pela sua cultura e nobreza de

    esprito; e olhava o resto dos seus vizinhos com altivez, como se fossem seus subordinados.- C estou eu! - exclama ao entrar em casa de Andrei Efimich - Boas tardes, meu caro. No est cansado de mim?Os dois amigos sentam-se no sof do escritrio e fumam durante algum tempo em silnc.- Dariushka.se nos trouxesses cerveja... - diz Andrei Efimich.A primeira garrafa bebem-na ainda em silncio: o doutor pensativo e Mikail Averianich com o aspecto alegre e animado de quem tem qualquer coisa muito interessantepara contar. o mdico quem inicia sempre a conversa.- Que pena - diz em voz lenta e baixa, abanando a cabea e sem olhar o seu interlocutor (nunca olha as pessoas de frente) - que pena, caro Mikail Averianich, quena nossa cidade no haja o que se chama ningum que saiba e goste de manter uma conv

    ersa espirituosa, interessante! Para ns significa uma grande privao. Nem sequer ointelectuais se elevam acima do vulgar; o nvel do seu desenvolvimento, asseguro-lhe, no melhor do que o das classes baixas. - Tem toda a razo. Concordo consigo.- Voc prprio sabe - continua o mdico, em voz baixa, falando com lentido - que nemundo tudo carece de importncia e interesse, excepo feita s supremas manifestaituais do raciocnio humano. A inteligncia marca ntidas fronteiras entre o animal o homem, sugere o carcter divino deste ltimo, e, em certo grau, substitui a sua imortalidade, que no existe. Partindo desta base, o raciocnio e a nica fonte do prar. Ns, pelo contrrio, no vemos nem sentimos junto de ns manifestaes do raciocja, vemo-nos privados do prazer. certo que temos os livros, mas isso muito difer

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    ente da conversa viva e da convivncia. Se me permite uma comparao no muito felizs livros so as notas e a conversao o canto.- Inteiramente certo.Faz-se um silncio. Dariushka sai da cozinha e com uma expresso de estpido enlevo,om a cabea apoiada no punho, pra no limiar da porta para escutar.- Ai! - suspira Mikail Averianich. - Voc pretende exigir inteligncia s pessoas deoje!E comea a falar na vida de outros tempos, s, alegre e interessante; na inteligncidos intelectuais na Rssia; e no seu alto conceito de honra e de amizade. Emprestava-se dinheiro sem exigir uma letra de cmbio e era considerado vergonhoso no estender a mo para ajudar um companheiro necessitado. E que campanhas, que aventuras,

    que brigas, que mulheres! E o Cucaso, que maravilhoso pas! A esposa de um chefe debatalho, uma mulher muito estranha, costumava disfarar-se de oficial e ir tardeara as montanhas, sozinha, sem companhia. Dizia-se que naquelas aldeias tinha amores com um pequeno rei.- Rainha dos cus, mezinha... - suspira Dariushka.E como se comia! Como se bebia! E que liberais aqueles! Andrei Efimich ouve e noouve; pensa em qualquer coisa e toma um gole de cerveja.- Sonho frequentemente com pessoas inteligentes e que converso com elas - diz desbito, interrompendo Mikail Averianich. - Meu pai deu-me uma excelente educao, esob a influncia das ideias dos anos sessenta, obrigou-me a formar-me em Medicina.Parece-me que, se nessa altura no lhe tivesse dado ouvidos, estaria agora no prprio centro do movimento intelectual. Faria possivelmente parte de uma Faculdade.Claro que o raciocnio tambm no eterno, mas um fenmeno passageiro. Mas voc sab

    tanto me agrada. A vida um engano nojento. Quando o homem que pensa alcana a maturidade e est consciente dos seus actos, sente-se sem querer envolvido numa armadilha sem sada. Com efeito, contra sua vontade, em virtude de diversos acontecimentos fortuitos, foi arrancado do no ser para a vida... Para qu! Quer saber o sentido e o fim da sua existncia e no lhe

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    dizem nada ou estpido o que lhe dizem. Chama e no lhe abrem. A morte vem, tambm tra sua vontade. E da mesma maneira que na priso os homens ligados por um infortnio comum sentem um alvio quando se renem, tambm na vida uma pessoa no evita as cis quando os homens inclinados para as anlises e generalizaes se juntam e passam o empo trocando ideias orgulhosas e livres. - Neste sentido, a inteligncia um praze

    r insubstituvel.- Tem toda a razo.Sem fixar o olhar no seu interlocutor, em voz baixa e pausadamente, Andrei Efimich continua a falar em homens inteligentes e em conversas com eles, enquanto Mikail Averianich escuta atentamente, concordando: "Tem toda a razo."- Voc no acredita na imortalidade da alma? - pergunta de sbito o chefe dos Correi.- No, caro Mikail Averianich, no acredito, nem tenho razes para acreditar.- Pois eu confesso que tambm tenho as minhas dvidas. Apesar de que, quanto ao resto, tenho a sensao de que no hei-de morrer nunca. s vezes penso: "J so horas develho maduro!" Mas certa vozinha exclama do fundo do meu corao: "No acredites, norrers!..."Pouco depois das nove, Mikail Averianich retira-se. Ao vestir o casaco, na entra

    da, diz, suspirando:- No entanto, a que lugar perdido nos trouxe o destino! E o mais desagradvel de tudo que teremos que morrer aqui. Ah!...

    27

    VII

    Depois de se despedir do amigo, Andrei Efimich sentava-se mesa e recomeava a ler.Nem o mais pequeno rudo perturbava o silncio da tarde e da noite. Parecia que o t

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    empo se imobilizara juntamente com o mdico e o seu livro; era como se no existissemais nada seno esse livro e o candeeiro de petrleo, com o seu quebra-luz verde. Orosto tosco de mujique do mdico iluminava-se pouco a pouco com um sorriso enternecido e entusiasta perante os reflexos da inteligncia humana. "Oh!, por que razo ohomem no imortal? ", pensava. "Para que servem os centros e circunvolues cereb, para qu a vista, a fala, o prprio sentimento, o gnio, se tudo isto vai parar te posteridade, esfriar juntamente com a crosta terrestre, e depois, durante milhs de anos, seguir unido com a Terra, sem nenhum outro sentido e sem finalidade, girando em volta do Sol? Para arrefecer e depois percorrer o espao, no valia a penatirar o homem do no ser, com a sua inteligncia divina, e, a seguir, como para lhepregar a partida, convert-lo em barro."

    O intercmbio de matria! Que cobardia consolar-se com este sucedneo da imortalidadOs processos inconscientes que se verificam na natureza esto inclusivamente abaixo da estupidez humana, j que na estupidez, apesar de tudo, h conscincia e vontade nos processos da natureza no h absolutamente nada. S o cobarde, em quem o medoa morte superior dignidade, pode consolar-se pensando que o seu corpo viver com tempo, na erva, numa pedra, num sapo,... Ver a prpria imortalidade no intercmbiodas matrias to absurdo como prometer um futuro brilhante ao estojo, depois que o alioso violino se estragou e deixou de servir.

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    Quando soam no relgio as badaladas, Andrei Efemich instala-se na cadeira e fechaos olhos para meditar um pouco, e, sem dar por isso, movido pelos agradveis pensa

    mentos que acabou de ler no livro, lana um olhar pelo passado e pelo presente. Opassado assunto que afasta, melhor no o recordar. Quanto ao presente, passa-se grande parte o mesmo. Sabe que enquanto os seus pensamentos giram volta do Sol, semelhana da Terra arrefecida, a meia dzia de passos, no pavilho principal, h que sofre vtima das suas enfermidades e da sociedade que a rodeia. Acaso h algum ue no dorme e luta com os insectos, algum que contraiu erisipela, ou geme sofrendoa dor de uma ligadura apertada. Talvez os doentes estejam a jogar s cartas com as enfermeiras e bebendo vodka. No ano passado foram enganadas doze mil pessoas.Toda a organizao hospitalar, tal como h vinte anos, assenta no roubo, nas discussnas intrigas, na proteco injusta, no logro grosseiro, continuando o hospital a ser um estabelecimento imoral e nocivo, no mais alto grau, para a sade das pessoas.Sabe que na enfermaria nmero seis, por detrs das grades, Nikita espanca os doentes e que Moiseika percorre a cidade todos os dias pedindo esmola.

    Por outro lado, sabe perfeitamente que, durante os ltimos vinte e cinco anos, seproduziu na Medicina uma mudana espectacular. Quando estudava na Universidade, pensava que a Medicina teria em breve a sorte da Qumica e da Metafsica; agora, pelocontrrio, a Medicina comovia-o, despertando nele admirao e at mesmo entusiasmo, do, noite, se documentava lendo, efectivamente, que inesperada grandeza, que revoluo! Graas aos anti-spticos, realizavam-se operaes que o grande Pirogov consimpossveis at in spe. Os simples mdicos de provncia decidiam fazer resseces do entre cem laporotomias, apenas se registava um caso mortal; e as pedras no rim eram consideradas uma doena to insignificante que nem sequer havia nada escrito sobre ela. A sfilis curava-se radicalmente. E a teoria da hereditariedade, o hipnotismo, as descobertas de Pastcur e de Koch, a higiene baseada na estatstica, a medicina russa dos zemstvos? A psiquiatria, com a sua actual classificao das doenas, m os mtodos de diagnstico e de tratamento, era qualquer coisa de inacreditvel, em

    omparao com o

    ' Nikolai Ivanich Pirogov (1810-1881), cirurgio russo. As suas investigaes deram meo orientao anatmica experimental em cirurgia. Contribuiu muito para o avano tesia (N. do T.).

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    que existia antes. Agora j no se deitava gua fria na cabea dos loucos, nem os meem coletes-de-foras; facultavam-lhes condies humanas de vida, e, segundo publicav

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    m os jornais, at lhes ofereciam espectculos e bailes. Andrei Efimich sabia que, dentro desta ordem de coisas, uma vergonha como a da enfermaria nmero seis s era possvel, a duzentos verxtas do caminho de ferro, numa miservel cidade em que o presidente da Cmara e todos os vereadores eram semianalfabetos, que viam no mdico um sacerdote no qual era obrigatrio acreditar sem a mais pequena crtica, ainda que deitasse na boca estanho derretido. Noutro lugar, desde h muito que o pblico e os jornais teriam feito em pedaos esta pequena Bastilha.E, ento? pergunta a si prprio Andrei Efimich, abrindo os olhos. Qual o resultado isto tudo? Temos os anti-spticos, Koch, Pasteur, mas nada mudou na sua essncia. Amorbidez e a mortalidade continuam na mesma. Celebram-se bailes e espectculos para os loucos, mas no entanto no os deixam sair rua. Ou seja, que tudo absurdo e v

    e que, na sua essncia, entre a melhor clnica de Viena e o meu hospital no existe alquer diferena.Mas o desgosto e um sentimento parecido com a inveja no lhe permitem ficar indiferente. A causa deve ser a fadiga. A cabea pesa-lhe e inclina-se sobre o livro. Pea mo debaixo da cara como se fosse uma almofada e pensa: "Estou ao servio de uma obra prejudicial e recebo dinheiro de pessoas a quem engano. Mas s por mim no sou nada, uma simples partcula de um mal social necessrio: lodosos funcionrios do distto so nocivos e recebem um ordenado que no mereceram... O que significa que no soeu o culpado de ser desonesto, mas sim o tempo... SE tivesse nascido duzentos anos mais tarde, seria um homem diferente."s trs horas apaga o candeeiro de petrleo e dirige-se para o dormitrio. No tem s

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    VIII

    Dois anos antes, o zemstvo sentira-se generoso e votara a concesso de um crdito detrezentos rublos anuais para aumentar o pessoal do hospital da cidade at que seinaugurasse outro mais apropriado. Para ajudar Andrei Efimich, requisitaram-se os servios de Evgueni riodorich Kobotov. Era um mdico muito jovem ainda no completa trinta anos, moreno e alto, com as mas do rosto salientes e olhos pequeninos. Osseus antecessores, provavelmente, no eram russos. Chegara cidade sem um kopek, com uma maleta e uma mulher feia e jovem, que dizia ser sua cozinheira. A mulhertrazia um filho de peito, Evgucni Fiodorich Kobotov usava gorro de pala e botasaltas, e no Inverno uma pelica. Tornou-se ntimo amigo do assistente Serguei Sergueich e do tesoureiro, mantendo-se afastado dos demais funcionrios, a quem no se sa

    be por que razo chamava aristocratas. No tinha em sua casa seno um nico livro: Receitas da Clinica de Viena para 1881, que levava sempre consigo quando ia visitar um doente. De tarde jogava bilhar no clube, pois no apreciava jogos de cartas. Gustava muito de empregar na conversao palavras e expresses como "pachorra", "ppinos de conserva", "no armes sarilhos", etc.Ia duas vezes por semana ao hospital, percorria as enfermarias e recebia os doentes externos. 'A total falta de anti-spticos e as ventosas irritavam-no, mas no sedecidia a fazer inovaes com receio de poder com isso melindrar Andrei Efimich. Considerava este um velho farsante, tomando-o por um homem rico e invejando-o no seu ntimo. De muito boa vontade ocuparia o seu lugar.

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    IX

    Numa noite primaveril de fins de Maro, quando a neve desaparecera do cho e os estorninhos cantavam no jardim do hospital, o mdico saiu at ao porto para acompanhar chefe dos Correios, seu amigo. Naquele preciso momento entrava no ptio o judeu Moiseika, que regressava com o seu peclio. No trazia gorro e vinha sem meias, com osps enfiados nuns tamancos muito usados. Trazia na mo um saquito com as esmolas.- D-me um kopek - pediu ao mdico, tiritando de frio e sorrindo. Andrei Efimich, e nunca soubera dizer que no, deu-lhe uma moeda de dez, kopcks."Que horror! pensou, olhando para os seus ps descalos, com os tornozelos delgados

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    e roxos. Vem completamente molhado."E, movido por um sentimento ao mesmo tempo de piedade e de repugnncia, dirigiu-seao pavilho atrs do judeu, olhando a sua cabea calva e os tornozelos. Ao ver entro doutor, Nikita levantou-se num salto de sobre o monto de trapos onde estava deitado e colocou-se em posio de sentido.- Ol, Nikita - disse Andrei Efimich em tom suave - era preciso dar umas botas a este judeu; seno pode apanhar um resfriamento.- As suas ordens, meu senhor. Levarei esse assunto ao conhecimento do inspector.- Sim, faz favor. Pede-lhe em meu nome. Diz que sou eu que peo.A porta do vestbulo que dava entrada para a sala estava aberta. Ivan Dmitrich permanecia deitado no seu catre, ergueu-se atento quela voz estranha, tendo de sbito

    reconhecido o mdico. Estremecendo de clera, ps-se de p, num salto, congestionado om os olhos a sair das rbitas, e correu para o meio da sala.

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    - Chegou o mdico! - gritou, dando uma gargalhada. - Finalmente! Felicito-os, meussenhores, o mdico dignou-se visitar-nos! Maldito rptil! - gritou, e, frentico comnunca o tinham visto na enfermaria, deu com o p uma pancada no cho. - Temos que matar este rptil! No, mat-lo pouco! Temos que o lanar ao fundo do poo!Andrei Efimich, que o ouvira, olhou-o do vestbulo e perguntou suavemente:- E ento, porqu?- Porqu? - gritou Ivan Dmitrich, aproximando-se dele com ar ameaador e agitando-seconvulsivamente na sua bata. - Porqu? ladro! - acrescentou com repugnncia, junta

    o os beios como se se preparasse para lhe cuspir - Charlato! Carrasco!- Acalme-se - disse Andrei Efimich, sorrindo como quem se desculpa. - Asseguro-lhe que nunca roubei nada a ningum, e quanto ao resto exagera provavelmente muito.Noto que est muito zangado comigo. Peo-lhe que sossegue, se puder, e diga-me calmamente: quais os motivos do seu aborrecimento?- Porque me tem aqui?- Porque est doente.- Sim, estou doente. Mas dezenas e centenas de loucos passeiam em liberdade porque, na sua ignorncia, ningum os distingue das pessoas ss. Por que razo estes desos e eu temos que estar aqui em nome de todos, como cabeas-de-turco? O senhor, oassistente, o inspector e toda essa canalha do hospital esto moralmente muito abaixo de ns. Porque havemos de estar encarcerados e no vocs? Onde est a lgica dis- O sentido moral e a lgica no tem nada a ver com isso. tudo obra do destino. En

    ntram-se aqui os que foram internados, e aqueles que no foram passeiam-se livremente, e tudo. O facto de eu ser mdico e voc um doente mental no tem nada a ver po caso, nem a moral nem a lgica; simplesmente o destino.- No entendo essa estupidez... - balbuciou em surdina Ivan Dmitrich, e sentou-seno seu catre.Moiseika, a quem Nikita no se atrevia a castigar em presena do mdico, foi colocanem cima da cama nacos de po, papis e ossos, e ainda tiritando de frio principioua falar, com voz, rpida e cantante, em hebreu. Imaginava provavelmente que tinhaaberto uma loja.

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    - Deixe-me ir embora - disse Ivan Dmitrich com voz trmula.

    - No posso.- Porqu? Porqu?- Porque isso uma coisa que no depende de mim. Avalie voc prprio: que acontecerdeixar sair? V-se embora. Arrisca-se a ser preso pela gente da cidade, ou pela Polcia, e voltaro a traz-lo.- Sim, sim, isso verdade... - articulou Ivan Dmitrich, e passou a mo pela fronte.- horrvel! E que posso fazer? O qu?A voz de Ivan Dmitrich e a sua cara jovem e inteligente, agitada por tiques nervosos, agradaram a Andrei Efimich. Sentiu desejo de lhe dizer alguma coisa carinhosa e consoladora. Sentou-se junto dele no catre, ficou uns instantes pensativo

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    e disse:- Que h-de fazer, pergunta? Na sua situao o melhor seria fugir daqui. Mas infelizmnte seria intil. Prend-lo-iam. Quando a sociedade se protege contra os delinquentes, enfermos mentais e gente que incomoda em geral, no h ningum que se possa defenr. A nica soluo que lhe resta dominar-se, procurando compreender que a sua estaqui necessria.- No necessria para ningum.- Visto que existem as prises e os manicmios, algum tem que l estar; se no for or serei eu, e se no for eu ser outra pessoa. Aguarde; quando num futuro longnquo eixarem de existir as prises e os manicmios, no haver mais grades nas janelas nemsas fardas. Isto suceder, claro, mais tarde ou mais cedo.

    Ivan Dmitrich sorriu com ironia.- Est a brincar - disse revirando as plpebras. - As pessoas como voc e o seu ajudte Nikita no se preocupam absolutamente nada com o futuro. Mas pode estar certo,senhor, de que viro tempos melhores! Talvez me exprima de maneira banal, ria-se se quiser, mas resplandecer a aurora de uma vida nova, triunfar a justia e ns estos de parabns, eu j no assistirei a isso, rebentarei antes, mas v-lo-o os nosso tos. Sado esse momento com toda a minha alma e alegro-me. Alegro-me por eles! Avante! Que Deus os ajude, amigos!Ivan Dmitrich levantou-se, com os olhos resplandecentes, e, estendendo as mos emdireco janela, prosseguiu com voz emocionada:- Atravs destas grades os abenoo! Viva a justia! Estou satisfeito!

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    - No vejo grandes motivos para se alegrar - replicou Andrei Efimich, a quem a atitude de Ivan Dmitrich, embora lhe parecesse teatral, agradara extremamente. - Nohaver prises nem manicmios, e a justia, segundo a sua prpria expresso, triunfamudar a essncia das coisas, e as leis da natureza sero as mesmas. Os homens sofredoenas, envelhecero e morrero tanto como agora. Por melhor que seja a estrela quelumina a sua vida, no final metem-nos num atade e lanam-nos na fossa.- Ha imortalidade?- No fale nisso!- O senhor talvez no acredite nela.mas eu acredito. Numa obra de Dostoievski ou Voltaire, h algum que diz que se Deus no existisse, t-lo-iam inventado os homens.ou profundamente convencido de que se a imortalidade no existe, mais tarde ou mais cedo ser superiormente inventada pela mentalidade humana.

    - Bem dito - articulou Andrei Efimich, sorrindo satisfeito. - Agrada-me que voc acredite. Com essa f, at mesmo um enclausurado pode viver perfeitamente. Voc fez auns estudos? - Sim, estive na Universidade, mas no cheguei a acabar a carreira.- Voc um homem que sabe pensar. Em qualquer situao pode encontrar tranquilidadeerior. O pensamento livre e profundo, que aspira a compreender a vida, e o desprezo total pela estpida vaidade humana so os dois bens supremos que o homem conhece, e voc pode possu-los ainda que viva atrs de grades. Digenes viveu num tonel, mapesar disso, foi mais feliz que todos os reis da Terra.- Digenes era parvo - rosnou Ivan Dmitrich, mal humorado. - Porque me fala de Digenes e da compreenso humana? - explodiu subitamente, pondo-se de p. - Eu amo a vida, amo-a apaixonadamente! Sofro de mania da perseguio, um medo permanente que me tortura, mas h momentos em que me domina a sede de viver, e ento receio enlouquecer.

    Tenho uma nsia de viver espantosa,espantosa!Dominado pela agitao, deu uns passos pela sala e disse, baixando a voz:- Quando sonho vejo fantasmas. Aparecem-me uns homens, oio vozes, msica, parece-meque passeio por um bosque beira-mar, e sinto um tal desejo de ter interesses navida, fazer alguma coisa... Diga-me, que h de novo por a? - perguntou Ivan Dmitrich. - Que novidades h?

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    - Deseja saber da cidade ou de uma maneira geral?

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    - Bem, em primeiro lugar fale-me da cidade e depois em geral.- Que posso dizer-lhe? A vida na cidade de um aborrecimento que d nuseas... No hquem trocar uma palavra, no h ningum que se possa ouvir. No h gente nova. Quanresto, chegou h pouco Kobotov, o jovem mdico.- Chegou antes de me terem internado. um homem boal, no verdade?- Sim, no um homem culto. estranho, sabe?... De uma maneira geral, nas nossas cades no h estagnao intelectual, h movimento: quero dizer que nas cidades deve hente capaz. Mas, no sei porque, mandam-nos sempre pessoas para quem no se pode nemolhar. Desgraa da cidade!- Sim, desgraada cidade! - suspirou Ivan Dmitrich e desatou a rir. - E, de um modo geral, que se passa? Que dizem os jornais e as revistas?

    A sala estava j envolta em penumbra. O mdico levantou-se e, sempre de p, principia contar o que se publicava no estrangeiro e na Rssia, e qual a orientao que se servava no campo das ideias. Ivan Dmitrich escutava atentamente e fazia perguntas; mas, de repente, como se recordasse qualquer coisa de horrvel, agarrou a cabeacom as mos, deitando-se no catre, de costas para o mdico.- Que lhe aconteceu? - perguntou Andrei Efimich.- No ouvir nem mais uma pergunta minha! - articulou grosseiramente Ivan Dmitrich.Deixe-me!- E porque?- Repito que me deixe! Que diabo est a fazer aqui? - Andrei Efimich encolheu os ombros, deixou escapar um suspiro e abandonou a enfermaria. Ao passar no vestbulodisse:- Seria conveniente limpar isto, Nikita... Est um cheiro horrvel!

    - As suas ordens, meu senhor."Que rapaz to interessante pensou Andrei Efimich, enquanto se dirigia ao seu andar. Desde que vivo aqui, creio que a primeira pessoa que encontro com quem se pode falar. Sabe raciocinar e interessa-se precisamente pelo que deve ser."Durante a sua sesso de leitura e depois, ao deitar-se, no deixou de pensar em IvanDmitrich. Ao acordar, na manh seguinte, recordou que na vspera conhecera um homeminteligente e com interesse, tomando a deciso de ir visit-lo na primeira oportunidade.

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    Ivan Dmitrich permanecia na mesma posio da vspera, com a cabea entre as mos e aas encolhidas. No se lhe via a cara.

    - Boas tardes, meu amigo - disse Andrei Efimich. - No est a dormir?- Em primeiro lugar, no sou seu amigo - retorquiu Ivan Dmitrich, com a cara enterrada na almofada. - E, em segundo lugar, intil o seu interesse: no me arrancar s palavra.- estranho... - balbuciou Andrei Efimich, perturbado. - Ontem estvamos a conversar tranquilamente e, de repente, voc ofendeu-se e no quis continuar...Terei talvezdito coisas que no lhe agradaram, ou manifestado alguma opinio contrria s suas ids...- Como posso acreditar em si? - disse Ivan Dmitrich,erguendo-se e olhando o mdicocom uma mistura de ironia e de inquietao; os seus olhos estavam injectados de sangue. - Pode ir espiar e iludir para outro stio; aqui no tem nada que fazer. Ontemcompreendi bem as razes que o trouxeram.- Que estranha fantasia! - sorriu o mdico com ironia. - Imaginar voc que sou um e

    io?- Penso que sim... Um espio ou um mdico a quem incumbiram da misso de me pr prmesma coisa.- Que pessoa to excntrica que voc . Perdoe-me a expresso. - O mdico sentou-se quinha junto da cama e abanou a cabea num gesto de reprovao.- Suponhamos que tem razo - prosseguiu. - Admitamos que venho com a malvola intene o fazer falar para o denunciar. Podem lev-lo preso e a seguir conden-lo. Mas estaria pior no tribunal e na priso do que aqui? E ainda que o exilem e inclusivamente o

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    mandem para o presdio, seria pior do que permanecer neste pavilho? Creio que no ..Ento de que tem medo?Estas palavras pareceram influir em Ivan Dmitrich, que se sentou calmamente.Eram pouco mais de quatro da tarde, hora em que Andrei Efimich tinha por costumepassear pelas divises da sua casa e Dariushka lhe perguntava se queria cerveja.Estava um dia tranquilo e claro.- Depois do jantar sa a dar um passeio e vim at aqui, como pode verificar - disseo mdico. - Est um tempo primaveril.- Em que ms estamos? Em Maro? - perguntou Ivan Dmitrich.

    - Sim, em fins de Maro.- H lama nas ruas?- No, nem por isso. No jardim j h veredas.- Neste momento gostaria de dar um passeio de carro pelos arredores da cidade -ponderou Ivan Dmitrich, esfregando os olhos avermelhados como se despertasse dosono. - E depois voltar para casa, para um escritrio aquecido e confortvel, e fazer que um bom mdico me curasse a dor de cabea... J h tempos que no vivo como gento aqui um nojo! Um nojo insuportvel!Depois da excitao da vspera, estava cansado e falava com desalento. Tremiam-lhe odedos e notava-se pela sua expresso que lhe doa muito a cabea.- Entre um escritrio aquecido e confortvel e esta sala no h a mais pequena diferrespondeu Andrei Efimich. - O repouso e a satisfao no esto fora do homem, mas deo de si prprio.

    - Que quer isso dizer?- O homem vulgar espera o bom e o mau do exterior, quer dizer, do carro e do escritrio, enquanto o homem que pensa espera-o de si prprio.- V pregar essa filosofia para a Grcia, onde est calor e cheira a laranjas; o cliaqui no favorece. Com quem falei de Digenes? Foi consigo?- Sim, foi ontem comigo.- Digenes no precisava de um escritrio e uma casa aquecida; a Grcia um pas qudia permanecer no seu tonel comendo laranjas e azeitonas. Mas se tivesse vividona Rssia, j no digo em Dezembro, mas mesmo em Maio, teria pedido uma casa. Ficarigelado.- No. Pode resistir-se ao frio como a qualquer outra dor. Marco Aurlio disse: "A dor a exteriorizao viva da dor: faz um esforo de

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    vontade para mudar esta exteriorizao, repele-a, deixa de te lamentar, e a dor desaparecer." Isto exacto. O sbio ou simplesmente o homem que pensa, que medita, disngue-se precisamente pelo facto de que despreza o sofrimento. Est sempre satisfeito e nada o desgosta.- Quer isso dizer que sou idiota, visto que sofro, estou descontente e desgosta-me a maldade humana.- No deve pensar assim. Se reflectir, compreender a significao de tudo o que er, tudo o que nos inquieta. H que tentar compreender a vida; nisso est o verdadeiro bem.- Compreender a vida... - replicou Ivan Dmitrich, franzindo o sobrolho. - O exterior, o interior... Perdo, mas no o compreendo. A nica coisa que sei - concordou,

    evantando-se e olhando irritado para o mdico - a nica coisa que sei que Deus me iou com sangue quente e nervos, como est a ouvir! O tecido orgnico, se capaz de da, deve reagir a qualquer excitao. E eu reajo! A dor respondo com gritos e lgrim; maldade, com indignao; vilania, com asco. Quanto a mim, isto , na realidadelo a que se chama vida. Quanto mais dbil o organismo, menos sensvel se mostra e mis frouxamente resiste excitao. E quanto mais elevado, tanto mais sensvel e ena sua reaco realidade. Como pode ignor-lo? voc mdico e no sabe umas coisas es! Para desprezar a dor, estar sempre satisfeito e no se preocupar com coisa alguma h que atingir esse estado - Ivan Dmitrich apontou para o mujique obeso, transbordante de gordura -, ou ento ter-se identificado com a dor at ao extremo de perd

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    er qualquer sensibilidade em relao a si prprio; ou seja, por outras palavras, deir de existir. Perdoe-me, no sou sbio nem filsofo - prosseguiu, irritado -, e no reendo nada destas coisas. No me sinto em condies de raciocinar.- Pelo contrrio, voc raciocina at muito bem.- Os esticos a que voc se refere eram homens notveis, mas a sua doutrina estagnou dois mil anos e no avanou mais, nem avanar, porque no prtica nem tem vida. Apve um certo xito entre uma minoria que passa o seu tempo a estudar e a ruminar toda a espcie de doutrinas; a maior parte das pessoas no chegou a compreend-la. Uma outrina que preconiza a indiferena em relao s riquezas, s comodidades da vida, esdm pelos sofrimentos e a morte, totalmente incompreensvel para a imensa maioriaj que esta no conheceu nunca as riquezas nem as comodidades. E desprezar o sofrime

    nto significaria para ela desprezar a prpria vida, visto que o39

    homem na sua essncia feito de sensaes de fome, frio, desconsideraes, derrotasedo perante a morte semelhana de Hamlet. Nestas sensaes est encerrada a vida i: pode cansar-nos, podemos odi-la, mas no desprez-la. Assim, portanto, repito: a utrina dos esticos nunca poder ter futuro. Pelo contrrio, aquilo que progride, coorme pode observar, desde o princpio do mundo at ao dia de hoje, a luta, a sensilidade perante a dor, a capacidade de responder s excitaes...Ivan Dmitrich perdeu subitamente o fio ao discurso e calou-se, passando irritadoa mo pela testa.- Queria dizer qualquer coisa importante, mas no me recordo - declarou. - De que

    tenho estado a falar? Ah, verdade! J sei o que estava a dizer. Um estico vendeu-como escravo para redimir o seu semelhante. Como v, isso significa que tambm o estico reagiu excitao, visto que para realizar um acto to generoso como o de se lar a si prprio para bem do prximo necessrio ter uma alma capaz de se indignar se compadecer. Aqui, nesta priso, esqueci tudo o que aprendi; possua alguns conhecimentos que poderia recordar. E, se olharmos para Cristo? Cristo reagiu perantea realidade com as suas lgrimas, o seu sorriso, a sua tristeza, a sua clera, at msmo com a sua angstia. No foi com um sorriso ao encontro do sofrimento, nem desprezou a morte, mas, pelo contrrio, orou no horto de Getsmani, para que afastassem dele o clix da amargura.Ivan Dmitrich principiou a rir e sentou-se.- Admitamos que a tranquilidade e a satisfao esto dentro do prprio homem, e no ele - disse. - Admitamos que h que desprezar o sofrimento e no se admirar com cois

    a alguma. Mas em que se apoia voc para o proclamar? Julga-se um sbio? Um filsofo?- No, no sou um filsofo, mas isto qualquer pessoa o deve proclamar, porque sens- No, o que pretendo saber porque se considera competente no que respeita comprnso do mundo, o desprezo pelo sofrimento e tudo o mais. Acaso no ter sofrido nuncTem alguma noo do que o sofrimento? Diga-me: batiam-lhe quando era pequeno?- No, meus pais eram contrrios aos castigos corporais.- Pois, a mim, meu pai tocava-me a pavana. Era um funcionrio pblico, de carcter vlento, que sofria de hemorridas, e tinha um grande nariz e pescoo amarelo. Mas falemos de si. Em toda a sua vida nunca ningum lhe tocou nem com um dedo, ningum o assustou nem

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    lhe bateu; tem uma sade de ferro, cresceu amparado por seu pai, que lhe pagou osestudos, e depois obteve imediatamente uma sinecura. Vive de graa h mais de vinteanos, numa casa com aquecimento e luz. tendo uma servial; deixam-no trabalhar como e quando quer; pode, inclusivamente, no fazer nada. preguioso e frouxo por nateza, por isso tratou de organizar a sua vida de modo a que nada o inquietasse nem obrigasse a mexer-se. Abandonou tudo nas mos do assistente e outros canalhas, enquanto o senhor ficava na sua casa aquecida e silenciosa, juntava dinheiro, lialivros, entregava-se a meditaes sobre toda a espcie de sublimes coisas estpidas aqui Ivan Dmitrich parou fitando o nariz vermelho do mdico - bebia. Numa palavra, no sabe nada da vida, no a conhece em absoluto; da validade tem apenas uma noo

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    ca. Se desdenha do sofrimento e nada o perturba, por uma razo muito simples: vaidade das vaidades; o externo e o interno, o desprezo pela vida, pelos sofrimentose pela morte, a compreenso do mundo, o verdadeiro bem: tudo isto e a filosofia mais apropriada ao vadio russo. Voc v, por exemplo um mujique a bater na mulher. Para qu meter-se de permeio? Que lhe bata; tanto faz, tm de morrer os dois mais tarde ou mais cedo; alm do mais, quem bate no magoa com as suas pancadas a quem as recebe, mas a si prprio. Embebedar-se uma coisa estpida e indecorosa, mas beber mr e no beber tambm o . Aparece uma mulher com dor de dentes... E ento? A dor o do sofrimento e sem doenas impossvel viver; todos temos de morrer. Assim o qu, her? Vai-te daqui e deixa-me que pense e beba vodka. Um jovem pede um conselho,pergunta que deve fazer, como viver. Outro, antes de responder, meditaria, mas v

    oc tem a resposta preparada: procura compreender o sentido da existncia ou aspiraao autntico bem. E o que esse fantstico "autntico bem"? No existe resposta, clns tm-nos aqui entre grades, apodrecemos, martirizamo-nos, mas isso belo e racial, porque entre esta enfermaria e um escritrio aquecido e confortvel no h nenhuiferena. uma filosofia muito cmoda; no h nada a fazer, a pessoa tem a conscinquila e considera-se sbio... No, senhor, isso no filosofia, no pensamento, na de ideias, mas preguia, mentalidade de faquir, hipteses... Sim! - voltou a irritar-se Ivan Dmitrich - despreza o sofrimento, mas se lhe entalassem um dedo numaporta bradava aos cus!- Talvez no - disse Andrei Efimich, sorrindo docemente.

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    - Claro que sim! Mas se acaso ficasse paraltico ou se, suponhamos, um estpido e insolente, valendo-se da sua posio e do seu prestgio, o ofendesse em pblico e voc se conhecimento que o assunto ia ficar impune, compreenderia ento o que significaisso de se conformar, no que se refere aos outros, ao sentido da vida e ao autntico bem.- Isso original - disse Andrei Efimich, rindo de satisfao e esfregando as mos. pressiona-me agradavelmente o seu gosto pelas generalizaes, e o que disse de mim implesmente brilhante. Tenho que confessar que a conversa consigo me proporcionaum prazer extraordinrio. Bem, estive a ouvi-lo; agora faa o favor de me ouvir a mim...

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    XI

    Esta conversa prolongou-se cerca de uma hora e produziu, segundo parece, uma profunda impresso em Andrei Efimich. A partir de ento habituou-se a ir todos os diasao pavilho. Costumava aparecer de manh e depois do jantar, sendo frequentemente surpreendido ao entardecer a conversar com Ivan Dmitrich. Nos primeiros tempos este mostrava-se insocivel, desconfiando que Andrei Efimich vinha de m f, e manifestdo abertamente a sua hostilidade; mas depressa se acostumou a cie e a sua brusquido de antes transformou-se numa atitude indulgente e irnica.No tardou em propagar-se no hospital o rumor de que o doutor Andrei Efimich comeara a visitar a enfermaria nmero seis. Ningum, nem o assistente, nem Nikita, nem asenfermeiras, compreendiam a razo dessa atitude, nem porque passava ali as horas mortas, ou de que assunto falava, e porque nunca receitava. As suas atitudes caus

    avam estranheza. Mikail Avcrianich frequentemente no o encontrava em casa, coisaque antes nunca acontecia. E Dariushka sentia-se desorientada, em virtude de o mdico ter deixado de tomar a sua cerveja a determinada hora, e at s vezes chegar tarde para comer.Numa ocasio passava-se isto j em fins de Junho , tendo o doutor Kobotov tido necessidade de falar com Andrei Efimich, foi a sua casa; como no o encontrasse, procurou-o no ptio, onde lhe disseram que o velho mdico estava no pavilho com os doentementais. Ao entrar no pavilho, parou no vestbulo ouvindo a seguinte conversa:- Nunca chegaremos a um acordo, no conseguir convencer-me - dizia Ivan Dmitrich, irritado. - O senhor no conhece nada do que a realidade e nunca sofreu. A nica co

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    a que fez

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    foi alimentar-se como uma sanguessuga com os sofrimentos alheios; eu, pelo contrrio, sofri desde o dia em que nasci at ao dia de hoje. Por isso digo-lhe francamente que me considero superior a si e mais competente em todos os sentidos. Voc no ingum para me dar lies.- No pretendo de modo algum convert-lo s minhas convices - murmurava Andrei Efim voz baixa e como lamentando que no quisessem entend-lo. - No se trata disso, meamigo. No se trata de voc ter sofrido e eu no. As alegrias e os sofrimentos so e

    s. Ponhamo-los de parte, e que os leve o vento. Trata-se do que voc e eu pensamos; vemos, um no outro, duas pessoas capazes de pensar e raciocinar, e isto torna-nos solidrios por mais diferentes que sejam os nossos pontos de vista. Se voc soubesse, amigo, como me aborrecem a loucura geral, a falta de talento, a torpeza, ecomo me alegra conversar consigo! Voc uma pessoa inteligente e encanta-me a suaconversa.Kobotov entreabriu a porta, lanando um olhar para a sala. Ivan Dmitrich, com o seu gorro de dormir, e o doutor Andrei Efimich estavam sentados no catre, um ao lado do outro. O louco gesticulava, estremecia, amarfanhava-se convulsivamente nasua bata, enquanto o mdico permanecia imvel, com a cabea baixa; e a sua face estacorada e mostrava uma expresso abatida e triste. Kobotov encolheu os ombros, sorriu ironicamente e trocou um olhar com Nikita. Este encolheu igualmente os ombros.

    No dia seguinte, Kobotov apresentou-se no pavilho acompanhado pelo assistente. Pararam ambos escuta, no vestbulo.- Parece-me que o nosso av perdeu o tino por completo - disse Kobotov ao sair dopavilho.- Senhor, tende compaixo de ns, pecadores! - suspirou o devoto Serguei Sergueich,procurando no meter os ps nas poas para no sujar as recm-lustradas botas. - Se ue lhe diga a verdade prezado Evgueni Fiodorich, h tempos que estava a prever isto.

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    XII

    Depois disto, Andrei Efimich principiou a notar, sua volta, uma atmosfera de mistrio. Os servitas, as enfermeiras e os doentes, quando passavam por ele, fitavam-no com olhar perplexo, comeando logo a cochichar. Agora, Masha, a filhinha do inspector, com quem lhe agradava sempre encontrar-se no jardim do hospital, afastava-se quando ele se aproximava para a acariciar. O chefe dos Correios, Mikail Averianich, ao ouvi-lo, j no dizia: "Tem toda a razo", antes balbuciava, dominado pouma inexplicvel perturbao: "Sim, sim, sim,...", olhando-o pensativo e triste. Semausa aparente, principiou a aconselhar o amigo a que deixasse o vodka e a cerveja; como pessoa delicada que era, no o dizia abertamente, mas com reticncias, falando de um chefe de batalho, excelente pessoa, ou do capelo de um regimento, outra excelente pessoa, que eram vtimas da bebida, tendo-se curado por completo quando deixaram de beber. Tambm o seu colega Kobotov veio, duas ou trs vezes, visitar Andrei Efimich; e aconselhou-lhe igualmente que deixasse as bebidas alcolicas, e sem

    motivo visvel recomendou-lhe que tomasse brometo de potssio.Em Agosto, Andrei Efimich recebeu uma carta do presidente da ('amara pedindo a sua comparncia, a fim de tratar de um assunto de grande importncia. hora marcada, o chegar Cmara Municipal, Andrei Efimich deparou com o chefe da Polcia, o inspecr da escola do distrito, que era tambm vereador, Kobotov, e um indivduo gordo e loiro, que apresentaram como sendo mdico. Este ltimo, que possua um apelido polaco mito difcil de pronunciar, vivia a trinta verstas da cidade, numa granja destinada criao de cavalos, e estava de passagem.

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    - Temos aqui um assunto que lhe diz respeito - disse o vereador a Andrei Efimich, sentando-se mesa depois dos cumprimentos da praxe. - Segundo Evgucni Fiodorich, h pouco espao para a farmcia no pavilho principal e seria conveniente transferpara um dos pavilhes anexos. um assunto a considerar, mas teria que proceder-sea umas certas modificaes.- Sim, doutra forma seria impossvel - disse Andrei Efimich, depois de reflectir uns momentos. - Sim, se reservassem, por exemplo, o pavilho da esquina para farmcia, creio que seriam necessrios, pelo menos, quinhentos rublos. uma despesa sem fundamento. - Fez-se um silncio.- J tive a honra de informar, h dez anos - prosseguiu Andrei Efimich em voz baixa

    - que este hospital, tal como o temos agora, um luxo que a cidade no se pode permitir. Foi construdo nos anos quarenta, quando havia mais recursos. A cidade gastademasiado em obras desnecessrias e em cargos suprfluos. Creio que com o mesmo dinheiro, com uma administrao diferente, poderiam sustentar-se dois hospitais-modelo.- Vamos pois mudar a administrao! - disse vivamente o vereador.- J tive a honra de informar o seguinte: entreguem os servios mdicos ao zemstvo.- Sim, entreguem o dinheiro ao zemstvo e ficar com todo - retorquiu, rindo, o mdico loiro.- o que costuma acontecer - acentuou o vereador, que tambm rompeu a rir.Andrei Efimich lanou ao mdico loiro um olhar perturbado e disse:- Temos que ser justos.Novamente se fez uma pausa. Serviram o ch. O chefe da Polcia, evidenciando uma inexplicvel perturbao, tocou por cima da mesa no brao de Andrei Efimich e disse:

    - Tem-se esquecido de ns, doutor; claro que voc um eremita: no joga s cartas e ta de mulheres. Sentir-se-ia aborrecido connosco.Principiaram todos a falar na monotonia da vida na cidade para um homem culto. Nohavia nem teatro, nem msica, e no ltimo baile do clube estavam cerca de vinte senhoras e apenas dois cavalheiros. Os jovens no danavam, ficavam no bar ou jogavam cartas. Andrei Efimich, com voz lenta e suave, sem olhar para ningum, disse que era

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    uma pena, uma verdadeira pena, que as pessoas da cidade gastassem as suas energias, o seu corao e a sua inteligncia a jogar s cartas e a criticar, e no soubessquisessem passar o tempo numa conversa interessante ou a ler; no queriam desfrut

    ar dos prazeres que a inteligncia proporciona. Somente a inteligncia tinha interesse e era importante; tudo o mais era ruim e interior. Kobotov, que ouvia atentamente o seu colega, perguntou-lhe de sbito: - Andrei Efimich, quantos so hoje?Obtida a resposta, o doutor loiro e Kobotov, no tom de examinadores conscientesda sua incapacidade, passaram a perguntar a Andrei Efimich que dia era, quantosdias tem o ano e se era certo que na enfermaria nmero seis vivia um extraordinrioprofeta.Em resposta ltima pergunta, Andrei Efimich ruborizou-se dizendo:- Sim, trata-se de um doente, mas um jovem com muito interesse.No voltaram a perguntar-lhe mais nada.Enquanto vestia o sobretudo, na antecmara, o chefe da Polcia colocou-lhe a mo no bro e disse com um suspiro:- Chegou a hora de ns, os velhos, nos retirarmos para descansar!

    Ao sair da Cmara, AndreiEfimich compreendeu que aquela reunio era constituda por a comisso encarregada de se pronunciar sobre as suas faculdades mentais. Recordouas perguntas que lhe tinham feito, corou, e, pela primeira vez na sua vida, sentiu profunda lstima pela carreira mdica."Meu Deus pensou, recordando a maneira como os mdicos acabavam de o julgar , no foi assim h tanto tempo que estudaram psiquiatria e ficaram aprovados; como podem ser to ignorantes? No fazem a menor ideia do que psiquiatria!"E pela primeira vz na sua vida sentiu-se ofendido e irritado.Naquela mesma tarde esteve em sua casa Mikail Avcrianich. Sem sequer o cumprimentar, o chefe dos Correios aproximou-se dele, pegou-lhe em ambas as mos e disse co

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    m voz comovida:- Caro amigo, meu querido amigo, d-me uma prova de que cr na minha sinceridade e me considera seu amigo... Caro amigo! - e, sem deixar falar AndreiEfimich, prosseguiu veementemente. - Lastimo-o pela sua cultura e nobreza de esprito. Oia-me, amigo. A tica profissional obriga os mdicos a ocultar-lhe a verdade, mas eu, como militar que sou, digo-lhe lealmente: voc est doente! Perdoe-me,meu caro, mas verdadh muito que se aperceberam disso quantos o

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    rodeiam. O doutor Evgueni Fiodorich acaba de me dizer que, para bem da sua sade,

    deve descansar e distrair-se, Ele tem toda a razo! exacto! Dentro de alguns diasentro de frias, e projecto mudar de ares. Prove-me a sua amizade: vamos juntos! Deitemos foguetes ao ar!- Sinto-me perfeitamente bem - disse Andrei Efimich, depois de reflectir. - No posso ir. Permita que lhe mostre a minha amizade de outra maneira.Nos primeiros instantes a ideia de ir no sabia onde nem para qu, sem livros, sem Dariushka, sem cerveja, e a ideia de alterar por completo o regime de vida estabelecido ao longo de vinte anos pareceram-lhe absurdas e fantsticas. Mas recordou aconversa na Cmara e o estado de esprito que sentira ao regressar a casa, e ideide afastar-se algum tempo daquela cidade, onde gente estpida o considerava louco,principiou a sorrir.- E onde pensava ir?- A Moscovo, So Petersburgo, Varsvia,... Passei em Varsvia os cinco anos mais fel

    es da minha vida. uma cidade assombrosa! Venha comigo, meu caro!48

    XIII

    Uma semana mais tarde, Andrei Efimich era convidado a descansar, ou seja, a apresentar a sua demisso, facto que ele acolheu com indiferena, e na semana seguinte partia com Mikail Averianich, na diligncia, em direco da estao de caminho de fers prxima. Os dias estavam frescos e claros, o cu azul, e via-se nitidamente a linha do horizonte. Levaram dois dias a percorrer as duzentas verstas que os separavam da estao, pernoitando duas vezes no caminho. Quando nas estaes de servio lheiam ch em chvenas sujas ou demoravam a atrelar os cavalos, Mikail Averianich punha

    -se vermelho e gritava frentico: "Calem-se! No aceito desculpas!" E na diligenciano parava um instante de contar as suas viagens atravs do Cucaso e do reino da Poa. Quantas aventuras tivera, quantos encontros! Falava aos gritos e com uma expresso to estranha que dava a sensao de mentir. Alm do mais, falava respirando paa de AndreiEfimich e rindo s gargalhadas junto ao seu ouvido. Isto incomodava o mdico e no o deixava pensar e concentrar-se.Por motivos de economia, compraram bilhetes de terceira, numa carruagem para no fumadores. Metade dos viajantes era constituda por pessoas bem vestidas. Mikail Averianich no tardou em travar conhecimento com todos e, mudando de um lugar para outro, declarava aos gritos que no deviam ser utilizados aqueles incrveis comboios.Era tudo uma fraude! Viajar a cavalo era outra coisa: percorria cem verstas numdia e sentia-se to fresco como antes. E, na Rssia, as ms colheitas foram devidas o facto de terem secado os pntanos de Pinsk. De uma maneira geral, passavam-se tr

    emendas irregularidades. Exaltava-se, gritava e no deixava ningum intervir. Esta interminvel conversa, semeada de gargalhadas e gestos expressivos, acabou por fatigar Andrei Efimich.

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    "Qual de ns dois o louco?" pensava irritado, "Eu que procuro no incomodar os outs passageiros, ou este egosta, que se julga o mais inteligente de todos e no deixaningum sossegado? "Em Moscovo, Mikail Averianich envergou o casaco do uniforme militar sem dragonas

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    e calas debruadas a vermelho. Andava na rua com bon militar e capote, e os soldados faziam-lhe continncia ao passar. Andrei Hfimich achava que o companheiro perdera tudo quanto de bom tivera noutros tempos, dentro dos seus hbitos senhoriais, guardando apenas o lado mau. Queria ser servido, mesmo quando no era necessrio. Viaos fsforos na sua frente, sobre a mesa, mas chamava o criado para que lhos desse. No se importava de andar diante da criada em trajes menores; tratava por tu todos os criados, sem excepo, inclusivamente os velhos, e quando se zangava chamava-lhes maltrapilhos e estpidos. Tudo isto parecia a AndreiEfimich senhorial, mas repugnante.Em primeiro lugar, Mikail Averianich levou o amigo a visitar a Virgem de Ivcria.Rezou fervorosamente, fazendo profundas genuflexes, com lgrimas nos olhos, e ao t

    erminar deu um profundo suspiro e disse:- Mesmo no sendo crente, parece que se fica mais tranquilo quando se reza. Beijea imagem, meu caro.AndreiEfimich perturbou-se e fez o que lhe disseram. Mikail Averianich, por suavz, entreabriu os lbios e, abanando a cabea, recitou outra orao; novamente os oe lhe marejaram de lgrimas. Foram depois ao Kremlin, onde viram o Canho Rei e o Sino Rainha e at passaram a mo pelo bronze. Contemplaram as paisagens que se estendiam at zamoskovorc Kie e visitaram o templo do Salvador e o museu de Rumiantsev.Comeram num restaurante em Testov. Mikail Averianich examinou demoradamente a ementa, afagando as patilhas, e disse no tom de um gastrnomo habituado a sentir-senos restaurantes como em sua casa: - Vejamos o que tem hoje para nos dar, amigo!

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    XIV

    O mdico ia a um stio e outro, observava, comia, bebia, mas sempre dominado pelo mesmo sentimento: o aborrecimento que Mikail Averianich lhe produzia. Sentia desejo de se ver livre do amigo, de o evitar, de se esconder, mas este julgava-se naobrigao de no se separar dele nem um instante e de lhe proporcionar o maior nmerssvel de distraces. Quando no havia nada para ver, procurava entret-lo com a suersa. Andrei Efimich aguentou dois dias, mas ao terceiro alegou estar indispostoe desejar ficar o dia inteiro no hotel. O amigo declarou que, nesse caso, tambmele ficava. Era, de facto, indispensvel descansar, seno acabariam estafados. Andrei Efimich deitou-se, de bruos, no sof e, cerrando os dentes, escutou o amigo assegurar calorosamente que, mais tarde ou mais cedo, a Frana acabaria por destronar a

    Alemanha; que em Moscovo havia muitos patifes; e que s pelo aspecto no era possvapreciar as qualidades de um cavalo. O mdico principiou a sentir zumbidos nos ouvidos e palpitaes, mas por delicadeza no se atrevia a pedir ao amigo que se fosse mbora ou se calasse. Afortunadamente, Mikail acabou por se aborrecer de estar noquarto do hotel, e depois de comer saiu a dar uma volta.Quando ficou s, Andrei Efimich entregou-se ao prazer do descanso. Que agradvel eraestar imvel, deitado no sof, com a sensao de no haver mais ningum no quarto! do impossvel a verdadeira felicidade. O anjo cado atraioou provavelmente a Deuque sentiu desejos de uma solido que os anjos no conhecem. Andrei Efimich queria pensar no que tinha visto e ouvido nos ltimos dias, mas Mikail Averianich no lhe sada cabea.

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    "E o facto e que tirou as suas frias e veio comigo por amizade, movido por