39
A epistemologia da complexidade Edgar Morin – CNRS, Paris Os 13 mandamentos do paradigma da simplificação 1999 Edgar Morin Diretor honorário de pesquisas do CNRS, Paris, França 1999

A Epistemologia Da Complexidade

Embed Size (px)

DESCRIPTION

1999 Edgar Morin – CNRS, Paris Edgar Morin Diretor honorário de pesquisas do CNRS, Paris, França 1999 Os 13 mandamentos do paradigma da simplificação A e p is t e m o lo g ia d a c o m p le x id a d e E d g a r M o r in C N R S ‐ P a r is

Citation preview

Page 1: A Epistemologia Da Complexidade

 

 

A epistemologia da complexidade Edgar Morin – CNRS, Paris  

Os 13 mandamentos do paradigma da simplificação  

1999 

Edgar Morin Diretor honorário de pesquisas do CNRS, Paris, França 

1999 

Page 2: A Epistemologia Da Complexidade
Page 3: A Epistemologia Da Complexidade

 

A epistem

ologia  

da com

plexidade 

Edgar Morin 

CNRS

 ‐ Paris 

Page 4: A Epistemologia Da Complexidade

 

Page 5: A Epistemologia Da Complexidade

 

 

 

 

 

Conteúdo  

Introdução  1

Mandamentos do paradigma da simplificação  4

1. Geral e universal X particular e singular.  5

2.  Tempo reversível  6

3. Redução ou complementaridade  8

4. Ordem‐Rei  9

5. Causalidade linear  11

6.  A problemática da organização  12

7.  Separação Sujeito e Objeto  14

8. a 11. Ser e existência; formalização e quantificação  16

12. e 13 Confiança absoluta na lógica.  17

A epistemologia complexa  19

À guisa de conclusão  26

Resumo  29

Abstract  29

Notas  31

Page 6: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

A epistemologia da complexidade         Página 2 

Page 7: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

1

 

Introdução  

 questão da complexidade é complexa! 

Em  uma  escola  essa  questão  foi  colocada  a  um  grupo  de crianças:  “Que  é  a  complexidade?” A  resposta de uma  aluna 

foi:  “a  complexidade  é  uma  complexidade  que  é  complexa”.  É evidente  que  se  encontrava  no  âmago  da  questão. Mas  antes  de abordar essa dificuldade, é necessário dizer que o dogma, a evidência subjacente  ao  conhecimento  científico  clássico  é,  como  dizia  Jean Perrin, que o papel do  conhecimento  é  explicar o  visível  complexo pelo  invisível  simples.  Para  além  da  agitação,  da  dispersão,  da diversidade,  há  leis.  Assim,  pois,  o  princípio  da  ciência  clássica  é, evidentemente,  o  de  legislar,  estabelecer  as  leis  que  governam  os elementos  fundamentais  da matéria,  da  vida;  e  para  legislar,  deve desunir,  quer  dizer,  isolar  efetivamente  os  objetos  submetidos  às leis.  Legislar, desunir,  reduzir, esses  são os princípios  fundamentais do  pensamento  clássico1.  De modo  algum  pretendo  decretar  que esses princípios estejam a partir de agora abolidos.   

Mas  as  práticas  clássicas  do  conhecimento  são  insuficientes.  Enquanto  que  a  ciência  de  inspiração  cartesiana  ia  muito logicamente  do  complexo  ao  simples,  o  pensamento  científico contemporâneo  intenciona  ler  a  complexidade  do  real  sob  a aparência  simples  dos  fenômenos.  De  início,  não  há  fenômenos simples. Tomemos o exemplo do beijo. Pensemos na complexidade que é necessária para que nós, humanos, a partir da boca, possamos expressar uma mensagem de amor. Nada parece mais simples, mais evidente. E a despeito disso, para beijar, faz falta uma boca, a forma emergente da evolução do focinho. É necessário que tenha havido a relação própria nos mamíferos em que a criança mama da mãe, e a mãe  que  amamenta  o  filho.  É  necessário,  pois,  toda  a  evolução complexizante que transforma o mamífero em primata, e a seguir em humano, e anteriormente  toda a evolução que vai do unicelular ao mamífero.  O  beijo,  ademais,  supõe  uma mitologia  subjacente  que identifica  a  alma  com  o  sopro  que  sai  pela  boca:  depende  de condições  culturais  que  favorecem  sua  expressão.  Assim,  há cinqüenta anos, no Japão o beijo era inconcebível, incongruente. 

Dito  de  outro modo,  essa  coisa  tão  simples  surge  de  uma  região distante  de  uma  complexidade  assombrosa.  Temos  crido  que  o conhecimento tinha um ponto de partida e um término; hoje penso que o conhecimento é uma aventura em espiral que tem um ponto de  partida  histórico, mas  não  tem  término,  que  deve  sem  cessar realizar  círculos  concêntricos2;  quer  dizer,  o  descobrimento  de  um princípio simples não é o final; reenvia de novo ao princípio simples 

Legislar, desunir, reduzir, esses são os princípios 

fundamentais do pensamento clássico. 

Enquanto que a ciência de inspiração cartesiana ia muito logicamente do complexo ao simples, o pensamento científico 

comtemporâneo intenciona ler a 

complexidade do real sob a aparência simples dos 

Page 8: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

ao  qual  esclareceu  em  parte.  Assim,  pensemos  no  caso  do  código genético que, uma vez descoberto, nos reenvia à pergunta: Por que existe essa diversidade extraordinária de  formas nos  animais e nos vegetais?  Cito  uma  frase  de  Dobzhansky,  o  biólogo,  que  diz: “Desgraçadamente a natureza não  foi gentil o bastante para  fazer as coisas tão simples como nós gostaríamos que fossem. Devemos afrontar  a  complexidade.” Um  físico,  que  é  ao mesmo  tempo  um pensador, David Bohm,  e que  ataca o dogma da  elementaridade  – sobre o qual retornarei – diz: “As  leis físicas primárias  jamais serão descobertas por uma ciência que procura fragmentar o mundo em seus constituintes”. 

Ainda que Bachelard dissesse que, de início, a ciência contemporânea buscava – porque ele pensava na física – a complexidade, é evidente que  os  cientistas  desconheciam  que  isso  era  o  que  lhes  concernia. Freqüentemente  têm  uma  consciência  dupla;  crêem  sempre obedecer  à  mesma  velha  lógica  e  outros  princípios  do conhecimento3. 

Mas  custou  até  que  a  complexidade  emergisse.  Custou  que  ela emergisse,  antes  de  tudo,  porque  ela  não  foi  o  centro  de  grandes debates  e  de  grandes  reflexões,  como  por  exemplo,  foi  o  caso  da racionalidade com os debates entre Lakatos e Feyerabend ou Popper e  Kuhn.  A  cientificidade,  a  falsabilidade  são  grandes  debates  dos quais falamos; mas a complexidade nunca foi debatida. A bibliografia sobre a complexidade é, ao menos pelo que conheço, muito limitada. Para  mim,  a  contribuição  importante  é  o  artigo  de  Weaver, colaborador  de  Shannon,  como  vocês  sabem,  na  teoria  da informação,  quem,  em  1948,  escreveu  o  artigo  “Ciência  e complexidade”  no  Scientific American,  artigo  que  é  um  resumo  de um estudo mais extenso. É Von Neumann quem, na  teoria “On self reproducing automata” aborda com uma visão muito profunda essa questão da complexidade das máquinas, dos autômatas naturais em comparação com os automatas artificiais. Referiu‐se a ela Bachelard em “Le nouvel esprit scientifique”; Von Foerster em diversos escritos, particularmente  em  seu  texto,  agora  bem  conhecido,  “On  self organizing  systems  and  their  environment”.  Temos  H.  A.  Simon: “Architecture of complexity”, que foi primeiro um artigo autônomo e que  foi  a  seguir  compilado  em  seu  livro.  Podemos  encontrar  a complexidade, na França, nas obras de Henri Atlan: Entre Le cristal ET La  fumée,  e  temos Hayek  que  escreveu  um  artigo  entitulado  “The theory  of  complex  phenomena”  em  Studies  in  philosophy,  politics and economics, que é bastante interessante. 4 

Sem  dúvida  tratou‐se muito  da  complexidade  no  domínio  teórico, físico, no domínio sistêmico; mas com freqüência, em minha opinião, tratou‐se,  sobretudo  do  que  Weaver  chama  a  complexidade desorganizada  que  irrompeu  no  conhecimento  com  o  segundo princípio  da  termodinâmica,  o  descobrimento  dessa  desordem 

A idéia da complexidade é uma aventura. Eu diria 

inclusive que não podemos tentar entrar na problemática da 

complexidade se não entramos na da 

simplicidade, porque a simplicidade não é tão 

simples assim. 

Page 9: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

3

microscópica, micro  corpuscular,  no  universo. Mas  a  complexidade organizada é, com  freqüência, reconduzida à complicação.5 Que é a complicação?  Quando  há  um  número  incrível  de  interações,  por exemplo,  entre  moléculas  em  uma  célula  ou  neurônio  em  um cérebro,  esse  número  incrível  de  interações  e  de  inter‐retroações supera  evidentemente  toda  a  capacidade  de  computação  –  não somente  para  um  espírito  humano,  mas  também  para  um computador muito  aperfeiçoado  –  e  então  efetivamente  é melhor ater‐se  ao  input  e  ao  output6.  Dito  de  outro  modo,  é  muito complicado;  a  complicação  é  o  emaranhado  de  inter‐relações. Certamente,  é  um  aspecto  da  complexidade,  mas  creio  que  a importância da noção está em outra parte. A complexidade é muito mais  uma  noção  lógica  do  que  quantitativa.  Ela  possui  certamente muitos  suportes  e  características  quantitativos  que  desafiam efetivamente os modos de cálculo; mas é uma noção de outro tipo. É uma noção a explorar, a definir. A complexidade nos aparece, antes de  tudo, efetivamente  como  irracionalidade,  como  incerteza,  como angústia, como desordem. 

Dito  de  outro  modo,  a  complexidade  parece  primeiro  desafiar  o nosso conhecimento, e de algum modo, produzir nele uma regressão. Cada vez que há uma  irrupção de complexidade precisamente sob a forma  de  incerteza,  de  aleatoriedade,  se  produz  uma  resistência muito  forte.  Houve  uma  resistência  muito  forte  contra  a  física quântica, porque os físicos clássicos diziam: “é o retorno à barbárie, não é possível nos situarmos na indeterminação quando desde dois séculos todas as vitórias da ciência têm sido as do determinismo.” Foi  necessário  o  êxito  operacional  da  física  quântica  para  que finalmente,  se  compreenda  que  a  nova  indeterminação  constituía também um progresso no conhecimento da mesma determinação.7 

A  idéia  da  complexidade  é  uma  aventura.  Diria  inclusive  que  não podemos  tentar  entrar  na  problemática  da  complexidade  se  não entramos  na  da  simplicidade,  porque  a  simplicidade  não  é  tão simples  assim. No meu  texto  “Os mandamentos  da  complexidade” publicado em Science avec conscience, tentei extrair treze princípios do  paradigma  da  simplificação,  quer  dizer,  princípios  de  intelecção mediante simplificação, para poder extrair de modo correspondente, complementar e antagonista ao mesmo tempo – eis aqui uma  idéia tipicamente  complexa  –  princípios  de  intelecção  complexa.  Vou simplesmente  retomá‐los  e  fazer  alguns  comentários.  Essa  será  a primeira  parte  de  minha  exposição;  a  segunda  parte  estará consagrada  um  pouco  mais  precisamente  ao  problema  do conhecimento do  conhecimento8 ou à epistemologia  complexa que está relacionada a tudo isso. 

Page 10: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

  Mandamentos do paradigma da simplificação  

1. Geral e universal X particular e singular 2. Tempo reversível 

3. Redução ou complementaridade 

4. Ordem‐Rei 

5. Causalidade linear 6. A problemática da organização 

7. Separação Sujeito e Objeto 8. a 11. Ser e existência; formalização e quantificação 

12. e 13 Confiança absoluta na lógica. 

Page 11: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

5

1. Geral e universal X particular e singular. 

odemos dizer que o princípio da ciência é:  legislar. Corresponde ao  princípio  do  direito,  talvez.  É  uma  legislação,  mas  não  é anônima, que se encontra no universo, é a  lei. E esse princípio é 

um princípio universal que  foi  formulado pelo  lugar comum: “Só há ciência no geral”, e que comporta a expulsão do  local e do singular. Pois  bem,  o  que  é  interessante  é  que,  inclusive  no  universo,  no universal,  interveio  a  localidade. Quero  dizer  que  hoje  parece  que nosso  universo  é  um  fenômeno  singular,  que  comporta determinações  singulares  e  que  as  grandes  leis  que  o  regem,  que podemos  chamar  de  leis  de  interação  (como  as  interações gravitacionais,  as  interações  eletromagnéticas,  as  interações  fortes no seio dos núcleos atômicos) essas leis de interação não são leis em si, mas  leis que somente se manifestam, somente atuam a partir do momento  em  que  há  elementos  em  interação;  se  não  houvesse partículas materiais não haveria gravitação, a gravitação no existe em si.  Essas  leis  não  têm  um  caráter  de  abstração  e  estão  ligadas  às determinações  singulares  de  nosso  universo;  tivesse  podido  haver outros universos possíveis –  talvez os haja – e que  tivessem outras características  singulares.  A  singularidade  está  a  partir  de  agora profundamente  inscrita  no  universo;  e  ainda  que  o  princípio  da universalidade  resida  no  universo,  vale  para  um  universo  singular onde  aparecem  fenômenos  singulares  e  o  problema  é  combinar  o reconhecimento  do  singular  e  local  com  a  explicação  universal.  O local e singular devem cessar de serem rejeitados ou expulsos como resíduos a eliminar. 9 

P ...o problema é combinar o 

reconhecimento do singular e local com a explicação universal. 

O local e singular devem cessar de serem rejeitados ou expulsos como resíduos 

a eliminar. 

Page 12: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

2.  Tempo reversível 

O  segundo principio é a desconsideração do  tempo  como processo irreversível;  as  primeiras  leis  físicas  puderam  muito  bem  ser concebidas  em  um  tempo  reversível.  E  de  alguma  maneira,  a explicação estava depurada de toda evolução, de toda historicidade. E  também  aqui  há  um  problema  muito  importante:  o  do evolucionismo  generalizado.10 Hoje  o mundo,  quer  dizer  o  cosmos em  seu  conjunto e  a matéria  física em  sua  constituição  (particular, nuclear,  atômica,  molecular),  tem  uma  história.  Já  Ullumo,  nessa epistemologia piagetiana com a qual François Meyer colaborou, dizia muito firmemente: “A matéria tem uma história”; hoje tudo o que é material é pensado, concebido através de sua gênese, sua história. O átomo é visto historicamente. O átomo de carbono é visto através de sua  formação  no  interior  de  um  sol,  de  um  astro.  Tudo  é profundamente  historicizado.  A  vida,  a  célula,  ‐  François  Jacob  o sublinhava  com  freqüência  ‐  uma  célula  é  também  um  corte  no tempo. 

Dito de outro modo, contrariamente a essa visão que reinou durante um  tempo  nas  ciências  humanas  e  sociais,  segundo  a  qual  se acreditava poder estabelecer uma estrutura por eliminação de  toda dimensão  temporal  e  considerá‐la  em  si  fora  da  história,  hoje  de todas  as  outras  ciências  chega  a  chamada  profunda  para  ligar  o estrutural ou organizacional (prefiro dizer este último e direi por que) com o histórico e evolutivo.  E o que é  importante efetivamente, é que  o  problema  do  tempo  foi  colocado  de  maneira  totalmente paradoxal no último século.11 

Com  efeito,  no  mesmo  momento  em  que  se  desenvolvia  o evolucionismo  ascensional  sob  sua  forma  darwiniana,  quer  dizer, uma  idéia de evolução complexante e diversificante a partir de uma primeira protocélula vivente, no momento em que a história humana era  vista  como  um  processo  de  desenvolvimento  e  de  progresso, nesse  mesmo  momento  o  segundo  princípio  da  termodinâmica inscrevia,  ele  mesmo,  uma  espécie  de  corrupção  inelutável,  de degradação  da  energia  que  podia  ser  traduzida  sob  a  ótica boltzmaniana  como  um  crescimento  da  desordem  e  da desorganização.  Estamos  confrontados  com  uma  dupla temporalidade; não é uma  flecha do  tempo o que  surgiu,  são duas flechas  do  tempo,  e  duas  flechas  que  apontam  em  sentido contrário12. A despeito disso, é o mesmo tempo; e a mesma aventura cósmica:  

• certamente, o segundo princípio da termodinâmica inscreve um princípio de corrupção, de dispersão do universo físico;  

...hoje, de todas as outras ciências, chega a chamada 

profunda para ligar o estrutural ou 

organizacional, com o histórico e evolutivo. 

... não é uma flecha do tempo o que surgiu, são duas flechas do tempo, e duas flechas que apontam em sentido contrário. 

Há limites para a elementaridade; mas esses limites não são somente intrínsecos; têm também que ver com o fato de que, uma vez que tenhamos inscrito todo o tempo, a elementaridade aparece 

também como eventualidade, quer dizer 

que o elemento constitutivo de um sistema pode também ser visto 

como evento.

Page 13: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

7

• mas ao mesmo tempo, esse universo físico, em um movimento de dispersão, constituiu‐se e continua se constituindo. 

Constitui‐se  de  galáxias,  de  astros,  de  sóis,  dito  de  outro  modo desenvolve‐se mediante a organização ao mesmo tempo em que se produz mediante a desorganização. O mundo biológico é um mundo que evolui; é a vida; mas a vida, ao mesmo tempo, se faz através da morte  das  espécies.  Houve  quem  quisesse  justapor  esses  dois princípios; é o que Bergson  fez; Bergson, um dos  raros pensadores que  olhou  de  frente  o  segundo  princípio; mas,  segundo  ele,  esse princípio  era  a  prova  de  que  a matéria  biológica  era  diferente  da matéria  física,  já que a matéria  física  tem algo de corrompido nela, enquanto que a substância biológica não padece o efeito do segundo princípio. 

Desgraçadamente para ele, descobriu‐se a partir dos anos 50 que a originalidade da vida não está em sua matéria constitutiva, senão em sua complexidade organizacional.13 

Estamos, pois,  confrontados  a esse  tempo duplo que não  somente tem  duas  flechas,  senão  que  ademais  pode  ser  a  um  só  tempo irreversível e reiterativo. 14  

Foi, evidentemente, a emergência do pensamento cibernético o que mostrou  isso. Não era somente o  fato de que, a partir de um  fluxo irreversível, se pode criar um estado estacionário, por exemplo, o do turbilhão;  no  encontro  de  um  fluxo  irreversível  e  de  um  obstáculo fixo,  como  o  arco  de  uma  ponte,  cria‐se  uma  espécie  de  sistema estacionário que é ao mesmo tempo móvel, já que cada molécula de água  que  turbilhoneia  é  arrastada  de  novo  pelo  fluxo,  mas  que manifesta uma estabilidade organizacional. Tudo  isso  se  reencontra em  todas  as  organizações  vivas:  irreversibilidade  de  um  fluxo energético  e  a  possibilidade  de  organização  por  regulação  e, sobretudo por recursão, quer dizer, autoprodução de si. Assim temos o  problema  de  uma  temporalidade  extremamente  rica, extremamente múltipla e que é complexa.  

Faz‐nos  falta  ligar a  idéia de  reversibilidade e de  irreversibilidade, a idéia  de  organização  de  complexidade  crescente  e  a  idéia  de desorganização  crescente.  Eis  aqui  o  problema  com  o  qual  se defronta  a  complexidade!15  Enquanto  que  o  pensamento simplificante elimina o tempo, ou mesmo não concebe mais do que um tempo único (o do progresso ou o da corrupção), o pensamento complexo  se  defronta  não  somente  o  tempo, mas  o  problema  da politemporalidade na qual aparecem ligadas a repetição, o progresso, a decadência. 

(...) proponho o tetragrama ODIO:  

Ordem – Desordem – Interações – Organização 

(...) este não poderá ser a ordem, nem uma lei, nem 

uma fórmula mestra  E = MC2,  

nem a desordem pura. 

Os princípios de ordem podem inclusive crescer ao mesmo tempo que os de desordem, ao mesmo 

tempo que se desenvolve a organização. 

Na linguagem, o discurso toma sentido em relação à palavra, mas a palavra só fixa seu sentido em relação aos discursos nos quais se encontra encadeada. Aqui também há uma ruptura 

com toda visão simplificante na relação parte‐todo; faz‐nos falta ver como o todo está 

presente nas partes e as partes presentes no todo. 

Page 14: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

 

3. Redução ou complementaridade

O  terceiro princípio da simplificação é o da  redução ou  também da elementaridade. O conhecimento dos sistemas pode ser reduzido às suas  partes  simples  ou  unidades  elementares  que  os  constituem. Sobre isso, serei muito breve. 

Resumo.  É  no  domínio  físico  onde  esse  princípio  parecia  haver triunfado  de modo  incontestável,  domínio  que,  evidentemente,  se encontra mais afetado por esse princípio. Fiz alusão ao problema da partícula  que  é  aporética16  (onda  e  corpúsculo),  e,  portanto  a substância  é  flutuante;  demo‐nos  conta  de  que  naquilo  que  se acreditava ser o elemento puro e simples, a partir de agora existia a contradição, a incerteza, o composto – aludo à teoria do bootstrap.  

Há limites para a elementaridade; mas esses limites não são somente intrínsecos;  têm  também que ver  com o  fato de que, uma vez que tenhamos inscrito todo o tempo, a elementaridade aparece também como eventualidade, quer dizer que o elemento constitutivo de um sistema pode  também ser visto como evento.17 Por exemplo, existe uma  visão  estática  que  consiste  em  considerarmos  nós  mesmos enquanto organismos; estamos  constituídos por de 30 a 50 bilhões de  células.  De  algum  modo,  e  creio  no  que  Atlan  justamente precisou; não estamos constituídos por células; estamos constituídos por interações entre essas células.18 

Não  são  ladrilhos umas ao  lado das outras; estão em  interação.19 E essas  interações,  são  acontecimentos,  eles  mesmos  ligados  por acontecimentos repetitivos que são estimulados pelo movimento do nosso  coração, movimento  ao mesmo  tempo  regular  e  inscrito  em um  fluxo  irreversível.  Todo  elemento  pode  ser  lido  também  como evento. E está,  sobretudo o problema da  sistematicidade; há níveis de emergência; os elementos associados formam parte de conjuntos organizados;  ao  nível  da  organização  do  conjunto,  emergem qualidades que não existem no nível das partes.20 

Certo, descobrimos que  finalmente tudo  isso se passa no nosso ser, não somente no nosso organismo, mas inclusive no pensamento, em nossas idéias, em nossas decisões, que podem reduzir‐se a turbilhões de elétrons. Mas é evidente que não se pode explicar a conquista da Gália  por  Júlio  César  somente  pelos  movimentos  de  turbilhões eletrônicos  de  seu  cérebro,  de  seu  corpo  e  do  dos  legionários romanos.  Inclusive  se  um  demônio  conseguisse  determinar  essas interações  físicas,  nada  compreenderia  da  conquista  da  Gália  que somente pode  ser compreendida ao nível da história  romana e das tribos  gaulesas.  Do  mesmo  modo,  eu  diria,  que  em  termos  de 

Faz‐nos falta ligar a idéia de reversibilidade e de 

irreversibilidade, a idéia de organização de 

complexidade crescente e a idéia de desorganização 

crescente.  

Eis aqui o problema com o qual se defronta a complexidade! 

Page 15: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

9

mudanças  bioquímicas,  os  amores  de  César  e  Cleópatra  são totalmente ininteligíveis. Assim, pois, é certo que não reduziremos os fenômenos  antroposociais  aos  fenômenos  biológicos,  nem  estes  às interações físico‐químicas. 

 

4. Ordem­Rei

 quarto principio  simplificador é o da Ordem‐Rei. O Universo obedece  estritamente  a  leis  deterministas,  e  tudo  o  que parece desordem (quer dizer, aleatório, agitador, dispersivo) é 

somente uma aparência devida unicamente à  insuficiência de nosso conhecimento. 

As noções de ordem e de lei são necessárias, mas insuficientes. Sobre isso,  Hayek,  por  exemplo,  mostra  bem  que  quanto  mais complexidade  houver,  menos  útil  é  a  idéia  de  lei.  Hayek  pensa, obviamente,  na  complexidade  socioeconômica;  é  o  tipo  de preocupação dele; mas ele se dá conta de que é muito difícil, porque são  complexos,  predizer  os  fenômenos  sociais.  É  evidente  que  as “Leis”  da  Sociedade  ou  as  “Leis”  da  História,  são  tão  gerais,  tão triviais, tão planas, que carecem de interesse. Hayek diz: “Portanto, a busca  de  leis  não  é  a  marca  do  procedimento  científico,  mas somente  uma  característica  própria  das  teorias  sobre  fenômenos simples”21. Vincula muito  fortemente a  idéia de  leis com a  idéia de simplicidade.  Eu  penso  que  se  esta  visão  é  bastante  justa  no  que concerne aos fenômenos sociais, não o é menos no mundo físico ou biológico, o conhecimento deve ao mesmo tempo detectar a ordem (as  leis  e  determinações)  e  a  desordem,  e  reconhecer  as  relações entre ordem e desordem. O que é  interessante é que a ordem e a desordem  têm  uma  relação  de  complementaridade  e  de complexidade.  Tomemos  o  exemplo,  que  freqüentemente  cito,  de um  fenômeno  que  apresenta,  sob  uma  perspectiva,  um  caráter aleatório  surpreendente,  e,  sob  outra  perspectiva,  um  caráter  de necessidade; esse  fenômeno é a constituição do átomo de carbono nas caldeiras solares. Para que esse átomo se constitua é necessário que  ocorra  o  encontro,  exatamente  no mesmo momento,  de  três núcleos  de  hélio,  o  que  é  um  acontecimento  completamente aleatório e improvável. A despeito disso, desde que esse encontro se produza, uma lei entra em ação; uma regra, uma determinação muito estrita  intervém;  o  átomo  de  carbono  é  criado.  Assim,  pois,  o fenômeno  tem  um  aspecto  aleatório  e  um  aspecto  de determinação.22 Ademais, o número de  interações entre núcleos de hélio é enorme no seio do Sol; e, além disso, houve muitas gerações de sóis no nosso sistema solar; finalmente com o tempo, se cria uma quantidade considerável de átomos de carbono, se cria em todo caso uma ampla reserva necessária para a criação e desenvolvimento da 

Page 16: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

10 

vida.  Vemos  como  um  fenômeno  que  parece  ser  extremamente improvável,  pelo  seu  caráter  aleatório,  finalmente  é quantitativamente  bastante  importante  e  pode  entrar  em  uma categoria estatística. Tudo isso depende, pois, da perspectiva desde a qual se veja e eu diria, sobretudo que é interessante – é necessário – reunir  todas  essas  perspectivas.  É neste  sentido  que  proponho  um tetragrama, que de nenhum modo é um princípio de explicação, mas que  é  muito  mais  um  modo  de  memorizar  indispensável;  é  o tetragrama ODIO: Ordem – Desordem – Interações – Organização. 

Também devo precisar bem isto; quando se diz tetragrama se pensa em um tetragrama muito famoso, aquele que o Eterno proporcionou a Moisés no Monte Sinai para revelar a ele seu nome, nome sagrado e  impronunciável:  JHVH.  Aqui  o  tetragrama  do  qual  falo  não  é  a Fórmula suprema: expressa a  idéia de que toda a explicação, toda a intelecção  jamais  poderá  encontrar  um  princípio  último;  este  não poderá ser a ordem, nem uma lei, nem uma fórmula mestra E = MC2, nem  a  desordem  pura.  Desde  que  consideramos  um  fenômeno organizado,  desde  o  átomo  até  os  seres  humanos  passando  pelos astros, é necessário  fazer  intervir de modo específico princípios de ordem,  princípios  de  desordem  e  princípios  de  organização23.  Os princípios de ordem podem  inclusive  crescer  ao mesmo  tempo em que  os  de  desordem,  ao mesmo  tempo  em  que  se  desenvolve  a organização. Por exemplo, Lwoff escreveu um livro intitulado L’ordre biologique,  é  um  livro muito  interessante  porque,  com  efeito,  há princípios  de  ordem  que  são  válidos  para  todos  os  seres  viventes, para toda organização vivente. Apenas que esses princípios de ordem válidos  para  toda  organização  vivente  podem  existir  se  as organizações  viventes  são  viventes;  assim, pois, não existiam  antes da existência de  vida,  senão em estado  virtual, e quando a  vida  se extinga  cessarão  de  existir.  Eis  aqui  uma  ordem  que  tem  a necessidade  de  autoproduzir‐se  mediante  a  organização  e  essa ordem é bastante particular  já que  tolera uma parte  importante de desordem,  inclusive  até  colabora  com  a  desordem  como  Von Neumann o viu acertadamente na sua teoria dos autômatas. Assim, pois,  há,  ao  mesmo  tempo  em  que  cresce  a  complexidade, crescimento  da  desordem,  crescimento  da  ordem,  crescimento  da organização  (e  perdoem  que  utilize  essa  palavra  quantitativa “crescimento”). É certo que a  relação ordem‐desordem‐organização não  é  somente  antagônica,  é  também  complementar  e  de antagonismo onde encontramos a complexidade. 

Page 17: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

11

5. Causalidade linear

 antiga  visão,  a  visão  simplificante,  é  uma  visão  na  qual evidentemente a causalidade é simples; é exterior aos objetos; é superior a eles; é  linear. 24 Pois bem, há uma causalidade nova, 

que  introduz pela primeira  vez  a  retroação  cibernética, o  feedback negativo, na qual o efeito faz anel com a causa e podemos dizer que o  efeito  retro  atua  com  a  causa.  Esse  tipo  de  complexidade  se manifesta no exemplo de um sistema de aquecimento de uma casa provido  de  um  termostato,  no  qual  efetivamente  o  mesmo termostato inicia ou detém o funcionamento da máquina térmica. O que é interessante, é que não é somente esse tipo de causalidade em anel  que  se  cria;  é  também  uma  endo‐exo‐causalidade,  já  que  é efetivamente também o frio e o calor exterior o que vai desencadear a  interrupção  ou  ativação  do  dispositivo  de  calefação  central; mas neste  caso, a  causa exterior desencadeia um efeito  interior  inverso do seu efeito natural: o frio exterior provoca o calor interior. Porque faz frio fora, a casa fica quente. Claro, tudo isso pode ser explicado de maneira  muito  simples  quando  consideramos  os  segmentos constitutivos do fenômeno do anel de retroação; mas o anel que liga esses segmentos, o modo de ligar esses elementos resulta complexo. Faz aparecer a endo‐exo‐causalidade.  

A visão simplificante,  logo que se trata de máquinas viventes, busca primeiramente  a exocausalidade  simples; esta  tem  sido  a obsessão condutivista,  por  exemplo.  Pensa‐se  que  o  estímulo  que  provocou uma  resposta  (como  a  saliva  do  cachorro)  produziu  essa  resposta. Depois, nos demos conta de que o interessante era também saber o que  se  passava  no  interior  do  cachorro  e  reconhecer  qual  era  a natureza organizadora da endocausalidade que estimulou o cachorro a  alimentar‐se.  Tudo  o  que  é  vivente,  e  a  fortiori  tudo  o  que  é humano, deve  ser  compreendido  a partir de um  jogo  complexo ou dialógico  de  endo‐exo‐causalidade25.  Assim,  é  necessário  superar, incluindo  no  desenvolvimento  histórico,  a  alternativa  estéril  entre endocausalidade  e  exocausalidade.26  No  que  concerne  à  extinta URSS,  por  exemplo,  duas  visões  simplificantes  se  enfrentam:  a primeira concebe o estalinismo segundo uma causalidade puramente endógena que vai de Marx a Lenin e deste a Stalin como uma espécie de  desenvolvimento  quase  dedutivo  a  partir  de  um  quase‐gen doutrinário;  ao  contrário,  outros  vêem  isso  como  um  fenômeno acidental,  quer  dizer,  vêem  no  estalinismo  o  efeito  das determinações  do  passado  czarista,  da  guerra  civil,  do  cerco capitalista, etc.  

...na visão simplificante a causalidade é simples; é exterior aos objetos; é 

superior a eles; é linear; há uma causalidade nova, que introduz pela primeira vez a retroação cibernética, o feedback negativo, na qual o efeito faz anel com a 

causa. 

Page 18: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

12 

Resulta  evidente  que  nem  uma  nem  a  outra  dessas  visões  são suficientes; o interessante é ver a espiral, o anel de fortalecimento de causas  endógenas  e  de  causas  exógenas  que  faz  que  em  um momento o  fenômeno  se desenvolva em uma direção mais do que em  outra,  dando  por  pressuposto  que  existem  desde  o  começo virtualidades  de  desenvolvimento  múltiplas.  Temos,  pois,  sobre  o tema da causalidade uma revisão muito importante a fazer. 

 

6.  A problemática da organização

obre a problemática da organização, não quero insistir.  

Direi que na origem está o princípio de emergência, quer dizer, que  qualidades  e  propriedades  que  nascem  da  organização  de  um conjunto retro atuam sobre esse conjunto; há algo de não dedutivo no aparecimento de qualidades ou propriedades de todo o fenômeno organizado.  

Quanto  ao  conhecimento  de  um  conjunto,  é  necessário  pensar  na frase de Pascal que costumo citar:  

“Tenho  por  impossível  conceber  as  partes  à  margem  do conhecimento do todo, tanto como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes”27. 

Isso  remete  a  questão  do  conhecimento  a  um movimento  circular ininterrupto. O conhecimento não se  interrompe. 28 Conhecemos as partes o que nos permite conhecer melhor o todo, mas o todo volta a permitir conhecer melhor as partes.29 Nesse tipo de conhecimento, o conhecimento  tem  um  ponto  de  partida  quando  se  põe  em movimento, mas não tem término. Temos que ver na natureza, não somente  a  biológica  como  a  física,  com  fenômenos  de  auto‐organização que apresentam problemas enormes. Não  insisto sobre isso.  Os  trabalhos  de  Pinson,  que  conhecemos  e  considero muito notáveis,  dão  origem,  do  ponto  de  vista  organizacional,  a  uma concepção que podemos chamar de hologramática. O interessante é que temos dele um exemplo físico que é o holograma produzido pelo laser; no holograma cada parte contém a informação do todo. Não a contém, de qualquer modo, no seu  todo; mas a contém em grande parte, o que  faz que efetivamente possamos  romper  a  imagem do holograma,  reconstituindo  outros  micro‐todos  fragmentários  e atenuados. Thom disse: “A velha  imagem do homem‐microcosmos, reflexo do macrocosmos, mantém todo seu valor; quem conheça o homem conhecerá o universo”. 30 

Sem  ir  tão  longe, é notável  constatar que na organização biológica dos  seres multicelulares  cada  célula  contém a  informação do  todo. Contém  potencialmente  o  todo.  E  nesse  sentido  é  um  modo 

O produto é ao mesmo tempo o produtor; o que supõe uma ruptura total com nossa lógica das 

máquinas artificiais na qual as máquinas produzem produtos que lhes são exteriores. Ver a nossa 

sociedade à imagem dessas máquinas é esquecer que essas máquinas artificiais estão no interior de uma 

sociedade que se autoproduz ela mesma.

Qual é nosso lugar, nós observadores‐

conceituadores, em um sistema do qual fazemos 

parte? 

Sem dúvida, em física, se pode prescindir da noção de sujeito, na condição de precisar bem que toda nossa visão do mundo físico se faz mediante a 

intermediação de representações, de 

conceitos ou de sistemas de idéias, quer dizer, de fenômenos próprios do 

espírito humano. 

Mas podemos prescindir da idéia de observador‐sujeito 

em um mundo social constituído por interações 

entre sujeitos?

Page 19: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

13

hologramático  de  organização.  Na  linguagem,  o  discurso  toma sentido em  relação à palavra, mas a palavra só  fixa seu sentido em relação aos discursos nos quais se encontra encadeada. Aqui também há uma ruptura com toda visão simplificante na relação parte‐todo; faz‐nos  falta ver  como o  todo está presente nas partes e as partes presentes  no  todo.  Por  exemplo,  nas  sociedades  arcaicas,  nas pequenas  sociedades  de  caçadores‐coletores,  nas  sociedades  que chamamos  “primitivas”,  a  cultura  estava  entranhada  em  cada indivíduo. Havia nelas alguns que possuíam a  totalidade da cultura, esses eram os  sábios, eram os anciões; mas os outros membros da sociedade  tinham  em  seu  espírito  o  conhecimento  de  saberes, normas, regras fundamentais. 

Hoje as sociedades nas sociedades nações, o Estado conserva nele as Normas  e  as  Leis,  e  a  Universidade  contém  o  saber  coletivo.  Não obstante  passamos  muitos  anos  na  família  primeiro,  e  a  seguir, sobretudo  na  escola,  a  adquirir  a  cultura  do  todo;  assim  cada indivíduo porta praticamente, de um modo vago,  inacabado, toda a sociedade em si, toda a sua sociedade. 

Os problemas de organização social só podem ser compreendidos a partir desse nível  complexo da  relação parte‐todo. Aqui  intervém a idéia  de  recursão  organizacional  que,  a meu  ver,  é  absolutamente crucial para conceber a complexidade da relação entre partes e todo. As  interações  entre  individualidades  autônomas,  como  nas sociedades animais ou inclusive nas células, dado que as células têm cada uma sua autonomia, produzem um todo que retro atua sobre as partes  para  produzi‐las.31 Dito  de  outro modo,  as  interações  entre indivíduos fazem a sociedade; de fato, a sociedade não teria nem um grama de existência sem os indivíduos viventes; se uma bomba muito limpa,  como  a  bomba  de  nêutrons,  aniquilasse  toda  a  França, permaneceriam  todos  os  monumentos:  o  Eliseu,  a  Câmara  dos Deputados, o Palácio da  Justiça, os Arquivos,  a  Educação Nacional, etc.;  mas  não  haveria  sociedade,  porque  evidentemente,  os indivíduos produzem a sociedade. Não obstante, a sociedade mesma produz  os  indivíduos  ou,  ao menos,  consuma  a  humanidade  deles ministrando a eles a educação, a cultura, a linguagem. Sem a cultura seríamos rebaixados ao mais baixo nível dos primatas. 

Dito de outro modo são as interações entre indivíduos que produzem a sociedade; mas é a sociedade que produz o  indivíduo. Eis aqui um processo  de  recursividade  organizacional;  o  recursivo  se  refere  a processos nos quais os produtos e os efeitos são necessários para sua própria produção. O produto é ao mesmo tempo o produtor32; o que supõe uma ruptura total com nossa lógica das máquinas artificiais na qual as máquinas produzem produtos que  lhes são exteriores. Ver a nossa  sociedade  à  imagem  dessas máquinas  é  esquecer  que  essas máquinas  artificiais  estão  no  interior  de  uma  sociedade  que  se autoproduz ela mesma. 

Por outra parte, o pensamento simplificante 

se fundou sobre a disjunção absoluta entre o objeto e o sujeito que o percebe e concebe.  

Nós devemos apresentar, pelo contrário, o princípio 

de relação entre o observador conceituador e 

o objeto observado, concebido. 

E é um convite ao pensamento rotativo, da parte ao todo e do todo à 

parte. 

Page 20: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

14 

7.  Separação Sujeito e Objeto

 pensamento simplificante foi fundado sobre a disjunção entre o objeto e o meio ambiente. Compreendia‐se o objeto  isolando‐o do seu meio ambiente; era tanto mais necessário  isolá‐lo como 

era  necessário  extraí‐lo  do meio  ambiente  para  colocá‐lo  em  um novo meio  ambiente  artificial  que  controlava,  que  era  o meio  da experiência,  da  ciência  experimental.  Efetivamente,  graças  à experiência,  podia‐se  variar  as  condições  do  comportamento  do objeto,  e,  pelo mesmo,  conhecê‐lo melhor.  A  experimentação  fez progredir  consideravelmente  nosso  conhecimento.  Mas  há  outro conhecimento que só pode progredir concebendo as interações com o  meio  ambiente.  Este  problema  se  encontra  na  física,  onde  as grandes  leis  são  leis de  interação. Encontra‐se  também na biologia, onde o ser vivente é um sistema ao mesmo tempo fechado e aberto inseparável  do  seu meio  ambiente  do  qual  tem  necessidade  para alimentar‐se,  informar‐se,  desenvolver‐se.  Faz‐nos  falta,  pois,  não desunir, mas distinguir os seres de seu meio ambiente.33 

Por  outra  parte,  o  pensamento  simplificante  se  fundou  sobre  a disjunção  absoluta  entre  o  objeto  e  o  sujeito  que  o  percebe  e concebe.  Nós  devemos  apresentar,  pelo  contrário,  o  princípio  de relação  entre  o  observador  conceituador  e  o  objeto  observado, concebido.  

Mostramos que o conhecimento físico é inseparável da introdução de um  dispositivo  de  observação,  de  experimentação  (o  aparelho, supressão,  grade)  e  por  isso  inclui  a  presença  do  observador‐conceituador em toda a observação ou experimentação. Mesmo que não  houvesse  até  o  presente  nenhuma  virtude  heurística  no conhecimento astronômico, é  interessante apontar aqui o princípio antrópico extraído por Brandon Carter: “A presença de observadores no universo  impõe determinações, não  somente  sobre a  idade do universo  a  partir  da  qual  os  observadores  podem  aparecer, mas também sobre o conjunto de suas características e dos parâmetros fundamentais da física que se depreende aí”. Acresce que a versão débil do princípio antrópico estipula que a presença de observadores no universo  impõe determinações  sobre a posição  temporal destes últimos; a versão forte do princípio antrópico supõe que a presença de  observadores  no  universo  impõe  determinações  não  somente sobre  sua  posição  temporal,  mas  também  sobre  o  conjunto  de propriedades do universo.  

Quer dizer, o universo pertence a uma classe de modelos de universo capazes de abrigar seres viventes e de ser estudado por eles. O que é uma  coisa  extraordinária,  já  que  todo  nosso  conhecimento  do cosmos, efetivamente,  faz de nós  seres  cada vez mais periféricos e marginais.  Não  somente  estamos  em  uma  estrela  de  periferia,  de 

Dito de outro modo, estas categorias do ser e da existência que parecem 

puramente metafísicas são reencontradas em nosso universo físico; mas o ser não é uma substância; o ser só pode existir a partir do momento em que há 

auto‐organização.  

Se podemos nos referir no que segue a princípios 

científicos que permitem conceber o ser, a 

existência, o indivíduo, o sujeito, é certo que o status, o problema das 

ciências sociais e humanas se modifica.

Page 21: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

15

uma galáxia periférica, mas, além disso, somos seres viventes, quiçá os  únicos  seres  viventes  do  universo  –  para  abreviar,  não  temos prova de que haja outros nele – e desde o ponto de vista da vida, somos  o  único  ramo  onde  apareceu  essa  forma  de  consciência reflexiva  que  dispõe  de  linguagem  e  que  pode  verificar cientificamente seus conhecimentos.34 

O universo nos marginaliza totalmente. 

Certamente,  o  princípio  antrópico  em  absoluto  suprime  essa marginalidade;  mas  diz  que  é  necessário,  de  uma  determinada maneira, que o universo seja capaz, inclusive de um modo altamente improvável, de fazer seres vivos e seres conscientes. Na versão mais fraca, o exemplo que dá é bastante interessante; diz: “Nosso sol tem cinco bilhões de anos; é um adulto; tem assegurado, salvo erro, 10 bilhões de anos. A vida começou talvez há quatro bilhões de anos, quer dizer, praticamente no princípio do  sistema  solar. Nós,  seres humanos, surgimos no meio da idade solar”. Há aqui algo que não é puramente arbitrário, ao azar. Supondo que a vida tivesse começado mais  tarde,  não  haveria  tido,  sem  dúvida,  condições  de desenvolvimento  possível;  mas,  se  a  vida  tivesse  começado  mais tarde, a consciência humana haveria aparecido no momento em que o  sol  tivesse  começado  a estinguir‐se, quer dizer, no momento em que  quiçá  não  haveria  sido mais  do  que  um  relâmpago  antes  do crepúsculo  final.   Dito de outro modo,  tem  certo  interesse  intentar pensar nosso  sistema em  relação a nós mesmos e nós mesmos em relação ao nosso sistema. 

E é um convite ao pensamento rotativo, da parte ao todo e do todo à parte.  Já  a  reintrodução  do  observador  na  observação  havia  sido efetuada na micro‐física (Bohr, Heisenberg) e a teoria da informação (Brillouin). Ainda de modo mais profundo o problema  se apresenta em  sociologia  e  em  antropologia:  Qual  é  nosso  lugar,  nós observadores‐conceituadores,  em  um  sistema  do  qual  fazemos parte? 

Atrás  da  noção  de  observador  se  esconde  a  noção,  ainda  que desonrosa, de sujeito.35 Sem dúvida, em física, se pode prescindir da noção de sujeito, na condição de precisar bem que toda nossa visão do mundo físico se faz mediante a intermediação de representações, de  conceitos  ou  de  sistemas  de  idéias,  quer  dizer,  de  fenômenos próprios do espírito humano.36 

Mas  podemos  prescindir  da  idéia  de  observador‐sujeito  em  um mundo social constituído por interações entre sujeitos? 

Page 22: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

16 

8. a 11. Ser e existência; formalização e quantificação

á também uma outra questão que me parece importante, é que, no conhecimento simplificante, as noções de ser e de existência estavam  totalmente  eliminadas  pela  formalização  e  pela 

quantificação.37 Pois bem, creio que foram reintroduzidas a partir da idéia  de  autoprodução  que,  ela mesma,  é  inseparável  da  idéia  de recursão organizacional.  

Tomemos um processo que se autoproduz e que assim produz o ser; cria o “si mesmo”.  

O processo autoprodutor da vida produz seres viventes. Esses seres são, ao mesmo tempo em que sistemas abertos, dependentes do seu meio ambiente, submetidos a aleatoriedades, existentes. A categoria de  existência  não  é  uma  categoria  puramente  metafísica;  somos “seres‐aí”, como diz Heidegger, submetidos efetivamente à iminência ao mesmo tempo totalmente certa e totalmente incerta da morte.  

Dito  de  outro modo,  estas  categorias  do  ser  e  da  existência  que parecem  puramente  metafísicas  são  reencontradas  em  nosso universo físico; mas o ser não é uma substância; o ser só pode existir a partir do momento em que há auto‐organização.  

O sol é um ser que se auto‐organiza evidentemente a partir, não de nada, mas a partir de uma nuvem cósmica; e quando o sol explodir perderá seu ser... 

Se  podemos  nos  referir  no  que  segue  a  princípios  científicos  que permitem conceber o ser, a existência, o indivíduo, o sujeito, é certo que  o  status,  o  problema  das  ciências  sociais  e  humanas  se modifica.38  É  muito  importante,  já  que  o  drama,  a  tragédia  das ciências  humanas  e  das  ciências  sociais  especialmente,  é  que querendo  fundar  sua  cientificidade  sobre  as  ciências  naturais, encontraram princípios simplificadores e mutilantes com os quais era impossível  conceber  o  ser,  impossível  conceber  a  existência, impossível  conceber  a  autonomia,  impossível  conceber  o  sujeito, impossível conceber a responsabilidade.39 

O verdadeiro problema é que é a mesma lógica que nos conduz a momentos 

aporéticos os quais podem ser superados. O que 

revela a contradição, se ela é insuperável, é a presença de um nível profundo da realidade que deixa de 

obedecer à lógica clássica aristotélica. 

Assim, no âmago do problema da 

complexidade, aloja‐se um problema de princípio de pensamento ou paradigma, e no coração do paradigma 

da complexidade se apresenta o problema da 

insuficiência e da necessidade da lógica, do enfrentamento “dialético” 

ou dialógico da contradição. 

Page 23: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

A epistemologia da complexidade              

17

12. e 13 Confiança absoluta na lógica. 

gora  chego  ao  último  ponto,  que  é  o  mais  dramático.  O conhecimento  simplificante  se  fundamenta  sobre  a  confiança absoluta  na  lógica  para  estabelecer  a  verdade  intrínseca  das 

teorias,  uma  vez  que  estas  estão  fundamentadas  empiricamente segundo os procedimentos de verificação.  

Pois bem, descobrimos, com o teorema de Gödel, a problemática da limitação da  lógica. O  teorema de Gödel demonstrou os  limites da demonstração  lógica no  seio dos  sistemas  formalizados  complexos; estes comportam ao menos uma proposição que é indecidível, o que faz que o conjunto do sistema seja indecidível.  

O que é  interessante nessa  idéia, é que ela pode  ser  generalizada: todo sistema conceitual suficientemente rico  inclui necessariamente questões  às  quais  não  pode  responder  desde  ele  próprio, mas  às quais só pode responder referindo‐se ao exterior desse sistema. 

Como diz expressamente Gödel: “O sistema só pode encontrar seus instrumentos  de  verificação  em  um  sistema  mais  rico  ou metasistema”.  

Tarski disse isso também claramente para os sistemas semânticos. Os metasistemas, embora mais ricos, comportam também uma brecha e assim consecutivamente; a aventura do conhecimento não pode ser fechada; a limitação lógica nos faz abandonar o sonho de uma ciência absoluta e absolutamente certa, mas é necessário dizer que não era só  um  sonho.  Era  o  sonho  finalmente  dos  anos  20,  o  sonho  do matemático Hilbert que acreditava efetivamente que se podia provar de modo absoluto pela matemática, matematicamente, logicamente, formalmente, a verdade de uma  teoria. Era o sonho do positivismo lógico que acreditou fundar com certeza a teoria científica. Pois bem, Popper, depois Kuhn, cada um a seu modo, mostraram que o próprio de uma teoria científica é ser biodegradável. Há aqui uma brecha na lógica  à  qual  se  adiciona  outra  brecha,  que  é  um  problema  da contradição. É um problema muito velho, já que o contraditório ou o antagonismo está presente em Heráclito, Hegel, Marx. 

A questão está em  saber  se o aparecimento de uma  contradição é sinal de erro, quer dizer, se é necessário abandonar o caminho que conduziu a ela ou se pelo contrário, nos  revela níveis profundos ou desconhecidos  da  realidade.40  Existem  contradições  absurdas,  às quais nos conduz a observação, como a partícula que se apresenta ao observador  tanto  como  onda  quanto  como  corpúsculo;  esta contradição  não  é  uma  contradição  absurda;  ela  se  fundamenta sobre  um  desenvolvimento  lógico;  partindo  de  determinadas 

Page 24: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

A epistemologia da complexidade                                                                                                              Página 18 

18 

observações,  se  chega  à  conclusão  de  que  o  observado  é  algo imaterial, uma onda; mas outras observações, não menos verificadas, nos mostram  que,  em  outras  condições,  o  fenômeno  se  comporta como  uma  entidade  discreta,  um  corpúsculo.  É  a  lógica  que  nos conduz a essa contradição. O verdadeiro problema é que é a mesma lógica que nos  conduz  a momentos  aporéticos os quais podem  ser superados.  O  que  revela  a  contradição,  se  ela  é  insuperável,  é  a presença de um nível profundo da realidade que deixa de obedecer à lógica clássica aristotélica. 

Diria,  em duas palavras, que o  trabalho do pensamento, quando  é criador, é realizar saltos, transgressões lógicas, mas que o trabalho da verificação  é  retornar  à  lógica  clássica,  ao  nó  dedutivo,  o  qual, efetivamente, só opera verificações segmentárias. Podemos formular proposições  aparentemente  contraditórias,  como  por  exemplo:  eu sou  outro.  Eu  “sou”  outro,  como  dizia  Rimbaud,  ou  essa  formosa frase de Tarde, para  citar um precursor da  sociologia, que  reza:  “O mais  admirável  de  todas  as  sociedades,  essa  hierarquia  da consciência,  essa  feudalidade  de  almas  vassalas  da  qual  nossa pessoa  é  a  de  cima”,  quer  dizer,  essa  multiplicidade  de personalidades  no  eu;  na  identidade  existe  um  tecido  de  noções extremamente diversas, existe a heterogeneidade no  idêntico. Tudo isto é muito difícil de conceber, mas é assim. 

Assim,  no  âmago  do  problema  da  complexidade,  aloja‐se  um problema de princípio de pensamento ou paradigma, e no  coração do  paradigma  da  complexidade  se  apresenta  o  problema  da insuficiência  e  da  necessidade  da  lógica,  do  enfrentamento “dialético” ou dialógico da contradição. 

A primeira instância é o espírito.  

Que é o espírito?  

O espírito é a atividade de algo, de um órgão chamado cérebro. 

A complexidade consiste em não reduzir nem o 

espírito ao cérebro nem o cérebro ao espírito. O 

cérebro, evidentemente, é um órgão que podemos 

analisar, estudar, mas que nomeamos do mesmo modo pela atividade do 

espírito. 

Page 25: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

19

 

A epistemologia complexa

 segundo  problema  é  o  da  epistemologia  complexa  que,  em última  instância, é aproximadamente de uma mesma natureza que  o  problema  do  conhecimento  do  conhecimento.  É  uma 

continuação  de  questões  do  que  eu  disse,  mas  ultrapassando‐as, englobando‐as.  

Como conceber esse conhecimento do conhecimento? 

Podemos  dizer  que  o  problema  do  conhecimento  científico  podia apresentar‐se em dois níveis.  

• Havia  o  nível  que  podíamos  chamar  de  empírico,  e  o conhecimento  científico,  graças  às  verificações  mediante observações e experimentações múltiplas, extrai dados objetivos e,  sobre  estes  dados  objetivos,  induz  teorias  que,  se  pensava, refletiam o real.  

• Em um  segundo nível, essas  teorias  se  fundamentavam  sobre a coerência  lógica e assim  fundavam  sua verdade, os  sistemas de idéias.  

Tínhamos, então, dois tronos, o trono da realidade empírica e o trono da verdade lógica, desse modo se controlava o conhecimento.  

Os princípios da epistemologia complexa são mais complexos: não há um  trono;  não  há  dois  tronos;  de modo  algum  há  trono.  Existem instâncias  que  permitem  controlar  os  conhecimentos;  cada  uma  é necessária; cada uma é insuficiente. 

A primeira instância é o espírito.  

Que é o espírito?  

O espírito é a atividade de algo, de um órgão chamado cérebro.  

A complexidade consiste em não  reduzir nem o espírito ao cérebro nem o  cérebro  ao espírito. O  cérebro, evidentemente, é um órgão que  podemos  analisar,  estudar,  mas  que  nomeamos  do  mesmo modo pela atividade do espírito. 

Dito  de  outro modo,  temos  algo  que  podemos  chamar  o  espírito‐cérebro  ligado  e  recursivo  já  que  um  produz  o  outro  de  alguma maneira. Mas  de  todas  as  formas,  este  espírito‐cérebro  surgiu  de uma  evolução  biológica,  via  a  hominização,  até  o  homo  chamado sapiens.  Portanto,  a  problemática  do  conhecimento  deve absolutamente  integrar,  cada  vez que elas aparecem, as aquisições 

Page 26: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

20 

fundamentais da bioantropologia do conhecimento. E quais são essas aquisições fundamentais? 

A  primeira  aquisição  fundamental  é  que  nossa máquina  cerebral  é hiper‐complexa.  

O cérebro é uno e múltiplo. A menor palavra, a menor percepção, a menor  representação  põem  em  jogo,  em  ação  e  em  conexão miríadas  de  neurônios  e múltiplos  estratos  ou  setores  do  cérebro. Este  é  bi  hemisférico;  e  seu  funcionamento  favorável  acontece  na complementaridade  e  no  antagonismo  entre  um  hemisfério esquerdo  mais  polarizado  sobre  a  abstração  e  a  análise,  e  um hemisfério  direito  mais  polarizado  sobre  a  apreensão  global  e  o concreto.  

O  cérebro  é  hipercomplexo  igualmente  no  sentido  em  que  é “triúnico”, segundo a expressão de Mac Lean; tem em si, não como a Trindade três pessoas em uma, mas três cérebros em um:41 

• o cérebro reptiliano (preservação, agressão);  

• o cérebro mamífero (afetividade);  

• o neocórtex humano (inteligência lógica e conceitual),  

sem que haja predominância de um sobre o outro. Ao contrário, há antagonismo  entre  essas  três  instâncias,  e  às  vezes,  amiúde,  é  o impulso  quem  governa  a  razão.  Mas  também,  nesse  e  por  esse equilíbrio, surge a imaginação. 

O mais  importante  talvez na bioantropologia do  conhecimento nos retorna  às  críticas  kantianas,  em  minha  opinião  iniludíveis; efetivamente, descobriu‐se mediante novos meios de observação e de  experimentação  o  que  Kant  descobriu mediante  procedimentos intelectuais  e  reflexivos42. Nosso  cérebro  está  em  uma  caixa  preta que é o crânio, não tem comunicação direta com o universo.43 Essa comunicação se efetua  indiretamente via a rede nervosa a partir de terminais sensoriais. Quê é o que chega à nossa retina, por exemplo? São estímulos, que na nossa  linguagem atual chamamos fótons, que vão  impressionar a retina e essas mensagens vão ser analisadas por células especializadas, depois transcritas em um código binário o qual vai chegar ao nosso cérebro aonde, de novo, vão, segundo processos que  não  conhecemos,  traduzir‐se  em  representação.  É  a  ruína  da concepção do conhecimento‐reflexo.44 

Nossas  visões  do  mundo  são  traduções  do  mundo.  Traduzimos  a realidade  em  representações,  noções,  idéias,  depois  em  teorias. Desde  agora  está  experimentalmente  demonstrado  que  não  existe diferença  intrínseca  alguma  entre  a  alucinação  e  a  percepção. Podemos efetuar determinados estímulos sobre determinadas zonas do  cérebro  e  fazer  reviver  impressões,  lembranças  com  uma  força alucinatória  sentida  como  percepção.   Dito  de  outro modo,  o  que 

O cérebro é hipercomplexo igualmente no sentido em que é “triúnico”, segundo a expressão de Mac Lean. Tem em si, não como a 

Trindade três pessoas em uma, mas três cérebros em um, o cérebro reptiliano (preservação, agressão), o 

cérebro mamífero (afetividade), o neocórtex humano (inteligência lógica e conceitual), sem que haja 

predominância de um sobre o outro.

Page 27: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

21

diferencia  a  percepção  da  alucinação  é  unicamente  a intercomunicação  humana.  E  talvez  nem  isso,  pois  há  casos  de alucinação coletiva. A menos que se admita a realidade da aparição de  Fátima,  é  certo  que  milhares  de  pessoas,  que  uma  multidão, podem produzir uma mesma alucinação. 

Assim,  do  exame  bioantropológico  do  conhecimento  se  depreende um princípio de  incerteza  fundamental; existe  sempre uma  relação incerta  entre  nosso  espírito  e  o  universo  exterior.45  Só  podemos traduzir  sua  linguagem  desconhecida  atribuindo‐lhe  e  a  ele adaptando nossa  linguagem. Assim, chamamos de “luz” ao que nos permite  ver,  e  entendemos  hoje  por  luz  um  fluxo  de  fótons  que bombardeiam  nossas  retinas.  É  já  a  hora  de  que  a  epistemologia complexa  reintegre  um  personagem  que  ignorou  totalmente,  quer dizer,  o  homem  enquanto  ser  bioantropológico  que  tem  um cérebro.46 Devemos conceber que o que permite o conhecimento é ao mesmo tempo o que o limita. Impomos ao mundo categorias que nos permitem captar o universo dos fenômenos. Assim, conhecemos realidades, mas ninguém pode pretender conhecer A Realidade com “A” e “R”. 

Não  há  somente  condições  bioantropológicas  do  conhecimento.47 Existem, correlativamente, condições sócio‐culturais de produção de todo  conhecimento,  incluído  o  científico.  Estamos  nos  começos balbuciantes  da  sociologia  do  conhecimento.  Uma  de  suas enfermidades  infantis  é  reduzir  todo  conhecimento,  incluindo  o científico, unicamente ao seu enraizamento sócio‐cultural; pois bem, desgraçadamente, não se pode fazer do conhecimento científico uma ideologia  do mesmo  tipo  que  as  ideologias  políticas,  embora  –  e voltarei sobre  isso – toda teoria seja uma  ideologia, quer dizer, uma construção, um sistema de idéias, e ainda que todo sistema de idéias dependa  por  sua  vez  de  capacidades  próprias  do  cérebro,  de condições  sócio‐culturais,  da  problemática  da  linguagem.  Nesse sentido, uma  teoria científica comporta  inevitavelmente um caráter ideológico. Existem  sempre postulados metafísicos ocultos embaixo da atividade teórica (Popper, Holton). 

Mas a ciência estabelece um diálogo crítico com a realidade, diálogo que a distingue de outras atividades cognitivas.48 

Por  outro  lado,  a  sociologia  do  conhecimento  está  ainda  pouco desenvolvida  e  comporta  nela  um  paradoxo  fundamental;  seria necessário  que  a  sociologia  fosse mais  potente  que  a  ciência  que estuda para poder tratá‐la de modo plenamente científico; pois bem, desgraçadamente a sociologia é cientificamente menos potente que a  ciência  que  examina.  Isso  quer  dizer  evidentemente  que  é necessário  desenvolver  a  sociologia  do  conhecimento.  Existem estudos  interessantes,  mas  muito  limitados,  que  são  estudos  de sociologia dos  laboratórios;  afirmam eles que um  laboratório é um 

É já a hora de que a epistemologia complexa reintegre um personagem que ignorou totalmente, quer dizer, o homem 

enquanto ser bioantropológico que tem um cérebro. Devemos conceber que o que 

permite o conhecimento é ao mesmo tempo o que o limita. Impomos ao mundo 

categorias que nos permitem captar o 

universo dos fenômenos. Assim, conhecemos 

realidades, mas ninguém pode pretender conhecer A Realidade com “A” e “R”. 

É necessário, pois, ver o mundo das idéias, não só como um produto da 

sociedade somente ou um produto do espírito, mas ver também que o produto 

tem, no domínio do complexo, sempre uma autonomia relativa. 

Page 28: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

22 

micro‐meio  humano  onde  fervem  ambições,  ciúmes,  rivalidades, modas... Duvidava‐se um pouco disso. É verdadeiro que  isto  imerge novamente a atividade científica na vida social e cultural; mas não se trata somente disso. Há muito mais que  fazer do ponto de vista da sociologia da cultura, da sociologia da intelligentsia (Mannheim). 49Há todo um domínio extremamente fecundo por prospectar. A este nível é preciso desenvolver uma sócio‐história do conhecimento,  incluída nela a história do conhecimento científico. Acabamos de ver que toda teoria  cognitiva,  incluída  a  científica,  é  produzida  pelo  espírito humano e por uma realidade sócio‐cultural. Isso não basta. 

É  necessário  também  considerar  os  sistemas  de  idéias  como realidade  de  um  tipo  particular,  dotadas  de  uma  determinada autonomia “objetiva” em relação aos espíritos que as nutrem e delas se nutrem. É necessário, pois, ver o mundo das  idéias, não só como um produto da sociedade somente ou um produto do espírito, mas ver  também que o produto  tem, no domínio do  complexo,  sempre uma  autonomia  relativa.50  É  o  famoso  problema  da  superestrutura ideológica  que  atormentou  gerações  de  marxistas  porque, evidentemente,  o  marxismo  sumário  e  fechado,  fazia  da superestrutura  um  puro  produto  das  infra‐estruturas,  mas  o marxismo complexo e dialético, começando por Marx, percebia que uma  ideologia  retro  atuava,  evidentemente,  e  jogava  seu papel no processo histórico. É necessário ir ainda mais longe. Marx creu voltar a  colocar a dialética de pé  subordinando o papel das  idéias. Mas a dialética não tem cabeça nem pés. É rotativa. 51 

A  partir  do momento  em  que  se  toma  a  sério  a  idéia  da  recursão organizacional,  os  produtos  são  necessários  para  a  produção  dos processos.52  

As  sociedades  humanas,  as  sociedades  arcaicas,  têm  mitos funcionais, mitos comunitários, mitos sobre ancestrais comuns, mitos que  lhes  explicam  sua  situação  no  mundo.  Pois  bem,  essas sociedades só podem constituir‐se como sociedades humanas se têm esse  ingrediente  mitológico;  o  ingrediente  mitológico  é  tão necessário como o ingrediente material. Pode‐se dizer: não, claro que temos  primeiro  a  necessidade  de  comer  e  depois  ...os mitos,  sim, mas não tanto! O mito mantém a comunidade, a identidade comum que  é  um  vínculo  indispensável  para  as  sociedades  humanas. Formam parte de um conjunto no qual cada momento do processo é capital para a produção do todo.53 

Dito de outro modo, quero  falar do grau de autonomia das  idéias e tomarei  dois  exemplos  extremos;  um  exemplo  que  sempre  me impressionou resulta evidentemente de todas as religiões. Os deuses que são criados por interações entre os espíritos de uma comunidade de  crentes  têm  uma  existência  plenamente  real  e  plenamente objetiva;  eles  não  têm  certamente  a mesma  objetividade  de  uma 

Os problemas fundamentais da 

organização dos sistemas de idéias não resultam 

somente da lógica, existe também o que chamo de paradigmatología. Esta 

significa que os sistemas de idéias obedecem a alguns princípios fundamentais que são princípios de 

associação ou de exclusão que os controlam e 

comandam. 

Page 29: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

23

mesa, do que uma casa; mas  têm uma objetividade  real na medida em que  se crê neles:  são  seres que vivem  como os  crentes e estes operam  com  seus  deuses  um  comércio,  um  intercâmbio  de  amor pago  com  amor.  Demandam  dos  deuses  ajuda  ou  proteção  e,  em contrapartida,  fazem  a  eles  oferendas.  Melhor  ainda:  há  muitos cultos nos quais os deuses aparecem, e o que sempre me fascinou na macumba é esse momento em que chegam os deuses, os espíritos, que se apoderam de tal ou qual pessoa, que bruscamente falam pela boca  do  deus,  com  a  voz  do  deus,  isto  é,  a  existência  real  desses deuses é incontestável.  

Mas esses deuses não existiriam sem os humanos que os protegem: eis  aqui  a  restrição  que  é  necessária  fazer  para  sua  existência! No limite,  essa  mesa  pode  ainda  existir  sem  a  nossa  vida,  nosso aniquilamento, ainda que não tivesse já a função de mesa; isso seria o  que  continuaria  sua  existência. Mas  os  deuses morreriam  todos desde que deixássemos de existir. 

Então, eis aí seu tipo de existência!  

Do mesmo modo, diria que as ideologias existem com muita força. A idéia  trivial  de  que  podemos  morrer  por  uma  idéia  é  muito verdadeira!  Claro  está,  mantemos  uma  relação  muito  equivocada com  a  ideologia.  Uma  ideologia,  segundo  a  visão  marxista,  é  um instrumento  que  mascara  interesses  particulares  sob  interesses universais.   

Tudo  isso é verdade; mas a  ideologia não é apenas um  instrumento; ela nos instrumentaliza. Somos possuídos por ela. Somos capazes de atuar  por  ela.  Assim,  existe  o  problema  da  autonomia  relativa  do mundo das idéias e o problema da organização do mundo das idéias. 

Existe  a  necessidade  de  elaborar  uma  ciência  nova  que  será indispensável  para  o  conhecimento  do  conhecimento.  Essa  ciência seria  uma  noologia,  ciência  das  coisas  do  espírito,  das  entidades mitológicas e dos sistemas de idéias, entendidos em sua organização e seu modo de ser específico. 

Os  problemas  fundamentais  da  organização  dos  sistemas  de  idéias não  resultam  somente  da  lógica,  existe  também  o  que  chamo  de paradigmatología. Esta significa que os sistemas de idéias obedecem a alguns princípios fundamentais que são princípios de associação ou de exclusão que os controlam e comandam.54 

Assim, por exemplo, o que podemos chamar o grande paradigma do Ocidente, bem  formulado por Descartes,  já  citado, que  consiste na disjunção  entre  objeto  e  sujeito,  a  ciência  e  a  filosofia;  é  um paradigma  que  não  somente  controla  a  ciência,  mas  controla também  a  filosofia.  Os  filósofos  admitem  a  disjunção  com  o conhecimento científico tanto quanto os cientistas a disjunção com a filosofia.  Eis  aqui,  pois,  um  paradigma  que  controla  tipos  de 

O mito mantém a comunidade, a identidade comum que é um vínculo indispensável para as sociedades humanas. Formam parte de um conjunto no qual cada momento do processo é 

capital para a produção do todo. 

Page 30: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

24 

pensamento  totalmente diferentes,  inclusive antagonistas, mas que são  igualmente obedecidos. Pois bem, tomemos a natureza humana como  exemplo  do  paradigma. Ou  bem  o  paradigma  faz  que  essas duas noções, as de natureza e homem, estejam associadas,55 como ocorre  de  fato  em  Rousseau,  quer  dizer,  que  só  podemos compreender  o  humano  em  associação  com  a  natureza;  ou  bem essas duas noções estão disjuntas, quer dizer, que somente podemos compreender o humano por exclusão da natureza; este é o ponto de vista da antropologia cultural ainda existente. 

Um  paradigma  complexo,  pelo  contrário,  pode  compreender  o humano  ao  mesmo  tempo  em  associação  e  em  oposição  com  a natureza.  Foi  Kuhn  quem  colocou  em  relevo  fortemente  a importância crucial dos paradigmas, ainda que haja definido mal essa noção.  Ele  a  utiliza  no  sentido  vulgar  anglo  saxão  de  “princípio fundamental”. Eu a emprego em um sentido intermediário entre seu sentido  lingüístico  e  seu  sentido  kuhniano,  quer  dizer  que  esse princípio  fundamental  se  define  pelo  tipo  de  relações  que  existem entre  alguns  conceitos mestres  extremamente  limitados, mas  cujo tipo de  relações controla  todo o conjunto dos discursos  incluindo a lógica dos discursos.  

Quando digo  lógica, é necessário  ver que de  fato  cremos na  lógica aristotélica; mas  nesse  tipo  de  discurso  que  é  o  discurso  do  nosso conhecimento  ocidental,  é  a  lógica  aristotélica  a  que  nos  faz obedecer,  sem que o  saibamos, a esse paradigma de disjunção, de simplificação e de  legislação  soberana; e o mundo do paradigma é evidentemente algo muito  importante que merece ser estudado em si mesmo, mas com a condição de abri‐lo sempre sobre um conjunto das condições sócio‐culturais e de introduzi‐lo no coração mesmo da idéia de cultura.  

O  paradigma  que  produz  uma  cultura  é  ao  mesmo  tempo  o paradigma que reproduz essa cultura.  

Hoje,  o  princípio  de  disjunção,  de  distinção,  de  associação,  de oposição que governa a ciência não somente controla as teorias, mas ao  mesmo  tempo  comanda  a  organização  tecno‐burocrática  da sociedade. 56 

Essa divisão, essa hiperdivisão do  trabalho científico aparece de um lado,  evidentemente,  como  uma  espécie  de  necessidade  de desenvolvimento  intrínseco,  porque  desde  que  uma  organização complexa  se desenvolve, o  trabalho  se especializa enquanto que as tarefas  se multiplicam  para  chegar  a  uma  riqueza mais  complexa. Mas esse processo, não somente é paralelo, mas também está ligado ao  processo  de  heterogeneização  de  tarefas,  ao  processo  da  não‐comunicação,  do  parcelamento,  da  fragmentação  das  atividades humanas  em  nossa  sociedade  industrial;  resulta  evidente  que  há 

Existe a necessidade de elaborar uma ciência nova que será indispensável para o conhecimento do 

conhecimento. Essa ciência seria uma noologia, ciência das coisas do espírito, das entidades mitológicas e dos sistemas de idéias, entendidos em sua 

organização e seu modo de ser específico. 

Page 31: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

25

nisso uma relação muito profunda entre o modo como organizamos o conhecimento e o modo como a sociedade se organiza.  

A  ausência  de  complexidade  nas  teorias  científicas,  políticas  e mitológicas  está  ela mesma  ligada  a  uma  determinada  carência  de complexidade  na  própria  organização  social,  quer  dizer,  que  o problema  do  paradigmático  é  extremamente  profundo  porque remete  a  algo  muito  profundo  na  organização  social,  que  não  é evidente em princípio; remete a algo muito profundo sem dúvida, na organização do espírito e do mundo noológico. 

   

Page 32: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

26 

 

À guisa de conclusão  

oncluo:  O  que  seria  uma  epistemologia  complexa?  Não  é  a existência  de  uma  instância  soberana  que  seria  o  Senhor epistemólogo  controlando  de modo  irredutível  e  irremediável todo  o  saber;  não  há  trono  soberano. Há  uma  pluralidade  de 

instâncias.  Cada  uma  dessas  instâncias  é  decisiva;  cada  uma  é insuficiente. Cada uma dessas  instâncias  comporta  seu princípio de incerteza.  Falei  do  princípio  da  incerteza.  Falei  do  princípio  da incerteza  na  bio‐antropologia  do  conhecimento.  É  necessário também  falar  do  princípio  da  incerteza  da  sociologia  do conhecimento; uma sociedade produz uma ideologia, uma idéia; mas isso não é sinal de que ela seja verdadeira ou falsa. Por exemplo, na época  em  que  Laurent  Casanova  (é  uma  recordação  pessoal) estigmatizava  o  existencialismo  sartreano  dizendo  dele:  “É  a expressão da pequena burguesia espremida entre o proletariado e a burguesia”, o desafortunado Sartre dizia: “Sim, pode ser; é verdade; mas  isso  não  quer  dizer,  entretanto,  que  o  existencialismo  seja verdadeiro ou falso”. Do mesmo modo, as conclusões “sociológicas” de  Lucien  Glodmann  sobre  Pascal,  inclusive  se  elas  estiverem fundamentadas, não afetam aos Pensées. 

Lucien Glodmann dizia:  “A  ideologia de Pascal e de Port‐Royal é a ideologia  da  nobreza  de  toga  espremida  entre  a monarquia  e  a burguesia  ascendente”.  Talvez, mas  será  que  a  angústia  de  Pascal diante  dos  dois  infinitos  pode  reduzir‐se  ao  drama  da  nobreza  de toga que está para perder sua toga? Não está tão claro. 

Dito de outro modo:  inclusive as condições mais singulares, as mais localizadas, as mais particulares, as mais históricas da emergência de uma  idéia, de uma teoria, não são prova de sua verdade –  isso está claro  –  nem  tampouco  sua  falsidade.  Dito  de  outro modo,  há  um princípio  de  incerteza  no  fundo  da  verdade.  É  o  problema  da epistemologia; é o problema da dialética; é o problema da verdade. Mas também aqui a verdade se escapa; e também aqui o dia em que se  houver  constituído  uma  faculdade  de  noologia,  com  seu departamento de paradigmatologia, esse não será o lugar central de onde se poderia promulgar a verdade. 

Há  um  princípio  de  incerteza  e,  como  dizia  há  instantes,  há  um princípio de incerteza no coração mesmo da lógica. Não há incerteza no  silogismo; mas  no momento  da montagem  de  um  sistema  de idéias,  há  um  princípio  de  incerteza.  Assim,  há  um  princípio  de incerteza no exame de cada  instância constitutiva do conhecimento. E  o  problema  da  epistemologia  é  fazer  comunicar  essas  instâncias separadas; é de alguma  forma  fazer o circuito. Não quero dizer que 

Tudo isso é verdade; mas a ideologia não é apenas um 

instrumento; ela nos instrumentaliza. Somos possuídos por ela. Somos capazes de atuar por ela. Assim, existe o problema da autonomia relativa do mundo das idéias e o 

problema da organização do mundo das idéias. 

Page 33: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

27

cada um deva passar o seu tempo lendo, informando‐se sobre todos os domínios. Não! Mas o que digo é que se apresenta o problema do conhecimento,  e,  portanto  o  problema  do  conhecimento  do conhecimento,  estamos  obrigados  a  conceber  os  problemas  que acabo de enumerar. São  inelutáveis; e não porque seja muito difícil informar‐se  conhecer,  verificar,  etc.,  seja  necessário  eliminar  esses problemas.  É  necessário,  com  efeito,  dar‐se  conta  de  que  é muito difícil  e  que  não  é  uma  tarefa  individual;  ´[e  uma  tarefa  que necessitaria o encontro, o intercâmbio, entre todos os investigadores e  universitários  que  trabalham  em  domínios  disjuntos,  e  que  se encerram, para sua desgraça, como ostras quando são solicitados. Ao mesmo  tempo,  devemos  saber  que  não  há mais  privilégios, mais tronos, mais  soberanias epistemológicas; os  resultados das  ciências do cérebro, do espírito, das ciências sociais, das histórias das  idéias, etc.,  devem  retro  atuar  sobre  o  estudo  dos  princípios  que determinam  tais  resultados. O problema não é que  cada um perca sua competência. É que se desenvolva bastante para articulá‐la com outras  competências  as  quais,  encadeadas,  formariam  um  anel completo e dinâmico, um anel do  conhecimento do  conhecimento. Esta  é  a  problemática  da  epistemologia  complexa  e  não  a  chave mestra da complexidade, da qual o próprio, desgraçadamente, é que não facilita chave mestra alguma. 

Page 34: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

Edgar Morin      Página 28 

 

 

Page 35: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

29

________________________________________ 

Nota: Este texto corresponde às páginas 43‐77 de L'intelligence de la complexité,  editado  por  L'Harmattan,  París,  1999.  Agradecemos  a Edgar  Morin  sua  amável  autorização  para  traduzi‐lo  e  publicá‐lo. Tradução para o espanhol de José Luis Solana Ruiz.  

________________________________________ 

Edgar Morin. Diretor honorário de pesquisas do CNRS. París, França. 

________________________________________ 

Resumo  

A epistemologia da complexidade 

As  teorias da complexidade às quais estão  relacionadas não poucas disciplinas,  tanto  nas  ciências  físicas  como  nas  biológicas,  nas matemáticas  ou  nas  ciências  sócio‐culturais,  estão  apontando  para um  cenário  no  qual  se  constrói  uma  nova  epistemologia:  a epistemologia da complexidade. Como entendê‐la?  

Abstract  

Epistemology of complexity  

The  theories  of  complexity  developed  in  many  disciplines  ‐like physics,  biological  sciences, mathematics  or  socio‐cultural  sciences, are  aiming  at  a  background  in  which  to  construct  a  new epistemology:  the  epistemology  of  complexity. How  to  understand it? ________________________________________ 

epistemologia | complexidade | paradigma | noología | Edgar Morin 

epistemology | complexity | paradigme | noology | Edgar Morin 

2004‐02 

Page 36: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

A epistemologia da complexidade               Página 30 

Page 37: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

31

Notas

 

                                                       1  Há um pensamento clássico cujos princípios são legislar, desunir, reduzir 2 OK que o pensamento realize círculos concêntricos na geração de conhecimento, mas para que possa 

ser utilizado, em um dado momento depois do seu início, deve haver uma versão do conhecimento, aquela adotada para uso provisório 

3 Mas se há uma velha lógica, então há um modo de ser do pensamento que precisa ser enterrado, substituído por outro. 

4 (!) John Dewey, Michel Foucault, et alii. Todas as citações de autores pioneiros da complexidade são no campo da ciência! 

5 Complexidade organizada será o tipo de ordem a que se refere Ilya Prigogine? 

6 A opção de ater‐se ao input‐output é sugerida como alternativa possível em decorrência da superação do limite de computabilidade. 

7 Menção da física quântica como exemplo de complexidade, em contraposição à opinião de Prigogine, que coloca a opção de formalização da física quântica entre as formalizações deterministas. 

8 Epistemologia: conhecimento do conhecimento (formada por cacarterísticas de características dos modelos. 

9  Parece‐me uma suposição de que haja universos com características diferentes das que o que vemos apresenta. 

10 Temos que considerar também o desaparecimento de espécies e não apenas o seu desenvolvimento complexizante. 

11 Quais ciências humanas, e quando? Não seria o mesmo que dizer que tais produções nessas ciências ditas ‘humanas’ destoavam da própria razão de ser da criação dessa nova classe de saberes? 

12 São mecanismos diferentes. A evolução relaciona‐se aos organismos vivos, e a flecha do tempo ao contexto em que tudo acontece, incluindo a evolução das espécies. Preciso pensar melhor sobre isso. A flecha do tempo relaciona‐se com as descontinuidades temporais de fenômenos (todos eles) que evoluem no tempo em séries complexas; em certos trechos tudo se comporta deterministicamente, e há pontos em que se apresentam descontinuidades. 

13 ? ... mas não é isso mesmo o que ele dizia?  14 A reiteração não é característica do tempo, mas do tipo de ordem (do fenômeno) que evolui no tempo 

apresentando séries complexas. 15 A ligação das reversibilidades e das irreversibilidades que surgem no contexto é o ponto. A ligação é 

feita vendo o que acontece no mundo como eventos separados por histórias, etc. etc. de John Dewey. Essa visão tem o que mesmo a ver com a evolução? 

16 Aporética – estudo sistemático das aporias. 

Aporia: 

1. Rubrica: filosofia. 

dificuldade ou dúvida racional decorrente de uma impossibilidade objetiva na obtenção de uma resposta ou conclusão para uma determinada indagação filosófica [As aporias foram cultivadas pelo ceticismo pirrônico como demonstração da ausência de qualquer verdade absoluta ou certeza filosófica definitiva.] 

2  Rubrica: filosofia. 

em Aristóteles (384 a.C.‐322 a.C.), problema lógico, contradição, paradoxo nascido da existência de raciocínios igualmente coerentes e plausíveis que alcançam conclusões contrárias 

3  Derivação: por extensão de sentido. Estatística: pouco usado. 

situação insolúvel, sem saída 

4  Rubrica: retórica. 

figura pela qual o orador simula uma hesitação a propósito daquilo que pretende dizer 

 

Page 38: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

                                                                                                                               

32 

17 “uma vez que tenhamos inscrito todo o tempo...” a visão do mundo com homem e experiência e natureza juntos, como séries de eventos separados por histórias, de John Dewey. 

18 Total consistência com a visão de Humberto Maturana sobre o ser vivo, com os dois domínios, o da dinâmica das interações, e o do suporte físico dado pelos órgãos. 

19 Exitem analogia e sucessão em vez de caráter e similitude. 20 Nem toda interação entre o que quer que seja é um evento. Daí a necessidade dos níveis  

21 Claramente, as teorias sobre fenômenos não‐simples exigem um outro tipo de formalização. 22 Está sendo desconsiderado, aparentemente, o caráter da outra flecha do tempo, que leve em 

consideração algo análogo ao que o átomo de carbono apresentará, depois de criado, ‐ de ser um átomo que facilmente se liga a muitos outros átomos fazendo parte das cadeias orgânicas – só que para os átomos de hélio. 

23 Está falando de um certo tipo de ordem, em vez de desordem, porque está falando de uma desordem que tem seus princípios, o que evidentemente não é desordem pura. É o que Prigogine explica, em poucas palavras. 

24 Princípios organizadores Análise e Síntese. É exterior aos objetos porque não inclui o propósito em relação ao qual se faz a analogia. Os princípios organizadores limitam‐se ao [É UM], em vez de [E UM] e [É PARTE DE]. 

25 Parece‐me ser uma exo‐endo‐exo causalidade. 26 O elemento de ligação entre endo e exo causalidade é o propósito, e seus estados, cujas histórias que 

os separam permitem fazer a ligação. 27 Impossível conhecer as partes sem a visão do todo. Elementar, meu caro Pascal.  28 Um movimento de ida e de volta, circular mas com paradas provisórias tidas provisoriamente como 

boas. 29 É necessária a visão global das operações de obtenção de um ‘algo’. Para ver a relação entre os 

elementos. 

30 A visão global das operações de obtenção de um ‘algo’ mostra claramente essa característica hologramática. 

31 Recursão oranizacional – SSS Simetria, Sinergia e Simbiose. 

32 É a negociação entre a Visão do produto e as estratégias disponíveis para produção que dá origem ao componente factível na realidade que pode substituir o produto.  

33 “disjunção” está sendo usada no sentido não de separação, desunião, mas no de oposição. A separação do objeto de seu meio ambiente corresponde à desconsideração das negociações entre Visão e Estratégias de produção disponívbeis. 

34 Limitação à verificação do conhecimento pela ciência. Falta de compreensão do funcionamento do pensamento. 

35 Parece uma alusão a palavras de Foucault, só que para o papel do homem trocado!!! Morin reputa desonroso o papel de sujeito, e Foucault, o papel de elemento do que é empírico, ou raiz de toda positividade. 

36 Por que mesmo na física se pode prescindir da noção de sujeito??? 37 Ser e existência eliminados pela formalização e quantificação, dado que o que existia era restrito à 

quantificação na estrutura intpu‐output. 

38 Uma modificação que ocorreu na virada dos séculos XVIII para o XIX. 39 Essa situação foi exatamente objeto da mudança na configuração geral do saber ocorrida entre 1775 e 

1825. 

40 Podem ser as duas coisas. 41 Os três tipos de cérebro: reptiliano (preservação e agressão), mamífeto (afetividade) e neocórtex 

humano (inteligência lógica e conceitual) correspondem aos prpincípios constituintes das ciências humanas Vida(biologia) [função‐nomra]; Trabalho (economia) [conflito‐regra]; Linguagem(filologia) [significação‐sistema]. 

42 Caminhos diferentes dos apresentados para a ciência (experimentação e lógica) mas ainda assim permitindo encontrar aspectos da realidade. 

43 Por que colocar os terminais nervosos fora do cérebro? Não é a velha e boa compartimentação do paradigma da simplificação? 

44 A ruína do conhecimento reflexo estabelece‐se a partir de um desconhecimento, em vez de um conhecimento. 

Page 39: A Epistemologia Da Complexidade

A epistemologia da complexidade 

 

                                                                                                                               

33

45 O conhecimento é o resultado de CCCC – coordenações de coordenações consensuais de condutas. 46 O modelo constituinte das ciências humanas descrito por Michel Foucault corresponde termo a termo 

às áreas do cérebro descritas. 

47 Parece que estão sendo deixados de fora os aspectos da economia e da linguagem, ao falar de uma bioantropologia. 

48 Filosofia também, e principalmente. 

49 Deve ser feita uma ampliação no modelo constituinte da sociologia para adequá‐lo ao modelo constituinte de uma ciência humana Vida, Trabalho e Linguagem. 

50 ECA’s – Estruturas Conceituais Abstratas 

51 Mas deve haver estações de parada da dialética, para que o conhecimento levado até esses estados, possa ser utilizado na prática, ainda que de modo provisório. 

52 Como funciona isso de ‘produtos são necessários para a produção de processos’? Não pode ser que já tenhamos o produto, e que ainda assim desencadeemos o esforço da produção patrocinando as operações necessárias, que envolvem os processos. O produto que é necessário para para a produção dos processos (definição, seleção, configuração das operações) é o resultado das negociações Visão X Estratégias de produção disponíveis. 

53 ? 54 EDR mais o edifício das ciências, com as configurações do saber descritas por Foucault arranjadas  55 Experiência e homem, e natureza, segundo John Dewey. 

56 Disjunção, distinção, associação, oposição