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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
A ESCRAVIDÃO EM SERGIPE PELO OLHAR DA LITERATURA
Autor: Carolline Acioli O. Andrade1
Orientador: Profª. Draª Edna Maria Matos Antonio (DHI/UFS)
Introdução
A relação entre História e Literatura e os debates em torno da questão das
fronteiras entre as disciplinas tem sido um assunto há muito debatido. Ora aproximadas,
ora afastadas, ora confundidas, as linhas que traçam o território de ambas e delineiam
suas características são estudadas e analisadas por intelectuais das duas áreas. Entre os
historiadores, existe hoje a opinião mais ou menos homogênea sobre o valor das obras
literárias enquanto fontes para o conhecimento histórico e também como potenciais
objetos de estudo para a compreensão de uma sociedade. A ascensão e sucesso dos
romances históricos marca uma fase de reaproximação de fronteiras e diálogo entre as
duas disciplinas. Nesse sentido, percebe-se uma tendência cada vez mais crescente da
produção de obras literárias baseadas em fatos, momentos ou períodos históricos. A
minoria, porém, escrita por historiadores.
Nesta breve reflexão analisaremos o romance histórico sergipano O Comedor de
Jia, buscando demonstrar como o livro trata a escravidão em Sergipe em meados do
século XIX a partir de um caso pontual envolvendo um senhor e sua escrava doméstica.
Examinaremos a forma como o autor Pedro dos Santos constrói a imagem da escravidão
e discutiremos sobre as potencialidades de interpretação que o romance oferece, ao
1 Graduanda do curso de História Licenciatura da Universidade Federal de Sergipe. Bolsista do Programa
de Educação Tutorial (PET/MEC/Fnde) do Departamento de História da UFS. E-mail para contato:
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O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
mesmo tempo em que reafirmaremos que a literatura constitui-se um discurso histórico
legítimo e real, ao seu próprio modo.
Enquanto representação e reconstrução da sociedade, a literatura pode revelar
facetas da realidade social que por vezes permanecem obscuras em obras puramente
acadêmicas. São registros que falam sobre o passado e possuem a capacidade de
promover também reflexões e questionamentos que tocam a sociedade contemporânea.
Definindo a História como uma ciência que reinscreve um tempo realmente acontecido
e aspectos reais utilizando-se da voz narrativa, percebemos que história e literatura
convergem e se penetram ao tratarem, ambas, de realidades (fatos) construídos ou
reconstruídos.
Nosso objetivo é demonstrar como isso ocorre em O Comedor de Jia e de que
forma o discurso que a obra traz sobre a escravidão pode ser útil para a compreensão
daquele momento histórico.
A Literatura como discurso histórico
A história, no entendimento do senso comum, ainda está vinculada à ideia de
verdade. Porém, não há como discernir ou alcançar o que seria esta verdade histórica.
Como postularam os Annales, a história não é uma ciência “dura”, objetiva e imparcial.
Haverá sempre o elemento subjetivo, resultado não apenas da presença do historiador
que realiza a investigação histórica, como também do autor dos documentos utilizados
na pesquisa. E, conforme afirmou Marc Bloch, a história é uma ciência que tem como
característica ser poética.
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Além disso, a história só se torna acessível por meio da linguagem. Ou seja, a
experiência histórica precisa ser colocada em forma de discurso, o qual tem como
pressuposto a existência do passado. É desde ponto que parte Hayden White para a
construção de Meta-História, sua principal obra.
Para ele, o discurso histórico constitui-se num tipo específico de escrita que
produz uma interpretação dos fatos históricos construídos pelo historiador e organizados
na forma de uma narrativa. A narrativa é, segundo White, o modo de representação
fundamental para se perceber o objeto de estudo como “histórico”.
“[...] os discursos distintivamente históricos tipicamente produzem
interpretações narrativas de seu assunto. A tradução desses discursos
numa forma escrita produz um objeto distinto, o texto
historiográfico.” (WHITE, 1994, p.23).
A teoria de White defende a indissociabilidade do conteúdo factual e conceitual
de um discurso da sua forma literária e linguística. Como o discurso histórico é uma
estrutura de linguagem, segue-se que o seu conteúdo é indistinguível de sua forma
discursiva. Dessa maneira, o autor atenua os contrastes entre discursos literais e
figurativos e autoriza a busca e a análise de elementos figurativos tanto no texto
historiográfico quanto no ficcional.
White identifica a presença de elementos tropológicos no discurso histórico e
defende o uso da tropologia e da narrativa como componentes de todo discurso
histórico. Nesse sentido, ele aponta o uso da metáfora, metonímia, sinédoque e ironia –
estruturas básicas da figuração – pelo historiador no ato de escrita da história. Além
disso, relaciona enredos correspondentes a cada uma delas – metáfora e romance,
metonímia e tragédia, sinédoque e comédia, ironia e sátira – e postula que estas
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estruturas tropológicas são importantes para a construção das várias interpretações da
história (“tipos de verdade”) que se pretende apresentar. White vai ainda mais longe e
rompe as fronteiras entre história e literatura, afirmando que todas as histórias são
ficções, entendendo a relação entre as disciplinas como uma interpenetração que leva
uma a confundir-se com a outra. (WHITE, 1995, p.28-30).
Apesar da radicalização de sua concepção, criticada por vários pares, os estudos
de Hayden White foram importantes para uma nova visão acerca das convergências e
divergências entre história e literatura, contribuindo para que se considerasse a obra de
ficção como um tipo legítimo de discurso histórico. White ainda apontou a necessidade
de repensar a distinção entre discurso “sério” e “não sério”, entendendo que aquilo que
se considera “realmente acontecido” não pode significar a exclusão da possibilidade de
que a fala figurativa (obra de ficção) seja tão verdadeira, à sua maneira, quanto a literal.
(1994 p.35).
É necessário lembrar também que o que é concebido como “real” varia de
período para período e que o que uma dada época identifica como real se define mais
facilmente pelo que tal época entende como irreal ou utópico. (WHITE, 1995, p.60 e
61).
A modalidade literária que mais possui a capacidade de entrelaçar as duas
disciplinas é a metaficção historiográfica. Surgida na emergência da Nova História e na
tomada de consciência de que era necessário problematizar o contexto social, a
metaficção constitui o ato de “apropriar-se de personagens e/ou acontecimentos
históricos sob a ordem da problematização dos fatos concebidos como ‘verdadeiros’.”
(JACOMEL; SILVA, 2009, p.740).
As autoras identificam na metaficção histórica uma função estritamente social e
de cunho conscientizador das desigualdades. Caracterizam-na como sendo uma história
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que “vem de baixo” (Nova História), propondo uma leitura alternativa do passado como
crítica à história oficial, e que contraria as estruturas históricas, pois recupera e recusa
os pressupostos históricos, na medida em que os questiona (JACOMEL; SILVA, 2009,
p.741).
Dessa forma, a metaficção histórica atua como um elo entre literatura e história,
as quais, a partir dessa modalidade literária, “unem-se em função de uma causa: as
produções escritas, ficcionais ou não, levam os leitores à autoreflexão, ao
questionamento das ‘verdades absolutas’”. (JACOMEL; SILVA, 2009, p.746).
No tocante à relação entre literatura e história, Carlo Ginzburg apresenta a
utilização dos textos literários pelos historiadores como um desafio que necessita tanto
de uma distinção clara entre história da literatura, como também do reconhecimento dos
entrelaces entre as duas disciplinas. Antes de tudo, o autor afirma que toda obra literária
está inserida em determinados tempo e espaço, possuindo, assim, historicidade. Porque
estão inseridos em uma conjuntura histórica, os textos literários possuem suas raízes em
uma realidade histórica definida.
A partir dessa compreensão, Ginzburg considera as obras literárias ou de ficção
um discurso histórico legítimo, pois, como ressalta ao comentar sobre romances
medievais:
“Um escritor que inventa uma história, uma narração imaginária que
tem como protagonistas seres humanos, deve representar personagens
baseados nos usos e costumes da época em que viveram: do contrário,
não seria críveis.” (GINZBURG, 2007 p.82 [grifo nosso]).
Os relatos não se tornam críveis pela persuasão da escrita do autor, mas sim
porque são baseados em um momento histórico real. O acontecimento não necessita ter
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acontecido “realmente” da forma como é descrito no texto literário para que se possa,
através dele, chegar à realidade histórica na qual ele está ancorado.
As concepções de Ginzburg, Jacomel e Silva convergem, pois o autor reafirma
que história e ficção, a partir do romance histórico, conseguem apreender aspectos do
social e problematizá-los, levando os leitores a refletir e questionar o tempo em que
vivem, bem como as estruturas e valores de sua sociedade.
Nubia Jacques Hanciou ainda reforça o papel do romance histórico, entendendo-
o como uma “[...] possibilidade de criar um espaço capaz de simular a verdade da vida
social de modo bem mais convincente e esclarecedor do que pode ser alcançado nos
relatos factuais.” (2000, p.1 [grifo nosso]). E, ao possuir um enredo construído com o
objetivo de gerar interesse, o romance goza de um alcance de leitores maior do que as
obras acadêmicas, as quais não atingem o público leigo.
A autora identifica a temporalidade como o elemento que permite o cruzamento
entre história e ficção, pois “tudo o que se conta acontece no tempo, toma tempo,
desenvolve-se temporalmente e o que se desenvolve no tempo pode ser contado.”
(HANCIOU, 2000, p.5). Considerando a narrativa como forma de escrita histórica, ela
ressalta sua relação com o tempo através do enredo – que é temporal –, que integra e
liga os fatos históricos num só conjunto. E, tendo a temporalidade como elemento de
coesão entre as duas disciplinas, a autora estabelece: “É, pois, na reconfiguração do
tempo que a narrativa histórica e a narrativa ficcional se interpenetram sem se
confundirem.” (HANCIOU, 2000, p.5-7).
Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas são dois teóricos que também
defendem o valor da literatura, o uso de textos literários na investigação histórica e a
fecundidade de estudos que seguem esta linha. Segundo esses autores, não existe
história independente de texto, pois ela é, antes de tudo, texto e, mais amplamente,
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discurso. Porém é necessário ao historiador decifrar os discursos que exprimem e
contém a história, ou seja, estabelecer nexos entre as ideias contidas nos discursos e o
contexto no qual estão inseridas. Nesse sentido, afirmam que:
“[...] considerar o conteúdo histórico do texto dependente de sua
forma não implica, de modo nenhum, reduzir a história ao texto [...]
trata-se, antes, de relacionar texto e contexto [...] sem negligenciar a
forma do discurso, relacioná-lo ao social.” (CARDOSO; VAINFAS,
1997, p.378 [grifo do autor]).
O historiador deve sempre atentar para a forma do texto, mas também conhecer
os fatores extratextuais que presidem a produção, circulação e consumo dos discursos
produzidos pelas obras literárias. Antonio Celso Ferreira também ressalta que o
historiador deve estar atento à diversidade das formas literárias no tempo e às
circunstâncias de sua constituição, perpetuação ou modificações. Além disso, é
fundamental para esses autores compreender como a literatura interage nos contextos
sociais e que papéis lhe foram atribuídos historicamente, e de que forma se disseminam
e repercutem no coletivo. (FERREIRA, 2009, p.71 e 72).
Portanto, devem interessar à pesquisa histórica todos os textos literários, na
medida em que sejam vias de acesso à compreensão dos contextos sociais e culturais de
uma época. A história dialoga com a literatura, mas jamais confunde-se com ela. A
operação da história implica na construção e tratamento dos dados, na produção de
hipóteses, crítica e verificação de resultados e validação da adequação entre o discurso e
seu objeto. Essas especificidades não podem ser reduzidas ou desconsideradas pelo
historiador ao dialogar com a literatura, do contrário, deve-se trabalhar com a literatura
a partir do olhar histórico. (FERREIRA, 2009, p.77).
Cabe ao historiador a tarefa de interrogar a que público os textos literários se
destinam e que papel cumprem nas condições sociais e culturais da época em que estão
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inseridos. É essencial analisá-los enquanto documentos e, por isso, portadores de um
discurso que não pode ser visto como algo transparente ou inocente (CARDOSO;
VAINFAS, 1997, p.377). É tarefa do historiador também colocar estes discursos à
prova, confrontando-os com outras fontes que permitam a contextualização da obra para
assim se aproximar dos múltiplos significados da realidade histórica, levando em conta
o intercâmbio entre a literatura com outros tipos de linguagem.
A literatura, enquanto representação e reconstrução da sociedade, pode revelar
facetas da realidade social que de outra forma permaneceriam obscuras. Os textos
remetem aos anseios, angústias, paixões, ideias, mudanças e valores das pessoas que
formavam a sociedade que o produziu. São registros que falam sobre o passado, mas
também podem ecoar até o presente. Por isso, é fundamental ao historiador possuir a
sensibilidade necessária para “ler as marcas” da sociedade e da cultura nas obras e a
capacidade de articular a análise interna da obra ao mundo circundante, a fim de que a
investigação histórica possa captar as nuances da realidade histórica e social mais
profunda da qual as obras tratam.
Breve quadro sobre a Escravidão
O romance histórico sergipano O Comedor de Jia narra um processo criminal
ocorrido em São Cristóvão, então capital de Sergipe, entre 1849 e 1850. Uma escrava
doméstica menor de idade é acusada de ter envenenado o seu senhor, um renomado
escrivão de órfãos.
Santos constrói uma narrativa ficcional a partir de uma base histórica real,
fundamentada por documentos que são, porém, permeados de lacunas. Já no prefácio do
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livro, a definição da obra é apresentada ao leitor a partir desse aspecto: “Um misto de
literatura e laudo, de conto policial e documentário” (SANTOS, 2006, p.19).
O autor deixa claro que utilizou sua imaginação para preencher os espaços
deixados pela fonte histórica oficial. Alguns diálogos e personagens que o livro
apresenta não ocorreram ou existiram realmente, ou pelo menos não da forma narrada.
(SANTOS, 2006, p.24). Mas esta é uma opção do escritor, que afirma ter procedido de
tal forma para que o trabalho tivesse uma linguagem acessível, “sem as usanças
metodológicas que obrigam ou sugerem o emprego de termos e expressões incomuns e
inconsequentes à grande maioria da população brasileira”. Ao mesmo tempo, possui o
objetivo de “mostrar o fato histórico e documental, verdadeiro e singular, inédito,
irrepetível, de uma forma diferente e, sobretudo, humana.” (SANTOS, 2006, p.25 [grifo
nosso]).
Utilizando-se da literatura, O Comedor de Jia constitui-se uma obra de caráter
histórico e desafiador, pois descortina os valores preconceituosos da sociedade
sergipana da época como fator legitimador da escravidão, apresentando também os
interesses econômicos que suportavam a instituição da escravatura. Enquanto um
discurso histórico legítimo que visa compreender as relações sociais entre senhores e
escravos na sociedade oitocentista, na capital sergipana São Cristóvão, o romance
permite ao historiador uma visão plural do momento histórico narrado, mas também
promove uma reflexão sobre as reminiscências dos mesmos valores na atualidade.
O momento histórico que é plano de fundo do romance, o século XIX, marca o
declínio da instituição da escravatura no Brasil, em decorrência do crescimento do
movimento abolicionista e as ações de resistência e revolta dos negros.
Em Sergipe, assim como em todo o país, a escravidão se fez presente de maneira
forte e violenta. Possuir escravos era mostra de poder e status. Segundo Nunes, os
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primeiros negros chegaram ao território sergipano com os primeiros colonizadores, após
a “conquista” por Cristóvão de Barros em 1590. Utilizados na pecuária, na agricultura
de mantimentos e nas lavouras de fumo e cana-de-açúcar, eles eram “as mãos e os pés
dos senhores de engenho” (ANTONIL apud NUNES, 2006, p.224).
Os braços cativos eram fundamentais para o desenvolvimento da Província. A
escravidão era um elemento constitutivo da sociedade brasileira, como também da
sergipana, imersa no contexto nacional. Acreditava-se que o progresso estava ligado à
escravidão. (SOUSA, 2010, p.94).
Com a proibição do tráfico internacional de escravos imposta pela Lei Euzébio
de Queiroz em 1850, a economia apela para o tráfico interprovincial para manter a
circulação de escravos e sustentar a cultura da cana-de-açúcar. Neste momento, a
escravatura começa a sofrer rachaduras em sua estrutura. A lei gerou um abalo
econômico no negócio do comércio de escravos e a ascensão do movimento
abolicionista causou um abalo social, pois a partir deste momento, uma nova maneira de
pensar o Brasil começou a surgir. O movimento pró abolição trouxe a perspectiva de
vergonha e indignação diante de um país escravocrata, confrontando as noções de
“direito” e “posse” do branco sobre o negro.
As tensões entre os partidários da escravidão e os opositores se acirram neste
século e especialmente a partir de 1850. É importante entender esse momento, pois,
como vimos anteriormente, o discurso não está separado do contexto no qual está
inserido.
A Lei Euzébio de Queiroz não promoveu, ao contrário do que é defendido por
alguns historiadores, uma melhoria no tratamento dos escravos. Autores como Emília
Viotti da Costa postularam que, não obstante as barreiras impostas à antiga facilidade na
aquisição dos escravos com a cessação do tráfico negreiro, e a atenção que os
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proprietários passaram a ter com relação a alguns aspectos da vida do cativo tais como
vestuário e alimentação, o tratamento violento permaneceu. Documentos da época,
inclusive casos de denúncias contra a postura dos senhores nas décadas de 1870 e até
1880, demonstram esse fato. (1998, p.339).
Em casos de escravos rebeldes e “fujões”, a legislação orientava marcá-los com
ferro em brasa um “F” nas nádegas ou rosto e, caso reincidisse, se lhe poderia cortar
uma orelha. Os açoites só foram suprimidos em 1886, mas continuaram na prática. A lei
se mostrava incapaz de abolir os privilégios e os preconceitos já tão consolidados. Em
Sergipe, os escravos eram proibidos de frequentar escolas, havia escravos casados que
pertenciam a senhores diferentes e a exploração sexual da mulher negra era também
fator comum em nossas terras. (FIGUEIREDO, 1977, p.53-55).
A legislação protegia os interesses dos senhores, possuindo resoluções que
liberavam donos e comerciantes de cumprir com o pagamento de alguns tributos e
multas. Medidas desse tipo também foram tomadas em Sergipe, isentando os
proprietários de engenho e lavradores de cana do pagamento da “meia sisa”, em 1853.
(FIGUEIREDO, 1994, p.35). Além de isenções de pagamento de tributos e multas, uma
carta régia já em 1696 proibia às escravas do Brasil o uso de vestidos de seda, cambraia
de renda e adornos de ouro e prata a fim de evitar “excessos e maus exemplos”
(NUNES, 2006, p.226).
Algumas medidas legais buscavam estabelecer a moderação nas relações entre
senhores e escravos, e ordenavam que os proprietários mantivessem seus cativos bem
vestidos, que não empreendessem castigos excessivos e que oferecessem uma maior
atenção às mulheres gestantes. Porém, essas leis tinham pouca eficácia, especialmente
no campo, onde a fiscalização era ínfima e o poder senhorial agia absoluto,
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concentrando em si a representação da Igreja, da Justiça e da força política e militar
(COSTA, 1998, p.266).
No entanto, a justiça ineficiente também era conivente com os desmandos
senhoriais. Essa situação era favorecida pelo fato de que o corpo de jurados era
escolhido segundo princípios que levavam em conta a representação social do
indivíduo, o que acarretava no recrutamento dos burocratas entre os fazendeiros
escravistas ou seus aliados. Além disso, os estereótipos vigentes influenciavam os
julgamentos desses homens, os quais estavam imersos numa cultura que enxergava o
escravo como um ser “primitivo, ignorante, culposo permanente”. Por outro lado, a
conduta do senhor de escravos era considerada como correta com antecedência,
favorecendo a impunidade de proprietários e feitores. (COSTA, 1998, p.315 e 316).
Além do arcabouço jurídico de suporte e reforço à escravidão, a justificativa
religiosa emergia como mais um sustentáculo do sistema escravocrata. A propagação da
fé cristã era utilizada desde o início da expansão marítima como amparo às conquistas
de novos territórios e a escravização dos povos. Não foi diferente com relação à
escravidão de africanos, para qual o Império apoiava-se no postulado de Tomás de
Aquino que, inspirado em Platão e Aristóteles, afirmou que “os homens são, por
natureza, uns senhores e outros escravos” (FIGUEIREDO, 1994, p.20).
O papel do confessor deveria ser o de mediador entre senhores e escravos.
Ajustada à realidade vigente, a igreja católica pactuava com o setor senhorial. A religião
tinha a função de mediadora, agindo como um freio que controlasse os escravos e
aconselhasse os senhores. Os cativos eram exortados à moralidade e aos bons costumes,
ao amor ao trabalho e obediência aos seus donos, que deveriam ser vistos como seus
pais. Por sua vez, os proprietários deveriam ser moderados, cuidar da assistência
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religiosa aos escravos, zelando pela doutrinação e batismo dos mesmos. (COSTA, 1998,
p.273 e 274).
Havia padres que possuíam escravos e os tratavam com crueldade. Alguns
religiosos chegavam a dizer que os negros pertenciam a uma raça de condenados para os
quais apenas a obediência passiva ao trabalho constituía a única reabilitação. Outros,
porém, defendiam outra corrente teológica, a qual estabelecia que os negros eram
“filhos do mesmo Pai” e que os senhores deveriam considerar o princípio de tratar a
outrem como eles mesmos desejavam ser tratados. (COSTA, 1998, p.305).
A Igreja, de maneira geral, permaneceu omissa às atrocidades da escravidão e
buscou conciliar os interesses financeiros com os ditames da religião. Não podemos
desconsiderar, porém, a ação de clérigos que se colocaram contra a instituição
escravocrata e defenderam posições abolicionistas. Com a “vontade divina” ao seu lado,
os senhores e comerciantes mantinham sua posição de poder e /privilégios na sociedade.
No meio rural, como já dissemos, o poder do proprietário imperava quase sem
restrições. O isolamento das fazendas dos núcleos urbanos, onde estavam sediados os
órgãos públicos que deveriam fazer cumprir as moderações previstas pela lei, contribuía
para que, em sua fazenda, o senhor fosse a personificação da lei. Nas cidades, como é o
caso de São Cristóvão, as recomendações legislativas que visavam atenuar a violência
entre senhores e escravos raramente eram obedecidas e mesmo as autoridades urbanas
estavam inseridos na cultura de violência contra o escravo.
O Comedor de Jia: a escravidão em Sergipe pelo olhar literário
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Dentro desse contexto, podemos perceber que, em meados do século XIX, época
na qual ocorre o caso descrito em O Comedor de Jia, os valores preconceituosos que
justificavam e suportavam a escravidão estavam cristalizados na sociedade brasileira e,
por consequência, também na sergipana. Juntamente com esse fator, o pânico dos
brancos gerado pelas décadas de sublevações de escravos e os boatos que alimentavam
esse sentimento de terror contribuíram para a violência que caracterizaram as
investigações do caso de envenenamento narrado no livro.
O enredo da obra tem como centro o drama de Hilária, a jovem escrava
doméstica acusada de ter envenenado seu senhor, o conhecido escrivão de órfãos
Bartholomeu José Correia Beija-Flor. Homem de posses, descrito no livro como alguém
que era visto pela população com admiração, considerado um cidadão digno e
trabalhador, de boas relações e contatos com pessoas da classe privilegiada. Em meados
de 1842, mudou-se da Bahia com a esposa Francisca Romana da Silveira e a filha Maria
Clara (Mariquinha). Com eles foram os escravos domésticos Hilária e Roberto, filhas da
negra Felisberta, que permaneceu cativa nas terras baianas.
Já nas primeiras páginas da história podemos perceber uma conexão com a
realidade da escravidão: a separação de escravos membros da mesma família. Embora a
legislação desaconselhasse essa prática, a maioria dos senhores a ignorava, como tantas
outras resoluções legais. Os dois irmãos que foram separados da mãe eram menores,
tendo Hilária 16 anos e Roberto, 8, à época do crime.
Apesar de ser membro e representante da classe urbana dominante, o personagem de
Beija-Flor também aponta para a cultura negra. Seus exóticos hábitos alimentares, tão
afamados quanto o seu nome, foram aprendidos “na zona do baixo meretrício da Quinta
do Maciel” e em áreas como a do “Pelourinho e da Baixa dos Sapateiros”, consideradas
obscuras pela presença latente da população mais pobre e negra. Dessa forma, Santos
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demonstra a penetração da cultura africana no mundo dos brancos através da culinária
apreciada por Beija-Flor, revelando já de início a complexidade das relações e das
trocas entre os vários agentes sociais que conviviam durante o período escravocrata.
(SANTOS, 2006, p.33).
Entre seus pratos favoritos constam cozido de ovos de tartarugas, fritada de jia,
croquete de lesmas, entre outras refeições peculiares. Foi justamente um dos pratos mais
apreciados por ele – um ensopado de jia – o responsável por sua morte. Após o escrivão
cair de cama, sua filha descobre um pó branco no chá que estava sendo utilizado para
fins medicinais, e acusa a escrava doméstica Hilária de ter administrado veneno na
bebida do pai. A adolescente é, então, levada à delegacia, onde o delegado Pereira
Cunha a submeteu a interrogatório. (SANTOS, 2006, p.23)
Antônio Augusto Pereira Cunha era juiz municipal e delegado. Nomeados pelos
Imperadores, os juízes municipais tinham um mandato de quatro anos, ao fim dos quais
eram promovidos a juízes de direito. Eles eram responsáveis por executar sentenças e
mandados dos juízes de direito, investigar crimes e prender culpados, fazer corpo de
delito e pronunciar nos crimes comuns. (SANTOS, 2006, p.138). Como parte da
estrutura administrativa do aparelho estatal e representante da “lei e da ordem”, Pereira
Cunha cumprirá um papel central na trama de Pedrinho dos Santos, como símbolo da
violência dos brancos contra os escravos e da intolerância, corrupção e brutalidade das
investigações quando o assunto envolvia delitos praticados – ou supostamente
praticados – por negros.
Os interrogatórios são permeados de ameaças e torturas, até que Hilária confessa
o crime. Durante o processo de investigação, Beija-Flor morre e suas vísceras são
levadas a Salvador para um exame toxicológico, o qual não acusa a presença de veneno
no corpo do falecido. Mesmo após sua leitura pública, o laudo foi ignorado e Hilária
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sentenciada a morte. As últimas páginas do livro, porém, não apresentam um final
definido para a história. Ao invés disso, Santos oferece aos seus leitores a descrição de
um diálogo cotidiano entre dois trabalhadores simples, e finaliza o texto com uma cena
na qual um animal se deita sobre o piso de um prédio, da mesma forma que o fez no
início do enredo. Este “retorno à rotina” aponta para apatia social diante do drama de
Hilária, demonstrando que a situação dos escravos era recebida com uma “indiferença
natural” pela sociedade.
Encontramos, nas páginas de O Comedor de Jia, descrições que vem a confirmar
o que a historiografia afirma sobre a escravidão e seu alicerce na violência. Fica muito
claro no livro como o tratamento dispensado aos escravos, mesmo os domésticos – que
possuíam uma relação mais próxima com a família senhorial e uma pequena margem de
“liberdade”, se pode-se falar nesses termos – era baseado nos preconceitos de raça e nos
valores escravocratas reforçados pela legislação e pela igreja.
A legislação não ofereceu proteção a Hilária e de maneira nenhuma ela teve
direito a um advogado, visto que não era considerada cidadã. Essa mesma legislação
caracterizava os castigos físicos como direito e dever senhorial e, não obstante a
Constituição de 1824 reconhecer em seu artigo 265 os contratos entre senhores e
escravos, os mesmos eram “letra morta” e nunca foram disciplinados juridicamente
(FIGUEIREDO, 1977, p.53).
Devemos considerar também a opção ideológica do autor. Esta se revela mais
claramente nos momentos em que Pedrinho toma posições e se mostra parcial. Ele
busca revelar e denunciar a estrutura social existente, baseada no preconceito, na
violência e na mercantilização do ser humano: “Hilária estava frita. Condenada. Pagava,
ali, na enxovia, o preço de ter nascido negra, ser cativa e analfabeta.” (SANTOS, 2006,
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p.49). Em sua denúncia, o autor acaba por abrir mão da imparcialidade histórica e cria
uma dicotomia do tipo “heróis” e “vilões”:
“O vibrar continuado do azorrague fê-la pequena na grandeza da sua
inocência. A iminência da morte a tocar-lhe a pele negra curvou-a à
vilania dos tiranos. Se lágrimas nela havia estas foram sugadas pelo
ardor da sua alma juvenil.” (SANTOS, 2006, p.50).
Hilária, enquanto representante dos negros escravizados, é construída não é
apenas uma vítima inocente da “tirania” dos senhores, mas também uma vítima cuja
alma é juvenil, grandiosa, e cujo caráter é o de uma pessoa correta, inocente,
“irrepreensível” diante da acusação à qual foi submetida. Em posição antagônica está o
delegado, seu assistente, a família de Beija-Flor. Todos, enfim, que simbolizam o poder
senhorial, os algozes dos escravos, aqueles que, ameaçando a negra com a morte,
arrancaram dela uma confissão falsa.
Mais uma vez, o olhar do historiador deve estar atento e considerar o caráter
fictício da obra. Tratando-se de um romance histórico, no qual o autor desde o início
aponta a utilização da sua imaginação na construção do enredo, não cabe aqui acusá-lo
de estar fugindo ao rigor metodológico, não se distanciando do seu objeto. O texto é
uma obra literária e, apesar de ser escrita por um historiador, o mesmo construiu a
narrativa em formato não acadêmico. O gênero literário dá ao autor “liberdade poética”,
o que lhe permite expressar sua opinião sobre os personagens históricos e sobre os
próprios fatos descritos.
Por fim, é importante salientar que O Comedor de Jia também descortina traços
dos dois mundos em conflito: o do escravo e o do senhor.
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Para além do sincretismo religioso, o romance capta outros aspectos da realidade
de Hilária nas entrelinhas da narrativa: a vida cotidiana do escravo doméstico das áreas
urbanas, que mantém uma relação próxima com os senhores, diferentemente dos
escravos do meio rural, a ponto de dividir os trabalhos na cozinha com as senhoras; a
quantidade de responsabilidades e tarefas que eram designadas aos escravos, e as
relações de trabalho –o autor descreve tarefas específicas para escravos diferentes na
preparação dos alimentos, por exemplo – e de solidariedade ou não entre eles, como
mostra o interrogatório de negros citados por Hilária, que a defendem ou acusam.
Também destaca o abismo que separava escravos e senhores, por mais próxima
que parecesse a sua convivência, por suas condições sociais, culturais e “humanas”, na
medida em que o escravo era tratado como “coisa”. Na caracterização dessa relação,
sobressalta a vitimização e exploração de um pelo outro.
Ao mesmo tempo, Pedrinho adentra a casa da família senhorial e traça o perfil
dos parentes do escrivão envenenado, especialmente o da sua esposa, constituindo-os
como representantes da mentalidade da elite da época, a qual ele chama de “burguesia
citadina”. Conforme suas diretrizes ideológicas, o autor constrói uma imagem da elite
urbana como sinônimo de tudo o que é desonesto – a esposa de Beija-Flor é mostrada
como uma das articuladoras do “teatro” para condenar Hilária, mesmo sabendo de sua
inocência – e ardiloso, violento e sem compaixão.
Os acontecimentos são expostos como parte de uma trama motivada pelo
preconceito que condenou a escrava para satisfazer a necessidade de punição da
autoridade senhorial e o desejo de encontrar um bode expiatório para ser
responsabilizado pela morte do escrivão de órfãos.
Ao final desta análise, ressaltamos novamente o efeito do “retorno à rotina”
presente na última parte do romance. Por meio dele, Santos promove não apenas a
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reflexão sobre os valores sobre os quais a sociedade em que vivemos foi construída,
mas também o questionamento sobre a permanência desses valores e resquícios de
preconceitos e práticas – agora sim – racistas na contemporaneidade. Após acompanhar
todo o enredo e envolver-se com o drama de Hilária, o leitor é “trazido para o chão” e é
levado a perceber que, apesar de tudo o que a escrava teve de passar, a mentalidade e a
opinião daquela sociedade não foi modificada.
Nesse sentido, o autor chama a atenção do leitor, promovendo uma pergunta: o
que mudou e quanto mudou de lá para cá? A experiência da escravidão e a Abolição
modificaram substancialmente a sociedade? Se sim, em que medida? São questões
lançadas no ar, que, na época em que o romance foi escrito, explodiam nas rodas de
debates das universidades, nas conversas entre cidadãos comuns e nas ações dos
movimentos negros no país.
A permanência da estrutura tradicional de modelo nobiliárquico português, que
dotava o senhor de um poder paternalista e autoritário sobre sua família e seus criados.
Essa é, para Santos, a base que sustenta os valores escravistas e o ponto que norteia as
relações entre senhores e escravos. A estrutura da sociedade, de fundamentos
patriarcais, paternalistas, católicos e aristocráticos, sustentava uma série de crenças e
preconceitos sobre o negro, sobre sua alma, seu caráter que era visto como deturpado,
sua própria humanidade que era vista como “decaída” e “degenerada”.
O conjunto desses valores retratava o negro não como ele era, mas sim imerso
nas condições de escravos. Disso resultava que o vício de um escravo, por exemplo, era
entendido como um desvio de caráter e não como uma consequência de sua triste
situação; as revoltas, insurreições, tentativas de vingança e assassinatos eram
compreendidos como características próprias de uma raça selvagem, e não como reação
de um grupo de pessoas que eram tratadas como menos que animais.
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São justamente esses valores que Santos denuncia durante todo o livro. O
discurso histórico produzido pelo romance é um discurso de denúncia, no qual Santos
apresenta inúmeras facetas sobre a escravidão em Sergipe no século XIX, com foco na
cidade de São Cristóvão. Porém, ao mesmo tempo em que essa narrativa polifônica
aponta para várias nuances e aspectos sobre o tema e abra muitas possibilidades de
aprofundamento e análises, esta nota central de denúncia e questionamento dos
preconceitos que regiam a sociedade escravocrata ressoa em todos as partes de O
Comedor de Jia, sendo o ponto de partida e o ponto final – ou, nesse caso, o ponto “em
aberto” deixado pelo autor – que provoca uma reflexão sobre a atualidade.
Resquícios de práticas escravocratas permanecem até hoje no Brasil e mais
pessoas do que se gostaria de admitir ainda possuem uma visão preconceituosa acerca
do negro e da África também. Dessa forma, o final de O Comedor de Jia, ainda que
possua pouquíssimas páginas, aponta para heranças que a instituição da escravatura nos
deixou, como o racismo ainda presente na população, o desprezo pelo trabalho manual,
o desrespeito aos direitos do cidadão das camadas mais baixas, a visão da elite sobre
esses trabalhadores e a irradiação desta para os próprios setores populares (MAESTRI,
1994, p.2 e 3). Em adição, essa herança também atinge a educação, o que é demonstrado
pela pouca atenção ao estudo da história africana e dos trabalhadores escravizados antes
de serem privados de sua liberdade.
Considerações Finais
Em conclusão, consideramos que Pedro dos Santos apresenta uma obra
diferenciada dentro cenário historiográfico sergipano. Escolhe trabalhar com uma escala
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de observação menor e consegue apreender traços da sociedade escravocrata sergipana
oitocentista, sem perder, entretanto, a beleza e o dinamismo próprios do gênero
romance. O Comedor de Jia demonstra como a história pode, assumindo a forma de
literatura, captar a realidade histórica e descortiná-la diante dos olhos dos leitores,
atingindo tanto acadêmicos quanto leigos.
Seu caráter de denúncia remete àquele atributo problematizador da metaficção
histórica. O seu discurso de questionamento é indissociável de seu conteúdo: a forma
como o autor escreve os interrogatórios, as caracterizações que apresenta e a dicotomia
que estabelece entre Hilária (vítima e heroína) e o delegado (tirano e vilão) e o ataque
aos ideais da elite citadina da época. Todos esses elementos são colocados em uma
forma literária e linguística específicas, que visa atingir o leitor e, mais do que encantá-
lo, promover nele a reflexão.
A obra exemplifica de maneira vívida como história e literatura se interpenetram
sem se confundirem, pois nela a São Cristóvão escravocrata oitocentista e suas tensões
sociais são expostas, lançando luz sobre nuances que de outra forma poderiam
permanecer obscurecidas. Desse modo, O Comedor de Jia reafirma como o romance
histórico nos permite compreender o passado, debater o presente e até mesmo pensar o
futuro através de uma narrativa ficcional, que não deixa de ser real, ao seu próprio
modo.
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