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A ESCRITA SEM LIMITES DE LÚCIO CARDOSO
Beatriz dos Santos Damasceno
Este artigo reflete sobre a relação do escritor Lúcio Cardoso com a
escrita, a partir da análise da dedicação dele ao gênero diário.
Observa, ainda, a sua escrita interminável, que foi capaz de romper
os limites do corpo e registrar as marcas e as reflexões como
testemunha de uma vida inteira.
Lúcio Cardoso – escrita – diário - corpo
This article reflects about the connection of the writer Lúcio
Cardoso with writing, based on his dedication to the genre of diary.
It also highlights his endless writing which is able to break the
body´s limits and to print the registers and reflections as witness of
a lifetime.
Lúcio Cardoso – writting – diary - body
O Seminário “Lúcio Cardoso: tempo de lembrar e tempo de entender”,
dedicado à comemoração do centenário de nascimento do escritor mineiro, foi
um encontro raro e emocionante. Primeiro, trouxe à tona vida e obra de um
artista múltiplo, polêmico e marcante ao observar sua trajetória como
romancista, diarista, tradutor, poeta, além de suas incursões pela pintura,
cinema e teatro. Depois, procurou construir sua influência no meio literário,
apresentando suas posturas críticas ante o cenário cultural da época.
De minha parte, coube refletir sobre a vida e a escrita sem limites do
escritor. Lúcio Cardoso caminhou no limiar de experimentações densas e
intensas em que sua escrita foi testemunha, por isso ressalto aqui o artista que
se escreve e se distribui, o artista que se dá às folhas de papel construindo
diários, buscando, como ele mesmo afirmava, uma composição de si com um
furor cego e desatinado, e que, mesmo após um acidente vascular cerebral,
continua se entregando à escrita, à maneira própria do corpo. Sem deixar de
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fazer daquele momento mais uma oportunidade de mergulhar em seu universo
rico e passional.
Lúcio Cardoso era um homem de paixões, e a paixão é algo que inflama
e atormenta. Inquieto e provocativo, sua própria vida era uma denúncia à
mediocridade, desafiando valores morais e ao mesmo tempo sofrendo por eles.
O escritor era extremamente sensível e seu corpo caminhou nesse limiar da
paixão, da dor e da angústia, estimulado ao máximo, até onde não foi mais
suporte possível para viver dentro de uma “saúde” estabelecida. Corpo
pulsante, que sempre sinalizou resistência, viveu desenquadrado, na
perseguição constante de um além-limite, esboçando um questionamento
sobre até aonde agüentaria ir. Já nas últimas páginas do Diário, escreve sobre
a violência de viver: “Olho minha silhueta na sombra, gordo, disforme, um
homem de idade – mas o que ferve dentro de mim, essa curiosidade, esse
frêmito de viver. Acalmo-me à força, à custa de remédios, arrastando o dia
como uma data que não me pertencesse.” (CARDOSO, 1970, p.297).
O escritor buscava frear, inutilmente, seu instinto avassalador de
liberdade, que impunha a ele uma vida peculiar, diferente dos modelos sociais.
Para dar conta desse espírito livre e criador, Lúcio extravasava-se em bares,
bebia em excesso, dormia mal, enfim, não mantinha qualquer disciplina, e essa
irreverência sacrificava o corpo.
David Lapoujade, em seu ensaio “O corpo que não agüenta mais”
(LAPOUJADE, Apud. LINS, 2002), reflete sobre a reação do corpo ante as
exigências sociais e afirma que qualquer corpo sempre não agüenta mais
aquilo a que é submetido do exterior, ou seja, ao adestramento e à disciplina,
promovidos pela sociedade, ele afirma:
As páginas essenciais de Nietzsche, em A genealogia da moral, ou as
descrições de Foucault, em Vigiar e punir, são decisivas a esse respeito:
trata-se de formar corpos e de engendrar um agente que submeta o
corpo a uma autodisciplina. Em Nietzsche, é um corpo animal (que é
preciso adestrar) e, em Foucault, um corpo anômalo (que é preciso
disciplinar). E, através das páginas esplêndidas de Nietzsche e Foucault,
é todo um sistema de crueldade que se impõe aos corpos. (p. 84).
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Mas onde estava a disciplina em Lúcio? A indisciplina fazia parte de seu
método, a irregularidade era a sua forma de estar no mundo, portanto ao não
se anestesiar diante das imposições, debatia-se incompreendido e, muitas
vezes, culpado:
Nesta solidão, verifico as deficiências enormes que me compõem:
trabalho de um modo fácil mas sem ritmo prolongado, não sei ler, leio
mal , sem segmento, e penso ainda pior, sem um raciocínio lógico,
impondo meu pensamento por clarões, fatos ou intuições, nunca por
meio de uma idéia seguida e trabalhada. Mas serei culpado? Esta é a
natureza que Deus me deu – e esta solidão que de longe tanto proclamo
e reclamo, é sempre dura e pesada de suportar. Um terror do mundo,
antigo e sempre sufocado, aflora-me à consciência. (CARDOSO, 1970,
p. 296).
Ainda segundo Lapoujade, o corpo também não agüenta mais, aquilo a
que se submete de dentro, todos os instintos que não se liberam porque não
são próprios, convenientes. E, assim, cria-se uma coleção de órgãos, juízos,
“um corpo para uma alma”. Esse corpo, subordinado por um organismo que
entrava a potência, sente-se muito mal, torna-se sacrificado pela submissão.
Lúcio Cardoso experimentou esse embate a vida inteira e, como não limitava a
sua potência, debatia-se contra a exigência de sujeição promovida pelo poder
da culpa, herança da formação católica, mineira, tradicional. Deleuze e
Guattari mostram a expectativa social da criação de um corpo para uma alma
baseados na análise da vida de Artaud, e sublinham que o agente constrói no
corpo um organismo que pode subordiná-lo, submetê-lo:
O juízo de Deus, o sistema do juízo de Deus, o sistema teológico, é
precisamente a operação daquele que faz um organismo, uma coleção
de órgãos que se chama organismo (...). Você será organizado, você
será um organismo, articulará seu corpo – senão você será um
depravado (...). Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de
enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado – senão você será
apenas um vagabundo. (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p.21-22).
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Nesse sentido, pode-se dizer que Lúcio Cardoso tornou-se um
vagabundo, um nômade em relação aos padrões sociais: não obedeceu a uma
regularidade nos estudos, não teve constância nos trabalhos, dispersou
esforços abraçando uma série de projetos em diferentes áreas, sofrendo,
muitas vezes, desgostos e fracassos. Tornou-se também um depravado porque
desvirtuava comportamentos e leis morais, principalmente no que diz respeito a
sua homossexualidade, às noites em delírio nos bares e em casas de amigos.
E, na tentativa de dar conta de sua inconstância e vontade de extrapolar
limites, seu corpo sofria uma crueldade absurda. Certa vez, registrou no Diário:
Não estou nada satisfeito com o passado, ainda espero alguma coisa do
futuro. Deste modo, pensando assim, é que construo o meu presente.
Ou melhor, que luto, que luto incansavelmente contra essas forças que
sempre existiram dentro de mim, e que sempre foram mais fortes do que
eu. (p. 298).
Lendo as páginas do Diário de Lúcio Cardoso, lendo seus textos de
ficção, lendo sua vida, é notável a presença do corpo sempre em desafio, e a
sua escrita vem como ferramenta útil na desintoxicação dos efeitos dessa
crueldade.
Lúcio tinha a sede da escrita e por meio de diários concebeu um
universo de imagens, pensamentos, correspondentes a fatos, acontecimentos
e experiências à maneira fragmentada e descontínua de sua natureza peculiar
em constante movimento. Num mundo que discute e lamenta a supremacia
dos fatos em detrimento à experiência, o escritor sempre procurou, com
propriedade, rever sua escrita, sacrificar os fatos vividos para falar dos efeitos
perceptivo-afetivos que a experiência lhe trazia, certa vez registrou no Diário a
indagação de um jovem a respeito dessa opção:
Por que você nunca cita fatos, nem se refere ao que realmente lhe
acontece? Quem me faz essa pergunta tem dezessete anos, e só a
mocidade, evidentemente, justifica a pergunta. Pois o que narro aqui
acontece, mas com uma diferença – só acontece a mim mesmo. (...)
Uns são fatos apenas, os outros são experiências de fatos. Fatos são
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fatos, e experiências são as almas desses fatos. (CARDOSO, 1970,
271)
Quem lê o diário de Lúcio Cardoso observa sua descontinuidade, a
soma de reflexões, lembranças que não apresentam uma composição
estruturada. O seu diário vai se compondo numa desconstrução do
autoconhecimento convencional, subvertendo o conceito de confissão e
criando a tensão necessária à produção de uma interioridade desejante. “Não
sei se é novo o que eu digo que me importa, mas não só a filosofia, como toda
a arte que se conta como tal, não deve permitir ao homem nenhum sentimento
de tranqüilidade. Tudo o que é belo, só deve ser útil para fazer crescer nossa
impressão de intranqüilidade.” (p.27)
E o escritor tinha total consciência da experimentação que é esse
gênero, pois o diário não se dá como acabado, é a escrita a quente, em
constante movimento, nele, colecionam-se os dias ao sabor do tempo, com o
olhar sobre os sentimentos e as sensações. Lúcio parecia entendê-lo como
uma verdadeira oficina, em que há recortes, colagens, articulação de
fragmentos que se compõem e atingem uma dimensão inimaginável porque
apresentam uma linguagem de prontidão que não está prestes a concluir nada.
O gênero híbrido do diário proporciona liberdade de um pensamento
construtor latente, por isso, escrever era necessário para conhecer-se. E Lúcio
nunca poupou reflexões sobre o que, para ele, representava a escrita. No
diário, observamos a inquietude de um homem que provava intensamente a
vida. Meses antes do AVC, Lúcio transgrediu o mais que pôde, bebendo e
usando anfetaminas, a despeito das recomendações médicas e apelos da
família. E esse sentimento de desconforto está expresso nos últimos registros
do segundo volume Diário: “Quanto a mim, por exemplo, vou cantando e
pisando em brasas, que este é o preço do que não tem preço” (CARDOSO,
1970, p. 300). Lúcio caminhou para o extremo, o que resultou numa resposta
violenta: a hemiplegia (paralisia de um dos lados do corpo).
Seu corpo inquieto e sempre agredido pelas imposições do interior e
exterior é obrigado a um novo desafio: conviver com a paralisia. Aquele corpo
sempre cindido e sacrificado mostrava-se visivelmente afetado aos olhares dos
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outros. Para Lúcio Cardoso, o golpe da doença veio como uma resposta a sua
procura interminável. Para quem observa a maneira com que o escritor lidava
com a escrita, é impossível não questionar como ele deu conta de não poder
registrar tal experiência, como deixar de registrar o extraordinário. Segundo
Blanchot, “o diário que parece tão livre na forma, tão preso à insignificância,
apresenta uma armadilha, a de que ele deve respeitar o calendário. Esse é o
pacto que o diário assina. O calendário é o seu demônio.” (BLANCHOT, 2005,
p.270) Como Lúcio deixaria de contar o extraordinário? Como não registrar a
experiência daquele de experimentação da morte? O escritor gostava de
desafiar o limite, certa vez, em conversas com amigos, afirmou: “eu quero tocar
a cauda da morte.” (PELLEGRINO, 1968)
E se a escrita era construção e reconstrução da imagem e se por ela
também se procura dar conta da própria existência, como conviver com uma
experiência tão marcante sem sua cumplicidade? Como a escrita, que antes já
se reconhecia como testemunha da experiência, não reclamaria a sua
permanência? Em várias citações do Diário, Lúcio observa como sentia no
corpo a potência da escrita. Em um momento de intervalo de filmagens de A
mulher de longe, filme que produzia, registra: “nas longas horas de expectativa
deitado na grama ou no terreno nu, sinto uma palpitação que não me é
desconhecida, qualquer coisa que me desce à ponta dos meus dedos e que se
chama necessidade de escrever.” (p. 16)
Nessa curiosidade e indagações, encontrei no arquivo do escritor, na
Fundação Casa de Rui Barbosa - RJ, uma pasta com blocos, cadernos,
cadernetas e folhas avulsas catalogada como “exercícios de foniatria”. E
nesses papéis estão as novas experimentações no campo escritural feitas pelo
artista – os detritos de escrita em blocos e cadernetas compõem uma jornada
no coração da experiência, não exploram a linguagem em suas riquezas, mas
em seus limites, nos seus pontos de fuga, forçando-a a alcançar o que está
além de suas possibilidades, na outra margem, no limiar. A escrita vai
proliferando na velocidade do devir, a não mais poder, em legitimidade com
experiência.
Corpo e escrita em Lúcio constantemente se fundiram; ele que sempre
registrou o devir de novos corpos e novas experiências, sabia que, na doença,
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tornava-se mais do que necessário o registro do cotidiano que sempre escapa.
“Extraordinário cotidiano” que o acompanharia por um tempo que não sabia
quanto ia durar e precisava ser revelado. As falhas e as lacunas, as fendas e a
falta precisavam ir para o papel, garantindo a sua presença em corpo e signo
como sempre fora. Escrita-corpo presente, companhia e suporte, que expressa
desejos, conflitos, indagações. Como no Diário, folhas avulsas que
materializam dúvidas e reflexões que precisavam ser testemunhadas, divididas,
lembradas. Trata-se da escrita das marcas, dos “estados inéditos que se
produzem em nosso corpo a partir das composições que vamos vivendo.
Aberturas de um novo corpo, concluindo-se que as marcas são sempre gênese
de um devir”. (ROLNIK, 1993, p.242). A escrita em detrito, o diário em
decomposição, sentimentos em prontidão que corroboram a continuidade do
trabalho de diarista. Além disso, o corpo faz exigências, reclama
potencialidade. E, nas oscilações de comportamento, no período em que
esteve doente, a irmã Maria Helena observa assustada a aparente nitidez com
que lida com a limitação e parece experimentá-la. Assim relata o diálogo com
ele, no livro de memórias que escreveu após a morte do irmão:
-Você é muito teimoso, por isso lhe tem acontecido tanta coisa. Tá
lembrado de quando teve a primeira crise da doença, apenas um
espasmo? Apesar dos meus rogos, teimou e continuou a beber e a tomar
bolinhas. Deu certo sua teimosia?
Mais irritado ficou e para surpresa minha falou:
-Deu certo, eu morri.
(...) Quando me disse aquelas palavras, bem pronunciadas, apenas o “i”
de morri, um pouco “e”, parecia até contente. É terrível, há momentos em
que dá a impressão de ser perfeitamente feliz como está: anda a casa
toda, ri e brinca com as pessoas como se estivesse satisfeito da vida.
Nessas horas fico a pensar se a sua situação de agora não teria sido
provocada para fugir a alguma coisa que desconheço. Mas nem sempre
se porta assim. Quando se lembra de que não pode mais escrever seus
romances, tudo que tem dentro da cabeça, desespera-se e tem crises de
melancolia. (MH.CARDOSO, p. 159).
Nesse sentido, é importante refletir acerca do significado dos detritos de
escrita que ao leitor suscita indagações e inquietação. Neles estão as marcas
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características do movimento do corpo que reúnem mutilação e expressão. A
distribuição dos escritos nas páginas, a aparente mistura aleatória de
referências e o fluxo de suas reflexões são manifestações ou, como já afirmara
o escritor em seu Diário “pensamentos por clarões”, e mostram que Lúcio
ocupava seu lugar, seu território e não deixa de lançar mão de sua marca.
Podemos chamar de arte esse devir? O território seria o efeito da arte? Quando
estabelece o seu domínio e sua assinatura nem o próprio autor tem o alcance
do solo que marca. (DELEUZE&GUATTARI, p.121)
Os fragmentos de escrita, as anotações de idéias para obras, as
observações circunstanciais que devem substituir a fala, as anotações para
lembrança futura correspondem às anotações do diário. Esses textos,
entretanto, truncados do ponto de vista da correção gramatical e ortográfica
apresentariam um modo radical de inscrever percepções, movimentos,
afecções do corpo na composição da escrita. Dessa forma, o diário de Lúcio
não teria sido interrompido, mas teve continuidade com um singular estatuto: o
da experiência-limite inscrita na atividade escritural.
Folha avulsa de bloco. Arquivo Casa de Rui Barbosa-RJ
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Folha avulsa de bloco. Arquivo Casa de Rui Barbosa-RJ
Lúcio desejou e tocou a cauda da morte e caminhou sempre nesse
limiar, deixando inscritas inúmeras sensações e provando a possibilidade de
vida na experimentação da morte. Isso corrobora com suas próprias reflexões,
já na página 23, do Diário: “Indago em vão e sei apenas, com uma triste
lucidez, que os desastres não me limitam” (CARDOSO, 1970, p. 23).
Além disso, o artista precisava dar conta de estar em seu meio, o meio
intelectual e artístico que o alimentava, por isso, a pintura, antes uma atividade
sem compromissos para presentear parentes e amigos, tornou-se a nova
expressão artística. Lúcio começou a pintar muitos quadros e deu-se ao
trabalho de pintura de maneira similar à que se tinha dedicado a sua escrita
literária. Pintava como escrevia, não só na revelação subjetiva do mundo, mas
também no método. Por isso, analisando a sua forma de pintar percebe-se,
com clareza, a voracidade de sua escrita. Tintas e palavras lançadas na tela e
no papel. Sua expressão é sem limite, densa, transbordante. Essa mesma
característica se desloca para as imagens visuais que se tornam também táteis
em suas telas. Em qualquer tipo de escrita do autor, a dimensão corpórea está
evidente.
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E a sua maneira corporal de lançar-se à pintura, cujo modo de
construção é mais claro, assustava os que o acompanhavam de perto pela
intensidade com que era produzida. Em Vida-Vida, livro de memórias, sua irmã,
Maria Helena Cardoso, descreve a forma como pintava:
...observo Nonô no atelier, as mãos mergulhadas na tinta, misturadas
várias cores sobre um pedaço de vidro grosso, funcionando como
palheta, um pouco de mistura colorida que vinha de fazer, escorrendo
por sobre a mesa. A tela que começava a pintar naquele momento já
deixa entrever alguns contornos daquilo que mais tarde seria um jardim
tropical na sua maior exuberância. Elsa, que também o acompanha de
longe, levanta-se, vai até sua mesa de trabalho e volta dizendo:
- Meu Deus, não sei como Lúcio consegue tirar alguma coisa de belo
daquela lambuzação toda. Ele, a mesa, o papel, tudo sujo, a tela mais
parece um borrão. Fico horrorizada, sem poder crer que de tal sujeira
possa sair alguma coisa que preste. É inacreditável, quem como eu vê
como ele parte para suas criações, não poderia nunca imaginar que
houvesse outro fim a não ser borrões. Olha, tem tinta até nos cabelos
(p.322).
Assim revelava-se seu espírito criativo, todo pintura, como fora todo
escrita. Maria Helena comentava a respeito dessa dinâmica desvairada, mas o
escritor rebatia, com a autoridade do artista que sabe compor sua obra.
Deixava, assim, a tinta derramar-se na tela em tons fortes, traços soltos e
firmes - pintando a não mais poder, extravasando os limites. A irmã deixa
registrado:
Obrigado a trabalhar com a mão esquerda somente, vira o quadro em
todos os sentidos, para baixo, para cima, os dedos imundos (porque
nunca usa pincel, mas os dedos), não admitindo nenhuma disciplina na
sua maneira de criar. Pinta ao sabor da sua fantasia, quando e como
lhe dá na veneta. Se o aconselho a mudar de método, a fazer como os
outros, sacode os ombros, irrita-se e muitas vezes escreve no caderno:
“Sempre fui assim. Vai ser o mesmo com a pintura. Você não entende”
(MHCARDOSO, 322).
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Óleo s/ tela - Sem título – Coleção Família Adauto Lúcio Cardoso
A exposição das suas cores revelou o artista da palavra e Lúcio fez
exposições nas principais capitais do país. O público absorveu seus novos
traços como uma infindável capacidade de escrita. Escreve Nair Lacerda, em
1966: “Seus quadros são luminosos, de pura Poesia. Ainda é o poeta que
inspira o pintor. E a comunicação continua a fazer-se, o ritmo continua a existir”
(LACERDA, 1966). Lúcio Cardoso expressa a resistência do artista, forçando a
palavra a margens desconhecidas e passeando pelas artes em seus
movimentos peculiares, sendo poeta enquanto romancista, pintor enquanto
poeta, escritor enquanto pintor...
E nessa necessidade de provar a vida e a escrita, provou a iminência da
morte, encarando sua possibilidade, indagando seus mistérios. A
impessoalidade, o fato de nunca se saber totalmente é, ao mesmo tempo, o
que mais instiga e atormenta o ser humano e a morte é a última instância que
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lhe oferece uma suposta esperança de conhecimento pleno de si. Como afirma
no Diário: “A morte que nos espera, é a mesma que nos acompanha como a
sombra estrangeira que divisamos na limpidez dos muros” (CARDOSO, 1970,
p.15).
Ao mesmo tempo, apresentar-se à morte, em definitivo, seria apagar o
mistério que impulsiona o espírito criador. O escritor parecia equilibrar-se nesta
corda bamba, impulsionado pelo desejo de morte, vivendo a busca pela
impossibilidade de morrer. Nessa convivência conflituosa, construiu sua
história artística estampando nos seus textos e telas esse jogo de forças
interior. Como ele mesmo afirmava: o Mistério é a única realidade deste
mundo. E, se dele temos grande necessidade, é para não morrer do
conhecimento de nossos próprios limites (CARDOSO, 1969, p.269).
A sua proposta de estar em movimento, sondando esses mistérios,
procurando descobrir outros eus dentro de si, é, de qualquer forma, rondar a
possibilidade da morte que oferece a revelação daquilo que é impenetrável.
Ele registra no Diário: E que é a morte senão a essência de todos nós?
Perdemos tudo, transfiguramo-nos, e bons ou maus somos sempre outros, a
fim de podermos atingir em verdade a morte que nos vive. (p.51)
A sua escrita a todo tempo testemunhou esse jogo. Por ser tão violenta
e vigorosa experimentou a aproximação com a morte. Em sua escrita-corpo, a
morte foi desenhando os contornos de sua permanência, porque ela só existe
para quem ainda pode morrer. A escrita caminhava na velocidade desse devir,
desse querer morrer. Nesse jogo, Lúcio desmontou a linguagem convencional
num eterno refazer-se outro, à procura de. Segundo Blanchot, “O escritor é
então aquele que escreve para morrer e é aquele que recebe o seu poder de
escrever de uma relação antecipada com a morte” (BLANCHOT, 1987, p. 90).
Mas depois de seis anos de luta contra a impossibilidade física e a
possibilidade de morrer, estampando-a na sua escrita em detritos e
tensionando as telas com seu jogo de cores, o homem que sempre viveu à
margem, como afirmou Cornélio Pena, parte para outro tempo. E, nesse
movimento, talvez tenha se dado conta de que escreveu para não morrer.
Como já afirmara Blanchot: “Escrever para não morrer, confiar-se à
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sobrevivência das obras, aí está o que ligaria o artista à sua tarefa”, escrever
“para sustentar, amoldar o nosso não-ser, eis a tarefa: Devemos ser os artífices
e os poetas da nossa morte.” (BLANCHOT, 1987 p.91).
Pela escrita se experimenta a morte e é por ela também que não se
morre, porque ficará sempre o leitor buscando respostas, e, pela falta delas,
continuará procurando, investigando, descobrindo o que não tem limite de
descoberta e entendimento, porque, o gênio, agora, por fim, tomo as palavras
do poeta Lúcio, “o gênio é uma morte a cavalo/ Que praias explora/ que praias
ascendem ao curso do seu domínio? O gênio cavalga fora das raias.”
Referências bibliográficas
Arquivo de Lúcio Cardoso – inventário. I. Rangel, Rosângela Florido, org. II.
Leitão, Eliane Vasconcellos, org. III. Título. IV. Série.
BLANCHOT, Maurice. O Espaço literário: trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Rocco, 1987.
_________________. Conversa infinita: a experiência-limite. São Paulo:
Editora Escuta, 2007.
_________________. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CARDOSO, Lúcio. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1970.
_______________. Três histórias da cidade. Rio de Janeiro: Edições Bloch,
1969.
CARDOSO, Maria Helena. Vida-Vida. Rio de Janeiro: Editora José Olympio;
Brasília, INL, 1973.
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DAMASCENO, Beatriz. Lúcio Cardoso em corpo e escrita. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2012.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. PELBART, Peter Pál. São Paulo:
Editora 34, 1997.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo – uma impressão freudiana. Trad: Cláudia
de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
Artigos sobre o escritor
LACERDA, Nair. “Lúcio”. A Tribuna, Santos, 26 jun. 1966.
PELLEGRINO, Hélio. “Um indomável coração de poeta”. Correio da Manhã,
Rio de Janeiro, 6 out. 1968.