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A Espera 4 Quadros Teatrais Proposta de Encenação da autoria de Castro Guedes Outubro de 2010

A Espera - Diocese do Porto Espera_Quadros Teatrais.pdf · pertenço a um povo que segue um pioneiro, Jesus, que já alcançou a meta e arrasta todos para ela. EMPRESÁRIO Arrasta

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A Espera 4 Quadros Teatrais

Proposta de Encenação da autoria de Castro Guedes

Outubro de 2010

A SUBVERSÃO DA ESPERA

Carlos A. Moreira Azevedo

Quadro teatral (Versão cénica)

Sala de espera do psiquiatra, com nome na porta “Esperança Aranha”. Três

personagens aguardam vez para serem atendidos: senhora com casamento falido e

desempregada, cerca de 55 anos; empresário de sucesso com doença incurável e cerca

de 44 anos; toxicodependente, com cerca de 22 anos.

EMPRESÁRIO

A vida está tão dependente de circunstâncias que não domino... sinto angústia pela

estreiteza das forças; diante da fragilidade da vida, revolto-me...

TOXICODEPENDENTE

Ó meu, ganhas tanto guito, com uma empresa de sucesso e só porque estás assim

doente já foste abaixo e vens, aqui, ao psiquiatra!...

EMPRESÁRIO

Avizinha-se o meu fim e interrogo-me para quê tanto trabalho, tanto investimento...

tantas expectativas… e, de repente, a notícia a quebrar o meu futuro. Não consigo

aceitar.

TOXICODEPENDENTE

Sabes uma coisa? Eu não espero nada da vida. Se tivesse os teus meios, curtia até não

poder mais. Eu tenho de roubar para conseguir ter a dose.

SENHORA

Estava aqui a ouvir-vos, absorta na minha desgraça. O falhanço do meu casamento,

nada espero. A vida parou. Tinha canalizado para a família todas as energias... Agora,

nada me contenta; nada me motiva. Voltar atrás é impossível. Nada, para a frente me

interessa. Ainda por cima, sem emprego como é que vou refazer a minha vida?

TOXICODEPENDENTE

O gajo deixou-te, ficas livre. Ganda cena! Arranja outro.

SENHORA

Ninguém mais me vai dar um desgosto assim. A minha vida não tem remédio.

(Tempo). Mas já estamos aqui há quase uma hora e aquela porta não se abre.

EMPRESÁRIO

Permita-me uma palavra... tem muita liberdade apesar do profundo corte afectivo.

Basta curar as feridas e encontrar um projecto de vida fiel à sua consciência. Não é

como eu, que aguardo o dia da minha morte, perante um mundo fantástico... a

informática... a robótica... terei de deixar tudo isso, brevemente.

TOXICODEPENDENTE

Tás a ver? Ser rico não compra o direito a viver para sempre. Goza enquanto podes.

SENHORA

Tu é que não vês que desgraças a tua vida... para além do desgosto que deste aos teus

pais... reduzes tudo a uma satisfação tão passageira e sempre ameaçada. Passas o

tempo a inventar fugas, sem construir nada positivo para os outros.

TOXICODEPENDENTE

Iá. A si adiantou-lhe muito viver para os outros!... Levou uma tampa que a encostou às

boxes! Eu espero sempre sensações fortes. A vida é minha, faço o que quero. É

verdade que abandonei a família, o local onde morava, a igreja. Fiquei só, cada vez

mais só e os sonhos, que vivo, são fuga e isolamento sem regresso.

Entra, de repente, outra personagem, vinda do exterior.

ESPERANÇA ARANHA

Meus caros. Sou eu o suposto Aranha que esperais. Caístes na teia. O consultório não

existe, mas apenas esta sala onde vos escutais. Marco três pessoas à mesma hora e

deixo-as a conversar, viveis situações complexas, mas não perdestes a qualidade

humana de esperar. Mostra-se como a esperança é uma das paixões primárias do

animal que somos. Somos chamados a ir mais além e transformarmos essa paixão em

virtude.

EMPRESÁRIO

Está a brincar connosco? Fez-nos perder tempo... e o meu é tão breve!...

TOXICODEPENDENTE

Acho piada à tua filisifia!

SENHORA

Só me enganam. Vou-me embora!

ESPERANÇA ARANHA

Calma! Sente-se por favor. Não vos quero receitar calmantes. O meu Mestre ensina a

esperar contra a esperança, isto é, esperar quando não há motivos.

SENHORA

Eu queria era que me fizesse esquecer, para ter alguma consolação.

ESPERANÇA ARANHA

No meio das contradições, a espereança será fonte de consolação e motivo para

enfrentar as dificuldades. É encorajante resistir diante de situações que parecem

inalteráveis. Não temos de nos dobrar, antes continuar a protestar com a cabeça

erguida.

TOXICODEPENDENTE

Qual protestar! Eu tou aqui porque a minha ex-namorada insistiu.

ESPERANÇA ARANHA

És um desesperado, porque incapaz de íntima liberdade. És tentado a ceder à

violência. Quem perdeu a esperança capitula e difunde a morte. O desespero e a

violência são duas faces da mesma moeda.

EMPRESÁRIO

A revolta que sinto, que mastigo, tem-me tornado agressivo porque não vejo o futuro

que crei e sonhei. Protesto por ser tão curto o prazo...

ESPERANÇA ARANHA

É exactamente pela força da esperança que não nos resignamos, não cedemos a

pactos impossíveis, não nos reconciliamos com a injustiça, com a hostilidade da vida,

com a doença incurável.

Seja muito ou pouco, importa viver com amor e entrega. Pode ser esse o modo justo

de protestar. A esperança ganha crédito na luta da vida.

SENHORA

Onde irei buscar confiança para avançar, quando tudo é tão pesado, tão escuro?

ESPERANÇA ARANHA

Para sermos em plenitude, temos que esperar algo. O essencial é a disponibilidade

para nos pormos a caminho, mesmo com sofrimento. Ao fazer parte da Igreja,

pertenço a um povo que segue um pioneiro, Jesus, que já alcançou a meta e arrasta

todos para ela.

EMPRESÁRIO

Arrasta para o abismo da morte!

ESPERANÇA ARANHA

Não. Passa por aí. O que, antes de mais e sobretudo, espera cada ser humano é

afirmar-se, salvar-se e viver no amor diante da morte, contra a morte e sobre a morte.

Contudo, não é capaz de o conseguir pelas suas forças, a partir da sua solidão, no seu

limite pecador.

TOXICODEPENDENTE

Pois é! Cantas bem. E então?

ESPERANÇA ARANHA

Tu, já reconctruíste as razões que te levaram à droga? Já tentaste reconciliar-te com a

vida e as pessoas? Tu, a esperança supera os dinamismos da morte, da degradação

física. Há esperança fundamental se tivermos consciência da existência de Deus, se nos

entregarmos, se descobrirmos os sinais da sua benevolência, da sua misericórdia.

SENHORA

Deus não ajuda nada. Eu bem rezei, mas nem marido, nem emprego! Procurei trabalho

por todo lado...

ESPERANÇA ARANHA

Sem Deus perdes o sentido, tudo é duro e até absurdo. Importa captá-Lo com bondade

e fidelidade infinita. Então é possível uma esperança radical e absoluta. A tua

convicção na existência de Deus é fundamento sólido de esperança. A tua confiança na

misericórdia de Deus é garantia permanente de esperança.

TOXICODEPENDENTE

Sei lá se Deus existe!

ESPERANÇA ARANHA

O essencial não é saber se Deus existe.

TOXICODEPENDENTE

Como?

ESPERANÇA ARANHA

Sim. O essencial é saber quem é e como é.

TOXICODEPENDENTE

Então, como sabemos?

ESPERANÇA ARANHA

Por Jesus ficamos a saber que Deus é compassivo e próximo e não apenas: infinitude,

poder, justiça, distância. Por Jesus Cristo dabemos que Deus supera a própria finitude

débil, acolhe os nossos desejos e realiza as expectativas que depositou dentro de nós.

SENHORA

Pensava que nos dava sossego e tranquilidade, mas atira-nos para cima com muita

responsabilidade.

ESPERANÇA ARANHA

É a esperança que nos mantém inquitetos. Essa virtude nos dará força para caminhar,

sempre abertos ao mundo, nunca saciados, até que vivamos de vida eterna do Reino

de Deus.

TOXICODEPENDENTE

Isso dá pica, meu...

ESPERANÇA ARANHA

Importa é tentar! Insistir até chegar ao descanso de Deus, entrar no santuário onde

Jesus nos precede e donde nos ajuda, como intercessor.

EMPRESÁRIO

Como programar este tempo de vida que me resta?

ESPERANÇA ARANHA

O que não depende do nosso esforço é aguardado num Futuro Absoluto que não

podemos programar. Certamente que a previsão e a segurança são obrigatórias para

os pequenos futuros. Mas aquele futuro, que profundamente preocupao ser humano,

esse não depende da programação. Sem esse futuro o presente permanece ameaçado

e amesquinhado. Vive, com intensa verdade e inteiro amor, os dias todos que tens

diante de ti.

SENHORA

Esperámos aqui uma hora para nos vires devolver a responsabilidade de enfrentarmos

a vida sem depressão, com coragem.

TOXICODEPENDENTE e EMPRESÁRIO

Esperámos aqui uma hora para nos vires devolver a responsabilidade de enfrentarmos

a vida sem depressão, com coragem.

SENHORA

Sei que o mundo não é fácil.

TOXICODEPENDENTE e EMPRESÁRIO

Sei que o mundo não é fácil.

SENHORA

Tenho desejo de recomeçar, mas a realidade mete medo...

TOXICODEPENDENTE e EMPRESÁRIO

Tenho desejo de recomeçar, mas a realidade mete medo...

ESPERANÇA ARANHA

Lanço-vos uma questão: as vossas esperas reduzem-se a desejos piedosos? Viveis

apenas angústias nocturnas?

EMPRESÁRIO

Quem se nega ao sofrimento e às mortes e se considera a si próprio como absoluto no

poder, esse não conta coma força de Deus. Mesmo quando há um caminho pessoal de

vitória sobre as paixões, continuamos a temer a morte, continuamos a calcular e a

agarrar-nos a seguranças que queremos controlar.

ESPERANÇA ARANHA

Só quando deixamos que o amor de Deus exerça todas as suas possibilidades e nos

abrimos a todas as suas exigências, superamos o temor.

SENHORA

Quer dizer que realizar a esperança implica procura de estilos de vida alternativos.

Afinal a minha situação abriu-me horizontes. Há que pôr em marcha pequenos

germens, mas significativos, para uma economia humana, uma ternura solidária.

Teremos de procurar novas vias para a política, o comércio, a agricultura, a indústria, o

crédito, a defesa, as relações internacionais.

ESPERANÇA ARANHA

Realizar a esperança significa transformar em projecto a grande utopia do Reino de

justiça e de paz.

SENHORA

Afinal, a resolução particular do meu problema afectivo e profissional está muito

relacionada com questões mais fundas.

TOXICODEPENDENTE

As promessas que rebentam da esperança estão muito longe do que vivo. Não são

resultado de experiências feitas. Acho que vou curtir este tipo de vida. Esse tipo,

Deus...

ESPERANÇA ARANHA

Fez-nos grandes e abriu-nos larguíssimos horizontes de liberdade.

TOXICODEPENDENTE

Ganda maluco! Quantas vezes rejeitei a abertura e a altura, preferindo rastejar em

canais esconsos, sem ver nadinha.

ESPERANÇA ARANHA

Fico tão feliz ao ver-vos passar da esperança ansiosa à esperança criativa de futuro

novo! Vivemos na espera criativa de um advento, de uma vinda. Por isso, esperamos e

nos apressamos, esperamos e suportamos, oramos e vigiamos, somos pacientes e

curiosos. Isto é apaixonante. Acreditamos que um outro mundo é possível e isso torna-

nos capazes de futuro.

“GODOT ESPERANÇA!”

Castro Guedes

FIM DE TARDE. UMA ESTRADA. UMA MACIEIRA.

Um mendigo e uma mendiga. Ar geral de devastação. ESTRAGONNE, sentada no chão,

trata de descalçar-se com ambas as mãos. Detém-se esgotada; descansa, ofegando;

recomeça.

Entra VLADIMIR.

ESTRAGONNE (acabando de descalçar-se): Nada a fazer!

VLADIMIR: Começo a acreditar nisso. Nada a fazer… Durante muito tempo resisti.

Dizia-me: “Não pode ser, Vladimir, no fundo da estrada tem de haver alguma coisa”…

Mas olhava e não via nada. Desisti.

ESTRAGONNE: Achas?

VLADIMIR: O quê? Não haver nada?

ESTRAGON: Sim: nada… (PAUSA) Nada?Nada, mesmo nada?...Além… da estrada, Didi…

VLADIMIR (mudando de tema e começando ele a descalçar as botas):Eu pensei que

tinhas ido embora, para sempre. E não queria: gosto de te ver.

ESTRAGONNE: E eu também.

VLADIMIR: Então como vamos fazer para o comemorar?.

(SILÊNCIO, enquanto VLADIMIR consegue acabar de descalçar as botas).

VLADIMIR: Vá lá, Gogo… dá uma ideia…

ESTRAGONNE: Vamos dançar, Didi?

VLADIMIR: Com quem?

ESTRAGONNE: Os dois…

VLADIMIR: Para quê?

ESTRAGONNE: Para ver se aparece mais alguém, Didi..

VLADIMIR: Não aparece. Não há nada para lá da estrada.

ESTRAGONNE: Tu é que sabes, tu é que és o intelectual.

VLADIMIR: E tu trabalhadora braçal, não?

(SILÊNCIO, em arrufo. De repente olham-se e começam os dois a calçar as botas à

pressa, mas VLADIMIR é mais rápido e ESTRAGONNE só chega a calçar uma. A outra

bota fica à frente de cena. Olham-se, correm como crianças até junto da estrada, ao

fundo. Por debaixo da árvore).

ESTRAGONNE (Vai falando aos “arranques” porque VLADIMIR não lhe liga e desfolha

um livro): Pelo menos aqui há sombra. (PAUSA). A sombra protege-nos do sol.

(PAUSA). O sol faz-me mal. (PAUSA). Desde criança que o sol me faz mal. (PAUSA). Em

criança, antes de ir para a ceifa, a minha mãe untava-me de creme. (PAUSA). E a ti?

VLADIMIR: A mim o quê?

ESTRAGONNE: O sol… faz-te mal? (PAUSA). A tua mãe: untava-te de creme? (PAUSA)

Quando ias para o campo?

VLADIMIR: Eu nunca fui para o campo.

ESTRAGONNE: Então… quando ias para a praia, nas férias.

VLADIMIR: Eu nunca estive à beira-mar. Nem à beira-rio, nem nas serras. Passava os

dias na biblioteca.

ESTRAGONNE: E como vieste aqui parar, então? Porque vieste para aqui?

VLADIMIR: Porque os livros também nada dizem. Está tudo dito. Sem interesse. Não há

esperança. E para onde querias que viesse se já nem há cidade?

ESTRAGONNE: Talvez um dia, indo pela estrada…

VLADIMIR: A estrada não leva a lado nenhum. Prometeram-nos sempre estradas novas

e diferentes e todas desembocaram no mesmo sítio: o absurdo. A vida é um sem

sentido.

ESTRAGONNE: Não digas isso, é pecado…

VLADIMIR: Tu é que és uma pobre ignorante. Nunca chegaste a ver uma metópole:

Nova-Iorque? Berlim? Paris? Se calhar nem Lisboa!... Nunca abriste um livro…

ESTRAGONNE: Por acaso enganas-te. Tenho um comigo… Queres ver? (Tira um livro: é

a Bíblia).

VLADIMIR: Deixa ver. (Pega na Bíblia, lê): “João disse a todos: eu baptizo-vos com

água, mas vai chegar alguém mais forte do que eu, a quem não sou digno de desatar a

correia das sandálias. Ele há-de baptizar-vos no Espírito Santo e no fogo. Tem na mão a

pá de joeirar, para limpar a sua eira e recolher o trigo no seu celeiro; mas queimará a

palha num fogo inextinguível”. Acreditas?

ESTRAGONNE: Talvez… um dia…. Da estrada. (Pega no livro de Vladimir e mantém-no

sempre fechado).

VLADIMIR: Da estrada não vem nada já… (Folheia a Bíblia no sentido inverso e lê): “

Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, para que domine sobre os

peixes da água… “ (Fecha a Bíblia): E o mar secou, depois, Gogo… Secamo-lo nós, feitos

à imagem e semelhança de Deus. (Volta a ler): “Ele os criou homem e mulher.

Abençoando-os, Deus disse-lhes: Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra”. (Fecha o

livro. PAUSA): Valeu a pena?

ESTRAGONNE: Há que esperar… Saber esperar…

VLADIMIR: À espera de Godot? O que nunca mais vem, nem virá?

ESTRAGONNE: Sei lá quem é Godot! (PAUSA).Há espera de esperança. Esperança na

espera.

VLADIMIR: Este teu livro é inútil, como os demais. (Devolve-lho).

ESTRAGONNE: Mas tu continuas a ler. Que estavas a ler?

VLADIMIR(cínico): “À Espera de Godot”: um hino à esperança! (Sério): Que nos ensina

que não há nada a esperar. Só desilusão. Só o absurdo. (PAUSA, estupefacção de

ESTRAGONNE). Uma peça de teatro.

ESTRAGONNE (referindo-se a eles mesmos): Como esta?

VLADIMIR: Sei lá!

ESTRAGONNE: E tu gostas de ler essas coisas? Eu gostava. (Folheia-o): Mas se há uma

árvore e uma estrada hão-de servir para alguma coisa.

VLADIMIR: É só cenário.

ESTRAGONNE: Não acredito nisso. Acredito na árvore e na estrada.

VLADIMIR: Acredita no que quiseres. É noite. Eu vou dormir.

ESTRAGONNE: Então dorme. Enquanto dormes pode ser que sonhes melhores dias…

VLADIMIR: És uma ingénua…

ESTRAGONNE: Falou o senhor intelectual: o Senhor Vladimir…

VLADIMIR: És uma antiquada.

ESTRAGONNE: E tu, moderno?...

VLADIMIR: Pósmoderno, moderno já não se usa… Dorme também Estragonne.

Amanhã temos outro dia igual. Vazio. Sem sentido.

ESTRAGONNE: Ao dormir pode o tempo andar para trás. E a esperança recomeçar… A

estrada… A árvore… A árvore e a estrada. (Deita-se com a bota fazendo de travesseiro).

VLADIMIR: O tempo anda para a frente. Sempre… Até ao abismo final. O tempo é uma

seta sem regresso.

ESTRAGONNE: Não sei… Isso só Deus sabe…

VLADIMIR: Ai sabe? Porquê? É adivinho? Lê nas cartas?.... Ou determina Ele o futuro…

Se o fez assim, fê-lo bonito, não haja dúvidas… (Deita-se com os livros fazendo de

travesseiro).

É NOITE. MÚSICA. ADORMECEM.

ARCANJO GABRIEL: Deus não faz o futuro. Deus deixou-nos nas mãos o futuro, como

preço da liberdade. Ao homem foi dado o livre arbítrio. Pode escolher. Deus sabe, só

sabe porque está fora do tempo e tudo vê. Mas não escolhe, escolhe o homem… E em

homem se fez, fazendo seu Filho, o Filho do Homem: Jesus…

Surge a VIRGEM MARIA.

VIRGEM MARIA: Que me dizes, estranho caminheiro?

ARCANJO GABRIEL: O que Deus me mandou em Anunciação. Conceberás do Espírito

Santo. Serás a Mãe do Redentor. Para seguires pela estrada até encontrares a

Humanidade.

VIRGEM MARIA: Quem és tu?

ARCANJO GABRIEL: Gabriel, o Arcanjo da Anunciação. Gerarás o Filho de Deus no teu

ventre, imaculada.

VIRGEM MARIA: E depois, que será do meu filho?

ARCANJO GABRIEL: Nada mais te posso dizer. O tempo voltou atrás. É tempo de

Advento…

ESCURO. UM TEMPO. MÚSICA ALEGRE.NASCER DO SOL.

ESTRAGONNE: Acorda, Didi…

VLADIMIR: Que foi, Gogo?

ESTRAGONNE: Não sei, julguei que tinhas ido… mas estás aqui, como sempre. Gosto de

te ver!

VLADIMIR: Durante muito tempo resisti. Mas algo mudou, o tempo. Não estou no

mesmo em que adormeci. Sinto-me diferente, sim, como se algo se anunciasse.

ESTRAGONNE: Vem da estrada?

VLADIMIR: Talvez…

ESTRAGONNE: Vamos?

VLADIMIR: Calça a bota…

ESTRAGONNE: Não. Vou tirar antes esta também. Quero ir descalça. (Tira a bota que

tinha no pé. Corre até junto da estrada. Espreita): Caminha alguém…

VLASDIMIR: Espera. Também vou descalço… (Tira as botas, ficam juntas aos livros).

ESTRAGONNE: É uma mulher… Com luz.

VLADIMIR (Enquanto se aproxima e se recolhe à sombra da árvore): Com luz? Traz uma

candeia? Mas o sol já nasceu…

ESTRAGONNE: Não… Não é uma candeia. A luz vem com ela, ela traz a luz.

VIRGEM MARIA (surgindo, grávida): No meu ventre a redenção. Trago-O comigo. Para

breve virá por vós. Agora e Sempre.

VLADIMIR: Quem és tu?

VIRGEM MARIA: A que há-de enxugar lágrimas e sangue num lençol; a que como mãe

na terra há-de mal dizer o dia que virá anos depois do que está para breve. Mas sou eu

também a que depois se reconfortará e reconfortará a Humanidade por ter sido a

portadora da Boa Nova dentro de si, nas entranhas. Para que lá do alto, o Altísssimo

vos diga: “Este é o meu Filho. Escutai-o”. E pela Palavra que Ele traz tudo o mais de dor

em mim será menos do que a semente da alegria que trago agora no ventre.

ESTRAGONNE: Vês? Eu dizia: um dia virá alguém da estrada. E trouxe luz, é a luz…

(Junta-se, temeroso, a Vladimir, sob a árvore).

VIRGEM MARIA: Como Novo Adão, Jesus, o Cristo, muito em breve… aqui convosco, de

novo sob a Árvore da Vida para redimir os pecados nela colhidos. Lembrai-o pelos

séculos. E espalhai a Palavra. É tempo de Advento.

VLADIMIR: Godot? Sempre veio?

VIRGEM MARIA: Mais. Muito mais: a esperança, não a desesperança; a Fé, não a

descrença; a Vida, não a morte; a Salvação, não a catástrofe. (Arranca uma maçã da

árvore): Tomai-a. Esta mandou-a o Pai. Para vos redimir. Podeis trincá-la. Traz o saber,

sim, mas o saber do Bem, o sabor do Homem em Cristo. Simbolicamente, hoje e aqui,

Eucarística: para unir, não para dividir; para partilhar, não para invejar; para receber a

Graça, não para dar o sofrimento; para nos amarmos todos, não para se odiarem uns a

outros. O sinal do alimento de Deus. (Sai).

VLADIMIR e ESTRAGONNE olham-se. Começam lentamente a trincar a maçã.

VLADIMIR: Tem outro gosto.

ESTRAGONNE: O gosto do Bem.

VLADIMIR: Sim. Vai buscar o teu livro.

ESTRAGONNE executa. Sentam-se com a Bíblia. Lê ESTRAGONNE , depois de

cuidadosamente procurar a parte que quer, enquanto Vladimir, detrás para a frente,

até o fechar, folheia o outro livro e pousa-o no chão, junto às botas. Volta para junto

de Estragonne.

ESTRAGONNE (lendo): “E respondeu-lhe: Em verdade te digo: hoje estarás comigo no

Paraíso”.

VLADIMIR: Sim. Calça as botas, Gogo. Vamos ter muito de caminhar… (PAUSA,

pensativo): Começo a acreditar nisso.

ESTRAGONNE: Sim, Didi. Muito a fazer.

ESCURO. SINOS(?).

Viana, Maio de 2010

Para onde vai a luz quando se apaga?

José Tolentino Mendonça

A vida é argila fresca, um tempo absorvido por dentro e para cima. Todos vivemos, por

vezes, coisas inconcebíveis, como milagres. Cercados pelo mundo, os nossos vultos dizem

“eu sei”, e a alegria orvalha a solidão donde ressuscitamos. Os nossos dedos são, por vezes,

cândidos, com brilhos impressos dos dois lados. Um esplendor cheio de razão.

1. Devíamos falar das pessoas como os camponeses falam das árvores que amam.

2. Apontam-nas ao longe, a um companheiro ou a um filho, sem nada dizer, mas é como se a sua realidade

se aproximasse, vibrante.

1. Devíamos falar das pessoas com outras palavras.

2. Despontar, florescer, maturar, reflorir...

1. Ou então permanecer naquele silêncio agradecido que os camponeses colocam...

2. ...dentro do silêncio dos seus campos.

1. Devíamos falar das pessoas como um guia experimentado fala de caminhos.

2. Um caminho verde, inesquecível...

1. (continuando)...uma linha fiel que segue o recorte de certo rio.

2. Uma vereda corajosa cravada nas paredes de uma montanha.

1. (interrompendo) E coisas tão belas se avistam nesses cimos.

2. Uma estrada que corre léguas e léguas para servir outras estradas.

1. Porque a vida é um nome que não acaba.

1. Devíamos falar da vida como os mineiros falam do fundo da terra.

2. Observam-na com a pequena luz tremeluzente que transportam.

1. Um fio ténue e firme de luz e eles descem...

2. Deslumbrados, divisam galerias interiores, morada da imensidão.

1. Sondam até ao limite a pedra escura e sombria...

1. Sabem que o negrume serve de resguardo a um tesouro...

2. ...e aventuram-se.

Igual a um coração a nossa vida bate. A vida, a nossa vida tem poros, respira. Recorda.

Avança. Esquece. Precisa. Reúne. Descreve. Inscreve. Vigia. Adormece. Pergunta. Reparte.

Alumia. Sobressalta. Matura. Tem sede. Tem riso. Inaugura. Encontra. Não encontra. A

vida continua.

É pelo ar que nos deslocamos. Temos um modo antigo de escorrer, como uma onda que

mal se distingue. Esse movimento faz brilhar o escuro. As nossas vozes assinalam, aqui e

ali, pontos luminosos na paisagem. Trazemos guizos, búzios, o ouro acordado de

instrumentos culminantes. Trazemos o verde novo das paisagens dispostas, o verde-claro

veemente, com igual intensidade. E nomes que se modificam à medida que os cantamos.

2. Havia a casa, as alegrias da mãe à entrada, o lugar onde o pai o levou a ver primeiro os campos.

1. O chamamento é a voz do próprio caminho.

2.Talvez sua mãe lhe quisesse explicar essa verdade com o seu sorriso.

1.Talvez fosse isso que o pai lhe mostrava quando o tomou pela mão para ver os campos.

2. Porque tudo florescem num misterioso silêncio.

1.E, seminal, desponta no invisível da terra.

2.Até que em uníssono deflagra.

2.Fala-me do chamamento.

1.O chamamento é a vizinhança da própria intensidade.

2.De repente... era noite... o mundo seria uma criança diante desta voz:

«Toma o livro e come».

1. (Silêncio)

2.Fala-me do chamamento.

1.O chamamento é a passagem significativa de Deus.

Igual a um coração a nossa vida bate. É acolhida. Amada. Atendida. É colocada aos

ombros. Conduzida. Com a lira de dez cordas e com a cítara é festejada. É revestida de

beleza. Desde a aurora é procurada. É reunida.

Nascemos e morremos. Atiramos e recolhemos as nossas próprias pedras. Separamo-nos e

abraçamo-nos. Plantamos e colhemos. Gememos e dançamos. Amamos na guerra.

Amamos na paz.

Segundo um princípio ardente, os nossos vultos recortam-se frente ao escuro. As estradas

estão penduradas no sono, com seus corredores negros imensamente embrenhados e sua

púrpura nocturna. Mas nos sonhos das crianças todas as casas se erguem lentamente do

chão, são fulgurantes.

Um anjo mede essa evidência sem ocultar a ninguém seu rosto repentino. Um anjo vai

fundir-se com a casa inteira através do riso. As crianças são capazes desta razão no interior

do sonho. Por isso atravessamos a noite com uma vontade irreprimível de cantar.

Talvez o canto seja a verdadeira respiração, aquilo que do escuro escorre arrastando o

deslumbre, removendo a geometria estanque das estações receosas. Os braços enlaçam-se.

Há um instante em que as nossas silhuetas se fundem e se destacam reluzentes, como se

conservassem a própria infância. Caminhar é como descansar sobre a sua vida perpétua.

Revendo contraditórias possibilidades, apreendemos a ciência da promessa Um admirável

segredo se derrama à medida que caminhamos. Quando pela primeira vez se ouvir, será

como se o próprio silêncio ressoasse.

PENAS PESADAS DA NEVE

Diálogos imaginários de Olivier Messiaen, prisioneiro e amante de pássaros

JOSÉ MANUEL TEIXEIRA DA SILVA

Duas personagens em palco. Num primeiro momento, é como se ignorassem a presença uma da outra. O Prisioneiro veste um uniforme pardo de internado num campo de prisioneiros de guerra; o Amante de Pássaros traz uma camisa larga com motivos coloridos e tem um caderninho de anotações. O aspecto de ambos revelará alguma semelhança com o de Messiaen, respectivamente nos anos quarenta e, por exemplo, sessenta, com os seus típicos óculos redondos. O palco encontra-se às escuras. Ilumina-se a personagem que está a falar, enquanto a outra fica na obscuridade, salvo indicação em contrário. O cenário é o de um espaço totalmente vazio e será ocupado, para lá da presença dos dois actores, apenas por algumas projecções (manchas de cor, silhuetas), silêncio, sons ou blocos de música de Olivier Messiaen (sequências do Quarteto para o Fim dos Tempos).

I.

(Escuridão total no palco. A luz começa aos poucos a incidir apenas na personagem Prisioneiro, à medida que se vai ouvindo o início do 3º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)

PRISIONEIRO

Penas pesadas da neve. Tanta neve, a neve não pára. (Pausa grande)

(Inicia-se a projecção de manchas em movimento, sobre um fundo acinzentado e fosco, que sugerem queda de neve; sibilar de ventania)

Há quantos dias se abate sobre este campo e nos vai cercando. Não sei se esperamos alguma coisa, os dedos do tempo estão a congelar (Esfrega as mãos com energia) . Flocos insignificantes de neve, uma poalha que se desfaz no ar, mas já nos carrega os ombros, impede que as portas se abram, nem dá para espreitarmos pelas janelas. A neve cega-nos e faz-nos olhar para dentro, é um poço. Ficam aqui perto as valas onde eles vão enterrar, daqui a meses, e aos montes, os prisioneiros soviéticos. Não estava previsto, mas acontecerá morrerem demasiados à fome e de doença. Não é um campo

de extermínio, os nazis apenas depositam aqui os prisioneiros de guerra. Cá estamos, Stalag VIII A, mas o certo é que teremos valas comuns. Esta neve bate dura e sela os buracos onde tudo se mistura numa pasta informe. Vermes, e o resto, e uma neve tão branca. Cá estamos, e é como se esse buraco, a toda a hora, nos esperasse também, e a neve tão branca, tanta neve.

Não sabemos esperar, porque nos roubaram o tempo. O dia começa nos barracões de madrugada, às cinco e trinta temos de nos despachar para não perdermos a água quente. Um quarto para as sete, a parada, alinham-nos, contam-nos. Entre as colunas dos homens, fixamos os olhos nas árvores ao longe, balançam num outro tempo, como se fosse outra a sua vida. Apenas os pássaros esvoaçam também por aqui, deixam-nos cânticos que procuramos decorar, que não nos largam depois, horas e horas nos ouvidos, deixam uma alegria que não sabemos como aceitar.

AMANTE DE PÁSSAROS

(Enquanto fala- e deverá ser uma grande surpresa para o espectador-, ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)

Pássaros, disseste pássaros? Interessa-me, levo os dias atrás deles…

PRISIONEIRO

(continua a falar, como se nada tivesse acontecido)

Os pássaros entram e saem, as suas cores parecem mais vivas na neve, a neve de novo neve fresca nos olhos. Não são para os pássaros as duas fileiras de arame farpado, as dez torres de vigia, as barracas da guarda, os abrigos dos soldados, dispostos a distâncias regulares. Há dias em que o odor das florestas em volta nos embriaga, ou ilude-nos a suavidade do ar fácil de respirar, mas há aqui um cheiro de coisa pública, coisa gasta, coisa que se morre a si mesma, segundo a segundo. Não tens um momento teu ou teu com alguém que queiras preso a ti, como se fosses tu próprio. Despejar todos os dias as latrinas, os dejectos humanos, isto é muito suave dito assim, o mijo, a merda, a merda-merda, compreendes? E a neve estendendo-se à volta como lençóis brancos onde pudesses, enfim, repousar a cabeça. Ou o cheiro nauseabundo disto no calor das tardes de verão, os prisioneiros arrancam as janelas dos barracões, mas sufoca-se na mesma. A espera até chegar ao contacto aflito da água estrangula-−se a si própria, o tempo espeta pequenas farpas num corpo que desmaia. Não sabes de ti entre os uniformes iguais, as horas roubadas, a vida por entre as quarenta barracas apinhadas, de 50 por 10 metros, e uma rua central que atravessa o campo

como uma cicatriz imperfeita. Quando sair daqui, vou estranhar o movimento solto das pessoas, poderem escolher esta rua ou aquela, marcarem encontros em Paris, o modo como lambem grandes gelados, as suas camisas de cores vivas e alegres.

AMANTE DE PÁSSAROS

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, de modo a tornar bem visível a sua camisa colorida, para logo ficar de novo às escuras)

Disseste camisas de cores vivas e alegres? Gosto disso…

PRISIONEIRO

(Continua a falar, como se nada tivesse acontecido)

Fotografias da família nas prateleiras improvisadas. Tenho saudades da minha mulher e do meu filho. Fotografias como se estivessem envolvidas numa aura, como se ali houvesse um ar à parte…

AMANTE DE PÁSSAROS

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)

Referes-te a Claire e a Pascal…

PRISIONEIRO

(Sem se voltar para a outra personagem)

Sim, claro, como sabes? Os retratos a sépia entre os fumos das cozinhas colectivas e o cheiro do gás das desinfestações. (Com ternura e nostalgia) Pascal, como se nele eu esperasse por mim próprio, eu próprio mais eu e mais feliz. Claire, Claire, a mais clara. Lembro-me dos nossos dias na casa dos Alpes. Aí escrevi tanta música, os poemas para ela, para Mi, como lhe chamava, para o seu violino cálido e incendiado.

AMANTE DE PÁSSAROS

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)

Também és músico? Grande coincidência…

PRISIONEIRO

(Continua a falar, como se nada tivesse acontecido)

Claire vai enlouquecer depois de acabar esta guerra. Parece injusto, absurdo, não sei se o será. Como vou distinguir a felicidade passada, a saudade que me rói agora e o modo como viveremos quando ela for para o hospital psiquiátrico, daqui a uns anos? Não dizemos nunca tudo, dissemos sempre tanta coisa em silêncio ou pela música, tudo e nada compreendendo, às vezes a vida vive mais quando as palavras se atropelam, ficamos indecisos, sábios e a pensar. Assim louca, olha para o mundo, perdida, como se me devotasse os seus últimos dias nessa nova inocência, olhando para tudo pela primeira vez, longínqua, através de mim. Haverá uma mensagem secreta por trás das palavras que ninguém mais compreende, e que eu vou soletrar, muito, muito devagar, desdobrando ao contrário o caminho que a trouxe desde toda a nossa vida passada até aí, toda a nossa vida à espera exactamente de todos os seus dias, e haverá uma presença maior, uma luz central, qualquer coisa como quando olhamos uma cidade do alto e nada mais é precipitado, tudo é agora exactidão e trânsito cuidadoso. (Pausa grande)

II.

(Escuridão total no palco. Ouve-se a sequência central do 3º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)

AMANTE DE PÁSSAROS

(A luz incide sobre a personagem, a outra mantém-se no escuro)

Penas pesadas da neve. O mundo quase não resiste à inocência de tantos pássaros, escutem a crosta dura do mundo, parece estalar como um ovo.

(Sons de múltiplos pássaros. Inicia-se a projecção de manchas coloridas, de grande riqueza de cambiantes, sugerindo desencontrados voos de aves)

Tchiu (sinal de quem manda fazer silêncio), eles bicam o nó da sombra, trespassam o dia, volteiam de transparência em transparência. Vemos lugares que já lá estavam e não o sabíamos, porque eles sobrevoam e sobrevoam os intervalos mais discretos da terra, de toda a terra, da terra inteira.

Fico aqui à espera dia e noite (assume a postura de quem está, ajoelhado, a sondar as árvores e a ouvir os pássaros), sob o peso do sol ou com os ossos a doer da humidade. A minha espera confunde-se com a minha vida e com a voz dos pássaros. Anoto com minúcia e dificuldade os seus cantos (aponta para o caderno). São os maiores músicos do planeta, os pequenos servidores de uma alegria que não morre. Modéstia à parte, sou capaz de reconhecer o canto de mais de 600 espécies diferentes, em toda a França. E também no Japão, e no Irão, e na Argentina, e na Austrália, e…

PRISIONEIRO

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)

Curiosa coincidência, comecei a fazer o mesmo aos 15 anos, mas não sabia que se podia ir tão longe atrás de pássaros sempre diferentes.

AMANTE DE PÁSSAROS

(Continua a falar, como se nada tivesse acontecido)

Ando nisto há anos e não sei se o mundo é todo visível, e é uma questão de paciência, ou invisível totalmente, e serão os olhos recomeçados. Ou se recomeçamos os olhos, porque vemos exactamente tudo, mas tudo, com paciência. Fico à espera para o descobrir, vivo para o descobrir, a minha vida é a espera dessa descoberta. Como músico, os pássaros ensinam-me todos os dias que há coisas de atenta surdez.

Limito-me a fazer um humilde trabalho de transposição e depois as minhas músicas a partir daí. Já percebi que sabes como é. (Desta vez olha para o escuro, onde estará a outra personagem, oculta) O coração dos pássaros tem batimentos muito rápidos e os tempos do seu canto são demasiado vivos. Para percebermos estes factos radiantes, temos de os abrandar um pouco e ao registo sobreagudo trazê-lo para algumas oitavas abaixo- e seremos em tudo isto fielmente infiéis. E o timbre cheio de harmónicos, a voz inconfundível dos pássaros? Chega a ser preciso inventar um acorde nosso para uma nota deles, e os pássaros cantam facilmente, mas as minhas músicas tornam-se difíceis de tocar. (Pausa) E um dia conheci-a. Eu tinha acabado de chegar como professor ao Conservatório de Paris, vinha exactamente de uma guerra, e ela, aluna

atenta, reparava nos meus dedos sobre o piano. Estavam visivelmente marcados pela vida do campo de prisioneiros.

PRISIONEIRO

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)

Campo de prisioneiros, ouvi bem? Referes-te a Yvonne?

AMANTE DE PÁSSAROS

(Continua a falar, como se nada tivesse acontecido)

Ao longo dos dias que vamos viver juntos, eu e Yvonne, ela será capaz de tocar tudo o que lhe pedir, por difícil que seja, como se já o esperasse, já o adivinhasse ou pudesse dar corpo ao que eu mal formulara. Será isso o que chamam amor, uma espécie de espera iluminada, é assim com Yvonne, é ainda mais assim com uma presença que está para além de Yvonne, que dá sentido ao meu próprio amor por Yvonne. Contavam que ela tinha tocado vinte e dois dos concertos de Mozart numa só semana e apenas ficava a facilidade e a felicidade da música.

(Silêncio. Suspira, faz um gesto como se abarcasse o movimento dos pássaros em volta)

Não sei, é como se não chegasse só uma vida para contar a plumagem, as películas esvoaçantes do breu real ou os saltos coloridos de espessuras entre galhos.

III.

(Escuridão total no palco. Ouve-se o início do 1º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)

(A luz ilumina agora as duas personagens, sentadas no solo, lado a lado. Fundo luminoso neutro)

PRISIONEIRO

E, contudo, a fronteira entre o campo de prisioneiros e a floresta encantada, era difícil defini-la. Claro, as valas, a terra de ninguém, as marchas de ritmo martelado, mas muitas vezes parecia que algo maior nos tocava o ombro, se perdíamos o olhar nas montanhas ao longe, nas copas murmurantes das árvores. Tinham outro tempo, respiravam de outro modo, como se nelas nada acontecesse se não um sopro que ainda mal começara, e em tudo houvesse uma espera que estava para lá de toda a paciência. Era então que se multiplicavam os nossos planos de fuga, olhávamos mais atentos para quem estava, como se fosse por acaso, ao nosso lado, com uma fatiota quase igual, e combinávamos pequenas artimanhas para viver melhor no campo de prisioneiros.

AMANTE DE PÁSSAROS

Sim, a música marcial, ao longe, chega também a estes trilhos da floresta e confunde-−se com o canto dos pássaros, mas depois vai embora, enquanto os homens ressonam. E aqui não sabemos exactamente o que é o tempo ou o que é o espaço. Pode soar no vento, perfeitamente, uma estrofe com os velhos ritmos gregos ou uma primitiva flauta hindu, podemos inventar outros tempos, alargá-los, comprimi-los, pode ser um súbito pássaro ou uma estrela cadente. Talvez alguém, fora de todo o tempo, o tenha inventado apenas como uma alínea do mundo ou um brinquedo predilecto. E como dizer, ou escrever com precisão nas linhas de uma pauta, o que vemos e ouvimos em volta: um violeta-vermelho, um azul-laranja, ouro e verde, uma respiração de um cinzento de aço?

(Finalmente, haverá intencionalidades, entoações e gestualidades que sugerem uma situação de diálogo)

PRISIONEIRO

Podemos conceber, por exemplo, um ritmo que se construa infinitamente, perfeitamente simétrico, que possa ser lido da frente para trás…

AMANTE DE PÁSSAROS

… e de trás para a frente. Um ritmo divisível em duas vidas, cada uma delas a inversão da outra, com um tema central comum.

IV.

(Escuridão total no palco. Ouve-se o início do 6º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)

(Projecção idêntica à do início da peça: sugestão de neve e vento. As duas personagens, lado a lado, continuam iluminadas)

AMANTE DE PÁSSAROS

Penas pesadas da neve. (Pausa) Sento-me no meu banquinho de organista da igreja da Trindade, em Paris, estou lá desde 1931, lá ficarei até morrer. Às vezes incendeio o mundo com a minha música, outras vezes desacelero-o um pouco, como quando, de repente, nunca te aconteceu?, o trânsito parece parar por momentos na cidade movimentada, num súbito acaso, e surpreende-nos então o mais improvável momento. No meu banquinho, dia após dia, recriando nos sopros dos tubos os sopros do mundo, ventania maior ou sussurro mínimo; e é como se do banquinho fossem nascendo tentáculos lenhosos, que penetram as paredes potentes da igreja, passam depois aos esgotos de Paris, são agora bem visíveis, incham em Stalag VIII A. (Pausa. Palavras ditas de forma absorta) Tanta neve, a neve não pára. Há quantos dias se abate sobre este campo e nos vai cercando. Não sei se esperamos alguma coisa, os dedos do tempo estão a congelar.

(Projecção idêntica à da segunda sequência da peça: manchas coloridas, de grande riqueza de cambiantes, sugerindo múltiplos voos de aves. As duas personagens, lado a lado, continuam iluminadas)

PRISIONEIRO

Penas pesadas da neve. (Pausa) No espaço gelado da barraca 27, na noite glacial de 15 de Janeiro de 1941, estreámos em Stalag VIII A o Quarteto que escrevi para os precários instrumentos que lá havia: violino, violoncelo, clarinete e piano. Incompletos e até um pouco desafinados. Expliquei que era o Quarteto para o Fim dos Tempos e que me inspirara numa passagem do Apocalipse, e todos percebiam porquê. Nessa passagem um anjo anuncia que o tempo acabou, e todos percebiam porquê. Ouviram, num silêncio que nunca mais encontrei, os ritmos furiosos, as frases impossivelmente distendidas, olhavam às vezes para o comandante do campo e os oficiais na primeira fila. Os pássaros ajudavam a nossa libertação, cantam a abrir o primeiro andamento, entre as poeiras harmoniosas de um céu que sabemos estar por lá, sobem da voragem de um abismo um pouco mais tarde, voam para a luz que os criou. Sei que é assim, a minha música sabe que é assim, quis explicá-lo ao vivo naquele barracão de um campo da morte. (Pausa. Palavras ditas de forma absorta) O mundo quase não resiste à inocência de tantos pássaros, escutem a crosta dura do mundo, parece estalar como um ovo.

(Escuridão total. Depois, uma luz intensa encandeará os espectadores, deixando ver apenas as silhuetas bem recortadas das personagens que se aproximam uma da outra, costas com costas, como se fossem siamesas)

AMANTE DE PÁSSAROS

Sabes, estava à tua espera há muito tempo, ainda bem que chegaste, sabia que devias andar por aí.

PRISIONEIRO

Sim, sim, tens toda a razão, não diria melhor, estamos desde sempre à espera um do outro.

(A luz desvanece-se muito lentamente, ao mesmo tempo que se ouve o início do 5º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)