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A ESPERANÇA QUE ESTÁ EM NÓS · e definitiva. De forma semelhante, este dinamismo se manifesta também no campo religioso, pois o crente percebe que foi chamado a participar da

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A ESPERANÇA QUE ESTÁ EM NÓS

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A foto da capa é do próprio autor. É a visão do entardecer na janela de seu quarto, na casa pater-na/materna (Boa Vista – Poço das Antas/RS).

A fotografia revela o conteúdo do livro: A Esperança que está em nós .

Ela é imagem do nosso viver neste mundo, ain-da envolvido pela penumbra da esperança, do já e do ainda não, mas vislumbrando a LUZ plena no horizonte, tendo a torre da fé e do amor como indicativo do caminho para Deus, enquanto pere-grinamos no ‘vale de lágrimas’ deste mundo.

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FOTO CAPA: Dom Aloísio Alberto Dilli

DIAGRAMAÇÃO: Marcia Agnes Bartz

IMPRESSÃO: Lupa Graf, Santa Cruz do Sul, RS

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A antropologia filosófica revela que o dinamismo da esperança está presente no mais profundo de cada ser humano. Sua própria identidade se move dentro de um constante vir-a-ser, projetando-se para o futuro, pois ele nunca se sente pronto, com realização plena e definitiva. De forma semelhante, este dinamismo se manifesta também no campo religioso, pois o crente percebe que foi chamado a participar da vida divina e por isso seu coração humano estará inquieto até que descanse em Deus (cf. S. Agostinho), quando verá um novo céu e uma nova terra e o próprio Deus estará presente, fazendo novas todas as coisas (cf. Ap 21, 1, 3 e 5).

Há momentos da vida em que esse dinamismo da esperan-ça aflora com maior evidência, sobretudo em situações de crise, quando se deseja que o momento presente passe o mais rápido possível e um futuro melhor se descortine, como no caso das pan-demias e outras catástrofes que, de tempos em tempos, assolam a humanidade. Todos nós vivemos intensamente esse fenôme-no na atual página da história, diante do Coronavírus Covid-19, que diariamente ceifa milhares de vidas por todo planeta. Dentro desse quadro da pandemia, um dos temas de reflexão que mais aparece é o da esperança. Em primeiro lugar, a esperança que o vírus não visite a nós pessoalmente e aos que convivem conosco, cuidando-nos para isso, ou que a medicina cure logo todos os infectados, próximos ou distantes, sem sofrerem maiores conse-quências; e mais, esperamos que os responsáveis civis e da saúde tomem medidas públicas corretas e eficientes para seu combate, com a colaboração de todos; depois, alimentamos a esperança que sejam descobertos, o quanto antes, remédios de cura ou vaci-nas de prevenção; e finalmente aflora a esperança de voltar à vida normal, mesmo com novas características. E na perspectiva da fé, sempre temos a esperança de que Deus ajude a livrar-nos desse mal da pandemia e, mesmo que a morte atinja de alguma forma nossas famílias e comunidades, restará a esperança da vida eterna

APRESENTAÇÃO

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de quem partiu. Assim damo-nos conta que não é possível vi-ver sem esperança, por ela ser constitutiva de nossa vida humana e espiritual, e sobretudo precisamos dela em tempos de pandemia.

É dentro desse contexto de esperança, criado em torno da amea-ça do Coronavírus Covid-19, que reli a terceira via (carbono) da mi-nha monografi a, escrita há 44 anos, para obtenção de licenciatura no Instituto de Teologia e Ciências Religiosas, na PUC de Porto Alegre, com o título: “A ESPERANÇA QUE ESTÁ EM NÓS”. Mesmo sen-do um estudo realizado há mais de quatro décadas e com inspiração em autores e características mais próprias daquela época, percebi que a temática abordada é bem viva e válida para nossos dias, seja em sentido antropológico quanto espiritual, sobretudo neste tempo de pandemia, pois o ser humano está constantemente envolvido pela esperança. Assim sendo, nasceu mais esta edição.

Desejo boa leitura e que ela ajude a tornar mais viva e sólida a Esperança que está em nós, sobretudo neste tempo de pande-mia. Caso tivermos o dinamismo da esperança enfraquecido a presente página da nossa história de vida poderá registrar graves rasuras ou manchas indeléveis que não gostaríamos de lembrar no curso dos tempos, seja em sentido humano como espiritual.

Com muita esperança no coração, seu irmão-bispo

Dom Aloísio Alberto DilliBispo de Santa Cruz do Sul

SCS – 21/06/2020

Observações do autor: 1. Foi respeitada a linguagem normal da época em que o texto da monografi a foi escrito (no-

vembro de 1976). Exemplo: o termo homem seria trocado hoje por pessoa humana ou ser humano, etc.

2. Foram mantidos também os limites da máquina datilográfi ca, comum na época. Somente em certas palavras usamos hoje o recurso do modo itálico, para destaque.

3. O autor tinha 28 anos na época do escrito. Residia na Vila Franciscana, perto da PUC, como membro de Profi ssão Solene e exercia o Ministério de Diácono, próximo da Ordenação Pres-biteral (01/01/1977).

4. Agradecimento especial à Maria Denise Jochims e Márcia Agnez pela respectiva digitação e formatação do presente texto.

Dom Aloísio Alberto Dilli

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS RELIGIOSAS

A ESPERANÇA QUE ESTÁ EM NÓS

FREI ALOÍSIO ALBERTO DILLI OFM

Monografia para a Licenciatura em Teologia

Supervisão: Frei Irineu Wilges OFM

Porto Alegre, novembro de 1976

Impresso: Pandemia de 2020

Santa Cruz do Sul/RS

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃOPREFÁCIOINTRODUÇÃO1. ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DA ESPERANÇA2. FENÔMENOS DE ESPERANÇA HOJE2.1 A Busca do Novo2.2 A Ciência e a Técnica na Perspectiva da Esperança2.3 Os Jovens Esperam um Mundo Novo2.4 Os Oprimidos e a Libertação2.4.1 A Esperança Latino-Americana2.5 Alguns Pensadores e a Esperança3. A EPERANÇA NA SAGRADA ESCRITURA3.1 A Esperança no Antigo Testamento3.1.1 A “Promessa” no Antigo Testamento3.2 A Esperança no Novo Testamento3.2.1 A Morte e Ressurreição de Cristo4. O REINO DE DEUS4.1 A Igreja e o Reino de Deus4.2 O Fim-Começo4.2.1 Nossa Morte e Ressurreição4.2.2 O Futuro do Mundo4.2.3 “Maranatha”- Vem, Senhor JesusCONCLUSÃONOTAS BIBLIOGRÁFICASBIBLIOGRAFIA

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PREFÁCIO

Há muito tempo eu sonhava escrever algo sobre a situação de peregrino na esperança que o homem experimenta no dia a dia de sua vida. Sentindo intensamente na própria carne as amarras a esse mundo e a ânsia ao Infinito, inspirei-me mais ainda a escrever sobre a esperança, a qual é a única que pode dar uma resposta a essa sede misteriosa. Mais que uma exigência para a licenciatura do Curso de Teologia, ou a busca de um diploma perecível, a motivação desse estudo é des-velar um pouco mais o mistério da vida humana que se sente impulsionada constantemente pelo dinamismo poderoso da esperança. Ele nos faz caminhar em busca da plenitude, do ainda não presente, do futuro. Quero aqui externar minha gratidão aos pais e mestres que, desde a infância até hoje, despertaram em mim essa sede do Infinito e que me impulsiona a continuar a caminhada da vida, cheio de esperança, para construir o Reino de Deus, já presente na cidade dos homens e em vista da plenitude final. Seja este pequeno estudo uma reflexão sobre nossa situação de peregrinos e viandantes nesse mundo e nos ajude a caminhar, enquanto ainda clamamos o “Maranatha” – Vem, Senhor Jesus!

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INTRODUÇÃO

O que nos moveu a escrever esta monografia sobre a ESPERANÇA foi, antes de mais nada, a profunda experiência que dela fazemos em nosso dia a dia. Não podemos conceber uma vida humana sem a perspectiva da esperança. Para nós homens ela é simplesmente fundamental. O homem é um ser inquieto e aberto que se projeta constantemente diante de si mesmo, um ser em realização. Este dinamismo interior do ser humano nós queremos chamá-lo de ESPERANÇA. Para melhor entender esse aspecto essencial para a vida humana, iniciamos o trabalho com um estudo de antropologia filosófica, que pretende colocar o homem dentro do mundo como um ser privilegiado, ainda não pronto, por fazer-se, enfim um ser cheio de esperanças que o fazem experimentar a tensão do “já” e do “ainda não” e que por isso o lança para frente, na busca da utopia e do que ainda não é presente. Se isso é real, então poderemos perguntar-nos: onde houver um homem, não existe a esperança, mesmo no “desesperado” que se suicida, buscando nesse ato algo melhor que a situação presente que está vivendo? Mas não bastariam reflexões filosóficas para explicarmos visivelmente este fenômeno da vida humana, que na voz do povo é assim definido: “a esperança é a última que morre”. Por isso passamos também a analisar alguns fenômenos de esperança no mundo de hoje. Entre os quais destacamos a constante busca do novo, do ainda não existente. Queremos mostrar como no ser humano existe um dinamismo que o impulsiona a buscar o que ainda não é. Essa busca é acentuada no campo técnico-científico que surgiu para libertar o homem da dependência, principalmente da natureza. Cada descoberta impulsiona para novo des-velar dos mistérios que nos envolvem. Aqui, contudo, surge um questionamento que provoca no homem de

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hoje uma grande crise: a técnica e a ciência libertam ou escravizam o homem? Não há no homem também falsas esperanças? Uma longa reflexão nos ajudará a encontrar uma resposta neste sentido. Um dos fenômenos mais evidentes da busca de um mundo novo nós encontramos nos jovens de hoje. Sua insatisfação diante do que o passado e o presente lhes apresentam os faz buscar um mundo novo, mais humano e livre. Por isso protestam e apresentam novas opções cheias de esperança, tanto no presente como no futuro. Os povos oprimidos do Terceiro Mundo nos levam também a refletir sobre a esperança. Aqui acontece a célebre frase de Gabriel Marcel: “quanto menos o homem sente a vida como cativeiro, tanto menos é capaz a alma de perceber a luz velada e misteriosa da esperança”1. Além dessa análise, especialmente em termos de América Latina, teceremos algumas reflexões sobre vários filósofos mais diretamente relacionados com o tema da esperança no mundo de hoje, ou seja, Nietzsche, Feuerbach, Marx, Bloch, Kierkegaard, Heidegger, Sartre, Camus, Unamuno, Marcel e Moltmann. Tentaremos ver como estes, na tensão entre o sentido e o absurdo da vida, nos dão ricas mensagens para entendermos o fenômeno esperança que experimentamos no dia a dia de nossa vida. Mas a esperança não é um fenômeno só de hoje. Ela faz parte da própria constituição do ser humano. Além de ser um fenômeno humano como tal, há um povo que teve e tem uma esperança mais profunda e misteriosa, baseada em promessas divinas. Por isso encontramos nesse estudo uma descrição da esperança que era alimentada no Antigo Testamento, principalmente em relação à Aliança e às Promessas Divinas, e no Novo Testamento a partir do cumprimento da promessa antiga e da instauração do Reino de Deus

1 FREITAS, M. Carmelita de, Dialética e Dinamismo da Esperança Cristã, Vo-zes, Petrópolis 1968, 76.

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que iniciou com a vinda de Cristo, culminando com sua morte e Ressurreição. Em Cristo já se realizou o Homem Novo que nós ainda buscamos e esperamos dentro desse vale de lágrimas e de alegrias em que vivemos. Aqui surge a Igreja como a “serva” do Reino de Deus, o qual já deve acontecer neste mundo enquanto caminhamos para a plenitude, quando Cristo será “tudo em todas as coisas” (ICor 15,28). Que se entende ao dizer que o Reino de Deus já iniciou? Como será este Fim-Começo que acontecerá em nossa morte e ressurreição? O mundo também tem um futuro? Como será? Torna-se difícil dar respostas a estas questões fundamentais da nossa esperança cristã, mas alimentamos a certeza de que em nós e no mundo se realizará o que aconteceu já em Cristo. Este Cristo que nós esperamos e que poderá realizar em nós a plenitude. Com este estudo não temos a pretensão de escrever um tratado dogmático, mas apenas demonstrar que a esperança é fundamental para o ser humano encontrar um sentido ao seu viver. Ela faz parte da sua natureza e por isso podemos encontrar no mundo inúmeros fenômenos de esperança. Para nós cristãos esta esperança é ainda maior, pois Alguém já realizou o que nós esperamos e Ele nos dá a certeza de que nós também poderemos participar dessa realização.

Que estas poucas páginas possam ajudar-nos na caminhada da vida e alimentem “A Esperança que está em nós”.

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1. ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DA ESPERANÇA

Ao falarmos em esperança, o nosso pensamento sempre e necessariamente terá que voltar-se para o ser humano. Os demais seres têm sua existência, por assim dizer, pronta desde o início. Eles não podem transcender a si mesmos, estão presos ao aqui e agora. Mas o homem tem um modo de ser-no-mundo todo especial entre os muitos entes mundanos. Ele recebe uma tarefa fundamental, ou seja, de fazer e realizar a sua vida. O homem é apenas um germe em constante metamorfose na busca da plenitude. E a busca dessa plenitude faz com que ele se lance para fora de si mesmo constantemente, pois ele não está pronto ou acabado, mas é um ser em realização. Por isso também podemos dizer que o ser humano é essencialmente um ser perguntante, sempre em busca do que ainda lhe é vendado e oculto, do futuro misterioso que o aguarda. Ele sempre ultrapassa sua situação presente, i. é, ele é ex-sistência. Está aberto ao horizonte de um mistério infinito, inesgotável para ele2. Assim vemos que o ser humano é de maneira privilegiada no mundo, “excepcional e diferente do modo de ser dos outros entes. O ser de uma pedra, de uma rosa, de um cavalo está fechado em si mesmo. Não vai além de suas determinações. O ser do homem, ao contrário, é aberto, dinâmico”3, podendo projetar-se para além de sua própria entificação. Ele é o eis-aí-ser, o da-sein, de que nos fala Heidegger. É ele o único ser a projetar-se fora de si para. É o ser que busca, que procura que espera ser o que ainda não é, “que ainda não tem lugar e que pode vir a tê-lo”4. Portanto, um homo viator, um peregrino na esperança de chegar. E enquanto não chega

2 HUMMES, Fr. Cláudio OFM, Antropologia Filosófica (Polígrafo), Porto Alegre 1971, 36.3 KUNZ, D. Edmundo L., Deus no Espaço Existencial, Porto Alegre 1975, 21.4 MOLTMANN, Jürgen, Teologia da Esperança, Herder, S. Paulo 1971, 13.

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não descansa. E quando chega, um novo ponto de partida acontece e exige o sair de si para nova caminhada na direção do futuro aberto. Nosso ser é nômade, não tem pátria fixa. Portanto, o ente humano possui o ser e dispõe dele para a realização. Está diante de inúmeras possibilidades. A cada instante ele tem que decidir na situação em que se encontra. Há um impulso natural e intrínseco que o move para ser mais, para superar suas limitações que o envolvem como cadeias que tiram a perspectiva e prendem-no ao aqui e agora. E o mundo não esgota as limitações ou as possibilidades de realização. Por isso podemos afirmar que, apesar dos fracassos experimentados e desafios das novas dificuldades, o homem autêntico não desespera, porque sua caminhada se baseia na busca da plenitude. Tanto os fracassos quanto os êxitos alimentam a luta para a realização definitiva. Mas nenhum ato concreto de êxito ou fracasso esgota totalmente o dinamismo do querer mais e jamais consegue realizar a eternidade que almeja. “Nenhum futuro é o futuro absoluto”5 onde descansa plenamente esse dinamismo interior. A projeção e a tendência para o ser mais, para a superação do que já é, para a surpresa, para o desconhecido é inerente ao homem. O realizado é sempre apenas um esboço do que está mais adiante. Vivemos em constante espera ativa. “Encontramo-nos permanentemente na pré-história de nós mesmos”6. Estamos acontecendo, fazendo nossa história, não num círculo fechado que retorna eternamente ao ponto inicial, mas que nos projeta para infinitas possibilidades. Esse dinamismo insaciável exige de nós a busca do novo, do abscôndido, do velado, da promessa, da utopia. A utopia não se torna, assim, um fenômeno de fantasia, mas uma forma de exteriorizar o princípio esperança. Ela manifesta a permanente ânsia de renovação, regeneração e aperfeiçoamento. Nesse sentido

5 BOFF, Leonardo, Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 18.6 Idem, 19.

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o homem é um eterno insatisfeito, um ávido por superar a situação concreta presente para buscar mais e se renovar mais. A utopia realiza uma função insubstituível na vida e história do homem. Por ela projetam-se ao futuro todos os dinamismos e anseios humanos. A projeção dum ideal, dum mundo novo, desempenha a função canalizadora da esperança humana para engajar-se totalmente no momento presente e para buscar esse futuro novo projetado, que lhe responde os anseios e aspirações. A frustração humana presente encontra na utopia a possibilidade de realização do que se espera. O novo projetado para o futuro é uma luz e uma força para a peregrinação no momento histórico atual e dá sentido à vida presente, pois é impossível deixar de viver o momento presente e sonhar somente com o futuro. Heidegger vai nos ajudar, mais uma vez, para entendermos a tensão do “já” e “ainda não” que vive o homem. O vocábulo zukunft com o significado de vir a ou ad-vir, define o ser autêntico do homem. Ele é incessante zu sich kommen, um vir a si mesmo7. O seu ser atual, presente, já é antecipação, i. é, futuro-presente. “Dentro de cada um mora o homo abscônditus do futuro”8. Temos a consciência de que o momento presente não se fecha sobre si mesmo, mas se abre para um futuro que aspiramos e queremos melhor que o passado e o presente. “Vive na ânsia de um futuro mais belo, de um ser mais pleno”9. O homem como ser-espírito-no-mundo necessariamente se coloca como ser-em-relação. Sendo assim, ele só se realiza ficando em comunhão permanente com toda globalidade de suas relações. Por isso ele tem que sair de si mesmo para ser verdadeiramente homem. “É dando que se recebe”, diria São Francisco. Esse relacionamento acontece

7 HEIDEGGER, Martin, Sein und Zeit, Tübingen 1949, 52-231.8 BOFF, L., idem, 19.9 ZILLES, Urbano, Esperança Cristã, Sinônimo de Ilusão?, em Teocomunica-ção 12 (1972), Porto Alegre, 37.

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com o mundo, com o outro e com o Transcendente. “Quanto mais estiver orientado para o Infinito mais possui possibilidades de hominizar-se”. O homem perfeitamente realizado seria aquele que pudesse realizar todas as relações a que seria capaz, inclusive a união com o Infinito10. No sentido do relacionamento com o outro podemos dizer que a esperança aparece no homem, sobretudo, quando ele está frente ao outro; quando ele convive com o outro para o futuro aberto. “A experiência nos mostra que, quando o homem se fecha sobre si mesmo, no seu egoísmo, há grande chance de desesperar a esperança; a única saída parece ser o suicídio, o supremo gesto de solipsismo, de desespero”11. O homem que se fecha e se isola tende à autodestruição. Somente na sua abertura ao outro ele encontra o novo que dá sentido ao seu viver. O outro ajuda a revelar, a des-velar, o seu próprio ser e invade o mundo do “eu”. Por isso podemos afirmar que a convivência humana faz experimentar profundamente o ministério que somos, como seres que se velam e se des-velam. Escrevemos acima que só podemos falar em esperança quando voltamo-nos ao homem. Assim poderíamos também afirmar que a esperança só aparece quando estamos frente ao outro; e mais, com o outro e para o outro. Contudo, esse relacionamento deve dar-se livremente, sem alienação. O próprio homem deve ser o sujeito de sua busca do ser mais, embora ele o faça em comunhão. “Por isso mesmo é que, qualquer que seja a situação em que alguns homens proíbem aos outros que sejam sujeitos de sua busca, se instaura como situação violenta”12. Em relação ao mundo o homem deve sentir-se um ser-no-mundo. O homem deve ser sujeito, como aquele que dá sentido às

10 BOFF, L., O Destino do Homem e do Mundo, Vozes, Petrópolis 1974, 26.11 FLEIG, M. Bins, C.L., Reflexões sobre a esperança Cristã, em Teocomuni-cação 20 (1974), Porto alegre, 94.12 FREIRE, Paulo, Pedagogia do Oprimido, Paz e Terra, S. Paulo 1970, 85.

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coisas. De certa forma pode-se conceber o mundo como mundo vir-a-ser, como mundo que é um desafio e uma tarefa para o homem. É ele que deve criar a ordem da justiça e da paz neste mundo. E como ser-no-mundo o homem, por sua vez, sente-se limitado pelas mais diversas situações. Assim ele está limitado, por exemplo, à temporalidade. O tempo é a forma de existência do ente enquanto ainda não estiver na plenitude. Assim o tempo tem um caráter escatológico. Tudo tende a acabar além do tempo. A partir dessa reflexão podemos dizer que “tudo o que é temporal tem também caráter escatológico”13. O próprio homem é um ser histórico-temporal. Vive uma constante situação de advento. Contudo, a plenitude do tempo não pode ser deduzida nas atuais condições do mundo. Por isso há necessidade de um salto qualitativo, de uma ordem nova e diferente, de um homem novo. E aqui precisamos citar o nome de Deus para dar uma resposta a todos os anseios mais profundos e misteriosos do homem, pois o pensamento humano não consegue ir além da estrutura adventícia de nossas possibilidades, da estrutura de esperança de nosso existir. E certas perguntas que o homem sempre se fez, só aí terão uma resposta satisfatória, como é o caso da morte. Um outro aspecto que deve ser abordado, após as reflexões acima descritas, é o de que uma falsa concepção de esperança poderia alienar o homem, deixando de viver o momento presente. A esperança faz o homem assumir justamente o seu viver presente, pois o futuro, o esperado, de alguma forma, já está no presente. O homem espera aquilo que já vive até certo ponto ou aceita na fé. E é justamente essa tensão entre o “já” e o “ainda não” que projeta o homem para frente, para o futuro, para a utopia, para a busca da plenitude.

13 ZILLES, U., Escatologia (Polígrafo), Porto Alegre 1971, 85.

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Por tudo que analisamos sob o prisma antropológico da esperança, podemos concluir que ela é uma situação profundamente humana. Estamos sempre na espera. Tudo é promessa. O ponto de chegada é de novo o ponto de partida. E assim tudo está ainda em aberto. Por isso é que pode e deve haver esperança no homem. Esse dinamismo pervade toda sua realidade, orientando para um futuro donde tira o sentido para o presente. Esta dinâmica leva-o ao infinito, ao mistério, já vivido na esperança.

Para nós cristãos o aspecto antropológico da esperança não é isolado do homem. Ele atinge as raízes mais profundas do ser humano. E ali nós vemos que ele conduz ao transcendente porque a esperança não tem limites. Nós só descansamos ao atingir o “Ser Total”, o não limitado, o infinito, o divino.

Encarando o homem como um ser religioso, a esperança torna-se decisiva, pois ela está no cerne de toda religiosidade. No dizer de Ernest Bloch “Onde há esperança há religião”14. E nós poderíamos dizer que onde há um homem aí há de certa forma a presença da esperança, mesmo nos desesperados que buscam, muitas vezes, até no suicídio, a esperança de algo melhor. Outros se debatem por falsas e ilusórias esperanças, mas o fenômeno acontece.

O mundo nos apresenta muitos fenômenos que nos evidenciam a realidade da esperança. É o que pretendemos analisar no capítulo seguinte.

14 BLOCH, Ernest, cit. Por MOLTMANN, J., idem, 407.

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2. FENÔMENOS DE ESPERANÇA HOJE

Analisamos no capítulo anterior como o homem contém em si o germe da esperança que o faz enfrentar o futuro, o amanhã, com coragem e com perspectiva de encontrar sempre algo melhor, algo mais pleno, algo novo. Contudo, encontramos as mais diversas situações humanas: há sinais claros e sinais escuros de esperança. E por vezes defrontamo-nos com situações em que parece já não haver mais esperança ou esperanças que não realizam o ser humano, que são alimentadas por fins alienantes e falsos, barrando o aspecto da busca, da abertura, da peregrinação para a plenitude. Inclusive encontramos casos em que a esperança parece ter desaparecido totalmente e o ser humano imergido no abismo do desespero. Mas nem isso vem anular o que tanto acentuamos de que o homem, por natureza, é um ser que espera, que se lança para frente, embora por vezes nas situações vitais mais cruciantes. Talvez é justamente nessas ocasiões que “a esperança é a última que morre”. Mais que um recurso de expressão, essa frase que usamos no dia a dia manifesta uma convicção existencial do ser humano. Mesmo o mais desesperado, o que chega até ao extremo de tirar-se a vida, tem no seu íntimo a esperança de que isso signifique a solução mais coerente e que algo melhor possa talvez acontecer. No mundo em que vivemos são muitos os sinais de esperança: desde a mãe que espera o filho chegar da escola até um povo inteiro que clama por libertação ante o jugo dos opressores; desde a esperança do mendigo de mudar de vida até os meios mais sofisticados da ciência e da técnica, que podem trazer novas esperanças; desde os jovens que se revoltam contra um mundo massificado, na esperança de mais autenticidade e sentido para a vida, até os profundos filósofos da esperança ou do sem sentido da vida.

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Tentaremos agora analisar apenas alguns desses fenômenos de esperança que encontramos no dia a dia da nossa vida. Fenômenos esses que dão o colorido ao nosso viver e que nos fazem continuar a caminhada da vida com otimismo.

2.1 A Busca do Novo

Há no homem um princípio mobilizador que o impulsiona na busca do novo, do ainda não existente. Parece haver no fundo, no mais íntimo de cada ser humano, uma quase certeza de que há possibilidade de acontecer sempre algo novo e melhor para a existência. Não gostamos muito das coisas velhas, a não ser que sejam recordações de valor que queremos levar para o futuro. A moda é um caso típico da busca do novo. Queremos sempre estar atualizados no vestir, no apresentar-nos, no carro que usamos, nas palavras que expressamos, no assunto que discutimos. A sociedade de consumo explora essa tendência do homem e se ele não tiver muito senso crítico é levado na onda com facilidade. Chega até a convencer-se que fumando certo cigarro ele é um homem de personalidade, ou usando determinado eletrodoméstico adquire felicidade, ou melhor, a felicidade. As imitações são condenadas, pois o importante é ser criativo, original, apresentar algo de novo, inédito. As imitações só são aceitas se apresentam algo novo, como é o caso da moda. Não gostamos de repetições, preferimos lançar-nos na aventura de novas descobertas. O químico procura novas soluções que ainda ninguém descobriu; o arquiteto desenha plantas de edifícios jamais vistos; o padeiro experimenta novas fórmulas para tornar o seu pão ainda

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mais gostoso; o aluno faz sua monografia, tentando colocar algo de original no assunto abordado; o jogador tenta ensaiar uma jogada que ninguém ainda realizou. É este o jogo da vida, da procura do fantástico, do quase impossível, do sobre-humano. Esse fenômeno da busca do novo é uma constante na história da humanidade. Ela estende-se também ao próprio ser do homem. A busca do novo, do homem novo, “é uma constante permanente de cada cultura, seja na sua expressão mítica no pensamento selvagem, seja na sua formulação dentro do horizonte das utopias científicas do pensamento objetivo da modernidade”15. Os relatos dos povos antigos da Mesopotâmia, do Egito, de Israel evidenciam e confirmam as palavras de Leonardo Boff. Inclusive nossos tupi-guaranis criaram a utopia da “terra sem males” e da “pátria da imortalidade”, para a qual rumavam esperançosos. Eles expressaram de maneira mítica o homem novo, que hoje se busca no mundo sofisticado da ciência. Hoje não se espera o homem novo caído do céu. Mas é a ciência e a manipulação biológica que o tentam criar. Já estão adiantados os processos de controle da natalidade, imunização contra doenças genéticas, de inseminação artificial, de criação de embriões in vitro. Até já são realizados dificílimos transplantes de órgãos e tecidos. E para o futuro prevê-se a criação de homens com as qualidades físicas e intelectuais desejáveis. A partir do que analisamos, conclui-se que o homem sempre acreditou na transformação do mundo e do próprio homem, buscando renová-los constantemente na sua transitoriedade. “Os conceitos de absoluto, de definitivo e de permanente parecem não encontrar mais um suporte neste mundo em perpétuo movimento”16. O homem de hoje olha para o futuro. A palavra que o caracteriza é “progresso”,

15 BOFF, L., A Ressurreição de Cristo A Nossa Ressurreição na Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 9.16 COMBLIN, José, O Provisório e o Definitivo, Herder, S. Paulo 1968, 43.

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não “tradição”. Para ele “o reino do homem de hoje é o amanhã, o mundo que ele mesmo constrói”17. É este mundo da novidade, do inédito, do fantástico, do sobre-humano.

2.2 A Ciência e a Técnica na Perspectiva da Esperança

O homem não é um ser pronto, acabado. Na sua situação de ser-no-mundo ele precisa realizar-se, precisa fazer a sua vida. Assim ele está inevitavelmente ligado à ciência e à técnica, desde que fabricou os seus primeiros e rudimentares instrumentos. Pela análise da ciência e técnica atual, constatamos características próprias e que não apareciam em épocas passadas, como por exemplo o ritmo acelerado e provisório do desenvolvimento técnico-científico, a elitização da técnica e da ciência, o domínio e afastamento da natureza e busca do artificial. É a onipotência do mundo técnico-científico. A natureza já não é mais considerada como algo em si, mas algo para o homem. Esse processo de evolução técnico-científico teve suas fases de crescimento. À medida que o homem foi buscando o novo e o melhor, a ciência e a técnica fizeram descobertas maravilhosas. Incialmente o homem fabricava simples instrumentos para uso provisório e dependia da natureza. Aos poucos surge o período da sociedade agrária, em que o homem depende da terra e dos frutos que ela lhe dá em resposta à sua colaboração. Depois surge o período industrial. A natureza é desmitizada e já não se espera tanto dela, pois agora é manipulada e se tira dela o que se quer. Atualmente novas e decisivas descobertas estão sendo realizadas. O pensamento científico e a consequente efetivação técnica se desenvolvem de dia para dia. O que era non plus ultra

17 RATZINGER, Joseph, Fé e Futuro, Vozes, Petrópolis 1971, 60.

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de ontem, hoje já está superado. E esse processo está atingindo diretamente o próprio homem. A própria natureza humana é manipulada pela genética, na tentativa de influir sempre mais na quantidade e qualidade dos futuros homens que irão nascer, como já vimos ao falar da “busca do novo”. A automação, os Mass Media, as conquistas interplanetárias, também surgem como das maiores maravilhas da ciência e da técnica. Assim vemos que a ciência e a técnica oferecem ao homem possibilidades inimagináveis de manipulação do futuro. O que traz uma visão nova do próprio homem. O mundo técnico-científico surge como meio de humanização, como meio de libertação do homem. Ela foi inventada pelo homem para servir a ele para libertá-lo da dependência da natureza. Contudo, todos se fazem hoje a pergunta angustiante: a ciência e a técnica atual liberta, humaniza ou escraviza o homem? Essa pergunta crucial não é abstrata e insignificante porque está surgindo a partir de estúpidas e covardes guerras que colheram milhares de vidas inocentes; ela surge também dos marginalizados da sociedade que não interessam muito ao progresso científico; ela surge do medo de novas bombas atômicas e bacteriológicas; ela surge dos moradores das modernas cidades, sufocados pela poluição; ela surge da neurose de quem tem que viver como robô na fábrica, no escritório; surge igualmente dos que são massificados e alienados pelos modernos meios de comunicação social. Como resposta a esta problemática podemos dizer: o homem tecnológico trabalha para ser homem, porque compreende-se a si mesmo como sendo essencialmente trabalhador, como conquistador do universo. A ciência e a técnica surgem como busca e tentativa de libertar o homem da natureza, para humanizá-lo, portanto. Mas é o próprio homem que pode dar-lhe um outro sentido. Ele pode tornar-se inimigo de si mesmo. A ciência e a técnica em si são imparciais. Depende do homem o rumo que tomarão. Sabemos que

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a “a estrutura do mundo técnico deveria sempre ser levantada tendo como critério o homem. Na realidade isso não acontece sempre... em nosso mundo o critério é outro ou predominantemente outro, como p. ex., o lucro”18. O homem já não é um fim, mas um meio para outros fins como o lucro ou a exploração ideológica. Urge, portanto, uma conscientização dos responsáveis pelo mundo da ciência e da técnica para que não haja inversão de valores e para que a esperança que o homem nelas coloca não venha a tornar-se sua própria destruição catastrófica. Diz J. Moltmann: “A vivência histórica própria do homem moderno se baseia na experiência de possibilidades totalmente novas... novas possibilidades para o bem e para o mal, para o progresso e para a perdição final”19. É uma situação de “crise”, de decisão. O homem tem que optar diante da inquietude do problema. É algo que está aí e que precisa ser superado numa busca de algo novo e melhor que venha trazer esperanças. Qualquer crise traz à tona a interrogação sobre o futuro. E a história parece estar em “crise permanente”, impossível de ser segurada ou barrada. A história avança, porque o homem não para por causa do impulso dinâmico vital que o faz progredir e o leva a fazer história. É nos tempos de crise e de inquietude que o homem mais manifesta a necessidade de novas possibilidades, até então desconhecidas e não imaginadas. Da decisão do presente depende a forma do futuro, e ela encontra sua forma de visão esperada ou temida do futuro. A decisão, portanto, surge do sonho do futuro, pois a crítica ao presente torna o existente algo do passado e exige nova posição, novas utopias. Essa reflexão nos leva a concluir que o homem da ciência e da técnica está hoje numa crise muito acentuada. Sente-se na situação de criticar o seu

18 HUMMES, Fr. Claudio OFM, idem, 20.19 MOLTMANN, J., idem, 269.

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presente e de superá-lo, em busca de novos rumos que venham ao encontro das esperanças mais profundas de cada ser humano. A técnica pode ser considerada como uma das realizações mais perfeitas da vocação do homem de submeter a terra e dominar todas as forças inimigas de sua vida. Assim ele dá sentido ao mundo e o mundo, por sua vez, serve para sua hominização e libertação. Entretanto, a técnica como todo progresso cientifíco apresentam-se como espadas de dois gumes: “podem libertar o homem das amarras da natureza, mas podem também escravizá-lo”20. Criou-se uma situação tal que, não raras vezes, o próprio homem sente-se uma função da estrutura técnica que ele mesmo criou e chega a pensar que uma ideologia do progresso permanente é a possibilidade de total libertação do homem, como se a hominização dependesse exclusivamente do fator quantitativo e da aceleração temporal das invenções. A tecnologia pode até fazer perder a visão global do homem, pois ele a pode usar irresponsavelmente. Assim temos hoje que suportar a poluição, os desequilíbrios ecológicos, enfim, a destruição da natureza e do próprio homem. Por isso esse processo científico e tecnológico deve ser encarado com apurado senso crítico para o homem não destruir o seu próprio meio de vida e seus semelhantes. Contudo, outro aspecto merece um acento todo especial: poderemos transformar o econômico, o social e o político, pensando em construir um mundo novo, mas novamente cair no vazio. Além de ser senhor das coisas e penetrar profundamente nos mistérios humanos, o homem pode e deve auscultar a mensagem que lhe vem de si mesmo, das coisas e da própria técnica, como apelo de um Transcendente e a um derradeiro Fundamento e Sentido que tudo suporta. O mistério do mundo só é vislumbrado caso o homem

20 BOFF, L., O Destino do Homem e do Mundo, Vozes, Petrópolis 1974, 48.

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se colocar numa atitude de ausculta, de veneração e de abertura respeitosa. Do contrário, se tornará um déspota que destrói seu próprio reino. E é ali que hoje o mundo entra em choque: “A técnica ofereceu ao homem possibilidades inegáveis de manipulação do futuro. Isso fez com que se elaborassem esperanças escatológicas puramente imanentes, na forma dum futuro técnico do mundo”21. E esta esperança é falsa, pois sem o surgimento de um homem novo não haverá um mundo novo. E esse homem novo só acontecerá plenamente quando Cristo será tudo em todos e não quando a técnica e a ciência chegarem ao auge. O que então dizer da ciência e da técnica em termos cristãos? – Não há motivo para que a missão cristã, diz Moltmann, se alie contra a progressividade revolucionária dos tempos modernos22. E J. Ratzinger acrescenta, dizendo que devemos ir adiante, pois a técnica cria inúmeras novas possibilidades para a humanidade. O cristão não tem nenhuma razão para um ressentimento anti-técnico. Ele sabe quanta coisa se tornou realmente melhor, mais bonita e mais humana23. Contudo, os dois autores acentuam que é preciso estar alerta aos aspectos desumanos e destruidores que a técnica pode causar. Não deve ela ser o fim último em si, mas um meio para a libertação do homem. A esta realidade presente, a mensagem cristã deve responder com a esperança no futuro do Crucificado (1Pd 3, 15), transmitindo a todos a esperança na ressurreição que traz consigo uma nova compreensão do mundo. Este mundo não é o céu da autorrealização. Ele ainda não está acabado, nem pronto, mas somente deve ser entendido como algo que está em processo histórico. É um mundo do possível, em que se pode estar a serviço da futura verdade, da justiça e da paz prometidas. Portanto, este é

21 BOFF, L., Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 126.22 MOLTMANN, J., idem, 360.23 RATZINGER, J., idem, 62.

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ainda um tempo de diáspora, de sementeira em esperança, da entrega e do sacrifício até que o Senhor venha e nos conduza à plenitude. Enquanto o Senhor não for tudo em todos e em todas as coisas a caminhada da história continua e os progressos no campo da cultura, da ciência e da tecnologia devem ser representados como um momento do processo da revelação de Deus e da revelação do Reino de Deus e só então alcançarão o seu fim verdadeiro.

2.3 Os Jovens Esperam um Mundo Novo

Certamente nenhuma fase da vida é tão privilegiada para o desabrochamento da esperança como a do jovem. É ele que está cheio de vigor para assumir a vida com sempre maior intensidade. Não se contenta com a herança do passado e a substitui por novas maneiras de ser, mesmo que estas sejam criticadas ou envolvam riscos. Para o jovem o importante é não parar. É preciso buscar a aventura, o novo, o que ainda não é. As grandes virtudes tornam-se a autenticidade, a originalidade, a busca constante, a liberdade. Sua busca de opção na vida vocacional e profissional o colocam a viver uma situação de futuro-presente. A incerteza do presente o lança para frente numa vontade de ver com maior clareza aquilo que o espera. Quando essa sua maneira própria de ser é violada, de uma ou de outra forma, ele se revolta e contesta. Assim constatamos hoje o inconformismo dos jovens com o mundo massificado, alienado, robotizado e de consumo que lhe tira a liberdade. Esse fenômeno de contestação dos valores fixados e tradicionais da sociedade surgiu principalmente a partir da década de 60. A utopia de uma sociedade de consumo global e sem necessidades mostrou-se ilusória. A técnica escravizou mais que libertou; a liberdade sempre encontra maiores limites. E os jovens consideram essa situação desumana, massificante, de falso poder.

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Um dos movimentos mais típicos de protesto foi o dos Hippy. Este e outros movimentos buscam novos valores, que estão acima do lucro e do poder. Buscam a espontaneidade, a amizade, o fraternismo universal, na esperança de um mundo novo e mais humano. É claro que não podemos aceitar toda sua maneira de ser, mas o certo é que questionam profundamente esta sociedade de consumo em que vivemos e buscam insaciavelmente um pão que deve saciá-los pela raiz. Tentam decifrar o mistério que envolve sua existência. E por isso tem tanto sucesso. Muitos se encontram com Jesus Cristo nesta busca e depositam nele o sentido radical da existência. Outros se defrontam com as práticas do budismo e assim por diante. As acusações por vezes se tornam muito violentas, como podemos perceber nesta declaração de um líder hippy: “Ó geração de meia idade, olhem para vocês mesmos, que precisam de dois goles de bebidas fortes para terem a coragem de conversar com um ser humano. Olhem para vocês, que precisam da mulher do próximo para provarem a si mesmos que estão vivos; olhem para vocês, explorando a terra, o céu e o mar, visando lucros e chamando a tudo isso de Grande Sociedade. São vocês que vão dizer como viver? Vocês estão brincando”24. Em 1968 tivemos a oportunidade de ver os movimentos dos jovens da França, abalando a opinião mundial. Eram centenas de milhares de jovens revoltados que exigiam novas estruturas e mudanças radicais. Não tinham clareza do que queriam, mas sabiam que a situação de vida que levavam os homens não era humana. Embora devemos ser críticos frente a tais movimentos, eles devem levar a sociedade e a Igreja a pensar seriamente. A fartura econômica não respondeu ao sentido da vida e nem a Igreja torna-

24 JORNAL DO BRASIL de 18-09-1969, caderno B, 1, cit. por BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, Vozes, Petrópolis 1972, 42.

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se convidativa quando se apresenta com uma face triunfalista, dogmática e desencarnada da realidade, presa a suas próprias estruturas que dificultam nela a visão da face de Cristo. Os jovens querem uma Igreja pobre, comprometida com a transformação do mundo, na busca da paz, da justiça e da verdade. Não uma Igreja de organização perfeita ou de comunidade fechada, mas uma Igreja missão e serviço. Há hoje uma sede muito intensa na busca de um novo sentido para a vida. Isso se manifesta pelos inúmeros grupos e movimentos de jovens que estão aflorando dentro da própria Igreja. São grupos que se conscientizam de seu papel dentro dessa Igreja, que querem nova e transformada. E a sua esperança de construí-la nova e rejuvenescida cresce de dia para dia e já são muitos os que seguem pelo mesmo caminho. Essa procura na esperança de construir um mundo novo poderíamos colocar nos versos que seguem, escritos e cantados durante um encontro de jovens, comprometidos na construção dessa nova Igreja: “Peregrinos na esperança Com a história em nossas mãos Caminhamos com firmeza Todos juntos como irmãos. Estrib.: Nossa estrada é a vida E a causa é um povo Nossa Luz é o Evangelho Que inspira um mundo novo. Se o cansaço do caminho Nossos passos retardar Nossa força é Jesus Cristo E voltamos a andar. Ser fermento, luz e sal Muitas vezes leva à morte Mas o sangue derramado Torna o povo ainda mais forte”.

(Aloísio A. Dilli e Márcia Schüler)

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Poderíamos aqui analisar uma série de músicas jovens que tem aparecido e que mostram a sua revolta ante o mundo massificado e sem liberdade. E outras tantas que demonstram a sede de algo mais profundo e significativo para a vida. Parece-me que o fenômeno da busca de um sentido novo para a vida por parte dos jovens é um verdadeiro sinal dos tempos. E a Igreja não poderá omitir-se nesse momento histórico. Será necessário saciar o jovem e acolhê-lo na sua maneira de ser e numa atitude de aceitação e diálogo fazê-lo assumir seu verdadeiro papel. Paulo VI insiste por várias vezes nesse sentido, como por exemplo na Evangelii Nutiandi, n. 72: “As circunstâncias do momento presente convidam-nos a prestar uma atenção muito especial aos jovens... A Igreja põe grandes esperanças na sua generosa contribuição”25. Mas não bastarão documentos se nas bases a Igreja não tomar uma maior atenção aos jovens. Na experiência de vários anos na pastoral da juventude tenho notado uma sede intensa de um algo mais nos jovens. Eles esperam uma oportunidade. Será preciso ir ao seu encontro e dar um verdadeiro sentido para sua esperança.

2.4 Os Oprimidos e a Libertação

Em toda história da humanidade, desde os primórdios, constata-se que os homens vivem subjugando uns aos outros. A lei do mais forte impera até hoje. A raiz do egoísmo humano ainda não foi cortada e brota sempre com mais e novo vigor. Assim ainda hoje nos defrontamos com situações estarrecedoras: 2/3 da humanidade não se alimentam suficientemente; os bens do mundo estão em mãos de minorias; milhares de pessoas morrem para satisfazer os fins econômicos e ideológicos de poucos e assim por diante. Os homens

25 PAULO VI, Evangelii Nuntiandi, Paulinas, S. Paulo 1976, 80.

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continuam divididos entre ricos e pobres, poderosos e fracos, opressores e oprimidos. Os opressores injetam nos oprimidos seus esquemas de dominação, seus valores de produção e de consumo, sua maneira própria de compreensão do homem. Os últimos se tornam dependentes e não tem voz para fazer-se ouvir, pois eles só podem falar e pensar conforme os primeiros lhes exigem e impõem. Os dependentes têm que ver inclusive no opressor o modelo de homem e de sociedade a ser construída. A situação opressora está institucionalizada, portanto os oprimidos devem permanecer submissos e dentro da “ordem”. Para o opressor, a consciência e a humanização do oprimido não são busca da plenitude humana, mas subversão. Para ele o status quo é justo, natural e humano. As consequências desse estado de coisas são numerosas. Uma das mais evidentes é a marginalização dos valores humanos da dignidade, da participação, das liberdades individuais e sociais, da honesta subsistência. O resultado final é o drama da fome, da miséria, da dissolução de lares e tudo o que se possa imaginar de desumano. É essa, em resumo, a situação do assim chamado “Terceiro Mundo”. É uma nova escravidão no Egito, à espera de um libertador. Há muito tempo fala-se do “problema social” ou da “questão social”, mas “só nos últimos anos se tomou clara consciência da amplitude da miséria e sobretudo da situação de opressão e alienação em que vive a imensa maioria da humanidade”26. Percebe-se a gravidade dessa situação como um obstáculo para a plena realização do homem. O homem mantido no subdesenvolvimento está se dando conta de que o fizeram não-homem, simples objeto e não sujeito de sua própria história e vida. Ele mesmo vê que precisa recuperar a sua verdadeira humanidade, que precisa libertar-se dessa

26 GUTIÉRREZ, Gustavo, Teologia da Libertação, Vozes, Petrópolis 1975, 63.

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prisão que o envolve e quer escravizá-lo, tirando-lhe a dignidade humana. Surge desse modo uma nova e profunda esperança, a esperança da libertação. Uma esperança que faz caminhar em busca de uma emancipação total, de libertação de qualquer escravidão, de condições mais humanas: a passagem da miséria à posse do necessário, a vitória sobre os flagelos sociais, o alargamento dos conhecimentos, a aquisição da cultura e, enfim, tudo o que faz parte da dignidade humana. Contudo, não se chegará a um mundo novo sem criar um homem novo. E aqui está a tarefa fundamental. Porque também não se pode pensar na libertação do homem apenas em alguns sentidos. É o homem todo que deve ser liberto. Do contrário sua esperança de libertação terá um desfecho frustrante. A libertação tem frequentemente a tentação de reduzir sua missão às dimensões de um projeto puramente temporal, político, social, econômico e cultural, esquecendo-se da dimensão espiritual e religiosa que lhe dá abertura ao absoluto. Não basta instaurar a libertação temporal, criando bem-estar e impulsionar o desenvolvimento para se poder dizer que o Reino de Deus chegou. Com isso não queremos afirmar que o social, o político, o econômico e o cultural não façam parte da construção do Reino, mas que não é só esse aspecto que o realiza em plenitude. Aliás, esse assunto será estudado mais a fundo em capítulos seguintes. Diz Segundo Galilea: “as tarefas libertadoras aparecem como uma antecipação e como um colocar em marcha do Reino de Deus, Reino de justiça, de igualdade, de fraternidade, de solidariedade”27. O processo de libertação é lento e difícil. Por isso está baseado fundamentalmente na esperança. A esperança aí consiste na atitude de crer que o que atualmente parece difícil ou impossível, ou seja, a

27 GALILEA, Segundo, Espiritualidade da Libertação, Vozes, Petrópolis 1975, 8.

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libertação total do homem e a fraternidade universal total, será mais tarde possível pela força de Deus. Isso nos dá um impulso otimista e incansável, pois a esperança é alimentada pelo poder de Deus. Esperar é também recolher os sinais das mudanças, dispondo-se positivamente diante delas e reorientando a existência a partir delas. Assim o cristão tem certeza que, ao trabalhar pela libertação e pela fraternidade, trabalha por uma meta real e não utópica. Suporta até as frustações das pseudo-mudanças e dos fracassos, irradiando aos outros o dinamismo incansável de sua esperança. “A esperança não engana” (Rm 5, 4). Já afirmamos várias vezes que o homem é um ser em realização, em advento, em ânsia de plenitude. Mas ele é também fracasso e rejeição. Surge então a pergunta: terão futuro também os vencidos e esquecidos, os humilhados e ofendidos, os pequenos e inúteis da terra, os triturados, os oprimidos? Eles não escapam ao esquema da evolução natural que ascende impreterivelmente? Humanamente falando, não encontramos resposta satisfatória, mas se olharmos para Cristo, o Servo de Javé, rejeitado, humilhado, torturado, cuspido, pregado na cruz e quase desesperado, então encontraremos uma resposta viva, satisfatória e completa. Pois Ele ressuscitou e venceu a situação anterior. E é esta a esperança daqueles que são feitos “o lixo do mundo e a escória da terra” (1Cor 4, 13). Aqui se descobre o valor do sofrimento dos oprimidos, dos sem-esperança. Só em Cristo o impossível é possível, a utopia se torna “topia”. Não adianta o homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder esse seu futuro absoluto (Lc 9, 25).

2.4.1 A Esperança Latino-Americana

A América Latina sofre fortes traços de dependência, desde os tempos do colonialismo até os tempos atuais. As grandes metrópoles sempre a dominaram. Mesmo depois de declarada a independência política dos diversos países que a compõem, nota-se hoje falta de

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liberdade e autonomia econômica, política, cultural e até religiosa. Vivemos uma situação de dependência. Dentro desse contexto surge a terminologia de oprimidos e opressores, tanto em termos de relação externa como interna. Podemos dizer que na América latina vivemos sob o signo da libertação. A dependência é um fato em todos os sentidos da vida do povo. O massacre é constante, pois vivemos uma alienação institucionalizada. Numa situação assim só pode nascer uma nova esperança, uma esperança continental, de todo um povo que marcha para a libertação como outrora o povo israelita. Para acontecer essa libertação deverá haver unidade que irmana a todos num só movimento de esperança. Para isso precisa haver uma conscientização geral em que todos se disponham a assumir a causa da libertação pela qual esperam. Em outras palavras, precisamos criar um povo, um povo livre, autônomo, amigo da justiça, da liberdade e do amor, um povo onde cada homem seja homem com toda a sua dignidade. O que temos, por enquanto, não é um povo, mas uma massa enorme, inconsciente, apática e silenciosa. É um ajuntamento de pessoas, uma coletividade massificada. Contudo, um lento despertar está surgindo. O povo já começa a dar-se conta de sua injusta situação e clama por liberdade, justiça e vida digna de um ser humano. É a esperança concreta que está nascendo, na América Latina, é a esperança-povo. Um povo que quer ser dono de si mesmo, sem dependências e opressões. Um povo onde se respeite os direitos humanos fundamentais e não se venha com coações arbitrárias de modelos vindos de fora. É preciso cuidado, porém, para que esta esperança do povo não se fundamente em objetivos vazios e imediatos. Não basta o desenvolvimento econômico, político, social, cultural. Não basta lutar somente por alguns direitos, como se a pessoa latino-americana estivesse apenas escrava em certos setores. Se a esperança permanecer apenas no plano humano

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e antropológico, novamente virá o fracasso e a frustração e a nova situação que se espera construir poderá ser mais opressora que a anterior. Não podemos esquecer que a ambição e o egoísmo estão na raiz do ser humano. E muito facilmente podem emergir e dominar quando a esperança não é mais profunda e apoiada naquele que está acima e além do homem. Não é um reino puramente temporal que deve ser construído, mas o verdadeiro Reino de Deus, do qual o econômico, o político, o social e o cultural são apenas uma parte. Antes de mais nada temos que perscrutar a vida humana dentro do prisma da construção do homem novo, à imagem de Cristo. “Não teremos um Continente novo, sem novas e renovadas estruturas, e sobretudo não haverá Continente novo sem homens novos que à luz do Evangelho saibam ser verdadeiramente livres e responsáveis”28. É na pessoa de Jesus Cristo que nós temos nossa esperança. Ele se fez pobre e humilde para ser nossa esperança. Ele olha com especial amor aos pobres, aos humildes, aos marginalizados e oprimidos. São estes os seus eleitos. Os autossuficientes e poderosos geralmente não têm lugar para Deus. Sua esperança é a riqueza e o poder. Cristo será nossa esperança à medida que formos pobres e humildes com Ele. Por isso Ele estará olhando com especial amor os pobres do Terceiro Mundo e da América Latina que têm o coração aberto e nEle põem sua esperança de libertação. Então será uma esperança viva, que ressuscita e que exige e compromete, pois Deus mesmo será o fim último dessa esperança. Sem Deus não há esperança verdadeira. Sem Deus o homem perde o sentido de ser e não pode ter esperança libertadora. O certo é que um grande despertar e uma esperança bem viva está nascendo no meio do povo. Não é uma esperança de belas

28 CONCLUSÕES DE MEDELLIN, CELAM, 1-Justiça, 3, em A Igreja na Atual Transformação da América Latina à Luz do Concílio, Vozes, Petrópolis 1973, 48.

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reflexões de livros ou teorização, mas o caminhar concreto do povo histórico. Ele já não se contenta mais com belas palavras e com frases empolgantes. Não bastam propagandas e promessas. Uma nova esperança cresce entre o povo e que o une, aos poucos, ao redor de um mesmo objetivo: a libertação. Quem é a favor desse povo e dele faz parte, não pode fugir e não teme porque sabe que é preciso lutar pela nova primavera mesmo com sacrifícios e sofrimentos.

“Ser fermento, luz e sal Muitas vezes leva à morte Mas o sangue derramado Torna o povo ainda mais forte”

(Versos citados anteriormente)

Essa esperança-povo é como a que alimentou o povo de Israel através do deserto. E se for verdadeira esperança que alimenta a marcha, ninguém a segurará e o Reino de Deus estará acontecendo; a nova Terra Prometida estará sendo avistada. Contudo, esse Deus-esperança não pode ser apresentado por cristãos envolvidos com os poderes que oprimem, em vez de procurar a libertação. As massas trabalhadoras oprimidas ainda precisam experimentar que a vontade de Deus é a sua libertação de tudo aquilo que lhes diminui a dignidade de pessoas humanas. Colocar a esperança num Cristo que se assemelhe aos pobres, sem conscientizá-los e ajudá-los a se promoverem, é tornar sua alienação ainda mais dramática.

2.5 Alguns Pensadores e a Esperança

A reflexão moderna denominou o insaciável dinamismo da vida humana, já analisado anteriormente, de princípio-esperança. É a força que penetra em todas as virtudes e as mantém abertas a um

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crescimento indefinido. Aqui as utopias desempenham uma função insubstituível. Elas manifestam a permanente ânsia de renovação, regeneração e aperfeiçoamento. No entanto, a grande pergunta que o homem de hoje coloca é se vai realizar-se um dia a utopia anunciada por todos. Poderá tornar-se totalmente claro o que se experimenta latente no homem? Pode-se chegar à total comunhão com todas as coisas e também com o Infinito? Não será a sorte do homem a de Prometeu, um eterno esperar sem alcançar? Não haverá uma escatologia intramundana que chegará ao paraíso terrestre? E tantos outros questionamentos. Por este modo de pensar e perguntar, enveredaram vários pensadores do passado e também contemporâneos. Assim podemos citar Nietzsche, quando diz: “Eu vos conjuro, irmãos meus, permanecei fiéis à terra e não creiais naqueles que vos falam em esperanças supra terrenas”29. Para o escritor de “Assim Fala Zaratustra” Deus está morto e o que importa é criar o “super-homem”. A esperança está no próprio homem. E disso se orgulha o homem, pois ele agora coloca em si todas as qualidades que antigamente eram colocadas em Deus. O humanismo ateu é a única religião que professam hoje grandes massas, nas quais encontrou ressonância funesta o tema nietzscheano da “morte de Deus” e o raciocínio precipitado de Malraux: “Deus morreu, logo, o homem nasceu”30. É a religião do homem que se faz Deus. Essas afirmações levam à implícita negação de Deus e fecham a esperança para toda transcendência. A esperança está no próprio homem, fechado em si.

A esse modo de pensar junta-se também Feuerbach, um dos inspiradores de Marx. Para ele Deus é uma projeção que o homem faz para fora de si mesmo ou da realidade. O que conhecemos de

29 NIETSCHE, F., Also Sprach Zarathustra, cit. por BOFF, L., Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 28.30 MALRAUX, André, cit. por FREITAS, M.C. de, idem, 57.

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Deus é o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Para que o homem possa se encontrar ele tem que abandonar a fé nesse ser inexistente. A fé separa e divide interiormente o homem, por isso é preciso deixar a fé e optar pelo amor humano. Sem fé em Deus não poderá também haver esperança nesse Deus. Assim surge o escatologismo intramundano. E a grande figura que aparece aqui é Marx. A esperança do “paraíso terrestre”, sonhado por Marx, vem de várias instâncias, especialmente da dialética de Hegel, da “crítica da religião de Feuerbach e do messianismo judeu-cristão que, de modo inconsciente, se enraíza no próprio ser de Marx. Sua doutrina se cristaliza, assim, numa mensagem de libertação e de renovação de todas as coisas, evocando o antigo profetismo semita, com todas as características de uma escatologia intramundana, “... uma religião secularizada, poderosa e palpitante de esperança; um novo messianismo”31. Para o marxismo, o processo evolutivo da história desembocará necessariamente numa meta bem definida: meta que apresenta todas as características de escatologia secularizada. Isso explica sua aceitação e eficácia na transformação do mundo e suas estruturas. Qual o homem que não gostaria de viver no “paraíso terrestre”, onde cada um poderá chegar à plenitude de seu desenvolvimento humano, sem alienação de nenhuma espécie? Mas é uma vida futura sem perspectiva do além, sem vida eterna, sem imortalidade. A única realidade é a matéria: eterna, incriada, imperecedoura. Por isso a religião é o “ópio do povo”, consolo com a esperança de uma vida melhor. Ernest Bloch, filósofo marxista, expoente mais destacado do humanismo escatológico, que surgiu depois da I Guerra Mundial, dá um passo para frente em sua obra “O Princípio Esperança”: “Onde

31 FREITAS, M.C. de, idem, 62.

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há esperança há religião”32. Sua interpretação de religião vai além do que costumeiramente se explica a respeito dela e do que se explica da crítica da religião no marxismo. Para ele a religião é esperança e esta se baseia na diferença ôntica entre aquilo que existe e o que ainda não existe, entre presente e futuro, tanto no homem como no cosmos. O homem como ser não firmado ainda é alguém que juntamente com seu ambiente é uma tarefa, um recipiente gigantesco, cheio de futuro. O homo abscônditus do futuro, ainda não achado nem alcançado é o “Deus” do homem presente. As imagens de Deus e do futuro giram ao redor do incógnito do homem e do mundo. Somente quando a diferença ôntica do homem e do mundo de ser e não ser ainda for superada no “lar da identidade”, diz Bloch, então a religião e a esperança cessarão, porque estarão cumpridas. Sem pretensão de grandes críticas, podemos dizer que é uma utopia construir o Reino de Deus intramundano assim como os marxistas o propõem. Longe de trazer a libertação prometida, o marxismo legou à humanidade uma nova forma de escravidão, ou seja, em vez de redimir o homem, aliena-o e escraviza-o sob o aspecto econômico, político, técnico e espiritual. É uma pseudo-esperança alimentada por milhares de seres humanos que, fascinados pelo mito econômico, ou melhor, messiânico do “paraíso-terrestre”, caminham ao encontro do nada. Não basta transformar o negativo do ser somente no que tange ao econômico, social, político e cultural. Enquanto não for abolido o nihil em que todas as coisas se acham ameaçadas de cair, a solidão do homem e do mundo continuará. O nada aparecerá de novo “não identificado na fome, miséria e privação de direitos, mas agora incompreensivelmente com o tédio, o fastio de viver, os sentimentos do absurdo de todas as coisas...”33. Será

32 BLOCH, E., cit. por MOLTMANN, J., idem, 407.33 MOLTMANN, J., idem, 421-422.

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uma sociedade sem futuro, fechada em si mesma. Por isso podemos contrariar Bloch e sua obra “O Princípio Esperança”, pois o seu “lar da identidade” não surgirá quando cessarem as contradições no homem e no mundo, mas somente quando a morte e o nihil não mais existirem. Seu “escatologismo”, embora mais corajoso que a utopia de Marx, é também impotente para solucionar o problema do futuro do homem. “A verdadeira esperança pertence, sem dúvida, a este mundo, mas é, ao mesmo tempo, eterna e orienta o homem a seu futuro absoluto, para além de toda meta futura intramundana”34. Merecem ainda comentários alguns pensadores mais recentes como, por exemplo, os filósofos existencialistas Kierkegaard, Camus, Sartre, Heidegger, Marcel... A gênese histórica dessa corrente de pensamento é encontrada no cataclisma das duas grandes Guerras Mundiais, que frustraram os ideais da humanidade, de progresso e ciência, tão caros à filosofia moderna, e que deixaram o homem órfão, inseguro e com a muda interrogação sobre o sentido da vida do homem concreto no mundo. Assim aparecem à tona temas como: contingência humana, a angústia existencial, a transcendência, a morte, etc. Temos que distinguir também as diversas correntes dentro dessa filosofia existencialista: nem todos seguem o mesmo modo de pensar. Há duas tendências fundamentais: existencialismos abertos e existencialismos fechados. A primeira é formada pelos pensadores que chegam à conclusão que o homem deve necessariamente transcender-se com relação à realidade extramundana e sobrehumana. O existencialismo fechado nega essa transcendência extramundana. Sua análise de existência humana desemboca no absurdo, pois o homem fica limitado a sua própria e imediata subjetividade. O expoente máximo desse existencialismo é Sartre, seguido de perto por Camus e outros.

34 FREITAS, M.C. de, idem, 69.

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Quem fez aflorar o drama da angústia humana de maneira acentuada foi o “pai do existencialismo”: Kierkegaard. Para ele a angústia é o pressuposto do pecado original, relativamente à queda dos primeiros homens, como o é também no que diz respeito à queda de cada um de seus descendentes. A angústia é um fenômeno psico-religioso devido ao nada que incide sobre o espírito humano. O nada que essa angústia nos revela não é o nada do existente, senão o nada no existente. Para Kierkegaard a angústia tem sentido e não é algo vazio. Heidegger pergunta pelo sentido do ser. No centro de sua “analítica existencial” está a angústia, o nada, o ser para a morte. Ele diz que na angústia o homem é colocado diante do nada. E não há dúvidas que Heidegger fundamenta a existência humana no nada. Para ele o homem é um ser ameaçado de ruína, jogado na existência pelo nada; sem apoio no presente nem no futuro, porque destinado ao abismo da morte e do nada. Contudo, parece que não se pode deduzir daí um nihilismo radical. O nada constitui um estado prévio para experimentar o ser. O homem só se descobre a sim mesmo, quando percebe que nada daquilo que o rodeia tem um valor decisivo, i. é, quando percebe que existe ante o nada, e começa assim, realmente, a sua existência. Assim o “nada” heideggeriano, mostrando que o ser se distingue do ente, poderia ser algo como um “véu atrás do qual se insinuaria um ser extramundano ou Deus”35. Mas isto é difícil, pois Heidegger chega a definir o homem como um “ser para a morte”. Esta concepção conduz a uma atitude heroico-trágica em que o homem afirma a contingência fechada, o pasmo existencial, sem esperança de libertação. O homem vive entregue à morte e à angustia. Desse modo de pensar foram tiradas as mais funestas consequências, tanto no plano antropológico como ético. A

35 VÉLEZ, J., cit. por FREITAS, M.C. de, idem, 42.

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investigação heideggeriana certamente muito contribuiu para fomentar o pessimismo e encobrir a confrontante luz da esperança do transcendente. O problema fundamental de Sartre é a angústia da liberdade. Para ele o homem não pode existir a não ser com a condição de fazer-se a cada instante, por ato livre. Mas que sentido tem essa liberdade? Ele mesmo responde que não serve para nada. Se tudo é “náusea e absurdo”, não existe nenhum valor pelo qual devamos viver e que possa esclarecer ou justificar alguma escolha. No fundo, o homem está perdido no nada. Daí a angústia que o domina. A liberdade estabelece o “vazio” ao seu redor. O mesmo ato, com que conquista a liberdade, parece entregá-lo à angústia.

O mundo que Sartre nos apresenta é de rejeição de Deus e de toda certeza metafísica. Sua literatura é reflexo de uma geração que decidiu viver só e que se propôs erigir em sistema a vida sem esperança. Apresenta uma vida heroico-trágica sob um céu sem Deus, uma negação radical de toda transcendência. Nega-se toda liceidade da esperança em nome da nulidade radical, do absurdo do ser humano. O homem é frustrado em todas as dimensões: absurdo em si mesmo, para as coisas e para os outros. Os outros são um inferno. A relação com outro toma a forma de luta mútua, pois todos querem reduzir “o outro” como objeto de seu mundo.

O resumo do pensamento de Sartre apresenta-se na seguinte afirmação: o homem é uma “paixão inútil”. É obrigado a existir livremente no nada, no vazio.

Camus também vê no homem um absurdo e afirma que o sentido da vida do homem consiste em não ter nenhum sentido. Mas importa viver esse sentido que é absurdo. Na sua obra “A Peste” ele deixa transparecer que o homem está instalado no presente, sem memória e sem esperança. Fecha-se o futuro e o passado e a vida torna-se um absurdo do qual não se pode fugir. Quando acentua que

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é preciso assumir o absurdo e vivê-lo parece alimentar, do fundo do abismo, a necessidade de uma certa esperança, embora difícil.

O poeta angustiado da Espanha – D. Miguel de Unamuno - também testemunha uma geração que, sob o signo do “vazio” e do “tédio”, nutre sua esperança do sentimento do nada e vive o esforço para alcançá-la, sem chegar, jamais, à autêntica esperança teologal. Mas nele se revela que o homem tem necessidade de esperar. O problema da esperança foi o cerne de sua existência e de sua obra. Na esperança viu a essência da vida humana. Sua vida traduz um esforço agônico ou, como o chamou Moeller, “desespero esperançoso”. Esse desesperar não o levou ao suicídio ou à resignação angustiada, mas a um constante combate por uma nova vida. Sua voz recusa morrer, porque quer continuar vivendo. É o desejo da supervivência, sem, no entanto, chegar ao absoluto, Deus.

Poderíamos apresentar ainda outros autores que não veem a vida cheia de esperanças, mas que a comparam com o “Mito de Sísifo” e a esperança frustrada de Prometeu ou que alimentam apenas pseudo-esperanças, como por exemplo o escatologismo intramundano.

Assim como analisamos pensadores que afirmam o absurdo e o sem-sentido da vida, podemos citar outros autores em que a esperança é fundamental. Um filósofo que merece aqui destaque é Gabriel Marcel. Até poderíamos chamá-lo de filósofo da esperança. Ele adota o existencialismo da transcendência.

Enquanto o “ser” dos existencialistas fechados se aniquila, o “ser” do existencialismo aberto emerge como absolutamente positivo e Deus surge como fundamento da existência. Por isso a esperança ocupa um lugar central devido à abertura fundamental do ser humano para o absoluto, para Deus. Mas é na filosofia de Gabriel Marcel que a análise da esperança alcança seu cume. Ela é apresentada como a situação normal do homem, cujo destino na vida é esperar.

O homem é um ser de relação, inserido no mundo, por realizar-

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se num processo dinâmico. É um ser envolvido pelo mistério que deve ser desvendado mais e mais, embora não possa ser totalmente objetivado por permanecer sempre numa transcendência. Não é limitado ao aqui e agora. O espírito humano pode transcender o que ele mesmo criou, e lança-se ao eterno. Ele está aberto ao infinito, ao futuro. É um ser profundamente marcado pela esperança.

Segundo Marcel, a esperança faz o homem ser paciente, ensina “perder tempo”, provoca confiança num processo de crescimento, não se precipita e desfaz tensões. A esperança genuína transcende os objetos particulares. Ela também é profética, pois afirma realidades como se já as visse. Não é antecipação fatalista, ilusão ou autossugestão, mas autêntica antevisão profética.

Marcel ainda nos apresenta a esperança como amor. Ela fundamenta-se na união e no encontro. A esperança autêntica não é um desejo pessoal de felicidade. Ela sabe que ninguém se basta a si mesmo, por isso abre-se às experiências dos outros, faz surgir a amizade. Aí está o caráter libertador da esperança, abrindo-nos à comunhão com os outros, liberta-nos de nós mesmos. Mas esta intersubjetividade não passaria de um voo poético se lhe faltasse a dimensão vertical: a comunhão transcendente que Marcel chama de “TU” absoluto, i. é, Deus. A experiência de comunhão é fundamental para Marcel, como ele mesmo afirma na definição de esperança: “A esperança é, essencialmente, a disponibilidade de uma alma intimamente comprometida numa experiência de comunhão, para cumprir o ato que supera a oposição entre o querer e o conhecer, pelo qual afirma a perenidade viva, cujos dons e primícias são oferecidos simultaneamente por essa experiência”36.

Marcel diz ainda que tudo se torna diferente quando a interpretação de si mesmo, o relacionamento consigo, volta a ser

36 MARCEL, Gabriel, cit. por FREITAS, M.C. de, idem, 84.

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autêntico, quando não mais me interpreto como um haver, mas como virtual infinitude de possibilidades de realização, que só espera o momento propício para desabrochar e, portanto, precisa sair de si mesmo, deve dar e receber. Então se terá uma atitude de invocação e acolhimento entre EU-TU e eu-nós, numa atitude de confiança, fidelidade e esperança.

Há também, atualmente, um grande redespertar do tema da esperança na Teologia. Assim surge como expoente máximo o teólogo protestante Jürgen Moltmann, que quer mostrar como a Teologia pode lançar-se a uma nova reflexão, tomando impulso da esperança em perspectiva escatológica. Por isso se questiona sobre o fundamento da esperança na fé cristã e a responsabilidade decorrente para o pensamento e ação no mundo de hoje.

Para Moltmann a escatologia intramundana de Bloch abriu brechas para a atual teologia da esperança. O filósofo marxista contém categorias que permitem pensar alguns temas bíblicos: escatologia, promessa, esperança... Nisto se limita a seguir uma frase do próprio Bloch: “Onde há esperança há religião”.

Para Moltmann a revelação fala-nos de um Deus que vem ao nosso encontro e que só podemos aguardar com esperança ativa. O presente acha-se questionado profundamente pela promessa. Por isso chega a afirmar que a teologia da esperança é, simultaneamente, teologia da ressurreição. O Cristo ressuscitado é o futuro do homem. Os enunciados da promessa não pretendem iluminar a realidade que está aí, mas a realidade que vem. O acontecimento da promessa é, pois, o começo da crítica de tudo o que é. Aqui poderíamos colocar um alerta: não podemos parar nos conceitos antecipadores, desligados duma realidade vivencial do homem, uma realidade histórica, concreta e presente. Necessária para que não se aliene nosso encontro com o homem concreto e com Deus que vem. Se nossa esperança não tomar corpo no presente para levá-lo avante, não passará de evasão e

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futurismo. “Moltmann mostra-se atento ao perigo de descurar a vida presente; sua preocupação, porém, não parece escapar às limitações que acabamos de assinalar. Contudo, seus trabalhos mais recentes refletem interessante evolução e fecunda abertura à luta histórica do homem de hoje”37.

A despeito dessas observações críticas, a obra de Moltmann é, sem sombra de dúvida, das mais importantes da teologia contemporânea. Ele despertou nova vida na reflexão sobre certos aspectos da existência cristã.

Poderíamos citar aqui outros teólogos da esperança, inclusive os nossos teólogos mais achegados da América Latina, mas nos deteremos agora apenas um pouco sobre o fenômeno, de certo modo avassalador, que colocou a teologia da esperança em primeiro plano. Nos anos anteriores tinha-se a impressão de que uma teologia centrada no amor de Deus e do próximo substituiria a teologia preocupada, antes de tudo, com a fé. Ao primado da fé sucedia o primado da caridade. Hoje parece surgir um novo primado: o da esperança. “Se a fé foi reinterpretada pela caridade, ambas agora o são pela esperança”38.

Assim vemos que em cada época acentua-se um aspecto mais do que o outro, conforme a situação histórica que vive o homem, até que surja uma nova síntese. É possível que a evolução nos esteja levando a uma delas.

Certamente o mundo técnico-científico em que vivemos ajudou decisivamente para que o tema esperança aflorasse com tanto vigor. O homem viu que o progresso é importante, mas que ele não responde a todos os anseios mais profundos do seu misterioso ser. Há algo mais que o homem espera e que só Deus pode saciar.

37 GUTIÉRREZ, G., idem, 182.38 Ibidem, 183.

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3. A ESPERANÇA NA SAGRADA ESCRITURA

Pelo estudo que fizemos até agora, vimos que o homem é um ser insatisfeito. Sabe-se finito, mas anseia por uma existência perdurável. Constata-se imperfeito e aberto a um constante aperfeiçoamento, a um existir projetando-se. Ele vê-se um ser tecido de esperança. A esperança constitui uma das bases de sua existência e que envolve todo seu ser.

Abordamos também como essa esperança se manifesta em diversos fenômenos do mundo em que vivemos, ou seja, na busca do novo, no aperfeiçoamento técnico-científico, nos jovens que esperam um mundo novo, no homem oprimido que busca a libertação. Vimos também como os diversos pensadores sacudiram o mundo com suas tentativas de explicar o sentido da vida, a angústia, o vazio, a esperança. Nós poderíamos perguntar agora: qual é a resposta que a Sagrada Escritura tem diante de todas as situações analisadas? Como ela responde ao sentido da vida e da morte do homem? Qual esperança que ela nos apresenta?

Passemos então a escrever algo mais detalhado sobre o fio condutor – a esperança – que atravessa toda a história da salvação, desde os primeiros homens até Cristo e de Cristo até hoje, em direção à plenitude final. No Antigo Testamento nos deteremos especialmente na temática da “promessa” e no Novo Testamento nossa reflexão se aprofundará mais na “morte e ressurreição de Jesus Cristo”.

3.1 A Esperança no Antigo Testamento

A esperança não surgiu no homem somente após a vinda de Jesus Cristo a este mundo. Já no Antigo Testamento aparece todo um povo a caminho de uma grande esperança. A começar pelo paraíso que, para os autores de Gênesis 2-3, não é uma situação que

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perdemos e da qual guardamos saudades, mas é figura do mundo novo, do qual o homem está a caminho. O paraíso “é a planta de construção a ser realizada pelo empreiteiro que é o homem”39. É um projeto que o desafia constantemente. A plena realização desse projeto está expressa na descrição do paraíso, feita com imagens e símbolos, tiradas das realidades do povo daquele tempo, com o fim de ser estímulo para o encaminhamento da ação humana. “É assim que Deus gostaria que o mundo fosse. Deus não quer a dominação do mundo, não quer as dores do parto, não quer a morte nem a seca, não quer o trabalho escravo e opressor nem a ameaça dos animais, não quer a religião do medo”40. É o ideal da completa harmonia entre o homem e Deus, entre o homem e os seus semelhantes, entre o homem e os animais e toda natureza que o envolve. Tudo está perfeitamente integrado em torno do eixo que é a amizade do homem com Deus.

Portanto, o homem pode nutrir uma grande esperança; há enormes possibilidades que continuam abertas diante dele. Existe a possibilidade de o homem conviver com Deus, sem pecado e na perfeita justiça e paz. Está aberto para um caminho que conduz à felicidade, à ausência de sofrimento, vivendo plenamente integrado consigo, com os outros, com a natureza e com Deus. Ele não conseguirá isso sozinho, mas por um dom gratuito de Deus, pela fidelidade de Deus. Contudo, será necessária a colaboração humana.

A Bíblia, portanto, opera uma verdadeira transformação de valores, quando dá um sentido à vida e põe sua esperança no futuro. A esperança é expectativa. Ultrapassa a nostalgia do passado, a inclinação natural da alma pagã. O ideal do homem é Abraão que se põe a caminho de um país desconhecido, que Deus lhe mostrará. Ele parte sem voltar atrás, sem regressar a Ur da Caldéia. Ele esquece

39 MESTERS, Carlos, Paraíso Terrestre: Saudade ou Esperança? Vozes, Petró-polis 1971, 47.40 Ibidem, 47

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o que está atrás e volta-se para o que está à frente, como diz São Paulo. “Esta fé no futuro foi, antes de mais nada, conteúdo próprio da mensagem bíblica, fez passar sobre o pessimismo do mundo antigo em sopro de Esperança”41.

A fé de Abraão funda-se na esperança da fidelidade de Deus à promessa de eterna aliança. Deus é a raiz última da sua esperança. Contudo a esperança do povo de Israel era de índole terrestre como, por exemplo, saúde, fama, riquezas, prole numerosa, terra prometida. Só bem mais tarde a esperança abriu perspectivas para além desta vida terrestre.

O povo de Israel é um povo, por excelência, da esperança “sofrida”. Sempre que eram subjugados, dominados, escravizados, Deus suscitava em seu meio pessoas que reanimavam a esperança no cumprimento das promessas da aliança. É um povo que se caracteriza também pelo “êxodo”, pela peregrinação. No tempo da fome peregrinam para o Egito e de lá, libertados por Moisés, caminham pelo deserto em direção à Terra Prometida. No exílio o peregrinar se repete. A esperança faz o povo caminhar, arriscar e confiar. “As promessas de Deus na história de Israel, cujo cerne é sempre a própria aliança com Deus, dão origem ao povo, constituem um povo em “êxodo”, em marcha para o futuro aberto e melhor”42.

Pouco a pouco é introduzida no povo israelita a esperança messiânica. Esta é obra dos profetas. Eles foram os grandes mestres que conservavam e purificavam a esperança do povo, abrindo novas perspectivas. Aos poucos, esse povo começa a viver intensamente a expectativa da vinda do Messias e da instauração do Reino de Deus em meio a suas quedas, humilhações e provações. Porém, as expectativas diante desse Reino eram obscuras. Havia uma mescla

41 DANIÉLOU, Jean, Evangelho e Mundo Moderno, Sanpedro Editora, Lis-boa 1967, 126.42 FLEIG, M. Bins, C.L., idem, 94.

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de esperança por uma hegemonia política, econômica, social, com presença de valores e bens espirituais.

Desde o exílio (587 a. C.) os judeus viveram praticamente sem liberdade, passando pelo jugo de Nabucodonosor, Alexandre Magno e dos romanos, sucessivamente. As possibilidades de libertação se esgotaram. Só uma intervenção divina poderia devolver-lhes a liberdade. Surge então farta literatura apocalíptica para inspirar o povo com esperança e confiança, através do reino futuro, com a restauração da soberania davídica e a entronização do absoluto senhorio de Deus. O tema do Reino de Deus torna-se tema central na literatura bíblica pós-exílica e no tempo entre os dois Testamentos. O povo todo se preparava para a vinda do Messias que instauraria o Reino de Deus. O certo é que o povo de Israel atravessou uma história cheia de caminhos tortuosos em que a esperança no seu Deus ora se intensificava, ora se obscurecia. No entanto, sempre permanecia a certeza da fidelidade de Deus no cumprimento de suas promessas e na execução da sua aliança. “A esperança do povo, como resposta às promessas divinas, esperança no futuro prometido, não em si, mas em Deus que promete, e confiar-se a Ele para com Ele realizar o futuro, esta esperança é elemento constitutivo fundamental da história do Povo de Israel e do seu relacionamento com Deus”43.

3.1.1 A “Promessa” no Antigo Testamento

O tema da promessa percorre toda Bíblia, está presente na história de Israel, do início ao fim. “A Bíblia é o livro da Promessa”44. É a promessa de Deus aos homens, ou seja, é a revelação eficaz

43 Ibidem, 95.44 GUTIÉRREZ, G., idem, 137.

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do seu amor. O termo “Promessa” significa: palavra dada, anúncio, notificação, juramento, herança, terra prometida, bênção. Ela é revelação e boa-nova, é o coração da Bíblia e faz dela o livro da esperança, que sobrevive às provas e renasce mais vigorosa após os fracassos. A promessa revela-se, realiza-se ao longo da história e a orienta para o futuro, dando uma conotação escatológica à revelação. A história humana é o cumprimento paulatino da promessa. Na teologia veto-testamentária mais recente demonstrou-se que “as palavras e as expressões que falam do revelar-se de Deus no Antigo Testamento estão sempre ligadas a conceitos que falam da promessa de Deus. Deus se revela sob a forma de promessa e pela história da promessa”45. A promessa é um dom que só é aceito na fé. É ela que faz Abraão o “pai dos crentes”. A ele foi feita a promessa da posteridade numerosa como as estrelas do céu e a areia do mar. Essa promessa é “outorgada aos crentes mediante a fé em Jesus Cristo” (Gl 3, 22). Nele somos “descendentes de Abraão, herdeiros segundo a promessa” (Gl 3, 29). “A primeira expressão e realização da promessa foi a Aliança”46. O reino de Israel foi outra concreção. E quando as infidelidades do povo israelita invadiram a aliança antiga, a promessa encarnou-se no anúncio de nova aliança, esperada e sustentada pelo “pequeno resto”, e nas promessas que prepararam e acompanharam seu advento. A promessa entra finalmente com o anúncio do dom do Reino de Deus e se realiza plenamente em Cristo Ressuscitado. Mas continua se revelando progressivamente na história e só alcançará seu pleno cumprimento na parusia. “Nenhum momento histórico é capaz de esgotá-la”47.

45 MOLTMANN, J., idem, 34.46 GELIN, A., cit. por GUTIÉRREZ, G., idem, 138.47 GALILEA, S., idem, 28.

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A “promessa” é um conceito que anuncia uma realidade ainda não existente. Ela manifesta uma abertura do homem para a história futura. Na promessa divina o futuro esperado não se desenvolverá a partir daquilo que é possível no presente, mas se realizará a partir daquilo que é possível ao Deus da promessa. “A promessa consiste numa contradição visível com a realidade histórica”48. Assim os temas das narrativas históricas de Israel (dos Patriarcas, das peregrinações pelo deserto, de Davi) são tratados como temas que indicam o futuro. Predomina sempre a tradição especificamente israelita de esperanças e expectativas baseadas nas promessas de Javé. As promessas, a que Israel deve sua existência, mostram serem um contínuo atravessar as peripécias históricas, pois nelas Israel sempre reencontrava a fidelidade de seu Deus. Realizando-se as promessas nos acontecimentos, neles não se esgotam, deixando sempre um saldo que aponta para o futuro. A promessa da aliança faz o povo israelita um povo que peregrina na esperança das maravilhas que Deus vai realizar neles e em sua posteridade, de geração em geração, até a consumação final. A grande promessa se realizou e continua se realizando em Jesus de Nazaré. Por isso, passaremos agora a falar mais detidamente do Novo Testamento.

3.2 A Esperança no Novo Testamento

Não podemos separar radicalmente a esperança do Antigo Testamento e do Novo Testamento. Ambos estão conjugados e ligados, embora com enfoques diferentes. Do ponto de vista da história da salvação e da promessa não podemos esquecer o aspecto da continuidade. O evento Jesus Cristo não deve ser tomado

48 MOTMANN, J., idem, 133.

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como um fato isolado ou em si mesmo, mas como cumprimento da promessa. O fato da ressurreição de Cristo nos dá a certeza do cumprimento da promessa. “O evento neotestamentário da salvação se torna o fio condutor para a interpretação do Antigo Testamento... o evento salvífico do Antigo Testamento se torna o fio condutor para a compreensão do evento de Cristo”49. A revelação em Cristo é um evento decisivo no processo da história da salvação que vem se realizando desde a criação através de graus e estágios e continua para além da revelação de Cristo até a plenitude final. Jesus Cristo assumiu em si mesmo a totalidade da esperança de seu povo. “Nele ressoa essa esperança. Ele é um amplificador dessa esperança de Israel”50. Ele anuncia um Deus que vem ao encontro de seu povo. Um Deus que cumpre as promessas da aliança. Por isso Ele viveu intensamente as profecias de Israel. Com Ele Israel ia assumir o seu significado verdadeiro. Com Ele havia chegado a “plenitude do tempo”. Havia chegado a hora esperada por tantos séculos e por isso era preciso despertar Israel para não perder a hora da conversão definitiva e do desvelar pleno do sentido de sua história de milhares e milhares de anos. Nele se realizaria a nova páscoa, a passagem definitiva de Israel para a terra nova, a nova e definitiva Terra Prometida. “Em princípio podemos dizer que o Novo Testamento se liga à esperança judaica de que no fim dos dias Deus consumará a salvação. Mas, enquanto no judaísmo o acontecimento escatológico se situa totalmente no porvir, para os cristãos, com Jesus Cristo, já começou o tempo da consumação”51. Aqui parece-me estar o enfoque específico e decisivo da esperança cristã. Ela continua

49 Ibidem, 169.50 COMBLIN, José, Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis 1971, 85.51 ZILLES, U., A Esperança Escatológica no Novo Testamento, em Teocomu-nicação 14 (1973), Porto Alegre, 21.

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ligada ao Antigo Testamento, mas recebe um complemento precioso e confirma a promessa antiga. Com Cristo o presente já é uma antecipação do que virá em plenitude. Mas o “já” e o “ainda não” continuam nos impulsionando com nova esperança para manifestação plena e gloriosa de tudo e de todos em Cristo. A nossa confiança na fidelidade de Deus às promessas nos garante a realidade do porvir que em Cristo já aconteceu. Com o nascimento do Messias foi anunciada a Boa-Nova aos pobres, cativos, coxos, doentes. Ele torna-se a Boa-Nova aos marginalizados, aos pecadores, aos simples e humildes. Aos orgulhosos, aos sábios, aos escribas e fariseus, aos autossuficientes e entendidos, Ele se torna um sinal de contradição: de desnorteamento, uma má notícia. Com Ele se proclama o Novo Reino: “Chegou a plenitude do tempo e está próximo o reino de Deus; convertei-vos e crede na Boa Nova!” (Mc 1, 15). Não era um reino de hegemonia política, como muitos judeus esperavam, mas um reino de conversão, de paz, de justiça e amor. Enfim, um reino onde é possível “a realização de todas as esperanças humanas: superação de toda divisão e cisão humana, a destruição de todo mal físico, espiritual, político e religioso, do ódio e da inimizade, da dor e da morte”52. Jesus levou a causa da Boa Nova até o fim, mesmo rejeitado e condenado pelos que não o aceitavam. Enfrentou o caminho do sofrimento, identificando-se com o “Servo de Javé”, prefigurado em Isaías. Assumiu o grande enigma dos antigos israelitas e de todos os homens: o sentido da dor, do sofrimento e da morte do inocente e do justo. E na ressurreição tornou-se a plena realização do Reino de Deus. Tornou-se o homem novo, o modelo e a meta de toda aspiração humana. Nele aconteceu o “novo” da história humana, o “novo” que realiza plenamente a esperança do homem. Nele foram superadas

52 Ibidem, 22.

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todas as concretizações limitantes e frustrantes da vida humana. Nele a morte se tornou não um absurdo da esperança humana, mas um passo necessário para a realização total da esperança humana. A utopia transforma-se em possibilidade real. Com Ele a esperança tem seu objeto não apenas no porvir, mas já no aqui e agora. O Reino de Deus já está entre nós, enquanto caminhamos para a sua plenitude. Pela reflexão feita até aqui, podemos entender porque os primeiros cristãos viviam tão intensamente a virtude da esperança, não só individualmente, mas em comunidade. Os escritos bíblicos surgidos dessa comunidade deixam transparecer essa esperança profunda que os fazia enfrentar com serenidade até o martírio. “Os cristãos traziam em si esta certeza da vida nova inaugurada pelo Senhor Ressuscitado. Apesar da obscuridade da fé, a esperança era neles a maior garantia de que no sofrimento e na morte o amor alcançava sua vitória definitiva sobre o ódio”53. Para concluir, poderíamos dizer que os escritos do Novo testamento são uma mensagem de esperança. O cristão é aquele que espera naquilo que ainda não vê (cf. Hb 11, 1). “Na esperança já agora vencemos o mundo”54. O cristão vive entre o “já” e o “ainda não”; por isso arregaça as mangas e procura construir um mundo novo, enquanto caminha para a plenitude. Sua esperança tem como objetivo último a Deus, mas esperar em Deus é igualmente esperar na obra do homem no mundo. O mundo novo realizado por Cristo e nele prometido, não é uma realidade pronta, a cair do céu. É também missão de vida para os homens. Só quando Deus for tudo em tudo e todos, se manifestará plenamente o que agora só compreendemos com os olhos da fé, na esperança.

53 LESBAUPIN, Ivo, A Bem-Aventurança da Perseguição, Vozes, Petrópolis 1975, 49.54 ZILLES, U., A Esperança Escatológica no Novo Testamento, em Teocomu-nicação 14 (1973), Porto alegre, 21.

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3.2.1 A Morte e Ressurreição de Cristo

Um dos problemas mais angustiantes dos homens de todos os tempos é, sem sombra de dúvida, a morte. “A ânsia de realização pessoal e cósmica do homem é sempre frustrada pela morte. Ela é uma barreira para todas as utopias”55. No Antigo Testamento a morte até era considerada como afastamento de Deus. Que resposta nos dá o cristianismo ante este questionamento angustiante? – Aqui a fé na ressurreição é fundamental e decisiva para entendermos o futuro do homem. Se a Ressurreição de Cristo não se verificou somos “falsas testemunhas de Deus”, “vã é a nossa fé” e “somos os mais dignos de lástima” (1Cor 15, 14-19). O fato nos foge a qualquer especulação científica. “Ou aceitamos a Ressurreição, atestada pelos discípulos de Jesus, ou a nossa existência se transforma num enigma sem solução”56. Sem a veracidade da Ressurreição podemos adotar as filosofias do absurdo da vida, da “paixão inútil”, do vazio, do nada. Então não há mais esperanças e perspectiva para o homem. Seremos seres que caminham para o caos total e tudo terá sido inútil, utópico e sem sentido. É por isso que a ressurreição é a pedra angular da fé cristã. É a partir da ressurreição que os apóstolos começaram a entender o Antigo Testamento, os milagres e os ensinamentos de Jesus; nele enxergaram o novo rumo da história e do homem. A própria morte de Cristo só é entendida a partir da ressurreição. Morte e ressurreição formam unidade, ou seja, o mistério pascal que trouxe a salvação e fundamenta a nossa esperança.

55 BOFF, L., A Ressurreição de Cristo Nossa Ressurreição na Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 57.56 ARNS, D. Evaristo, De Esperança em Esperança na Sociedade de Hoje, Paulinas 1971, 37.

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Para entendermos melhor a ressurreição de Cristo falemos antes um pouco sobre o sentido de sua morte. Cristo viveu na morte, da maneira mais autêntica, a experiência de ser homem como nós; saboreou o gosto amargo da morte e conheceu no próprio sofrimento como é difícil para o homem submeter-se a Deus na aceitação do seu doloroso destino. “Então atingiu o seu ponto culminante a solidariedade de Cristo com a pobreza da nossa existência, que na sua morte mostra a sua radical impotência. Cristo suportou a morte por nós e em nosso lugar”57. Na cruz Ele viveu paradoxalmente unidas a limitação, a pobreza de seu ser humano e a plenitude de sua entrega ao Pai. É o mistério do afastamento e da aproximação de Deus que aqui acontece. Ele doou-se totalmente, em espírito e corpo, ao Pai em favor dos homens, foi a sua definitiva autodoação filial ao Pai que o faz seu Filho. Nesta doação da vida ao Pai pelos homens, Cristo venceu o vazio da morte, com sua morte entrou no reino da imortalidade. “A sua morte foi a vitória sobre a morte para si mesmo e para todos os homens; para o mundo representou a libertação da sua caducidade”58. Abriu o horizonte para uma nova esperança: a imortalidade, a ressurreição. No ato humano da morte de Jesus Cristo, entregando-se plenamente ao Pai, aconteceu a reconciliação da humanidade pecadora e do mundo com Deus; destruiu-se a situação de pecado para uma nova e eterna aliança. Mas vã seria nossa fé, se Cristo tivesse ficado só na morte. A morte foi tragada pela vida. “Ó morte, onde está tua vitória? Ó morte, onde está o espantalho com que amedrontavas os homens?” (1Cor 15, 55). É este o consolo dos que creem e esperam em Cristo. Como diz Leonardo Boff, com a ressurreição entrou no mundo a jovialidade, i.

57 ALFARO, João, Teologia do Progresso Humano, Paulinas, Caxias do Sul 1970, 72.58 Ibidem, 72.

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é, apesar da ambiguidade do momento presente podemos comemorar o triunfo da vida sobre a morte e a vitória do “sim” sobre o “não”. Ser jovial é poder ver o futuro fermentando no presente e festejar sua antecipação na vida de Jesus Cristo59. Contudo, não podemos badalar os sinos do Aleluia sem antes passar pela cruz de sexta-feira santa. “A identidade de Jesus só pode ser entendida na Cruz e Ressurreição... Não se pode reduzir nem a Ressurreição à Cruz... nem a Cruz à Ressurreição”60. São dois mistérios que formam uma unidade inseparável. A Páscoa não é só morte, nem só ressurreição, mas as duas realidades numa dialética de identidade. Ali está o ápice e o centro da história da salvação. O evento da morte e ressurreição aponta para trás, para as promessas de Deus, e para frente, para o eschaton da revelação de seu poder em todas as coisas. Portanto, na ressurreição do Cristo crucificado, em que o poder da transitoriedade, o ‘mortífero’ da morte é vencido, abre-se o futuro da vida. O espaço vazio é preenchido, nova esperança nasce. A ressurreição abriu novo horizonte na compreensão de toda realidade. Em Cristo se manifestou a meta para qual o homem caminha, como também o cosmos todo: total realização, plenitude cósmico-humano-divina. Com Ele já se iniciou a nova criatura, a nova criação futura. Ele é o novo Adão e a nova humanidade, o ponto ômega e o fim atingido.

59 BOFF, L., Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 25.60 MOLTMANN, J., idem, 232.

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4. O REINO DE DEUS

Não podemos falar da vida e obra de Jesus Cristo sem falar do novo reino que Ele veio instaurar. “A mensagem central e genuína de Jesus é a proclamação da vida do Reino de Deus”61. O cristianismo apregoa que o absoluto futuro, Deus, se aproximou de nossa existência e morou na carne humana na pessoa de Jesus Cristo. Com Ele surgiu nova vida, um homem novo. Houve uma guinada de 180 graus. Com Ele o prazo da antiga espera se completou. O Reino de Deus se fazia presente, pois os pecados eram perdoados, os doentes curados, as fomes saciadas e a morte vencida. Nele se mostrou o amor humanitário de Deus (cf. Tt, 3, 4). Por isso nele se revelou um viver que já era reconciliação com tudo, com todos e com Deus, inclusive com o cosmos. “A morte não poderia tragar tanta vida e tão grande amor”62. Assim a sua ressurreição realizou a utopia. O Reino de Deus já se fez presente nele em plenitude. A ressurreição de Jesus significa a escatologização da realidade humana assumida por Cristo, a introdução do homem todo neste Reino de Deus. É a realização total das capacidades que Deus colocou dentro da existência humana. Em Cristo foram aniquilados todos os elementos aleatórios que dilaceram a vida: a dor, o ódio, o pecado, a morte. A esperança humana se realizou em Jesus Ressuscitado e já está se realizando em cada homem. Agora a resposta à pergunta - Qual é o sentido da vida e da morte? - será mais fácil de responder. Em Cristo Ressuscitado, o impossível ao homem se mostrou possível para Deus (cf. Lc 1, 37). “O futuro absoluto e misterioso, sem perder sua natureza futura, uniu a si o homem de tal forma que com ele fez uma história”63. Realizando, desse modo, o homem em Deus.

61 ZILLES, U., A Esperança Escatológica no Novo Testamento, em Teocomu-nicação 14 (1973), Porto Alegre, 21.62 BOFF, L., Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 23.63 Ibidem, 23.

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O futuro de Jesus Cristo, feito presente dentro da história pela ressurreição, é o futuro da humanidade. E aqui está o motivo decisivo da nossa esperança. Santo Agostinho já dizia: “Cristo realizou aquilo que para nós é ainda esperança. Não vemos o que esperamos, mas somos o corpo daquela Cabeça na qual se concretizou aquilo que esperamos”64. Assim o mito de Sísifo não tem mais sentido de ser apresentado, pois alguém conseguiu rolar a pedra ao cimo da montanha e Prometeu foi libertado. A peste de que fala Camus foi eliminada e a afirmação sartriana da vida como uma “paixão inútil” está desatualizada, pois alguém encontrou e realizou o seu sentido. Mas o Reino de Deus não se realizou somente em Cristo Ressuscitado. Ele mesmo nos diz: “O Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17, 21). Por isso, ao falarmos de escatologia ou Reino de Deus, não podemos pensar apenas em realidades futuras como reportagens antecipadas do fim dos tempos. Já agora vivemos a realidade do Reino de Deus, embora de modo imperfeito e deficiente. A plenitude virá apenas no fim. Assim “céu e inferno, purgatório e juízo não são realidades que irão começar a partir da morte, mas já agora podem ser vividas e experimentadas, embora de forma incompleta”65. Já aqui na terra essas realidades estão presentes e vão crescendo até chegar no desabrochar pleno, em que haverá a frustração total para os que se fecharam ao mistério da vida e da salvação e a realização total para os que estiverem abertos ao mistério de toda realidade, especialmente para Deus. A felicidade que gozamos neste mundo, o bem que fazemos e as alegrias que saboreamos no dia a dia da nossa vida já são uma certa vivência do céu, de forma ainda ambígua e incompleta. Os

64 AGOSTINHO, S., cit. por BOFF, L., Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 24.65 BOFF, L., Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 26.

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sofrimentos, as angústias que suportamos podem ser encarados como o processo purificador que nos faz crescer e abrir mais ao mistério de Deus e podem antecipar o purgatório. Assim também o fechamento sobre si mesmo, a exclusão dos outros e de Deus podem nos dar a experiência do inferno, que aqui o mau e o egoísta vão criando para si e que na morte terá caráter pleno e definitivo. Uma escatologia bem entendida “nos diz que devemos dar nem tanto ao céu nem tanto à terra, porque o céu começa na terra. O Reino de Deus não é o mundo totalmente outro, mas totalmente novo”66. Por isso não podemos cruzar os braços enquanto vivemos ainda neste mundo, assim como o queriam os Tessalonicenses no tempo de São Paulo (cf 2Tes 3,10b - 13). Diz o Pe. Dadeus Grings que é preciso advertir “contra o perigo de situar e construir toda a vida cristã apenas do que vai além da morte. O cristianismo deve ser vivido aqui na terra e destina-se a proporcionar salvação e alegria também neste mundo”67. A fé, a esperança e a caridade do cristão exigem dele que se dedique à missão de melhorar o mundo e as condições da vida humana no serviço da verdade, da justiça, da paz e da fraternidade universal. O progresso humano também deve estar orientado para a transformação do mundo. Só assim ele terá sentido e estará preparando o mundo para a salvação definitiva e plena. A supressão da miséria, da exploração, da alienação e das injustiças em geral é um sinal da vinda do Reino. “Lutar por um mundo justo, em que não haja opressão nem servidão, nem trabalho alienado, será o significado da vinda do Reino”68.

66 Ibidem, 30.67 GRINGS, Dadeus, A Força de Deus na Fraqueza do Homem, Sulina, Porto Alegre 1975, 145.68 GUTIÉRREZ, G., idem, 145.

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Contudo, antes de mais nada, para acontecer o Reino é preciso mudar e transformar os corações dos homens. Com corações convertidos teremos também novas estruturas, mais justas e humanas, enfim uma sociedade nova, um homem novo. O Reino está aí e cresce no dia a dia. Ele está em toda parte onde nasce o desejo de crescer junto com o irmão, onde surge a fome de justiça, onde brota o amor autêntico. Ele está “no trabalho, sem glória e sem reportagem, do operário, na luta diária da mãe de família, na canção que convida ao amor, no escritório do advogado que defende os direitos do oprimido...”69. O Reino é a justiça de Deus reinando no coração e na terra dos homens. É a felicidade divina nascendo no homem e fazendo-o caminhar cheio de esperança ao encontro definitivo da unidade total. Todavia, o “Deus tudo em todas as coisas” (1Cor 15, 28) e em todos ainda não se realizou completamente. Cristo continua a ter esperança e a possuir um futuro. Como vimos, seus irmãos e a pátria humana ainda não foram transfigurados com ele. Estão ainda peregrinando em meio às ambiguidades e no “vale de lágrimas” em que se manifesta o Reino de Deus, mesmo na fraqueza, no sofrimento e na perseguição. Ele convive e espera o feliz êxito em tudo e em todos. Por tudo isso nós continuamos vivendo na esperança que nos faz bradar: “Maranatha” – “Vem Senhor Jesus!” – para ver plenamente o que agora ainda está em germe e precisa ser desenvolvido. Estamos ainda com os olhos ofuscados e envolvidos no mistério, mas temos a certeza da realização em nós do que já aconteceu na pessoa de Jesus Cristo.

69 GOPEGUI, Ruiz de, Deus nos Caminhos da História, Loyola, S. Paulo 1972, 141.

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4.1 A Igreja e o Reino de Deus

Ates de mais nada, é preciso deixar claro que a Igreja e o Reino de Deus não se identificam. A Igreja procede e se fundamenta no Reino de Deus. Ela não é um fim em si mesma, é provisória, está a serviço do reino e busca sua consumação definitiva. A Igreja é fermento misturado com a massa para que a humanidade toda possa chegar a ser Reino de Deus. Sua missão é anunciá-lo ao mundo. No meio do mundo, a Igreja leva a causa de Cristo adiante, testemunha-a e realiza-a simultaneamente sob os véus da fé, do amor, da esperança e do mistério. Podemos até dizer que ela “se constitui assim o sacramento primordial da presença do Senhor Ressuscitado”70. Mas essa Igreja da qual nos falam os documentos, principalmente do Vaticano II, não está feita, definitiva, acabada, estática, eterna, sempre a mesma e imutável. “Enquanto não houver novos céus e nova terra onde habita a santidade a Igreja peregrina leva consigo... a figura deste mundo que passa e ela mesma vive entre criaturas que gemem e sofrem como que dores de parto até o presente e esperam a manifestação dos filhos de Deus”71. Ela é o germe e o início do Reino de Deus, e como tal espera e suspira com todas as suas forças unir-se ao seu Rei na glória perene. Assim, a meta do povo de Deus, da Igreja, é o Reino de Deus, iniciado por Cristo na terra e a ser estendido mais e mais até que no fim dos tempos seja consumado por Ele próprio. É essencial à Igreja considerar-se como inacabada, apenas iniciada, peregrina, sempre andando e anelando pela consumação, crescendo paulatinamente e se estendendo até os confins da terra. E neste peregrinar constante ela, a todo momento, tem que perscrutar

70 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, Vozes, Petrópolis 1972, 241.71 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, n. 48c.

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os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do evangelho para dar uma resposta adequada às interrogações eternas sobre o significado da vida presente e futura. Deve ela mostrar as manifestações de Deus no mundo de hoje à luz do evangelho e ela mesma tem que ser um sinal vivo da esperança do encontro pleno e definitivo do esposo com a esposa. Ela é a voz que clama no deserto e que anuncia que “o Reino de Deus, irradiante e definitivo, está ainda para vir, e virá quando Ele quiser, não quando nós quisermos”72. Enquanto esse encontro definitivo não se realizar, a Igreja “convida os portadores da esperança escatológica a ajudar na construção da cidade terrestre”73. A esperança na realização do “Deus tudo em todas as coisas” não afasta a Igreja da construção da cidade terrestre. A esperança escatológica não diminui a importância das tarefas terrestres, mas antes as apoia. As atividades humanas que procuram melhorar as suas condições de vida correspondem efetivamente ao plano de Deus. Os cristãos estão convencidos de que as vitórias do gênero humano são um sinal da magnitude de Deus. “Quando o homem cultiva a terra, com o trabalho de suas mãos ou por meio da técnica, para que ela produza frutos e se torne uma habitação digna da família humana inteira, e quando o homem participa conscientemente da vida dos grupos sociais, ele executa o plano de Deus, manifestado no início dos tempos, que é o de cuidar a terra e contemplar a criação, e se aperfeiçoar a si mesmo”74. A Igreja considera os deveres temporais tão importantes que chega a dizer que negligenciar os deveres temporais é também negligenciar os deveres para com o próximo e com Deus.

72 RAHNER, Karl, Graça Divina em Abismos Humanos, Herder, São Paulo 1968, 12.73 KLOPPENBURG, Boaventura, Vaticano II; Uma Igreja Diferente, Vozes, Petrópolis 1968, 32.74 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, n. 57b.

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A ação da Igreja a favor do progresso dos povos não é uma tática nova de apostolado, mas é antes de tudo uma exigência interna do próprio ser da Igreja. A mensagem cristã sem as obras do amor cristão seria uma contradição. Por isso ela tem o direito e o dever de denunciar as injustiças internacionais e nacionais. Ela se coloca a favor da igualdade de condições dos povos e dos homens. Ela luta contra os egoísmos particularistas que tornam mais insuportável a diferença de nível de vida entre os povos e entre os cidadãos das nações.

Contudo, a missão da Igreja não se realiza somente dentro do horizonte de papéis sociais e políticos, mas sobretudo “dentro do vasto horizonte de esperanças do futuro Reino de Deus, da futura justiça, da futura paz”75. Não no sentido de futurismo, pois o cristianismo não deve servir ao mundo para que o mundo continue sendo aquilo que é, mas para que se torne o que lhe está prometido através de uma constante transformação. “Por isso Igreja para o mundo não pode significar senão Igreja para o Reino de Deus”76. Não será um reino apenas temporal, inspirado em escatologismos humanos e terrenos, mas um reino que visa construir uma sociedade nova, um mundo novo, um homem totalmente novo à imagem do que já se realizou em Cristo Ressuscitado.

A Igreja peregrina precisa constantemente dar a razão da sua esperança (cf. 1Pd 3, 15) e, sobretudo deve testemunhar essa esperança, assumindo a busca pelo “novo” dentro do processo histórico atual, em vista do futuro.

4.2 O Fim – Começo

Depois de tudo que já abordamos sobre escatologia, restam ainda muitas interrogações que mereceriam algum estudo, assim como, por exemplo: Como será nossa morte e ressurreição? Como

75 MOLTMANN, J., idem, 392.76 Ibidem, 393.

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será o futuro do mundo? Haverá catástrofes? Como será o “Fim-Começo”? E assim por diante. Passemos a enfocar um pouco estas questões.

4.2.1 Nossa Morte e Ressurreição

Todo homem traz escrito no mais profundo do seu ser o destino para a morte, que gravita sobre sua existência como uma necessidade inevitável e uma constante ameaça. Ela atinge de modo tão profundo o homem que ela o faz mudar seu comportamento para com Deus, para com os homens e para com o mundo. O Vaticano II diz: “Diante da morte, o enigma da condição humana atinge seu ponto alto... a semente da eternidade... insurge-se contra a morte”77. A perda do contato com o mundo pelo advento da morte determina inevitavelmente no homem o temor de submergir no nada. A rebelião instintiva contra a morte, como ameaça de desaparecimento total, identifica-se com a própria experiência fundamental do homem como espírito e revela a transcendência do homem sobre o mundo. Revela sua ânsia de eternidade, sua esperança de plenitude. Mas como será essa morte e também a ressurreição? – Nossa morte realmente é uma cisão entre o modo de ser temporal e o modo de ser eterno no qual o homem entra. Na morte o corpo não é mais sentido como uma barreira que nos separa dos outros e de Deus, mas como radical expressão de nossa comunhão com a globalidade do cosmos e com Deus. “Por isso, seria maldição para o homem viver eternamente esta vida biológica”78. É preciso acontecer a morte para acontecer a ressurreição. Para o cristão a ressurreição não é revivificação de um cadáver, mas a plena realização das capacidades

77 CONCILIO VATIANO II, Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, n. 18.78 BOFF, L., Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 41.

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do homem corpo-alma. Diz L. Boros que “pela ressurreição tudo se tornará então imediato para o homem: o amor se desabrocha na pessoa, a ciência se torna visão, o conhecimento transforma-se em sensação, a inteligência se faz audição. Desaparecem as barreiras do espaço: a pessoa humana existirá imediatamente onde estiver seu amor, seu desejo e sua felicidade”79. A ressurreição exprime o termo final do processo de hominização. É a afloração plena do homem, latente no princípio-esperança e nas utopias. Seremos o que cada um de nós merece ser. A ressurreição conferirá a cada um a expressão corporal própria e adequada à estrutura do homem interior. Se a morte é o momento de total redimensionalização das possibilidades contidas na natureza humana, então nada de mais natural do que afirmar que é exatamente aí que acontece a ressurreição. Com a morte a pessoa se desliga das coordenadas do tempo. Por isso não há mais “espera” de uma ressurreição futura, cronologicamente falando. Isso seria uma representação antropomórfica. São Paulo e São João representam a ressurreição como dado que já está crescendo no homem e plenifica na morte, porque o mesmo Espírito que ressuscitou Jesus dará também vida nova aos corpos mortais (cf. 1Cor 6,14). Contudo, essa ressurreição na morte não é ainda plena, pois o homem tem uma ligação essencial com o cosmos e enquanto esse não for plenificado podemos dizer que ele ainda não ressuscitou totalmente. A passagem morte-ressurreição exige do homem uma opção radical, face a face, diante de Deus. Esta decisão determinará para sempre seu destino: salvação ou condenação. É uma passagem de crise radical em que a decisão é totalmente livre de qualquer condicionamento; o homem será ele mesmo numa total transparência

79 BOROS, L., cit. por BOFF, L. Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 41-42.

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e clareza. Ver-se-á a si mesmo como foi e como é, sem máscaras ou dúvidas, e então haverá o autojulgamento e o assumir da situação que lhe corresponde. Neste momento poderá dar-se uma total conversão. Ainda uma vez é oferecida ao homem a chance de decidir-se para a abertura total de si ao Absoluto e à totalidade da realidade criada. Embora totalmente livre, “neste momento céu e terra, Deus e seus santos, a Igreja e o corpo místico de Cristo estarão aí presentes com sua luz e intercessão. Não para eximirem o homem de se decidir. Mas para que ele, na espontaneidade de sua pessoa, se defina para Deus”80. Este juízo já começa em vida, embora em forma incipiente e imperfeita, sempre que nós nos decidimos e passamos por situações de crise. O juízo torna-se pleno na decisão final, quando certamente decidiremos por aquilo que decidimos durante a vida.

4.2.2 O Futuro do Mundo

Assim como nós falamos sobre o futuro do homem, podemos também falar sobre o futuro do mundo, do cosmos. É o que pretendemos fazer agora. O cosmos não está destinado a um fim em si mesmo, ou a uma catástrofe, ou ainda ao nada. “O cosmos todo, assim o crê a fé cristã, está chamando a uma total cristificação e divinização”81. A atual forma do cosmos irá ter um fim. Será um fim-meta, i. é, todos os dinamismos latentes do mundo, da matéria e da vida chegarão um dia ao desabrochar pleno. Há uma gestação cósmica em processo de perfeição. No fim o “viu que tudo era bom” da Criação se realizará em plenitude.

80 BOFF, L., Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 50.81 Ibidem, 106.

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Ver o mundo com os olhos de Deus é iniciar-se na esperança e começar a viver de uma grande promessa. É ver a ação criadora do próprio Deus em meio ao evoluir do mundo. Teilhard de Chardin tentou ver esse plano misterioso de Deus nas diversas etapas de evolução: cosmogênese-biogênese-antropogênese-cristogênese. Uma caminhada evolutiva que chega a Deus. Como o homem, o cosmos está destinado a participar da divinização e cristificação total. “A própria criação está a caminho, e o homo viator é solidário com a realidade, dentro de uma história aberta para o futuro”82. Esse processo também já está iniciado. Cada ser revela perspectivas novas do mesmo e único mistério. “Dentro do processo evolutivo, o cosmos revela Deus de formas que podem ser sempre aperfeiçoadas. O mundo não deu ainda tudo o que pode dar”83. O seu futuro é revelar Deus de modo perfeito e transparente. Deus estará de tal forma presente nos seres que se realizará a frase de São Paulo: “tudo em todas as coisas” (1Cor 15, 28). Então os seres formarão uma só orquestra em que cada instrumento, no seu lugar, tocará em sintonia, com o maestro que os criou, a afinada melodia da plenitude. Isso significa que as limitações do processo evolutivo, as doenças, as deformações, os desiquilíbrios desaparecerão para darem lugar à total divinização. Então emergirão os novos céus e a nova terra. O velho se tornará novo. Por isso a nova e derradeira manifestação de Cristo não deve ser apresentada como algo que vem de fora, dentro de uma catástrofe cósmica, e sim como um irromper daquilo que já estava presente e atuante no mundo. As passagens do Novo Testamento nos apresentam o fim do mundo numa linguagem apocalíptica, i. é, falam a partir do futuro em função do presente. Seu objetivo não é descrever a realidade do fim do mundo em seus mínimos detalhes, mas é levar à conversão, à

82 MOLTMANN, J., idem, 68.83 BOFF, L., Vida para além da Morte, Vozes, Petrópolis 1973, 109.

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seriedade da vida ou consolar em tempos de perseguição, através de recursos literários impressionantes. Por isso apresentam o futuro e os eventos salvíficos em termos de catástrofes cósmicas84. Hoje é preciso “evitar toda representação imaginária da revelação definitiva de Deus em Cristo, que terá lugar precisamente além do nosso espaço e do nosso tempo”85. Por vezes cai-se em antropomorfismos e cosmomorfismos ingênuos. Não sabemos nem como e nem quando se dará a consecução do futuro mundo. Passa certamente a figura desse mundo ambíguo, em que o bem e o mal crescem juntos em cada ser. O certo é que o novo céu e a nova terra surgirão como já vimos anteriormente.

4.2.3 “Maranatha” – Vem, Senhor Jesus!

“Enquanto ainda não se manifestou o que seremos” (1Jo 3, 2), continuamos vivendo como a Igreja primitiva, na expectativa do irromper do Reino de Deus, sem deixar nossa peregrinação em meio às tarefas temporais. Enquanto bradamos o “venha a nós o vosso Reino” e aguardamos o Deus que será tudo em todas as coisas (1Cor 15, 28) “Jesus Cristo continua a ter esperança e a possuir um futuro. Seus irmãos e a pátria humana (cosmos) ainda não foram transfigurados como ele”86. Enquanto não o vemos face a face (cf. 1Cor 13, 12) nossa vida continua impulsionada pela esperança em meio ao ainda não, contudo já do Reino. E procuramos ser no mundo o germe de esperança, do Deus da esperança (cf. Rm 15, 13) e de “Cristo nossa esperança” (Cl 1, 27), dando a todos a razão de nossa esperança (cf. 1Pd 3, 15). Em meio ao cor inquietum que vivemos, ansiamos pela realização daquilo que primeiro se realizou na vida,

84 Ibidem, 120.85 ALFARO, J., idem, 98.86 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, Vozes, Petrópolis, 1972, 283.

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morte e ressurreição de Cristo. Enquanto aguardamos os novos céus e a nova terra e a manifestação dos filhos de Deus, continuamos a entoar cheios de fé e esperança, mesmo em meio aos gemidos e dores de parto (cf. Rm 8, 19-22), o solene hino do “Maranatha” – Vem, Senhor Jesus! E quando o Senhor vier, então emergirá a “pátria e o lar da identidade”87. Alí não haverá noite, nem terá necessidade de luz de lâmpadas, nem luz do sol, porque o Senhor Deus iluminará os homens e eles reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 22, 5). Então emergirá o “novo céu e a nova terra em que vive a justiça” (2Pd 3, 13), onde “Deus enxugará toda a lágrima e onde não haverá nem morte, nem sofrimento, nem dor, nem choro” (Ap 21, 3). Tudo o que alienava o homem estará vencido e acontecerá o fim-começo. Deus estará de tal modo presente em todos os seres que “será tudo em todas as coisas” (1Cor 15, 28). Então não precisaremos mais peregrinar e ter esperança porque estaremos na plenitude do amor de Deus. Não precisaremos mais cantar o “Maranatha” – Vem, Senhor Jesus! – porque nosso coração descansará em Deus, pois o veremos face a face (cf. 1Cor 13, 12).

87 BLOCH, E., cit. por MOLTMANN, J., idem, 418.

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CONCLUSÃO

Ao terminarmos nosso trabalho, certamente várias conclusões podem ser apresentadas, mas também novas perguntas nos serão formuladas diante do mistério que envolve a nossa vida. Cada resposta se torna uma nova pergunta e uma nova esperança. Mas nem por isso podemos fugir de dar uma resposta sobre “A esperança que está em nós”. São Pedro nos diz que é preciso dar a todos a razão de nossa esperança (cf. 1Pd 3, 15). A esperança é uma situação profundamente humana. Estamos sempre na espera e tudo se nos apresenta como promessa. O ponto de chegada é de novo ponto de partida. Tudo está em aberto diante de nós porque somos seres em constante metamorfose e em busca da plenitude. Essa busca de plenitude nos lança para fora de nós mesmos, pois não nos sentimos acabados, mas em realização. Poderíamos dizer até que nós somos esperança. Somos o Homo Viator, peregrinos na esperança. Por isso todo ser humano contém em si o germe da esperança, mesmo em situações de “desespero”. O próprio suicida busca na morte algo melhor do que a situação de vida que não consegue mais enfrentar. E é por isso que encontramos no mundo de hoje tantos fenômenos de esperança, mesmo em meio ao pessimismo reinante. Todos, de uma ou outra forma, buscamos o “novo”, o ainda não existente. Os jovens querem um mundo novo, sem alienações e escravidão; querem um mundo mais humano e livre. A ciência e a técnica alimentam a esperança de um mundo que liberte sempre mais o homem daquilo que o limita e o prende. Os povos oprimidos buscam libertação, alimentados pela força da esperança que por vezes os leva até à morte. Os escritores se debatem ante o absurdo e o sentido da vida, na esperança de encontrar a melhor solução para o mistério do seu viver. Enfim, tudo parece indicar que o homem espera profundamente.

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O triste é quando o homem coloca sua esperança em bases falsas e frustrantes. Para que isso não aconteça é preciso ir além das bases simplesmente humanas e colocar um fundamento divino, o qual nós podemos descobrir desde que iniciou a história humana. Deus se faz promessa e realiza na história a esperança humana. E só Ele poderá saciar nosso coração inquieto, como diz Santo Agostinho. O próprio Deus, através de Jesus Cristo, torna-se nossa esperança. Nele já se realizou o ideal humano em plenitude. Com Ele veio o Reino de Deus entre os homens. E sua promessa se estende a todos. Ressuscitaremos como Ele para uma vida nova em que desaparecerão todas as alienações e limitações. Mas enquanto isso não se realizar, enquanto Cristo ainda não for “tudo em todas as coisas” (1Cor 15, 28) nós peregrinamos na esperança de chegar e vamos construindo o Reino neste mundo, pois ele já irrompeu entre nós. Enquanto a plenitude não chegar, continuaremos na expectativa do “já” e do “ainda não” do Reino. Enquanto não estivermos face a face (cf. 1Cor 13, 12) ante o Senhor, quando Ele “enxugará toda a lágrima” (Ap 21, 3), continuaremos a entoar cheios de fé e esperança, mesmo em meio aos gemidos e dores de parto (cf. Rm 8, 19-22) ou alegrias, o solene hino do “Maranatha” – Vem, Senhor Jesus!

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