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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO “A VEZ DO MESTRE” DOCÊNCIA SUPERIOR A ÉTICA EDUCACIONAL NO ENSINO FUNDAMENTAL CLÁUDIA DA SILVA GOMES ORIENTADOR: Prof. Robson Materko RIO DE JANEIRO 2001

A ÉTICA EDUCACIONAL NO ENSINO FUNDAMENTAL DA SILVA GOMES.pdf · inspirações teóricas a idéia de se encontrar a felicidade no centro das questões éticas. A sabedoria para Platão,

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

PROJETO “A VEZ DO MESTRE”

DOCÊNCIA SUPERIOR

A ÉTICA EDUCACIONAL NO ENSINO FUNDAMENTAL

CLÁUDIA DA SILVA GOMES

ORIENTADOR:

Prof. Robson Materko

RIO DE JANEIRO

2001

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

PROJETO “A VEZ DO MESTRE”

DOCÊNCIA SUPERIOR

A ÉTICA EDUCACIONAL NO ENSINO FUNDAMENTAL

CLÁUDIA DA SILVA GOMES

Trabalho monográfico apresentado como requisito

parcial para a obtenção do Grau de Especialista em

Docência Superior.

RIO DE JANEIRO

2001

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Dedico este trabalho à minha família, pelo

apoio e incentivo de sempre.

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À Deus, por ter me dado forças para alcançar mais

uma vitória.

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RESUMO

O presente texto visa tecer alguns comentários acerca da problematização da questão

ética no especto das práticas escolares, particularmente no que diz respeito à sua inserção

ensino fundamental. Para tanto, propõe uma configuração inicial do tema em diferentes

âmbitos da ação humana, para depois configurá-lo teoricamente, distinguindo alguns de seus

matizes conceituais. Em seguida, discute a inclusão do tema no campo educacional por meio

da proposição de alguns valores e preceitos mínimos no que tange à ação pedagógica e ao

convívio entre os pares escolares.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 07 2. ÉTICA E SOCIEDADE: EM BUSCA DE UMA ÉTICA UNIVERSAL 09 3. A QUESTÃO ÉTICA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR 13 3.1 Sobre o conceito de ética 15 3.2 A ética na educação escolar: do currículo ao convívio 18 3.3 Interpelações ao âmbito ético das práticas escolares 21 3.4 Alguns encaminhamentos éticos para a prática escolar 25 3.5 Ética e cidadania na escola 27 4. ÉTICA E CURRÍCULO 29 4.1 Experiências educacionais 29 4.2 Objetivos gerais de ética para o ensino fundamental 32 4.3 Os conteúdos de ética para o primeiro e segundo ciclos 32 4.4 A importância do tema no ensino fundamental 34 5. CONCLUSÃO 38 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 40 ANEXO 42

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1. INTRODUÇÃO

Nos dias atuais o pensamento ético moderno está sendo abordado com muita

freqüência, e para que um ser humano se socialize melhor ele precisa ter uma conduta baseada

no respeito à sociedade.

A exigência ética fundamental hoje consiste em recuperar a possibilidade de

reconstruir relacionamentos de comunhão de pessoas e comunidades. Ética hoje significa bem

estar social, e com o desenvolvimento de geração após geração (os hábitos, costumes, enfim o

modo de viver das pessoas mudam, e mudam também os conceitos e o novo paradigma que se

faz da Ética moderna hoje: ser uma civilização cada vez mais desenvolvida intelectualmente),

desenvolve-se também o seu poder culto e a exigência torna-se cada vez mais constante em

qualquer área que possa afetar o bem estar social. Assim o indivíduo e principalmente os

líderes têm que assumir um compromisso para a melhoria da vida social.

A Ética pode ser singularizada ou pluralizada. Em termos objetivos, a ética integra a

filosofia servindo para estabelecer o que é bom ou mau, e para a distinção entre uma

obrigação moral e um dever moral. No sentido mais geral, é um conjunto de princípios de

cunho moral para regular ou governar grupos e indivíduos inseridos num contexto social real.

A Ética se presta, assim, para balizar, como um autêntico referencial, os valores

básicos que orientam o comportamento do homem em sociedade. Daí se dizer que a ética é a

ciência do comportamento moral dos homens em sociedade.

A rigor, a Ética tem por objeto a própria moral, mas está inserida como uma das

facetas do comportamento humano. Ela difere da moral porque assenta-se em bases e

princípios científicos, tendo ainda um caráter de utilidade.

A Ética serve para mostrar às pessoas os valores e os princípios que devem nortear a

sua existência. Logo, a ética serve, em termos práticos, para aprimorar e desenvolver o

sentido da moral e influenciar as condutas, em face da realidade.

A Ética moral, enquanto ciência que estuda as virtudes da humanidade, vem sendo

especulada desde os tempos antigos até os nossos dias, pelos mais ilustres filósofos como

Sócrates, Platão, Aristóteles, Rousseou, Kant, Hegel, Kierkergard e outros. Contudo, sabe-se

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que o primeiro código ético, enquanto regras a serem cumpridas, data segundo a Bíblia, dos

tempos do antigo testamento com os Dez Mandamentos, mas mesmo assim já havia quem os

transgredia. Ainda dentro de uma visão Bíblica, entende-se que o descumprimento das leis

divinas tem origem desde a criação da terra com Adão e Eva. Há quem fale que o contraste de

moralidade hoje reflete o pecado cometido no início dos tempos.

Numa abordagem mais filosófica, será comentado sobre o ético na concepção de

alguns filósofos, fazendo entre eles uma relação de modo a deixar claro as divergências e

convergências de pensamentos no que tange as suas concepções de Ética. Também será

abordado, a partir de um prisma mais social, as desigualdades de pensamento que legitimam a

relativização do comportamento ético, desde as sociedades gregas, fazendo uma reflexão

histórica nas épocas em que mais transpareceu o amoral. Ainda numa visão sociológica,

analisar-se-á alguns fatores que fortalecem o descaso da virtude moral com as sociedades de

hoje. De forma mais prática, e voltada para o objetivo do presente texto será abordada a

questão da ética educacional no ensino fundamental, focalizada na forma de transmissão do

conhecimento.

Para tanto será realizada uma pesquisa bibliográfica e documental com os principais

autores que discorrem a respeito do tema.

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2. ÉTICA E SOCIEDADE: EM BUSCA DE UMA ÉTICA UNIVERSAL

A ÉTICA como "... reflexão científica, filosófica e até teológica..."1, vem sendo

estudada desde a antigüidade pelos mais renomados filósofos. Sócrates, consagrado "fundador

da moral"2, destacou-se nesta área da filosofia por buscar em suas indagações, a convicção

pessoal dos transeuntes para obter uma melhor compreensão da justiça. Sócrates acreditava

nas leis, mas como pensador capaz de pôr em prova o próprio subjetivo, as questionava,

gerando um descontentamento aos conservadores gregos da época. A condenação de Sócrates

a beber veneno ainda é um questionamento, cuja resposta pode estar nas entrelinhas dos

argumentos conservadores do poder: "... as leis existiam para serem obedecidas e não para

serem justificadas."3

Já Platão (427-347 a.C.), admirável discípulo de Sócrates, articulava em suas

inspirações teóricas a idéia de se encontrar a felicidade no centro das questões éticas. A

sabedoria para Platão, não está expressa no saber pelo saber, ou melhor, não se identifica o

sábio pela sua grandeza de conhecimentos teóricos, mas pela sua grandeza de virtudes. O

homem virtuoso tende a encontrar e contemplar o mundo ideal.

Aristóteles (384-322 a.C.) também pensador da Grécia antiga, fundamentou maior

parte de seu postulado teórico no empirismo onde, baseado no tipo de sociedade, desenvolveu

algumas obras que enfoca as questões éticas daquele tempo: Ética a Eudemo, Ética a

Nicômaco e uma Magna Moral. Aristóteles não descarta a relação entre o Ser e o Bem, porém

enfatiza que não é um único bem, mas vários bens, e que esse bem deve variar de acordo com

a complexidade do ser. Para o homem, por exemplo, há a necessidade de se ter vários bens,

para que este possa alcançar a felicidade humana. A Virtude em Aristóteles, está entre os

melhores dos bens.

Com o cristianismo, percebe-se que encerra-se o papel da filosofia moral enquanto

determinante do que é ou não Ético. As ações humanas agora se norteiam na divindade de um

1 VALLS, Álvaro L. M. O que é Ética. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.7. 2 Id. Ibid., p. 17 3 Idem.

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único Deus, e não mais no politeísmo como na cultura grega. O Ético reflete agora a

consciência interior de cada um, é o que estabelece o coração do indivíduo. Em coerência com

essa visão cristã de ação moral, Rousseau já por volta do século XVIII, argumenta que a

moralidade é obra divina. O agir naturalmente dentro dos mais puros princípios Éticos reflete

a existência de Deus em nossos corações. Em Rousseau, ao se obedecer o dever externo,

obedece-se aos próprios corações. Para ele, os homens nascem puros e bons, a sociedade é

quem os corrompem: "... se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa,

imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade foi pervertida pela sociedade

quando criou a propriedade privada e os interesses privados..."4

Em oposição a essa concepção, encontra-se Kant no final do séc. XVIII. Kant se

contrapõe a Rousseau por negar a existência da "bondade natural".5 Nos corações dos homens

só existem sentimentos negativos e para se conseguir superar todos esses males, deve-se

almejar uma Ética racional e universal identificada no dever moral.

Como contrário a Rousseau e Kant, encontra-se Hegel, pensador alemão do atual

século, que encara a questão Ética de um outro prisma. Opondo-se ao argumento do coração

como determinante da vontade individual de Rousseau, e ao da moral racional de Kant, Hegel

diz que os homens são seres indissociáveis. O ser humano é histórico e vive o coletivo em

todas as suas ações, associado aos seus costumes e as suas manifestações culturais. É por esse

ângulo que Hegel argumenta sobre a vontade coletiva que guia as ações humanas e

comportamentos. A família, o trabalho, a escola, as artes, a religião etc. norteiam os atos

morais e determinam o cumprimento do dever. É também por essa linha de pensamento que

se tentará direcionar o raciocínio enfocando as relações Éticas no contexto político-social

expondo a relativização do comportamento ético nos últimos tempos.

A Ética como conjunto de normas e valores que regem uma sociedade deve

necessariamente refletir a consciência e as ações desse povo, assim como trazer consigo o tipo

de organização que alimenta essa sociedade. Acredita-se na universalidade do comportamento

e das ações éticas, assim como na sua transformação relativa às transformações das

sociedades que as impera, mas quando se volta às sociedades da Grécia antiga e se faz o

percurso histórico até os dias atuais, encontra-se diversidade de virtudes e comportamentos,

ao ponto de se colocar em cheque essa virtude que tanto se sonha para todos. Quando se

analisa a educação espartana e a ateniense, ambas vividas numa mesma época, entra-se no

4 Marilena CHAUÍ, Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1998, p. 344. 5 Idem

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feudalismo e verifica-se o contraste entre os servos e os senhores feudais, os dogmas da Igreja

enquanto posicionamento do clero como meio de conservar seu poder em detrimento à vida

dos que questionavam tais dogmas. Continua-se caminhando até o século XVIII e depara-se

com as injustiças sociais nas quais a miserável classe proletariada subordinava-se em plena

revolução industrial, trabalhando quatorze a quinze horas por dia, sem restrição de cor, raça,

sexo e idade, com alguns ficando até neuróticos em decorrência do volume de trabalho que

havia, e tudo para beneficiar um pequeno grupo de capitalistas que emergiam em detrimento à

vida dos necessitados. Nesse caso, seria essa a Ética do capitalismo? , e no caso do clero, a

Ética da Igreja? Sim, certamente, mas é importante também se refletir sobre o lado moral e o

princípio Ético universal idealizado por Kant. Os costumes e as regras morais impostas pelo

clero na idade média e pelos capitalistas no século XVIII, não refletiam com certeza, a

consciência da maioria da população, de suas respectivas épocas, nem tão pouco, o dever

moral dos submissos não atendiam e nem atendem os interesses dos dominadores.

Hoje, à beira do século XXI, se depara com situações que fogem aos anseios de uma

Ética universal, onde pessoas injustiçadas perdem a vida, morrem de fome, passam as piores

necessidades e situações de constrangimento por serem negras ou pobres. Instituições como a

família, Igreja e organizações culturais ainda cultivam no seio de suas atividades valores

representativos de uma Ética padrão e de valores condizentes com a noção humanitária de

vida, porém por outro lado, sente-se na pele ações de uma minoria que infringe as normas

legais e ultrapassam as barreiras do ético na ânsia de adquirir ou conservar seu poder. Em

apoio e como cúmplice deste processo de decadência moral, encontra-se os meios de

comunicação de massa. Com enorme força de poder de conscientização, eles funcionam de

maneira a levar aos lares da sociedade, as situações mais ilusórias e pervertidas do social,

fazendo com que seu público caia no abismo do amoral. Lamentavelmente, a televisão como

meio de comunicação que atinge em maior proporção a população em todas as camadas,

desponta na frente como meio que mais distorce a realidade e infiltra na população a ideologia

dominante, quando ao invés disso, poderia, como ocorre em alguns casos, utilizar tal poder no

sentido de esclarecer, educar e conscientizar a população, almejando uma sociedade

igualitária onde o branco, o negro, o rico e o pobre tenham direitos iguais.

Particularmente, o Brasil dos últimos cinqüenta anos enfrentou algumas altas e baixas

no que tange a liberdade de vida de maneira digna. A que mais repercutiu foi o golpe de 1964

que originou o despertar da comunidade estudantil e da sociedade em geral para questões

primárias como liberdade e democracia. A repressão originada pelo golpe sacrificou toda uma

geração com todos os meios possíveis de tortura e constrangimento. Uns mortos, outros

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torturados e outros para não serem mortos ou presos passaram a viver no exílio, mesmo assim

não escapavam das perseguições. Os quase dez mil brasileiros que viviam no exterior,

principalmente na América latina, não se intimidaram com essas repressões, mesmo exilados

em países diferentes, formaram uma corrente contra-ditadura não deixando o espírito do

patriotismo morrer. Pessoas como Paulo Freire, Gilberto Gil, Herbert de Souza e outros,

trouxeram do exílio verdadeiras lições de vida e conhecimentos, contribuindo com a

educação, cultura e dando sua participação de solidariedade humana. Está expresso ai nas

ações dessa gente o verdadeiro significado de comprometimento moral com a sociedade.

Hoje, início de um novo século, sente-se que se alcançou algumas melhorias na

sociedade, principalmente no que tange à conscientização de uns poucos para as questões

morais que norteiam a sensibilidade do homem às situações críticas e polêmicas da sociedade.

Projetos como a “Ação da cidadania contra a miséria e pela vida”, e a própria tentativa de dar

um basta na corrupção política do país, resgatou a confiança do povo para um Brasil melhor

onde habite o dever do valor moral e de uma postura socialmente ética.

Com certeza, disparidades sociais são vividas em todo o mundo. A existência de

dominantes e dominados parece ser o requisito principal para se viver em sociedade. Mas se

está caminhando para essa superação, e certamente, a educação é a melhor maneira de se

montar a própria estratégia no sentido de se alcançar uma padronização nas ações e

comportamentos dos homens.

O ideal seria se atingir o idealismo kantiano, de uma Ética universal onde todos sejam

norteados pelos mesmos princípios e eticamente puros. Entende-se que isso há de ser

conseguido aos poucos dentro de um processo educativo e cauteloso. Ao ver da autora, é

somente através da educação, que se conseguirá concretizar um projeto de "homenização" e

de se adquirir essa conscientização política.

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3. A QUESTÃO ÉTICA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

No Brasil, a década de 1980 e, em particular, a de 1990 testemunharam mudanças

vertiginosas no que se refere à estruturação da vida social, à ordenação do cotidiano das

pessoas. Com a lenta e gradual democratização das instituições políticas, que culminou com a

solidificação do processo eleitoral em todos os níveis de representação política, viu-se nascer

igualmente novas formas de organização no interior das diferentes instituições sociais, antes

amalgamadas de acordo com uma espécie de padrão dominante e estável de funcionamento.

A família, a mídia, o mundo do trabalho, isso é fato, não são mais os mesmos de vinte

anos atrás. E, em geral, se dá conotações positivas a essas transformações como algo positivo,

afinal de contas, passou-se a viver em um mundo mais flexível, mais democrático, ou, se se

quiser, menos uniforme, menos opressivo. O mesmo pode ser dito com relação aos padrões de

comportamento, de sexualidade, de consumo, de educação dos filhos, de relação entre as

pessoas etc.

Entretanto, não se pode negar que essas mesmas transformações findaram por produzir

rachaduras indeléveis nos modos de funcionamento dessas instituições clássicas, e, por

conseqüência, na maneira com que se vinha concebendo os papéis e funções desses atores

sociais nucleares. Todos já ouviram, ou sentiram na própria pele, o bordão: "a crise da

família", "a crise do casamento", "a crise das relações de trabalho", "a crise da democracia".

Essa idéia tão disseminada de descompasso ou desarranjo das instituições parece

sinalizar um paradoxo: se, por um lado, as múltiplas e rápidas transformações sócio-históricas

das últimas décadas propiciaram uma vivência civil mais democratizante e pluralista, por

outro lado, elas têm sido tomadas, não raras vezes, como motivo de instabilidade e, portanto,

de exasperação para esse homem de fim de século. No dia-a-dia, o que desponta, quase

sempre, é um tipo de indagação comum: nos dias de hoje, o que é exatamente ser um bom pai,

um bom companheiro, um bom profissional, e assim por diante?

Uma situação exemplar dessa espécie de "mal-estar" civil pode ser verificada em

alguns programas televisivos em voga, já há algum tempo, nas emissoras brasileiras. Em

alguns deles se vêem personagens confrontando-se com situações dilemáticas cujo desfecho é

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"decidido" pelo telespectador, convocado a exercer alguma coisa parecida com o "sagrado

direito" do voto. Em outros, sensivelmente mais explícitos, se vêem dilemas corriqueiros da

vida narrados, em ato, pelos seus próprios protagonistas, sempre enredados em algum tipo de

trama confrontativa e de difícil solução imediata.

Verídicos ou não, sensacionalistas ou não, esses "shows da vida" parecem chamar a

atenção de "gregos e troianos" pelo seu teor de perplexidade e comoção. O homem se

identifica com esses personagens/protagonistas sempre que eles se mostram incertos,

inseguros quanto a como proceder frente às agruras de sua existência concreta, às exigências

voláteis de seu lugar social. Afinal, qual a conduta sustentável ou desejável ante determinados

problemas da vida contemporânea: pais às voltas com filhos rebeldes, enfermeiras e médicos

diante de quadros complexos, juízes e advogados premidos por circunstâncias ambíguas,

políticos assediados por propostas ilícitas, consumidores insatisfeitos com vendedores ou

prestadores de serviços inescrupulosos, vizinhos em litígio aberto, relações civis permeadas

por intolerância ou discriminação.

O que parece se evidenciar quando se colocam em xeque esses impasses da vida

coletiva é uma demanda de "ressignificação" dos papéis e funções dos atores das diferentes

instituições que estruturam e condicionam nossa vida em sociedade. Em certo sentido, pode-

se afirmar que tais discussões apontam invariavelmente para a questão ética, uma vez que se

referem a procedimentos, condutas e aos valores aí embutidos.

Assim, a ética é um daqueles temas que, a partir dessas duas décadas, passaram a

figurar como um dos grandes eixos de preocupação e discussão entre as pessoas. Discutimo-

la, por exemplo, em determinados campos sociais: a ética na política (é correto trocar votos

por facilidades?, receber propinas?); a ética na ciência (é correto fabricar clones humanos?;

utilizar doentes como cobaias sem a sua anuência); a ética na religião (é correto condenar o

aborto em quaisquer circunstâncias?; trocar absolvições por doações?).

Discute-se também em certas práticas profissionais: a ética na medicina (é correto

sonegar informações ao paciente?; prolongar um tratamento visando lucro?); a ética na mídia

(é correto expor tanta violência?; desvelar publicamente a intimidade das pessoas?); ou ainda,

a ética no aparelho policial (é correto perseguir mais freqüentemente cidadãos negros?; atirar

antes e perguntar depois?).

Para todas essas perguntas se tem respostas óbvias, na ponta da língua - o que significa

que, mesmo que não se consiga vislumbrar uma conduta invariavelmente ética nesses campos,

pelo menos se deduz o que deve ou pode ser feito por esses atores institucionais, assim como

o que não se deve ou não se pode fazer nesses âmbitos da ação humana. Em linhas gerais, o

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que está em foco no enfrentamento ético de uma determinada prática social ou profissional

são as fronteiras desta ação (até onde se pode chegar?) e a "qualidade" do trabalho

desenvolvido (como fazê-lo?).

3.1 Sobre o conceito de ética

A despeito de se tratar de uma idéia nebulosa e, de certa forma, controvertida, mas

bastante recorrente nos dias de hoje, é importante estabelecer um solo comum de significação

para o termo. No dicionário especializado de Lalande6 a ética é entendida como "a ciência

que toma por objeto imediato os juízos de apreciação sobre os atos qualificados de bons ou

de maus". Já em um dicionário comum, uma das acepções do verbete ética remete ao

"conjunto de princípios morais que se devem observar no exercício de uma profissão;

deontologia".7

Amparados por esses dois significados clássicos, e ao mesmo tempo divergindo deles,

entende-se que se trata do valor (o para quê) e da direção (o para onde) que se atribui a - ou

subtrai de - determinadas práticas sociais/profissionais, desde que atreladas a certos preceitos,

a certas condições de funcionamento. Ou seja, certas ações humanas requerem uma razoável

visibilidade, tanto por aqueles que as praticam quanto por aqueles que delas são alvo, quanto a

seus princípios e fins específicos, para que, na qualidade de meios, possam ser julgadas como

procedentes, ou não, legítimas, ou não, eficazes, ou não.

Nessa perspectiva, a ética pode ser compreendida inicialmente como aquilo que

vetoriza determinada ação, ao ofertar-lhe uma origem e uma destinação específica. Assim, por

exemplo, se está sempre a julgar se a conduta de um profissional foi condizente com o que

dele se esperava, com aquilo que ele "deveria" fazer ou ter feito. Em outras palavras, se

acalenta expectativas sobre determinadas práticas (e, por extensão, sobre determinadas

condutas) e se faz uma “avaliação” de acordo com o crivo de um "dever ser" característico. É

talvez por essa razão que existem códigos de ética para algumas carreiras, que sinalizam

regras de conduta razoavelmente consensuais e, até certo ponto, suficientemente claras não só

para o conjunto dos profissionais, mas também para os outros envolvidos.

Isso não significa que tais regras implicariam necessariamente um conjunto invariante

de normas pré-programadas que deveriam ser reproduzidas ipsis litteris por cada profissional

6 LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Porto: Res, [s.d.] v.1. 7 MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

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em sua ação específica, e, portanto, generalizadas para toda a categoria profissional. Mesmo

porque a conduta é sempre particularizada pelas condições pontuais: a clientela é outra a cada

vez e o próprio profissional é diferente a cada vez porque é constantemente transformado pela

própria ação.

Não obstante, é imprescindível que algumas regras comuns de conduta sejam

conhecidas e praticadas pelos agentes daquela determinada prática profissional em seu

exercício concreto, de tal forma que o campo de atuação seja preservado, resguardado de

ações espontaneístas, não sistematizadas, e, portanto, passíveis de engodo ou ludíbrio. Desse

modo se consegue obter, principalmente como clientes ou como usuários de determinado

serviço ou instituição, um pouco dessa clareza sobre a ética do agente institucional ou do

profissional em questão, assim como sobre a validade da prática em foco, quando cada um se

dá por satisfeito com o atendimento prestado, ou, ao contrário, quando nele detecta

negligência e/ou inoperância.

Entretanto, nem sempre essa relação entre aquele que avalia e aquele que é avaliado é

simétrica, ou mesmo congruente, o que pode desencadear certos equívocos. E é aí que a noção

de "ética" desponta como uma espécie de árbitro da ação, no que tange à sua procedência, sua

legitimidade, sua eficácia.

Nesse ponto, faz-se necessária uma distinção conceitual. O campo da ética não se

confunde com o das leis, e tampouco com o da moral. Trata-se de um campo suportado por

regras até certo ponto facultativas, isto é, que não exigem uma submissão inquestionável, mas

um engajamento autônomo, uma assunção voluntária, na medida em que prescrevem, no

máximo, pautas possíveis de convivência entre os pares de determinada ação. Tais regras não

são, portanto, nem dogmáticas, como no caso da moral, nem compulsórias, como no caso das

leis. Desta feita, as regras - vetores por excelência do espectro ético de determinada ação - não

primam por absolutização. Elas, sempre relativas, não figuram necessariamente nem como

verdadeiras nem como falsas, mas apenas funcionam ou não, podem ser obedecidas ou não,

podem metamorfosear-se ou não, dependendo do contexto em que se concretizam. Trata-se de

preceitos regionalizados, particularizados, nunca universais.

Os campos legal e moral, por sua vez, são mais afeitos às normas, às prescrições

tácitas. Assim, os postulados morais e os legais são praticamente idênticos para todos, em

detrimento do contexto específico da ação, das circunstâncias de sua execução. Pode-se dizer

que, em determinado contexto sócio-histórico, eles sobrepairam, ou atravessam, o conjunto

das práticas humanas indistintamente. Não matar ou não roubar, por exemplo, são,

atualmente, postulados relativos a quaisquer ações humanas, e, mesmo vale lembrar, num

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caso limite como o da guerra. Nessa situação de conflito generalizado, pode-se dizer que é

possível e necessário matar, mas apenas militares inimigos, jamais os civis.

Outra diferença fundamental é que o campo da ética é muito mais mutante do que o da

moral e o das leis, uma vez que se encontra em ebulição constante: julga-se "caso a caso",

pondera-se "as circunstâncias", leva-se em conta os "antecedentes", etc. Além disso, nem tudo

o que é considerado ético hoje o será amanhã. O mesmo não se pode dizer com relação à

moral e às leis. Seus preceitos nucleares persistem, são nossos velhos conhecidos.

Note-se, assim, que a violação de um postulado ético não é considerada

automaticamente nem uma contravenção legal nem uma transgressão moral, mas tão-somente

uma "falta", uma vez que contraria um conjunto de preceitos tomados como necessários,

eficazes ou apenas positivos, "bons". Algo, pois, que teria sido "melhor" se tivesse sido de

outra maneira. E isso é o máximo a que a interpelação ética pode chegar.

A propósito, de um ponto de vista psicológico, pode-se dizer que o homem só se torna

alguém à medida que se posiciona numa relação com outrem. São relações, portanto, que o

constituem como sujeito. Disso decorre que não se pode afirmar algo com absoluta segurança

sobre Ana ou João se tomados em si mesmos, mas sobre Ana como mãe, ou como filha, como

profissional, como amante, ou sobre João como amigo, como pai, como consumidor. Além

disso, há que se levar necessariamente em conta o outro, parceiro compulsório da equação que

institui o homem como sujeito no (e do) mundo, a quem se toma ora como objeto, oponente,

modelo ou auxiliar nas próprias ações. Ana só é filha em relação à sua mãe, ou profissional

em relação a um cliente; João só é pai em relação a seu filho, ou consumidor em relação a um

vendedor. Portanto, disso decorre que as relações/lugares institucionais passam a ser o núcleo

e foco de atenção quando se dispõe a enveredar pelo âmbito ético das práticas

sociais/profissionais.

Partindo, então, do pressuposto de que toda ação implica uma parceria entre

semelhantes, embora desiguais, poder-se-ia sustentar que, de um ponto de vista institucional,

uma espécie de "contrato" entrelaça, as pessoas posicionando-as imaginariamente em relação

ao outro complementar, bem como delimitando seus respectivos lugares e procedimentos, e,

conseqüentemente, marcando a diferença estrutural que há entre eles. Um contrato invisível

mas com uma densidade extraordinária, posto que suas cláusulas balizam silenciosamente o

que se faz e o que se pensa sobre o que se faz. Uma espécie, enfim, de "liturgia" dos lugares,

se se quiser.

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18

Em suma, segundo Srour,8 o campo da ética fundamenta-se em torno da fidelidade, ou

não, às regras de um determinado "jogo" instituído/instituinte, as quais evidenciam-se,

principalmente, quando o jogo é mal jogado. Uma vez bem jogado, elas submergem

novamente, silenciam-se, retornam à qualidade de pressuposto básico. Um enunciado sintético

talvez possa aglutinar a complexidade do conceito: ética é aquilo que, implicitamente, regula

(ou deveria regular) determinada prática social/profissional para os nela envolvidos. Ou, ainda

mais condensadamente, aquilo a partir do que deriva a confiança no outro - aquela espécie de

segurança íntima e apaziguadora a que se acede quando em boa companhia.

3.2 A ética na educação escolar: do currículo ao convívio

Se, como cidadãos (ou mesmo usuários), se tem experimentado o hábito de avaliar

certas práticas sociais e profissionais a que se está ligado no dia-a-dia, não se pode dizer que

o mesmo venha ocorrendo explicitamente e com a mesma freqüência quando se coloca a

educação escolar em pauta. Raras são as vezes em que a discussão ética é presenciada de

modo explícito no campo pedagógico, principalmente entre os pares escolares - e a lacuna

bibliográfica sobre o tema é uma evidência mais que suficiente do estado incipiente das

discussões na área. Além disso, se a escola é uma das práticas sociais (e o trabalho

pedagógico, uma das práticas profissionais) fundamentais da vida civil contemporânea, algo

neles parece estar fora da ordem ou, no mínimo, em descompasso quando comparado à

efervescência de outras instituições sociais.

Entretanto, é preciso reconhecer que, apesar dessa espécie de anacronismo e auto-

isenção, alguns esforços concretos vêm sendo formalizados com o intuito de inaugurar um

corpo de discussão sobre a questão ética na educação escolar. Refere-se aqui aos Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCNs)9 e particularmente aos "temas transversais" neles inseridos, os

quais se referem a um conjunto de temáticas sociais, presentes na vida cotidiana, que deverão

ser tangenciadas pelas áreas curriculares específicas, impregnando "transversalmente" os

conteúdos de cada disciplina. Foram eleitos, assim, os seguintes temas gerais: ética,

pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual, além de trabalho/consumo.

8 SOUR, Robert Henry. Poder, cultura e ética nas organizações. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 67. 9 BRASIL. Ministério de Educação e Cultural. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, ética. Brasília: SEF, 1997, p. 55.

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Visando à formulação de um conjunto de diretrizes pedagógicas gerais e específicas

capaz de nortear os currículos e seus conteúdos mínimos em escala nacional, os PCNs são,

sem sombra de dúvida, uma iniciativa digna de interesse e:

Como o objetivo deste trabalho é o de propor atividades que levem o aluno a pensar sobre sua conduta e a dos outros a partir de princípios, e não de receitas prontas, batizou-se o tema de Ética /.../. Parte-se do pressuposto que é preciso possuir critérios, valores, e, mais ainda, estabelecer relações e hierarquias entre esses valores para nortear as ações em sociedade.10

Dentro desse espírito dignificante, quatro eixos de conteúdos relativos ao tema foram

selecionados, todos eles atrelados ao princípio básico de dignidade do ser humano, a saber:

respeito mútuo, justiça, diálogo e solidariedade. Em que pesem as possíveis controvérsias em

torno dos próprios PCNs, quanto mais da inclusão dos temas transversais nos currículos

brasileiros, é necessário destacar que se trata de uma sistematização substancial, uma vez que

estrutura uma série de questões imprescindíveis a serem incluídas nos planos curricular e dos

conteúdos da "educação moral" dos alunos.

Não obstante, o próprio documento alude a algo inusitado:

Ao lado do trabalho de ensino, o convívio dentro da escola deve ser organizado de maneira que os conceitos de justiça, respeito e solidariedade sejam vivificados e compreendidos pelos alunos como aliados à perspectiva de uma "vida boa". Dessa forma, não somente os alunos perceberão que esses valores e as regras decorrentes são coerentes com seus projetos de felicidade como serão integrados às suas personalidades: se respeitarão pelo fato de respeitá-los.11

Há que se destacar, de imediato, a singularidade e a potência de idéias simples como

as de "vida boa" e "felicidade". O que mais se quer quando se almeja a ética? No limite, se

podem acrescentar: a alegria e o bem-querer.

Outro dado importante refere-se ao fato de que não basta ensinar conceitos e valores

democratizantes, é preciso que eles sejam "vivificados" no convívio intra-escolar, entre os

pares da ação escolar, especialmente entre professores e alunos. É esse, o entender da autora,

o grande diferencial, ou ponto de partida, para uma discussão abrangente sobre a ética no

terreno escolar - o que, em certo sentido, os PCNs deixam a desejar.

Convém destacar que as reflexões aqui desenvolvidas em torno da ética como

"convívio" não se confundem com os esforços de sistematização da ética como "tema

transversal", como se vê nos PCNs. Embora uma não prescinda da outra, trata-se de

discussões paralelas e até certo ponto autônomas, visto que a primeira visa os dilemas

10 Id. ibid., p. 69. 11 Id. ibid., p. 80.

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imanentes ao trabalho pedagógico lato sensu, enquanto a segunda enfoca prioritariamente o

currículo e os conteúdos escolares stricto sensu. É sobre o primeiro eixo, ou seja, o da ética

como reguladora do convívio escolar, que a autora pretende se debruçar a partir de agora.

De acordo com o PCN,12 ao se afirmar que o espectro ético de determinada prática

social/profissional se dá a conhecer, pelo menos em parte, por meio das expectativas e da

avaliação que a clientela e o público mais geral (a comunidade e as famílias, por exemplo)

operam quanto à ação dos agentes/profissionais, cabe-nos agora indagar: o que se tem

pensado e dito a respeito de nós, profissionais da educação? Estamos sendo avaliados, mesmo

que informalmente, o tempo todo, e a imagem social da escola e do professor é um bom

exemplo do vigor de tal processo. O que, então, tal imagem tem revelado particularmente

sobre a profissão docente?

Não é preciso reiterar que um nível significativo de descrédito ronda a imagem que se

cultiva daqueles agentes/profissionais, tanto quanto uma considerável desesperança que eles

acalentam sobre o próprio trabalho.13 Em geral, se conota essa profissão como algo "difícil",

"penoso", um campo de trabalho povoado por obstáculos, que vão desde aqueles ligados ao

reconhecimento financeiro até aqueles de ordem metodológica, processual. Para alguns mais

insatisfeitos, chega-se à imagem da docência como "fardo" ou até como "sina".

Duas passagens no PCN são exemplares nesse sentido: um adesivo que se viu circular

com certa freqüência nos automóveis brasileiros que exclamava ironicamente "hei de vencer

mesmo sendo professor", e uma decisão do Congresso Nacional sobre a aposentadoria dos

professores por ocasião dos debates em torno da reforma previdenciária. No primeiro caso,

supõe-se, pela negativa, a profissão docente como um investimento inviável, fadado ao

insucesso. No segundo, de acordo com os legisladores atuais, trata-se (nos casos do ensino

fundamental e médio - e por que não o superior?) de uma profissão digna de aposentadoria

precoce, no mesmo patamar de outras profissões consideradas "insalubres" ou "perigosas", em

que há risco de vida mediato ou imediato. Por que será? A bem da verdade, valeria indagar: o

que acaba sendo mais inviável, perigoso ou insalubre: a profissão mesma ou as condições de

trabalho atuais?

De todo modo, vale lembrar que essa imagem não parece ser tão arbitrária, ou mesmo

maquiavelicamente "tramada", como alguns gostam de pensar. Os profissionais tem contra

eles uma evidência factual: grande parte do contingente de crianças que ingressam nas escolas

não consegue "atravessar" impunemente o ensino fundamental, sedimentando a célebre

12Id. ibid., p. 80. 13 SOUR, Robert Henry. Op. cit.,, p. 73.

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"pirâmide" educacional brasileira. Isto é, a repetência renitente, a evasão e a baixíssima

qualidade do ensino brasileiro findaram por constituir aquilo que alguns teóricos, com

propriedade, denominaram "cultura do fracasso escolar".

Nesse aspecto, o trabalho escolar atual (o público com apenas maior evidência do que

o particular, embora ambos atados ao mesmo processo) seria responsável por uma contra-

produção. Em vez de se produzir alunos/cidadãos, estar-se-ia, de fato, produzindo futuros

excluídos em larga escala. Se se levar em conta – e se tem formalmente de fazê-lo - que sem

escolaridade não há a possibilidade concreta de cidadania, e que, portanto, o que está em jogo

na produção do fracasso escolar é uma ameaça iminente ao direito constitucional dos "oito

anos de escolaridade mínima e obrigatória", se haverá de convir que um misto de

constrangimento e perplexidade habita - ou deveria habitar - todo aquele envolvido com o

trabalho escolar.

Pois então, o que estaria acontecendo com essa instituição secular a ponto de, na

prática, se inverter seus preceitos formais? Por que a existência extensiva de uma escola que,

além de não produzir os frutos esperados, expurga sua clientela? Mais ainda, por que a

persistência de uma escola que não consegue se democratizar plenamente, tanto do ponto de

vista do acesso/permanência da clientela quanto do ponto de vista da qualidade dos serviços

prestados? Por que fracasso em todo canto, tanto dos excluídos quanto dos incluídos?

Do confronto cotidiano com o peso de tal realidade, algumas justificativas para esse

estado de coisas vêm sendo dadas pelos agentes escolares em sua lida diária, especialmente

pela categoria docente. É bem verdade que se atribui responsabilidades e, muitas vezes, se

chega a beirar uma espécie de tese "conspiratória", como se vê a seguir.

3.3 Interpelações ao âmbito ético das práticas escolares

Embalados por uma perspectiva politizante, se acostumou a atribuir a suposta causa

das inflexões escolares a instâncias como: o Estado, o governo, os órgãos governamentais, os

setores burocrático-administrativos, o staff técnico da escola. Mas não é só. Freqüentemente

se atribui a suposta "culpa" de nossos entraves profissionais às condições conjunturais da

clientela. Aí então surgem: a sociedade, as transformações históricas, o background cultural

da clientela, a (des)estruturação das famílias, as carências de diferentes ordens etc.

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De acordo com Lipmann e cols14 o processo desenrola-se mais ou menos assim: diante

das dificuldades que se apresentam no dia-a-dia, professores culpam os alunos, que culpam os

professores, que culpam os pais, que culpam os professores, que culpam o governo, que culpa

os professores, que culpam a sociedade, e assim por diante, estabelecendo-se um círculo

vicioso e improdutivo de imputação de responsabilidades sempre a algum outro segmento

envolvido.

Contudo, do "atacado" das causas abstratas ao "varejo" dos seus efeitos concretos, uma

tônica comum parece perpassar o modo com que se tem enfrentado os dilemas profissionais: a

responsabilização cabal da clientela pelas dificuldades conjunturais, quando não pela

inviabilidade estrutural, do trabalho pedagógico - o que se traduz concretamente nos

altíssimos e inadmissíveis níveis de reprovação. Uma máxima muito freqüente no meio

escolar ilustra esse processo com clareza: "se o aluno aprende é porque o professor ensina; se

não aprende é porque ele apresenta alguma defasagem ou disfunção".15

Nesse enunciado estranho e, curiosamente, familiar parece residir uma contradição

lógica e uma armadilha ética. Ao mesmo tempo em que se responsabiliza o professor pelo

sucesso escolar, ele é desassociado inteiramente do fracasso. Mas, como é possível ele arcar

com apenas o efeito esperado de sua ação e, concomitantemente, se desincumbir dos seus

efeitos indesejáveis ou, no limite, colaterais? Como é possível a coexistência de dois âmbitos

de julgamento dissociados e, em certa medida, antagônicos para a mesma ação?

Convenha-se que esse tipo de entendimento do trabalho escolar seria algo equivalente

a uma afirmação do tipo: "o problema do médico são os doentes", ou "o empecilho do escritor

são os leitores", ou então "o entrave do político são os eleitores". No caso escolar não parece

ser tão estranha, tamanha a naturalidade com que se tem depositado na clientela grande parte

da responsabilidade sobre os acidentes de percurso, os obstáculos que permeiam o trajeto

dessa profissão - o que, por sinal, não é nenhum desprivilégio em relação a outras profissões,

posto que todas elas se definem, a rigor, como uma resposta pontual a um determinado

conjunto de problemas concretos materializado nas demandas da clientela.

É aí, então, que a figura do "aluno-problema" tem despontado, principalmente a partir

da década de oitenta, como uma justificativa nuclear (inclusive com amparo teórico) para as

inflexões do cotidiano prático do professor. E o que essa intrigante figura sinaliza? Em geral,

é aquele que não apresenta as "condições mínimas" para o aproveitamento pedagógico ideal,

14 LIPMAN, M., Oscanyan, F., SHARP, Ann M. A Filosofia na Sala de Aula. São Paulo: Ed. Nova Alexandria, 1994, p. 88. 15 Idem, ibdem.

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ou seja, aquele que porta algum déficit, ou mesmo um superávit, em relação ao padrão

pedagógico clássico ou ao perfil de desenvolvimento psicológico esperado - por exemplo:

alunos limítrofes versus superdotados, imaturos versus precoces, apáticos versus

hiperativos.16 Em síntese: aluno-problema é aquele acometido por alguma espécie de

"distúrbio psicopedagógico". E quais são eles?

Podem ser de ordem cognitiva (os famigerados "distúrbios de aprendizagem") ou de

ordem comportamental, e nessa última categoria enquadra-se um grande conjunto de ações

que chamamos usualmente de "indisciplinadas". Nesse particular, o baixo rendimento e a

indisciplina dos alunos seriam como duas faces de uma mesma moeda, representando os dois

grandes males da escola contemporânea e os dois principais entraves ao trabalho docente na

atualidade.

É preciso alertar, enfaticamente, que na própria fomentação traiçoeira dessa imagem

origina-se, ao ver da autora, grande parte das "faltas" éticas testemunhadas no nosso cotidiano

escolar. Em maior ou menor grau, acaba-se tomando a figura dos "alunos-problema" como

obstaculizadora ou impeditiva do próprio trabalho, quando, a rigor, poderia/deveria funcionar

como propulsora da ação profissional, vetor ético da intervenção pedagógica e ocasião

privilegiada de afirmação profissional e social do educador, bem como de (re)potencialização

institucional do contexto escolar.

O que se pode fazer, talvez, é uma imersão crítica nos argumentos que suportam esse

tipo de raciocínio, de certa forma linear e superficial, que possa nos auxiliar sensivelmente.

Um primeiro passo para reverter esse estado de coisas exige que se repense os próprios

posicionamentos, que se reveja algumas supostas evidências sobre a clientela escolar que, no

final das contas, apenas justificam o fracasso escolar, mas não conseguem alterar os rumos e

os efeitos do trabalho cotidiano.

Algumas hipóteses pelas quais se tenta explicar o baixo rendimento e a indisciplina

discente valem a pena ser enunciadas. De acordo com Lipman e cols,17 elas são de três

ordens:

- histórica: "ensino organizado e de boa qualidade é para poucos, assim como o de antigamente"; - cultural: "a carência (ou a abundância) socioeconômica, logo cultural, é um impeditivo para a ação pedagógica"; - psicológica: "há necessariamente pré-requisitos morais e/ou cognitivos para o bom aproveitamento escolar".

16 Idem, p. 92. 17 Idem, p. 95.

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Por mais que tais argumentos marquem presença constante no imaginário pedagógico-

escolar, é preciso estabelecer que eles se configuram como silenciosas apropriações

explicativas que não se podem sustentar por completo, nem do ponto de vista teórico, muito

menos do ponto de vista ético, uma vez que se prestam a sacramentar, ainda que não

explicitamente, a exclusão escolar. A bem da verdade, um alinhamento ético claro em relação

ao trabalho escolar na contemporaneidade pressupõe o avesso, ou melhor, o inverso de tais

justificativas. No primeiro caso, é importante constatar a imagem romanceada que se preserva

do ensino elitizado e do cotidiano militarizado das escolas, anterior aos anos setenta e à

proliferação das escolas privadas. Por mais que se diga o contrário, o lema "educação para

todos e de qualidade" tem-se revelado um binômio indigesto e quase intangível na prática - e

o assim chamado "fracasso escolar" é sua mostra mais contundente e onerosa. A despeito de

intenções politicamente corretas, os protagonistas do cenário escolar, confundindo

democratização com deterioração da escola, acostumaram-se a um raciocínio que versa algo

parecido com isso: "algo de qualidade não pode ser para todos, e se é para todos não pode ser

de qualidade". A imagem falseada que se tem da suposta excelência do ensino particular

(fundamental e médio) de hoje, em contraposição à também suposta decadência do ensino

público, é um bom exemplo dessa máxima perigosa e absolutamente antiética.

No caso das outras duas hipóteses, é preciso enfatizar o seguinte: não há

necessariamente pré-requisitos morais e/ou cognitivos, e muito menos econômicos e/ou

culturais, para que se atinja o aproveitamento escolar ensejado. A não ser em casos extremos

(isto é, em quadros psicóticos muito bem precisos), a ação escolar prescinde de qualquer tipo

de a priori psicológico e/ou cultural, assim como de competências especiais para além

daquelas que uma criança/jovem em idade escolar apresenta. Se não, corre-se o risco de

imaginar que o trabalho escolar deveria destinar-se a um tipo de clientela específica e já

abastada cultural e/ou cognitivamente. Convém relembrar que não há clientela ideal (a não ser

nas expectativas dos agentes, como oposição à clientela concreta) e que a resposta bem-

sucedida ou fracassada da clientela não é algo de véspera, mas um produto da intervenção

escolar, ou seja, das relações aí forjadas.

De mais a mais, não se pode aceitar com tanta naturalidade a tese da existência de

condutas "ilegítimas", "impróprias" ou "desviantes" por parte da clientela. Elas serão sempre,

no limite, uma resposta ao que lhe ofertam os agentes. Decorre desse ponto de vista que o

baixo rendimento e a indisciplina dos alunos devem ser compreendidos como efeitos

sintomáticos das práticas escolares, nunca como suas causas. Além disso, tais inflexões

revelam a crise paradigmática imanente à relação professor-aluno nesses conturbados dias. Ou

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seja, quando não se tem clareza quanto aos limites e possibilidades da ação escolar e, por

extensão, do seu próprio lugar como educador, a clientela passa a ser tomada como obstáculo,

empecilho, problema.

3.4 Alguns encaminhamentos éticos para a prática escolar

Apontou-se até aqui as "faltas" éticas no interior das práticas escolares; cabe agora

apontar alguns preceitos que, no entender da autora, precisam ser preservados a qualquer

custo na intervenção pedagógica.

O primeiro remete às questões que envolvem a avaliação da aprendizagem, tão

presentes nas preocupações dos educadores, bem como dos órgãos governamentais do setor.

Não é raro que se encontre alegações do tipo: "é preciso avaliar constantemente", ou então:

"se não houver reprovação, não há ensino de verdade", ou mais drasticamente ainda:

"professor bom é aquele que reprova". Note-se que, a partir de enunciados como estes, acaba-

se tomando a avaliação (e não a ética) como reguladora da ação pedagógica. Isto é, avaliar

passa ser concebido como um direito "legal ou moral" do professor, enquanto ser avaliado,

um dever também "legal ou moral" do aluno. Se a avaliação se naturaliza como a estratégia

dominante ou exclusiva da intervenção pedagógica, corre-se o risco de também naturalizar o

fracasso como o objeto contingencial (e inevitável, portanto) da ação escolar. É o alto preço

que se paga por transformar um encontro que se desdobra em torno de regras construídas

processualmente em um evento balizado por normas apriorísticas, por um padrão

excessivamente normativo (e, por extensão, excludente) como é o da avaliação escolar, tal

como é conhecida.

Cabe, igualmente, questionar o que tem de ser priorizado como foco da atuação

profissional: os meandros e nuanças do processo ensino-aprendizagem ou a avaliação dos

resultados formais? E a que se têm prestado nossas práticas avaliativas: a confirmar os

prognósticos fatalistas sobre a clientela, ou ao coroamento do nosso trabalho docente? Mesmo

porque, numa reprovação final, algo de todos nós está sendo colocado sub judice. Portanto,

um desfocamento do afã avaliativo, além de bastante oportuno, poderia promover uma ênfase

mais nítida no dia-a-dia da sala de aula, isto é, na "qualidade" mesma do ensino. É no espaço

"sagrado" das aulas, no instigante confronto cotidiano entre agentes e clientela, no próprio

interior da relação professor-aluno, que a ética (ou a falta dela) presentifica-se com maior

força. O resto, e a avaliação dos resultados aí incluída é mera conseqüência!

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Outro preceito que conviria ser lembrado é aquele referente aos modos de relação que

se estabelece em sala de aula. Uma prática abominável, mas muito em voga, nas escolas

brasileiras é a de "mandar o aluno para fora da sala" ou encaminhá-lo para outras instâncias

sempre que uma atitude dissonante se faz presente. Ora, expulsá-lo da sala é mais do que um

prenúncio da exclusão que tanto nos desabona; é ela em ato! Há que se abster, pois, desse tipo

de enfrentamento excludente, e se atentar para o fundamental diálogo com as diferenças,

porque o encontro de sala de aula é sempre movimento e diversidade, ou, em essência,

confrontação. Dessa forma, uma conduta não excludente implica o enfrentamento in loco das

divergências, a negociação, os ajustes das demandas. Inclusão: eis a palavra imprescindível,

mas tão pouco exercitada na prática!

Um posicionamento ético efetivo por parte do profissional da educação, em especial

do administrador escolar, pressupõe necessariamente um caráter inclusivo e, de certo modo,

incondicional - porque "para todos". Desse modo, a premissa da inclusão passa a ser a regra

"número um" do educador cioso de seus deveres tanto profissionais quanto sociais. Longe de

configurar um ato de benevolência, a relação que se deve ou pode estabelecer é de parceria,

cooperação (e, por que não dizer, de generosidade?); sempre tendo em mente, contudo, uma

disparidade estrutural que condiciona a relação professor-aluno.

Há uma assimetria de base entre os lugares docente e discente, a qual deve ser

preservada a todo custo, posto que a partir dela se pode exercitar a autoridade do professor.

Autoridade de quem já é um iniciado nas regras de um campo de conhecimento específico, e

que se retroalimenta ao partilhá-las de fato com outrem (sempre crivado, é claro, pelo

paradoxo do conflito e da cooperação). Mas acaba aí sua autoridade. Ou melhor, ela restringe-

se ao domínio de um certo saber teórico-prático assim como de sua transmissibilidade - é

preferível dizer "recriação". Um bom sinalizador dessa assimetria - ingrediente básico do

encontro entre professor e aluno - é a própria noção de "contrato pedagógico". É importante

que as "regras do jogo" estejam razoavelmente claras para ambas as partes, e que se limitem

ao campo do conhecimento em pauta, mesmo que as cláusulas contratuais tenham de ser

relembradas ou transformadas intermitentemente. Muitas vezes os alunos, quando

transgridem, o fazem mais por desconhecimento das (ou inconformidade às) regras implícitas

do que por má-fé.

É certo que a competência teórica e técnica é uma condição mesma do próprio jogo

pedagógico. Contudo, aquilo que se dá conotações positivas usualmente como "acidentes de

percurso" requer, mais do que uma revisão metodológica e/ou teórica, uma interpelação ética:

o que precisa ser preservado na ação de cada um?

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3.5 Ética e cidadania na escola

A Educação para a cidadania numa perspectiva da educação escolar, avança e envolve

todos os membros da comunidade humana, com direitos e deveres pessoais, indisponíveis e

universais que se concretizam num determinado contexto social. Educar para a cidadania é de

fato, educar para o reconhecimento dessa condição de direitos e deveres inerentes, que se

carrega, pelo simples fato de ser agentes participativo de qualquer raça, credo, nação e estrato

social. A partir da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (L.D.B. nº 9394/96)

foram elaborados os Parâmetros Curriculares, que representam os referenciais curriculares

para a escola brasileira contemplando as propostas para o Ensino Fundamental e Médio. Os

P.C.N. elegeram a cidadania como eixo orientador de modo que a educação brasileira elege

princípios que dizem respeito a dignidade da pessoa humana, a igualdade de direitos, a

participação e a co-responsabilidade pela vida social. Uma educação que observe os

princípios citados, visando a formação do cidadão pleno requer que questões sociais sejam

apresentadas para a aprendizagem e a reflexão dos alunos. Ao refletir sobre as questões

inerentes a condição humana, se faz necessário ter como eixo norteador a ética, pois a mesma

traz à luz a discussão sobre a liberdade de escolhas pautada na justiça que inspira valores de

igualdade e equidade, questão central da preocupação ética. A escola ao cumprir a tarefa de

educar para a cidadania deve promover uma educação baseada em valores éticos,

fundamentada nos tópicos a seguir:18

“· Conhecimento de regras e leis que definem direitos e deveres na sociedade, bem como seu caráter histórico e sua relação com situações presentes. · Existência de regras que viabilizem a convivência na escola e da mesma com a comunidade, sendo preciso que sejam claras e conhecidas por todos. · Elaboração das regras que deverão ser vivificadas coletivamente, na busca de alternativas para problemas enfrentados no cotidiano escolar. · Participação na elaboração e discussão das regras como parte de uma vivência mais ampla de todos no contexto escolar e na comunidade. A abordagem da ética na escola será feita a partir do estudo de conteúdos como: · Respeito mútuo - Justiça - Solidariedade - Diálogo. Portanto, uma educação comprometida com os valores éticos se concretiza através de práticas pedagógicas voltadas para a valorização do ser humano.”

A vivência dos valores éticos possibilita ao aluno praticar em sala de aula junto ao

educador, o significado de ser cidadão. Para tanto se faz necessário um trabalho sério que

negue o unilateral, o pronto, o direcionado, em favor da construção de uma proposta coletiva,

18 BRASIL. Ministério de Educação e Cultural. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, ética. Brasília: SEF, 1997, p. 102.

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com metodologia definida, sem negar ou superestimar as diferenças nos papéis

professor/aluno.

Considerando estes princípios, é possível aos integrantes do processo pedagógico

transformar a escola no espaço de aquisição do embasamento e das atitudes necessários para a

prática da ética nas relações sociais.

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4. ÉTICA E CURRÍCULO

Para situar a presente proposta curricular, é preciso começar por comentar algumas

experiências de formação moral que já foram tentadas, no Brasil e no exterior.

4.1 Experiências educacionais

- Tendência filosófica

Essa tendência tem por finalidade os vários sistemas éticos produzidos pela Filosofia

(as idéias dos antigos filósofos gregos, por exemplo, ou aquelas do século XVIII, dito da

Ilustração).

Não se procura, portanto, apresentar o que é o Bem e o que é o Mal, mas as várias

opções de pensamento ético, para que os alunos os conheçam e reflitam sobre eles. E, se for o

caso, que escolham o seu.

- Tendência cognitivista

A similaridade entre esta tendência e a anterior é a importância dada ao raciocínio e à

reflexão sobre questões morais, e também a não-apresentação de um elenco de valores a

serem “aprendidos” pelos alunos. A diferença está no conteúdo. Enquanto na primeira os

alunos são convidados a pensar sobre os escritos de grandes autores dedicados ao tema, na

segunda apresentam-se dilemas morais a serem discutidos em grupo. Um exemplo, já

comentado anteriormente: pede-se aos alunos que discutam sobre a correção moral do ato de

um marido que rouba um remédio para salvar a mulher (que sofre de câncer), sendo que ele

não tem dinheiro para comprá-lo e o farmacêutico, além de cobrar um preço muito alto, não

quer de forma alguma facilitar as formas de pagamento.

Verifica-se que tal dilema opõe dois valores: o respeito à lei ou à propriedade privada

(não roubar) e à vida (a mulher à beira da morte). A ênfase do trabalho é dada na

demonstração do porquê uma ou outra opção é boa, e não na opção em si. Mas alguém poderá

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dizer que não se deve roubar porque senão se vai para a cadeia; outro poderá argumentar que

as leis devem sempre ser seguidas, independentemente de haver ou não sanções. No primeiro

caso, trata-se de medo da punição; no segundo, de um espírito “legalista”. A opção final é a

mesma (não roubar) mas o raciocínio é totalmente diferente. Ora, é justamente esse raciocínio

que a tendência metodológica quer trabalhar e desenvolver.

- Tendência afetivista

Trata-se de procurar fazer os alunos encontrarem seu equilíbrio pessoal e suas

possibilidades de crescimento intelectual mediante técnicas psicológicas. Procura-se fazer

com que cada um tome consciência de suas orientações afetivas concretas, na esperança de

que, de bem consigo mesmo, possa conviver de forma harmoniosa com seus semelhantes. Ao

invés de se discutirem dilemas abstratos, como na proposta cognitivista, apreciam-se questões

concretas acontecidas na vida dos alunos e procura-se pensar sobre as reações afetivas de cada

um nas situações relatadas.

- Tendência moralista

A grande diferença entre esta tendência e as anteriores é que ela tem um objetivo

claramente normatizador: ensinar valores e levar os alunos a atitudes consideradas corretas de

antemão. Enquanto as propostas anteriores de certa forma esperam que os alunos cheguem a

legitimar valores não claramente colocados pelos educadores, a tendência moralista evidencia

tais valores e os impõe. Trata-se, portanto, de uma espécie de doutrinação. No Brasil, a

proposta de Educação Moral e Cívica seguiu esse modelo.

- Tendência da escola democrática

Uma última tendência a ser destacada é a da escola democrática, que, contrariamente

às anteriores, não pressupõe espaço de aula reservado aos temas morais. Trata-se de

democratizar as relações entre os membros da escola, cada um podendo participar da

elaboração das regras, das discussões e das tomadas de decisão a respeito de problemas

concretamente ocorridos na instituição.

São necessárias algumas reflexões sobre essas tendências. A tendência moralista tem a

vantagem de ser explícita: os alunos ficam sabendo muito bem quais valores os educadores

querem que sejam legitimados. Sabem o que se espera deles. Porém, dois graves problemas

aparecem. Um de nível ético: o espírito doutrinador dessa forma de se trabalhar. A autonomia

dos alunos e suas possibilidades de pensar ficam descartadas, pois a moralidade tende a ser

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apresentada como conjunto de regras acabadas. Em uma palavra, trata-se de um método

autoritário, fato que, aliás, explica as referências negativas que se fazem às antigas aulas de

Moral e Cívica, que, por bastante tempo, desencorajou a educação moral nas escolas. Outro

grave problema, conseqüência desse autoritarismo, é de nível pedagógico: o método não surte

efeito, pois ouvir discursos, por mais belos que sejam, não basta para se convencer de que são

válidos. A reflexão e a experiência são essenciais. O que acaba acontecendo freqüentemente

com os métodos moralistas é que afastam os alunos dos valores a serem aprendidos. As aulas

tornam-se maçantes, não sensibilizam os alunos, não os convencem e acabam por desenvolver

uma espécie de ojeriza pelos valores morais. O verbalismo desse tipo de método não dá

resultado, assim como, aliás, não dá resultado em disciplina alguma: os alunos ouvem,

repetem e esquecem. O único aspecto desse método a ser resguardado é a explicitação dos

valores.

O educador não deve “fazer de conta” que não tem valores, escondê-los. Estes devem

ficar claros, transparentes. Mas, para isso, não é necessário montar um palanque para belos

discursos.

Essas críticas apontam para métodos que procuram sensibilizar de alguma forma os

alunos para as questões morais. A tendência afetivista faz isso, e acerta ao levar em conta os

sentimentos dos alunos (as regras devem ser desejáveis para serem legitimadas, e isso leva ao

campo afetivo).

Porém, tal tendência apresenta três problemas. Um deles é, ao priorizar o trabalho com

a afetividade, corre-se o risco de chegar a uma moral relativista: cada um é um e tem seus

próprios valores. Esse individualismo é incompatível com a vida em sociedade. Deve-se, é

evidente, respeitar as diversas individualidades, mas, em contrapartida, cada individualidade

deve conviver com outras, portanto, deve haver regras comuns. O segundo problema diz

respeito ao trabalho de sensibilização em si: é essencialmente trabalho - delicado - de

psicólogo; pede formação específica que não é a do educador em geral. Terceiro problema:

pode levar a invasões da intimidade, os alunos sendo levados a falar de si em público, sem as

devidas garantias de sigilo.

Assim como a virtude da tendência afetivista é não menosprezar o lugar da afetividade

na legitimação das regras morais, a virtude das tendências filosofistas e cognitivistas é

sublinhar o papel decisivo da racionalidade. Seu defeito é justamente limitarem-se ao objeto

eleito. Conhecer a filosofia é edificante, raciocinar sobre dilemas é atividade inteligente. Mas

não é suficiente para tornar desejáveis as regras aprendidas e pensadas. Nem sempre

excelentes argumentos racionais fazem vibrar a corda da sensibilidade afetiva.

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4.2 Objetivos gerais de ética para o ensino fundamental

O trabalho a ser realizado em torno do tema Ética durante o ensino fundamental deve

organizar-se de forma a possibilitar que os alunos sejam capazes de:

• compreender o conceito de justiça baseado na eqüidade e sensibilizar-se pela necessidade da

construção de uma sociedade justa;

• adotar atitudes de respeito pelas diferenças entre as pessoas, respeito esse necessário ao

convívio numa sociedade democrática e pluralista;

• adotar, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças e

discriminações;

• compreender a vida escolar como participação no espaço público, utilizando e aplicando os

conhecimentos adquiridos na construção de uma sociedade democrática e solidária;

• valorizar e empregar o diálogo como forma de esclarecer conflitos e tomar decisões

coletivas;

• construir uma imagem positiva de si, o respeito próprio traduzido pela confiança em sua

capacidade de escolher e realizar seu projeto de vida e pela legitimação das normas morais

que garantam, a todos, essa realização;

• assumir posições segundo seu próprio juízo de valor, considerando diferentes pontos de vista

e aspectos de cada situação.

4.3 Os conteúdos de ética para o primeiro e segundo ciclos

Uma vez que os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental

destinam-se a todos os brasileiros e objetivam alcançar e fortalecer a meta maior que é a

formação do cidadão, foram escolhidos temas morais que, necessariamente, devem ser

contemplados para que essa formação tenha êxito (o chamado “conjunto central” de valores).

Os conteúdos apresentados aqui estão referenciados no princípio da dignidade do ser humano,

um dos fundamentos da Constituição brasileira.

Cada sociedade, cada país é composto de pessoas diferentes entre si. Não somente são

diferentes em função de suas personalidades singulares, como também o são relativamente a

categorias ou grupos de pessoas: elas podem ser classificadas por sexo, etnia, classe social,

opção política e ideológica, etc. É grande a diversidade das pessoas que compõem a

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população brasileira: diversas etnias, diversas culturas de origem, profissões, religiões,

opiniões, etc.

Essa diversidade freqüentemente é alvo de preconceitos e discriminações, o que

resulta em conflitos e violência. Assim, alguns acham que determinadas pessoas não merecem

consideração, seja porque são mulheres, porque são negras, porque são nordestinas, cariocas,

gaúchas, pobres, doentes, etc. Do ponto de vista da Ética, o preconceito pode traduzir-se de

várias formas. A mais freqüente é a não-universalização dos valores morais. Por exemplo,

alguém pode considerar que deve respeitar as pessoas que pertencem a seu grupo, ser honesto

com elas, não enganá-las, não violentá-las, etc., mas o mesmo respeito não é visto como

necessário para com as pessoas de outros grupos. Mais ainda: mentir para membros de seu

grupo pode ser considerado desonroso, mas enganar os “estranhos”, pelo contrário, pode ser

visto como um ato merecedor de admiração.

Outra tradução dos preconceitos é a intolerância: simplesmente não se aceita a

diferença e tenta-se, de toda forma, censurá-la, silenciá-la. Finalmente, é preciso pensar na

indiferença: o outro, por não ser do mesmo grupo, é ignorado e não merecedor da mínima

solidariedade.

O preconceito é contrário a um valor fundamental: o da dignidade humana. Segundo

esse valor, toda e qualquer pessoa, pelo fato de ser um ser humano, é digna e merecedora de

respeito.

Portanto, não importa o sexo, a idade, a cultura, a raça, a religião, a classe social, o

grau de instrução, etc.: nenhum desses critérios aumenta ou diminui a dignidade de uma

pessoa.

Toda pessoa tem, em princípio, direito ao respeito de seus semelhantes, a uma vida

digna (no sentido de boas condições de vida), a oportunidades de realizar seus projetos. Sem

opção moral, uma sociedade democrática, pluralista por definição, é totalmente impossível de

ser construída e o conceito de cidadania perde seu sentido. É portanto imperativo que a escola

contribua para que a dignidade do ser humano seja um valor conhecido e reconhecido pelos

alunos.

Dois outros critérios nortearam a escolha dos conteúdos: a possibilidade de serem

trabalhados na escola e sua relevância tanto para o ensino das diversas áreas e temas quanto

para o convívio escolar.

Foram organizados blocos de conteúdos, os quais correspondem a grandes eixos que

estabelecem as bases de diversos conceitos, atitudes e valores complementares. Os blocos de

conteúdos, assim como toda a proposta de Ética, referem-se a todo o ensino fundamental. Os

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conteúdos de cada bloco serão detalhados para os dois primeiros ciclos e já se encontram

expressos nas áreas, transversalizados. Por impregnarem toda a prática cotidiana da escola, os

conteúdos de Ética priorizam o convívio escolar. São eles:

• Respeito mútuo.

• Justiça.

• Diálogo.

• Solidariedade.

Cada um dos blocos de conteúdo está intimamente relacionado com os demais, assim

como com o princípio de dignidade do ser humano.

4.4 A importância do tema no ensino fundamental

O homem vive em sociedade, convive com outros homens e, portanto, cabe-lhe pensar

e responder à seguinte pergunta: “Como devo agir perante os outros?”. Trata-se de uma

pergunta fácil de ser formulada, mas difícil de ser respondida. Ora, esta é a questão central da

Moral e da Ética.

Moral e ética, às vezes, são palavras empregadas como sinônimos: conjunto de

princípios ou padrões de conduta. Ética pode também significar Filosofia da Moral, portanto,

um pensamento reflexivo sobre os valores e as normas que regem as condutas humanas. Em

outro sentido, ética pode referir-se a um conjunto de princípios e normas que um grupo

estabelece para seu exercício profissional (por exemplo, os códigos de ética dos médicos, dos

advogados, dos psicólogos, etc.).

Em outro sentido, ainda, pode referir-se a uma distinção entre princípios que dão rumo

ao pensar sem, de antemão, prescrever formas precisas de conduta (ética) e regras precisas e

fechadas (moral).

Finalmente, deve-se chamar a atenção para o fato de a palavra “moral” ter, para

muitos, adquirido sentido pejorativo, associado a “moralismo”. Assim, muitos preferem

associar à palavra ética os valores e regras que prezam, querendo assim marcar diferenças

com os “moralistas”.

Como o objetivo do ensino do tema é o de propor atividades que levem o aluno a

pensar sobre sua conduta e a dos outros a partir de princípios, e não de receitas prontas,

batizou-se o tema de Ética, embora freqüentemente se assuma, aqui, a sinonímia entre as

palavras ética e moral e se empregue a expressão clássica na área de educação de “educação

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moral”. Parte-se do pressuposto que é preciso possuir critérios, valores, e, mais ainda,

estabelecer relações e hierarquias entre esses valores para nortear as ações em sociedade.

Situações dilemáticas da vida colocam claramente essa necessidade. Por exemplo, é ou não

ético roubar um remédio, cujo preço é inacessível, para salvar alguém que, sem ele, morreria?

Colocado de outra forma: deve-se privilegiar o valor “vida” (salvar alguém da morte) ou o

valor “propriedade privada” (no sentido de não roubar)?

Seria um erro pensar que, desde sempre, os homens têm as mesmas respostas para

questões desse tipo. Com o passar do tempo, as sociedades mudam e também mudam os

homens que as compõem. Na Grécia antiga, por exemplo, a existência de escravos era

perfeitamente legítima: as pessoas não eram consideradas iguais entre si, e o fato de umas não

terem liberdade era considerado normal. Outro exemplo: até pouco tempo atrás, as mulheres

eram consideradas seres inferiores aos homens, e, portanto, não merecedoras de direitos iguais

(deviam obedecer a seus maridos). Outro exemplo ainda: na Idade Média, a tortura era

considerada prática legítima, seja para a extorsão de confissões, seja como castigo. Hoje, tal

prática indigna a maioria das pessoas e é considerada imoral.

Portanto, a moralidade humana deve ser enfocada no contexto histórico e social. Por

conseqüência, um currículo escolar sobre a ética pede uma reflexão sobre a sociedade

contemporânea na qual está inserida a escola; no caso, o Brasil do século XX.

Tal reflexão poderia ser feita de maneira antropológica e sociológica: conhecer a

diversidade de valores presentes na sociedade brasileira. No entanto, por se tratar de uma

referência curricular nacional que objetiva o exercício da cidadania, é imperativa a remissão à

referência nacional brasileira: a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada

em 1988. Nela, encontram-se elementos que identificam questões morais.

Por exemplo, o art. 1º traz, entre outros, como fundamentos da República Federativa

do Brasil a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político. A idéia segundo a qual todo

ser humano, sem distinção, merece tratamento digno corresponde a um valor moral. Segundo

esse valor, a pergunta de como agir perante os outros recebe uma resposta precisa: agir

sempre de modo a respeitar a dignidade, sem humilhações ou discriminações em relação a

sexo ou etnia. O pluralismo político, embora refira-se a um nível específico (a política),

também pressupõe um valor moral: os homens têm direito de ter suas opiniões, de expressá-

las, de organizar-se em torno delas. Não se deve, portanto, obrigá-los a silenciar ou a esconder

seus pontos de vista; vale dizer, são livres. E, naturalmente, esses dois fundamentos (e os

outros) devem ser pensados em conjunto. No art. 5º , vê-se que é um princípio constitucional

o repúdio ao racismo, repúdio esse coerente com o valor dignidade humana, que limita ações

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e discursos, que limita a liberdade às suas expressões e, justamente, garante a referida

dignidade.

Devem ser abordados outros trechos da Constituição que remetem a questões morais.

No art. 3º, lê-se que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil

(entre outros): I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; III) erradicar a pobreza e a

marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV) promover o bem de todos,

sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de

discriminação. Não é difícil identificar valores morais em tais objetivos, que falam em justiça,

igualdade, solidariedade, e sua coerência com os outros fundamentos apontados. No título II,

art. 5 o , mais itens esclarecem as bases morais escolhidas pela sociedade brasileira: I) homens

e mulheres são iguais em direitos e obrigações; (...) III) ninguém será submetido a tortura nem

a tratamento desumano ou degradante; (...) VI) é inviolável a liberdade de consciência e de

crença (...); X) são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas

(...).

Tais valores representam ótima base para a escolha de conteúdos do tema Ética.

Porém, aqui, três pontos devem ser devidamente enfatizados.

O primeiro refere-se ao que se poderia chamar de “núcleo” moral de uma sociedade,

ou seja, valores eleitos como necessários ao convívio entre os membros dessa sociedade. A

partir deles, nega-se qualquer perspectiva de “relativismo moral”, entendido como “cada um é

livre para eleger todos os valores que quer”. Por exemplo, na sociedade brasileira não é

permitido agir de forma preconceituosa, presumindo a inferioridade de alguns (em razão de

etnia, raça, sexo ou cor), sustentar e promover a desigualdade, humilhar, etc. Trata-se de um

consenso mínimo, de um conjunto central de valores, indispensável à sociedade democrática:

sem esse conjunto central, cai-se na anomia, entendida seja como ausência de regras, seja

como total relativização delas (cada um tem as suas, e faz o que bem entender); ou seja, sem

ele, destrói-se a democracia, ou, no caso do Brasil, impede-se a construção e o fortalecimento

do país.

O segundo ponto diz respeito justamente ao caráter democrático da sociedade

brasileira. A democracia é um regime político e também um modo de sociabilidade que

permite a expressão das diferenças, a expressão de conflitos, em uma palavra, a pluralidade.

Portanto, para além do que se chama de conjunto central de valores, deve valer a liberdade, a

tolerância, a sabedoria de conviver com o diferente, com a diversidade (seja do ponto de vista

de valores, como de costumes, crenças religiosas, expressões artísticas, etc.). Tal valorização

da liberdade não está em contradição com a presença de um conjunto central de valores. Pelo

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contrário, o conjunto garante, justamente, a possibilidade da liberdade humana, coloca-lhe

fronteiras precisas para que todos possam usufruir dela, para que todos possam preservá-la.

O terceiro ponto refere-se ao caráter abstrato dos valores abordados. Ética trata de

princípios e não de mandamentos. Supõe que o homem deva ser justo. Porém, como ser justo?

Ou como agir de forma a garantir o bem de todos? Não há resposta predefinida. É preciso,

portanto, ter claro que não existem normas acabadas, regras definitivamente consagradas. A

ética é um eterno pensar, refletir, construir. E a escola deve educar seus alunos para que

possam tomar parte nessa construção, serem livres e autônomos para pensarem e julgarem.

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5. CONCLUSÃO

Atualmente percebe-se cada vez mais a necessidade de uma educação básica que

priorize a reflexão e a autonomia moral. Isto, de certa forma, significa dizer que há uma

necessidade de uma educação que ofereça a possibilidade de discernir e deliberar com

independência e responsabilidade acerca das relações referentes à manutenção da vida, ao

domínio público e ao âmbito pessoal.

Ao se discutir a problemática da moralidade e da eticidade na escola, em especial do

administrador escolar, é importante se ter em perspectiva o fundo interdisciplinar que compõe

a práxis pedagógica, o qual inclui a educação ética.

A educação constrói-se e pode ser analisada através de coordenadas sociológicas,

psicológicas, históricas, sendo que todas elas são pontuadas por vieses filosóficos, e de

maneira mais específica por aspectos epistemológicos.

A epistemologia está presente nos objetos primeiros do processo pedagógico que é o

trato com o conhecimento, e também de maneira indireta em todas as atividades que

circundam a educação, já que esta, a educação, procura apoio em várias ciências, e, ainda em

aspectos aparentemente desvinculados da epistemologia, mas que não deixam de carregar

maneiras de compreender a realidade, passando, assim, por pontos de contato com os

processos de conhecimento.

Dessa forma, o conceito de racionalidade que percorre os objetivos e procedimentos

educacionais perfazem o que é considerado relevante no processo de aprendizagem, inclusive

naquilo que diz respeito ao lugar e a abrangência da moralidade na educação e da ética dos

atores pedagógicos.

No âmbito pedagógico restrito (grade curricular, material didático, metodologia de

ensino, direção e administração) as decorrências da razão instrumental podem ser detectadas

em vários aspectos: redução do sujeito do conhecimento a mero observador solitário de

fenômenos, no caso, a ciência, a arte, a moral, enfim, a cultura; supressão da teoria do

conhecimento e homogeneização do processo de construção do conhecimento em bases

objetivantes e formais; delimitação estreita do que deve ser considerado conhecimento e

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critérios de verdade; falsa noção de neutralidade, seja expressa nos livros didáticos, nas

metodologias ou na importância que as disciplinas assumem no currículo; transformação das

relações entre aluno e conhecimento (avaliações, processo de aprendizagem) em ações

voltadas para a competitividade pessoal e êxito.

O sistema de ensino, da maneira como estruturou seu programa curricular, sua

concepção de aprendizagem e suas bases metodológicas, colaborou duplamente para os

propósitos da razão instrumental - ao utilizá-la em sua teoria da educação, aceita seus

pressupostos e decorrências, divulgando-os como modelo; e o pior, ao levá-la para a sala de

aula, amplia seu poder hegemônico e aniquila a possibilidade de consolidação de uma

racionalidade mais aberta.

A investigação ética na comunidade pedagógica possui uma íntima conexão com a

formação para a cidadania soberana e democrática, já que todos os esforços implementados na

comunidade visam atingir a autonomia para a atuação nos espaços sociais de maneira

reflexiva e solidária.

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ANEXO