A evoluçao criadora de Bergson 100 anos depois

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  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

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    1SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    A evoluo criadora, de Henri

    Bergson

    Sua atualidade cem anos depois

    EditorialNo ano em que se comemora o centenrio de publicao deA evoluo criadora(Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1971),

    indiscutivelmente a obra de maior impacto do filsofo francs Henri Bergson (1859-1941), a IHU On-Lineprope-se a

    discutir e analisar seu legado.

    Ao examinar as idias de Bergson sobre o cinema, o argentino Adrin Cangi(Universidade de Buenos Aires) diz que, em

    certo sentido, o mito da caverna exposto emA repblica, como tenso entre a idia e o simulacro, pensada como

    projeo indireta, est no fundo da imagem dogmtica do pensamento que Bergson critica. No ponto de vista da filsofa

    brasileira Dbora Morato, da Universidade Federal de So Carlos, emA evoluo criadora, Bergson defende que a

    funo do intelecto adaptativa e assim naturaliza a inteligncia, e completa: Para viver, preciso recortar o real em

    funo das nossas necessidades.

    Na opinio do filsofo francs Eric Lecerf, da Universidade de Paris VIII, uma das proposies mais importantes contidas

    emA evoluo criadora desvendar a conscincia que nos habita, o que nos conduz, desta forma, a atingir um

    conhecimento verdadeiro do ser vivo. O tambm francs Pierre Montebelloda Universidade de Mirail, Toulouse, sada a

    filosofia bergsoniana como uma filosofia do futuro: Bergson faz-nos entrever nossa participao num movimento criador

    do universo, do qual ns no somos nem a origem nem o fim. Esta idia de um universo aberto, criador, que em nada

    corresponde quele que a metafsica grega ou clssica descreveu, exerce hoje uma grande influncia. O bergsonismo

    uma filosofia do futuro, do tempo, da transformao.

    Completando as ponderaes de nosso tema de capa, colaboraram, ainda, as filsofas Paola Marrati, da UniversidadeJohn Hopkins, italiana de nascimento e radicada em Baltimore, EUA, e a brasileira Maria Cristina Franco Ferraz, da

    Universidade Federal Fluminense (UFF).

    Ana Maria Bianchi, professora da USP, discute o pensamento de Albert Hirschman. Ela apresentar e debater, nesta

    semana, no IHU, o livroAs paixes e os interesses, de Hirschman. Por sua vez, Afonso Maria Ligorio Soares, presidente

    da Sociedade de Teologia e Cincias da Religio (Soter), chefe do Departamento de Teologia e Cincias da Religio da

    PUC-SP, debate os rumos da Teologia no Brasil, hoje.

    Santiago, de Joo Moreira Salles, o filme da semana. A todas e todos uma tima semana e uma excelente leitura!

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    2SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    Leia nesta edio

    PGINA 02| Editorial

    A.Tema de capa ENTREVISTAS

    PGINA 06 | Eric Lecerf: Desvendar a conscincia que nos habita

    PGINA 10 | Maria Cristina Franco Ferraz: Matria e memria, uma obra-prima

    PGINA 13 | Paola Marrati: Uma teoria do conhecimento inseparvel de uma teoria da vida: o antikantismo de Bergson

    PGINA 17 |Pierre Montebello: Bergsonismo, uma filosofia do futuro, do tempo, da transformao

    PGINA 22 |Dbora Morato: Recortar o real em funo das nossas necessidades: condio para a vida

    PGINA 28 |Adrin Cangi: A crtica bergsoniana ao cinema

    B.Destaques da semana Entrevista da semana

    PGINA 34 | Marco Antonio Trierveiler:Barragens: energia para qu e para quem?

    Teologia Pblica

    PGINA 38 | Afonso Maria Ligorio Soares:Para onde vamos? Os rumos da Teologia hoje

    Filme da semana

    PGINA 41 | Santiago, de Joo Moreira Salles Anlise de Conjuntura

    PGINA 44 | Destaques On-Line

    PGINA 46 | Frases da Semana

    C.IHU em Revista EVENTOS

    PGINA 50| Ana Maria Bianchi: Qual o potencial econmico da Amrica Latina? O pensamento de Albert Hirschman

    PGINA 53| Jos Hildebrando Dacanal: Literatura e Histria: dois caminhos para contar a histria do Rio Grande do Sul

    PERFIL POPULAR

    PGINA 56| Snia Gomes Chaves

    PGINA 59| Sala de Leitura

    IHU REPRTER

    PGINA 60| Maura Corcini Lopes

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    Henri Bergson (1859-1941)

    Henri Bergson (1859-1941)

    nasceu em Paris, filho de

    me inglesa e pai judeu-

    polons, e cresceu tendo o

    francs como lngua

    materna. Passou sua vida

    ativa como professor

    universitrio de filosofia,

    mas era um escritor tocativante que foi lido

    amplamente e teve influncia fora das universidades. Em

    1927, recebeu o Prmio Nobel de Literatura. Entre seus

    livros mais conhecidos, esto Ensaio sobre os dados

    imediatos da conscincia (1889),Matria e Memria

    (1896) eA evoluo criadora (1907). Nos ltimos anos

    de vida, seu pensamento tomou um rumo religioso, e

    possvel que tenha sido recebido na Igreja Catlica

    romana pouco antes de morrer; se assim foi, o ato foi

    deliberadamente protelado e mantido em segredo,

    porque no queria parecer estar abandonando os judeus

    enquanto estavam sendo perseguidos pelos nazistas e

    enquanto a Frana estava sob ocupao alem.

    El vital

    Bergson acreditava que os seres humanos devem ser

    explicados primordialmente em termos do processo

    evolutivo. Parecia-lhe que, desde o incio, a funo dos

    sentidos nos organismos vivos tem sido no fornecer ao

    organismo representaes de seu ambiente, mas

    estimular reaes de carter preservador da vida. Em

    primeiro lugar, os rgos sensoriais; em seguida, o

    sistema nervoso central, e, depois, a mente

    desenvolveram-se durante eras incontveis como parte

    do equipamento do organismo para a sobrevivncia, e

    sempre como auxiliares do comportamento; e at hoje

    aquilo que nos fornecem no so pinturas objetivas do

    nosso ambiente, mas mensagens que nos levam a nos

    comportar de determinada maneira. Nossa concepo de

    nosso ambiente no nada parecida com um conjunto de

    fotografias detalhadas: ela altamente seletiva, sempre

    pragmtica, e sempre a servio de si mesma. Damos

    ateno quase exclusiva quilo que importa para ns, e a

    concepo que formamos de nosso ambiente de constri

    em termos de nossos interesses, sendo o mais prementedeles nossa prpria segurana. Apenas quando se

    percebe isso que a verdadeira natureza do

    conhecimento humano para ser entendida.

    Quanto evoluo, Bergson acreditava que os

    processos mecnicos de seleo aleatria so

    inadequados para explicar o que acontece. Parece haver

    algum tipo de impulso persistente rumo a uma maior

    individualidade e todavia, ao mesmo tempo, maior

    complexidade, apesar de ambas sempre implicarem uma

    crescente vulnerabilidade e risco. A esse impulso Bergson

    deu o nome de el vital, que podemos traduzir por

    impulso vital.

    Bergson acredita que, dado que tudo est mudando o

    tempo todo, o fluxo do tempo fundamental a toda

    realidade. Ns realmente vivenciamos esse fluxo dentro

    de ns mesmos da maneira mais direta e imediata, no

    por meio de conceitos, e no por meio de nossos

    sentidos. Bergson chama esse tipo de conhecimento no-

    mediado de intuio. Ele acredita que tambm temos

    conhecimento intuitivo a respeito de nossas decises de

    agir, portanto conhecimento imediato de nossa prpria

    posse do livre-arbtrio. No entanto, esse conhecimento

    imediato da natureza ntima das coisas bastante

    diferente em carter do conhecimento que nosso

    intelecto nos d do mundo externo a ns mesmos.

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    5SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    A realidade flui

    O que nosso intelecto nos fornece so sempre os

    materiais exigidos para a ao, e o que queremos poder prever e controlar os eventos, por isso nosso

    intelecto nos apresenta um mundo que podemos

    apreender e usar, um mundo repartido em unidade

    manejveis, objetos separados em medidas delimitadas

    de espao e tambm em medidas delimitadas de tempo.

    o mundo dos afazeres e negcios dirios, do senso

    comum, e tambm da cincia. Sua extraordinria

    utilidade para ns se exibe nos triunfos da moderna

    tecnologia. Mas tudo isso um produto de nossa maneirade lidar com o mundo, exatamente da mesma maneira (e

    pelo mesmo tipo de razo) como um cartgrafo

    representar uma paisagem viva em termos de uma

    grade geomtrica quadriculada. Isso inegavelmente

    til, prodigiosamente til, e nos permite fazer toda sorte

    de coisas prticas que queremos; mas no nos mostra a

    realidade. A realidade um continuum. No tempo real

    no existem instantes. O tempo real um fluxo

    contnuo, sem unidades separveis, no delimitado por

    extenses mensurveis. O mesmo com o espao: no

    espao real no h pontos, nem lugares separados e

    especficos. Tudo isso so mecanismos da mente.

    Ser e tempo

    Assim, vivemos simultaneamente em dois mundos. No

    mundo ntimo de nosso conhecimento imediato tudo

    continuum, tudo fluido, fluxo perptuo. No mundo

    externo apresentado a ns por nossos intelectos h

    objetos separados ocupando determinadas posies no

    espao por perodos mensurveis de tempo. Mas, claro,

    esse tempo externo, o tempo dos relgios e do clculo,

    um construto intelectual, e no de modo algum o

    mesmo tempo real de cujo fluxo contnuo temos

    experincia ntima direta.

    No ponto culminante de sua filosofia, Bergson

    identifica esse fluxo de tempo vivenciado internamente

    com a vida mesma e com o impulso vital, o el vital que

    leva o processo da evoluo constantemente para a

    frente. Lembraremos que a filosofia de Heideggertambm culminava na identificao de ser e tempo,

    embora os dois filsofos tenham chegado mesma

    concluso independentemente e de pontos de partida

    completamente diferentes.

    Em sua prpria poca, Bergson teve alguns crticos

    eminentes entre seus contemporneos, como Bertrand

    Russell1. A principal queixa deles era que Bergson,

    embora tornasse suas idias atraentes com vvidas

    analogias e metforas poticas, no as sustentava muitocom argumentos racionais. Confiava-os intuio dos

    leitores. Alm disso, queixavam-se seus crticos, suas

    idias no resistiam muito bem anlise lgica. Seus

    defensores replicavam dizendo que ele possua todas

    essas caractersticas em comum com os mais criativos

    escritores, e assim era porque estava oferecendo

    insights, mais do que argumentos lgicos. Em todo caso,

    certo que seu pensamento teve apelo amplo e

    permanece como um elemento distintivo da filosofia do

    sculo XX.

    Fonte: MAGEE, Bryan. Histria da filosofia. 3. ed. So

    Paulo: Loyola, 2001.

    1Bertrand Arthur William Russell(1872-1970): considerado um dos

    mais influentes matemticos, filsofos e lgicos do sculo XX. (Nota da

    IHU On-Line)

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    6SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    Desvendar a conscincia que nos habita

    ENTREVISTA COM ERIC LECERF

    Na opinio do filsofo francs Eric Lecerf, uma das proposies mais importantes

    contidas em A evoluo criadora, obra que neste ano completa um centenrio de

    lanamento, o convite a desvendar a conscincia que nos habita Para Lecerf,

    isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo,

    pois nossa conscincia procede de uma inteno da vida, por ser da mesma um

    desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razo

    de que ela uma expresso da mesma entre outras, ou antes, para retomar

    Bergson, uma orientao de uma tendncia. Trata-se de uma virada radical no seio

    da filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento interior, uma experincia

    de si que encontra na intimidade da percepo o que o absoluto de um movimento

    incessante, no qual a vida encontra toda a sua substncia. Confira a seguir a

    ntegra da entrevista concedida por e-mail IHU On-Line.

    Lecerf professor de Filosofia na Universidade Paris VIII, Saint-Denis e autor de

    inmeros livros, entre os quais Le sujet du chmage(Paris, Budapest, Torino:

    Harmattan, 2002) e La famine des temps modernes: es sai sur le chmeur(Paris:

    Harmattan, 1992). Obteve diploma em Histria Contempornea pela cole des

    Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS) e foi diretor de programa no Collge

    International de Philosophie (Colgio Internacional de Filosofia). Publicou vrios

    artigos sobre o trabalho de filsofos como Henri Bergson, Simone Weil e Georges

    Sorel. Lecerf concedeu entrevista, por e-mail, IHU On-Line, publicada nos Cadernos

    IHU Em Formao, edio 13, intitulada Michel Foucault. Sua contribuio para a

    educao, a poltica e a ticae encontra-se disponvel para download no site do

    Instituto Humanitas Unisinos IHU, www.unisinos.br/ihu. O ttulo da entrevista

    Foucault e a genealogia da modernidade.

    IHU On-Line- No contexto da filosofia de Bergson,

    como se explica a valorizao que ele deu intuio,

    deixando a inteligncia em segundo plano? Qual a

    explicao filosfica para esta opo?

    Eric Lecerf - Em primeiro lugar, no me parece correto

    dizer que Bergson teria colocado a inteligncia em

    segundo plano em relao intuio. Na verdade, ele se

    esforou em marcar os limites de uma inteligncia

    implicada pela lgica num momento em que a filosofia

    era compartilhada entre positivismo e irracionalismo.

    Bergson explica que ele prprio hesitou por muito tempo

    antes de utilizar o termo intuio. Em seu primeiro livro,

    o Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia,

    publicado em francs em 1889, a intuio como conceito

    s aparece nos usos correntes da filosofia clssica. Ele

    faz mesmo referncia, nesta obra, a uma intuio

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    7SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    matemtica que no corresponde em nada intuio

    bergsoniana. Portanto, o que Bergson chamar mais

    tarde de intuio est no centro deste ensaio, mas sob aforma de um sentido particular totalmente voltado para

    a percepo pura e a compreenso da durao. Em

    Matria e memria, seu segundo livro, publicado sete

    anos mais tarde, a intuio s aparece verdadeiramente

    no terceiro captulo e deduzida da experincia de re-

    apreenso colocada na introduo do livro (eu nada sei

    da matria, nem do corpo e do esprito... o que que me

    aparece: imagens). S realmente emA introduo

    metafsica, artigo publicado em 1903, que Bergsonconjuga uma relao especfica entre intuio e mtodo,

    cujos fundamentos ontolgicos ele retomar cerca de dez

    anos mais tarde, numa conferncia intitulada A intuio

    filosfica. Seu objetivo no o de condenar a

    inteligncia nem mesmo rebaix-la, mas simplesmente o

    de notar que a inteligncia, estando interessada pela

    ao e levada por uma necessidade de espacializar sua

    durao, no pode de forma alguma tocar na essncia da

    vida que mvel. A inteligncia constri mundos, instrui

    artfices, produz sistemas, ela uma potncia ativa. Mas

    captar a vida implica, para Bergson, renunciar a esta

    potncia e retomar aquele sentido ntimo, ao qual, por

    no dispor de um termo novo, ele dar o nome de

    intuio.

    IHU On-Line - De que modo as esquerdas se

    apropriaram do bergsonismo? Qual o uso que elas

    fizeram do conceito de el vital?

    Eric Lecerf - Para responder a esta questo, seria

    preciso estar em condies de redimensionar o que

    constitua, ento, a paisagem poltica no seio da qual

    uma parte da esquerda apelaria ao bergsonismo. De que

    se trata? De modo geral, de dissidentes ou de

    intelectuais que levavam a peito fazer evoluir o

    marxismo fora dos dogmas nos quais suas determinaes

    cientficas o inscreveram. Para ser mais claro, no

    momento em que uma maioria dos intelectuais de

    esquerda aderia a um positivismo implicando uma srie

    de determinismos histricos. Aqueles que se declaravamadeptos do bergsonismo procuravam precisamente

    defender noes de virtualidade e espontaneidade para

    explicar os movimentos revolucionrios. Os nomes que se

    impem so os de Georges Sorel2, Edouard Berth3e

    Charles Pguy4. Sorel ocupa efetivamente, nesta histria,

    um lugar essencial. Autor dasReflexes sobre a

    violncia (Petrpolis: Vozes, 1993), nelas ele faz

    explicitamente referncia conexo bergsoniana entre

    inteligncia e intuio, para opor o socialismo tericodas seitas marxistas ao sindicalismo revolucionrio.

    Associando o nome de Bergson aos de Proudhon5e de

    Vico6, ele explica que nesta percepo intuitiva da

    2Georges Eugne Sorel(1847-1922): francs e terico do

    sindicalismo revolucionrio, muito popular na Frana, Itlia e EUA. Sua

    influncia comeou a decair depois de 1920. um autor controverso

    quanto linha poltica a qual adere. Suas idias foram aceitas tanto

    pelo fascismo italiano quanto pelos comunistas deste pas. Tambm

    influenciou os anarco-sindicalistas. (Nota da IHU On-Line)3douard Berth(1875-1939): torico do sindicalismo revolucionrio

    francs, discpulo de Georges Sorel. (Nota da IHU On-Line)4Charles Pguy(1873-1914): poeta, dramaturgo e ensasta francs,

    considerado um dos principais escritores catlicos modernos. Foi o

    fundador da revista Cahiers de La Quinzaine(1900-1914), na qual

    colaboraram muitos dos principais escritores da poca. Grande defensor

    da causa da justia social, foi um firme defensor do oficial francs

    Alfred Dreyfus. Morreu na Batalha de Marne, durante a I Guerra

    Mundial. (Nota da IHU On-Line)5Pierre Joseph Proudhon(1809-1865): socialista e reformador

    francs. Publicou Ensaio de gramtica geral (1837), trabalho que lhe

    valeu uma penso de trs anos da Academia de Besanon. Trs anos

    depois, porm, seu livro Que a propriedade?f-lo perder a

    aprovao da academia. Essa obra revelava suas idias socialistas e

    afirmava que "a propriedade um roubo". Suas atividades literrias e

    polticas o levaram, muitas vezes, a entrar em conflito com o governo

    francs. Passou vrios anos na priso e no exlio. Em 15-03-2006 o Prof.

    Dr. Alosio Teixeira(UFRJ) palestrou no II Ciclo de Estudos

    Repensando os Clssicos da Economia, com o ttulo Pierre-Joseph

    Proudhon (1809-1865) e o Socialismo utpico. (Nota da IHU On-Line)6Giambattista Vico(1668-1744): filsofo, historiador e jurista

    italiano. (Nota da IHU On-Line)

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    histria que se produz o novo. As teses de Sorel tero

    influncia particularmente importante na Itlia. Antonio

    Gramsci

    7

    escrever, ento, um artigo em 1921, intituladobergsoniano!, onde ele reivindicar a participao

    nesta herana. Na Frana, Bergson ser, no entanto,

    objeto de crticas importantes da parte dos jovens

    filsofos marxistas, e notadamente da parte de Politzer

    (O bergsonismo, o fim de uma impostura) e de Paul

    Nizan8(Os ces de guarda9). As posies patriticas

    tomadas por Bergson durante a Primeira Guerra Mundial,

    e depois a publicao dasAs duas fontes da moral e da

    religio(Rio de Janeiro: Zahar, 1978), desempenharampapel determinante nessas crticas que explicam porque,

    em 1947, Sartre10se creia em condies de dizer que o

    bergsonismo era uma filosofia ultrapassada.

    7Antonio Gramsci(1891-1937): escritor e poltico italiano. Com

    Togliatti, criou o jornal L'Ordine Nuovo, em 1919. Secretrio do

    Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em 1926 e s foi libertado

    em 1937, dias antes de falecer. Nos seus Cadernos do crcere,

    substituiu o conceito da ditadura do proletariado pela "hegemonia" do

    proletariado, dando nfase direo intelectual e moral em

    detrimento do domnio do Estado. Sobre esse pensador, confira a

    edio 231 da IHU On-Line, de 13-08-2007, intitulada Gramsci, 70

    anos depois. (Nota da IHU On-Line)8Paul Nizan(1905-1940): escritor, engajado no Partido Comunista,

    autor de Os ces de guarda(um libelo contra os intelectuais que no

    aceitavam o engajamento poltico ou se isolavam em suas torres de

    marfim). Decepcionado com o pacto germano-sovitico, rompeu com o

    partido. Foi acusado de espionagem pelos ex-camaradas. Paul Nizan

    morreu na frente de combate: tinha apenas 35 anos de idade. (Nota da

    IHU On-Line)9Les Chiens de guarde (Paris: Rieder, 1932). (Nota da IHU On-Line)10Jean-Paul Sartre(1905-1980): filsofo existencialista francs.

    Escreveu obras tericas, romances, peas teatrais e contos. Seu

    primeiro romance foiA nusea(1938), e seu principal trabalho

    filosfico O ser e o nada(1943). Sartre define o existencialismo, em

    seu ensaio O existencialismo um humanismo, como a doutrina na

    qual, para o homem, "a existncia precede a essncia". Na Crtica da

    razo dialtica(1964), Sartre apresenta suas teorias polticas e

    sociolgicas. Aplicou suas teorias psicanalticas nas biografias

    Baudelaire(1947) e Saint Genet(1953).As palavras(1963) a

    primeira parte de sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido para o

    prmio Nobel de literatura, que recusou. (Nota da IHU On-Line)

    IHU On-Line - No contexto da Filosofia

    contempornea, qual o lugar ocupado por Bergson?Eric Lecerf - O nome de Gilles Deleuze11se impe

    aqui, e eu poderia mesmo dizer que por vezes ele tende

    a ocupar todo o espao, como se Bergson tivesse tido por

    principal interesse ser um pr-deleuziano. Mais

    seriamente, a leitura que fez Gilles Deleuze de Bergson

    verdadeiramente muito forte. Desde 1956, ele publica

    dois artigos (republicados em Iles desertes), que

    permitem compreender o que Deleuze veio procurar em

    Bergson, a saber, um mtodo implicando uma teoria doconhecimento que associasse o empirismo e a busca de

    um absoluto. Desde esses artigos, Deleuze define a

    filosofia como criao de conceitos e , no entanto, em

    Bergson, que explica que convm para a filosofia pensar

    por imagens antes do que por conceitos, que ele vem

    procurar seus predicados tericos. De fato, o conceito

    deleuziano primeiramente derivado da imagem

    bergsoniana, desta imagem da qual Bergson dizia possuir

    trs qualidades. Em primeiro lugar, ela induz uma

    pluralidade de sentidos l onde o conceito procura

    destacar uma univocidade; em segundo lugar, ela

    concreta l onde o conceito por essncia abstrato; em

    terceiro lugar, sua impreciso constrange a um exerccio

    da ateno que se aproxima bastante da intuio, l

    onde o conceito tende expresso de uma certeza. E so

    estas qualidades que permitem a Deleuze situar a

    inveno de um novo valor do conceito como foco de

    indeterminao entre o que ele chama de articulaes do

    real e de linhas de fatos; entre a coleo de qualidades

    11Gilles Deleuze(1925-1995), filsofo francs. Assim como Foucault,

    foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bergson, Nietzsche e

    Espinosa poderosas interseces. Professor da Universidade de Paris

    VIII, Vincennes, Deleuze atualizou idias como as de devir,

    acontecimentos, singularidades, enfim conceitos que nos impelem a

    transformar a ns mesmos, incitando-nos a produzir espaos de criao

    e de produo de acontecimentos-outros. (Nota da IHU On-Line)

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    9SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    que induz uma categoria e o nome etiqueta que se

    desdobra numa multido de aventuras lingsticas.

    Vinte e cinco anos mais tarde, Deleuze retomar aimagem bergsoniana para pensar, desta vez, no o

    cinema12, mas antes as condies de possibilidade de

    uma filosofia na era do cinema. E ento que, seguindo

    um caminho inverso, Deleuze repensa uma imagem

    bergsoniana, inteiramente enriquecida por jogos, nos

    quais o conceito se desdobrou como virtualidade

    gramatical e existencial.

    IHU On-Line - Como pode a obraA evoluo criadoraajudar-nos a reler e compreender a ps-modernidade

    em sua complexidade?

    Eric Lecerf - Eu jamais compreendi o que se poderia

    designar pelo termo de ps-modernidade. Basta, alis,

    reler a introduo de La pense et le mouvant(O

    pensamento e o movente13), notadamente a parte

    intitulada a lgica retrospectiva do verdadeiro, para

    constatar at que ponto este conceito vazio de sentido.

    IHU On-Line - Quais so as proposies filosficas

    desta obra que o senhor considera as mais

    importantes?

    Eric Lecerf -A evoluo criadora um livro

    fascinante no seio do qual Bergson se dedica, no s a

    defender uma tese, mas tambm a ilustrar e adaptar um

    estilo de escritura suscetvel de trazer nele essas linhas

    de virtualidades, pelas quais a vida se desenvolve sem

    cessar. Eu retomaria, pois, uma tese que me parece

    decisiva, isto , sem a qual a obra de Bergson seria

    ilegvel. Bergson nos engaja, emA evoluo criadora,

    num trabalho de recompreenso da vida em ns. De que

    12Sobre o tema, confira nesta edio a entrevista com Adrin Cangi,

    A crtica bergsoniana ao cinema. (Nota da IHU On-Line)13BERGSON, Henri; BACHELARD, Gaston. Cartas, conferencias e

    outros escritos. So Paulo: Abril Cultural, 1974. 514 p. (Coleo Os

    Pensadores). (Nota da IHU On-Line)

    se trata? De um conhecimento psicolgico de nossa

    personalidade? Absolutamente. Para Bergson, trata-se de

    bem outra coisa do que do inconsciente. Pelo contrrio,o que ele nos engaja mesmo a redescobrir em ns

    precisamente aquilo que ele chama de conscincia. Mas

    de que conscincia se trata? De uma conscincia que

    perpassa todo ser vivo, que est em cada um de ns em

    ato e que, no mundo vegetal, permanece em posio de

    torpor. De uma conscincia que a vida. Desvendar a

    conscincia que nos habita, isso nos conduz, desta

    forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo,

    pois nossa conscincia procede de uma inteno da vida,por ser da mesma um desdobramento, da qual a

    intelectualidade nada saberia dizer pela simples razo de

    que ela uma expresso da mesma entre outras, ou

    antes, para retomar Bergson, uma orientao de uma

    tendncia. Trata-se de uma virada radical no seio da

    filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento

    interior, uma experincia de si que encontra na

    intimidade da percepo o que o absoluto de um

    movimento incessante, no qual a vida encontra toda a

    sua substncia.

    IHU On-Line - De que forma o ser humano consegue

    mover-se na dicotomia dos dois mundos nos quais ele

    vive: o do conhecimento imediato (onde tudo

    continuum) combinado com o do tempo, concebido

    como construo intelectual?

    Eric Lecerf - A resposta a esta questo me parece

    estar em parte respondida na precedente. A verdadeira

    questo no a de saber como o humano consegue

    mover-se, mas antes, como ele chega a crer que ele

    construiu uma estabilidade. Assim, poder-se-ia dizer que

    toda a histria intelectual se declina como uma

    perseguio ao infinito desta busca de estabilidade. Isso

    verdade na produo de instituies, bem como nesse

    cuidado de ordem que, mesmo quando nos damos um

    destino de revolucionrios, configura uma parte decisiva

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    10SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    de nossos atos. A filosofia de Bergson no procura, de

    nenhum modo, afastar-nos das formas graas s quais ns

    tentamos congelar o movimento. Ele procurasimplesmente lembrar-nos que estas formas so apenas

    iluses e que o conhecimento da vida, que deve fundar

    toda metafsica, no saberia satisfazer-se com essas

    formas. No menos verdade que h em Bergson uma

    verdadeira anlise daquilo que o marxismo chamar de

    coisificao. Em Bergson, tratar-se- antes de um tornar-

    se autmato, do repetitivo que tende a rejeitar toda

    intruso do indito. De fato, como o mostra Deleuze em

    Diferena e repetio (2 ed.: So Paulo: Graal, 2006),mesmo l onde tudo parece congelado, o movimento se

    insere na prpria repetio como elemento de

    diferenciao. Em Bergson, encontra-se isso

    efetivamente, mas sem esse otimismo desesperado quecaracteriza a filosofia de Deleuze. De fato, ningum

    escapa vida, afora aquele que a teoriza. Dito de outra

    forma, se h um autmato absoluto em Bergson, este no

    o operrio que trabalha em srie, mas o filsofo que

    cr que a vida seja uma questo de leis e de sistemas

    lgicos.

    Matria e memria,uma obra-primaENTREVISTA COM MARIA CRISTINA FRANCO FERRAZ

    Matria e memria, publicado em 1896, corresponde, a meu ver, a uma obra-prima, no apenas por

    conta da potncia dos conceitos criados, mas igualmente pelo vigor, inteligncia e generosidade de

    um pensamento verdadeiramente em movimento, capaz de manter-se vivo e produtivo a cada nova

    leitura, mesmo passado mais de um sculo. A opinio de Maria Cristina Franco Ferraz, em

    entrevista concedida por e-mail, com exclusividade IHU On-Line. Diretamente de Berlim, Alemanha,

    onde estava quando conversou com a equipe de nossa revista, Ferraz mencionou que uma das

    grandes contribuies de Matria e memria para o pensamento contemporneo diz respeito ao

    estatuto atribudo virtualidade. Ela docente na Universidade Federal Fluminense (UFF).

    Franco Ferraz graduada em Letras Portugus Literatura e em Didtica Especial de Lngua Inglesa

    pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). mestre em Letras, pela Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e em Filosofia, pela Sorbonne, Frana, com a

    dissertao Ecce Homo, de Nietzsche: Autobiographie, le propre et les masques. Nessa mesma

    instituio, cursou doutorado em Filosofia com a tese Ecce Homo (L'autobiographie de F. Nietzsche):

    tragdie, parodie et sacrifice dionysiaque. ps-doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF),

    pelo Instituto Max-Planck de Histria da Cincia e pelo Zentrum fr Literatur und Kulturforschung

    Berlin, Alemanha. De sua produo bibliogrfica, citamos Nietzsche: o bufo dos deuses(Rio de

    Janeiro: Ed. Relume Dumar, 1994); Nove variaes sobre temas nietzschianos(Rio de Janeiro: Relume

    Dumar, 2002); e A psiquiatria no div: entre as cincias da vida e a medicalizao da existncia, de

    Adriano Amaral de Aguiar(Rio de Janeiro: Editora Relume Dumar, 2004).

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    11SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    IHU On-Line- Quais foram as maiores descobertas e

    inovaes que Bergson prope em Matria e Memria?Maria Cristina Franco Ferraz Matria e memria,

    publicado em 1896, corresponde, a meu ver, a uma obra-

    prima, no apenas por conta da potncia dos conceitos

    criados, mas igualmente pelo vigor, inteligncia e

    generosidade de um pensamento verdadeiramente em

    movimento, capaz de manter-se vivo e produtivo a cada

    nova leitura, mesmo passado mais de um sculo. Na

    brevidade de uma entrevista, a resposta pergunta

    proposta pode ser no mximo alusiva. Nesse sentido,gostaria de chamar a ateno, inicialmente, no apenas

    para a construo de conceitos radicalmente novos

    (como o de imagem e de memria), em um duplo gesto

    que envolve tambm a discusso precisa e aprofundada

    das perspectivas das quais Bergson se afasta. Em

    primeiro lugar, investigando as premissas comuns

    presentes nas duas correntes aparentemente antagnicas

    ento predominantes, no que diz respeito percepo

    idealismo subjetivista e realismo materialista -, Bergson

    perspicazmente mostra de que modo as duas de fato se

    aproximam e, passando por trs de ambas, constitui

    um novo solo a partir do qual no mais sero respondidas

    as mesmas questes, mas o prprio problema da relao

    interioridade/exterioridade ser recolocado (e

    ultrapassado). De fato, ambas as correntes supem

    certas visadas comuns: por exemplo, o vnculo entre

    percepo, representao e especulao, bem como a

    ciso (tornada irremedivel) entre eu e mundo.

    Como Bergson demonstra, nas duas vises concorrentes,

    tudo o que vemos no passaria de alucinaes

    verdadeiras. Ao postular uma relao de grau, e no de

    natureza, entre percepo e matria, Bergson j coloca

    nossa percepo nas coisas, que nada mais seriam do que

    imagens de nossa ao (e no contemplao) possvel.

    Entre matria, entendida como um conjunto de imagens

    interligadas e interdependentes, e percepo (certas

    imagens que se revelam em funo de nossa ateno

    vida, promessas e ameaas que nos cercam), haveriaassim uma diferena de grau, isto : perceberamos de

    fato a matria, mas no em sua totalidade.

    Perceberamos uma parte da matria, o que permite

    afirmar que nossa percepo est nas coisas. Como se

    pode observar, na contramo de uma longa tradio

    filosfica, imagem passa a se confundir com o que ,

    com a matria, o que tambm configura uma nova noo

    de matria, afinada com certas visadas da fsica de sua

    poca. Como Bergson enfatiza, a cincia seria capaz, talcomo o pensamento apto a se afastar das (bem-vindas e

    necessrias) iluses que nos permitem agir no mundo, de

    alcanar uma intuio imediata do real, para alm da

    curva em que ele se inflete para constituir uma

    experincia humana. Portanto, no so apenas os

    conceitos de percepo, matria e memria que

    emprestam grandeza obra (que pensa o movimento e

    efetua um pensamento movente), mas a alterao do

    prprio movimento do pensamento, para alm do

    humano (demasiado humano), curiosamente aproximvel

    de novas perspectivas cientficas sobre a matria bem

    como do trabalho artstico sobre a percepo e a

    memria que marca a o final do sculo XIX e o limiar do

    sculo XX (de Czanne14 a Proust15).

    IHU On-Line- No contexto da filosofia

    contempornea, qual a importncia dessa obra?

    Maria Cristina Franco Ferraz Uma das grandes

    contribuies de Matria e memria para o pensamento

    contemporneo me parece dizer respeito ao estatuto

    atribudo virtualidade. A nfase no virtual tratado

    como real sem ser atual-, de grandes implicaes

    filosficas, existenciais e polticas, desfaz a crena em

    14Paul Czanne (1839-1906): pintor francs. (Nota da IHU On-Line)15Valentin Louis Georges Eugne Marcel Proust (1871-1922):

    escritor francs. (Nota da IHU On-Line)

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    12SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    meros estados de coisas fixados, ressalta a movncia e

    abertura de tudo o que h. O real deixa de se confundir

    com o visvel e passa a ser pensado como contendouma grande parcela de virtualidade. Em meu trabalho

    com a obra, tenho enfatizado, em geral, dois

    desdobramentos do tema da virtualidade. Por um lado, a

    partir das reflexes do filsofo portugus Jos Gil sobre

    dana e corpo, retomando o tema bergsoniano do

    movimento total do corpo, buscado e reativado, como

    mostra Gil, em certas experincias coreogrficas

    contemporneas. O movimento imparvel do corpo, suas

    tenses mesmo para manter-se aparentementeparado, requerem o conceito de virtualidade para

    revelar-se como tal. Ao mesmo tempo, a nfase na

    realidade do virtual altera a prpria reflexo sobre a

    comunicabilidade, uma vez que um corpo em movimento

    se desdobra em espectros virtuais que nunca mentem.

    Afinal, conforme afirma genialmente Bergson, ao

    trabalhar o exemplo da aprendizagem por repetio de

    um movimento, o corpo no comporta subentendidos.

    Por outro lado, e em um sentido talvez mais evidente

    na obra, a nfase bergsoniana na virtualidade permite

    no apenas construir um novo sentido para memria

    (ligada temporalidade, durao) como tambm

    para redimensionar seu vnculo (hoje to enfatizado

    pelas neurocincias) com o crebro, rgo no de

    armazenamento de lembrancas, mas sobretudo de sua

    suspenso na virtualidade, ou seja, seu

    esquecimento. Em uma poca em que se disseminam,

    nos diversos meios de comunicao de massa, novas

    descobertas sobre o crebro e se tende a reduzir cada

    vez mais amplamente o fenmeno da memria esfera

    bioqumica do corpo (neurnios, sinapses, hormnios), a

    reflexo bergsoniana sobre a memria no apenas

    estabelece uma plataforma crtica para se pensar as

    implicaes da consolidao dessas novas verdades

    cientficas, mas permite igualmente tematizar tanto seu

    papel crtico em sua poca quanto o sentido da atual

    desespiritualizao do curioso e rico fenmeno humano

    da memria.

    IHU On-Line- Que pontos de proximidade e

    distanciamento esse filsofo faz entre matria e

    memria?

    Maria Cristina Franco Ferraz Trata-se, nesse caso,

    de uma distino forte, de natureza, estabelecida por

    Bergson entre matria, de um lado, e memria/esprito

    de outro. S a partir dessa distino de natureza que

    Bergson pde ultrapassar as falaciosas e falsas questes

    identificadas nas perspectivas presentes tanto natradio filosfica quanto implicadas nas concepes

    cientficas de sua poca. Creio que essa questo pode ser

    mais bem esclarecida se articulada que se segue.

    IHU On-Line- At que ponto essas proposies da

    filosofia bergsoniana aprofundam o dualismo corpo e

    mente?

    Maria Cristina Franco Ferraz Trata-se sim de

    dualismo, mas Bergson nos leva a pensar que talvez nem

    todo dualismo se equivalha. Curiosamente, creio que

    essa questo mesma em toda a sua legitimidade e

    inflexo contempornea no deixa de tambm sinalizar

    uma suspeita cara contemporaneidade e por vezes

    caricaturalmente expressa no horror ps-moderno a

    toda e qualquer forma de dicotomizao. Nesse sentido,

    aproximar-se de Bergson requer uma delicadeza e

    sutileza maior do pensamento, aptas a nos tornar,

    tambm ns leitores contemporneos, de algum modo

    aproximados da extemporaneidade da obra. Como se

    trata de um dualismo erigido em um novo solo, os plos

    da oposio corpo/mente no me parecem poder ser

    facilmente superponveis, redutveis ao dualismo

    matria/memria introduzido por Bergson, que, de modo

    explcito, procurou repensar exatamente o vnculo entre

    matria e algo que, sendo de uma natureza diversa, ele

    chamou de memria. Ora, o vnculo s poderia ser

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    13SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    pensado mantendo-se a distino de natureza entre os

    dois elementos. Mas esta seria apenas uma explicao

    lgica, dizendo respeito mera (e impressionante)coerncia do pensamento de Bergson. Quando matria

    passa a ser entendida como um conjunto de imagens

    interligadas, a percepo como estando nas coisas, o

    corpo como funcionando na tenso entre esquecimento e

    memria pensadas atravs do mecanismo da

    virtualizao/atualizao -, memria e matria pensadas

    em termos de temporalidade, parece-me que o novo

    dualismo introduzido, alm de no se reduzir a uma nova

    roupagem para velhos dualismos, introduz vigorosas

    novas abordagens. Mas, evidentemente (e isso est

    expresso desde o subttulo da obra), Bergson est

    dialogando com uma longa tradio, que renova, porassim dizer, por dentro o que est longe de ser

    pouco. A meu ver, deixar-se levar pela averso

    contempornea s dicotomias seria no um erro, mas,

    pior do que isso, uma grande desvantagem, na medida

    em que nos faria passar ao largo da riqueza da obra,

    levando a que se deixe de integrar (gesto to

    bergsoniano) o que Matria e memria nos permite

    pensar e discutir hoje.

    Uma teoria do conhecimento inseparvel de uma teoria da

    vida: o antikantismo de BergsonENTREVISTA COM PAOLA MARRATI

    Para a filsofa italiana Paola Marrati, ainda mais importante para nossos debates a idia-mestre

    de Bergson de que no h vo, deixadas de lado quaisquer oposies, entre vida e conceitos, entre

    processos biolgicos e processos congnitivos. A declarao pode ser conferida na ntegra na entrevista

    a seguir, concedida por e-mail IHU On-Line.

    Desde janeiro de 2003, Marrati professora no Centro de Humanidades do Departamento de Filosofia

    na Universidade John Hopkins, em Baltimore, Estados Unidos. Imediatamente antes desse perodo,

    lecionava Filosofia da Arte e Cultura no Departamento de Filosofia da Universidade de Amsterd. Na

    John Hopkins dirige o programa para o estudo da mulher, gnero e sexualidade, e membro do

    Advisory Board of the Film and Media Studies Program. , tambm, diretora do programa de pesquisa

    do Colgio Internacional de Filosofia, de Paris.

    mestre em Filosofia Moderna e Contempornea, pela Universit degli Studi di Pisa, Itlia. Recebeu

    seu diploma d'Etudes Approfrondies na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS), Paris, e

    seu PhD em Filosofia na Universidade Marc Bloch, em Estrassburgo, Frana. Escreveu, entre outras

    obras, Gilles Deleuze. Cinma et philosophie(Presses Universitaires de France, 2003) e Genesis and trace.

    Derrida reader of Husserl and Heidegger(Stanford: Stanford University Press, 2005). Est prestes a ser

    publicado o livro The event and the ordinary: on the philosophy of Gilles Deleuze and Stanley Cavell.

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    14SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    IHU On-Line- Qual a atualidade da obra A evoluo

    criadora, 100 anos aps seu lanamento?Paola Marrati EmA evoluo criadora, como em

    seus outros trabalhos, Henri Bergson (1859-1941) engaja-

    se em uma sria e bem informada discusso sobre teorias

    cientficas e descobertas de seu tempo e,

    particularmente, seu conhecimento de diferentes

    desenvolvimentos na teoria evolucionista depois de

    Darwin16. No necessrio dizer que, um sculo mais

    tarde, as idias de Darwin sobre evoluo foram

    desenvolvidas e refinadas; particularmente, a descobertado DNA e mecanismos genticos de evoluo modificaram

    profundamente nosso entendimento dos processos

    evolutivos. Apesar disso, os principais insightsde Darwin

    no foram desafiados e em considerao a isso muita da

    anlise filosfica de Bergson pertinente ainda hoje.

    Ainda mais importante para nossos debates, na minha

    opinio, a idia-mestre de Bergson de que no h

    vazio, deixadas de lado quaisquer oposies, entre vida e

    conceitos, entre processos biolgicos e processos

    cognitivos. Contrrio a uma longa tradio que ope os

    misteriosos e irracionais poderes da vida razo e

    conceitualidade, Bergson lembra-nos que todas as nossas

    prticas cognitivas, no importa o quo abstratas,

    originam-se na vida, e essa vida, o que quer que

    seja ou signifique, , em primeiro lugar e em todas as

    16Charles Robert Darwin(1809-1882): Naturalista britnico,

    propositor da Teoria da Seleo natural e da base da Teoria da

    Evoluo nolivroA origem das espcies. Teve suas principais idias

    em uma visita ao arquiplago de Galpagos, quando percebeu que

    pssaros da mesma espcie possuam caractersticas morfolgicas

    diferentes, o que estava relacionado com o ambiente em que viviam.

    Em 30 de novembro de 2005, a Prof. Dr. Anna Carolina Krebs Pereira

    Regner apresentou a obra Sobre a origem das espcies atravs da

    seleo natural ou a preservao de raas favorecidas na luta pela

    vida, de Charles Darwin, no evento Abrindo o Livro, do Instituto

    Humanitas Unisinos. A respeito do assunto ela concedeu entrevista

    IHU On-Line166, de 28 de novembro de 2005. (Nota da IHU On-Line)

    suas instncias, e no apenas em sua forma humana, uma

    capacidade para ajustes e resoluo de problemas.

    IHU On-Line- Como o conceito de el vital pode

    nos ajudar a compreender a crescente complexidade

    do mundo contemporneo?

    Paola Marrati O conceito de el vital [impulso

    vital] definido por Bergson como uma tendncia para a

    mudana e diferenciao. As formas vitais, para Bergson,

    esto constantemente envolvidas de novos e

    imprevisveis jeitos, conseqentemente no podendo sercompreendidas em termos de conjuntos de propriedades

    estveis e fixas. Devemos, pelo contrrio, compreender a

    tendncia especfica que define uma forma de vida em

    seu processo inacabado de transformao e diferenci-la

    de outras formas de vida.

    Bergson no nos d chaves prontas para interpretar as

    complexidades de nosso mundo atual, mas sua convico

    de que a vida no tem essncia fixa e que, pelo

    contrrio, uma tendncia em andamento para a

    mudana pode ajudar-nos na tarefa difcil de analisar os

    desenvolvimentos contemporneos na biocincia e na

    biotecnologia, e avaliar as promessas, e perigos que elas

    nos guardam.

    IHU On-Line- Em que aspectos Bergson conserva e

    supera traos da teoria evolutiva de Darwin?

    Paola Marrati Bergson est totalmente de acordo com

    o principal insight da teoria de Darwin, de que a vida

    um processo evolutivo que produz novas e imprevisveis

    formas. Acredito que essa fundamental concordncia

    mais significativa que a crtica de Bergson a Darwin e ao

    neo-darwinismo em A evoluo criadora. E deve-se

    observar que essas crticas objetivam destacar a essncia

    temporal e mutante das formas de vida.

    IHU On-Line- Partindo do pressuposto de que aquilo

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    15SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    que nossos sentidos nos fornecem no so a realidade,

    mas cpias seletivas desta, podemos perceber a uma

    influncia platnica, como aquelas imagens refletidasno fundo da caverna?

    Paola Marrati De acordo com Bergson, nossa

    percepo consciente, assim como nossas ferramentas

    cognitivas e linguagem, so pragmaticamente orientadas

    para as necessidades de sustentar a vida e no para o

    conhecimento puramente desinteressado e vazio.

    Exatamente por essa razo, selecionamos e percebemos

    do campo todo da realidade o que til para ns. Apesar

    disso, isso no dizer que nos agarramos a cpias darealidade melhor que prpria realidade, sendo isso no

    sentido platnico ou no. o oposto: para Bergson,

    estamos em contato com a realidade como tal, mesmo se

    percebemos e conceitualizamos apenas selees dela, e

    isso sempre possvel. Essa a tarefa da filosofia e da

    cincia: dar um passo atrs das necessidades presentes

    no sentido de aumentar nossa experincia para alm dos

    limites do que normalmente sabemos e percebemos dela.

    IHU On-Line- Ainda nessa linha de raciocnio, qual

    a influncia de Kant no pensamento bergsoniano,

    tendo em vista que o filsofo de Knnigsberg afirmava

    que a coisa em si incognoscvel?

    Paola Marrati O projeto filosfico de Bergson

    fortemente antikantiano. Como eu disse antes, Bergson

    v a razo, como qualquer outra faculdade humana,

    como tendo suas razes nos processos evolutivos da vida.

    Como animais viventes, estamos em contato com a

    realidade e at mesmo com o absoluto. Como ele escreve

    na introduo de A evoluo criadora: A ao no pode

    mover-se no irreal. Uma mente nasce para especular ou

    para sonhar, admito, deve permanecer fora da realidade,

    deve deformar ou transformar o real, talvez at cri-lo

    como criamos figuras de homens e animais que nossa

    imaginao recorta das nuvens que passam. Mas um

    intelecto que dobra o ato a ser atuado e a reao que se

    segue, sentindo seu objeto enquanto capta sua impresso

    de movimento a cada instante, um intelecto que toca

    algo do absoluto (p. 11). Melhor que a busca peloestabelecimento de condies a priori e limites do

    conhecimento e razo, assumindo que a coisa como tal

    eternamente no cognoscvel por ns, Bergson chama a

    uma tarefa diferente. Ele acredita que uma teoria do

    conhecimento inseparvel de uma teoria da vida:

    precisamos substituir nossas ferramentas cognitivas no

    contexto evolutivo da vida no sentido de

    compreendermos como nossos esquemas conceituais

    foram formados, como eles evoluram, e como eleseventualmente podem ser aumentados, abertos para

    alm de seus limites atuais. Tal tarefa , ao mesmo

    tempo, mais modesta e mais ambiciosa que a filosofia

    transcendental de Kant: mais modesta porque a par de

    que nenhuma resposta definitiva pode ser dada questo

    das condies de possibilidade de conhecimento; mais

    ambiciosa porque sustenta que, em princpio, no h

    limites ao domnio daquilo que pode ser conhecido, que

    no estamos condenados a uma forma de conhecimento

    que paga suas certezas com o preo de ser um

    conhecimento do fenmeno diferente do conhecimento

    das coisas.

    IHU On-Line- Como essa seleo natural de

    informaes nos ajuda a compreender a singularidade

    e irrepetibilidade das concepes do sujeito moderno?

    Paola Marrati Bergson no pertence tradio da

    filosofia dos sujeitos no modo cartesiano, kantiano ou

    husserliano. O sujeito no o exemplo original e

    organizado para o qual tudo aparece, o espectador para

    quem o mundo dado como um objeto de contemplao.

    Subjetividade, ou conscincia [de algo], se voc prefere,

    constituda em um largo campo de experincia por um

    processo de seleo. Como Bergson reconhecidamente

    escreveu em Matria e memria (1896), a percepo se

    torna conscincia pela seleo de todos os campos de

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    16SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    [da] experincia que so relevantes em um dado tempo

    para um dado propsito. William James, em seu Ensaios

    sobre o empirismo radical(1912), experimenta umprojeto parecido de descrio da formao da

    subjetividade em um largo campo de experincia no-

    subjetiva. A subjetividade constituda em um campo de

    experincia que a excede: a subjetividade no nem o

    ponto de partida para a filosofia e nem sua meta.

    IHU On-Line- De que forma as filosofias de Bergson e

    Deleuze se cruzam? O que tm em comum e no que

    diferem, principalmente?Paola Marrati Na minha opinio, Deleuze deve a

    Bergson mais que a qualquer outro filsofo. A idia de

    que a filosofia necessita de preciso e deve criar

    conceitos singulares para objetos singulares, ao contrrio

    de construir sistemas gerais que possam acomodar todo e

    qualquer mundo, como Bergson escreve no incio de sua

    Introduo metafsica, estabelece um padro para o

    que Deleuze considera como tarefa da filosofia. Ele

    repetidamente reivindica, em Diferena e repetio

    (1969) e em algum outro lugar, que a filosofia visa a

    agarrar as condies de possibilidade do real e no da

    experincia possvel, sendo uma elaborao direta de

    uma demanda de Bergson. Mas a importncia de Bergson

    para Deleuze no apenas metodolgica: todo o projetode elaborao de uma filosofia das diferenas internas

    como alternativa dialtica e fenomenologia

    profundamente enraizada na interpretao deleuziana de

    Bergson. O mesmo segue verdadeiro para a crtica da

    negatividade e da iluso retrospectiva da categoria do

    possvel, assim como para a concepo do tempo como

    virtualidade. De forma mais geral, gostaria de dizer que

    Deleuze leva extremamente a srio a idia de Bergson de

    que a filosofia deve dirigir a si a questo da novidade, donovo no fazer, ao contrrio de se voltar para o eterno.

    Para Deleuze, tal idia traz aproximadamente toda

    transformao da filosofia e seu prprio trabalho

    dedicado largamente a desdobrar as conseqncias dessa

    transformao. Apesar disso, como todos os grandes

    filsofos, Deleuze introduziu um novo conjunto de

    problemas e conceitos que no podem ser remetidos

    outra vez a Bergson somente. Deleuze tem sua prpria e

    singular voz.

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    17SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    Bergsonismo, uma filosofia do futuro, do tempo, da

    transformaoENTREVISTA COM PIERRE MONTEBELLO

    Bergson faz-nos entrever nossa participao num movimento criador do universo, do qual ns

    no somos nem a origem, nem o fim. Esta idia de um universo aberto, criador, que em nada

    corresponde quele que a metafsica grega ou clssica descreveu, exerce hoje uma grande

    influncia. O bergsonismo uma filosofia do futuro, do tempo, da transformao, assegura o

    filsofo francs Pierre Montebello, em entrevista exclusiva, concedida por e-mail IHU On-Line.

    Outro dos aspectos atualssimos que Montebello aponta na filosofia bergsoniana a idia de

    que a filosofia no deve abandonar a ontologia, de que ela no deve contentar-se com a

    fenomenologia que s descreve o mundo a partir da conscincia humana, mas que preciso

    tentar descrever o mundo tal como ele , preciso tentar captar de que modo matria, vida e

    conscincia comunicam fora de ns. A respeito da obra A evoluo criadora, o entrevistado no

    poupou palavras: um livro assombroso, um dos raros de filosofia contempornea que

    retoma as grandes questes deixadas em suspenso aps a crtica kantiana da metafsica.

    Felizmente, menciona Montebello, hoje A evoluo criadorarecebe seu devido valor e pode ser

    comparado a O mundo como vontade e representao, de Schopenhauer, duas trovoadas no cu

    das idias.

    Montebello leciona Filosofia Moderna e Contempornea na Universidade de Toulouse-le-Mirail

    e dirige o departamento de Filosofia dessa instituio. membro do Comit cientfico

    internacional dos Anais Bergsonianos PUF Epimthe: trs tomos publicados (Annale I, 2002, 560

    p., Annales II, 2004, 534 p., Annales III, 207, 540 p.) e da Sociedade Bergson, criada em 2006 na

    base do comit cientfico internacional dos Anais Bergsonianos. Escreveu inmeras obras, das

    quais citamos Vie et maladie chez Nietzsche(Paris: Ellipses, 2001); Nietzsche, La volont de

    puissance(Paris: PUF, 2001); e Lautre mtaphysique(Paris: Descle de Brouwer, 2003).

    IHU On-Line -Quais so os aspectos mais atuais da

    filosofia bergsoniana?

    Pierre Montebello- O melhor representante da

    modernidade da filosofia de Bergson ter sido, sem

    dvida, o filsofo francs Gilles Deleuze. Ele nos fez

    redescobrir Bergson, de cuja filosofia tirou o mais

    interessante e moderno: uma compreenso da relao

    entre conscincia e universo, entre percepo subjetiva

    e cosmo. Bergson faz-nos entrever nossa participao

    num movimento criador do universo, do qual ns no

    somos nem a origem nem o fim. Esta idia de um

    universo aberto, criador, que em nada corresponde

    quele que a metafsica grega ou clssica descreveu,

    exerce hoje uma grande influncia. O bergsonismo uma

    filosofia do futuro, do tempo, da transformao. A

    segunda idia de que a filosofia no deve abandonar a

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    18SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    ontologia, de que ela no deve contentar-se com a

    fenomenologia, que s descreve o mundo a partir da

    conscincia humana, mas que preciso tentar descrevero mundo tal como ele e tentar captar de que modo

    matria, vida e conscincia se comunicam fora de ns.

    IHU On-Line -Quanto obraA evoluo criadora,

    qual sua representatividade na filosofia

    contempornea, cem anos aps sua publicao?

    Pierre Montebello- Cem anos aps sua publicao,A

    evoluo criadoracontinua sendo um livro realmente

    assombroso: ele hoje relido e estimado em seu justovalor. Este livro deslocou integralmente o

    questionamento filosfico. Depois que a filosofia de

    Husserl17e de Heidegger18dominaram o cenrio francs,

    nos damos realmente conta de que este livro trouxe algo

    totalmente novo. Ele um dos raros livros de filosofia

    contempornea que retoma as grandes questes deixadas

    em suspenso aps a crtica kantiana da metafsica: a

    psicologia, a biologia, a cosmologia... Este livro no se

    contenta em dizer que o eu, a vida, o cosmo so

    17Edmund Husserl(1859-1938): filsofo alemo, principal

    representante do movimento fenomenolgico. Marx e Nietzsche, at

    ento ignorados, influenciaram profundamente Husserl, que era um

    crtico do idealismo kantiano. Husserl apresenta como idia

    fundamental de seu antipsicologismo a intencionalidade da

    conscincia, desenvolvendo conceitos como o da intuio eidtica e

    epoch. Pragmtico, Husserl teve como discpulos Martin Heidegger,

    Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line)18Martin Heidegger(1889-1976): filsofo alemo. Sua obra mxima

    O ser e o tempo(1927). A problemtica heideggeriana ampliada em

    Que metafsica?(1929), Cartas sobre o humanismo(1947),

    Introduo metafsica(1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line

    publicou na edio 139, de 2-05-2005, o artigo O pensamento

    jurdico-poltico de Heidegger e Carl Schmitt. A fascinao por

    noes fundadoras do nazismo. Sobre Heidegger, confira as edies

    185, de 19-06-2006, intitulada O sculo de Heidegger, e 187, de 3-07-

    2006, intitulada Ser e tempo. A desconstruo da metafsica,

    disponveis para download no stio do IHU, www.unisinos.br/ihu.

    Confira, ainda, o n 12 do Cadernos IHU Em Formaointitulado

    Martin Heidegger. A desconstruo da metafsica. (Nota da IHU On-

    Line)

    incognoscveis. Esta filosofia traa um caminho, o mais

    prximo possvel da experincia que temos de ns

    mesmos e do conhecimento que as cincias nos trazem,para desenhar uma imagem plausvel do que querem

    dizer conscincia, vida, matria, universo,

    evoluo... um livro riqussimo. Deve-se comparar

    esta obra ao grande livro de Schopenhauer19sobre O

    mundo como vontade e como representao(5. ed. So

    Paulo: Abril Cultural, 1991). So duas trovoadas no cu

    das idias, dois questionamentos da viso demasiado

    intelectualista que a filosofia nos deu do mundo.

    IHU On-Line -Quanto ao conceito bergsoniano de

    intuio, qual sua relevncia para que possamos

    entender o livre arbtrio?

    Pierre Montebello- A intuio bergsoniana um

    mtodo: ela consiste em situar-nos no prprio movimento

    das coisas, a pensar em durao quando temos tendncia

    em forjar conceitos demasiado estticos.

    A intuio ope-se inteligncia. No que a

    inteligncia seja intil: ela serve para fabricar,

    principalmente geomtrica, tcnica... O mundo

    tecnolgico sua obra. Mas a intuio no serve para

    agir, e sim para compreender. No se compreende nada

    da vida quando se pensa atravs de conceitos que so

    destinados a agir sobre a matria (conceitos matemtico-

    fsicos...), preciso partir da intuio, da experincia

    de ser vivos, do movimento da prpria vida. E isto vale

    para todas as coisas. A intuio , pois, mtodo de

    conhecimento, e ela tambm libertao, j que sem

    ela somos condenados a viver apenas num mundo til.

    19Arthur Schopenhauer(1788-1860): filsofo alemo. Sua obra

    principal O mundo como vontade e representao, embora o seu

    livro Parerga e Paraliponema(1815) seja o mais conhecido. Friedrich

    Nietzsche foi grandemente influenciado por Schopenhauer, que

    introduziu o budismo e a filosofia indiana na metafsica alem.

    Schopenhauer, entretanto, ficou conhecido por seu pessimismo e

    entendia o budismo como uma confirmao dessa viso. (Nota da IHU

    On-Line)

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    1

    19SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    Ora, a intuio nos desvela que o movimento das coisas

    criador: o universo um movimento de expanso, a vida

    uma evoluo criadora, a personalidade psquicaconsiste em produzir atos livres. este plano criador que

    a intuio nos faz encontrar.

    IHU On-Line -Como pode a filosofia deste pensador

    ajudar-nos a repensar a liberdade e a eticidade no

    mundo contemporneo?

    Pierre Montebello- Repensar a liberdade e a tica

    hoje em dia , e todo o mundo que se d conta disso, pr

    o mundo ante o homem, e no o homem ante o mundo.Os desastres de nossos dias vm daquilo que Spinoza20

    vira to bem: o homem se cr um imperador num

    imprio. Mas o homem no o centro de nada: seu

    passado e seu futuro so o prprio universo. A filosofia,

    diz Bergson, deveria ser um esforo para superar a

    condio humana. Bergson nos faz compreender que

    pertencemos a um todo, e no este todo que nos

    pertence. Esta tomada de conscincia fundamental, ela

    deve convidar-nos a reconsiderar nosso lugar no seio do

    todo, do universo e dos viventes. A filosofia de Jonas21

    prolongar esta reflexo, sem, no entanto, conhecer ou

    citar Bergson.

    20Baruch de Espinosa(1632-1677): filsofo holands, pertencente a

    uma famlia judia originria de Portugal. Publicou um Tratado Poltico

    (Tractus Tehologico-Politicus), e a ticae deixa vrias obras

    inditas, que so publicadas em 1677 com o ttulo de Opera Posthuma.

    (Nota da IHU On-Line)21Hans Jonas(1902-1993): filsofo alemo, naturalizado

    norte-americano, um dos primeiros pensadores a refletir sobre

    as novas abordagens ticas do progresso tecnocientfico. A sua

    obra principal intitula-se: Das Prinzip Verantwortung.

    Versuch einer Ethik fr die technologische Zivilisation,

    1979, publicada em portugus como O princpio

    responsabilidade(Rio de Janeiro: Contraponto, 2006). (Nota

    da IHU On-Line)

    IHU On-Line -Se, como afirmava Bergson, o tempo

    real no existe, mas um continuumde tempo num

    fluxo constante, ento o que existe so mecanismosmentais que compartimentam nossas experincias

    sensoriais? Ao tomar conscincia disto, como pode o

    ser humano ter sua conscincia afetada?

    Pierre Montebello- O tempo real existe para Bergson.

    Sua filosofia uma filosofia da durao e, por

    conseguinte, do tempo. Mas no o tempo da fsica, no

    um tempo matematizado e dividido em instantes. um

    movimento contnuo que traz o passado e gera o futuro

    no presente. Todas as coisas so ritmos de durao,matria, vida, conscincia, maneiras de gerar um futuro

    no presente recolhendo o passado. Mesmo a matria que

    parece ser pura repetio um movimento contnuo de

    expanso, uma transformao, uma evoluo csmica. Eu

    creio que a fsica no pode contest-lo, ela que delineia

    uma histria do cosmo a partir do Big Bang. O tempo ,

    pois, a prpria realidade, o prprio estofo das coisas e do

    mundo. A filosofia de Bergson, como a de Heidegger, faz

    o tempo passar ao primeiro plano. Ela recusa o

    substancialismo que define as coisas por uma essncia

    estvel. A metafsica clssica, dir Bergson, no se deu

    conta do tempo. O homem deve tomar conscincia que

    ele tambm age no tempo, que a criao se faz no

    tempo. No repetir, mas criar, tal o sentido do ser que

    a existncia humana deve reencontrar. Caso contrrio,

    ela se fecha em sociedades estticas, sociedades

    fechadas, sem criao artstica, sem movimento

    espiritual, sem exigncia de futuro.

    IHU On-Line -H nestas idias influncias de

    Herclito e de Kant, embora isso possa, de certa

    maneira, soar de modo contraditrio, j que Herclito

    foi inspirador de Plato e Kant foi um aristotlico?

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    2

    20SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    Pierre Montebello- H pouca influncia de Herclito22

    sobre Bergson. Sua concepo do tempo moderna, ela

    se apia nos conhecimentos modernos da fsica, emborase trate de separar-se dela, e sobretudo nas teorias da

    evoluo (transformismo de Lamarck23e evolucionismo

    de Darwin), que so to importantes no sculo XIX. No

    se trata simplesmente de dizer que as coisas esto em

    movimento. preciso mostrar como elas se movimenta,

    e na filosofia moderna isso cruza com as questes que

    conduzem sobre a matria (cincias fsicas), sobre a vida

    (cincias biolgicas) e sobre a conscincia (cincias

    psicolgicas). Herclito teve uma intuio. Bergson duma consistncia a esta intuio: ele trabalha com os

    utenslios e os conhecimentos modernos.

    A influncia de Kant24sobre a filosofia moderna

    evidentemente essencial. No entanto, desde

    22Herclito de feso(540 a. C. - 470 a. C.): filsofo pr-socrtico,

    considerado o pai da dialtica. Problematiza a questo do devir

    (mudana). (Nota da IHU On-Line)23Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet(Chevalier de Lamarck;

    1744-1829): naturalista francs que desenvolveu a teoria dos caracteres

    adquiridos, uma teoria da evoluo agora desacreditada. Lamarck

    personificou as idias pr-darwinistas sobre a evoluo. Foi ele que, de

    fato, introduziu o termo biologia. (Nota da IHU On-Line)24Immanuel Kant(1724-1804): filsofo prussiano, considerado como

    o ltimo grande filsofo dos princpios da era moderna, representante

    do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais

    influentes da Filosofia. Kant teve um grande impacto no Romantismo

    alemo e nas filosofias idealistas do sculo XIX, tendo esta faceta

    idealista sido um ponto de partida para Hegel. A IHU On-Linenmero

    93, de 22-03-2004, dedicou sua matria de capa vida e obra do

    pensador. Tambm sobre Kant foram publicados os Cadernos IHU em

    formaonmero 2, intitulados Emmanuel Kant - Razo, liberdade,

    lgica e tica. Os Cadernos IHU em formaoesto disponveis para

    download na pgina www.unisinos.br/ihudo Instituto Humanitas

    Unisinos IHU. Kant estabeleceu uma distino entre os fenmenos e a

    coisa-em-si (que chamou noumenon), isto , entre o que nos aparece e

    o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si (noumenon) no poderia,

    segundo Kant, ser objeto de conhecimento cientfico, como at ento

    pretendera a metafsica clssica. A cincia se restringiria, assim, ao

    mundo dos fenmenos, e seria constituda pelas formas a priori da

    sensibilidade (espao e tempo) e pelas categorias do entendimento.

    (Nota da IHU On-Line)

    Schopenhauer aparece uma filosofia que encara Kant ao

    reverso. Schopenhauer, Nietzsche25, Bergson, tornam

    possvel uma nova filosofia da natureza como vontade,vontade de poder, durao. Eles constroem uma nova

    imagem da natureza que no mais aquela das cincias

    fsicas. A metafsica da natureza de Kant no seno a

    fundamentao do mecanicismo nas categorias de

    compreenso do sujeito transcendental. Estes trs

    autores mostram, ao contrrio, que o mecanicismo

    insuficiente para pensar a natureza. Alis, no basta

    mais dizer que o eu, a alma e Deus so indeterminveis.

    preciso compreender de que modo matria, vida,conscincia, universo comunicam e esto em relao.

    IHU On-Line -Ainda nesta linha de raciocnio, qual

    a influncia de Kant sobre o pensamento bergsoniano,

    considerando que o filsofo de Knigsberg afirmava

    que a coisa em si incognoscvel?

    Pierre Montebello- A relao com Kant complexa:

    ele censura Kant por ter crido que a metafsica

    impossvel; ele quer, pois, restaurar a metafsica. Pois

    Bergson est convencido que ns tocamos o absoluto nele

    mesmo. Ele retoma mesmo a frase de So Paulo26emA

    25Friedrich Nietzsche (1844-1900): filsofo alemo, conhecido por

    seus conceitos alm-do-homem, transvalorao dos valores, niilismo,

    vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as

    mais importantesAssim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira, 1998); O anticristo(Lisboa: Guimares, 1916); e

    A genealogia da moral(5. ed. So Paulo: Centauro, 2004). Escreveu

    at 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o

    abandonou, at o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de

    capa da edio nmero 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004. Sobre o

    filsofo alemo, conferir ainda a entrevista exclusiva realizadapela

    IHU On-Lineedio 175, de 10 de abril de 2006, com o jesuta cubano

    Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada

    Nietzsche e Paulo. A edio 15 do Cadernos IHU Em Formao

    intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche. (Nota da IHU On-

    Line)26Paulo de Tarso(3 66 d. C.): nascido em Tarso, na Cilcia, hoje

    Turquia, era originariamente chamado de Saulo. Entretanto, mais

    conhecido como So Paulo, o Apstolo. considerado por muitos

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    2

    21SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    evoluo criadora: No absoluto so Paulo diz em Deus-,

    ns estamos e ns nos movemos. Para Bergson, ns podemos

    conhecer de modo absoluto, e por isso que sua filosofiaprope um conhecimento da matria, da vida, do

    conhecimento. Enquanto somos entes materiais, vivos e

    conscientes, como poderia escapar-nos tal conhecimento? Mas

    preciso empregar o mtodo adequado, no se deve aplicar

    realidade meios dos quais a inteligncia se serve para agir

    sobre a matria. Kant permaneceu num conhecimento

    demasiado intelectual. Ele no colocou o tempo nas coisas, e

    sim as tornou incompreensveis. Ele acreditou, ento, que no

    se podia conhec-las, que elas eram incognoscveis. Mas ainteligncia no feita para conhecer, segundo Bergson, e sim

    para agir sobre a matria, fixando as coisas num espao e num

    tempo matemticos. Em lugar do entendimento, foi preciso

    colocar a intuio que nos situa na durao e no movimento

    criador do universo. O projeto bergsoniano antikantiano

    neste nvel: restituir vida possibilidade da metafsica.

    IHU On-Line -De que modo a idia bergsoniana de seleo

    natural de informaes nos ajuda a compreender a

    singularidade das concepes do sujeito moderno?

    Pierre Montebello- No h idias bergsonianas de seleo

    da informao. Esta uma idia darwinista e Bergson contesta

    o modelo darwiniano de seleo das pequenas diferenas.

    cristos como o mais importante discpulo de Jesus e, depois de Jesus,

    a figura mais importante no desenvolvimento do Cristianismo nascente.

    Paulo de Tarso um apstolo diferente dos demais. Primeiro porque ao

    contrrio dos outros, Paulo no conheceu Jesus pessoalmente. Era um

    homem culto, frequentou uma escola em Jerusalm, fez carreira no

    Tempo (era fariseu), onde foi sacerdote. Educado em duas culturas

    (grega e judaica), Paulo fez muito pela difuso do Cristianismo entre os

    gentios e considerado uma das principais fontes da doutrina da Igreja.

    As suas Epstolas formam uma seo fundamental do Novo Testamento.

    Afirma-se que ele foi quem verdadeiramente transformou o cristianismo

    numa nova religio, e no mais numa seita do Judasmo. Sobre Paulo de

    Tarso a IHU On-Line175, de 10 de abril de 2006, dedicou o tema de

    capa Paulo de Tarso e a contemporaneidade. A verso encontra-se

    disponvel para downloadno stio do IHU, www.unisinos.br/ihu. (Nota

    da IHU On-Line)

    um esquema que no toma em conta as tendncias da vida,

    segundo ele. Mas h em Bergson uma teoria do sujeito

    moderno reconciliado com o universo e com a natureza, e notranscendendo o universo e a natureza. mesmo o essencial

    ao bergsonismo fazer-nos compreender que o sujeito no tem

    valor em si, que ele faz parte de um todo, que aparentado a

    este todo. Ele escrever, assim, que o eu da mesma

    natureza que o todo. O bergsonismo luta contra esta idia de

    uma superioridade da conscincia humana sobre o todo. O

    sujeito apenas uma parte do todo que comunica com ele.

    IHU On-Line -De que maneira as filosofias de Bergson eDeleuze se cruzam? O que tm elas em comum e,

    sobretudo, em que elas diferem?

    Pierre Montebello- A filosofia de Deleuze bastante

    inspirada pela filosofia de Bergson. Ela mantm seus aspectos

    essenciais: primado do universo sobre o sujeito, luta contra a

    fenomenologia que separa o sujeito da natureza e postula sua

    transcendncia, crtica dos falsos problemas e das iluses que

    provm do fato de se fazer do homem um imprio num

    imprio, pensar o movimento criador como o Aberto que no

    cessa de criar e de transformar...

    Deleuze faz passar Bergson para uma filosofia ainda mais

    livre, a-subjetiva em seu fundo, reservatrio de hecceidades...

    Ele se serve disso para fazer surgir o paradoxo de um Aparecer

    EM SI, de uma luz/Universo que precede o sujeito. Para ele,

    como para Bergson, a filosofia deve ser um efeito para

    ultrapassar a condio humana (Bergson). O universo na

    ausncia do homem, eis o que se deve pensar, e no o

    universo visto pelo homem: pois o homem desfigura tudo

    quanto ele reconduz a si. O que o universo quando se faz o

    esforo de pens-lo sem preconceitos antropomorfos e sem

    dogmas teolgicos, sem mim e sem Deus? Tal a questo que

    Deleuze quer levantar e que se assemelha tambm ao

    questionamento de Nietzsche. Que o homem no seja o centro

    do todo, Deleuze o exprimir retendo esta frmula de Primo

    Levi: A vergonha de ser um homem.

  • 5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois

    2

    22SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    Recortar o real em funo das nossas necessidades: condio

    para a vidaENTREVISTA COM DEBORA MORATO

    Em A evoluo criadora, Bergson defende que a funo do intelecto adaptativa e assim

    naturaliza a inteligncia. A nossa ao somente se exerce sobre pontos fixos, agir dominar a

    matria procurando, na pura mobilidade que o estofo da realidade, estabilidades cmodas.

    Para viver, preciso recortar o real em funo das nossas necessidades, acentua a filsofa

    Dbora Morato, em entrevista dada com exclusividade IHU On-Line. A pesquisadora, que

    leciona na Universidade Federal de So Carlos (UFSCAR), em So Carlos, So Paulo, afirma que

    A evoluo criadorah respostas a alguns desafios prprios ao pensamento contemporneo,

    como o caso do problema do dualismo mente/corpo, das relaes entre instinto e

    inteligncia, do papel do tempo na descrio dos fenmenos vitais, do sentido da evoluo,

    entre outros. Destacam-se a crtica aos sistemas da tradio e a necessidade de compreender a

    dimenso histrica do real e do homem.

    Morato graduada, mestre e doutora em Filosofia pela Universidade de So Paulo (USP). Sua

    dissertao intitulou-se Espao, percepo e inteligncia - Bergson e a formao da conscincia

    emprica humanae sua tese, Conscincia e corpo como memria: subjetividade, ateno e vida

    luz da filosofia da durao, ambas orientadas por Franklin Leopoldo e Silva. uma das

    organizadoras das obras Subjetividade e linguagem(So Carlos; Curitiba: Universidade Federal

    do Paran, Universidade Federal de So Carlos, 2006); Questes de Filosofia contempornea(So

    Paulo; Curitiba: Discurso Editorial; UFPr, 2006) e A fenomenologia da experincia - Horizontes

    filosficos da obra de Merleau-Ponty(Goinia: Ed. da UFG, 2006). Confira a ntegra da

    entrevista, concedida por e-mail.

    IHU On-Line - Cem anos aps sua publicao, qual aatualidade da obraA evoluo criadora?

    Dbora Morato - Podemos apontar a atualidade deA

    evoluo criadoraem duas vertentes: uma referida

    histria da filosofia, e outra a um campo que podemos

    delimitar como epistemolgico. Tratando de problemas

    comuns ao horizonte do incio do sculo XX, o livro

    apresenta respostas a alguns desafios prprios ao

    pensamento contemporneo, como o caso do problema

    do dualismo mente/corpo, das relaes entre instinto e

    inteligncia, do papel do tempo na descrio dosfenmenos vitais, do sentido da evoluo, entre outros.

    Destacam-se a crtica aos sistemas da tradio e a

    necessidade de compreender a dimenso histrica do

    real e do homem. importante ressaltar o papel do

    ltimo captulo da obra, em que Bergson expe o

    mecanismo cinematogrfico da inteligncia e mostra

    como a racionalidade ocidental vtima da obsesso pela

    imobilidade e pela repetio ela perde de vista a

    mudana e o movimento que respondem pela essncia da

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    23SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237

    realidade. Temos ali o desenvolvimento da crtica

    endereada histria da metafsica racional, que

    Bergson considera sustentada por uma iluso natural aoentendimento: a imagem ou a idia do Nada. Em relao

    a essa famosa crtica do negativo, a obra de Bento Prado

    Junior27Presena e campo transcendental(publicada

    pela Edusp em 1989 e traduzida para o francs em 2002,

    editora OLMS) tem uma importncia capital. Ela nos

    apresenta uma interpretao original e instigante sobre a

    filosofia de Bergson, mostrando como a discusso da

    iluso do Nada explicita as direes mais fundamentais

    de todas as anlises crticas do filsofo e ressaltando apertinncia da denncia do papel dessa iluso na histria

    da filosofia. O livro tem hoje reconhecimento mundial, e

    um de seus mritos foi ter percebido a importncia da

    discusso do pressuposto do Nada para a filosofia do

    sculo XX.

    Uma articulao entre dados da cincia e construo

    metafsica

    A segunda vertente que atesta a atualidade da reflexo

    deA evoluo criadora o modo pelo qual ela articula

    dados da cincia e construo metafsica. Bergson leva

    at o limite a capacidade de meditar sobre as

    descobertas e inovaes da biologia evolutiva,

    oferecendo hipteses especulativas guiadas pelos fatos

    ou por sua leitura sem pressupostos. As discusses

    pontuais com os cientistas da evoluo explicitam um dos

    aspectos mais interessantes da filosofia bergsoniana,

    precisamente a denncia de que existem conceitos

    27Bento Prado Junior: filsofo brasileiro, graduado pela

    Universidade de So Paulo (USP), ps-doutor pelo Centre National de la

    Recherche Scientifique, CNRS, Frana e livre-docente pela Universidade

    de So Paulo (USP). Docente na Universidade Federal de So Carlos,

    Centro de Educao e Cincias Humanas, autor de Erro, iluso,

    loucura(So Paulo: Editora 34, 2004) e Presena e campo

    transcendental: conscincia e negatividade na filosofia de Bergson

    (So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1989). (Nota da IHU

    On-Line)

    previamente inseridos no trabalho da cincia, isto ,

    pressupostos latentes que dirigem a observao e a

    interpretao dos dados do trabalho experimental. Todasas obras de Bergson reforam essa dificuldade: os dados

    da cincia so observados e descritos por um trabalho

    que , na verdade, pura interpretao, cujos princpios

    os cientistas ignoram em outros termos, usam teses e

    conceitos sem que o percebam. No caso das cincias

    biolgicas, as conseqncias dessa reflexo crtica tm

    especial importncia hoje, momento em que elas

    ocupam papel de protagonistas do progresso cientfico e

    dos dilemas que esse progresso impe humanidade.

    IHU On-Line - Qual a contribuio de Bergson para

    compreender a formao da conscincia emprica

    humana?

    Dbora Morato - Ao procurar compreender os

    fenmenos vitais, Bergson considera a temporalidade ou

    durao. E logo percebeu que a temporalidade est

    essencialmente ligada conscincia. Nesse sentido, sua

    filosofia desenvolve-se como um estudo progressivo e

    profundo da conscincia em geral, dos processos em que

    ela se manifesta. Ele procura superar a noo de

    conscincia herdada das filosofias anteriores, que a

    limitam sua dimenso de conscincia reflexiva e

    intelectual, ou seja, constituinte, se quisermos usar o

    termo prprio s filosofias transcendentais. Bergson

    recupera o papel do estudo da conscincia psicolgica

    numa tentativa de desenvolver um empirismo

    verdadeiro. A conscincia originariamente uma

    insero prtica no mundo, surge na prpria relao que

    se estabelece entre os corpos vivos e os seus ambientes.

    A reflexo sobre a conscincia necessita do estudo das

    aes do corpo; pelo critrio da ao, alis, que

    Bergson determina as diferenas entre as coisas e os

    organismos, entre a matria e a conscincia, entre o em

    si e o para si, os primeiros marcados pela ao necessria

    e automtica, os segundos termos da oposio

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    apresentando a capacidade de elaborar aes

    indeterminadas. Se a conscincia originariamente ao

    no mundo, essencialmenteele progresso contnua dopassado no presente invadindo o futuro ela durao.

    Encontramos no segundo livro de Bergson,Matria e

    memria: ensaio sobre a relao do corpo com o

    esprito (So Paulo: Martins Fontes, 1990), uma hiptese

    detalhada e complexa sobre a origem da conscincia

    humana na percepo, a dimenso originria da

    conscincia. Essa obra liga o estudo sobre a interioridade

    e seus estados psicolgicos, o Ensaio sobre os dados

    imediatos da conscincia (Montevideo: Cludio Garcia,1944), que d conta da dimenso profunda e essencial da

    conscincia enquanto progresso qualitativa, ao estudo

    da conscincia em geral, uma espcie de supra-

    conscincia criadora que o centro da metafsica da

    vida deA evoluo criadora. O trajeto que vai da

    primeira terceira obra, integrando teoria do

    conhecimento e teoria da vida, funda-se ento sobre um

    estudo que circula entre psicologia, biologia e metafsica

    e cujo centro a noo de conscincia a durao, idia

    central de filosofia de Bergson, metafisicamente

    compreendida atravs da anlise dos fenmenos

    conscientes em sua temporalidade concreta.

    IHU On-Line - Como o espao, a percepo e a

    inteligncia se relacionam em sua obra e pensamento?

    Dbora Morato - A teoria da inteligncia de Bergson foi

    o primeiro aspecto de sua filosofia que chamou minha

    ateno e dediquei a esse tema grande parte do meu

    mestrado. Em linhas gerais, Bergson atribui inteligncia

    uma forma, o espao, e uma origem, a percepo. A

    inteligncia tem um funcionamento que pode ser

    esclarecido pela metfora do mecanismo

    cinematogrfico: ela recorta momentos ou partes fixas

    dos fenmenos, como que congelando a dinamicidade

    do real, e tenta recompor a realidade atravs da

    justaposio desses instantes recortados de um todo no

    qual ela est inserida. Em outros termos, tudo o que a

    inteligncia pode conhecer se d por refrao num meio

    homogneo e vazio, no qual so desdobradas partes ouunidades nitidamente separadas, e isso se deve

    justamente ao fato de que ela uma faculdade de ao

    e desenvolve-se na mesma medida do progresso da

    linguagem. EmA evoluo criadora, Bergson defende

    que a funo do intelecto adaptativa e assim naturaliza

    a inteligncia. A nossa ao somente se exerce sobre

    pontos fixos: agir dominar a matria procurando, na

    pura mobilidade que o estofo da realidade,

    estabilidades cmodas. Para viver, preciso recortar oreal em funo das nossas necessidades. Ao desenvolver-

    se modelada por sua funo vital, a inteligncia

    progressivamente leva ao extremo a forma pela qual

    capaz de fixar e recortar o real o espao, um meio

    vazio e homogneo. O espao o meio de conservao

    das partes atualmente dadas por justaposio,

    fundamento das figuras geomtricas e condio da

    percepo e da concepo de objetos distintos e

    determinados. Se o real pura dinamicidade ou

    diferenciao (atributos da durao), evidente que a

    viso intelectual dos fenmenos ser necessariamente

    fragmentada e esttica, ou seja, distorcida e

    equivocada, til para a vida, mas completamente

    inadequada compreenso da verdadeira essncia dos

    fenmenos, o que para Bergson ainda e sempre a

    tarefa da filosofia.

    IHU On-Line - Como a construo da metafsica

    enquanto experincia integral - conhecimento interior

    e imediato como atributos da intuio em Bergson -

    pode ser explicada?

    Dbora Morato - A defesa e proposta de refundao da

    metafsica em novas bases um aspecto do pensamento

    bergsoniano que provoca muito interesse e tambm

    muita rejeio no ambiente filosfico atual. Afinal, falar

    de metafsica em plena aurora do sculo XXI pode

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    parecer provocao. Mas o fato que Bergson tem o

    mrito de assumir aquilo que muitos pensadores

    preferem ignorar: as diversas reas e os vrios temasfilosficos, ao se aprofundarem, encontram por seu

    prprio desenvolvimento questes de ordem metafsica.

    Desde logo, ele percebeu que a filosofia evolucionista

    implica uma hiptese de fundo sobre a criao e o

    tempo, passando, ento, a reformular o equacionamento

    de temas filosficos pela crtica dos pressupostos

    metafsicos herdados da tradio. O desafio que Bergson

    procura enfrentar justamente o de refazer a

    metafsica, agora pautada pela noo de experincia e,portanto, com apoio nos fatos. A ttulo de exemplo,

    podemos citar o tratamento que ele confere ao problema

    do dualismo, estudado emMatria e memria: a

    discusso e reposio do problema consiste ali em traz-

    lo para o terreno dos fatos da memria, mais

    especificamente aos fatos da psicopatologia (os casos de

    afasia que estavam na ordem do dia da pesquisa

    cientfica na passagem do sculo XIX ao XX). As doenas

    da memria mostram uma conservao de lembranas

    que no se atualizam adequadamente, mas no so

    destrudas no crtex porque se apresentam em situaes

    inesperadas, reforando a tese bergsoniana de que leses

    cerebrais impedem processos globais de organizao,

    mas no suprimem as cenas ou as representaes

    passadas. O que impressiona nessas anlises a

    capacidade que Bergson tem de extrair conseqncias

    filosficas cruciais de fenmenos simples e corriqueiros,

    tais como o a aprendizado de uma lio decorada ou de

    um exerccio fsico, descrevendo a formao de uma

    memria do corpo em que reside uma das mais belas

    passagens do livro.

    Metafsica como experincia integral

    A definio de metafsica como experincia integral

    tem relao direta com o mtodo da intuio. A

    experincia concreta dos seres humanos sempre uma

    mistura entre a dimenso temporal e a espacial. O

    domnio da vida por excelncia misto e, por no se

    darem conta desse fato, os diversos filsofos daexperincia no souberam compreender e descrever a

    experincia concreta. O mtodo da intuio trabalha em

    primeiro lugar de modo analtico, procurando dissociar os

    fenmenos em suas partes puras, seus limites. H uma

    definio clebre do trabalho da intuio que explicita o

    seu f