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A EXCEÇÃO E A REGRA: IDEOLOGIA DE GÊNERO E ESCOLA SEM PARTIDO NA ERA PÓS-GOLPE Fabiana Aparecida de Carvalho (DBI/UEM) [email protected] Resumo: O presente trabalho, em caráter ensaístico, discute o vínculo entre o Movimento Escola sem Partido e o combate a uma suposta Ideologia de Gênero, apontando a criação de bolhas de exceção e regras de vigília, controle e normatização que se debruçam sobre os gêneros e as diferenças e instauram a potência subjetivadora do medo nas pedagogias culturais. Palavras-chave: Estudos de Gênero; Escola sem Partido; Biopolíticas. SEM PARTIDO... SEM GÊNERO... SEM LIBERDADE... SOBRE O QUÊ SE É PRECISO FALAR No cenário atual do país, o movimento Escola sem Partido (ESP) tem-se configurado como uma “política de exceção” – entendida neste ensaio como tática de deslocamento de um pensamento provisório ou excepcional que passa a se consolidar como algo maior (AGAMBEN, 2004), ou seja, como tecnologias e dispositivos de governo dos corpos escolares (FOUCAULT, 1988) que visam, sobretudo, a imposição de um sistema totalitário de regra nas políticas públicas educacionais. O ESP foi fundado, em 2004, por Miguel Nagib, advogado e ex-procurador do Estado de São Paulo, influenciado por organizações conservadoras norte- americanas e pelo astrólogo Olavo de Carvalho, escritor pouco conhecido até 2014, transformado, no entanto, em peça fundamental para a construção ideológica do afastamento da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e para a eleição de Jair

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A EXCEÇÃO E A REGRA: IDEOLOGIA DE GÊNERO E ESCOLA SEM

PARTIDO NA ERA PÓS-GOLPE

Fabiana Aparecida de Carvalho (DBI/UEM)

[email protected]

Resumo: O presente trabalho, em caráter ensaístico, discute o vínculo entre o Movimento Escola sem Partido e o combate a uma suposta Ideologia de Gênero, apontando a criação de bolhas de exceção e regras de vigília, controle e normatização que se debruçam sobre os gêneros e as diferenças e instauram a potência subjetivadora do medo nas pedagogias culturais. Palavras-chave: Estudos de Gênero; Escola sem Partido; Biopolíticas. SEM PARTIDO... SEM GÊNERO... SEM LIBERDADE... SOBRE O QUÊ SE É PRECISO FALAR

No cenário atual do país, o movimento Escola sem Partido (ESP) tem-se

configurado como uma “política de exceção” – entendida neste ensaio como tática

de deslocamento de um pensamento provisório ou excepcional que passa a se

consolidar como algo maior (AGAMBEN, 2004), ou seja, como tecnologias e

dispositivos de governo dos corpos escolares (FOUCAULT, 1988) que visam,

sobretudo, a imposição de um sistema totalitário de regra nas políticas públicas

educacionais.

O ESP foi fundado, em 2004, por Miguel Nagib, advogado e ex-procurador do

Estado de São Paulo, influenciado por organizações conservadoras norte-

americanas e pelo astrólogo Olavo de Carvalho, escritor pouco conhecido até 2014,

transformado, no entanto, em peça fundamental para a construção ideológica do

afastamento da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e para a eleição de Jair

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Bolsonaro, em 2018. Tanto Nagib quanto Carvalho difundem, em redes sociais pela

internet, palestras e entrevistas, críticas ao que denominam de “agenda ou projeto

doutrinador de esquerda”, ou seja, distorcem as pautas das militâncias de mulheres,

de LGBT+, de grupos negras/os, indígenas e de outras minorias sociais que

ocuparam, histórica e legalmente, as demandas governamentais e o cenário sócio

jurídico das políticas públicas. Tais pautas estão sendo deslegitimadas, esvaziando-

se os direitos de quem as reivindicam, principalmente, quando os discursos do ESP

cruzam-se com as proposições e as políticas de Estado mínimo, com o ideário

neoliberal de compensação da balança econômica e com as discursividade de

promoção da moralidade e dos ideais conservadores da sociedade.

O movimento cresceu em representatividade. É defendido, na forma de

Projetos de Lei (PL) e/ou como grupo organizado em rede social, por diversos

partidos políticos de direita ou extrema-direita, grupos empresariais ligados a

sistemas de ensino privados, legisladoras/es que defendem interesses de igrejas e

por organizações como o Movimento Brasil Livre. Está empenhado em ditar regras

para coibir a livre expressão nas escolas brasileiras, vigiar docentes em suas

liberdades de ensino e cátedra, cercear os conteúdos curriculares que possuem

importância na construção do ensino crítico e da educação cidadã com a falácia de

descontaminação da escola de posições ideológicas, do marxismo cultural e da

ideologia de gênero. Estabelece, ainda, uma perigosa política de delação, censura e

punição que afetará e governará a população escolar, a proposição de alteração da

Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBEN/1996) para se regulamentar as

práticas de vigília na escola e o revisionismo de livros didáticos, substituindo temas

contundentes e fatos históricos que requeiram a compreensão crítica da realidade

por visões não oficiais e distorcidas da história.

Embora exija a afixação de cartazes com deveres docentes em salas de aula,

o ESP estabelece obrigações morais, condenações, patrulhamento de conteúdos

históricos, socioculturais e econômicos em função de uma educação totalmente

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técnica, descontextualizada, acrítica e pseudocientífica. Além disso, abre fraturas

para o desmantelamento da escola pública, aumentando a interferência do poder

privado no fórum coletivo escolar e quebrando com a gestão comunitária dos

conteúdos e dos projetos políticos pedagógicos das instituições. Sob esse enfoque,

podemos compreendê-lo como uma espécie de biopolítica dirigida à população

escolar, como um esvaziamento banal e totalitário do peso das violências

epistemológicas sofridas pelas minorias sociais, como uma bolha de exceção que

relativiza os direitos adquiridos e as compreensões jurídicas para se naturalizar

posturas persecutórias aos que divergem dos ideários sociais conservadores e

extremistas (POLIZEL; OLIVEIRA; CARVALHO, 2018).

Recentemente, o ESP ganhou forças e deslocou sua discursividade para uma

cruzada contra os estudos de gêneros e contra as teorias feministas; essa guerra,

entendida como santa, por sua vez, é também empreendida por devotas/os

combatentes de uma suposta "Ideologia de Gênero", adeptas/os de movimentações

cristãs como a “Pró Vida”, a “Pró Família”, a “Opus Dei”, o grupo “Cristãos contra da

ideologia de gênero” e o europeu “La Manif pour tous”, conhecidos por se

articularem contra os direitos reprodutivos, os direitos sexuais, contra a

descriminalização do aborto e como antagonistas da visibilidade social, dos direitos

e dos casamentos LGBT (CARVALHO, 2018).

As votações dos Planos de Educação, em 2014 e 2015, foram exemplos

emblemáticos de estratégias de controle que, discursivamente, incidiram na opinião

pública e mobilizaram, pelo empenho de tais movimentações e das bancadas do

agronegócio e do armamento da população (apelidadas de Bíblia, Boi e Bala), a

denegação de mulheres, negras/os e LGBT nas políticas educativas a serem

promovidas no decênio 2014-2024; a égide é a justificativa de que tais temáticas

desconstruiriam os valores tradicionais da família cristã, as leis naturais e biológicas

e a base religiosa defensora da determinação sexo/gênero ao nascimento.

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Há que se considerar uma potencialização dos saberes teológicos e dos

dispositivos anti-gêneros para legitimar a ordem sexual patriarcal e hetero-centrada.

Vale ainda dizer que os dispositivos e catecismos religiosos atuais defendem uma

ontologia da diferença/complementariedade de dois sexos/gêneros, reafirmando o

direito/lei natural a partir da reprodução e do amor. Esse é um contexto a reforçar a

negação das pessoas LGBT+ pelas Igrejas de credo cristão, pois as mesmas

consideram as condutas sexuais diferentes de complementaridade homem/mulher

como depravações, distorções da natureza e atos de pecado intrinsecamente

desordenados.

Posso, portanto, dizer que antes de ser uma mobilização que ganhou as ruas

com os brados da militância católica e ou evangélica, a eficácia doutrinária

adensada no que religiosas/os denominam de Ideologia de Gênero se constitui a

nova vontade de saber, uma deslocamento de pensamento restrito a determinados

grupos para generalizar a regra de que o verdadeiro sexo e o verdadeiro gênero são

fatos de uma natureza e de uma biologia dos seres.

No Brasil, a aliança de religião, de discursividade cientificista-naturalista e as

manobras políticas e econômicas conformou parte dos protestos do ESP e a pós-

verdade dos gêneros a criar a negação das subjetividades diferenciadas nos

espaços públicos. Em meio a essa empreitada, a insurgência de debates é ainda

ofuscada no mesmo interim que o Estado relativiza os valores laicos e não defende

posturas de direito, inclusive dentro das escolas, pois sendo essas instituições

estatais, elas não poderiam contribuir para a superposição de enunciados sobre o

sexo, para a marginalização das sexualidades diferenciadas, com a manutenção do

status quo em relação às violências de gênero e em relação à discriminação das

alteridades (CARVALHO, 2018).

Basta olhar o sítio do ESP1, que disponibiliza mais de 50 postagens,

depoimentos, matérias, vídeos e artigos escritos por advogadas/os, psicólogas/os, 1 Para consultar: www.escolasempartido.org

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pais e mães contrários aos debates escolares sobre gênero, violências, diversidade,

corpo e educação sexual. Os materiais e livros didáticos também são alvos de

críticas e perseguições, pois seriam, segundo o mesmo sítio, os principais

inculcadores do pensamento da ideologia de gênero e do construcionismo sócio-

relacional dos corpos.

Enfim, a totalidade desses discursos e práticas constrói posições de fala,

assujeitamentos e ou lugares nos quais a elite moral pode se reconhecer como

escolhida e consolidar a escolarização dos gêneros com base em suas próprias

expectativas de feminilidade e masculinidade. Paulatinamente, esses ideários

hieráticos adentraram nas compreensões escolares e familiares como dispositivos

de sexualidade e como investidas de uma dinâmica de poder que tenta, entre outras

ações, subjetivar e normatizar corpos, gêneros, prazeres, vivências tomando-os

sempre em função de ideais regulatórios que subordinam as pessoas a uma

sociedade que exclui, classifica e patologiza.

REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. CARVALHO, F.A. Os discursos biológicos na educação para os gêneros – as sexualidades – e as diferenças: aproximações e distanciamentos. 2018. 246 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência e a Matemática) – Centro de Ciências Exatas. Universidade Estadual de Maringá. FOUCAULT, M. História da Sexualidade I. 14a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. POLIZEL, A.L.; OLIVEIRA, M. A.; CARVALHO, F.A. Uma produção de exceção: o anti-movimento Escola sem Partido, a soberania e o professorado nu. In: DICKMANN, I.; LAZAROTTO, A.F. (Org.). Educação e sociedade: temas emergentes. 1ª. ed. Chapecó: Plataforma Acadêmica, 2018, v. 3, p. 319-334.