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A EXPERIÊNCIA DA INTERSUBJETIVIDADE COMO FUNDAMENTO DA SUBJETIVIDADE: A CONTRIBUIÇÃO DE GABRIEL MARCEL NO PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM Manoel Messias de Oliveira 13 Docente da Unidade Acadêmica Especial de Educação – UFG/RC Resumo: Compreendemos que o relacionamento interpessoal é de suma importância para que o processo de ensino aprendizagem. Ao longo dos séculos, renomados autores abordaram o referido tema, entre os quais, G. Marcel, M. Buber, E. Mounier, J. P. Sartre e os demais existencialistas. Apresentamos o resultado parcial de nossa investigação, inserida em nosso projeto de pesquisa “O Existencialismo Judaico-cristão e a Educação”. Investigamos o pensamento de Gabriel Marcel a respeito do relacionamento interpessoal, com o objetivo de averiguar de que modo o mesmo pode colaborar autênticas experiências intersubjetivas no ambiente acadêmico. Investigamos alguns aspectos do relacionamento humano entre professores e alunos, e demais agentes envolvidos no processo cognitivo. Em nosso trabalho, utilizamos basicamente a pesquisa bibliográfica: selecionamos as obras do autor, entre as quais merece destaque o livro “os homens contra o homem”, a seguir, analisamos obras complementares, do autor e de comentadores. Em relação aos desafios e problemas oriundos das relações interpessoais, fizemos uso de artigos e livros que versam sobre o tema. O resultado de nossa investigação, mesmo que parcial, nos leva a afirmar que Marcel, pode contribuir para melhorar o relacionamento interpessoal e cooperar para o desenvolvimento de pessoas, com pensamento autônomo e capacidade de convivência real. Apresentamos a fundamentação filosófica, abordando o conceito de fenomenologia, pois ela precede e lança as bases sob as quais se ergue o existencialismo. Relatamos o pensamento de Gabriel Marcel, levantamos as principais questões relacionadas ao ambiente escolar: relação interpessoal entre professores, alunos e demais agentes. Concluímos que sem relações intersubjetivas é impossível desenvolver a subjetividade e que a proposta pedagógica de matriz existencialista visa educar para a liberdade e para a autonomia, combatendo a alienação e o aviltamento. Palavras-chave: educação, intersubjetividade, subjetividade, liberdade e aviltamento. 13 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU; Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea e em Ciências da Religião, ambas pela UFU. Licenciado em Filosofia e Bacharel em Teologia. Endereço eletrônico: [email protected] 67 III EHECO – CatalãoGO, Agosto de 2015

A EXPERIÊNCIA DA INTERSUBJETIVIDADE COMO … · Jean-Paul Sartre, no texto O Existencialismo é um Humanismo, alega que o termo

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A EXPERIÊNCIA DA INTERSUBJETIVIDADE COMO FUNDAMENTO DASUBJETIVIDADE: A CONTRIBUIÇÃO DE GABRIEL MARCEL NO PROCESSO DE

ENSINO APRENDIZAGEM

Manoel Messias de Oliveira13

Docente da Unidade Acadêmica Especial de Educação – UFG/RC

Resumo: Compreendemos que o relacionamento interpessoal é de suma importância para queo processo de ensino aprendizagem. Ao longo dos séculos, renomados autores abordaram oreferido tema, entre os quais, G. Marcel, M. Buber, E. Mounier, J. P. Sartre e os demaisexistencialistas. Apresentamos o resultado parcial de nossa investigação, inserida em nossoprojeto de pesquisa “O Existencialismo Judaico-cristão e a Educação”. Investigamos opensamento de Gabriel Marcel a respeito do relacionamento interpessoal, com o objetivo deaveriguar de que modo o mesmo pode colaborar autênticas experiências intersubjetivas noambiente acadêmico. Investigamos alguns aspectos do relacionamento humano entreprofessores e alunos, e demais agentes envolvidos no processo cognitivo. Em nosso trabalho,utilizamos basicamente a pesquisa bibliográfica: selecionamos as obras do autor, entre asquais merece destaque o livro “os homens contra o homem”, a seguir, analisamos obrascomplementares, do autor e de comentadores. Em relação aos desafios e problemas oriundosdas relações interpessoais, fizemos uso de artigos e livros que versam sobre o tema. Oresultado de nossa investigação, mesmo que parcial, nos leva a afirmar que Marcel, podecontribuir para melhorar o relacionamento interpessoal e cooperar para o desenvolvimento depessoas, com pensamento autônomo e capacidade de convivência real. Apresentamos afundamentação filosófica, abordando o conceito de fenomenologia, pois ela precede e lança asbases sob as quais se ergue o existencialismo. Relatamos o pensamento de Gabriel Marcel,levantamos as principais questões relacionadas ao ambiente escolar: relação interpessoal entreprofessores, alunos e demais agentes. Concluímos que sem relações intersubjetivas éimpossível desenvolver a subjetividade e que a proposta pedagógica de matriz existencialistavisa educar para a liberdade e para a autonomia, combatendo a alienação e o aviltamento.

Palavras-chave: educação, intersubjetividade, subjetividade, liberdade e aviltamento.

13 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU; Especialista emFilosofia Moderna e Contemporânea e em Ciências da Religião, ambas pela UFU. Licenciadoem Filosofia e Bacharel em Teologia.

Endereço eletrônico: [email protected]

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1. Introdução

O presente texto resulta da investigação a respeito da contribuição do existencialismo

judaico-cristão para o processo de ensino aprendizagem do homem contemporâneo. Apresenta

os resultados parciais do projeto de pesquisa que desenvolvemos ao longo dos últimos anos.

Nossa investigação aborda, de modo especial, as propostas filosóficas do judeu Martin Buber,

dos cristãos Emmanuel Mounier e Gabriel Marcel. Nosso objetivo é refletir sobre a condição

do homem, ser existente, itinerante, chamado a fazer-se ao longo de sua vida, construindo a si

e o mundo a sua volta, a partir de escolhas constantes, procurando desenvolver um projeto de

vida que possibilite a sua realização pessoal e a convivência com os outros homens, com os

quais é responsável para edificar um mundo com significado. Nesse sentido, refletimos sobre

a influencia do existencialismo judaico-cristão para a educação dos existentes do século XXI.

Na esfera da educação, é imperativo refletir sobre o relacionamento interpessoal entre

todos que direta ou indiretamente estão vinculados ao processo de ensino aprendizagem, em

especial educandos e educadores, averiguando como se dá a relação entre professores e alunos

e entre os seus respectivos pares.

O tema do relacionamento humano perpassa a história da educação, e por sua

relevância, foi e é objeto de reflexão de pensadores das mais diferentes áreas das denominadas

ciências que investigam o ser humano.

Cremos que os diversos modos de viver ou experienciar o relacionamento interpessoal

possa ser sintetizado em dois grandes grupos, um no qual o relacionamento é fictício,

pseudorrelacionamento, o outro denominado de autêntico ou real14. O primeiro grupo

congrega as pessoas marcadas pelo egocentrismo, de tal modo que um sujeito não reconhece

no interlocutor um tu. Se a educação for pautada nessa proposta, ela inviabilizará o

desenvolvimento da subjetividade, e irá colaborar para o fortalecimento da alienação e do

aviltamento. O segundo, pautado no encontro verdadeiro, supõe uma adequada experiência

14 A divisão que apresentamos é fundamentada na proposta filosófica de G. Marcel, M. Bubere E. Mounier.

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intersubjetiva. Uma pedagogia, alicerçada nesse princípio promoverá a autonomia de

pensamento e ação: vai gerar pessoas e não meros fantoches.

Como o pensamento pedagógico existencialista pode cooperar para que, nas diversas

esferas nas quais se processa o ensino aprendizagem, se faça verdadeiras experiências

interpessoais? De que modo estas experiências podem contribuir para o processo cognitivo?

Nesse trabalho, iremos apresentar o principio do existencialismo, a seguir, expor a

contribuição de Gabriel Marcel, no que se refere a alteridade, a liberdade e ao aviltamento, a

seguir, destacaremos algumas questões ou desafios na esfera da educação, em especial as

dificuldades relativas as relações interpessoais entre professores e alunos e finalmente

refletiremos sobre as propostas de Marcel para melhorar estas questões.

2. O existencialismo

O existencialismo é um desdobramento da fenomenologia, por este motivo, antes de

abordarmos ao pensamento de Marcel, cremos ser necessário descrevermos sinteticamente o

conceito e os princípios da fenomenologia. Ela acredita que a consciência é sempre

consciência de alguma coisa. Esta consciência, na perspectiva de Heidegger, não é

desencarnada: separada do mundo, mas é uma consciência encarnada: ela está numa situação

dada. O “Ser-ai”, o Dasein, toma conhecimento do mundo que, a princípio, ele próprio não

criou e ao qual se acha submetido. Em outras palavras, o “ser-aí”, lançado no mundo, um

mundo que não escolheu, mas nele é chamado a transcender a facticidade: é convocado a

assumir o seu próprio destino, a edificar o seu ser, enfim a assumir a sua existência.

Conforme Heidegger, o homem pode viver o seu ser de um modo autentico ou recusar

o seu ser, e viver de uma maneira inautêntica. Aquele que não assume a edificação consciente

de seu ser, recusa a autenticidade, e vive a inautenticidade. O indivíduo inautêntico abdica de

assumir o seu destino, de escolher o seu ser: nega a si mesmo. Ele se degrada, se anula, perde,

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ou recusa assumir a sua identidade, se despersonaliza. Abdica de sua subjetividade, faz o que

todos fazem, é um elemento sem identidade: perdido na massa.

Por sua vez, o individuo que assume as rédeas de seu destino, vive a autenticidade, se

projeta, se lança para frente – para o futuro, transcende a facticidade. Supera as situações não

escolhidas, escolhe o seu ser, dentro das possibilidades reais, enfim, fazendo a experiência da

liberdade, edifica a si mesmo no mundo concreto no qual se encontra situado. É possível

afirmar, pois, que aqueles que assumem os destinos de sua existência, tornam-se sujeitos e

experimentam a liberdade, mesmo que situada.

Diante do exposto, aparece uma grande que são: como o individuo toma consciência

de seu Ser no mundo? Em outras palavras, o que faz com que o indivíduo se torne impar em

relação aos demais membros da sociedade na qual esta inserido?

Esta questão é objeto de investigação dos pensadores existencialistas, que acreditam

ser necessário ter consciência de si mesmo, para poder compreender o mundo e o sentido da

vida. Isso nos remete a cidade de Delfos, mais precisamente para o templo dedicado a Apolo,

em cuja entrada estava escrito o preceito, assumido e difundido por Sócrates15: “conhece-te a

ti mesmo”. O conhecer a si mesmo é a base para um agir consciente, cuja ação seja pautada na

verdade, na liberdade e na coexistência. O indivíduo necessita compreender a si e aos outros

com quem constrói a História, daí a importância de responder à questão capital: quem é o

homem?

Para responderem a essa questão, os existencialistas se voltam para a realidade

concreta, para o homem encarnado, situado e em permanente construção. Compreendem que

o homem, o existente, é um ser a caminho, entendem que a existência é o modo de ser

específico do homem no mundo, no qual, em sua liberdade, deverá edificar o seu ser. Ao

refletir sobre o homem itinerante, jogado no mundo, compreendem que ele não está só, daí

15 Emmanuel Mounier, ao descrever o Existencialismo como uma árvore, coloca como duasde suas raízes os estóicos e Sócrates. Cf. Mounier (1963). Marcel, no prefácio da obraintitulada Mistério do ser, classifica a sua reflexão filosófica como neo-socratismo ousocrático cristão.

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elevarem a questão da alteridade ao centro de sua reflexão, conforme nos diz Mounier: “[...] a

relação com outrem, pelo menos no mesmo plano dos [temas] restantes. Foi o existencialismo

quem a promoveu sùbitamente ao seu lugar central” (MOUNIER, 1963, p. 137).

Sabe-se que não é uma tarefa fácil definir o que se entende por existencialismo, pois,

conforme Jolivet, existem “[...] várias formas de existencialismo que, à primeira vista,

parecem contradizer-se, [...]” (JOLIVET, 1961, p. 3). Mas Sartre, apesar de reconhecer que

existem diferentes maneiras de se compreender o termo existencialismo, propõe um ponto em

comum: a existência precede a essência.

Jean-Paul Sartre, no texto O Existencialismo é um Humanismo, alega que o termo

existencialismo estava sendo utilizado de tal modo que já não significava rigorosamente mais

nada. Era aplicado sem critérios e isso, certamente, gerava confusão no conceito: parece que

se vivia a “moda” existencialista. O termo provocava medo, talvez por muitos ignorarem o

seu sentido, a ponto de Sartre indagar: “Será que, no fundo, o que amedronta na doutrina que

tentarei expor não é o fato de que ela deixa uma possibilidade de escolha para o homem? Para

sabê-lo, precisamos recolocar a questão no plano estritamente filosófico. O que é o

Existencialismo?” (SARTRE, 1987, p. 4). Tentando esclarecer a noção, Sartre disse que seria

fácil fazê-lo, embora o fato de haver dois tipos de existencialista (o cristão e o ateu) tornasse

essa tarefa um pouco mais complicada. Nas palavras do Próprio Sartre:

O que torna as coisas complicadas é a existência de dois tipos de existencialista: porum lado, os cristãos16 – entre os quais colocarei Jaspers e Gabriel Marcel, deconfissão católica – e, por outro, os ateus – entre os quais há que situar Heidegger,assim como os existencialistas franceses e eu mesmo. O que eles têm em comum ésimplesmente o fato de todos considerarem que a existência precede a essência, ou,se preferir, que é necessário partir da subjetividade. [...] (SARTRE, 1987, p. 4-5).

16 Não sabemos o motivo de Sartre não mencionar Martin Buber, um “existencialista” àmoda de Marcel, mas ligado ao judaísmo e não ao cristianismo. Talvez fosse preferívelseparar existencialismo de caráter religioso do existencialismo ateu.

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O principal objeto da reflexão dos pensadores existencialistas é a condição do

homem enquanto um ser que está no mundo. Um ser existente que é chamado a fazer-se ao

longo de sua vida, construindo a si e o mundo a sua volta, a partir de escolhas constantes,

procurando desenvolver um projeto de vida que possibilite a sua realização pessoal e a

convivência com os outros homens, com os quais é responsável para edificar um mundo com

significado. Dessa forma, o vínculo com o outro pode ser mantido para que todos vivam com

dignidade humana. Nesse contexto, surgiu a indagação sobre o papel da Educação: qual a

influência que recebe da Filosofia Existencialista? Como contribui para a liberdade ou para o

aviltamento do homem contemporâneo?

3. Fundamentos filosóficos: Gabriel Marcel – liberdade e aviltamento

O mundo contemporâneo propicia a retomada da reflexão sobre a existência humana

em seu cotidiano. O ser humano é um ser itinerante, um ser inacabado, chamado a edificar a si

e o mundo no qual está inserido. Para cumprir essa missão, o homem necessita do outro: deve

fazer a experiência do encontro, da partilha da vida e dos projetos. Parte-se do principio da

proposta filosófica de Gabriel Marcel, segundo a qual o homem como um ser itinerante é

chamado a responder aos desafios da existência, vivendo a liberdade e superando os possíveis

aviltamentos que tentam sufocá-lo. Nesse contexto, refletiremos sobre o papel fundamental da

Educação.

Gabriel Marcel nasceu na cidade de Paris, no dia 7 de dezembro de 1889, e faleceu no

dia 8 de outubro de 197317. Ele é um homem itinerante, cuja reflexão se afasta do idealismo e

enraíza-se no concreto, na experiência vivida. Segundo Zilles (1995), Marcel “procura

elucidar os conflitos que existem concretamente na vida” e, ainda, “a filosofia da existência

de Marcel situa historicidade e finitude no próprio Ser. Formula a questão do Ser numa

situação histórica concreta [...]” (ZILLES, 1995, p. 32); enfim, busca refletir sobre o mundo

concreto do homem.

17 Gabriel Marcel faleceu em função de uma deficiência cardíaca.

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Em Os homens contra o homem, cujo título deveria ser “O universal contra as

multidões”, Marcel confirma a necessidade da experiência histórica para compreender o real.

Isso pode ser comprovado em várias passagens do referido livro, especialmente no início da

primeira parte, que tem por título Que é um homem livre? Marcel diz que esta questão não

pode ser respondida abstratamente, sem referências a situações históricas. Responder a

referida questão implica dizer quem é o homem, real e concreto. O que não é possível fora da

história. A liberdade, a vivência da subjetividade é construída ou negada ao longo da vida. Daí

surgiu o nosso interesse na investigação a respeito do papel da educação no processo de

promoção da liberdade ou do aviltamento, cujo resultado é o texto ora apresentado.

Para Marcel, o homem é um ser em construção, é um vivente que caminha

constantemente e no caminho se faz, é um homem itinerante, o que não permite uma

ontologia abstrata, mas sim concreta. A ontologia brota da vida, pois somente a experiência

existencial possibilita vislumbrar o sentido da existência e perceber que o existente é uma

obra inacabada. Daí, a necessidade de caminhar, de buscar constantemente criar e recriar a

vida, uma vez que “[...] cada ser concreto, em situação concreta que deve defrontar, é único e

incomensurável com qualquer outro ser e qualquer outra situação” (MARCEL, s.d, p. 25).

A experiência do existente não é isolada; não obstante ser única, ela se dá com a

convivência com outros existentes, por isso, para que o sujeito tenha consciência de sua

subjetividade, necessita do encontro com o outro: com o olhar do outro.

Marcel admite que o único caminho para o conhecimento de si mesmo e para a

descoberta do sentido da vida é o encontro com o olhar do outro. Ele crê que a alteridade é

condição sine qua non para a ipseidade. Assim sendo, nenhum homem poderá ter uma

consciência real de si se não for capaz de fazer a experiência da alteridade: é o olhar do outro

que revela ao existente o seu ser. O que nos leva a atestar, que conforme Marcel, não é

possível a subjetividade sem a experiência do encontro entre sujeitos: intersubjetivos.

Para Marcel, a experiência intersubjetiva, na qual as pessoas se encontram realmente,

se doam reciprocamente, é a fonte da qual emana a vida, criada e recriada constantemente, ao

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longo da existência, o que impede que a pessoa humana possa ser definida de uma vez por

todas, que ela seja encarcerada em sistemas filosóficos que reduzam a experiência vivida em

conhecimento objetivado e fechado.

Um homem livre não pode ser conhecido abstratamente, mas pode ser conhecido,

mesmo que parcialmente, por ser um mistério, ao longo de sua existência. Assim, diante da

pergunta “Que é um homem livre?” Marcel, responde de maneira precisa: na experiência

vivida, somente nela, o sujeito pode chegar ao conhecimento, mesmo que temporário18. Eis o

desafio da investigação filosófica: propiciar uma reflexão gestada na experiência existencial e,

a partir dela, tentar compreender o homem, com seus acertos e erros, na incerteza da

caminhada, eis o que se denomina filosofia concreta.

O ser encarnado, o existente, é um ser em construção e se edifica ao longo do

caminho, na convivência com seus semelhantes. Marcel realça a importância da alteridade,

pois crê que somente na experiência intersubjetiva, no encontro verdadeiro, é possível uma

autêntica reflexão ontológica.

Pensar a partir da vida, da experiência, do encontro com [...], eis o caminho para se

refletir com propriedade sobre o Ser; eis a autêntica via de acesso ao Ser, que se revela

mediante o que se poderia chamar de atos ontológicos, como o amor, a fidelidade e a

esperança, bem como em outras autênticas experiências concretas como a amizade e a

liberdade.

A liberdade é uma característica dos sujeitos, dos homens e mulheres que pensam e

agem com autonomia, por isso, ela não deveria ser negada. Negar a liberdade é negar a

subjetividade, a autonomia, a dignidade humana, mas infelizmente, ao longo da história é fácil

encontrarmos situações nas quais a esses fatos foram verificados. Como por exemplo, no

regime fascista, que denegriu a dignidade de milhares de pessoas, fez uso de diferentes

técnicas de aviltamento, compreendidas por Marcel como “[...] processos intencionais para

18 A compreensão do homem é sempre temporária, visto que o ser existente é um mistérioinverificável, que se cria e se recria constantemente na experiência vivida, e somente nessaexperiência pode ser compreendido.

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atacar e destruir em indivíduos de categoria determinada o respeito de si mesmos,

transformando-os pouco a pouco em resíduo que se considera tal e só pode desesperar não só

intelectualmente, mas até vitalmente, de si próprio” (MARCEL, s.d., p. 39). Entre as técnicas,

podemos verificar o fomento ao ressentimento, a espionagem recíproca e a mentira. Essa

última, segundo Marcel, “[...] venha de onde vier, vai sempre favorecer a servidão”

(MARCEL, s.d., p. 32).

Vale lembrar que, em nossos dias, as técnicas de aviltamento continuam a serviço de

instituições, nas várias esferas da sociedade: propagandas, ideologias em sentido restrito,

meias verdades, disputas por poder ou prestigio, em especial nas ações das pessoas que não

enxergam em seus semelhantes um companheiro do caminho, mas sim um oponente, um

rival, que deve ser dominado, silenciado e excluído. Não é possível falar de subjetividade

autêntica em ambientes nos quais a liberdade é negada, pois negar a liberdade é negar a

condição humana.

A verdadeira reflexão sobre o ser só é possível no encontro e na vida concreta, pois, na

medida em que se pensa a partir da experiência vivida, possibilita-se a compreensão da

experiência alheia, a qual não está desvinculada da própria experiência. Nas palavras de

Marcel: “[...] na medida em que me elevo a uma percepção verdadeiramente concreta de

minha própria experiência, mais estarei em condições pela mesma medida de ascender a uma

compreensão efetiva do outro, da experiência do outro” (MARCEL, 1964, p. 10). Essa

experiência, se autêntica, possui a virtude de combater o espírito egocêntrico e viabilizar a

autêntica convivência, que sustenta ou nutre a força criadora.

Uma pessoa que, em seu cotidiano, não consegue conviver, refugia-se no egocentrismo

e se isola; não se abre ao outro, mesmo que ele esteja à sua frente, não é capaz de

autoconhecimento. Essa pessoa não consegue ver quem ela é e: apenas é capaz de criar uma

pseudo imagem de si mesma. O indivíduo, preso ao egocentrismo, deixa de saber quem ele

realmente é.

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O egocentrismo é um obstáculo para experiência autêntica, pois inviabiliza ou dificulta

o encontro; ele só se sustenta quando o indivíduo se fecha em um casulo e, senhor de si, se

torna alheio a si. Nas palavras de Marcel:

[...] enquanto permaneço sobre a influência de uma preocupação egocêntrica, estaatua como uma barreira entre eu e o outro, e por outro lado devemos entender aqui avida do outro, a experiência do outro. Entretanto o paradoxo é que da mesmamaneira em que minha experiência me encoberta na realidade ela está emcomunicação real com as outras experiências e eu não posso separar-me delas semseparar-me da minha. [...] (MARCEL, 1964, p. 11)

Se o egocêntrico não se encontra com o outro, tampouco encontra a si mesmo; não

poderá ter acesso ao Ser, torna-se cego e provoca cegueira nos que estiverem à sua volta. Não

vê, nem permite ser visto: torna-se opaco, porque apenas pensa em si mesmo; perde a

claridade e não enxerga a realidade em que vive, pois “na realidade só a partir do outro ou dos

outros podemos nos compreender” e, ainda, “a consciência concreta e plena de si não pode ser

egocêntrica” (MARCEL, 1964, p. 11).

No itinerário de sua existência, o homem não está só; por isso, Marcel realça a

importância do encontro, por vezes desprezado pelos filósofos e “educadores”. O encontro,

em seu verdadeiro sentido, só é possível entre seres dotados de interioridade e de liberdade.

Estes, na abertura real e sincera ao outro, voltam-se para o seu interior e viabilizam o

reconhecimento de si, em um progresso criador. A importância do encontro pode ser

percebida nas próprias palavras de Marcel:

[...] Encontrar alguém não é simplesmente cruzar com ele é estar pelo menos uminstante junto, com ele; é o que direi em uma palavra que deverei usar mais de umavez uma co-presença. Há muitos pensamentos que nós convivemos semverdadeiramente encontrá-los, sem que eles se revelem a nós, sem que eles nossejam presentes, e, acrescentarei, sem que nós nos entreguemos a deles [...](MARCEL, 1999, p. 22).

Encontrar-se com é ser co-presença, exige mútua doação e receptividade, enfim, uma

abertura mútua dos corações e partilha da vida. Vale lembrar que, para serem estabelecidas

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relações reais, é necessário que o existente tenha consciência daquilo que é; não poderá

apresentar-se ao outro de maneira camuflada, mas deverá ele ser fiel a si mesmo, sob risco de

o encontro não se realizar.

Aquele que é disponível faz a experiência do encontro: escolhe viver. O que renúncia

o encontro, se torna indisponível e converte-se em um morto-vivo. Conforme Marcel, “o ser

centrado em si mesmo é indisponível; com isso quero dizer que ele se torna incapaz de

responder aos chamados da vida [...]” (MARCEL, 1963. p. 178). Aquele que não é capaz de

sair de si, não é capaz do encontro e vive o paradoxo de não se ver, não se conhecer, nem

reconhecer. Eis o paradoxo da filosofia da liberdade: o homem livre pode optar por abrir-se à

experiência do encontro e edificar o seu ser, o seu eu, ou poderá optar por renunciar ao

encontro, à co-existência e, nesse caso, atrofiar-se a ponto de não mais se reconhecer.

Aquele que não permite a experiência do encontro tem dificuldade para viver o seu

ser, pois o encontro é condição para o autoconhecimento e é força de renovação do ser, como

afirma Marcel: “quando sinto [o outro] presente, de certa maneira me renovo interiormente;

essa presença é então reveladora, quer dizer, me faz ser plenamente o que eu não seria sem

ela” (MARCEL, 1963, p. 221). A presença implica transformação mútua, o que leva a

concluir que só existe presença na intersubjetividade. Não basta o encontro entre sujeitos que

não transcendam para uma íntima relação de comunhão recíproca na experiência da co-

participação. Na co-participação, ou na comunhão, há um envolvimento mútuo, uma

participação que pressupõe a esperança, o amor e a fidelidade criadora.

A presença exige liberdade e supõe que o sujeito se coloque diante de outro sujeito,

com liberdade de escolher uma atitude de abertura e disponibilidade, ou, pelo contrário,

adotar uma postura de recusa, de isolamento em sua subjetividade. No primeiro caso, o ser,

que é mistério, poderá ser desvelado, mesmo que parcialmente. No segundo, o ser

permanecerá um mistério impenetrável.

Nas obras de Marcel, a intersubjetividade aparece cada vez mais claramente como a

pedra angular de uma ontologia concreta, a ponto de o próprio Marcel identificar a

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intersubjetividade à própria caridade. Para que se dê intersubjetividade, é preciso que o eu

esteja diante de um tu, desarmado e disponível ao encontro. A experiência da alteridade supõe

o encontro de um eu e um tu, dois mistérios que se revelam e possibilitam o conhecimento

mútuo. Na convivência, o existente desenvolve seu projeto, criando-se e recriando-se

constantemente e, assim, humanizando-se e edificando o mundo. O existente que se isola

torna-se indisponível ao encontro e, consequentemente, ao outro; tornar-se-á opaco, não

podendo ver-se e, assim, desumanizar-se-á gradativamente.

A humanização e o conhecimento exigem a presença, que não pode ser compreendida

como simplesmente estar diante do outro. Presença, na perspectiva de Marcel,

significa algo mais e algo diferente do simples fato de estar aí; em rigor, não se podedizer de um objeto que está presente. Digamos que a presença implica sempre umaexperiência, ao mesmo tempo irredutível e confusa, que é o próprio sentimento deexistir, de estar no mundo. Rapidamente se realiza no ser humano uma união, umaarticulação entre essa consciência de existir, [...] e a pretensão de fazer-se reconhecer

pelo outro. (MARCEL, 2005, p. 27).

No isolamento, ou na presença sem disponibilidade, não ocorre o encontro. Para que a

presença se converta em encontro, é necessário que o indivíduo tenha a capacidade de se

mostrar e, ao mesmo tempo, ver o outro, conviver com ele, sem objetivá-lo, sem escamotear o

que ele é, sob pena de perder a autenticidade de seus atos. Viver a experiência do encontro é

próprio daquele que não teme ser visto, mas também daquele que não é narcisista; daquele

que é capaz de deixar o outro se mostrar, dizer quem ele é, enfim, ser capaz de ver e de deixar

que o outro o veja; de doar-se e de receber a doação de outrem. Enfim, tornar-se hóspede e

hospedar em si o ser de outrem.

Na perspectiva de Marcel, o homem somente pode afirmar sua existência diante do

outro; se não perceber aos outros, também não perceberá a si mesmo. Se não for capaz de ver

aos outros, também não verá a si mesmo.

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Aquele que desejar verdadeiramente responder à pergunta primordial da metafísica

marceliana – “o que sou eu?” – deverá seguir o caminho indicado por ele: encontrar-se

consigo e, para isso, deverá percorrer, em sua existência, o caminho do autoconhecimento.

Mas como o ser poderá conhecer a si mesmo? Por meio do encontro com o outro. Na

concepção de Marcel, não posso admitir conscientemente o meu ser sem admitir o ser do

outro. Em suas palavras, “não posso conceder-me a mim mesmo uma existência da qual eu

não admitiria que os outros estivessem privados; e aqui ‘eu não posso’ não significa ‘eu não

tenho direito’, mas ‘isto não é possível’; se os outros me escapam, eu também escapo a mim

mesmo.” (MARCEL, 2005, p. 150).

Para Marcel, é muito importante a maneira pela qual o eu olha para o outro,

acolhendo-o, ou refutando-o. O modo pelo qual o ser (o eu) se coloca diante do outro em

atitude de abertura ou recolhimento, enfim, o espírito que desenvolve na situação em que está

situado, a maneira de viver e de se relacionar com os outros e com o mundo à sua volta.

Marcel acredita que a pessoa humana deveria desenvolver o espírito da hospitalidade e da

acolhida, eliminando ou combatendo o espírito da exclusão – “mas o que se mantém

inteiramente verdadeiro, espiritualmente verdadeiro, é que temos que combater em nós, sem

trégua, esse espírito de excomunhão [...] ” (MARCEL, 1963, p. 173).

Ser presença é característico do ser humano, o que implica dizer que o encontro só é

possível entre as pessoas. Estar na presença do outro é interagir, é ser capaz de mostrar-se ao

outro e, ao mesmo tempo, vê-lo, acolhê-lo em seu íntimo. Marcel acredita o eu não é um entre

os outros, mas com os outros.

Mas, afinal, o que é o eu? Não se pode dar uma única resposta a essa questão. Pode-se

até confundir o eu com sua função, com seus atos, com sua trajetória histórica, mas,

metafisicamente, não se pode dar uma resposta definitiva à questão. O eu é o um ser existente,

um ser itinerante, um ser que se constrói ao longo da existência. É um ser encarnado, situado,

que, ao longo da vida, é chamado a ser, a criar-se e a criar o mundo na intersubjetividade. Os

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homens que fazem a experiência do encontro se revelam: ao outro e a si mesmos. Não é

possível a consciência da ipseidade sem a intersubjetividade.

4. Relacionamento interpessoal no processo ensino aprendizagem e outros desafios

do ambiente escolar do século XXI

Em situações cotidianas é recorrente o fato de docentes e discentes reclamarem da

falta de relacionamento autêntico no processo de ensino-aprendizagem, por vezes, marcado

pela indiferença e pelo individualismo: nega a alteridade e favorece o desenvolvimento do ser

denominado por Buber de egotico19. Segundo Buber a alteridade, o mútuo reconhecimento é

imprescindível na convivência, assim, ele propõe um relacionamento que supõe presença,

transparência e autenticidade.

A questão do relacionamento entre professores e alunos é de extrema relevância. Esse

assunto perpassa os séculos, foi tema de reflexão de diversos pensadores, das diversas áreas

do conhecimento. John Locke, (apud GADOTTI, 2003, p. 192), na segunda metade do século

XVII, dizia “o professor deve acrescentar gentileza em todas as suas aulas, [...] deixar

perceber à criança que ela é amada [...]; esse é o único modo de originar amor na criança, o

que a fará dar atenção às aulas e ter prazer com o que o professor lhe ensina”. Nessa

perspectiva, não existe condições de aprendizado real sem a experiência do amor, que só é

possível no relacionamento intersubjetivo.

Morales (2006), diz que nem sempre os educadores refletem sobre essa questão, que a

seu ver é de extrema importância, em suas palavras “[...] pensar na sala de aula como lugar de

relação pode abrir para nós um horizonte de possibilidades, inclusive didática, que talvez não

estejamos utilizando em todo seu potencial” (MORALES, 2006, p. 10). Assim, ele convida a

19 O termo egotico, Eigenwesen, aparece no livro Eu e Tu (2006), e conforme nota xxi serefere à relação do homem consigo mesmo, assim é característica dos que somente enxergama si mesmos.

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todos os docentes a refletirem sobre o seu relacionamento com os seus alunos: “Qual é a

nossa relação com os alunos na sala de aula?”.

Morales não se restringe o relacionamento interpessoal ao ambiente da sala de aula,

mas destaca a importância de pensar também as relações humanas nesse espaço, mesmo que

alguns professores digam que ele seja apenas um lugar de ensinar. Em suas palavras, “certa

vez, ouvi de um professor este comentário “Na sala de aula, eu me limito a ensinar; me

relaciono com os alunos apenas fora da classe” (MORALES, 2006, p. 09). Diante do exposto,

questionamos: é possível ensinar sem se relacionar com os discentes? A partir da proposta

existencialista de Gabriel Marcel, a resposta é obvia: não.

Quanto um professor afirma que a sala de aula é apenas um espaço para ensinar, o que

ele quer disser? Será que ensinar implica apenas na transmissão de conhecimento? Não temos

elemento, no texto, para fazer tal inferência, mas ela é uma possibilidade, pois se não existe

relacionamento, há de se supor que o aluno é um mero receptor.

Bellotti e Faria, (ano, p. 01) relatam o que a mídia moderna veicula constantemente, a

falta de respeito no ambiente escolar, eles atestam que “[...] não há respeito do aluno com o

professor e este não se preocupa com o aluno”. Nossa experiência docente nos obriga a

questionar a generalização da afirmação, pois conhecemos diversos discentes e docentes que

vivenciam um relacionamento de mútuo respeito, mas também ouvimos de professores e

alunos relatos de desrespeito e aviltamento.

Belotti e Faria (ano, 01) atestam que “[...] o grande desafio dos educadores está em

reverter a relação de desencontros, de conflitos e de pré-conceitos estabelecidos entre a

escola, os professores e os alunos”. Ora, se levarmos em conta o pensamento de Locke, que

diz que para se ter sucesso no processo cognitivo deve haver amor na pratica educativa,

devemos considerar o desafio em questão, uma prioridade.

Antunes e Zuin (2008), iniciam o seu texto com uma epigrafe de Adorno, que ora

transcrevemos “...desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia”

(ADORNO, 1971/2003 apud ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 33). Os autores lembram que o

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“hoje em dia”, na perspectiva de Adorno se refere a Alemanha nas décadas de 50 e 60, mas

que sua reflexão pode ser aplicada ao Brasil de nossos dias, marcado por um contexto de

violência, preconceito e Bullyng. Descrevem sinteticamente a história da preocupação com o

tema da violência no ambiente escolar, dizem que a princípio essa violência era direcionada

aos prédios, mas gradativamente migra para as relações humanas, “envolvendo alunos,

professores e outros agentes da comunidade escolar” (ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 33).

É importante lembrar que Antunes e Zuin dizem que este tema não é privilegio do

Brasil do século XXI, tampouco é um problema exclusivo do nosso país: perpassa a história

da educação e atinge diferentes países. Mas lembram de que a questão se agravou nos últimos

anos, e ganhou novos horizontes como o cyberbullying: o uso da mídia moderna para

propagar a violência e o aviltamento. Por fim, nos lembram de que “a educação, sem dúvidas

é um caminho para a superação da barbárie, [...].” (ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 38).

Outro problema, que exige nossa atenção é proposto por Luckesi, (1990) quando atesta

não existir sistema pedagógico sem base filosófica, ou seja, todos as propostas pedagógicas se

fundam em um pensamento filosófico sobre educação, assim, segundo ele, existe uma intima

relação entre Educação e Filosofia, sendo que está dita os rumos, os objetivos, as metas do

processo de ensino aprendizagem e aquela mostra o caminho a ser seguido para se atingir tal

fim. Ora, há de se refletir a respeito de que ser humano queremos “formar”, aja visto que

segundo Luckesi a filosofia é uma arma que pode ser utilizada para alienar e subjugar ou para

dar consciência e auxiliar na libertação. A de se perguntar: Como utilizamos as ferramentas

pedagógicas: para transformar homens e mulheres em objetos, ou auxiliar no seu

desenvolvimento de pessoas, agentes ativos, capazes de edificar a si e o mundo? O

existencialismo na perspectiva de Marcel condena qualquer tentativa de objetivar um ser

humano.

Por fim, resaltamos o desafio de ensinar a pensar com autonomia, em meio a propostas

pedagógicas influenciadas por correntes filosóficas de caráter positivista, ou por uma mídia

que serve de instrumento de aviltamento, deturpando informações e servindo ao mercado

econômico e a interesses políticos partidários, por vezes reacionários. Michael de Montaigne,

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(1972), fala da importância de educar para a vida e sobretudo para motivar o pensamento

autônomo, pois segundo ele “saber de cor não é saber: é conservar o que se entregou à

memória para guardar.” (MONTAIGNE, 1972 apud GADOTTI, 2003, p. 66). Segundo o

pensador renascentista, é preciso ensinar e de uma forma prazerosa, pois do contrário a

educação é inútil. Ele, já no século XVI, chamava a atenção para a necessidade de cuidado

com os métodos de ensino, pois, a seu ver, os espíritos dos educandos são naturalmente

diferentes, quer pelo temperamento, quer pela inteligência, o que leva a afirmar que tentar

ensinar a todos de uma única maneira, implica em ensinar apenas uma minoria e marginalizar

a grande maioria das crianças confiadas as instituições de ensino. Acreditamos que as suas

observações são pertinentes para o Brasil e o mundo do século XXI.

Diante do exposto, indagamos novamente, como o existencialismo, em especial,

Gabriel Marcel, pode auxiliar no processo de ensino aprendizagem?

5. Considerações finais

Considerando o processo de ensino aprendizagem de nossos dias, verificamos a

existência do que se denomina educação bancaria, de fundamento positivista, que visa formar

o individuo para que aceite de bom grado o seu lugar social, e que atenda aos anseios da

sociedade na qual está inserido. Por outro lado, encontramos educadores que defendem uma

educação denominada progressista, estes creem que a educação deve preparar o homem para

ser autônomo, critico e ativo na sociedade, podendo propor transformações. A primeira ensina

como as coisas são, a segunda, permite compreender como são, mas exige, ou permite, pensar

como podem ser.

O relacionamento entre professores e alunos, nem sempre se pauta no respeito mútuo,

nos quais os dois são sujeitos, por vezes, assistimos, ou lemos nos diversos meios de

comunicação, relatos de agressões não só verbais, mas também físicas. Por um lado temos

ocorrências de alunos que se sentem negados enquanto pessoas, que são classificados como

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incapazes, ou trastes, por outro, temos professores agredidos, e aviltados, a ponto de

desistirem de sua profissão.

Como já foi visto, segundo Marcel, o homem é um ser em construção, é um vivente

que caminha constantemente e no caminho se faz, é um homem itinerante, o que não permite

uma ontologia abstrata, mas sim concreta. Assim, se desejamos refletir sobre o cotidiano

escolar, em especial as questões que se referem ao relacionamento humano, devemos fazê-lo a

partir da realidade concreta.

Se almejamos uma educação que promova o homem livre, é preciso transformar os

relacionamentos, nos quais o Eu se encontra só, ou diante de um Ele, em encontros nos quais

um Eu esteja diante de um Tu: o que supõe um relacionamento no qual os existentes

compartilhem suas vidas e projetos, sem perderem as suas respectivas identidades. Aqui é

imprescindível retomar a questão levantada por Morales, e refletirmos sobre qual a relação

que desejamos ter com nossos alunos.

Cremos ser imperativo refletir sobre as relações interpessoais dentro e fora das salas

de aula, pois, segundo Marcel sem uma experiência real do coexistir, da mútua doação em

prol de um projeto comum, é impossível ao existente ter consciência, quer de si mesmo, quer

da alteridade, quer da realidade na qual se encontra: alteridade é condição sine qua non para a

ipseidade. Assim sendo, conforme Marcel, não é possível a subjetividade sem a experiência

de relações intersubjetivas, sem subjetividade não há como existir liberdade.

Marcel nos diz que se desejamos fazer a experiência do encontro autêntico, devemos

viver ou desenvolver três virtudes, a do amor incondicional, a da esperança que leva o

existente a se engajar na concretização de projetos e sonhos, confiando que terá auxilio de

outras pessoas: confia como se dependesse dos outros, mas age como se dependesse de si

mesmo: quem tem esperança verdadeira, confia e age para tornar o que se espera real. Por

fim, a virtude da fidelidade que leva a desenvolver projetos em comum, ou seja, a se

comprometer com outros existentes em projetos comuns crendo que se tornarão realidade.

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Ora, não há possibilidade de viver as referidas virtudes no isolamento, as três exigem o

encontro, a presença de outras pessoas, denominadas existentes.

Pensar o ambiente educacional na perspectiva de Marcel, implica em localizar e

enfrentar os desafios que aviltam o homem, que o condiciona e impede de ser quem ele é. Se

os agentes que participam do processo de ensino aprendizagem praticassem as virtudes do

amor, da esperança e da fidelidade, poderiam revolucionar o sistema de educação atual, por

vezes preocupado com o ter, recolocando o desejo de ser como prioridade. Estas virtudes

deveriam orientar as relações interpessoais, pois poderiam evitar, ou abrandar as situações

descritas por Bellotti e Faria. Lembrando que estes descrevem relacionamentos marcados por

conflitos, preconceitos, ou por indiferenças.

Marcel compreende que para a existência de homens e mulheres, verdadeiramente

livres, se faz necessário propiciar condições para que pensem com autonomia, daí se faz

indispensável refletir sobre a proposta de Montaigne, segundo a qual, uma educação que não

vise o pensamento autônomo e a liberdade é inútil. Segundo Montaigne, o processo de ensino

aprendizagem deve preparar para a vida e favorecer o desenvolvimento de sujeitos

autônomos. Ao que acrescentamos a contribuição de Marcel, propiciar ao existente condições

de construir o seu ser, sua personalidade, sem se tornar individualista: edificar um indivíduo

que se preocupe com o aspecto comunitário.

Pensar a partir da vida, da experiência, do encontro com a alteridade, refletir sobre

uma pedagogia da autonomia, implica em desenvolver ambientes nos quais educandos e

educadores, são verdadeiramente pessoas, que vivam o respeito, o amor, a esperança, a

fidelidade, ou seja, se engajem com todas as suas forças, ou habilidades para que se concretize

o processo cognitivo, de maneira crítica. Nesse processo, não há espaço para aviltamentos,

nos quais a liberdade é negada, o que evitaria as questões elencadas por Antunes e Zuin, tais

como preconceitos, discriminações ou a prática de bullyng.

Entre os que se amam e se respeitam verdadeiramente não existe espaço para que um

dos polos negue o outro. Como já foi visto, Marcel acredita que negar a liberdade é negar a

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subjetividade, a autonomia, a dignidade humana, enfim implica em aviltar e alienar: os

educadores não deveriam contribuir para gerar situações nas quais a liberdade fosse negada,

por sua vez, os educandos não deveriam aviltar os educadores, sob pena de inviabilizar uma

educação digna desse nome.

Educandos e educadores que se tornam egocêntricos, inviabilizam encontros reais, se

tornam cegos, provocam cegueira, promovem o aviltamento das pessoas com as quais

“convivem”, negam a liberdade, e assim, a condição especificamente humana e inviabilizam a

subjetividade. Um sistema pedagógico, pautado por egocêntricos, gera apenas uma educação

de caráter reprodutivista, alienante, incapaz de propor transformações. Por outro lado, uma

educação que promova a libertação supõe um encontro autêntico, uma interação entre

professores e alunos, que permita a ambos ensinar e aprender.

Para finalizar, gostaríamos de lembrar a pergunta de Morales, que tipo de

relacionamento queremos desenvolver com nossos alunos e alunas? Dessa resposta surge a

opção de usar a filosofia como arma de manutenção ou de transformação, de aviltamento ou

de liberdade, enfim, uma educação que ensina a reproduzir ou a pensar com autonomia. Aqui,

vale lembrar o que já foi dito: ser presença é característico do ser humano, o que implica dizer

que o encontro só é possível entre as pessoas. Estar na presença do outro é interagir, é ser

capaz de mostrar-se ao outro e, ao mesmo tempo, vê-lo, acolhê-lo em seu íntimo: o eu não é

um entre os outros, mas com os outros.

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