13
1 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM AÇÕES COLABORATIVAS, INQUIETAÇÕES Poéticas em Práticas Pedagógicas Lucimar Bello P. Frange UFU (aposentada) Resumo As poéticas em práticas pedagógicas são trabalhadas como experiências estéticas nas relações entre teoria, obras colaborativas de artistas visuais contemporâneos, e ações em comunidades. Abstract Poetics in teaching practices are worked as aesthetic experiences in the relationship between theory, collaborative works of contemporary visual artists, and actions in communities. Palavras Chave Poéticas pedagógicas, experiências estéticas, artistas e obras colaborativas, arte e comunidades. Pensar é um ato, sentir é um fato. Clarice Lispector Esse texto permeado por dúvidas e incertezas aborda experiências estéticas, ações coletivas e colaborativas no universe das artes visuais. São provocações e ampliações inquietas a vivermos durante a realização do 23º CONFAEB/2013, Porto de Galinhas que nos levam à derivas e devires em portos de criação em arte e seus ensinos. A criação em arte é fundante na elaboração do Ser e dos Sentidos de Mundos pensar é um ato; as imagens estão prenhes de sentidos, sejam as da arte ou as que nos atacam nesse mundo de imagens em movimentos velozes e vorazes. Precisamos pensar, indagar, propor, questionar, “imagizar” (imagens com ação e imaginação), inventar as imagens do e no mundo, e as imagens em- nós sentir é um fato, criar na arte e na vida, uma necessidade pedindo passagem. A experiência estética, embora pareça redundância, contem a ética e as estesias, as sensações experimentadas e trans-formadas (formas visivas que escapam de si mesmas). Se olharmos historicamente, podemos fazer caminhos que nos permitam entender “o aqui e o agora”, o “já-ontem-agora-amanhã, com suas complexidades e inconsistências. Se olharmos culturalmente, teremos mais categorias e complexidades tecidas nessa trama estética e estésica. Se olharmos os processos de criação dos artistas, dos professores, dos alunos, mais e mais redes serão tecidas em nós-pessoas. As redes, no século XXI se transformam e se desfazem a cada instante em redes outras, os pontos de encontros são

A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM AÇÕES COLABORATIVAS, …artenaescola.org.br/uploads/arquivos/Lucimar Bello P_ Frange_A... · (imagens com ação e imaginação), inventar as imagens

  • Upload
    vokiet

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

1

A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM AÇÕES COLABORATIVAS,

INQUIETAÇÕES

Poéticas em Práticas Pedagógicas

Lucimar Bello P. Frange – UFU (aposentada)

Resumo

As poéticas em práticas pedagógicas são trabalhadas como experiências estéticas nas relações entre

teoria, obras colaborativas de artistas visuais contemporâneos, e ações em comunidades.

Abstract

Poetics in teaching practices are worked as aesthetic experiences in the relationship between theory, collaborative works of contemporary visual artists, and actions in communities.

Palavras Chave Poéticas pedagógicas, experiências estéticas, artistas e obras colaborativas, arte e comunidades.

Pensar é um ato, sentir é um fato.

Clarice Lispector

Esse texto permeado por dúvidas e incertezas aborda experiências estéticas, ações coletivas

e colaborativas no universe das artes visuais. São provocações e ampliações inquietas a

vivermos durante a realização do 23º CONFAEB/2013, Porto de Galinhas que nos levam à

derivas e devires em portos de criação em arte e seus ensinos. A criação em arte é fundante

na elaboração do Ser e dos Sentidos de Mundos – pensar é um ato; as imagens estão

prenhes de sentidos, sejam as da arte ou as que nos atacam nesse mundo de imagens em

movimentos velozes e vorazes. Precisamos pensar, indagar, propor, questionar, “imagizar”

(imagens com ação e imaginação), inventar as imagens do e no mundo, e as imagens em-

nós – sentir é um fato, criar na arte e na vida, uma necessidade pedindo passagem.

A experiência estética, embora pareça redundância, contem a ética e as estesias, as

sensações experimentadas e trans-formadas (formas visivas que escapam de “si mesmas”).

Se olharmos historicamente, podemos fazer caminhos que nos permitam entender “o aqui e

o agora”, o “já-ontem-agora-amanhã”, com suas complexidades e inconsistências. Se

olharmos culturalmente, teremos mais categorias e complexidades tecidas nessa trama

estética e estésica. Se olharmos os processos de criação dos artistas, dos professores, dos

alunos, mais e mais redes serão tecidas em nós-pessoas. As redes, no século XXI se

transformam e se desfazem a cada instante em redes outras, os pontos de encontros são

2

mutantes, neles e entre eles vivemos e, em “nós-fazemos” uma vida-pulsante. O instante-já

de Clarice Lispector, já passou. Foi e é, fica-finca-fura a cada um/a aqui presente ou leitor

desse texto. O instante é ontem, é agora, é amanhã, é talvez. Picasso afirma: a arte é a

dúvida. Sempre há em cada instante, razão, irreflexão, paixão, calma, atenção, vigília,

sono, repouso, caminhada em todos os sentidos. Há a todo instante uma corporação, uma

corpo-em-ação a devir, a tomar forma, nos pedindo passagem. As relações entre arte e seus

ensinos é um fazer transversal, são passagens que deixam frestas para outras a vir.

Se olharmos para as aulas de artes visuais e imbricamentos com outras áreas do

conhecimento, essa trama poderá se tornar um tapete urdido como uma grama ecosófica.

Lembro os 3 registros da ecosofia de Felix Guattari: o do meio ambiente, o das relações

sociais (e hoje podemos acrescentar, das relações virtuais); o das subjetivações

colaborativas. Se olharmos para as subjetivações, imensos buracos, fósseis e entre-lugares,

surgirão nessa trama-tapete-grama. Nós FAEBianos, somos blocos inteiros de

subjetivações coletivas, pedindo passagens para a arte e seu ensino, interligando trabalhos

interculturais. Para Gilles Deleuze, futuro e passado não têm muito sentido; o que conta é

o devir-presente: a geografia e não a história, o meio e não o começo nem o fim, a grama

que está no meio e que brota pelo meio, e não as árvores que têm cume e raízes. Sempre a

grama entre as pedras do calçamento. Peço licença a Marilá Dardot para mostrar alguns

de seus trabalhos que dizem, mostram e dão a ver, a grama, o calçamento, a palavra, todos

tomados como texto coletivo em espaços colaborativos de criação. Na obra No silêncio

nunca há silêncio, a grama sofrendo a fotosíntese, atua fortemente, é cúmplice a criar cores

e novas relações. Para onde nos levam? Silêncios, nunca, gramas, fotosínteses? A

experiência e não a verdade, é o que dá sentido à escritura e aos textos visuais, verbais,

sincréticos. Educamos para transformar o que sabemos, não para transmitir o já sabido

(Jorge Larossa e Walter Koban). O que sabemos de silêncio(s), de grama(s), de nunca(s),

de fotosíntese(s)?

no silêncio nunca há silêncio

3

Para abordarmos a presença viva da arte em nós e a experiência estética partindo de

exercícios concretos, vamos considerar: o artista; a obra-trabalho; o fruidor-espectador; a

exposição; as relações com a arte (não somos virgens, temos ancestrais na vida e na arte).

Pensemos também os modos de agregação e de circulação, pois se tratam de obras e

trabalhos coletivos. Vamos enfocar artistas e práticas colaborativas em comunidades que

nos deslocam para des.a.locamentos outros. As escolhas se dão pelos atos de compartilha

nas obras desses artistas, Marilá Dardot, Sophie Calle, Jorge Macchi, Lucimar Bello.

Lembro Jacques Rancière, a arte do explicador é a arte da distância e me coloco numa

distância-proximidade, entendendo serem complementares.

Marilá Dardot – No silêncio nunca há silêncio, Suécia, 2013; A Educação pela

pedra – Para aprender da pedra, frequentá-la (João Cabral de Melo Neto), Museu

Lasar Segall, 2012; Longe daqui aqui mesmo, um dos terreiros, 29a. Bienal de São

Paulo, 2010. Oficina Palavrarias…

a educação pela pedra

Sophie Calle – Cuide de você, SESC Pompéia/SP, 2009. Participação de 107

mulheres, profissionais de áreas diferentes, incluindo um papagaio fêmea.

4

Jorge Macchi – Música Incidental, 1997; Monobloco, 2003; The speakers corner,

2002; Folha morta, 2005; Outono em Lisboa, 2004; Uma poça de sangue, 2001;

Fim de Filme, 6a. Bienal do Mercosul, Porto Alegre, 2007.

uma poça de sangue

Lucimar Bello – Fábrica de Ações que Não Existem, oficinas realizadas em Belém

e Vitória, 2013.

Belém Belém

Vitória

Podemos abordar também o tema ou assunto; o percurso de criação do artista, do professor,

do estudante de arte; a fatura, as maneiras como aquele trabalho é feito e mostrado; as

contaminações com a história(s) da arte e campos de saber(es). Cada pesquisador ou

5

historiador em arte escolhe e monta uma coleção para, a partir dela tecer suas

considerações e teorias. Por isso a história da arte no singular e no plural.

Teria o artista e, e/ou o professor uma matriz conceitual, uma indagação constante em sua

produção pessoal e coletiva? Seria ela provocativa para os alunos, sejam da escola formal

ou de instituições outras, e mesmo de ações rápidas: oficinas, intervenções em ruas e

cidades? De que maneiras agregamos os trabalhos de nossos alunos e os mostramos para

que as pessoas entendam os pensamentos, ações e proposições de todo ou parte do

percurso de criação desses alunos? Como nos fazemos sóbrios, desérticos e, ao mesmo

tempo, povoados?

Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio,

cada vez mais simples,

tornar-se cada vez mais deserto e,

assim, mais povoado.

Deleuze

Enquanto FAEBianos, nesse Congresso, pensemos as situações de sobriedade(s), as

desérticas, as povoadas, todas juntas. Quais as reverberações em nossas aulas?

Para exercitarmos as poéticas em práticas pedagógicas a partir de Deleuze, podemos

pensar a prática em arte que se constrói nas relações com o outro e outros de outros; aquele

que indaga, questiona, duvida tanto quanto “eu e o fora-de-dentro-de-mim”, o “meu

complementar” que, insistentemente cria e propõe criações colaborativas. A arte pensa e

nos faz pensar. Didi Huberman propõe o entrelaçamento de 3 paradigmas: o do sentido,

das estesias (os sentidos sentidos, além sentimentos e das percepções) e o pathos. Os

abismos do olhar e as experimentações se passam sempre ao corpo, cada vez mais

desértico e mais povoado, denso e fértil, intensivo e inventivo.

Sophie Calle (França, 1953), é escritora, fotógrafa, professora de cinema e video, atua nos

campos da arte conceitual e instalações; trabalha com a vulnerabilidade humana, a

intimidade, identidades e alteridades. Vamos ver: Take care yourself, mostrado na 52a.

Bienal de Veneza, 2007. No Brasil, recebeu o nome de Cuide de você, no SESC/Pompéia,

em São Paulo, 2009. Escreve Sophie: Recebi uma carta de rompimento. E não soube

respondê-la. Era como se não fosse destinada. Terminava com as palavras: ‘cuide de

você’. Levei a recomendação ao pé da letra. Convidei 107 mulheres, de profissões

diferentes para interpretar a carta. Analisá-la, comentá-la, dançá-la, cantá-la. Esgotá-la.

Entendê-la em meu lugar. Responder por mim. Era uma maneira de ganhar tempo antes

6

de romper. Uma maneira de cuidar de mim. Esse trabalho só acontece com a participação

do ex-namorado, o escritor Grégoire Bouillier ao escrever o e.mail em 2004; a reação e as

proposições de Sophie; as 107 mulheres, cada uma a partir de sua profissão, vivendo o

e.mail; a fatura de Sophie após receber as respostas; os modos de agregação e de circulação

dessa longa e vasta prática coletiva, em exposições, incluindo a gravação dos vídeos, dos

emolduramentos, da colocação nos espaços de cada fragmento em determinado lugar; da

ambiência necessária para que o trabalho pudesse mostrar de onde vem e como se conecta

com as pessoas, tanto em Take care yourself (Bienal de Veneza), quanto em Cuide de você

(São Paulo). Sophie extrai do rompimento uma potência nômade e fugidia. A autoria

escapa; o trabalho é de muitos; questiona os relaciomentos de amor, um script dos fins de

romance onde ainda existe bem querer; desmonta o ídolo e a imagem que pesa sobre o

pensamento; não apenas reage, mas age de modo criador. Diz Sophie, para mim, amor não

morre, no máximo se transmuta, transcende. Dentre as 107 intérpretes estão a atriz Jeanne

Moreau, a cantora Peaches e a compositora Laurie Anderson e anônimas como uma

vidente, uma física, uma mágica, uma professora de Ikebana e até um papagaio fêmea. A

artista diz que é um desafio expor as situações extraordinárias que todo ser humano vive. E

que a transformação dessas realidades em arte é uma maneira de ter controle sob a vida e

não ficar na posição de vítima dos sentimentos. Ver as ações educativas em

http://www.videobrasil.org.br/sophiecalle. Na Exposição no SESC/Pompéia, destaco

algumas ações da Curadoria Educativa: a Oficina “Sophie Calle, tensões entre as imagens

domésticas e as de vigilância”; a Aula Aberta: “E se Sophie Calle tivesse recebido um

SMS ao invés de um e.mail” explorando microcontos e microtextos de Ernest Hemingway,

Franz Kafka, Machado de Assis, Dalton Trevisan; “O tempo do amor hoje. Uma

cartografia em pedaços”, a partir dos filmes: “Antes do amanhecer” e “Antes do por do

sol”, fazendo pensar no amor romântico e o amor atual nos discursos contemporâneos.

Calle trabalha com a presentidade, além da figuratividade – o que vemos, o que nos olha –,

formando um caleidoscópio epistemológico, estético e estésico. A história da arte poderia

ser trabalhada como uma filosofia das imagens? Podemos nos aventurar por esses

caminhos?

Jorge Macchi (Argentina, 1963), diz que as obras partem das imagens, delas tomam

forma. E mais: Caminho por uma casa, olhando o chão. Trabalha com o cotidiano, a

cidade, a violência, o destino, mapas de cidades, linhas de metrô, periódicos, jornais,

fazendo meditações sutis sobre as possibilidades poéticas da vida cotidiana. Morou nos

7

Estados Unidos, Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Equador. São instalações,

vídeos, pinturas, fotografias, interligando música, poesia, artes visuais. O curador da 6a.

Bienal do Mercosul, Gabriel Pérez-Barreiro, denomina o trabalho de Macchi como A

anatomia da melancolia.

Música Incidental – 3 folhas grandes de papel, colagem da seleção de histórias de

acidentes e atos de violência da imprensa popular (tablóides ingleses). As histórias em

linhas retas formam uma partitura musical, onde uma história termina, começa a outra com

pequeno intervalo. Os espaços entre as histórias são a base para uma composição musical

para piano, tocada em fones de ouvido presos ao teto. Os sons lembram as trilhas sonoras

de filmes de suspense. Beleza formal convive com a natureza sangrenta das histórias. A

música é um trivial cultural, um imã para estereótipos e prerrogativas pessoais e coletivas.

Monobloco – obituários em periódicos são recortados, sobrando apenas os sinais católicos,

e muçulmanos. Parecem convenções urbanas.

The speakers corner – os jornais são recortados sobrando apenas as aspas. Esse trabalho

remete a Esquina do Falante, no Central Parque em Nova York. Só que, nessa esquina de

Macchi, não há fala nem falante. Apenas resíduos de falantes. Usamos as aspas para dizer

que a voz é de um outro e, esse outro está velado, existe somente pelos sinais intervalares.

Folha morta – jornais são recortados e não sobra sequer um vestígio de texto ou de

imagens. Sobram apenas os espaços brancos entre todas as notícias que ali estiveram.

Jornais de vazios porque foram fartamente habitados. A fragilidade se dá pela retirada do

possível a ler ou do lido, da notícia esvaziada, da des-função do próprio jornal.

Outono em Lisboa – sobram somente os cemitérios da cidade de Lisboa, todo o

constituinte da cidade é esvaziado de um mapa que a contém, e a mostra. Macchi despossui

os mapas, os des.funcionaliza, os des.materializa criando mapas inexistentes, agora mapas-

falante de vozes mudas, no entanto, noticiadas, distribuídas, lidas, descartadas...

Uma poça de sangue – várias histórias recortadas de jornais sensacionalistas convergem

para o cliché “uma poça de sangue”. Os recortes são linhas vermelhas agrupadas no centro

e expandindo para as laterais; de longe, um desenho de linhas que se agrupam e escapam.

Ao ler de perto, as linhas em espanhol são recortes, todos centrados em “charco de sangre”.

Fim de Filme – vídeo de 5 minutos, créditos desfocados de um filme não identificado. A

música é composta pela Osquestra Sinfônica de Porto Alegre, uma versão da chamada

Canção do final, de 2001. Trata-se de uma zona marginal, o que não está posto – um filme

que não se sabe qual, mas são créditos de um filme. Vemos o final, sem começo, sem

meio, sem história, sem enredo. Como se dariam os fins de nossas aulas? Onde estariam as

8

marginalidades para além das normas e das convenções? O que escapa do que sabemos

coletivamente? Para onde estão indo as nossas fabricações? As mediações colaborativas? E

cada um de nós que aqui está? Ou que lê esse trabalho? Deixo reticências para que o

leitor… pense no assunto ou tema que o sustenta e desafia… e a fatura, os modos como

vem abordando essas inquietações… as ligações entre a arte e seu ensino… as trajetórias

de alunos, de professores, de comunidades, de lugares e suas especificidades, de espaços

ocupados e intervalares, de tempos existenciais, físicos, imaginários, escorregadios…

Nas poéticas dos artistas aqui trabalhados, temos imagem e palavra, palavra e imagem,

entendidos como um texto-único. Temos os sons, os rastros, as impressões, as conexões

ético, estético, politico, culturais. Todas essas camadas constituem o texto… de que modos

as abordamos? Um exemplo: 20 impressões de uma gravura são uma constelação de uma

matriz. Quais tem sido as matrizes pelas quais caminhamos? E as constelações que

formamos, migram, escapam, fazendo outras conexões? O que vemos só vale, só vive em

nossos olhos pelo que nos olha (Didi Huberman). Vemos as aulas de arte e as aulas nos

vêem? E no mundo que nos olha, fabricamos olhares para ele?

As experimentações formam uma constelação, segundo Eugen Gomringer, fluem, crescem,

mostram, sopram se espalha pelo tempo e pelo espaço. Nós-CONFAEBianos formamos

constelações e aceitamos as fraturas nelas existentes? As experimentamos em salas de

aula? Ou oficinas pelos Brasis afora?

Para Michael Warner, um público é feitura poética de mundo, é estar em fluxos através de

constantes intercâmbios em espaços e encontros. A constelação como campo de “fôrças” e

sensações a dar “fórma” às coisas do mundo e numa poética maleável e sem script

(Augusto Boal, Teatro do Oprimido). As transformações são trocas incessantes, inventivas

e criatíveis. Pensemos o CONFAEB como praça e nós, a habitando em estados de

pracialidades, tranformando os constructos encontrados em poiésis, na arte e na vida,

estados de deslocamento para des.a.locamentos, “imagizar” para ativar colaborAções.

Na leitura da obra podemos considerar ainda: a exibição, o registro, a mediação cultural

que, segundo Fuganti, é um acontecimento com múltiplos sentidos. Podemos pensar as

afetações, afetos e efetuações. Como me efetuo como professor de arte e de que modos nos

efetuamos alunos-professores-alunos-comunidades? A linguagem, se é investigativa, pode

ser um meio ou sem meio, sem fim, sem comêço? Pensemos então, a mediação cultural

uma produção coletiva e uma linguagens inquiridoras. A arte se faz para modificar a si e

aos outros de cada pessoa. A unidade é a produção de processos de singularidade, o modo

“daquilo” se fazer acontecer. As ações culturais podem gerar subjetivações; condições de

9

encontro do imediato em nós, mas pensemos em encontros coletivos e colaborativos. A

obra de arte é uma criação que atravessa, dilacera, violenta se houver porosidade. O que eu

faço com isso que me acontece, e nos acontece? Como se dá a fruição do

objeto/instalação/vídeo arte? O criador não julga, confia na vida e nós-professores? O ato

de aprender pode ter algumas combinatórias: o mestre emancipador, o mestre

embrutecedor, o mestre sábio, o mestre ignorante. Somos um pouco de cada um desses

mestres. O desafio é transformar as impotências em potências colaborativas

compartilhadas; transformar as tautologias em potências efetuadas.

Nathalie Montoya trás de Bruno Péquinot, a meidação cultural como uma sociologia da

profissão, prática profissional multiplicada e pensada no teatro, na dança, circo, ópera,

museus de arte, cinema, festivais multiculturais, associações. E nós-FAEBianos, assim

somos? As práticas mediáveis são criatíveis? Abordamos o cotidiano, as ações mediadoras,

as políticas públicas em dispositivos complexos e situações, atos e acontecimentos entre

mediadores e mediantes? A visita poderia ser pensada uma experimentação como obra de

arte? A presença do mediador, uma intervenção?

Em Sophie Calle, o trabalho se constrói na negociação com o outro – em Cuide de você, as

107 mulheres a partir do e.mail. Compartilha, doação, aceitação, agregação e circulação

compoem as ações colaborativas. Isso é o trabalho da arte, do artista, de pessoas fazendo e

se debruçando sobre pessoas outras, um trabalho de co-labor-ações.

Em Jorge Macchi, a imprensa, o turismo, as notícias, as marcas culturais sustentam

apagamentos para mostrar frestas, entre-linhas, não-sabidos, vazios porque haviam

conteúdos anteriores. O não-ser tornando-se formas indagadoras e criatíveis (criação a

devir, sempre sempre; assim que uma é feita, outra já está se enunciando). O trabalho com

reticências contém o lugar do outro. O vazio a devir é um vazio prenhe de devires. Ensinar

o que se ignora é questionar sobre tudo que se sabe e ignora, é acionar os estados

impotentes que, em nós habitam, e aos que a vida-em processo nos clama, os quatro

mestres de Rancière.

Lucimar Bello (Brasil, 1945), artista visual, professora e pesquisadora em artes visuais

com percursos em desenho experimental, vídeos, instalações, assemblages e trabalhos em

comunidades específicas. Venho tentando abordar os processos de criação em arte e seu

ensino. As Fábricas de Ações que Não Existem, tanto em Belém no Pará, quanto em

Vitória no Espírito Santo, foram oficinas trabalhadas com alunos de 4º. ano de uma Escola

de Ensino Fundamental (Belém), e com pessoas que se inscreveram.

10

Em Belém, na Casa das Onze Janelas, realizava a Exposição Individual: se as coisas de pé

fossem, com trabalhos compostos por agrupamentos: Não fui fabricado de pé (80 peças de

porcelanato impresso, cenas de um edifício em construção, e o vídeo: cadadia+); As coisas

que não existem são mais bonitas (quase-aquarelas, 13 papéis-toalha de limpeza de

cozinha e impressões com óleo de linhaça misturado a pó de aroeira); Se brancos

vermelhos fossem e Geografia da Dor (139 papéis de 10x15 cm com desenhos de linhas de

costura, vermelhas – sem frente, sem verso). E um mapa da África apenas perfurado com

alfinetes que, dentro de uma caixa de luz, são conversas com as milhões de mulheres

africanas costuradas; Morada das delicadezas (mandala com 20 papéis de 10x15 cm que

receberam o desenho de uma espiral com lápis aquarelado e, a cada emoção de alegria

durante um determinado tempo, enxugava as lágrimas com um desses papéis, ver o site:

lucimarbello.com.br). A Oficina dos adultos foi chamada de Fabric.Ações que não

existem; a das crianças, coisas de pé.

Na Oficina Fabric.Ações que não existem, vimos a Exposição e começamos a Oficina

comendo sequilhos de maisena, sentindo um mínimo de sabor, degustando com a saliva, o

palato, os dentes carregados da mistura, o olhar a boca do outro e de cada um ativando

lembranças de comidas e gostos. Ativamos sensações pessoais, começando pelo sabor e

pensando em sensações que surgissem durante a Oficina. A partir delas, teriam que

encontrar em casa, pequenos objetos ou coisas mínimas que pudessem dar forma a esses

acontecimentos. Surgiram assemblages, desenhos, fotografias, costuras, enrolados e

embaraçados, colados, poemas, vídeos, um pequeno filme e muitas, muitas dúvidas.

Conversamos sobre as criações pessoais e os desafios de trabalhos coletivos, colaborativos

e as mediações entre nós e entre “públicos” diferentes.

Na Oficina coisas de pé, na Escola, as crianças viram fotos da Casa das Onze Janelas e dos

trabalhos montados na Sala Tertuliano Ribas (a chuva nos impediu de ir à Exposição). A

sala as esperava após o recreio com sucos em copos transparentes. Foram convidadas a

tomar cores e adivinhar os sabores de açai, guaraná, groselha. Depois foram para a mesa

coberta com papéis coloridas, barbantes, borrachas, tesouras e pedaços de antigos

mostruários de EVA (com desenhos delicados, nem fabricam mais, foram comprados na

papelaria ao lado da Escola e da Casa das Onze Janelas). As crianças foram desafiadas a

colocar em pé os EVA(s), exercitaram várias engenhocas para que essas coisas moles e os

materiais também molengos, pudessem se sustentar em pé. Inúmeras tentativas e alegrias

com sabor de frutas e memórias sustentaram os trabalhos levados para casa – em pé. As

mãos delicadas seguravam “quase preciosidades criatíveis”.

11

Em Vitória participaram adultos, professores universitários e estudantes de arte. Ativamos

sabores e lembramos de fluxos de infâncias, de cidades, de famílias, vizinhos, lugares

morados. Histórias foram construídas, palavras escritas. Desenhos, conceitos, filmes,

fragmentos literários, conversas de comer, conversas de boca, paisagens gustativas.

Fabricamos encontros e acontecimentos entre o salivar, o degustar, o des.memorizar,

compar-trilhando encontros in loco, em blocos de infâncias e adultidades com

sobreposições de lugares vividos e a viver.

Nas Fábricas, em Belém e em Vitória, tento questionar um regime de representação que

desfaça a correlação entre tema e representação. São solicitadas e evocadas as pre-

existências partindo de existências concretas, o biscoito de polvilho, a paçoca, as balas, a

água, os EVAs descartados, os sucos, os mínimos a nos trans-formar em ações

colaborativas que sustentem e nos a.tentem às experimentações na arte. Essas, calcadas em

coisas ditas “pequenas”, acionam instantes e histórias de cada um e do grupo. Sorrisos,

conversas, trocas, desafios, prazeres de encontros, atos, acontecimentos. Ao ler esse texto,

quantas ações podemos pensar e propor tendo como mínimos, o comer biscoito com mais

pessoas; guloseimas a comer; o tomar água juntos, em mini copos; o fazer ficar em pé os

EVAs molengos; as camadas e camadas que nos constituem? Como ativá-las e dar-lhes

formas, excessão como arte e não, normas culturais? Ou de que maneiras vamos dar

formas às imagens que nos pedem passagens? É preciso um olhar arguto, astuto, arguidor.

Repito João Cabral de Melo Neto: Para aprender da pedra, é preciso frequentá-la. E sobre

pedras e frequentações? E necessidades e apreendizagens? Para viver arte e ensinar arte, é

preciso frequentá-las. Para aprender da arte e seus ensinos, frequentá-los.

Didi Huberman sugere que fechemos os olhos para ver quando o ato de ver nos remete,

nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido nos constitui… fazer

da experiência do ver, um exercício da tautologia: uma verdade rasa lançada como

anteparo a uma verdade mais subterrânea e bem mais temível… buscar justamente por

baixo, escondido, presente, jacente… Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em

seu sujeito. Ver é uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Podemos ver agora,

fragmentos possantes de nossas experimentações FAEBianas?

Concordo com Jean-Luc Godart, a cultura é a norma, a arte é a excessão. O que eu quero

acima de tudo é destruir a ideia de cultura. Cultura é um álibi do imperialismo. Há

Ministério da Guerra. Há Ministério da Cultura. Logo, cultura é guerra. No Brasil, temos

um Ministério da Educação, um Ministério da Cultura, são muitos ministérios sustentando

“empregos e mistérios”. De que modos abordamos e trabalhamos em aulas e oficinas, os

12

programas e as leis? As culturas e as interculturalidades? Estamos a serviço dos sistemas

educacionais, culturais, da arte, concomitantes às análises do fora do fora? Do fora-de-

dentro-de-mim? Criação e invenção tem sido campos de inter-subjetivações? A questão e

desafio é a criação como artista e como professor, como diz Murilo Mendes, é ser e não

ser ao mesmo tempo – o cadáver está na mão que o segura. Temos, ao mesmo tempo, que

afirmar e duvidar; propor, sustentar e desafiar; agregar e desconfiar; gerar confiança e

instabilidade para criações outras, mais e mais. Arte é a dúvida, afirma Picasso. Temos que

questionar a cultura, as normas e os valores culturais, as nossas professoralidades

(dialogando com Marcos Villela). Como temos escapado do dito, do afirmado, do

consagrado em tempos de celebridades e convocatórias de sistemas consumistas, fugazes,

perversos? Não é e nem seria o caso de combater, mas de com-viver essas instâncias,

questioná-las, e das angústias surgidas, dar forma e dar a ver ações criatíveis?

Bibliografia

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro, ed 34, 1992.

DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, ed. 34, 1998.

GUATTARI, Felix. As três ecologias. Campinas, Papirus, 1990.

LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro, Rocco,

1998.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte, 2005.

_________________. A partilha do sensível, estética e politica. São Paulo, EXO

Experimental org. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2005.

VIRTANEN, Akseli e PELBART, Peter Pál. In: GUATTARI, Felix. Máquina Kafka. São

Paulo, ed. N1, edição bi-lingue, 2012.

Catálogos e sites

6a. Bienal do Mercosul. Jorge Macchi, 2007.

Take care yourself. Sophie Calle. Veneza, 52a. Bienal de Veneza, 2007

www.videobrasil.org.br/sophiecalle

www.mariladardot.com

www.jorgemacchi.com

www.lucimarbello.com.br

www.youtube.com/lucimarbello

www.vimeo.com/lucimarbello

facebook lucimarbellofrange

13

Lucimar Bello, vive e trabalha em São Paulo. Artista e pesquisadora em artes visuais. Exposições:

Brasil, Argentina, Chile, México, Cuba, Espanha, Portugal, Japão, China. Graduação em Artes pela

UFMG/BH. Mestrado e Doutorado em Artes pela USP/SP. Pós-Doutora em Comunicação e

Semiótica, PUC/SP. Pós-Doutora no Núcleo de Estudos da Subjetividade, PUC/SP. Atualmente é

Pesquisadora Voluntária no Núcleo de Estudos da Subjetividade, PUC/SP. Pesquisas em processos

de criação na arte contemporânea, artes visuais e seu ensino, artes visuais e comunidades. Pertence

a FAEB – Federação de Arte Educadores do Brasil e a ANPAP – Associação Nacional de

Pesquisadores em Artes Plásticas.