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FERNANDO FELIZARDO NICOLAZZI A EXPERIÊNCIA HISTORIOGRÁFICA: ESTUDOS SOBRE MICHEL FOUCAULT Monografia apresentada à disciplina Metodologia da Pesquisa em História como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profa. Ana Maria de Oliveira Burmester CURITIBA - 2001 -

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FERNANDO FELIZARDO NICOLAZZI

A EXPERIÊNCIA HISTORIOGRÁFICA: ESTUDOS SOBRE MICHEL FOUCAULT

Monografia apresentada à disciplina Metodologia da Pesquisa em História como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profa. Ana Maria de Oliveira Burmester

CURITIBA - 2001 -

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II

Dedicatória

“Não se pode dar linguagem, mas pode-se dedicá-la...dedico a própria dedicatória, que absorve tudo que tenho a dizer.”

Roland Barthes A dedicatória, enquanto gesto de demonstração de amor ou admiração (muitas vezes as duas coisas são inseparáveis), é uma tarefa impossível, incabível nas palavras que se prestam à dedicação. É como um presente que sempre retém em si a suspeita perturbadora: será que o outro vai gostar?, mais ainda, será ele, o presente, suficiente pelo que o outro é para mim? Mesmo sem corresponder à altura de meus anseios, dedico este trabalho, como forma de gratidão (amor e admiração), antes de todos, a duas figuras com as quais mantenho uma relação insuperável pelo tempo, pois que definida, sobretudo, segundo os desígnios da natureza. Mãe e pai: deles carrego a marca fundamental de cria, criatura dada às sutilezas da vida e às intempéries da história. É neles que encontro os princípios para fazer de minha existência uma experiência: o amor, o respeito ao outro, a ética e, como conseqüência desta, o profissionalismo. Dedico também aos pais de meus pais, sempre aqui na proximidade do mesmo bairro ou na distância de outra cidade; a minha madrinha, madrinha na plenitude do termo; aos meus irmãos, pelos conflitos fraternais; à minha namorada pela amizade e aos amigos pela camaradagem. Uma dedicação especial: este trabalho é tributário de uma forma de pensamento que não consegue conter em si suas impertinentes inquietações (que não permitem o conformismo), que sempre está repensando a si mesmo para encontrar modos diferentes de pensar e escapar à vulgaridade, sempre tão próxima. Pensamento que me foi apresentado, na própria atividade do pensar que consiste a boa aula, pela Professora Ana Maria de Oliveira Burmester, mais que uma orientadora, a inspiração maior desta empreitada intelectual, que é ela mesma uma experiência histórica – sempre disposta a mudar com o tempo.

Fernando F. Nicolazzi Curitiba, junho de 2001

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III

“Longe de mim em mim existo. À parte de quem sou,

a sombra e o movimento em que consisto.”

Fernando Pessoa

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IV

SUMÁRIO

O RISO MALDITO: PARA ESCREVER MICHEL FOUCAULT 1 SOBRE A ESCRITA: HISTÓRIA E LITERATURA, FOUCAULT E BARTHES 7 AS HISTÓRIAS DE MICHEL FOUCAULT 33 DA SIGNIFICAÇÃO HISTORIOGRÁFICA E DO EFEITO DE REAL 59 HISTÓRIA: EXPERIÊNCIA E SUBJETIVIDADE 68 A ESTILIZAÇÃO DA HISTÓRIA 75 BIBLIOGRAFIA 77

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O RISO MALDITO: PARA ESCREVER MICHEL FOUCAULT

I

“As formas originais do pensamento

introduzem-se por si próprias: sua história é a

única forma de exegese que suportam, e seu

destino, a única forma de crítica.”

Michel Foucault

Michel Foucault abre um campo do possível: o pensamento, a possibilidade de

pensar. Ele também permite uma forma do impensado: o delírio, o devaneio. O problema

que de súbito aparece quando se pretende escrever Michel Foucault é justamente encontrar

a forma de conciliação entre aquele campo e esta forma. Mas, talvez, a diferença entre eles

não seja tão absoluta como se pretende e não há, nesse sentido, um modelo conciliador

necessário para tanto. Afinal, pensar não é, de certo modo, permitir-se o devaneio assim

como o pensamento não encontra seu lugar de origem no próprio delírio?

Creio, no entanto, que a dificuldade maior que se impõe para o trabalho aqui

pretendido é conviver com aquilo que está sempre presente no momento em que se escreve

Michel Foucault: seu riso tão familiar quanto devastador. É um riso insano, aquele mesmo

que no fim da Idade Média o louco ria pressagiando a morte e desarmando o macabro:

Foucault ri como que pressagiando o momento derradeiro de uma certa história, de um

certo pensamento, de um certo homem. É um riso perturbador, que instiga o pensamento,

perturba suas familiaridades e explicita suas incapacidades, pois mostra o que, para este

pensamento, é simplesmente impensável. É, enfim, um riso maldito de um pensador

“maldito” que se reconhece por três traços apresentados por ele mesmo: “uma obra

brutalmente interrompida, parentes abusivos que pesam na publicação dos póstumos, um

livro-mistério, alguma coisa como ‘o livro’ do qual não se acaba de pressentir os

segredos”1.

1 Nesta passagem, Foucault se refere a Nietzsche. Para o seu caso, no entanto, vale salientar que o único abuso de seus familiares consiste em respeitar sua própria vontade de que não fossem publicados escritos póstumos, como, por exemplo, o famoso volume da história da sexualidade sobre a noção cristã da carne e também a sua

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A melhor forma de convivência, talvez a única realmente válida, reside na

imaginação: escrever Michel Foucault é escrever um Foucault imaginado. Com isso quero

dizer que meu real anseio aqui é fazer algo que já foi feito por Maurice Blanchot em seu

Foucault tel que je l’imagine2. Trata-se de um Foucault e não o Michel Foucault. E é um tal

Foucault imaginado assim como seu pensamento é tal que a única possibilidade aqui é

imaginá-lo.

Em uma única sentença, Blanchot conseguiu de maneira estupenda definir o lugar

exato de onde é possível escrever Michel Foucault: “Foucault, na abundância da sua escrita,

é um ser silencioso”3. É, então, sob o murmúrio inaudível de uma obra monumental que

este trabalho prossegue: trabalha-se sob o signo da ausência, em suas múltiplas formas.

Este silêncio foucaultiano, ausência de voz, é também a ausência de um nome: o

nome de autor, garantia do sentido do texto. Em determinado momento de sua vida,

preferiu até mesmo manter o anonimato numa entrevista com o intuito de que apenas o que

diria seria levado em consideração, a despeito da sua pessoa e de toda a cerimônia que

pairava em torno dela. Assim sendo, escrever Michel Foucault é escrever uma certa

indeterminação entre vida e obra, entre autor e texto. É não reconhecer as similitudes

apressadas entre a bio e a grafia; é evitar uma simples continuidade biográfica. É

importante salientar: a ausência sobre e a partir da qual se escreve não serve como carência

a ser contornada, como lacuna a ser preenchida: é apenas a abertura de um espaço possível

para o pensar, é a possibilidade maior para o pensamento.

II

Mas a escrita não segue assim a esmo. Não basta apenas se aproveitar de uma

possibilidade criada e nela simplesmente pensar de forma delirante. É necessária a invenção

de limites; arbitrários, obviamente, porém funcionando como guias na medida em que

estabelecem um atalho entre infindáveis caminhos. O que se tentará fazer é realizar uma

prática crítica tendo como ponto de partida diversos textos de Michel Foucault.

correspondência. Ver Michel Foucault. “Introdução geral” (1967). In: Ditos e escritos II, p. 36.As referências completas constam na bibliografia, no final da obra. 2 Embora eu tenha lido este belíssimo livro em sua edição lusitana, preferi manter o título original visto que a tradução para o português suprimiu algo deveras importante: o tal. 3 Maurice Blanchot. Foucault como o imagino (1986), p. 27.

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Aparentemente um simples estudo de caráter teórico, mas com implicações importantes que

devem ser evidenciadas.

Primeiramente, é preciso dizer que a formulação desta prática origina-se em um

determinado tipo de crítica literária, a qual entende a crítica como gesto filosófico de

trabalho de si. Ou seja, esta crítica parte da experiência nua da linguagem interessando-se

especialmente pela escrita para, então, constituir um campo onde a própria escrita é

possível: escreve-se sobre a escrita justamente para poder escrever e escreve-se para

transformar-se a si mesmo. Trata-se de uma forma de análise que não se preocupa em

estabelecer relações entre a literatura e o literato atribuindo àquela a característica de

interior deste, mas que pretende sempre prolongar o espaço literário para além do autor de

literatura.

Nesse sentido, os textos de Michel Foucault, que não são literatura, serão aqui

tratados como acontecimentos discursivos, os quais dispensam seu autor expandindo,

porém, os próprios discursos. Não estou preocupado em encontrar a consciência dos

escritos, mas simplesmente compreendê-los em sua existência material: não o não-dito do

texto, mas o que está, de fato, dito e em seu tempo particular; não a busca de um sentido

ocultado pelas palavras, mas a procura de significados visíveis; não uma interpretação de

discursos, mas sua própria produção. Não escrevo sobre Foucault, mas a partir dele.

Em outras palavras, tomar a influência exercida por seu pensamento não como um

poder imposto, mas como inspiração ao pensar. As eventuais e inúmeras citações que serão

feitas não funcionarão segundo efeitos de autenticidade e sim como apropriação da

linguagem. Não as usarei para justificar o que estou prestes a escrever – “vejam só,

Foucault disse isso mesmo”; serão utilizadas meramente por respeito a sua unicidade e

porque não há outra maneira melhor de dizer aquilo que foi dito: há certas passagens cujas

paráfrases são, sobretudo, desrespeitosas.

Tomar tais escritos como acontecimentos discursivos implica também, tanto quanto

possível, na percepção de suas diferenças, das retomadas de posição, das transformações

sofridas. Permite estabelecer os deslocamentos ocorridos num pensamento que não cessou

de questionar a si próprio. Permite, por conseguinte, encontrar meios através dos quais

ainda é possível pensar de forma diferente.

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III

Pensar de forma diferente é também encontrar novos modos de escrever. É neste

sentido que essa prática crítica é fruto de uma desconfiança permanente quanto aos

protocolos acadêmicos que sistematizam a escrita. Um destes protocolos se apresenta na

exigência de um escrito de caráter monográfico com suas normas internas específicas:

objetivos, metodologia, desenvolvimento e conclusão.

O presente trabalho, neste sentido, não é uma monografia e sim vários ensaios

independentes uns dos outros, mas que seguem um viés em comum. Seus objetivos

dificilmente podem ser enumerados: trata-se mais especificamente de uma vontade de

constituir um espaço para uma determinada experiência historiográfica. Estes textos não

tratam do métier do historiador, procuram compreender a historiografia, a escrita da

história, como uma prática de transformação de si: prática privilegiada pois que lida, em

sua essência, com as diferenças. A metodologia, da forma como ela é comumente aceita, é

inexistente: não há um padrão que sistematize a leitura dos textos de Michel Foucault, os

quais não recebem o tratamento comum de documentos. Não se trata de encaixá-los num

modelo teórico de análise para tentar extrair deles uma certa verdade ou reconstituir um

determinado pensamento. Assim sendo, não há método de pesquisa, apenas um modo de

trabalho: aquele motivado, sobretudo, pela inquietação e pela curiosidade. Seu

desenvolvimento não leva necessariamente a uma conclusão: o caráter fragmentário deste

trabalho impede um único ponto de chegada e aponta novas possibilidades de recomeço.

Afinal de contas, se se soubesse de antemão o resultado da escrita dificilmente se

escreveria. Mas há uma determinada ordem neste trabalho.

A experiência historiográfica se apresenta segundo perspectivas diferenciadas que

procuram compreender a prática do historiador em suas várias dimensões: a escrita, as

concepções teóricas, o uso crítico da historiografia, etc. A tentativa dos textos aqui

apresentados foi de discorrer discursivamente sobre esta prática que, no conjunto,

constituui uma experiência singular. Em primeiro lugar, tenta-se estabelecer um lugar para

falar, uma forma de escrever Michel Foucault, bem como compreender as características

desta prática tão familiar: a escrita. Em seguida, as diferentes histórias escritas por Foucault

serão problematizadas, não na tentativa de elaborar um método de pesquisa historiográfica

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e sim com o intuito de descrever uma constante recusa de sistematização metodológica que

é, na verdade, uma vontade de transformação. Por fim, e talvez a razão maior deste

trabalho, a historiografia é colocada em evidência para lhe atribuir um sentido de vida.

Duas perguntas distintas e convergentes são as inquietações maiores: por que estudar os

passados?, por que escrever histórias?

Todos estes escritos foram realizados isoladamente e têm entre eles uma certa

autonomia. Algumas questões, no entanto, são comuns a alguns deles, ainda que enfocadas

de modos diferentes. Podem ser encontradas algumas contradições o que, de modo algum,

devem ser vistas como negativas: são conseqüência desta mesma experiência, deste

trabalho sobre si mesmo que é escrever.

IV

O tempo em que vivemos é o tempo do vazio, da ausência de modelos edificantes e

totalizadores. O fim dos grandes homens como monarcas do pensamento, a decadência dos

grandes pensamentos como soberanos aos homens. O próprio desaparecimento do homem

como objeto absoluto do pensamento.

Àqueles que ainda falavam em termos deste homem glorioso, mito antropológico e

lugar da verdade, Foucault opôs seu riso maldito, riso filosófico e silencioso. E é preciso,

de fato, rir, sem parar e sem pudor: rir do lamento de alguns e do desespero de outros. O

vazio é o lugar da liberdade: “compreende-se que alguns lamentem sobre o vazio atual e

desejem, no âmbito das idéias, um pouco de monarquia. Mas aqueles que, uma vez em suas

vidas, encontraram um tom novo, uma nova maneira de olhar, uma outra maneira de fazer,

estes, acredito, jamais experimentarão a necessidade de se lamentarem de que o mundo é

erro, a história, saturada de inexistências, e já é hora de os outros se calarem para que,

finalmente, se possa ouvir a sineta de sua reprovação”4.

É neste ambiente que os trabalhos foram iniciados. Escritos sobre a ausência, sob o som de

uma risada impertinente e não-sonora: a exegese dos textos cede lugar a sua descrição

como acontecimentos, como uma história; a crítica se pauta naquilo que foi seu destino

4 Michel Foucault. “O filósofo mascarado” (1980). In: Ditos e escritos II, p. 306.

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maior: possibilitar um pensar diferente, uma escrita outra. Tributo a uma forma tão original

de pensamento, é nisto que se resume os textos a seguir.

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SOBRE A ESCRITA: HISTÓRIA E LITERATURA, FOUCAULT E BARTHES

Uma experiência de escrita

“Há que se acreditar no que diz a palavra

escrita, mas não acreditar nela por a termos

lido.”

Michel Foucault

As reflexões que se seguem são apenas um exercício teórico: não se fecham num

estudo conclusivo nem encerram aqui a própria reflexão. Assumem a forma ensaística se

entendermos por isso, da mesma forma que Barthes, “um gênero incerto onde a escritura

rivaliza com a análise”5. Ou ainda, com Foucault, se entendermos que o ensaio é uma

“experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora

de outrem para fins de comunicação”6.

Trata-se, mais especificamente, de uma experiência de escrita (e, consequentemente,

sobre a escrita), na qual aquele que escreve não deixa de duvidar, a todo o instante, daquilo

que escreve: não seriam apenas palavras? Sim, talvez não só, mas se assim for, tanto

melhor: a recusa da prisão do sentido, a suspeita de que as palavras não remetem a nada

além delas, tão somente se reduplicam.

– Tais palavras possuem apenas este sentido, que é o verdadeiro e que só eu, autor,

conheço, e cabe a você, leitor, desvendar e reconhecer.

É esta a fala do autor, monarca da obra, que é recusada.

Uma experiência de escrita porque se escreve para saber, depois da leitura, o que se

escreveu, o conteúdo jamais conhecido a priori da escrita. Ou seja, escreve-se, não para se

dizer o que se pensa e, deste modo, o que se é, mas, de forma bem diferente, escreve-se

para não ser, para fraturar a identidade tão comumente aceita entre o escrito e o escritor,

5 Roland Barthes. Aula (1977), p. 07. 6 Michel Foucault. O uso dos prazeres (1984), p. 13.

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entre a escrita e o pensamento. “A escritura é, com efeito, em todos os níveis, a fala de um

outro, e podemos ver nessa reviravolta paradoxal o verdadeiro ‘dom’ do escritor”7.

Sobre um conto de Arthur Schnitzler8

Tal é a maneira como o narrador apresenta um seu amigo: “se houve um homem a

cujo destino cabe o adjetivo ‘tragicômico’, este homem foi, certamente, meu amigo

Ypsilon, já falecido...”. Ypsilon, um homem tragicômico. Filólogo na vida burguesa, porém

poeta. Poeta apaixonado pela palavra, enlouquecido pela poesia e nela mesma; desses para

quem escrever não é mero deleite, hábito ou vício: é condição. A intransitividade da escrita:

não se trata de escrever alguma coisa, qualquer coisa, para alguém ou por um motivo

específico, mas “escrever em absoluto” (Barthes).

Quando escrevia, “sentia-se tão infinitamente à vontade junto a sua musa, que

vagava sempre, invisível, ao seu lado, que até um determinado momento pertenceu aos

mais felizes dos homens que jamais encontrei”. A escrita como lugar possível da felicidade:

a tarefa de que Barthes fala (escreve): “escreve-se talvez menos para materializar uma idéia

do que para esgotar uma tarefa que traz em si sua própria felicidade”9. Em sua trágica vida

cômica, Ypsilon era feliz, insandecidamente feliz. Entregava-se a essa felicidade como

quem, de vencido, desiste da batalha. Não havia outra coisa a fazer, não existia sequer outra

coisa; para além da escrita, a impossibilidade; nela, tudo estava contido, tudo era possível:

da saúde e da razão à loucura, da vida à morte, e vice-versa.

“Eu costumava exortá-lo, mais seriamente do que muitos outros, para que ele não

fizesse amizade demasiado estreita com suas sombras, mas que olhasse também um pouco

a vida ao seu redor...”, confessa o narrador. Mas para Ypsilon não existia o ao redor; havia

sim, ou melhor, estava existindo um nome, Türkisa. E uma paixão arrebatadora tomou-lhe

os sentidos. Aprisionada no papel, em meio a linhas e combinações de palavras, a musa

espalhava o feitiço. No entanto, sua morte era anunciada: “eu a adoro, mas, ai, ela deve

morrer!”. Ele, criador, nada podia fazer, apenas cumprir sua tarefa, continuar sua escrita,

7 Roland Barthes. “Prefácio”. In: Crítica e verdade (1963), p. 20. 8 Arthur Schnitzler. “Meu amigo Ypsilon” (1887). In: Contos de amor e morte. 9 Roland Barthes. “Prefácio”. In: Crítica e verdade (1963), p. 17.

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escrever a morte da criatura. Não lhe cabia evitar tal desfecho, “as coisas têm de ser como

são”.

Por esta razão, sentia-se um miserável. E miserável empurrava a pena sobre o papel.

Sob a luz de quatro velas vermelhas pôs-se a escrever. Türkisa agonizava; Ypsilon, em

quase desespero, não interrompia as duas agonias. Num último resquício de força, um

derradeiro suspiro: ele cai esgotado e seu corpo queda sobre o papel; ela despenca morta no

papel, jazigo de seu nome. O fim, finalmente, chegou; não há outro capítulo, outra página

ou qualquer continuação: o ponto encerra a escrita.

A morte da musa é também o prenúncio do fim da escrita: não há mais o que

escrever, não é necessário mais ninguém para escrever. As quatro velas vermelhas se

apagam num sopro de alívio, o corpo do poeta se estende ao pé da escada: a morte do

escritor, o suicídio. Para o narrador, a única explicação razoável residia na desrazão:

“estava louco (...) a sua loucura, porém, fará com que mais de um o considere amável”.

A loucura de Ypsilon: fazer de sua experiência uma experiência de linguagem,

querer viver a escrita e escrever a própria vida. A morte da musa, o ponto final, o fim da

linguagem, o fim da vida: o autor em seu direito à morte. “A linguagem é ao mesmo tempo

tranqüilizadora e inquietante. Quando falamos, tornamo-nos senhores das coisas com uma

felicidade que nos satisfaz (...) a palavra é a felicidade e a segurança da vida”10. Quando

não há mais a palavra, a linguagem, tudo se coloca nas dificuldades do perigo;

intranqüilidade, desespero e morte. Mas só isso possibilita a poesia e, consequentemente, os

poetas.

Blanchot: “aqueles que chamamos poetas se interessam pela realidade da

linguagem, porque não se interessam pelo mundo, mas pelo que seriam as coisas e os seres

se não existisse mundo; porque se entregam à literatura como a um poder impessoal que só

busca tragar-se, submergir-se”11. Enorme façanha a da literatura: só existe quando da morte

daquele que a possibilita. Pois quando o escritor escreve, ele se transforma em outro; este

outro é a linguagem. O ser do autor sucumbe: não há uma consciência por trás do escrito,

há apenas um ser, o ser da linguagem. “A linguagem é a vida que carrega a morte e nela se

mantém”12.

10 Maurice Blanchot. “A literatura e o direito à morte” (1949). In: A parte do fogo, p. 310. 11 Ibid., p. 320. 12 Ibid., p. 323.

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A narrativa, o escrito de Ypsilon não fazia jus à sua escrita; o narrador é honesto: “é

um completo fracasso; há pouco talento nela”. Ainda assim, sugere ele, Ypsilon foi um

verdadeiro poeta, “pois qual não deve ser a fantasia que consegue fazer nascer por encanto

um ser pelo qual o mágico ele próprio se enamora até a loucura”.

Estranhamente, o narrador deixa entrever uma relação inesperada: um poeta de

verdade, louco, que escreve a própria morte! Verdade, loucura e morte; em uma palavra:

literatura. “Fantasia caprichosa, dourada! Aproxima-te de um de nós, lisonjeira, com

flagrante amizade, e o transformas no mais feliz dos loucos, o poeta; como um inimigo

atacas o outro e o transformas no mais lamentável dos poetas: o louco”.

*

Deste conto de Arthur Schnitzler, é possível escrever sua leitura. Trata-se de pensar

a literatura no seu através: a literatura através da literatura. Dir-se-ia ser mera tentativa de

se fazer crítica literária, ou seja, nada mais nada menos que uma outra forma, entre tantas

outras, de se fazer a mesma pergunta: o que é literatura? Ora, pode até ser isso mesmo, mas

isso não deixa de ter uma série de implicações.

Roland Barthes lembra que “desde Flaubert a literatura começou a sentir-se dupla.

Nasce aí, de certa forma, a pergunta ‘o que é a literatura?’. O problema é a ambigüidade da

resposta, colocando a literatura entre a ‘linguagem-objeto’ e a ‘metalinguagem’”13. A

crítica seria uma linguagem segunda; não aquela que busca o não-dito do texto, um certo

excesso ou resto de sentido que não estaria visível nas palavras, mas a que constrói outros

sentidos a partir daquele texto, constituindo-se, assim, como um texto outro: um texto

através de outro.

Michel Foucault também sugere algo interessante. “Formular a questão ‘o que é a

literatura? seria o mesmo que o ato de escrever. A questão não é, de modo algum, de

crítico, de historiador ou de sociólogo a respeito de determinado fato de linguagem. É, de

certo modo, um oco aberto na literatura; um oco onde ela deveria se situar e,

provavelmente, recolher todo o seu ser”14. Questionar a literatura só é possível dentro dela

13 Roland Barthes. “Literatura e metalinguagem” (1959). In: Crítica e verdade, p. 28. 14 Michel Foucault. “Linguagem e literatura” (1964). In: Roberto Machado. Foucault, a filosofia e a literatura, p. 139.

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mesma, através dela própria. Faz-se com isso apenas um movimento de negação da crítica,

daquela linguagem segunda? Certamente não! Sobre um escritor ou sobre um escrito,

escreve-se; a linguagem que o crítico usa e o lugar de onde fala são os mesmos do literato.

Por isso tanto um quanto o outro assumem a mesma e impossível tarefa: refletir sobre a

literatura escrevendo.

Pois, “se a reflexão imponente se aproxima da literatura, esta se torna uma força

cáustica, capaz de destruir o que nela e na reflexão poderia se impor. Se a reflexão se

afasta, então a literatura volta a ser, com efeito, algo importante, essencial, mais importante

do que a filosofia, a religião e a vida do mundo que ela abarca”15. Assim sendo, a pergunta

“o que é literatura?” não possui outro destino senão o de ser uma eterna pergunta, de

manter infinitamente a procura da resposta sem nunca responder de fato; aqui o único

sentido possível é a busca de sentido. Barthes esclarece comparando a literatura à

personagem de Racine (Eriphile em Iphiginie), a qual “morre de se conhecer mas vive de se

procurar”16.

Em suma, a crítica não tem por escopo ou mérito ser a leitura que esgota o texto,

aquela que completa o trabalho do escritor; é, de outro modo, a possibilidade aberta pela

literatura e por sua questão fundamental. O crítico, escritor, não escreve de fora da

literatura, mas em seu vazio interior. Não tem, portanto, direito de verdade, assim como não

existe literatura certa ou errada. Fazer a crítica é escrever: “a crítica era a forma

privilegiada, absoluta e primeira da leitura. Ora, parece-me que atualmente o que há de

importante na crítica é que ela está passando para o lado da escrita, e isso de dois modos.

Em primeiro lugar, porque a crítica cada vez mais se interessa não pelo momento

psicológico da criação da obra, mas pelo que é a escrita, pela própria densidade da escrita

dos escritores, com suas formas, suas configurações. Em segundo lugar, porque a crítica

deixa de querer ser uma leitura melhor, mais matinal, ou mais bem armada, e está se

tornando, ela própria, um ato de escrita”17.

O que aqui se escreve através do texto de Schnitzler não é, desse modo, um adendo

de sentido; não se pretende uma verdade. É, de fato, outro texto, com outro sentido que tem

como campo de validade uma outra situação ou contexto: não quer apreender o que o autor

15 Maurice Blanchot. “A literatura e o direito à morte” (1949). In: A parte do fogo, p. 293. 16 Roland Barthes. “Literatura e metalinguagem” (1959). In: Crítica e verdade, p. 28.

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quis escrever em seu próprio tempo e lugar (a psicologia ou sociologia do texto), mas

entender o que está escrito (a matéria verbal, a superfície do texto).

Voltando ao conto, que segundo consta fora escrito em 1887, podem ser tecidas

algumas considerações sobre a literatura. Primeiro, a loucura é a origem da escrita de

Ypsilon, e somente nesta escrita delirante é que ele se torna um poeta de verdade. Além

disso, ele mesmo é um nome escrito em um conto, é uma palavra no papel; não é apenas

um literato, é ele próprio literatura. O ponto no fim, o final da obra, a morte do poeta,

encerram a literatura num espaço específico. Mas de que forma este espaço se apresenta?

Michel Foucault nos anuncia o espaço onde a loucura e a literatura coincidem: a

experiência trágica da loucura. Em contraposição à experiência crítica, cuja linguagem

assume as vezes do discurso científico, mais precisamente o da psicanálise, e que num

movimento brusco isola e recolhe no silêncio toda a fala que não encontra na razão sua

possibilidade, a experiência trágica, a linguagem do louco, funciona como transgressão aos

limites da razão: experiência-limite, pois expande indefinidamente a fronteira entre o

racional e o irracional, entre o discurso científico do médico e a escrita literária do louco.

Deste modo, a linguagem da desrazão não tem a origem em comum com a

linguagem racional: esta funda-se na distinção absoluta entre exterior e interior; só é válido

o que fala do lado de dentro, o que está de fora é a fala sem sentido, a loucura, a ausência

de obra. A outra, a linguagem da desrazão, origina-se no espaço que ainda guarda em si o

trágico, o tenebroso e o cruel da vida, o mesmo espaço-limite (o louco é “prisioneiro da

passagem”) que permite, na loucura, falar e escrever. A primeira, o monólogo de Apolo; a

segunda, o diálogo com Dionísio.

A fala do médico descobre no espaço preenchido da razão e do pensamento sua

condição de possibilidade. É pois, para sempre, uma linguagem que tem como pano de

fundo algo que lhe é alheio e soberano: a verdade da razão, a razão verdadeira: a ciência. A

escrita do louco, por outro lado, encontra nesse vazio da linguagem, onde não há a

soberania da verdade, seu começo possível. É aí onde o poeta louco se torna poeta de

verdade, não da verdade. E é neste mesmo espaço que se origina isso a que denominei

literatura.

17 Michel Foucault. “Linguagem e literatura” (1964). In: Roberto Machado. Foucault, a filosofia e a

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A literatura

Uma provocação: “pensa-se que a literatura não tem outra idade, outra cronologia,

outro estado civil que não os da própria linguagem. Mas não estou convencido de que a

literatura seja tão antiga assim (...) Não é tão evidente que Dante, Cervantes ou Eurípedes

sejam literatura. Certamente, hoje fazem parte da literatura, pertencem a ela, mas graças a

uma relação que só a nós diz respeito: fazem parte de nossa literatura, não da deles, pela

excelente razão que a literatura grega ou latina não existem. Em outras palavras, se a

relação da obra de Eurípedes com a nossa linguagem é efetivamente literatura, sua relação

com a linguagem grega certamente não o era”18.

A longa citação acima se justifica visto que nela estão contidos os principais

elementos para se compreender a pergunta de Foucault, “o que é literatura?”. Tal pergunta,

como se percebe, esteve sempre presente, embora muitas vezes quase ocultada por outros

temas de maior ressonância, nos textos de Michel Foucault, pelo menos aqueles do início

dos anos 6019. E a partir desta pergunta, se ele não oferece uma resposta acabada, é possível

delinear alguns contornos sobre esta prática da linguagem que é a literatura.

Como está explícito no texto, a literatura tem sua própria história dentro da história

da linguagem: não nasce a partir do momento em que surgem as palavras; é, por sua vez,

apenas uma forma de relação da linguagem e com as palavras. Em Aristóteles, temos a

idéia de uma poética como imitação, mimesis. A linguagem imita o mundo real, a arte é

uma reflexão sobre as coisas. Havia por trás das palavras algo mais, e este algo mais era um

pensamento. Não foram poucos os autores gregos que consideraram as palavras como a

cortina do pensamento, obstáculo e dificuldade do pensar. Na Idade Média e no

Renascimento, as palavras mantinham com o mundo uma relação de analogia e similitude:

eram marcas do mundo. Diferentemente, para a época clássica, a linguagem era

representação; apenas representava uma outra linguagem anterior, muda, primitiva e

originária: a linguagem de Deus, da Verdade.

Já a literatura, ou melhor, esta relação específica com a linguagem, é uma relação

tipicamente moderna. As palavras deixam de ser instrumento de expressão de um

literatura, p. 156. 18 Michel Foucault. “Linguagem e literatura” (1964). In: Roberto Machado. Foucault, a filosofia e a literatura, p. 139.

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pensamento e também não são mais representação da Palavra original. “A partir do século

XIX, deixa-se de prestar atenção à palavra primeira e, em seu lugar, se ouve o infinito do

murmúrio, o amontoamento das palavras já ditas. Nessas condições, a obra não precisa

mais se incorporar nas figuras da retórica, que valeriam como signos de uma linguagem

muda e absoluta; só precisa falar como uma linguagem que repete o que foi dito e que, por

causa dessa repetição, apaga tudo o que foi dito e, ao mesmo tempo, o aproxima o mais

possível de si mesma para recuperar a essência da literatura”20.

Em outras palavras, a literatura, tal como nos é possível pensar a partir de Foucault,

não é uma representação de outra coisa além dela mesma. Ou seja, a linguagem

especificamente literária é uma linguagem de não-representação do mundo ou das coisas

(de uma realidade), uma linguagem que traz em si sua própria realidade, que não remete a

algo “mais real” mas que repete incessantemente a si mesma. É por isso que o lugar

privilegiado para a literatura é a biblioteca. Ali está sua matéria-prima, ou seja, as palavras

já escritas. Ali a repetição se torna infinita. Esta idéia de literatura aponta para a ruptura

entre palavra e coisa que também pode ser pensada, e de fato foi, como crítica a um certo

pensamento humanista motivado por um sono antropológico: neste sono, o homem

soberano, quase divino, é como fundamento do saber, tudo se explica em sua função. A

linguagem seria mera expressão deste ser. Nesta crítica, o paralelo com a posição de

Barthes é inevitável.

Para este, “a linguagem não pode ser considerada como um simples instrumento,

utilitário ou decorativo, do pensamento. O homem não preexiste à linguagem, nem

filogenética nem ontogeneticamente”21. E no caso da literatura, forma transgressora e

transgressiva da linguagem, a combinação das palavras não é a transcrição do pensamento:

é a prática da escrita de modo intransitivo. Isto significa uma tal autonomia da linguagem?

Certamente. Esta autonomia, entretanto, assume sua positividade na medida em que permite

o ocaso daquele que escreve. “Escrever implica calar-se, escrever é, de certo modo, fazer-se

‘silencioso como um morto’, tornar-se o homem a quem se recusa a última réplica, escrever

é oferecer, desde o primeiro momento, essa última réplica ao outro”22. Escrever é dar

19 Ver, entre outros, o estudo de Roberto Machado. Foucault, a filosofia e a literatura. (2000). 20 Michel Foucault. “Linguagem e literatura” (1964). In: Roberto Machado. Foucault, a filosofia e a literatura, p. 153. 21 Roland Barthes. “Escrever, verbo intransitivo?” (1966). In: O rumor da Língua, p. 20. 22 Roland Barthes. “Prefácio” (1963). In: Crítica e verdade, p. 15.

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sempre ao outro a possibilidade da palavra, é romper o elo que prende o texto a uma

consciência específica, a qual traria a chave para desvelar seu sentido: escrever é

possibilitar o sentido, não oferecê-lo como um dado. Isso permite ao escritor a ação:

“escrever é hoje fazer-se centro do processo de fala, é efectuar a escrita afectando-se a si

próprio, é fazer coincidir a acção e a afecção, é deixar o scriptor no interior da escrita, não

a título de sujeito psicológico, mas a título de agente da acção”23. A ação do escritor, em

sua escrita intransitiva, é o recuar diante de si mesmo.

Tal é a transgressão da literatura: a eterna continuidade do jogo da linguagem, a

reduplicação constante das palavras, a significação infinita. Assim é o escritor transgressor:

ocultando-se, desdobra-se em vários, permanece na diferença. E de que forma se dá esta

escrita?

“Vocês sabem que é uma descoberta paradoxalmente recente o fato de a obra

literária ser feita não com idéias, com beleza, com sentimentos sobretudo, mas

simplesmente com linguagem. Portanto, a partir de um sistema de signos”24. Nesta

passagem, a posição radical de Foucault, não esconde a constatação óbvia: a literatura é,

essencialmente, manipulação de signos. O literato não é aquele que simplesmente expressa

emoções ou extravasa sentimentos; é, de fato, o indivíduo que possui a capacidade de, num

arranjo de palavras, provocar a emoção e aguçar os sentimentos. Aqui se faz necessária

uma pausa explicativa:

Existem inúmeras maneiras de definir a arte. Ao mesmo tempo, não existe uma

única definição para a arte, nem tampouco várias definições. Há, certamente, textos sobre a

arte. O ensaio de Ernst Cassirer é um destes casos. Retomando diversos momentos do

pensamento ocidental onde se colocou o problema da arte, ou a arte enquanto um problema,

torna-se um texto extremamente interessante por romper com a dicotomia comumente vista

como um pressuposto entre objeto e sujeito: arte é, pelo contrário, o sujeito objetivado pelo

objeto artístico, a obra (no sentido material do termo), é também o objeto subjetivado pelo

sujeito da arte, o artista. Não é mera imitação ou interpretação da realidade, é sua

intensificação.

23 Roland Barthes. “Escrever, verbo intransitivo?” (1966). In: O rumor da língua, p. 24. 24 Michel Foucault. “Linguagem e literatura” (1964). In: Roberto Machado. Foucault, a filosofia e a literatura, p. 163.

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Todavia, ele constrói outra dicotomia apontando para uma diferenciação entre

linguagem e ciência, de um lado, e arte do outro. “A linguagem e a ciência são uma

abreviação da realidade; a arte é uma intensificação dessa realidade. A linguagem e a

ciência dependem de um único e mesmo processo de abstração; a arte pode ser descrita

como um processo contínuo de concreção”25. O que me perturba não é tanto a distinção

corriqueira entre arte e ciência, mas a colocação da linguagem ao lado da ciência. Ora, se

ela é, no fundo, mais do que um aparato técnico para expressão individual e para a

comunicação coletiva, mais do que um simples código normativo, seu uso, a prática da

linguagem, o discurso, a fala ou a escrita, de forma alguma são apenas uma produção

científica. A linguagem é um código racionalmente constituído que permite o desvario da

razão que a constituiu. É, pois, uma técnica privilegiada para a arte. Seria, a meu ver, mais

interessante que a dicotomia proposta por Cassirer, pensar uma relação entre três partes, na

qual a linguagem é um ponto de junção entre ciência e arte: não é esta a origem da relação

tão íntima entre história e literatura?

Neste sentido, o efeito estético da literatura, seu prazer e sua beleza, surge da

percepção material da obra literária: o que encanta na literatura é, no fundo, o modo como

as palavras estão arranjadas, pois daí, deste arranjo originário, é que é possível a beleza da

narrativa ou da poesia. Este arranjo é a parte formal da literatura, que não é simplesmente a

métrica ou o enredo. Afinal, quantas não foram as situações em que uma simples frase

interrompeu por completo a leitura do texto, fazendo com que os olhos retornassem,

relessem-na, duas, três vezes mais, e, logo depois, com a cabeça já levantada, nos fizesse

olhar ao fundo, ao nada, simplesmente repetindo aquelas palavras, combinadas daquela

forma? “Se a arte é gozo, não é gozo de coisas, mas de formas. O deleite com as formas é

totalmente diferente do deleite com as coisas ou com as impressões sensoriais”26.

Lembro-me de um poema de Olavo Bilac no qual ele relaciona à tarefa do ourives a

prática do poeta: o poeta constrói seu poema, lapida as palavras, atribui-lhes forma e

contorno, dá-lhes beleza. Mas para Bilac, parnasiano, a beleza estava na retitude da

métrica: a poesia seria feita apenas de pedras preciosas. Penso também em Manuel

Bandeira, o crítico do parnasianismo: “estou farto do lirismo comedido / do lirismo bem

comportado / do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e

25 Ernst Cassirer. “A arte” (1944). In: Ensaio sobre o homem, p. 235.

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manifestações de apreço ao senhor diretor / estou farto do lirismo que pára e vai averiguar

no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo / abaixo os puristas / todas as palavras

sobretudo os barbarismos universais / todas as construções sobretudo as sintaxes de

exceção / todos os ritmos sobretudo os inumeráveis (...)”.

Duas posições artísticas díspares e contraditórias, quase excludentes uma da outra.

Não fosse o ponto em comum: ambos escrevem, a arte de cada um é escrita. Para o

primeiro as palavras devem assumir uma forma reta, métrica, contada, comedida e

racionalmente emotiva. Para o segundo, não importa a aparência mas sim o lirismo

libertário, todas as palavras são possíveis, tanto as divinas quanto as bárbaras: a emoção

desregrada. Na sobriedade do ourives ou na embriagues do louco, são sempre as palavras,

quaisquer palavras, a condição fundamental para a poesia.

Neste ponto podemos retornar à noção proposta por Foucault: a obra literária existe,

sobretudo, a partir da linguagem. Não só, mas fundamentalmente. Sem dúvida alguma, se

considerarmos os leitores da literatura, toda a pluralidade das leituras, chegamos à

conclusão óbvia: se cada um, ao ler um mesmo texto, percebe-o e sente de forma diferente,

todos, sem exceção, lêem a mesma coisa: a linguagem. Ou seja, o escritor não escreve um

sentimento, uma sensação ou emoção; ele escreve palavras. Estas palavras, por sua vez, não

estão necessariamente vinculadas àquele que as escreveu, tampouco ao seu sentimento ou a

sua consciência. Este vínculo, aqui questionado, entre escrita e escritor possibilita o

exercício de uma função especificamente moderna: o autor.

O problema desta função, discutida em 1968 por Barthes e em 1969 por Foucault27,

é que ela coíbe a transformação daquele que escreve. Por estar muito atrelada à noção de

obra, reduz sensivelmente as possibilidades da escrita: o autor não escreve para se

transformar, para ser outro, mas para permanecer o mesmo, dar continuidade a sua obra,

legitimando o que se é. A obra daria um sentido específico para os textos do escritor: eles

possuem algo em comum (o mesmo autor), têm todos um mesmo sentido oculto, devem,

portanto, ser lidos da mesma forma não importando a distância que os separa.

26 Ernst Cassirer. “A arte” (1944). In: Ensaio sobre o homem, p. 261. 27 Roland Barthes. “A morte do autor” (1968). In: O rumor da língua; e Michel Foucault. O que é um autor? (1969).

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Não vincular a escrita ao escritor, por outro lado, permite pensar em algo como o ser

da linguagem. Este sendo possível apenas na intransitividade da escrita, no ocaso daquele

que escreve: “o ser da linguagem não aparece por si mesmo mais do que no

desaparecimento do sujeito”28. E é este ser da linguagem que permite um tal “pensamento

do exterior”. “Este pensamento que se mantém fora de toda a subjetividade para fazer

surgir como do exterior seus limites, enunciar seu fim, fazer brilhar sua dispersão e não

obter mais do que sua irrefutável ausência e que ao mesmo tempo se mantém no princípio

de toda a positividade, não tanto para extrair seu fundamento ou sua justificativa, quanto

para encontrar o espaço em que se desvincula o vazio que lhe serve de lugar, à distância em

que se constitui e na qual se dissipam, desde o momento em que é objeto da mirada, suas

certezas imediatas, – este pensamento, com relação à positividade do nosso saber, constitui

o que poderíamos chamar em uma palavra ‘o pensamento do exterior’”29.

Pensar do exterior, transgredir a finitude, é escrever literatura. Daí porque Foucault

entende a literatura como transgressão. Se uma cultura, enquanto tal, firma-se na

construção de limites, estabelece o lado de fora, em suma, exclui, a literatura, que é por isso

mesmo uma contestação da cultura, transgride tais limites sem, no entanto, ultrapassá-los.

Visando o lado de fora, o pensamento do exterior, o lugar da tragédia, a literatura subverte

a si mesma. “A experiência literária da linguagem, se é uma experiência trágica, radical, é

transgressora com relação à obra: subverte, contesta, ameaça a obra, fazendo-a ir além dos

limites estabelecidos. Mas, por outro lado, não pode deixar de ser obra. Daí o estatuto

paradoxal da obra literária moderna: ela é obra que põe em questão seus limites como obra,

que enuncia sua própria impossibilidade, que nega a idéia de obra; é uma experiência

negativa, uma experiência de negação, que, ao mesmo tempo, é sua própria realização

como obra”30.

Se a noção de “pensamento do exterior” foi pensada sob à luz de Maurice Blanchot,

e concebida em sua homenagem, a experiência trágica da linguagem é retirada da leitura de

escritores como Nietzsche, Hölderlin, Artaud e outros que tiveram em suas vidas a

experiência trágica da loucura. Por isso Foucault não vê incompatibilidade entre loucura e

28 Michel Foucault. O pensamento do exterior (1966), p. 20. 29 Ibid., p. 15. 30 Roberto Machado. Foucault, a filosofia e a literatura (2000), p. 42.

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literatura, pois se a loucura não é nada mais que ausência de obra, a literatura pode muito

bem ser uma linguagem de delírio.

Neste espaço estranho, nesta espécie de não-lugar onde Foucault vê a literatura, é

possível ver o lugar de Ypsilon. Transgressão absoluta da linguagem, interrompida pelo

suicídio do escritor; transgressão absoluta do escritor, interrompido pelo desaparecimento

da linguagem. A loucura!

Onde se pretende chegar com esta idéia sobre a coisa literária que para algumas

leituras não passa de mero devaneio niilista? Qual o porto seguro onde esta embarcação à

deriva pretende atracar? Este quase-ensaio, experiência de escrita, fala de quê? Não sei ao

certo, mas a escrita continua em procura.

A história

Talvez seja necessário, de fato, uma vida inteira dedicada à historiografia para se

poder escrever sobre esta atividade, pelo menos com um pingo de convicção. O resto pode

realmente não passar de puro pedantismo. Nada, entretanto, impede que tal escrita seja feita

com um pouco de prazer: o escrito, produto desta prática, é mera conseqüência, o deleite

está no ato que o produz. Ato este, diga-se de passagem, não isento de alguma suspeita.

Várias são as metáforas construídas para se entender a relação entre o historiador e o

passado que lhe interessa. A mais comum, parece-me, é a recorrência ao duplo vida e

morte: o historiador conversa com os mortos. O passado está morto e enterrado, diz-se. É o

outro numa relação entre diferenças onde a semelhança encontra-se no presente. “O outro é

o fantasma da historiografia. O objeto que ela busca, que ela honra e que ela sepulta”. E no

afã de dar a este objeto algum sentido, a historiografia acaba por “acalmar os mortos que

ainda freqüentam o presente e oferecer-lhes túmulos escriturários”31. Túmulos

escriturários...quem sabe?

Esta idéia, talvez um tanto mórbida, não deixa de ter um negativo. Certamente a

colocação de Certeau tem uma implicação muito mais complexa que esta que aqui se

apresenta, ainda assim transmite uma imagem da história como um texto que carrega em si

31 Michel de Certeau. A escrita da história (1975), p. 14.

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algo morto, inerte. É como se o historiador, cumpridos todos os mandamento de sua

doutrina metodológica, realmente chegasse ao diálogo com o passado, que está morto; é

como se, graças a ele, o passado ainda falasse sua própria língua, dissesse algo que ainda

não foi dito ou que o tempo não silenciou.

Ora, parece-me, de outra forma, que o escrito de história traz em si, não ecos de

vozes emudecidas pela brutalidade do tempo, mas o sonoro silêncio da palavra do presente

impressa no papel: a escrita do historiador. Esta escrita traz a vida do presente; o historiador

labora em seu próprio tempo, em meio a seus contemporâneos. Não dialoga com os mortos,

escreve para os vivos. Porém, tanto esta visão quanto aquela traçada a partir de uma mera

citação de Michel de Certeau, carregam um tom mais poeticamente interessante do que

objetivamente importante. Nada de errado nisso, muito pelo contrário. Mas o intuito deste

texto é outro.

Serão levantadas algumas considerações sobre a escrita da história, elaboradas do

ponto de vista de um simples leitor de histórias. Trata-se, no entanto, quero crer, de uma

leitura privilegiada, bem como da escrita desta leitura, igualmente privilegiada. Afinal, qual

não é o privilégio em se ter tamanha liberdade para escrever e prestar contas, digamos

assim, do tempo dedicado aquela leitura.

Novamente aqui, para falar dos textos de história, desta modalidade da linguagem

que é a historiográfica, recorro, não aos historiadores, mas àqueles que entretiveram com a

historiografia uma relação um tanto ambígua e, pois, polêmica; novamente utilizo Barthes e

Foucault. Não há, como já se pôde perceber, um modo sistemático de estudo destes dois

escritores: o que trago são apenas impressões, fruto de um rebentamento de idéias e

conseqüência, infeliz talvez, da liberdade de escrita que me foi proporcionada. A

ambigüidade de suas posições é o que interessa, mas não é o que será discutido. Creio que

para além das polêmicas, algo de inusitado pode ser daí extraído.

Retenho, de início, a idéia de que a literatura é uma relação, tipicamente moderna,

estabelecida com a linguagem. A partir disto, podemos igualmente considerar a história

como uma relação com a linguagem, a qual possui características próprias, na aparência

parecidas com as da literatura, mas essencialmente diferentes. A relação entre o romance

realista e o discurso historiográfico, comumente vistos como estruturalmente muito

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próximos, torna, por outro lado, mais visíveis as profundas diferenças entre história e

literatura.

Em ambos os casos, crê-se que há algo por trás do texto, algo mais importante e

fundamental, ou seja, o real. O realismo literário e a historiografia seriam lugares

privilegiados onde se assentaria a verdade: a vida como ela realmente é, o passado como ele

de fato aconteceu. A diferença estaria no fato de que o primeiro é um texto fruto da

imaginação do literato, o segundo é produto de uma pesquisa cientificamente conduzida

pelo acadêmico. Se acreditarmos, no entanto, que o texto é sempre uma criação subjetiva,

que o ato da escrita é uma prática artesanal impossível de ser realizada segundo um método

objetivo, então os dois tipos de texto seriam, no fundo, textos semelhantes que entretêm

com a verdade uma relação semelhante: ambos dizem-na. Mas a questão, da forma como

foi até aqui colocada, não permite tamanha simplificação. Se elas dizem a verdade, dizem-

na de modos diferentes.

Antes, lembremos que a literatura, tal como é percebida tanto por Foucault como

por Barthes, é a escrita de palavras que não dizem coisas mas se repetem perpetuamente: o

escritor escreve, não idéias ou coisas, mas palavras; palavras que não representam idéias ou

coisas, e sim palavras. Como poderia, deste ponto de vista, algo como uma literatura

realista? Como foi possível tantos críticos se enganarem a ponto de considerar um romance

tal do século XIX como sendo realista?

Não se trata, como parece, de recusar ou mesmo negar isso a que uma certa forma

de se fazer crítica denominou realismo. Trata-se, pelo contrário, de entender como uma

escrita que escreve palavras que se reduplicam pode (re)produzir uma certa realidade.

Barthes oferece um ponto de partida interessante. A literatura realista, e por

extensão a história, talvez não (re)produzam a realidade, mas produzam sim efeitos de

realidade. Citando um conto de Flaubert e uma passagem de Michelet, ele aponta para

certos elementos comuns a ambas as narrativas: certos pormenores “supérfluos”, espécie de

“enchimento” do texto32. Tais elementos, em nada implicam no texto; sua existência não

interfere no destino dos personagens, não muda o rumo do enredo, não ajudam nem

atrapalham. Poderiam, enfim, não estar ali. Mas estão, “parecem destinados a uma espécie

32 Roland Barthes. “O efeito de real” (1968). In: O rumor da Língua, p. 130.

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de luxo da narração, pródiga a ponto de fornecer pormenores ‘inúteis’ e de elevar assim,

aqui e ali, o custo da informação narrativa”33.

Sua pouca importância e sua desnecessidade, entretanto, não implicam em uma não

significância: eles se ocupam de dar uma determinada significação ao real, existem para

garantir a impressão de que a narrativa realmente representa o real. Seja o barômetro que,

sobre um monte de caixas, foi colocado por Flaubert em cima de uma piano, seja o tempo

da pintura do retrato de Charlotte Corday, feita pouco antes de sua execução, comentado

por Michelet, tais elementos dão à narrativa, seja ela de cunho literário ou historiográfico,

um certo efeito de real.

Deste modo, para se compreender a idéia de uma literatura dita realista mas que não

traz em si nenhuma realidade senão a da palavra, deve-se opor dois processos, quais sejam,

a representação e a significação. O primeiro seria referenciar determinada coisa utilizando

uma palavra. Ao se dizer um copo, fazer o interlocutor compreender que esta palavra

remete a um certo objeto real. Esta representação, que pouca coisa tem em comum com a

idéia de representação colocada por Foucault em As palavras e as coisas, é, de fato, uma

das possibilidades da linguagem, mas não é a característica da linguagem literária.

A significação, o processo pelo qual um significante assume um significado, seria a

característica da literatura. Basta crer que um significado não é algo que existe realmente,

palpável e visível, mas algo que torna inteligível um certo arranjo de palavras. Não é o

caso, portanto, de dizer que as palavras representam o real, mas que o significam, tornam-

no inteligível por meio de um efeito de realidade. Afinal, a literatura não nos parece, antes

de representação, como algo simbólico?

Onde, porém, nesta reflexão, se encaixaria o discurso historiográfico? Podemos

considerar que tanto a literatura quanto a história fazem uso destes efeitos de real; podemos

também encarar a história, menos como uma representação do passado, como sua

significação; podemos ainda entender o discurso historiográfico como repetição de outros

discursos que, tal como as palavras da literatura, não remetem a nada exterior.

Concordando em tudo, seriamos forçados a identificar literatura e história como escritas

semelhantes. Há, contudo, outra possibilidade.

33 Roland Barthes. “O efeito de real” (1968). In: O rumor da Língua, p. 131.

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Contemporânea e semelhante a sua idéia de literatura, Foucault ainda apresentou

uma certa visão da história. “É provável que pertençamos a uma época de crítica em que a

ausência de uma filosofia primeira a cada instante nos lembra o reino e a fatalidade: época

de inteligência que nos mantém irremediavelmente à distância de uma linguagem originária

(...) Estamos historicamente consagrados à história, à paciente construção de discursos

sobre os discursos, à tarefa de ouvir o que já foi dito”34. Fazer história seria, neste sentido,

comentar: construir um discurso destinado a dizer o que outros discursos continham mas

não declararam, extrair de seu âmago um significado que ainda não significou mas que está

presente no significante. Dupla pletora: superabundância do significante, excesso de

significado.

“Falar sobre o pensamento dos outros, procurar dizer o que eles disseram é,

tradicionalmente, fazer uma análise do significado. Mas é necessário que as coisas ditas,

por outros e em outros lugares, sejam exclusivamente tratadas segundo o jogo do

significante e do significado?”35, contesta Michel Foucault. De sua parte, antes que um

comentário, prefere realizar uma análise que não procura o excesso do que foi dito, o não-

dito do que está escrito, mas que buscasse examinar as condições que possibilitaram dizer o

que foi dito, escrever o que está escrito. Ou seja, Foucault, historiador, não se interessa pela

intencionalidade dos acontecimentos, pelo que eles realmente significam por trás das

aparências, mas pelo simples fato de terem acontecido da forma como aconteceram.

Assim, mais do que a repetição eterna dos discursos, Foucault vê a história, pelo

menos aquela que ele mesmo pratica, como um acontecimento discursivo de características

semelhantes as de seu próprio objeto: não se repete o que não foi dito e não se rescreve o

que não está escrito; pronuncia-se novos dizeres, escreve-se outros escritos, elabora-se

significações diversas.

A análise sobre o discurso encarado como acontecimento, e não como um sistema

de significados, implica, por sua vez, uma significação sobre tal acontecimento. O

historiador produz, a partir de uma fato ter acontecido, um significado para este fato – em

oposição à idéia de que o historiador restabelece o significado que tal fato teve à época em

que ocorreu. A produção de um significado, no caso da história como no da literatura, se dá

através de sua grafia, da escrita da história. Afinal, o historiador não pinta, não esculpe, não

34 Michel Foucault. O nascimento da clínica (1963), p. XIV-XV.

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canta; escreve. Mas de que forma se dá esta significação historiográfica? Como escreve o

historiador?

Pode-se entendê-la, voltando a Barthes, através da idéia de efeito de real. O vínculo

que estabelecemos (efeito de real) entre o texto de história e o passado ao qual ele remete,

ou seja, entre a escrita e o real, está fundado no uso que o historiador faz dos documentos.

Atentando à superfície da narrativa historiográfica, vemos que o efeito de realidade

funciona a partir da citação de uma fonte. Neste sentido, para o texto historiográfico o

efeito de real vem de elementos narrativos que são mais do que meros pormenores inúteis:

são partes fundamentais da narrativa de história, aquilo que a legitima enquanto escrita

sobre o passado. Este efeito de real, diferentemente da literatura, é algo exterior à

historiografia: não é algo criado, inventado pelo historiador, como no caso do literato, mas

um vestígio deixado pelo tempo que serve de matéria-prima para a escrita da história.

O historiador, escritor de história, em sua prática de escrita, relacionaria, no texto,

seu próprio escrito com aquele produzido por outrem, a fonte, sendo esta, é claro, uma

fonte escrita. Daí, vários estilos e inúmeras escritas. Daí as particularidades de textos que

seguem a mesma metodologia. Daí, o lado subjetivo e artístico da historiografia. Daí,

também, sua irredutibilidade aos modelos ditos científicos.

Obviamente, é preciso dizer, esta é uma idéia limitada por muitos fatores. Trata-se

de um tipo de história escrito dentro da instituição universitária, um entre muitos. No caso

daqueles escritos de demografia histórica, repletos de gráficos e tabelas, evidentemente a

noção aqui esboçada é insuficiente. Ainda assim, a idéia de efeito de real se aplica à

exposição de tais gráficos e tabelas. Este tipo aqui referido também não apreende de forma

satisfatória aqueles escritos de caráter ensaístico, quase sem nenhuma citação. Nestes, seria

mais complicado precisar os limites entre seu teor literário e sua qualidade historiográfica.

Na grande maioria dos trabalhos acadêmicos, contudo, sejam eles monografias,

dissertações, teses, artigos ou coisa que o valha, esta noção se aplica. É bastante comum,

mesmo se o caráter da fonte utilizada não for escrito, alguma citação de texto. Por mais

criativo que seja o trabalho, é quase impossível fugir disto: na forma como conhecemos o

mundo, a linguagem escrita claramente assume um lugar de preponderância.

35 Michel Foucault. O nascimento da clínica (1963), p. XVI.

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O que é preciso salientar aqui é o modo estruturalmente diferente que cada forma de

linguagem, a literária e a historiográfica, assumem em suas pretensões realistas. A matéria

verbal, a superfície narrativa do escrito, em uma palavra, o texto36 de ambos não respeitam

aos mesmos mecanismos nem obedecem às mesmas regras. O efeito de uma não é o efeito

de outra.

Ou seja, tendo como escopo a significação do real, o de hoje e o de outrora,

significação esta que tem por mérito a constituição e intensificação de uma realidade,

ambas as relações valem-se de determinados e específicos efeitos de real. Deste modo,

literatura, em sua constante reduplicação, instaura o vazio que a torna possível: repetindo-se

eternamente, acaba por destruir a si mesma, possibilitando sua reconstrução a cada instante.

A história, por sua vez, não é o mero discurso sobre discurso (comentário); é o discurso

acontecimento que dá ao seu próprio tempo seu passado específico. Então, tendo como

resultado algo visivelmente variado, a escrita de literatura e a escrita de história seriam, e

por esta razão, também práticas diversas?

A escrita

Ao analisar a idéia que Michel Foucault e Roland Barthes possibilitam formular em

relação à literatura, foi creditada a ela uma certa forma de se escrever: a escrita intransitiva,

expressão concebida por Barthes. Esta noção é, até certo ponto, compartilhada pelo

Foucault da década de 60. Ela pode ser melhor compreendida através das concepções de

autor elaboradas por ambos, num período relativamente semelhante.

Em 1968, Roland Barthes lança mais um de seus petardos. Dessa vez, o ensaio

intitula-se A morte do autor. No ano seguinte, em uma conferência apresentada à Société

Française de Philosophie, sob o título O que é um autor?, Foucault pormenoriza as

características desta função bem como as razões de seu aparecimento na sociedade

moderna. Os dois concordam na temporalidade: o autor surge com a modernidade. Quer

36 Barthes oferece uma definição interessante para o texto, assumida aqui por mim. Diz ele, opondo texto e obra, “a obra é um fragmento de substância, ocupa uma porção do espaço dos livros. O Texto, esse, é um campo metodológico (...) a obra vê-se, o texto demonstra-se, fala-se segundo certas regras; a obra tem-se na mão, o texto tem-se na linguagem: só existe preso num discurso (...) o texto aborda-se, experimenta-se em relação ao signo. A obra fecha-se sobre um significado”. Roland Barthes. “Da obra ao texto” (1971). In: O rumor da língua, p. 56-57.

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seja para o prestígio do escritor, quer seja para garantir seus direitos frente à obra, quer seja

ainda para atribuir alguma condenação ao responsável por algum texto difamatório, o fato é

que tal função assumiu, a partir do século XVIII, qualidades de suma importância para a

escrita ocidental.

O que também é comum, e mais importante, a ambos escritores é a ênfase colocada

na ausência do autor. Como é colocado por Foucault, “a escrita é um jogo ordenado de

signos que se deve menos ao seu conteúdo significativo (...) não se trata da manifestação ou

da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é uma

questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita está sempre a desaparecer”37.

Para Barthes, a escrita é “a destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse

neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde

vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que a escreve”38.

A autoria seria uma espécie de garantia perpétua de um sentido único para o texto:

“supõe-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive

com ele”39. A ausência do autor permite pensar a escrita como espaço para multiplicidade

dos sentidos, para “eus” múltiplos. “Uma vez o autor afastado, a pretensão de ‘decifrar’ um

texto torna-se totalmente inútil. Dar um Autor a um texto é impor a esse texto um

mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escrita”40. Ao invés

de se perfurar um texto em busca daquele que o escreve para desvendar seu sentido,

percorrer o texto em sua superfície procurando nada além daquilo que está escrito, esta é a

sugestão.

Creio ser possível aplicar esta idéia, formulada a partir da análise literária, para a

historiografia. Seria, neste sentido, possível pensar um texto de história sem autor, uma

historiografia intransitiva? Depois de Foucault, uma resposta positiva se sustenta. Ao

prefaciar a segunda edição da sua História da loucura, em 1972, ele opta por escrever uma

espécie de não-prefácio: não tenta impor uma leitura ao leitor, nem pretende empreender

uma atualização de seu texto, escrito mais de dez anos antes; apenas recusa estas tarefas,

rejeita o trono onde o autor, como um monarca, poderia encontrar assento.

37 Michel Foucault. O que é um autor? (1969), p. 35. 38 Roland Barthes. “A morte do autor” (1968). In: O rumor da língua, p. 49. 39 Ibid., p. 51. 40 Ibid., p. 52.

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Isto permite a ele escrever para se transformar, permite igualmente afastar para o

seu lugar de origem, para o momento de seu súbito aparecimento, um determinado texto;

permite, enfim, fazer de seu discurso um acontecimento. Na liberdade do vazio de autor,

não há a necessidade de ficar sempre defendendo um passado, lutando por um sentido

envelhecido, legitimando, a todo o instante, a identidade de um pensamento que não

consegue se conter num único lugar. Mas isto já foi discutido.

Agora, cabe o devaneio. Estas considerações possibilitam entender a escrita a partir

de uma dupla e paradoxal perspectiva: a escrita como prática de desubjetivação e, ao

mesmo tempo, como prática privilegiada para a constituição de uma subjetividade.

Já no final de sua vida, Foucault confessa: “comecei a escrever por acaso. E uma

vez que se começa, a gente se torna prisioneiro dessa atividade, não pode mais fugir”41. Em

1968, havia declarado em entrevista que a idéia de passar a vida escrevendo lhe parecia

absurda e que foi em sua estada na Suécia, na década de 50, que adquiriu a mania, “esse

hábito horrível de escrever cinco, seis horas por dia”42. O fato é que Foucault passou a vida,

com rancor e prazer, escrevendo.

E, segundo alguns de seus comentários sobre esta atividade, escrever era sempre

algo a ser realizado num tempo que ainda virá, é sempre a escrita que está por começar, o

livro que está por vir. Em 1972, enfurecido com um interlocutor que teimava em retomar o

que já havia sido por ele escrito, extrapola: “não fique retomando sempre as coisas que eu

disse antes! Quando eu as pronuncio, elas já estão esquecidas. Eu penso para esquecer.

Tudo o que eu disse no passado é totalmente sem importância. Escrevemos alguma coisa

quando ela já foi muito usada pela cabeça: o pensamento exangue, nós o escrevemos, é

tudo. O que eu escrevi não me interessa. O que me interessa é o que eu poderia escrever e o

que eu poderia fazer”43. Quatro anos mais tarde, parece repetir a mesma idéia: “primeiro a

gente escreve coisas porque as pensa e também para não pensar mais nelas. Terminar um

livro é não poder vê-lo mais. Enquanto se ama um pouco o próprio livro, a gente trabalha.

41 Esta revelação é trazida por Didier Eribon. Michel Foucault (1989), p. 102. 42 Ibid. 43 Michel Foucault. “O grande internamento” (1972). In: Ditos e escritos I, p. 267.

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Quando se deixa de amá-lo, deixa-se de escrevê-lo”44. Foucault escrevia para deixar de ser:

a intransitividade de sua escrita chegava ao absoluto do anonimato, da máscara45.

Nesta escrita intransitiva, ele via seu caráter transgressor: a possibilidade de

subverter escrevendo. Mas fala disso como algo já passado e com suspeita: “será que a

função subversiva de escrita subsiste ainda? A época em que só o ato de escrever, de fazer

existir a literatura por sua própria escrita bastava para expressar uma contestação, no que

diz respeito à sociedade moderna, já não estaria acabada?”. Mas, “é alguém que continua a

escrever que lhes fala. Alguns dos meus amigos mais próximos e mais jovens renunciaram

definitivamente a escrever, pelo menos é o que me parece. Honestamente, em face dessa

renúncia em benefício da atividade política, não apenas fico admirado, como sou tomado

por uma violenta vertigem. Afinal, agora que não sou mais tão jovem, contento-me em

continuar esta atividade que, talvez, perdeu algo desse senso crítico que eu quis lhe dar”46.

Suspeita-se que o escritor não tem mais o privilégio como crítico na sociedade, que

sua atividade não produz mais o mesmo impacto fulminante de outrora. Ainda assim,

escrevia-se. Para não ser mais o que se havia sido, para libertar o pensamento dos grilhões

do sentido, para se multiplicar em inúmeros outros: desubjetivação daquele que escreve.

Mas também para construir uma experiência no mundo, para atuar nele de forma crítica,

segundo uma estética da existência, através do ato da escrita: constituição de si como

sujeito. Paradoxo!

Seria indesejável tentar simplificar esta paradoxal posição; seria também impossível

defini-la com precisão. Antes de tentar discorrer de forma teórica sobre esta questão,

prefiro apenas apresentar uma impressão. A melhor forma de entender esta dupla função da

escrita talvez seja recorrendo mais uma vez à literatura, e nela a um escritor: Fernando

Pessoa. Afinal, qual não é o paradoxo de alguém que, escrevendo como um outro, firmou-

se como si mesmo? Pois, todos os seus outros nos são familiares, hoje, através do seu

mesmo, do seu nome, da sua Pessoa. E qual não é o vigor de uma escrita que subverte uma

44 Citado por Didier Eribon. Michel Foucault (1989), p. 258. 45 Em 1980, Foucault participa de uma entrevista para Le Monde impondo a condição de que sua identidade não fosse revelada. Segundo ele, o nome era uma facilidade que induzia certos sentidos definidos de antemão. Era este a priori da leitura que, então, ele recusava. Michel Foucault. “O filósofo mascarado” (1980). In: Ditos e escritos II. 46 Michel Foucault. “Loucura, literatura, sociedade” (1970). In: Ditos e escritos I, p. 221.

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certa ordem das coisas, esta maneira como percebemos o mundo percebendo-nos nele?

Tamanha é a crítica nos textos de Fernando Pessoa!

Única ressalva: Pessoa e Foucault encaravam de formas diferentes esta situação.

Enquanto o pensador francês deliberadamente buscava a transformação para não

permanecer o mesmo, o poeta de Portugal como que receava transformar-se: se o fazia era

com enorme temor. Em carta de 1913 a um amigo, confessa: “trago com a consciência

quotidiana de mim-próprio a impressão que me perdi dentro de mim, e, andando

continuamente em minha procura, tenho contudo receio de me encontrar, não vá eu

descobrir-me outro”47. Dois anos depois, escrevendo à mãe, faz a espantosa revelação:

“para mim mudar, passar de uma coisa para ser outra, e uma morte parcial; morre qualquer

coisa de nós, e a tristeza do que morre e do que passa não pode deixar de nos roçar pela

alma”48. Nesta época, o poeta havia vivido já 25, 27 anos de sua vida. Seu “estilo de

alheamento” se originava ainda de uma experiência curta. No final de sua vida, talvez, as

coisas tenham mudado um pouco. Quatro anos antes de sua morte, já com 43 anos, escreve

o seguinte poema. “Sou um evadido. / Logo que nasci / fecharam-me em mim, / ah, mas eu

fugi. / Se a gente se cansa / do mesmo lugar, / do mesmo ser / por que não se cansar? /

Minha alma procura-me / mas eu ando a monte, / oxalá que ela / nunca me encontre. / Ser

um é cadeia, / ser eu é não ser. / Viverei fugindo / mas vivo a valer”. Estas impressões

necessitam um estudo e uma reflexão mais detalhados, até mesmo para evitar as

contradições de relacionar autor, vida e obra de forma tão apressada. Não obstante, creio,

deixam claras as relações íntimas entre a escrita de Pessoa e a de Foucault.

Michel Foucault, garantindo sua permanência no tempo por meio de sua escrita,

jamais pensou em mantê-la como algo inerte: a transformação, se não pode mais ser feita

por aquele que escreve, se realiza agora por aquele que o lê. Não é à toa que ainda hoje ele

seja lido para se saber o que estamos fazendo de nós mesmos e também para nos

transformarmos. Para além de sua morte, ainda sua multiplicação: pensador do saber, do

poder, do sujeito, da verdade, da amizade, do prazer, da dor e do sofrimento da vida;

escritor da ausência sempre preenchida.

47 Fernando Pessoa. Correspondência 1905-1922, p. 94.

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Escrever histórias

“No fundo, um escritor não cria sua obra

simplesmente em seus livros, mas sua obra

principal é afinal de contas ele mesmo no

processo da escrita de seus livros.”

Michel Foucault

Repensando o movimento tomado na escrita deste pequeno texto percebo o quanto

ela é uma prática interessante para o trabalho sobre si mesmo, privilegiada para a

transformação de si. Quantas não foram as leituras e releituras deste texto, quantas não

foram suas modificações, retomadas de posicionamento, alterações de caminhos! Trata-se

da ação do pensamento sobre si mesmo, de mim sobre mim mesmo, na estranheza de ler o

que se escreveu para poder continuar a escrever.

Muito mudou desde a primeira palavra escrita, sobretudo ela mesma, a escrita.

Lugar da felicidade de se encontrar outro, num texto, e, ao mesmo tempo, de se ver duplo:

escritor e leitor. O prazer da perversão de si; prazer controlado e vigiado, de certo modo

proibido, mas também prazer inatingível pelas proibições. “A Lei, a Doxa, a Ciência não

querem compreender que a perversão simplesmente faz feliz; ou para ser mais preciso, ela

produz um mais: sou mais sensível, mais perceptivo, mais loquaz, mais bem distraído, etc.

– e, nesse mais, vem alojar-se a diferença (e portanto, o Texto da vida, a vida como

texto)”49.

Mudou a forma de perceber a história. Não mais aquela presunçosa que visa acordar

um passado que há tempos descansa em paz, mas aquela que procura devolver a este

passado seu silêncio glorioso; não mais aquela pretensiosa em seu monólogo de rainha, mas

aquela do diálogo com a arte, com a literatura. Muito mais do que mero objeto de estudo, a

literatura se oferece como amiga. De uma amizade entre diferenças, vale dizer. Da amizade

como relação de encontro e de crítica: da exposição dos limites de cada uma a sua

subversão conjunta.

48 Fernando Pessoa. Correspondência 1905-1922, p. 117. 49 Roland Barthes. Roland Barthes por Roland Barthes (1975), p. 71.

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Há muito se diz, e eu mesmo acreditei por um tempo, que os historiadores não

refletiam sobre sua própria prática. Ora, bem se sabe que, ao contrário da literatura, a

reflexão sobre a historiografia não tem uma força cáustica que possa destruí-la: a

historiografia contemporânea, talvez, só encontre sua possibilidade na atividade de auto-

crítica, na constante indagação acerca de si mesma. Hoje, é comum e compartilhada a

suspeita, justamente por parte dos historiadores, sobre as utilidades e os inconvenientes da

história, suspeita que outrora era preocupação apenas de filósofos; hoje, parece-me, o

historiador não parte mais da pergunta “como fazer a história?”, mas sim da dúvida

incessante, “por que escrever histórias?”.

Na esquiva desta indagação, optei por esboçar um campo de atuação, um lugar onde

escrever assume ainda função preponderante. Esta preponderância, creio, fica visível pelo

que foi acima colocado. Resta perceber as condições e possibilidades oferecidas para a

escrita de histórias.

Se aceitarmos a definição de Barthes para a história, como “uma idéia moral; ela

permite relativisar o natural e acreditar num sentido de tempo”50, podemos pensar na

historiografia como uma prática constitutiva de diferenças entre temporalidades diversas,

pois relativisa o que é aceito como universal e, como Foucault, coloca em suspensos as

evidências cotidianas. Ou seja, a história, ao relacionar dois tempos distintos, o presente do

historiador e o passado por ele estudado, instaura diferenças e permite, pois, pensá-las

enquanto tais. Porém, qual é a vantagem em se relativisar o tempo, em diferenciar, quando

as diferenças muitas vezes levam à violência e à brutalidade? Ainda é Barthes quem dá a

sugestão a partir de Sigmund: “segundo Freud, um pouco de diferença leva ao racismo.

Mas muitas diferenças afastam dele, irremediavelmente. Igualar, democratizar, massificar,

todos esses esforços não conseguem expulsar ‘a menor diferença’, germe da intolerância

racial. O que é preciso é pluralizar, subtilizar, sem freios”51.

Além disso, a escrita da história permite a diferença no próprio escritor de histórias:

a diferença entre um mesmo e um outro. A historiografia possibilita ao historiador

transformar-se, leva-o ao pensamento sobre si-mesmo e sobre o si-como-outro, motiva a

inquietação do “eu”. E é a partir desta inquietude que a escrita pode ainda ser considerada

como uma prática crítica: ela deixa em suspenso, por alguns instantes, as identidades

50 Roland Barthes. Roland Barthes por Roland Barthes (1975), p. 135.

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comumente assumidas e, neste vazio constituído, nesta não-identidade, a ação transforma-

se em transgressão.

Instaurar muitas diferenças, transgredir os papéis sociais que nos são impostos: tal é,

creio eu em minha parca experiência com a escrita e com a história, o lugar a partir do qual

escrever histórias ainda faz realmente sentido. E, felizmente, isto se torna um tanto mais

satisfatório se a história entretiver com a literatura uma relação diversa da de sujeito e

objeto. Mais do que mero objeto de estudo, a literatura se apresenta como interlocutora para

um diálogo um tanto quanto conveniente: afinal, se hoje são conhecidos os vários limites da

racionalidade historiográfica e se hoje eles não são mais respeitados (são transgredidos),

nada impede que a historiografia busque na literatura uma certa inspiração para a escrita. E

o que a literatura tem a oferecer? Sobretudo, uma linguagem erótica, a erotização da

escrita: o desejo pela palavra, por aquela e naquele lugar, não outra nem outro. O que se

aprende com a escrita literária é que escrever pode ser muito mais que um simples

instrumento de expressão; pode ser a própria expressão: não o meio, mas um fim em si

mesma.

O ensaio, parece-me, constitui-se como escrita privilegiada. Talvez o que resta a fazer seja

opor à tirania universitária que rege os discursos um escrita transgressiva e libertária

(literária). Hoje, a academia, de modo geral, se reduz a um conjunto de postulados que

tentam domar a escrita; a monografia se impõe de forma autoritária, normas técnicas

disciplinam o escrever. E por que não um ensaio, forma inusitada onde literatura e história

podem convergir sem se confundir? Não é o caso de se adentrar na discussão pouco

profícua de saber se história é ciência ou arte, mas de amenizar o rigor metodológico da sua

escrita em suas pretensões cientificistas: se não é arte, deveria, ao menos, ser praticada de

forma artística, do mesmo modo como a literatura, se não é loucura, pode ser escrita de

forma delirante. Mas, estranha sina a da história: jamais poder se perder no delírio.

51 Roland Barthes. Roland Barthes por Roland Barthes (1975), p. 77.

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AS HISTÓRIA DE MICHEL FOUCAULT

Escrever sobre as histórias praticadas por Michel Foucault é adentrar num espaço

incerto, por muitos percorrido e das mais diversas formas. A enorme variedade de

pesquisas sobre o pensador francês deixa clara a dificuldade inerente a um estudo de seu

pensamento. A quantidade de textos escritos por Foucault, bem como a diversidade (livros,

entrevistas, debates, lectures, aulas, etc.), não permite ao seu estudioso uma fácil

sistematização da sua obra – mesmo este simples termo só pode ser escrito com muita

suspeita. O caminho que é comumente seguido é o da periodização dos escritos coincidindo

com um tema em comum. Assim, classifica-se a obra da maneira costumeira: na década de

60, textos arqueológicos que têm por tema o saber; textos genealógicos nos anos 70,

tematizando o poder; e, por fim, nos anos derradeiros de sua vida, textos

arqueogenealógicos preocupados com a questão do sujeito52.

Outra forma de sistematização é levar ao pé da letra algumas colocações de

Foucault, feitas em entrevistas do fim dos anos 70 e início dos 80, na tentativa de resumir o

seu projeto intelectual. Segundo elas, todos os seus estudos têm como ponto de

convergência uma preocupação com a verdade e, por conseguinte, com o sujeito: a

desubjetivação do louco, o assujeitamento nas prisões e a constituição do sujeito na Grécia

Antiga. Nesse sentido, o estudo sobre o pensamento do filósofo de Poitiers teria que

entender a forma como o tema do sujeito foi por ele tratado em seus muitos e diferentes

escritos, seja na relação com o saber, seja com o poder, ou ainda com a própria verdade53.

Alguns estudos, entretanto, sem romper decisivamente com alguma destas posições,

oferecem alternativas interessantes e extremamente profícuas à imaginação. Dois deles

editados no Brasil podem ser aqui destacados. Em primeiro lugar, o livro Foucault, a

filosofia e a literatura, do filósofo Roberto Machado. Neste estudo, estabelece certas balizas

temporais localizadas, essencialmente, na primeira metade da década de 1960. Em tal

período, além dos famosos livros sobre a loucura, o nascimento da medicina moderna e das

ciências humanas, Foucault escreveu continuamente sobre uma de suas grandes paixões: a

52 As coletâneas de artigos organizadas em livros dão mostras disto. Entre outros, ver Guilherme Castelo Branco e Luiz Felipe Baêta Neves (orgs.). Michel Foucault: da arqueologia do saber à estética da existência (1998), e Guilherme Castelo Branco e Vera Portocarrero (orgs.). Retratos de Foucault (2000).

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literatura. Machado, então, discorre não simplesmente sobre a aproximação da filosofia e

da literatura na obra de Foucault, mas sobre a forma filosófica de crítica literária praticada

por ele54, a qual permitiu, depois de Nietzsche, Bataille e Blanchot, elaborar a noção de

literatura da transgressão.

O segundo estudioso que merece destaque é o também filósofo Francisco Ortega.

Neste caso, o primeiro livro de uma trilogia anunciada é referência fundamental para a

compreensão das dimensões da obra de Foucault. Em Amizade e estética da existência em

Foucault, Ortega parte de um importante deslocamento teórico do projeto foucaultiano

ocorrido após a publicação do primeiro volume da história da sexualidade, em 1976, que

levou o pensador francês a um estudo aprofundado dos clássicos gregos. A tônica do livro

de Ortega está fundamentalmente centrada na idéia da amizade como prática política, como

relação de si para consigo e para com o outro, segundo preceitos éticos, tema que vem

ocupando parte das discussões filosóficas da atualidade, com Blanchot e Derrida, por

exemplos.

O que importa salientar com estes dois trabalhos é a possibilidade de, no imenso

universo foucaultiano, escapar à divisão meramente cronológica ou puramente temática da

obra de Foucault. Pode-se facilmente recorrer a um estudo que permita acompanhar as

transformações históricas de um pensamento, perceber suas idas e vindas, compreender

suas esquivas e sua constante de interesses; um estudo que localize quebras naquela

cronologia tão linear, e multiplicidade de questões, dentro daqueles temas tão consolidados.

Antes de cometer certos anacronismos, expor as diferenças de posicionamentos; mais do

que interpretar o pensamento segundo uma consciência determinada, em seu lento

progresso intelectual, ou como um projeto único e fechado, estudar a linguagem deste

pensamento encarado como uma obra fragmentária, aberta, num constante deslocamento

teórico.

Roberto Machado estabelece um recorte bastante preciso dentro de balizas

cronológicas usuais e procura compreender o sentido dado por Foucault à literatura; realiza

um estudo que verticaliza a arqueologia do saber, encontrando, nesta preocupação com

discursos da ciência, uma linguagem literária. Francisco Ortega explicita, horizontalmente,

53 É o que fez Inês Lacerda Araújo. Foucault e a crítica do sujeito (2000). 54 O texto sobre Maurice Blanchot, O pensamento do exterior (1966) é uma destas práticas. Outra, a qual, infelizmente, não pude contemplar, é o livro sobre Raymond Roussel, de 1963.

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uma mutação do pensamento para, então, perceber uma dimensão muito maior de certos

temas pontuais e tratados de forma um tanto indireta por Michel Foucault. Assim, é

seguindo a inspiração deste duplo modo de trabalho que o presente texto é escrito.

Para tanto, os estudos de caráter historiográfico ou de teoria da história feitos por

Foucault serão contemplados; estudos bastante peculiares que tratam de maneira singular

temas históricos. São, de certa forma, uma apropriação da historiografia por parte de

Michel Foucault: não são transformações dos métodos utilizados pelos historiadores,

embora mantenham com eles um constante diálogo; são, antes de uma metodologia,

posicionamentos teóricos diante da prática historiográfica, da pesquisa e escrita de

histórias. Dentro daqueles recortes já estabelecidos, a pretensão é perceber suas

modificações internas e, em seguida, aquelas que levaram a um novo posicionamento. Em

virtude disto, serão utilizados não apenas os textos principais de cada momento, mas

também aqueles ditos e escritos à parte (entrevistas ou artigos de jornais, por exemplos) os

quais, ainda que um pouco marginais, elucidam pontos de difícil compreensão.

Arqueologia

Encarados como acontecimentos discursivos, os textos foucaultianos que assumem

um posicionamento arqueológico possuem uma cronologia específica: de 1961, data de

publicação da tese História da Loucura e onde aparece pela primeira vez o termo

arqueologia (“arqueologia da alienação”), até o livro A arqueologia do saber (1969), em

que o tema é tratado de forma mais intensa e um tanto explicativa. Dentro deste período, há

ainda, de 1966, a obra mais conhecida de Michel Foucault, As palavras e as coisas, que tem

por subtítulo Uma arqueologia das ciências humanas.

Para tentar compreender o sentido geral dado à arqueologia por Foucault, faz-se

necessária uma análise fragmentária, considerando passo a passo o direcionamento desta

noção em escritos convergentes mas que guardam algumas diferenças entre si. Em outras

palavras, o que será realizado é uma descrição deste posicionamento teórico levando em

consideração o seu deslocar no tempo, o que significa, não tanto uma evolução ou

aperfeiçoamento do conceito, mas uma permanente autocrítica em busca de um lugar

adequado para se pensar arqueologicamente.

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A arqueologia da alienação

A História da loucura é o primeiro grande texto de Foucault; sua tese de

doutoramento que tomou seu tempo durante quase toda a segunda metade da década de 50.

Trata-se de uma parte de sua prática nos trabalhos em clínicas psiquiátricas motivados por

uma grande curiosidade sobre os princípios da psicologia55. Tomado pela crítica como um

ícone da anti-psiquiatria, é neste livro que nasce, em seu pensamento, a noção de

arqueologia.

A arqueologia da alienação é o conceito que lhe permitiu tratar do “grau zero na

história da loucura”56, ou seja, não daquilo que foi pensado sobre ela, mas daquelas que

foram as condições de possibilidade para um pensamento sobre a loucura. Direcionando

seu olhar a uma região de vazio, isto é, “uma região, sem dúvida, onde se trataria mais dos

limites do que da identidade de uma cultura”, Foucault quer “interrogar uma cultura sobre

suas experiências limites (o que significa) questioná-la, nos confins da história, sobre um

dilaceramento que é como o nascimento mesmo de sua história” 57. Em outras palavras: a

arqueologia de 1961 é o que permite ouvir, no silêncio do tempo, a instauração originária

do que são os limites de uma cultura, que lhe dão seus contornos e que definem, por assim

dizer, as condições de sua historicidade: a arqueologia é o estudo de história naquilo que é

ausência da história.

Mas de que forma se dá esta pesquisa que, por se colocar abaixo da história, não

permite a utilização dos instrumentos da historiografia tradicional? Foucault é enfático:

“não se trata de uma história do conhecimento, mas dos movimentos rudimentares de uma

experiência”. Deste modo, “fazer a história da loucura quererá então dizer: fazer um estudo

estrutural do conjunto histórico”58 daquilo que constituiu a experiência da loucura na época

clássica (séculos XVII-XVIII) – noções, instituições, conceitos científicos, práticas sociais,

etc. Ainda que mais tarde, como veremos, Foucault reagirá ferozmente contra aqueles que o

55 Foucault trabalhou, nos anos 50, como psicólogo no hospital Sainte-Anne e também na prisão de Fresnes. Em 1954 publica Doença mental e personalidade, mais tarde transformado, com inúmeras alterações, em Doença mental e psicologia (1962). Ver Didier Eribon. Michel Foucault 1926-1984 (1989). 56 Michel Foucault. “Prefácio à primeira edição de História da loucura” (1961). In: Ditos e escritos I, p. 140. 57 Ibid., p. 142. 58 Ibid., p. 145. O itálico não consta no original.

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inseriram no estruturalismo, a linguagem utilizada por ele se deve, sobretudo, ao ambiente

francês dos anos 50 e 60, de Barthes, Lacan, Lévi-Strauss e Althusser.

O que é certo, porém, é a peculiaridade do estudo estrutural realizado por ele. Muito

diferente da pesquisa das estruturas sociais que desconsidera os eventos históricos como

não significativos historicamente, na história da loucura os acontecimentos têm papel

fundamental. Se Braudel afirmara em relação aos acontecimentos que, “para além de seu

clarão, a obscuridade permanece vitoriosa”59, onze anos depois, para Foucault, os eventos

pontuais se libertam de seu caráter obscuro e, com toda sua visibilidade, vão assumir uma

função simbólica preponderante, pois que evidenciam a superfície cultural em relação a

qual uma experiência da loucura toma lugar. Assim, discorrendo sobre a onda de

internamento de mendigos, vagabundos, alienados, miseráveis que ocorreu na Europa no

século XVII, a significação, quer espacial quer temporal, do internamento é vislumbrada a

partir de datas de referência: em “1656, decreto da fundação, em Paris, do Hospital

Geral”60; “nos países de língua alemã, é o caso da criação das casas de correção, as

Zuchthäusern (1620)”61; “na Inglaterra, as origens da internação são mais distantes (...) um

ato de 1575 prescreve a construção de houses of correction”62. A recorrência a datas

significativas (um édito real, a construção de um hospital, um texto científico) é uma

constante no livro. No entanto, os acontecimentos não significam isoladamente, e, em

certos momentos, eventos de superfície não atingem as grandes estruturas. Portanto, “por

trás da crônica da legislação (...), são essas estruturas que se tem de estudar”63.

A arqueologia, na relação que, enquanto estudo estrutural, mantém entre

acontecimento e estrutura, se pretende algo além da mera “crônica das descobertas ou de

uma história das idéias”: define-se como a descrição “do encadeamento das estruturas

fundamentais da experiência, a história daquilo que tornou possível o próprio aparecimento

de uma psicologia”64. Aparecimento que encontra sua visibilidade em determinados

acontecimentos significativos; acontecimentos que obedecem ao movimento temporal de

estruturas históricas.

59 Fernand Braudel. “Posições da história em 1950” (1950). In: Escritos sobre a história (1969), p. 23. 60 Michel Foucault. História da loucura (1961), p. 49. 61 Ibid., p. 53. 62 Ibid., p. 54. 63 Ibid., p. 423. 64 Ibid., p. 522.

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O surgimento da psicologia é visto como a ocorrência de um fato cultural motivado,

sobretudo, por uma experiência da loucura. Roberto Machado e, seguindo-o, André

Queiroz atribuem a esta “experiência fundamental” um caráter originário das figuras da

loucura, para o primeiro, e, para o segundo, uma certa continuidade trans-histórica que

impossibilitaria uma descontinuidade absoluta na história das percepções da loucura65. O

posicionamento arqueológico é, portanto, não um simples método historiográfico, mas o

lugar onde é preciso se colocar para analisar aquilo que é um pouco anterior à história, que

é mesmo sua condição de possibilidade: uma continuidade muda e fundamental que faz

ecoar as figuras históricas da loucura.

Finalmente, por ser originária de uma certa história, a experiência da loucura está

além do próprio saber sobre ela e, por conseguinte, do próprio sujeito que conhece: ela se

encontra no nível da simples percepção, anterior à tomada de consciência: “o medo diante

da loucura, o isolamento para o qual ela é arrastada, designam, ambos, uma região bem

obscura onde a loucura é primitivamente sentida – reconhecida antes de ser conhecida – e

onde se trama aquilo que pode haver de histórico em sua verdade imóvel”66. Se a história

pode, realmente, ser feita por sujeitos que a conhecem, ela nasce ali mesmo onde não há

sujeito de conhecimento, onde o perceptivo impera anterior ao cognitivo, onde o medo se

sobrepõe ao saber, aonde, enfim, só uma arqueologia pode dirigir seu olhar e, de fato,

vislumbrar uma história.

A arqueologia das ciências humanas

Algum tempo depois de estudar a loucura, o riso levou Michel Foucault ao estudo

da epistèmê ocidental, mais precisamente a uma arqueologia das ciências humanas.

Incidindo seu olhar sobre a “tábua de trabalho” onde um pensamento pode pensar e de fato

pensa, pretende analisar uma experiência singular: “em toda cultura, entre o uso do que se

poderia chamar os códigos ordenadores e as reflexões sobre a ordem, há a experiência nua

65 Roberto Machado. Ciência e saber. A trajetória da arqueologia de Foucault. (1981); André Queiroz. Foucault. O paradoxo das passagens (1999). 66 Michel Foucault. História da loucura (1961), p. 385.

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da ordem e de seus modos de ser”67; experiência que cria condições de possibilidade para

uma cultura pensar a si mesma.

No livro As palavras e as coisas, de 1966, sucesso de vendas que tornou Foucault

conhecido no mundo todo e alvo de ferrenhas críticas, o posicionamento arqueológico é

modificado sensivelmente e seus fundamentos questionados. O estatuto dado à

descontinuidade se transforma e a ruptura é instaurada: “o descontínuo – o fato de que em

anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra

coisa e de outro modo – dá acesso, sem dúvida, a uma erosão que vem de fora, a esse

espaço que, para o pensamento, está do outro lado, mas onde, contudo, ele não cessou de

pensar desde a origem”68; o pensamento e o até então impensado se encontram no espaço

em comum da descontinuidade, no limiar da sua própria temporalidade.

Esta descontinuidade entre a epistèmê clássica69, da representação, e a moderna, a

nossa, da história, é uma transformação ontológica, pois “a ordem, sobre cujo fundamento

pensamos, não tem o mesmo modo de ser que a dos clássicos”70. O que esta arqueologia

evidencia é, à semelhança da arqueologia da alienação mas de modo sensivelmente

diferente, a possibilidade de uma história. Na História da loucura, havia uma experiência

muda e primitiva, experiência fundamental da loucura que impunha o silêncio no qual os

ruídos da história se faziam ouvir; em As palavras e as coisas, há simplesmente a ruptura, o

limiar de uma positividade que faz possível um pensamento.

O pensamento clássico, onde algo como o homem estava diluído em empiricidades

diversas (a vida, o trabalho, a linguagem), período em que o conhecimento estava marcado

pela representação das coisas numa ciência geral da ordem (mathésis), era o pensamento da

gramática geral, da análise das riquezas, da história natural: mais do que o tempo próprio

das coisas, o que regia o saber era sua ordem. A ruptura, o acontecimento radical na ordem

do saber, se dá entre os séculos XVIII e XIX, quando a representação das coisas não

consegue mais suportar suas temporalidades e o pensamento, deixando de lado a mathésis

que o ordenava, passa a se voltar a sua própria historicidade. O tempo que atravessa a vida,

o trabalho e a linguagem, faz aparecer um homem que vive, que trabalha e que fala; um

67 Michel Foucault. As palavras e as coisas (1966), p. 11. 68 Ibid., p. 65. 69 A periodização utilizada por Foucault, a qual distingue o período clássico (séculos XVII-XVIII) do período moderno (séculos XIX-XX), é mantida da História da loucura. 70 Michel Foucault. As palavras e as coisas (1966), p. 12.

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homem que não cessou de procurar em sua vida, em seu trabalho e na sua linguagem a

origem fundamental de seu ser, e que, por fim, descobriu-se não contemporâneo daquilo a

partir do qual ele é. O pensamento moderno encontrou espaço quando passou a pensar a si

próprio em termos históricos, quando, colocando o tempo como limite do pensável, fez

nascer um ser finito: o homem, definido pela finitude das atividades que constituem sua

história: viver, trabalhar e falar.

“É por que o homem não é contemporâneo de seu ser que as coisas vêm se dar com

um tempo que lhes é próprio. E reencontra-se aqui o tema inicial da finitude. Mas essa

finitude, que era primeiramente anunciada pelo jugo das coisas sobre o homem – pelo fato

de que ele era dominado pela vida, pela história e pela linguagem – aparece agora num

nível mais fundamental: ela é a relação insuperável do ser do homem com o tempo”71. É

esta a razão pela qual o século XIX é o século da história: assim que o homem, no mesmo

momento em que apareceu, viu-se confrontado com um tempo que lhe era alheio mas que o

carregava diante das coisas, era necessário uma finitude que o relaciona-se a este devir do

mundo: a história é a relação do tempo, enquanto o inumano72, com a humanidade recém-

nascida do homem; ela humaniza o tempo tornando-o o tempo dos homens.

Assim, esta arqueologia mostra como, a partir de uma ruptura, de um limiar de

positividade, algo como o homem pôde ser pensado. E a partir disto, um conhecimento que,

ao mesmo tempo, tem o homem como sujeito que conhece e como objeto a conhecer,

encontra espaço no pensamento. Enfim, tal arqueologia dá conta de como as ciências

humanas (psicologia, sociologia e estudo das literaturas e dos mitos) foram possíveis graças

a descontinuidade entre a história natural e a biologia, entre a análise das riquezas e a

economia, e entre a gramática geral e a filologia. Elas não estão amparadas sobre o mesmo

solo epistemológico, não há uma epistèmê fundamental assim como havia a experiência

fundamental da loucura servindo de vazio originário para as histórias de loucos diferentes

(os loucos de Bosch, os do internamento, os de Pinel). O vazio que a arqueologia das

ciências humanas vasculha, o lugar onde ela incide seu olhar é o vazio da descontinuidade.

Entretanto, a evidência maior para Foucault não é tanto o descontínuo por si só, mas

a dispersão da continuidade: “o que eu quis estabelecer é justo o contrário de uma

71 Michel Foucault. As palavras e as coisas (1966), p. 351. 72 Jean-François Lyotard. O inumano: considerações sobre o tempo (1988).

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descontinuidade, já que evidenciei a própria forma da passagem de um estado ao outro”73.

O que permite a mutação histórica, o fato de algo deixar de ser para que algo diferente lhe

tome o lugar, isto é, a passagem absoluta de um estado ao outro, aí é o lugar desta

arqueologia. Evidenciar esta passagem de modo algum se confunde com o estabelecimento

de uma origem histórica, já que “é sempre sobre o fundo do já começado que o homem

pode pensar o que para ele vale como origem”74, e, por assim dizer, como a sua própria

origem.

Deste modo, os acontecimentos na arqueologia das ciências humanas são

acontecimentos-limite, anunciam os derradeiros momentos de algo prenunciando o

surgimento de outra coisa. Sob a brutalidade dos eventos, não há mais uma estrutura que os

atravessa, há um limiar epistemológico que os tornou possíveis. Mas estes acontecimentos

trazem outra característica que é preponderante: são acontecimentos discursivos. Assim,

ainda aqui há o distanciamento em relação à história tradicional. A arqueologia não é um

estudo à semelhança da história das idéias que pretende, a partir de um determinado texto,

encontrar-lhe filiação teórica e os fundamentos que garantam sua relação com o autor; é, ao

contrário, a análise do que permitiu com que tal autor escrevesse o que escreveu, do que

possibilitou a teoria a qual está filiado: o estudo do pensamento na ausência daquele que o

pensou.

Acusado de assassinar a história, pois não oferece qualquer causalidade entre duas

epistèmês sucessivas mostrando nada mais que imobilidades desprovidas de sujeitos,

Foucault respondeu em tom irônico: “não se assassina a história, mas assassinar a história

dos filósofos, esta sim eu quero assassinar”75. E o que seria esta história dos filósofos que

sua arqueologia recusa tão veemente? “A história para filósofos é uma espécie de grande e

vasta continuidade onde vêm se emaranhar a liberdade dos indivíduos e as determinações

econômicas ou sociais”76. É, deste modo, em recusa a este tipo de história quase mitológica

da continuidade onde se emaranham liberdades individuais e causalidades sociais que a

arqueologia de Foucault vem se colocar.

73 Michel Foucault. “Sobre as maneiras de escrever a história” (1967). In: Ditos e escritos II, p. 67. 74 Michel Foucault. As palavras e as coisas, p. 346. 75 “on ne tue pas l’histoire, mais tuer l’histoire pour philosophes ça oui, je veux absolument la tuer”. Michel Foucault. Foucault répond à Sartre (1968). 76 “L’histoire pour philosophes c’est une espèce de grande et vaste continuité où viennent s’enchevêtrer la liberté des individus et les déterminations économiques ou sociales”. Ibid.

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A arqueologia das ciências humanas, portanto, marca um deslocamento teórico em

relação à arqueologia da alienação no que se refere ao caráter dado à descontinuidade. Uma

enxerga a possibilidade de história em uma experiência silenciosa e fundamental, quase

contínua não fossem as diferentes figuras da loucura por ela produzidas; a outra percebe tal

possibilidade na ruptura absoluta e não-causal entre duas configurações epistemológicas. O

que, no entanto, é comum a ambas e que será, mais tarde, desenvolvida com mais detalhes,

é a ênfase colocada na ausência do sujeito histórico: só se conhece a loucura a partir de uma

percepção pré-cognitiva, isto é, anterior ao sujeito do conhecimento, e só se pensa segundo

uma possibilidade definida historicamente que, no limite, acaba por possibilitar aquele

mesmo que pensa.

A arqueologia do saber

Três anos após a publicação de As palavras e as coisas, o céu e o inferno de

Foucault, ocorre o lançamento de um livro inusitado: A arqueologia do saber. Na verdade,

este livro nasce um ano antes de ser publicado, quando Foucault é convidado pelo Círculo

de Epistemologia para falar de sua teoria e de seu método de estudo das ciências. Neste

texto que é, em essência, o primeiro capítulo do livro de 1969, estão expostos os

pressupostos teóricos que fundamentam sua arqueologia, tais como a descontinuidade e a

noção de arquivo. O livro propriamente dito pretende-se tanto uma resposta às duras

críticas dirigidas a As palavras e as coisas quanto uma exposição geral do posicionamento

arqueológico, retomando questões apresentadas nos trabalhos anteriores.

O conceito de descontinuidade, “conceito operatório”, é, em A arqueologia do

saber, desenvolvido de maneira incisiva. Com a história das ciências, mais precisamente

com Martial Gueroult, Gaston Bachelard e, principalmente, como mostra Roberto

Machado77, Gerorges Canguilhem, acontece uma mutação nas disciplinas históricas quando

o descontínuo passa de obstáculo à prática: é tanto objeto quanto instrumento da análise

histórica. Mais do que isso, uma nova forma de história vem a ser praticada em

contrapartida à história tradicional e sua ampliação da periodização histórica que isola, na

forma de longa-durações, grandes continuidades. Deste modo, “o problema não é mais a

77 Roberto Machado. Ciência e saber. A trajetória da arqueologia de Foucault. (1981).

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tradição e o rastro, mas o recorte e o limite; não é mais o fundamento que se perpetua, e sim

as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos”78.

A tradição seria, aos olhos de Foucault, o que permite formar, a partir de fenômenos

dispersos, um conjunto homogêneo de acontecimentos que, seguindo seu rastro, conduziria

a pesquisa até o ponto originário daqueles fenômenos. Nos seus próprios dizeres, a tradição

“autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem

interrupção, na atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser

isoladas sobre um fundo de permanência, e seu mérito transferido para a originalidade, o

gênio, a decisão própria dos indivíduos”79. Percebe-se com isso a recorrência à

diferenciação entre começo e origem. Para a arqueologia do saber os fenômenos

simplesmente começam em pontos históricos particulares, não se originam em algum lugar

que seria como o lugar próprio da sua verdade: um espírito de época, uma mentalidade

coletiva ou uma consciência individual; numa única palavra, um sujeito. O tempo é uma

sucessão de descontinuidades, de começos nos já-começados; não é o devir de um

pensamento ou de uma razão que, desde a sua origem, se arrasta na evolução lenta e

contínua do seu progresso.

Mas não é simplesmente o nível das temporalidades que distingue esta nova

história, da qual a arqueologia do saber vai, ao mesmo tempo em que se afasta, retirar os

pressupostos teóricos que a fundamentam. Problema-chave para a historiografia é a noção

de documento. Mais do que a matéria onde estaria impressa alguma verdade do passado, a

qual, através de uma interpretação, seria cabível ao historiador apreender, o documento

assume as vezes de uma função: cabe ao historiador trabalhá-lo, organizá-lo, recortá-lo e

estabelecer as relações da qual faz parte. A historiografia com isso se transforma: “o

documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de pleno

direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e

elaboração à massa documental de que ela não se separa”80. Ou seja, é somente por meio de

uma atividade historiadora que os documentos, sendo mais do que a mera expressão de uma

memória coletiva, vêm a possuir um certo sentido histórico. Este sentido não lhes é

intrínseco, mas construído teoricamente: da mesma maneira como as sociedades do passado

78 Michel Foucault. A arqueologia do saber (1969), p. 6. 79 Ibid., p. 23. 80 Ibid., p. 8.

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construíam monumentos como documentos de sua própria memória, a historiografia

transforma os documentos do passado em monumentos da história, ou, mais precisamente,

monumentos de histórias (dependendo de quem é a história que se conta). É este, então, o

status dado pela arqueologia aos documentos históricos: construções teóricas.

E quais seriam os documentos-monumentos construídos pela arqueologia do saber?

O discurso é constituído como objeto principal de análise, mas de uma forma muito

particular. Aqui, os discursos, ou antes, as formações discursivas, são encaradas como

campo de relação entre enunciados. Os enunciados, por sua vez, são as unidades

elementares dos discursos. Assim, existem enunciados sobre a loucura que formam o

discurso da psiquiatria, por exemplo. Entretanto, não é apenas o objeto enunciado que

forma esta unidade discursiva: para pertencer aquele discurso, os enunciados devem, não só

enunciar a loucura, mas a enunciação deve respeitar modalidades particulares, deve ser

estabelecida segundo conceitos convergentes e obedecer estratégias enunciativas

semelhantes. Nesse sentido, embora de forma contínua aconteçam enunciados sobre a

loucura, as regras de formação dos discursos se modificam com o tempo; são, pois,

descontínuas.

É tomando como documento fundamental os enunciados para, através deles,

perceber as diferenças entre os discursos no tempo, que a arqueologia do saber opera. E de

que forma se dá este estudo das descontinuidades discursivas? Ele incide, em essência,

sobre os arquivos, na definição particular que Foucault, este novo arquivista, lhes dá: o

domínio das coisas ditas. Tal estudo não pretende, à semelhança da história do pensamento,

interpretar os enunciados: não se trata de desvendar sentidos ocultos no que está aparente,

encontrar não-ditos no que está dito. Esta interpretação, invariavelmente, remeteria a idéia

de um sujeito onde residiria a verdade do enunciado. Não é o caso da arqueologia; esta é

uma análise: “interpretar é uma maneira de reagir à pobreza enunciativa e de compensá-la

pela multiplicação do sentido; uma maneira de falar a partir dela e apesar dela. Mas analisar

uma formação discursiva é procurar a lei de sua pobreza, é medi-la e determinar-lhe a

forma específica”81.

A arqueologia, então, se distingue da história das idéias tradicional em inúmeros

pontos. Na análise dos enunciados como fontes, ela não busca práticas manifestas através

81 Michel Foucault. A arqueologia do saber (1969), p. 139.

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dos discursos, ela não os interpreta, mas toma-os, eles mesmos, enquanto práticas possíveis

segundo regras historicamente definidas (as leis de sua pobreza); ela não atribui

causalidades entre dois discursos sucessivos, mas, no repentino da ruptura, torna evidente

as diferenças que os apartam; ela não tem como pressuposto teórico a noção de sujeito

como fundamento dos enunciados, mas, por meio destes, quer definir o lugar específico que

um sujeito pode se colocar para enunciá-los; ela não procura as origens remotas dos

discursos, não estabelece relações entre o enunciado e seu autor, mas pretende delimitar as

condições que os possibilitaram acontecer.

A descontinuidade arqueológica não é, finalmente, a negação do problema do

sujeito e, como se fosse sua conseqüência, a recusa da história. Ela é, por sua vez, o

questionamento mesmo de uma história do sujeito, quer ela seja denominada progresso,

quer ele seja definido enquanto razão. Ao deixar em suspenso esta categoria tão familiar à

história tradicional, Foucault demonstra que, antes de um fundamento dos discursos, o

sujeito é apenas uma posição ocupada por aquele que enuncia algo; é, por conseguinte, uma

função do discurso. Do mesmo modo, ao rejeitar a linearidade das mudanças históricas, ele

evidencia as transformações discursivas que possibilitam novas regras de enunciação. Em

poucas palavras, esta arqueologia mostra que as condições de possibilidade de uma

determinada história, apreendida no nível das transformações discursivas, não dependem de

um sujeito: “longe de mim negar a possibilidade de mudar o discurso: tirei dele o direito

exclusivo e instantâneo à soberania do sujeito”82

*

Tomando por ponto de partida a divisão cronológica dos escritos de Michel

Foucault que considera o período de 1961 a 1969 como o do posicionamento arqueológico

do projeto foucaultiano, o que foi realizado nas linhas precedentes foi uma fragmentação

desta posição com o intuito de perceber suas transformações. Mais do que a evolução de

um pensamento, o que ficou claro foi sua constante inquietação consigo mesmo. O próprio

fato de, somente após terem sido feitas as pesquisas de As palavras e as coisas, o método

82 Michel Foucault. A arqueologia do saber (1969), p. 237.

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ser exposto em A arqueologia do saber é prova disto. Como ele mesmo afirmou, o solo

onde elas repousam foi aquele que descobriram.

A arqueologia teve como preocupações fundamentais a temporalidade e o sujeito

históricos. O que é constante nos três momentos descritos é o interesse em compreender as

condicionantes que possibilitam a própria história e, por conseguinte, o sujeito dela. A idéia

de uma experiência fundamental da loucura mostrou-se precária pois considerava uma

continuidade como condição a-histórica inapreensível pela arqueologia da alienação.

Assim, a ruptura foi buscada como elemento fundador da historicidade. Com isso, a

arqueologia radicaliza seu intuito permitindo pensar que as próprias condições da história

são históricas. Como conseqüência tem-se a necessidade de pensar, não em um sujeito da

história, mas em sujeitos na história, que é uma história particular, contingente, em vias de

encontrar seu limiar derradeiro e sua descontinuidade fundamental, quando, enfim, tornar-

se-á outra história.

Portanto, a arqueologia mantém com a historiografia uma relação peculiar: ao

mesmo tempo em que os pressupostos teóricos desta (o tempo e o sujeito) são postos em

questão, é o próprio questionamento que permite a formulação da arqueologia enquanto

posicionamento teórico para um estudo historiográfico. Obviamente, Foucault não

pretendeu analisar exaustivamente a prática dos historiadores para elaborar as histórias que

praticou. Contentou-se em manter com ela um distanciamento crítico que lhe garantiu

autonomia teórica para não se fechar num método único e, com isso, constituiu seu trabalho

como uma constante busca de método.

História dos sistemas de pensamento

É preciso contornar a linearidade tão familiar que localiza facilmente duas posições

subseqüentes. A passagem da arqueologia à genealogia não é tão direta e absoluta como

normalmente é pensada: a segunda não suprime a primeira. No intuito de descrever aquilo

que muito arbitrariamente aqui se chama de as histórias praticadas por Foucault, é preciso

perceber o momento em que a genealogia, ao nascer, é posta em relação à arqueologia

formando uma disciplina que deu nome a uma das cadeiras do Collège de France.

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A história dos sistemas de pensamento é o ponto de convergência, mais do que a

transição, entre os posicionamentos arqueológico e genealógico. É o momento em que o

saber escapa aos discursos e vai às ruas, ou melhor, quando ele é analisado segundo

práticas e instituições diversas, através de experiências que transcendem o campo

meramente discursivo e o inserem em relações de poder. Em seu memorial de candidatura à

cátedra de filosofia do Collège, Foucault traça o percurso intelectual por ele percorrido

desde a tese de 1961. Segundo este documento, o saber é considerado como um nível

particular entre a opinião e o conhecimento científico. Por sua vez, “esse saber ganha corpo

não só nos textos teóricos ou nos instrumentos de experiência, mas em toda uma série de

práticas e instituições; todavia não é seu resultado puro e simples, sua expressão meio

consciente; na verdade comporta regras que lhe pertencem exclusivamente, caracterizando

assim sua existência, seu funcionamento e sua história”83. Mantendo a autonomia que lhe

fora atribuída desde As palavras e as coisas, o saber dali em diante será analisado por meio

de suas formas empíricas além daquelas puramente textuais84.

Em setembro de 1970, numa conferência realizada no Instituto Franco-japonês de

Quioto, Foucault já apresenta definições da sua história dos sistemas de pensamento: “para

mim, tratava-se, então, não mais de saber o que é afirmado e valorizado em uma sociedade

ou em um sistema de pensamento, mas de estudar o que é rejeitado e excluído. Eu me

contentei em utilizar um método de trabalho que já era reconhecido em etnologia”85. A

influência explícita é Lévi-Strauss, que estudou a estrutura negativa de certas culturas,

aquilo que não é afirmado mas sobre o que pairam interdições excludentes, isto é, o incesto.

É, entretanto, em sua aula inaugural na prestigiosa instituição francesa, em 2 de

dezembro de 1970, que são expostos com maior exatidão os fundamentos teóricos da

história dos sistemas de pensamento. Em termos gerais, trata-se ainda de uma análise dos

discursos que se articula, “não certamente com a temática tradicional que os filósofos de

ontem tomam ainda como a história ‘viva’, mas com o trabalho efetivo dos historiadores”86.

Este trabalho, com o qual ele próprio dialoga em sua prática, caracteriza-se, sobretudo, pela

ênfase dada aos acontecimentos, não encarados isoladamente, mas a partir da série da qual

83 Citado em Didier Eribon. Michel Foucault 1926-1984 (1989), p. 200. 84 Não é o caso de negar a empiricidade do saber, visto que ele é uma prática social. Mas o que interessará a Foucault dali em diante serão as relações entre saber e sociedade. 85 Michel Foucault. “A loucura e a sociedade” (1970). In: Ditos e escritos I, p. 235. 86 Michel Foucault. A ordem do discurso (1971), p. 57.

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fazem parte. Do mesmo modo que os documentos seriados sobre os preços levam os

historiadores à compreensão das estruturas econômicas ou que os registros paroquiais

conduzem a um estudo de demografia histórica, os discursos analisados segundo as séries

às quais pertencem permitem considerá-los como acontecimentos discursivos que remetem

a um horizonte de análise muito mais amplo. Os discursos, enquanto acontecimentos,

interessam à história dos sistemas de pensamento na medida em que podem ser inseridos

em séries “que permitem circunscrever o ‘lugar’ do acontecimento, as margens de sua

contingência, as condições de sua aparição”87.

A análise seriada dos discursos-acontecimentos é o estudo de seu caráter

descontínuo, de sua emergência histórica, das suas possibilidades e de sua especificidade ou

raridade (a pobreza enunciativa). Até então, as semelhanças com a arqueologia do saber são

totais. Todavia, há um importante deslocamento em relação à arqueologia. Como será

frisado pelo próprio Foucault, as análises por ele propostas se dispõem em dois conjuntos,

um crítico e outro genealógico. O primeiro daria conta daquilo cuja inspiração é oriunda da

etnologia: as funções de exclusão dos discursos: a separação entre loucura e razão, os

interditos da linguagem concernente à sexualidade, por exemplos. A função que

diretamente interessa à história dos sistemas de pensamento, contudo, é aquela relativa aos

princípios de verdade que opõe os discursos considerados verdadeiros àqueles rejeitados

como falsos. O segundo conjunto, o genealógico, concerne à formação efetiva destes

discursos, ao fato de acontecerem, como que por acaso, em determinado momento da

história. Em suas palavras, “a crítica analisa os processos de rarefação, mas também de

reagrupamento e de unificação dos discursos; a genealogia estuda sua formação ao mesmo

tempo dispersa, descontínua e regular”88.

O título dos cursos anuais ofertados por Foucault, na primeira metade da década de

70, no Collège de France dá mostras de onde, em que práticas e instituições foram

buscados os elementos para a história dos sistemas de pensamento: “A vontade de saber”,

“Teorias e instituições penais”, “A sociedade punitiva”, “O poder psiquiátrico” e “Os

anormais”. Assim, esta reelaboração teórica do posicionamento arqueológico e formulação

da genealogia compreende um importante momento teórico na obra intelectual de Michel

87 Michel Foucault. A ordem do discurso (1971), p. 56. 88 Ibid., p. 65-66.

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Foucault que, a partir daí, vai confundir-se com sua militância política: o saber se encontra

com o poder.

Genealogia

“A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha

com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos”89. Assim é iniciado

aquele que talvez se constitui como o exercício teórico mais interessante e oportuno escrito

por Michel Foucault no que diz respeito à prática historiográfica; texto perturbador e

impertinente, despretensioso na amplitude de suas pretensões. Trata-se daquelas linhas que

são lidas como que por uma imperiosa necessidade de leitura, sobre as quais os olhos não

cessam nem conseguem cessar de depositar seus olhares, através das quais o pensamento se

volta para si mesmo, suspende-se a si próprio e recomeça, a partir dele mesmo, um novo

pensamento.

Não é possível escrever sobre este escrito, ele não é dado à análise. O que é possível

realizar, sem conter a tamanha inquietação com o que se realiza, é descrever os passos nele

seguidos, perceber suas suspeitas e expor suas esquivas. A posição genealógica de Foucault

é nele apresentada inteira e abertamente; tudo o que for dito em diante sobre a genealogia

deriva deste texto primeiro.

A genealogia espreita os acontecimentos tidos como sem história no anseio de

reencontrar o momento em que ainda não aconteceram. Isto não quer dizer, em absoluto,

uma pesquisa de origem, este “desdobramento meta-histórico das significações ideais e das

indefinidas teleologias”90. A genealogia é a paciente procura dos começos históricos, lá

onde não há uma identidade originária, apenas o disparate dos acasos, daquilo que é já

começado. Ela aponta em direção ao lugar onde a história ainda guarda em si seu caráter

mesquinho, baixo, pouco nobre e demasiadamente modesto. O estudo das origens leva,

quase que necessariamente, ao abrigo seguro dos deuses, das verdades imutáveis; a

genealogia indica as verdades ainda não verdadeiras, o lugar onde os deuses se rendem a

impetuosidade da história.

89 Michel Foucault. “Nietzsche, a genealogia e a história” (1971). In: Microfísica do poder, p. 15. 90 Ibid., p. 16.

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O genealogista não recua, pela continuidade do tempo, ao momento do não-

esquecimento, nem pretende fazer reviver no presente algum passado qualquer, dar novo

alento as suas vozes, fazê-las, mais do que ecos ainda audíveis de ruídos já emudecidos

pelo tempo, o som original dos cantos gloriosos de ontem. Ele trata da proveniência, do

lugar onde os acontecimentos são acasos e não causalidades; ele faz descobrir “que na raiz

daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser, mas

a exterioridade do acidente”91. A genealogia quer apreender, não o lento deslocar da coroa

por sobre as cabeças dos príncipes, mas, uma a uma, em sua própria dispersão, as feridas

abertas nos corpos dos pequenos homens (o que não exclui os monarcas), as chagas

expostas ao tempo: “ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história

arruinando o corpo”92.

A história não é devir, porém emergência: espaço sem dono do aparecimento súbito

e do confronto entre os corpos e deles com o tempo. Ela é sem responsabilidade, anônima e

acidental. “Enquanto que a proveniência designa a qualidade de um instinto, seu grau ou

seu desfalecimento, e a marca que ele deixa no corpo, a emergência designa um lugar de

afrontamento”93. Emergência dos homens, emergência das verdades, emergência das

histórias; a perenidade do mundo na inconstância absoluta do tempo: “nada no homem –

nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer

neles”, assim, “a história será ‘efetiva’ na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em

seu próprio ser”94.

A história é efetiva se genealógica. Outra característica desta prática se situa no

lugar ocupado por aquele que a pratica. A teogonia historiográfica leva o historiador “ao

aniquilamento de sua própria individualidade para que os outros entrem em cena e possam

tomar a palavra”95. No anseio de despertar o passado da tranqüilidade de seu sono, como se

a história pudesse, respeitados todos os procedimentos técnico-metodológicos de uma

ciência positiva, fazer reviver vozes há muito caladas, o historiador acaba por impor a ele

91 Michel Foucault. “Nietzsche, a genealogia e a história” (1971). In: Microfísica do poder, p. 21. 92 Ibid., p, 22. 93 Ibid., p. 24. 94 Ibid., p, 27. 95 Ibid., p, 31.

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próprio o silêncio. “E neste mundo em que ele terá refreado sua vontade individual ele

poderá mostrar aos outros a lei inevitável de uma vontade superior”96.

Mas o bom historiador, o genealogista, este impõe o “incontrolável de sua

paixão”97: a destruição da história enquanto reconhecimento de si, enquanto reminiscência

de identidades perdidas – sempre reencontradas em algum lugar do passado -, enquanto

conhecimento da verdade fundamental do mundo. Trata-se de “fazer da história um uso que

a liberte para sempre do modelo, ao mesmo tempo, metafísico e antropológico da memória.

Trata-se de fazer da história uma contramemória e de desdobrar conseqüentemente toda

uma outra forma do tempo”98. Trata-se mesmo de encontrar a história naquilo que a arruina.

*

Tal é a genealogia de Foucault, que foi acima simplesmente descrita. Cabe alguma

consideração. A genealogia mantém da arqueologia o recurso à descontinuidade e à elisão

do sujeito como fundamento da história. Contudo, há muito mais que uma simples

permanência de método, há uma reformulação dos princípios teóricos que orientam a

pesquisa historiográfica.

A recusa da interpretação continua ainda como uma forma de expor uma estudo

relacional: nos documentos não é procurada uma verdade ulterior; deles, porém, são

determinadas as relações das quais fazem parte, as quais não são simplesmente designadas

por sua organização serial, mas pela função desempenhada em estruturas sociais marcadas

pelo exercício de poderes e pela ascensão de saberes. A publicação pura e simples, isenta

de interpretação, dos documentos pertinentes ao caso de Pierre Rivière é notória. Formam,

tais documentos, um conjunto, antes de homogêneo (visto que tratam do mesmo assunto),

disperso, cuja unidade só poderia ser imposta de forma alheia, no arquivamento jurídico

dos autos do processo, ou pela sua publicação, mais de um século depois, em um livro. O

intuito é claro: “fazer de algum modo o plano dessas lutas diversas, restituir esses

96 Michel Foucault. “Nietzsche, a genealogia e a história” (1971). In: Microfísica do poder, p. 31. 97 Vide o primeiro parágrafo de “A vida dos homens infâmes” (1977). In: O que é um autor. 98 Michel Foucault. “Nietzsche, a genealogia e a história” (1971). In: Microfísica do poder, p. 33.

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confrontos e essas batalhas, reencontrar o jogo desses discursos, como armas, como

instrumentos de ataque e defesa em relações de poder e saber”99.

A genealogia é o aparecimento, súbito como os acontecimentos por ela estudados,

do político nos escritos de Foucault100. Os discursos históricos são peças num jogo de

poder, estão inseridos em uma trama irregular e assimétrica de estratégias e táticas

discursivas. Ela torna-se “uma pesquisa propriamente histórica”, ou seja; procura

compreender “como se puderam formar domínios de saber a partir de práticas sociais”101. A

história das ciências, e de certo modo a própria arqueologia era uma “história interna da

verdade”; a genealogia é uma “história externa, exterior, da verdade”102. Daí sua busca das

mesquinharias, das pequenas coisas. Em 1973, numa de suas andanças pelo Brasil, na PUC

do Rio de Janeiro, ouviu-se um Foucault falando sobre exploração capitalista, pedindo

permissão para “falar como historiador” e defender um ponto de incidência no qual

funcionam os discursos mas que não se resume a eles, pois os processos históricos da

exploração “exerceram-se sobre a vida das pessoas, sobre seus corpos, sobre seus horários

de trabalho, sobre sua vida e morte”103, e não simplesmente nos discursos produzidos a

partir deste exercício – ainda que a própria produção discursiva seja uma de suas formas.

A historiografia é novamente posta em questão, uma vez que é com os historiadores

que a atenção foi antes desviada das sumidades: o “material plebeu na história”104 já é, em

meados dos anos 70, datado em pelo menos cinqüenta anos. Mas Foucault, bárbaro, saqueia

este pedacinho de terra do historiador. Dá-lhe novo relevo, aplica sobre ele outra geografia.

E qual não é, de certo modo e guardadas suas diferenças visíveis, a semelhança com a

microstoria italiana (pelo menos em Carlo Ginzburg e Giovanni Levi). Foucault é enfático:

faz aparecer, com “instrumentos de aumento” o que antes não se via, ou seja, “mudar de

nível, se dirigir a um nível que até então não era historicamente pertinente, que não possuía

nenhuma valorização, fosse ela moral, estética, política ou histórica”105. Para tanto, a

história de um exorcista, de um moleiro ou de um assassino são utilizadas.

99 Michel Foucault. “Apresentação a Eu, Pierre Rivière...” (1973). In: Eu, Pierre Rivière..., p. XII. 100 Antoine Griset. “Foucault, um processo histórico” (1978). In: Jacques Le Goff et alli. A nova história. 101 Michel Foucault. A verdade e as formas jurídicas (1973), p. 7. 102 Ibid., p. 11. 103 Ibid., p.147. 104 Michel Foucault. “Sobre a prisão” (1975). In: Microfísica do poder, p. 129. 105 Ibid., p. 141.

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Contudo, para além dos estudos de casos, dos simples indícios e da análise

morfológica, a genealogia amplia sua escala, permitindo entrever outras relações. Vigiar e

punir, livro preferido por muitos historiadores, pretende-se uma história e uma genealogia,

tem o duplo objetivo de correlacionar a alma moderna com o poder de julgar e investigar os

fundamentos deste poder, o lugar e as condições de seu nascimento. Em uma única e

polêmica expressão, trata-se de uma “história do presente”.

Mas é nas aulas do Collège de France que é melhor apresentada a posição

genealógica. É uma forma de crítica marcada por sua pontualidade, por seu caráter local,

temporal ou espacialmente: “chamemos, se quiserem, de ‘genealogia’ o acoplamento dos

conhecimentos eruditos e das memórias locais, acoplamento que permite a constituição de

um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais”106. A genealogia é

uma prática declaradamente voltada para o lugar em que é praticada, para o presente do

genealogista, amparada em três bases distintas de crítica: a histórica, a teórica e a

política107.

Daí a genealogia voltar-se como uma prática cotidiana das lutas habituais,

constituir-se quase como um discurso-arma, instrumento de batalha, tal qual aqueles

descritos em suas aulas de 1976. Um dos fundamentos teóricos que guiavam atividades

políticas de resistência. Mas ela não pode ser resumida a isto; a genealogia, enquanto

prática historiográfica, obstina uma experiência histórica, uma posição, não só para ser

ocupada, mas para transformar e ser transformada, um papel para o genealogista. Assim

como a arqueologia, será mantida no rol dos fundamentos admitidos por Foucault, até o

final de sua vida, a palavra genealogia ainda será parte de seu repertório, mas seguida de

uma preocupação com o sujeito, até então apreendido indiretamente em suas análises, como

algo a ser elidido para perceber seu lugar, como acontecimento condicionado por fatores

que lhe são alheios. A vontade de saber marca um ponto de inquietação que leva a um

deslocamento teórico, momento em que uma “genealogia do sujeito moderno” é pretendida,

possível graças a uma nova forma de prática historiográfica.

106 Michel Foucault. É preciso defender a sociedade (1976), p. 13.

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História das problematizações

O longo silêncio mantido entre a publicação do primeiro volume da história da

sexualidade, em 1976, e seus subseqüentes, sete anos mais tarde, pode ser encarado como

prazo de reelaboração de método, de deslocamento teórico e assunção de um novo

posicionamento. Período em que podemos compreender certos acontecimentos importantes;

onde é vislumbrado um caminho na medida em que ele é caminhado; textos onde são

apontados os direcionamentos empreendidos na mudança; enfim, sussurros plenamente

audíveis no silêncio.

Em outubro de 1980, na Universidade de Berkeley, foram proferidas por Foucault

duas conferências conhecidas como as Howison Lectures, tendo por título genérico

Verdade e subjetividade. Nelas são apresentados os pressupostos da genealogia do sujeito

moderno como finalidade de seu projeto intelectual, a qual tem como método “uma

arqueologia do conhecimento” e como domínio de análise “a tecnologia. Significando isto a

articulações de certas técnicas e de certos tipos de discurso acerca do sujeito”. Toma-se,

com isso, uma dimensão política diferente daquela percebida por Antoine Griset108, o qual a

enxergava apenas na ascensão do poder como centro da análise, entendendo agora, uma

“análise relativa àquilo que estamos dispostos a aceitar no nosso mundo, a recusar e a

mudar, tanto em nós próprios quanto nas nossas circunstâncias” 109.

Para tanto, o tema de pesquisa é deslocado do mundo moderno para a antigüidade

clássica grega. A genealogia do sujeito, admitida por um historiador do pensamento – como

Foucault se intitulava neste período –, coloca-se entre a história social e a análise formal do

pensamento110. Assim, ela tenta analisar “o modo como instituições, práticas, hábitos e

comportamentos se tornam um problema para as pessoas que se comportam de maneira

específica, que têm certos hábitos, que se engajam em certos tipos de práticas e que

constróem tipos singulares de instituições”111. Neste caso específico, o problema da

107 Michel Foucault. História da sexualidade I: a vontade de saber (1976), p. 15. 108 Antoine Griset. “Foucault, um processo histórico” (1978). 109 Michel Foucault. “Verdade e subjectividade “ (1980). In: Revista de Comunicação e Linguagens, p. 206. 110 Michel Foucault. “Truth, power, self: na interview with Michel Foucault” (1982). In: Technologies of the Self: A Seminar with Michel Foucault. 111 “...the way institutions, practices, habits, and behavior become a problem for people who behave in specifc sorts of ways, who have certain types of habits, who engage in certain kind of practices, and who put to work

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parrhesia é estudado nas tradições grega e greco-romana. Trata-se de uma forma de relação

entre dois interlocutores na qual a função do dizer verdadeiro ou da enunciação da verdade

assumem características fundamentais. Tal relação é encontrada, de diferentes maneiras,

nas tragédias de Eurípedes, nos textos de Sócrates, em Sêneca e também em Epíteto.

Nestas seis lectures feitas novamente em Berkeley, desta vez em 1983, nas quais a

parrhesia é enfocada, Foucault não está preocupado diretamente com o problema da

verdade, mas do “truth-teller” ou “truth-telling”112. Não é o caso de um estudo sociológico

dos papéis diversos desempenhados por aqueles que dizem a verdade em diferentes

sociedades. A problematização da verdade, tanto na filosofia pré-socrática quanto naquela

que ainda é a nossa, de acordo com a análise empreendida por ele, possui dois aspectos

principais: um, diz respeito ao uso da razão (reasoning) como forma correta de determinar

se um enunciado (statement) é verdadeiro ou não; o outro relaciona-se à questão de saber

qual a importância, para o indivíduo e para a sociedade, em dizer a verdade, em conhecê-la,

em ter pessoas para dize-la e a importância em reconhecer estas pessoas. O primeiro como

“analítica da verdade”, o segundo enquanto “tradição crítica”, ambos relativos ao

pensamento ocidental. De maneira que o objetivo principal do seminário, intitulado

Discourse and truth: the problematization of parrhesia, é construir uma genealogia da

atitude crítica na filosofia ocidental.

Do ponto de vista metodológico, a história das problematizações não tem como

objeto de análise o comportamento dos indivíduos no passado nem as idéias apresentadas

como valores representativos, mas o “processo de problematização, o qual significa: como

e por quê certas coisas (comportamentos, fenômenos, processos) tornam-se um problema.

Por que, por exemplo, certas formas de comportamento foram caracterizados e

classificados como ‘loucura’ enquanto outras formas similares foram completamente

negligenciadas em determinado momento histórico; a mesma coisa para o crime e a

delinqüência, a mesma questão de problematização para a sexualidade”113. Problematizar é

specific kinds of institutions”. Michel Foucault. Discourse and truth: the problematization of parrhesia (1983). 112 Estes são termos originais utilizados por Foucault, que realizou as conferências em inglês. São de difícil tradução para o português; guardam um sentido aproximado de “aquele que diz a verdade” e de “ato de dizer a verdade”. 113 “How and why certain things (behavior, phenomena, processes) became a problem. Why, for example, certain forms of behavior were characterized and classified as ‘madness’ while other similar forms were completely neglected at a given historical moment; the same thing for crime and delinquency, the same

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dar uma resposta para uma situação concreta que é real. Nesse sentido, a própria concepção

de pensamento assume características singulares nos estudos de Foucault: mais que o

motivador de condutas e atitudes, mais que o produtor de idéias ou mentalidades, o

pensamento é aquilo que permite questionar tais atitudes e condutas, tais mentalidades ou

idéias, é o que permite problematizá-los.

É, então, a partir deste ambiente que o projeto da história da sexualidade é

retomado. O segundo volume, onde são colocados os deslocamentos em relação ao anterior,

pretende-se uma genealogia porquanto se apresenta como uma trabalho histórico e crítico.

Em outras palavras, “um exercício filosófico: sua articulação foi a de saber em que medida

o trabalho de pensar sua própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa

silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente”114. O uso dos prazeres pode ser lido,

levando-se em consideração todo o percurso foucaultiano, como um retorno à filosofia, não

àquela constantemente criticada por se reduzir à mera disciplina universitária, mas à

filosofia como forma de vida e, pois, como experiência histórica.

Um novo posicionamento teórico de Foucault pode ser evidenciado já que é nele

que mais explicitamente a história se encontra com a filosofia – fato inédito até então –,

sendo praticada de forma filosófica. A genealogia do sujeito moderno, genealogia como

estudo histórico-crítico, ou simplesmente como história das problematizações, é, em poucas

palavras, o estudo das formas como os indivíduos se constituíram como sujeitos em

diversos momentos da história, problematizando suas próprias condutas e, a partir disso,

sua relação com a verdade.

Em quatro diferentes temas, todos pertinentes a um vasto território denominado

sexualidade, Foucault circunscreve um campo preciso dentro da cultura grega: o do

pensamento sobre os prazeres levando em consideração as morais que o definem. Moral,

num sentido muito mais amplo que o de código: como postura diante dos valores e das

regras, como modo de pensá-los, aceitar ou recusá-los. Porém, uma moral relativa apenas a

determinados indivíduos do sexo masculino e de um campo social bastante limitado.

Assim, o tema do corpo, o da casa, o da relação com os rapazes e do amor verdadeiro, tal

como é problematizado em uma série de textos específicos, é estudado. Tal documentação,

question of problematization for sexuality”. Michel Foucault. Discourse and truth: the problematization of parrhesia (1983). 114 Michel Foucault. História da sexualidade II: o uso dos prazeres (1984), p. 14.

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constituída por textos que, se hoje dizem respeito apenas à história da filosofia, à época,

talvez, possuíssem um caráter muito mais prático que teórico. Mais que manuais de postura,

são formas de pensar as próprias condutas.

A noção de descontinuidade é agora deslocada de seu caráter absoluto. É sobre o

pano de fundo da subjetividade, isto é, da prática de subjetivação – a forma como os

indivíduos, segundo relações com verdades, constituem-se como sujeitos de uma conduta

moral –, que as análises prosseguem. Aqui, se o sujeito é constituído historicamente, é

como se a constituição fosse comum a diversas culturas em temporalidades variadas. A

história das problematizações demonstra como esta experiência foi tomada como objeto de

pensamento de diferentes formas e segundo valores distintos. Ela evidencia a pluralidade de

práticas e pensamentos que possibilitam os sujeitos na história, e não uma espécie de

sujeito histórico imutável segundo uma verdade universalizante.

*

O projeto intelectual de Michel Foucault interrompeu-se neste momento, que não

deve ser encarado como ponto de conclusão dos esforços que começaram mais de 20 anos

antes. Dificilmente, se a vida lhe permitisse, ele permaneceria muito mais tempo nesta

posição. A história das problematizações não é, de forma alguma, o desfecho lógico da

arqueologia; é conseqüência dos acasos, de uma incessante vontade de retomar tudo o que

já foi feito para fazer coisas diferentes. As histórias praticadas por ele dão mostras disso.

No tipo de estudo que foi acima empreendido, tentou-se evidenciar dois

fundamentos teóricos essenciais à atividade historiadora tal como foram apropriados por

Foucault, quais sejam, o tempo e o sujeito. O que se percebe são modos variados de tratá-

los, cada qual com objetivos distintos. Entretanto, algumas suposições levando em conta o

conjunto dos textos podem ser levantadas.

Como já foi sugerido, a historiografia tem por mérito inserir o homem, enquanto

categoria universal, em uma temporalidade que lhe é alheia, relacionando a ela seu modo de

ser específico. Na história, o tempo como o inumano é, digamos, humanizado. Porém, há

muito que o universal do homem é questionado, já que seu modo de ser é contingente e

finito. Em outras palavras, o ser do homem é uma experiência histórica definido, como a

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arqueologia mostra, por práticas e instituições diversas, entre as quais a língua que o

homem fala, o trabalho que realiza e a vida que ele vive.

No sentido universalizante (e por vezes totalitário) que é dado ao homem, é

possível, então, conceber um sujeito que seria como que a razão de ser da história. Este

ponto de vista necessita, por sua vez, uma noção de tempo continuísta, o qual

compreenderia o próprio devir de tal sujeito. Com isso, estaria garantida a idéia de uma

liberdade individual de certo modo a-histórica, não definida segundo determinações sociais

(ou econômicas, políticas e culturais), mas sim apenas pela vontade do próprio sujeito. A

concepção da continuidade histórica remeteria à idéia de um ponto originário, o começo

absoluto, no qual estaria assentada a verdade sobre o sujeito. Caberia ao historiador, em

última instância, encontrar esta origem decifrando tal verdade.

Ora, a fragmentação da temporalidade da história permite perceber a finitude do

homem, ou seja, a contingência do sujeito histórico. Este não existe senão por meio de

condições de possibilidade históricas; sua existência se deve a uma determinada

experiência temporal e só encontra lugar em uma história particular, e não na história como

um todo. Cada tempo com seus homens e suas verdades; a diferença entre os tempos não é

amarrada por meio de redes causais: um tempo não origina o outro, embora lhe crie

condições de aparecimento. Os sujeitos, como relações entre homens e verdades, são

acontecimentos históricos que obedecem a uma única lei, o acaso, como pretende a

genealogia.

Por fim, a historiografia, tal como praticada por Foucault, tem por tarefa crítica

perceber a forma como um pensamento sobre o sujeito, entendido em sua relação com a

verdade, pôde ser elaborado em culturas apartadas por suas diferenças no tempo. A

problematização de tal pensamento permitiria encontrar formas diferentes de subjetividade

para o presente, ou seja, manter, com outras verdades, relações distintas que dariam

condições a novas experiências históricas. Em poucas palavras, condições para que o

pensamento contemporâneo pudesse ser pensado de maneira diversa.

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DA SIGNIFICAÇÃO HISTORIOGRÁFICA E DO EFEITO DE REAL

1.

A prática da historiografia, em virtude do uso escrito e narrativo que é feito da

linguagem, em muitos casos é assemelhada à literatura. Inúmeras foram as discussões que

pretenderam dar conta desta semelhança tão peculiar. O tema da narrativa historiográfica

ocupa, desde meados do século XX, lugar especial nas preocupações de historiadores,

críticos literários, filósofos e afins. Menos que a pretensão de esgotar o tema, este ensaio

procura prolongá-lo por veredas até então pouco percorridas, tendo como pano de fundo as

relações que podem ser traçadas entre história e verdade, mais precisamente se

entendermos que a historiografia é (ou se pretende), essencialmente, um discurso sobre uma

determinada realidade, isto é, que tem no real sua referência primeira.

A idéia inicial que dá conta de motivar estes esforços é a de que, antes de

representação (re-apresentação) do passado, os historiadores constróem uma significação

sobre ele, tornando-o, para o presente, inteligível. Assim, pensar que a historiografia

realiza, em essência, uma significação do passado, não sua representação fiel, pressupõe a

possibilidade de tal passado ser significado. Ao mesmo tempo, para isso, toma como

necessário um determinado efeito de realidade produzido no texto que pretende significá-lo,

ou seja, o texto de história, já que esta tem no real, ou em um deles, seu objeto e objetivo.

Mas é necessário suspender por um instantes tais questões e tentar entender em que elas

implicam uma por uma e uma em relação às outras.

As idéias de significação e efeito de real são aqui utilizadas segundo considerações

apresentadas por Roland Barthes em diversos momentos, as quais não compreendem, de

maneira alguma, uma metodologia de pesquisa. Vale salientar que não interessa realizar um

estudo de caráter semiótico da historiografia, apenas expor brevemente as condições que

validam o escrito de história enquanto texto sobre o real.

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2.

Barthes considera três níveis de sentido. O primeiro, um nível puramente

informativo, de comunicação. O segundo é um nível simbólico, de significação. O último e

mais difícil de ser explicado, trata do sentido que escapa, daquilo que é denominado

significância. Na pesquisa sobre fotogramas de filmes de Eisenstein115, a qual originou tal

concepção de sentido, o nível da informação diz respeito ao que a cena analisada realmente

informa: um enterro ou uma conversa, por exemplos; o nível simbólico é relativo às

diversas formas de significação da cena: um punho fechado indicando (significando) certo

sentimento de luta; a significância, por fim, é o que, na cena, não se sabe o significado nem

mesmo se de fato significa: uma expressão de rosto como que indecifrável.

Retendo de início apenas os dois últimos níveis, tem-se que o simbólico é

intencional, remete à presença do seu autor e é dirigido ao espectador. Compreende aquilo

que é denominado de evidência fechada, um sentido óbvio. Por sua obviedade, não é

polissêmico, mas restringido pelo próprio autor, que lhe dá um significado específico. A

significância, por sua vez, é uma espécie de não-sentido; não diz respeito ao autor, pois é

uma inquietação propriamente do espectador que se preocupa com aquilo que lhe escapa.

Ela é um sentido obtuso, “um significante sem significado”116. No limite, é quase uma

ausência de sentido, já que se constitui como sua própria possibilidade.

O sentido, então, entendido em seus três níveis fundamentais, compreende o

conteúdo de um determinado sistema significante (uma cena, um texto, um fragmento). O

que possibilita, na análise de Barthes, que tal sistema realmente signifique é um processo

denominado por ele de significação, “processo sistemático que une um sentido a uma

forma, um significante e um significado”117.

115 Roland Barthes. “O terceiro sentido” (s/d). In: O óbvio e o obtuso (1982). 116 Ibid., p. 54. 117 Roland Barthes. “Estrutura e notícia” (1962). In: Crítica e verdade, p. 66 (nota de rodapé).

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61

3.

A idéia de efeito de real é apresentada em 1968, num artigo homônimo118. Nele são

considerados alguns pormenores da narração não tratados pela análise da crítica estrutural.

Na descrição de uma cena em literatura, há uma abundância de significados elaborados pelo

escritor: “um velho piano suportava, sob um barômetro, um monte piramidal de caixas de

madeira e de cartão”. Barthes enxerga-os no indício burguês do piano, no sinal de desordem

das caixas denotando uma certa indigência particular à cena. Mas em tal descrição consta

ainda algo que, no conjunto, é supérfluo: o barômetro, “objeto que não é nem

despropositado nem significativo, não participando pois, à primeira vista, da ordem do

notável”119.

A pergunta como que se impõe: “tudo na narrativa será significante ou, se assim não

for, se subsistirem no sintagma narrativo algumas praias insignificantes, qual é em

definitivo, se se pode dizê-lo, a significação dessa insignificância?”120. Sendo do nível

descritivo, esta impertinência em relação à estrutura narrativa é justificável, não pela lógica

da obra, mas por sua conformidade com a literatura: é da ordem do estético. No citado caso,

todavia, em se tratando de um conto de cunho realista, trata-se do “verossímil estético” da

narração. Assim, é possível estabelecer a relação do texto com a realidade e, expandindo

esta possibilidade, desta forma literária com a verdade. Diz respeito a uma função

representativa da literatura que tem como referência fundamental o real.

Esta “‘representação’ pura e simples do ‘real’, relato nu ‘daquilo que é’ (ou que foi)

aparece assim como uma resistência ao sentido”121; insignificante, em uma palavra. É como

se aquilo que fosse relativo ao vivido (enquanto real) não fosse inteligível, isto é, não

permitisse a significação (como produção de sentido). Isto sugere uma auto-suficiência

daqueles pormenores: já que eles dizem o real, não necessitam significá-lo. Sua linguagem,

por conseguinte, seria desprovida dos dois últimos níveis de sentido, teria um caráter

meramente informativo para fins de comunicação (informar ou comunicar a realidade).

Carente de significação, “o ‘pormenor concreto’ é constituído pela colisão directa entre um

118 Roland Barthes. “O efeito de real” (1968). In: O rumor da língua. 119 Ibid., p. 132. 120 Ibid., p. 132. 121 Ibid., p. 134-5.

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referente e um significante; o significado é expulso do signo, e com ele, é claro, a

possibilidade de desenvolver uma forma do significado”122.

Não é em vão, como ressalta Barthes, a contemporaneidade (com poucos anos de

defasagem) entre o realismo literário, o positivismo historiográfico, e também a fotografia,

o fetichismo pelos objetos antigos, o turismo dos monumentos e dos lugares históricos. A

historiografia, enquanto representação, mostraria o passado “tal como efetivamente

sucedeu”, na fórmula rankeana. Todavia, Barthes atribui isto a uma espécie de ilusão

referencial123. Certo de que diz o real, o realismo (historiográfico ou literário) nada mais

faz que significá-lo por meio de “efeitos de realidade”. Estes efeitos dão um sentido

específico ao escrito realista: já que há uma significância do real, ou seja, já que ele é

passível de significação (de tornar-se simbólico), tal escrito pode ser agrupado, segundo a

qualidade, como um romance realista ou como historiografia; ambos, na sua superfície

narrativa, trazem certos elementos que dão significado ao real.

O romance e a historiografia, no uso que fazem da escrita, são sistemas

significantes. Se, no entanto, o romancista se vale de invenções criativas, o historiador não

pode permitir-se tamanha liberdade, não pode inventar acontecimentos nem criar

fenômenos. Os efeitos de realidade da narrativa romanciada são diferentes daqueles

utilizados pela historiografia. Para esta, eles não são, em absoluto, pormenores inúteis,

espécie de luxo da narrativa, são, por outro lado, sua condição de possibilidade; constituem-

se alheios ao discurso do historiador e sua existência independe dele, mais ainda, é anterior

a ele: compreendem aquilo que é definido como fonte para o historiador, ou seja, os

documentos históricos. Contudo, sua significação histórica só é possível pelo fato da

historiografia lhe atribuir determinado valor simbólico (significado), o que sugere a

significância de tais documentos (um sentido que escapa mas que também possibilita o

próprio sentido).

122 Roland Barthes. “O efeito de real” (1968). In: O rumor da língua, p. 136. 123 Ilusão explícita em uma contundente passagem de Thiers, onde este apresenta a função do historiador: “ser simplesmente verdadeiro, ser o que são as próprias coisas, não ser nada mais do que elas, não ser nada senão através delas, como elas, tanto quanto elas”. Ver Roland Barthes. “O efeito de real” (1968). In: O rumor da língua, p. 136.

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4.

Como é sabido, não há historiografia sem documentos; eles são sua condição

fundamental de possibilidade. O passado, enquanto parte constituinte do real, visto que lhe

conferimos um sentido ontológico segundo determinada concepção de tempo, só é passível

de apreensão através dos seus rastros que permaneceram depois dele. Mas historiar é muito

mais que apreender o passado; é torná-lo inteligível conferindo-lhe um significado

particular.

O documento, qualquer que seja a sua natureza, é o que permite o “realismo” da

historiografia; é ele que dá a esta seu efeito de realidade. A citação ou a referência a um

documento é utilizada pelo historiador a partir da idéia de que tal citação (ou referência) é

suficiente por si só, uma vez que nela está impressa a marca do passado (como realidade),

legitimando o real como referência do discurso da história, ou melhor, produzindo a ligação

entre este discurso e aquela referência segundo uma relação com a verdade: a história diz a

verdade.

Porém, tendo por válida a idéia de que o efeito de realidade significa-a, ao invés de

apresentá-la, pode-se entender a historiografia a partir de uma relação diferente com a

verdade: a verdade é um significado do discurso da história. O documento por si só pode

muito bem ser um monumento da memória, mas não é suficientemente independente para

ser ele próprio história. Esta só encontra sua razão de ser na significância de tal documento,

ao qual só é dado um ou vários sentidos graças a sua possibilidade de significar. O método

da historiografia é o modelo de significação adotado, a forma como, daquele documento,

será produzido um significado distinto. Assim, a mesma fonte, trabalhada de maneiras

variadas, significará coisas diversas, propiciando histórias diferentes124.

A significância do documento, entretanto, implica também naquilo que escapa ao

historiador. É por isso que o real não diz respeito à história senão por meio de um efeito de

realidade. Há sempre um vazio no passado, que não é simplesmente um resíduo de sentido

esperando uma interpretação; há sempre aquilo que para aqueles que o viveram era o

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próprio sentido de seu tempo. Por mais que busquemos os rastros de um pensamento

singular nas leituras feitas por aquele que o pensou, por mais que levantemos todas as

visões de mundo possíveis em tal período, por mais que reconstituamos todo um contexto

histórico específico, jamais saberemos, enfim, o que realmente significava para um simples

moleiro do século XVI conceber um mundo originado do caos e não da vontade divina,

onde tudo se misturava, água, céu e terra, e, tal qual no queijo os vermes, tudo era

trabalhado pelos anjos. Os documentos não permitem tanto.

5

A referência ao livro de Carlo Ginzburg125, aparentemente despropositada, é

justificada visto que, no fundo, foram algumas de suas palavras que originaram este ensaio.

Na introdução à tal brilhante narrativa, o historiador italiano menciona alguns trabalhos de

Michel Foucault, entre eles História da loucura e Eu, Pierre Rivière, que degolei minha

mãe, minha irmã e meu irmão, para tecer uma crítica um tanto quanto apressada e

simplória, extremamente válida, porém, na medida em que incita a reflexão.

Segundo Ginzburg, o pecado de Foucault estaria em direcionar sua atenção, não

para as pessoas, mas para as práticas. O que lhe interessaria, ao discorrer sobre as exclusões

que constituem uma cultura, são simplesmente os gestos e critérios excludentes, e não os

excluídos. Do mesmo modo, a recusa de interpretação do memorial de Pierre Rivière

desembocaria num “irracionalismo estetizante”, já que interpretar, para Foucault,

equivaleria a reduzir o memorial a uma razão exterior a ele, irracionalismo motivado, nos

dizeres de Ginzburg, por um “populismo às avessas, um populismo negro”126.

Mas é preciso ir mais a fundo para se compreender as implicações do dossiê de

Rivière127 em relação aos fundamentos empíricos da historiografia. Num texto escrito

quatro anos após a edição de tal dossiê, o qual pretendia-se uma introdução (ou

simplesmente apresentação) a um conjunto de documentos que seriam publicados em

124 A questão da metodologia historiográfica, obviamente, necessita uma reflexão mais aprofundada e detalhada, a qual não me foi possível realizar aqui. 125 Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes (1976). 126 Ibid., p. 23-24. 127 Isso vale também para a publicação pelo próprio Foucault do dossiê de Herculine Barbin, uma hermafrodita do século XIX que suicidou-se após ser obrigada a mudar juridicamente de sexo.

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seguida, Foucault indica as razões em se publicar textos de caráter semelhante ao do relato

do matricida de Aunay. Trata-se, como é evidenciado, “não de uma obra de história, mas de

uma antologia de existências”128. Embora a organização de tal acervo, segundo as próprias

palavras de Foucault, “não obedeceu à regra mais importante que meu gosto, o meu prazer,

uma emoção, o riso, a surpresa, um certo assombro ou outro sentimento qualquer”129, é

possível encontrar nela, senão uma certa racionalidade, pelo menos uma justificação teórica

plausível.

Tendo como campo de referência a “realidade dos acontecimentos relatados”, estes

documentos tão peculiares beirando a bizarria “são exemplos que têm menos de lições a

serem meditadas, do que de breves efeitos cuja força se desvanece imediatamente”130. É

pelo fato de dizer respeito a vidas que de fato foram vividas, que tiveram sua existência

para além das palavras que as enunciam, mas também pelo fulgor destas palavras, pelo

impacto que causam, que aqueles documentos devem ser publicados. A ausência de uma

análise que os interprete tem seus motivos: Foucault os atribui à incompetência que voltou-

o “ao lirismo frugal da citação”131. Citação que traria, por si só, a realidade causada pelo

choque dessas palavras e dessas vidas, pequenas existências que, do contrário, sem as

palavras que as envolveram nas tramas e táticas das relações de poder, estariam fadadas ao

esquecimento.

Realmente não importa se o que foi escrito ou dito era verdadeiro ou se foram

falseadas as palavras pelo medo ou pela violência; o que interessa nestes “poemas-vida”

são suas inúmeras relações com a realidade, as funções que desempenham nela: sua

significância não é da ordem da verdade, mas do real. Neles, vidas são atravessadas,

“representadas”132. Isso se deveu apenas ao fato de, em determinado momento, terem-se

encontrado com o poder. Seu sentido específico não pode ser resgatado, mas sua realidade

pode ser citada. Da ausência de seu próprio sentido, desta significância (que é possibilidade

de sentido), outro significado pode ser formulado. Para Foucault, ele é percebido levando-

se em consideração as relações entre discurso e poder – a discursificação do poder e a

potencialização do discurso. Tais vidas, “é sem dúvida para sempre impossível reavê-las

128 Michel Foucault. “A vida dos homens infâmes” (1977). In: O que é um autor, p. 89. 129 Ibid., p. 89. 130 Ibid., p. 90. 131 Ibid., p. 93. 132 Aspas do próprio Foucault.

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em si mesmas, tal como seriam ‘em estado livre’; já não se pode recuperá-las a não ser

fixadas nas declamações, nas parcialidades tácticas, nas mentiras imperiosas que supõem os

jogos de poder e as relações com ele”133.

Contudo, a pretensão de Foucault esteve desde sempre fadada ao insucesso; o

estranhamento instantâneo possibilitado pelo documento, tão logo um sentido lhe é

atribuído, ou seja, assim que nos aparece como inteligível, dissipa-se na mesma velocidade

que a do acaso que fez aparecer o documento. O passado é submetido ao efeito que o torna

real no presente: é significado na medida em que há nele uma significância inerente. De

fato, o memorial de Rivière só aparece quando inserido no conjunto dos discursos que

significam uma determinada história: a das relações de poder no século XIX. De outra feita,

seria apenas mais uma novela na literatura do real.

6.

Uma constatação até certo ponto óbvia: “entre aquelas pessoas sem importância e

nós, que a não temos mais do que elas, não há nenhuma relação necessária”134. É evidente,

elas não nos dizem respeito; entretanto, ainda assim, como que numa tomada de posse,

fazemos delas nossa história. Se, por um lado, o memorial do camponês não é parte da

memória do presente, ele é, por outro, como se de direito fosse, seu passado: é um

documento histórico do passado na perspectiva temporal do presente.

Isso não quer dizer que o passado, sendo real, faça parte da experiência

contemporânea de forma autônoma; ele é pertinente a nossa história por uma instituição de

valor arbitrária: este memorial é validado como fonte histórica (não o é por si só) e sua

referência ao real é legitimada pelas circunstâncias em que foi produzido. Nós

historicizamos o escrito de Pierre Rivière: ele deixa de ser o memorial, a memória que tenta

contar, aos outros e a si mesma, um crime, para tornar-se o documento de história que

significa, para o presente e nele mesmo, uma realidade.

O uso que é feito do documento histórico (na sua generalidade) pela historiografia

como que satisfaz sua pretensão de discurso sobre o real. Tal uso vale-se de um efeito de

realidade; parte, deste modo, de uma significação do passado, na definição que Barthes deu

133 Michel Foucault. “A vida dos homens infâmes” (1977). In: O que é um autor, p. 99.

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ao processo. Um dos significados constituídos nesta prática, como já foi dito, é a própria

verdade. Tendo por válidas todas estas premissas, é possível, então, compreender as

complexas relações entre história e verdade.

Não é de importância fundamental, para a historiografia, a veracidade do

documento; o que diz respeito ao historiador é a realidade de sua fonte, ou melhor, sua

colocação no tempo. De uma mentira real, de sua significância, é possível elaborar uma

história, dar a ela um significado histórico. É óbvio, porém, que a autenticidade dos dados é

essencial a determinadas formas de pesquisa, principalmente àquelas cujo escopo é a

reconstituição de uma realidade específica: a demografia histórica é prova disto. Neste

caso, mais do que tudo, a verdade é visivelmente significada segundo o material da

pesquisa.

Fica evidente que a noção de verdade possui implicações muito mais profundas, na

medida em que ela não é o objetivo último do historiador. É, por outro lado, uma

construção deste, um dos significados construídos em sua historiografia. Não se pode dizer

que ao historiador cabe procurar a verdade do passado, mesmo sem acreditar realmente

nesta busca. À história interessa, num jogo de palavras, a realidade presente do passado, na

medida em que os documentos por ela utilizados são reais. Se o passado está morto e

enterrado, as fontes não têm por mérito fazer revivê-lo; elas guardam em si sua

significância, aquilo que foge à capacidade do historiador mas também que o permite

historiá-la, possibilitando a própria história, enquanto intelecção sobre o real.

Se não podemos compreender, na verdade, as vidas pertinente ao passado, vividas e

passadas antes de nós e sem nós, o significado das histórias construídas em torno delas

permite, com inteligência, entendermos um pouco a nossa própria realidade. Daí a

preocupação maior do historiador dever ser, antes que a verdade dos fatos, a realidade das

coisas.

134 Michel Foucault. “A vida dos homens infâmes” (1977). In: O que é um autor, p. 102.

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HISTÓRIA: EXPERIÊNCIA E SUBJETIVIDADE

Por uma analítica da experiência

“O sujeito: uma coisa complexa, frágil, de que

é tão difícil falar, e sem a qual não podemos

falar.”

Michel Foucault

O que se constitui como objeto de conhecimento da historiografia (utilizando um

termo que traz em si uma suspeita fundamental), o que é isso que através dela é olhado?

Qual o lugar para onde o historiador dirige seu olhar e que o torna, como que por um

encanto próprio da atividade científica, sujeito do conhecimento? Dispensando estas

distinções apressadas e atentando a sua proximidade particular, outra indagação: que

relações podem ser definidas, quando o olhar se encontra com o que é por ele olhado, entre

este sujeito e aquele objeto? Que temporalidade e que espaço suportam um tal encontro?

Quais as condições que o definem e quais as possibilidades por ele abertas?

*

Filosoficamente, há o tempo substância, o inumano, infinito inatingível onde se

depositam os acontecimentos135. A historiografia é o que humaniza este tempo, o que o

torna tempo dos homens, artífices de tais acontecimentos, seu lento e descontínuo vagar

pelo mundo, tempo do vivido. Bem se sabe: “o tempo torna-se tempo humano na medida

em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na

medida em que esboça os traços da experiência temporal”136.

A historiografia é uma elaboração teórica do tempo, da experiência temporal (este

pleonasmo); seus fundamentos conceituais estão ancorados numa determinada concepção

de temporalidade. Supor que o passado se constitui como seu objeto primordial é reduzir

135 Jean-François Lyotard. O inumano: considerações sobre o tempo (1988); Ivan Domingues. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história (1996).

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toda a extensão e possibilidades dessa prática: na medida em que nela estão em jogo as

relações entre presente e passado, é o próprio tempo que se apresenta como seu interesse

primeiro. Tais relações, de uma maneira geral, podem ser definidas segundo a brilhante

percepção de Jean Baudrillard. O historiador, em seu presente e olhando para o passado,

assemelha-se ao astrônomo que direciona o olhar a algum astro muito distante, cuja luz

(imagem) lhe foi transmitida há tempos mas que já tenha deixado de existir137. Para o

historiador, o que importa, em última instância, é a trajetória temporal da luz e não seu foco

de emanação; uma imagem do passado, não ele propriamente dito – nisso reside o papel da

imaginação na historiografia.

Contudo, o tempo só lhe aparece enquanto experiência histórica (tempo dos

homens) e apenas lhe diz respeito se definidas as condições fundamentais desta

experiência. À luz dos trabalhos de Michel Foucault, é, até certo ponto, uma teoria da

experiência que se pretende elaborar nas linhas que se seguem. Melhor dizendo, nos seus

próprios termos, é uma analítica da experiência que se tem por escopo realizar, entendendo

por isso a decomposição dos elementos constituintes da noção de experiência, tal como é

possível realizar através de vários textos por ele escritos. Ainda que o termo seja pertinente

ao conjunto de sua obra, sendo ele utilizado desde os primeiros escritos até os derradeiros,

os modos de utilização não são os mesmos e muitas vezes chegam a ser contraditórios.

Nesse sentido, não se trata de inventariar todos esses modelos de uso, mas de, seguindo as

possibilidades abertas por eles, conceber um significado particular para a noção de

experiência.

Em 1984, Foucault define a experiência como “a correlação, numa cultura, entre

campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”138. Por desvios de

ordem teórica, pode-se redefinir tal proposição da seguinte maneira: a experiência é a forma

de subjetivação em determinada cultura, isto é, em local e tempo específicos. Assim, outro

problema é colocado: o que se entende por subjetivação? De maneira geral, trata-se das

diferentes maneiras com as quais os indivíduos, a partir de relações com uma verdade tal,

elaborada na correlação entre saber e poder, constituem-se como sujeitos de uma

136 Paul Ricouer. Tempo e narrativa I. (1983), p. 15. 137 Jean Baudrillard. As estratégias fatais (1983). 138 Michel Foucault. História da sexualidade II: o uso dos prazeres (1984), p. 10.

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experiência. Por conseguinte, a analítica aqui pretendida deve apreender de forma

minimamente satisfatória as questões relativas à noção de sujeito.

Para tal feito, há que se considerar a idéia de sujeito nos seguintes termos. Antes de

tudo, é uma categoria histórica: a fragmentação do tempo “perpetrada” por Foucault em

histórias descontínuas teve por mérito mostrar a historicidade do homem e,

conseqüentemente ou não, do sujeito de conhecimento. Em se tratando de discursos, o

homem não lhes é soberano, é apenas um posição ocupada diante deles, a qual tem uma

duração bastante restrita, como os próprios discursos. Condições que lhe são alheias o

dominam; ele é constituído por discursos e práticas sociais – “as condições políticas,

econômicas de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento

mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as

relações de verdade”139. Sua genealogia descartava, pois, a figura do sujeito constituinte,

recusava a idéia de encará-lo fora do campo de acontecimentos como que “perseguindo sua

identidade vazia ao longo da história”140. Para ele o sujeito não é mais que um

acontecimento historicamente datado com seu começo no já começado e seu iminente

momento derradeiro.

O sujeito somente aparece no corpo social por meio de práticas de subjetivação.

Disso decorre que é sempre uma forma de assujeitamento o que se realiza. Contudo, ela se

apresenta em duas perspectivas distintas e opostas: de um lado, o sujeitar-se ao outro sob

coerção, por uma disputa de forças desiguais que não são exclusivamente de caráter físico;

de outro, a escolha pessoal, a qual assume as vezes de escolha estética ou política, como

discernimento de uma forma de existência141. Lá, o caráter jurídico-moral de

disciplinamento, aqui as técnicas de si baseadas em uma estética ou estilística da existência.

Isso não exclui, por sua vez, duas possibilidades: que no sujeitar-se ou ser sujeitado a

outrém esteja implícita um relação consigo (a vida religiosa está repleta de exemplos,

principalmente nas práticas de auto-flagelação) e que na escolha pessoal, que nem por isso

é absolutamente autônoma, a relação com o outro apareça (a amizade é prova disso142).

139 Michel Foucault. A verdade e as formas jurídicas (1973), p. 27. 140 Michel Foucault. “Verdade e poder” (1977). In: Microfísica do poder, p. 7. 141 Michel Foucault. “Sobre a genealogia da ética: uma visão do trabalho em andamento” (1983). In: Carlos Henrique Escobar. Dossier Michel Foucault: últimas entrevistas. 142 Ver o livro de Maurice Blanchot. Foucault como o imagino (1986), bem como os trabalhos de Francisco Ortega. Amizade e estética da existência em Foucault (1999); Para uma política da amizade: Arendt, Derrida

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A subjetivação, ou seja, o próprio sujeito, dá-se enquanto experiência, o que

implica, por sua vez, o estabelecimento de relações de verdade. Isso equivale a dizer que

não existe inerente ao sujeito uma verdade essencial e interior. Pelo contrário, entende uma

verdade constituída por meio de regimes específicos, uma certa “ ‘política’ geral de

verdade”143, ou seja, imposição e acatamento (ou oferta e acolhimento) de valores que

definem o verdadeiro em relação ao falso, que legitimam discursos como verdadeiros, que

autorizam determinados indivíduos a proferirem-nos, que permitem certos procedimentos

de obtenção da verdade. Por conseguinte, as relações estabelecidas são definidas por

Foucault como “jogos de verdade”, nos quais são evidenciados “as formas e as modalidades

da relação consigo através das quais o indivíduo se constitui e se reconhece como

sujeito”144.

De maneira geral, a experiência se caracteriza pela constituição de si, por parte do

indivíduo, enquanto sujeito da experiência. Assim, percebe-se que reconhecer-se como

sujeito não significa reencontrar-se em uma identidade interior e anterior, situada em um

lugar originário (fundador). Deste modo, portanto, é o estatuto ontológico do sujeito que é

discutido, se entendermos por ontologia, na perspectiva aristotélica, como “o ser enquanto

é”145. Em outras palavras, quer se dizer que a subjetividade não é de maneira alguma uma

categoria a priori, mas que o sujeito existe apenas na medida em que se constitui como

tal146. A experiência, por sua vez, traz em si mesma sua própria historicidade, os limites

temporais que a delimitam. Ela não é colocada como que por sobre uma história

(temporalidade) que a perpassa anterior a ela e que definiria seu fim iminente; ela mesma é

o começo e o fim de uma determinada história.

O que se sobressai no pensamento de Foucault, todavia, aquilo que o torna tão

original e interessante é o caráter ético que é por ele atribuído à experiência. É aí que reside

e Foucault (2000); e também “Estilística da amizade” (2000). In: Vera Portocarrero e Guilherme Castelo Branco. Retratos de Foucault. 143 Michel Foucault. “Verdade e poder” (1977). In: Microfísica do poder, p. 12. 144 Michel Foucault. História da sexualidade II: o uso dos prazeres (1984), p. 11. 145 “L’étre en tant qu’étre”. André Calande. Vocabulaire technique et critique de la philosophie (1951). 146 Isso leva à forte suspeita de uma convergência teórica (ainda que amparada em diferenças conceituais importantes) entre Michel Foucault e Edward Palmer Thompson com sua concepção de formação (making) de classe, cuja consciência não é um dado predeterminado, mas se constitui durante a própria formação da classe.

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toda a elegância que lhe foi atribuída por Paul Veyne, “elegância antiga que foi

secretamente para Foucault a imagem de uma arte de viver, de uma moral possível”147.

“A partir da idéia de que o indivíduo não nos é dado, acho que há apenas uma

conseqüência prática: temos que criar a nós mesmos como uma obra de arte”148. Mais que a

prova de sua elegância, esta passagem guarda toda a concepção elaborada por Foucault para

a sua experiência ética. Esta se faz segundo uma estética da existência assumida pelo

indivíduo, o que implica em algumas posições.

Estilizar a experiência parte da assunção de uma ética pessoal, a qual pode, na

medida do possível, ter um caráter compartilhado, isto é, coletivo. Faz-se necessário um

entendimento, pois, neste caso, trata-se de uma moral singular. Não diz respeito ao

conjunto de preceitos morais ou jurídicos que regem as condutas (código moral), já que

ética não é lei tampouco dogma; é, por sua vez, relativo à postura assumida pelo indivíduo

diante das regras a ele propostas ou impostas – a forma de problematizá-los, por exemplo.

Ética é, pois, um comportamento desinstitucionalizado. Daí que, como acredita Foucault,

“temos de distinguir entre o código que determina que atos são permitidos ou proibidos e o

código que determina o valor positivo ou negativo de comportamentos diferentes

possíveis”149.

A estilização da vida se dá pela determinação de uma substância ética. Foucault a

define nos seguintes termos: “não é sempre que a mesma parte de nós mesmos, ou do nosso

comportamento, é relevante para o julgamento ético”150, desse modo, determinar tal

substância significa “a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo

como matéria principal de sua conduta moral”151. Seus estudos o levaram a considerar os

atos de prazer (aphrodisia) como sendo a substância ética para os gregos, para os cristãos, a

carne, e a sexualidade como substância para nós, modernos.

A estética da existência como uma experiência supõe um perpétuo trabalho de si.

Nele operam, de forma distinta mas não contraditória (poderia dizer, no limite, que são

convergentes), tanto um cuidado de si, uma atenção dirigida às ações que se pratica com o

147 “L’élégance antique a été secrètement pour Foucault l’image d’un art de vivre, d’une morale possible” . Paul Veyne. “Le dernier Foucault et as morale” (1986). In: Critique 471-472, p. 933. 148 Michel Foucault. “Sobre a genealogia da ética: uma visão do trabalho em andamento” (1983). In: Carlos Henrique Escobar. Dossier Michel Foucault: últimas entrevistas, p. 50. 149 Ibid., p. 51. 150 Ibid., p. 52. 151 Michel Foucault. História da sexualidade II: o uso dos prazeres (1984), p. 27.

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intuito de se fazer sujeito delas segundo preceitos éticos, quanto um desprendimento de si,

o que não significa uma atitude de conversão, mas uma constante inquietação consigo

mesmo em busca de um pensamento outro, diferente daquele que se pensa, colocando a

própria evidência de si mesmo em suspensão.

São estas as características fundamentais da noção de sujeito segundo é possível

formulá-las com base nos escritos de Michel Foucault, sobretudo aqueles produzidos nos

momentos finais de sua vida. É a partir delas que se compreende, com maior acuidade da

percepção, as implicações relativas à concepção de experiência na história. A experiência

histórica não é alheia aos indivíduos, espécie de lugar temporal no qual eles seriam

aleatoriamente estabelecidos, independente de suas vontades, paixões, visões de mundo,

mentalidades, etc. Ela é, pelo contrário, efeito constituído por todos estes fatores e outros

muitos. A experiência diz respeito aos sujeitos históricos, na medida em que ela consiste na

sua própria condição de existência: a constituição dos sujeitos é uma experiência histórica.

Obviamente, não se trata de uma obra autônoma por parte dos indivíduos pois há fatores

que transcendem ao seu campo de ação. Há determinações, das mais diversas

características, que delimitam o espaço de atuação dos indivíduos, os quais estão sempre a

transformá-lo, inventando novos limites e possibilitando novas formas de atuação. Em uma

expressão, experiência é a dupla construção: a de histórias pelos sujeitos, a dos sujeitos nas

histórias.

*

A partir de todas estas considerações, as perguntas que deram início a este curto

ensaio podem ser colocadas de uma forma particular. O encontro daquilo que é olhado

como aquele que olha se dá em uma experiência singular. Na medida em que ela se presta a

pensar sobre as experiência históricas, trata-se de entender a prática historiográfica ela

mesma como uma experiência (histórica, evidentemente). Nesse sentido, o historiador, em

sua atividade, constitui-se como sujeito desta experiência.

Pensar a historiografia como uma possível modalidade de subjetivação é atribuir-lhe

toda uma dimensão ética que fundamente sua existência; é assegurar-lhe um valor moral e

crítico na sociedade. Muito mais que uma simples profissão acadêmica, com seus títulos e

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cerimônias, é percebê-la como uma forma de estilização da própria vida, tornando esta,

diferente da mera vivência, uma experiência.

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A ESTILIZAÇÃO DA HISTÓRIA

I

“Minha posição leva não à apatia, mas a um

ativismo imenso – e pessimista.”

Michel Foucault

De fato, não há como sair incólume da leitura dos textos de Michel Foucault; seu

ímpeto de crítica tampouco permite a passividade política, no sentido da preocupação com

a própria contemporaneidade. É conhecida sua concepção do trabalho historiográfico como

elaboração de um diagnóstico do presente. Contudo, para além do mero apontamento dos

sintomas, sua prática leva a uma tomada de posição.

Entender a historiografia enquanto experiência é considerá-la no âmbito das

atividades histórico-críticas, as quais têm por objetivo primeiro permitir um outro espaço de

pensamento, isto é, possibilitar que se pense de formas diferentes. O estudo de outras

experiências (passadas) só tem realmente sentido se servir para colocar a própria

experiência presente em suspensão, a ponto de contornar suas comuns evidências, evitar

suas familiaridades corriqueiras, desnaturalizar aquilo que nos é dado como imutável, em

suma, questionar o próprio pensamento para confrontá-lo com o que se lhe apresenta como

impensável. Nesse sentido, a historiografia aparece enquanto experiência limite, na medida

em que são os limites da cultura, do pensamento e da própria história que se constituem

como suas indagações fundamentais.

Trata-se de uma espécie de ontologia da atualidade na qual o próprio presente é o

objeto a ser pensado. Escrever histórias consiste, então, em uma atividade que não se reduz

à prática científica ou artística, mas num tipo de atividade que mais parece um estilo de

vida, já que parte do princípio de que há sempre um outro tipo de vivência possível. Assim,

a historiografia retorna ao seu berço, assumindo um certo ethos filosófico. “Eu

caracterizaria, deste modo, o ethos filosófico adequado para a ontologia crítica de nós

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mesmos como um teste histórico-prático dos limites que nós podemos ultrapassar, assim

como um trabalho feito por nós sobre nós mesmos enquanto seres livres”152.

No fundo, a questão que se coloca propriamente é a da liberdade, entendida menos

como um direito individual do que como condição fundamental para os sujeitos. No

entanto, de forma alguma pode-se ver aí uma defesa descabida de algo como uma

“liberdade absoluta”. Foucault é enfático neste ponto: “o importante não é se é possível ou

até mesmo desejável uma cultura sem restrições, mas sim se o sistema de repressões em

cuja moldura funciona uma sociedade deixa aos indivíduos a liberdade de transformá-

lo”153. É a possibilidade de transformação do presente que se questiona e a partir da qual é

tomada uma posição.

Destarte, o estudo da história tem como fundamento ético a promoção da idéia de

liberdade no limite das condições históricas que, de certo modo, determinam as ações

humanas154. É até mesmo a liberdade de mudar tais condições históricas que está em jogo,

possibilitando com isso outras formas de ação. E é nesse sentido que se pode, um tanto

quanto ingenuamente, sugerir uma experiência historiográfica que, em suma, significa a

própria estilização da atividade historiadora.

152 “I shall thus characterize the philosophical ethos appropriate to the critical ontology of ourselves as a historico-practical test of the limits that we may go beyond, and thus as work carried out by ourselves upon ourselves as free beings”. Michel Foucault. “What is Enlightenment?” (1983). In: RABINOW, Paul (ed.). The Foucault Reader. 153 Michel Foucault. “Um diálogo sobre os prazeres do sexo” (1982). In: Um diálogo sobre os prazeres do sexo..., p. 26. 154 Para situar melhor as relações entre história e liberdade no pensamento de Foucault, ver o trabalho (do qual discordo em alguns pontos) de Paulo Vaz, Um pensamento infame (1992).

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