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A Expressão da Subjetividade no Ambiente Construído Tatiane Gomes Nazário Psicóloga, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC [email protected] Teresinha Maria Gonçalves Professora e Pesquisadora da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC [email protected] Resumo Ao construir suas casas os homens escolhem elementos de abertura e fechamento para compor suas construções. Esses elementos não podem ser considerados unicamente em sua realidade construída, pois são delineados a partir de um olhar, de uma necessidade específica do habitante que ali reside. O presente estudo teve como objetivo analisar a expressão da subjetividade no ambiente construído, tendo como recorte de pesquisa os elementos de abertura e fechamento dos espaços: os muros, as grades, as janelas e portas, para tanto, utilizou-se uma pesquisa de campo com 10 habitantes dos bairros São Cristóvão e Brasília no município de Criciúma-SC. Adotou-se como procedimento técnico um estudo de caso. A coleta de dados foi composta de uma entrevista estruturada, uma entrevista semi-estruturada e fotografias. Os dados obtidos foram analisados qualitativamente conforme o método de análise de conteúdo de Bardin. A partir das entrevistas contextualizadas no referencial teórico utilizado pôde-se perceber a relação existente entre os elementos de abertura e fechamento dos espaços com as subjetividades dos sujeitos de pesquisa. Os muros e as grades, elementos fixos do espaço construído, são significados tanto como meios utilizados para proteção do habitante, como para confinamento. Já as janelas e portas trazem significados de abertura e fechamento como limite ao contato entre espaço público e privado. Com essa pesquisa espera-se fornecer uma contribuição para a criação de espaços mais adequados ao desenvolvimento pleno do ser humano. PALAVRAS-CHAVE: ambiente construído, subjetividade, público e privado.

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A Expressão da Subjetividade no Ambiente Construído

Tatiane Gomes Nazário

Psicóloga, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade

do Extremo Sul Catarinense – UNESC

[email protected]

Teresinha Maria Gonçalves

Professora e Pesquisadora da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC

[email protected]

Resumo

Ao construir suas casas os homens escolhem elementos de abertura e fechamento para compor suas construções. Esses elementos não podem ser considerados unicamente em sua realidade construída, pois são delineados a partir de um olhar, de uma necessidade específica do habitante que ali reside. O presente estudo teve como objetivo analisar a expressão da subjetividade no ambiente construído, tendo como recorte de pesquisa os elementos de abertura e fechamento dos espaços: os muros, as grades, as janelas e portas, para tanto, utilizou-se uma pesquisa de campo com 10 habitantes dos bairros São Cristóvão e Brasília no município de Criciúma-SC. Adotou-se como procedimento técnico um estudo de caso. A coleta de dados foi composta de uma entrevista estruturada, uma entrevista semi-estruturada e fotografias. Os dados obtidos foram analisados qualitativamente conforme o método de análise de conteúdo de Bardin. A partir das entrevistas contextualizadas no referencial teórico utilizado pôde-se perceber a relação existente entre os elementos de abertura e fechamento dos espaços com as subjetividades dos sujeitos de pesquisa. Os muros e as grades, elementos fixos do espaço construído, são significados tanto como meios utilizados para proteção do habitante, como para confinamento. Já as janelas e portas trazem significados de abertura e fechamento como limite ao contato entre espaço público e privado. Com essa pesquisa espera-se fornecer uma contribuição para a criação de espaços mais adequados ao desenvolvimento pleno do ser humano.

PALAVRAS-CHAVE: ambiente construído, subjetividade, público e privado.

Introdução

Todo homem ocupa um lugar no espaço e ao ocupá-lo exige dele algumas características

como propriedades especiais de ventilação, iluminação, abrigo do sol e da chuva. Desde o tempo

das cavernas os homens já fechavam seus espaços com paredes e portas com o objetivo de

atender suas necessidades de abrigo e proteção.

Nos dias atuais essa realidade não é muito diferente de outrora. O homem continua com as

mesmas necessidades de fechar ou abrir espaços a fim de desenvolver suas atividades e manter

suas relações sociais num certo padrão. Contudo, a sociedade organizada torna imprescindível

para o homem outras necessidades mais elaboradas que aquelas dos tempos das cavernas. As

criações tecnológicas ao longo de milhares de anos, a divisão da sociedade em classes sociais, a

propriedade privada e o capitalismo moderno, tornam o que era supérfluo a uma década,

indispensável. Isso ocorre pela própria constituição da sociedade civil.

O conforto ambiental é uma preocupação da arquitetura e também da Psicologia que hoje

ao estudar as relações do homem com entorno sócio-físico, revela a importância dessa relação na

construção da subjetividade do ser humano. Sob essa perspectiva é de especial importância

conhecer as barreiras que as pessoas criam para dividir os espaços públicos dos privados. Ao

construir suas casas os homens colocam elementos de abertura e fechamento dos espaços; são

portas e janelas de variados tipos, com tamanhos diferenciados, muros altos e baixos e grades

dispostas entre esses elementos.

Diante de uma sociedade na qual a violência se espalha e os espaços são divididos entre

ricos e pobres, poder-se-ia inferir a respeito das opções por um ou outro elemento de abertura e

fechamento, como algo que ocorre unicamente por questões relacionadas à proteção do sujeito.

Contudo, pela ótica da Psicologia Ambiental percebe-se uma outra realidade, então subjetiva. As

aberturas como portas e janelas são imprescindíveis aos espaços, porém o uso destas, abertas

ou fechadas, já não diz respeito unicamente a uma necessidade física, mas pessoal do usuário.

Entretanto, elementos como muros e grades, igualmente usados para separar o que é dentro do

que é fora, não obrigatoriamente são encontrados em todos os espaços de moradia.

Objetivos

- Investigar a relação das pessoas com os elementos de abertura e fechamento dos espaços;

- Analisar o significado dos elementos de abertura e fechamento dos espaços como expressões

do mundo simbólico dos sujeitos pesquisados.

Metodologia

O presente estudo foi desenvolvido a partir de uma abordagem qualitativa, do tipo

exploratória. O procedimento técnico utilizado foi um estudo de caso realizado com os moradores

residentes nos bairros São Cristóvão e Brasília, na cidade de Criciúma/SC. O critério utilizado

para escolha da unidade de pesquisa foi a diversidade de categorias de moradores (diferentes

categorias diz respeito a diferentes camadas sociais no que se refere a poder aquisitivo, jeito de

morar, qualidade da habitação) e a localização do espaço residencial do bairro.

A pesquisa foi desenvolvida utilizando um total de 10 residências. Destas, 05 foram

selecionadas no bairro São Cristóvão e 05 no bairro Brasília. O critério utilizado no processo de

amostragem foi intencional, ou seja, buscaram-se os elementos de abertura e fechamento com

características diferenciadas. Desse modo, foram incluídas na pesquisa casas com muros altos e

baixos, muros com grades e com cerca elétrica e casas sem muros; janelas com e sem grades, de

tamanhos diferenciados, bem como aquelas cujas janelas se assemelhavam a portas de entrada,

dando acesso à varanda ou a sacada; casas com diferentes tipos de portas, de acordo com a

localização delas, sejam frontais ou laterais.

A coleta de dados foi realizada diretamente pelo pesquisador. O primeiro contato com o

bairro se deu por meio de passeios pelas ruas com o intuito de realizar a observação das

características das residências e assim escolher os sujeitos participantes da amostra. A técnica

utilizada foi a observação simples. Após serem selecionados e concordarem com a participação

os moradores foram submetidos a duas entrevistas; uma estruturada e outra semi-estruturada.

Além disso, foram tiradas fotografias das casas, especialmente dos elementos de abertura e

fechamento das residências de acordo com a escolha do sujeito pesquisado, ou seja, o que este

julgava ser mais significativo em sua residência.

A análise dos dados seguiu o método de análise de conteúdo proposta por Bardin (2002),

baseando-se nos conceitos apreendidos pela compreensão das falas dos sujeitos, seguindo

quatro etapas distintas. (1) realizou-se a transcrição das gravações, a releitura do material, a

organização dos relatos das entrevistas e dos dados de observação; (2) buscou-se uma relação

entre a entrevista estruturada, a semi-estruturada e as observações realizadas pelo pesquisador

(3) foram extraídas categorias de análise de acordo com os conceitos expressos na fala dos

entrevistados e (4) com as categorias claramente definidas processou-se a análise final,

estabelecendo articulações entre os dados das entrevistas e os conceitos constantes no

referencial teórico utilizado.

Resultados e Discussão

Falar em subjetividade é reportar-se de modo instantâneo ao sujeito. Este que atua sobre

as coisas e as transforma ao mesmo tempo em que se vê transformado por elas. Sujeito pensado

em sua historicidade que por intermédio das páginas de sua vida cria e recria culturas e jeitos de

ser e de existir no mundo. Sujeito é então aquele de Foucault (2003) que se elabora, se

transforma e atinge enfim um modo de ser.

Nesse sentido, mais que compreender o sujeito em si mesmo, busca-se compreendê-lo

como indivíduo, como alguém constituído por suas práticas. Pensado historicamente, esse sujeito

não pode dizer que doravante é ele mesmo, porque ele mesmo só existe como uma modalidade

histórica de fabricação. “Por isso, mais analiticamente producente, diante dos reality shows da

vida, é não deter-se sobre a verdade última de cada um, mas sobre como são os artefatos que

fabricam essa verdade última de cada um”. (SOUZA, 2003, p.39).

É a partir dessa noção de sujeito que se pode entender a subjetividade enquanto práticas de

liberdades constituídas historicamente em formas válidas de ser sujeito. Essa mesma

subjetividade na visão de Magalhães (2003), necessita conhecer a objetividade para nela

interferir, pois somente se pode fazer escolhas conhecendo-se antecipadamente as alternativas. E

são as alternativas que dão a possibilidade de uma interferência efetiva no real.

Magalhães (2003) coloca ainda que “sem a interferência da subjetividade, é impossível

qualquer escolha entre as alternativas existentes na objetividade”. (p.76). Se não fosse assim, a

escolha seria obra do acaso. “Na verdade, é o surgimento da subjetividade que instaura o ser

social; e a história do gênero humano é a história da intervenção da subjetividade na objetividade”.

(MAGALHÃES, 2003, p.76). É na relação entre objetividade e subjetividade que se cria o sujeito.

Pela intervenção da subjetividade no ambiente percebe-se a liberdade humana, “na medida em

que o processo de autoconstrução do ser social implica sempre em possibilidade de escolha”.

(MAGALHÃES, 2003, p.77).

As escolhas feitas pelo sujeito em relação ao seu ambiente vêm modificando a forma de ser

e de viver no mundo. Em decorrência disso o homem passa a viver em um ambiente não mais

natural, e sim construído, onde tudo o que o rodeia é fruto do trabalho, de sua construção e

criatividade. Na visão de Rabinovich (2005), por meio dos aspectos decorativos do ambiente o

homem se revela em seu ser/fazer, numa dupla face que é estruturada e ao mesmo tempo

estruturante, vitrine e espelho do modo de vida daquelas pessoas que desenharam aquela

decoração.

Esse ambiente construído de que se fala é todo ambiente alterado ou inventado pelo

homem, que abarca uma gama de variadas ações e transmite um pouco de tudo que o homem

vivencia em determinado momento de sua história. Considera realidade de identidade, cultura,

crenças e heranças regionais. Tal ambiente se modifica para introduzir sobre a superfície da Terra

os detalhamentos necessários, a satisfação das necessidades humanas. Sob essa perspectiva

como se pode entender o urbano? Segundo Lang (1974), é preciso compreendê-lo a partir do

comportamento humano expresso na construção do seu ambiente.

Ao pensar em cidades eminentemente comerciais, dir-se-ia que estas são vistas apenas

como lugar de trabalho, sem acolhimento familiar. O sujeito que mora e convive diariamente com

as fábricas, sente a necessidade de proteger-se contra o vazio e a escuridão da noite. Durante o

dia a agitação das indústrias em movimento contínuo; ao entardecer ruas desertas e sombrias,

não restando, portanto, outra alternativa senão usar de artifícios para desviar o olhar da violência

urbana.

A casa de Silvana1 é particularmente diferente das demais localizadas no bairro São

Cristóvão, em Criciúma, pois é a única a possuir cercas eletrificadas. Não bastasse isso, a

moradora deseja esconder mais a casa dos olhares alheios, retirando as grades do muro frontal e

elevando-o à mesma altura do muro das laterais. “Eu não me vejo numa casa sem muro [...]”.

(SILVANA, 2006).

O muro nesses casos passa a ser a expressão de uma cidade insegura. Uma cidade assim

causa mal-estar à população, e cumpre a função apenas do capitalismo e da lei de mercado, pois

se desenvolve em torno do lucro fornecido para o país. Ela não é repensada porque já tem seu

papel definido. Contudo, quem são seus habitantes? De que forma se expressam em meio a um

ambiente tão contaminado pelo capitalismo neoliberal? Esses habitantes também fazem parte de

uma ideologia e ocupam espaços físicos e simbólicos, são sujeitos partícipes da história atual e

futura. (SILVEIRA; SAYAGO, 2006).

Casa de Silvana

Fonte: NAZÁRIO, Tatiane Gomes.

1 Foram usados pseudônimos para a identificação dos sujeitos pesquisados

Um muro deve servir para a proteção da pessoa, essa é a visão de Geraldo. Não obstante,

sua casa possui muros pequenos, com pouco mais de meio metro. Mas o muro de Geraldo, ao ser

descrito por ele, é imaginado grande, branco, servindo como um guarda, dando segurança aos

habitantes da casa. No entanto, não é esse o muro desejado por Geraldo, nem concretamente,

nem subjetivamente. Subjetivamente, ao falar-se em um muro que impede o acesso a uma casa,

Geraldo lembra de um outro acesso: o acesso da visão. “É ruim... um muro alto em uma casa tira

a visão da casa, é como se a pessoa que estivesse dentro não quisesse que ninguém entrasse,

então é como se eu não fosse bem-vindo”. (GERALDO, 2006).

Pelas palavras de Geraldo percebe-se a rejeição por não ser bem-vindo diante de um muro

muda de status quando é seu próprio muro. Ele afirma que: “[...] se estou dentro da casa e preciso

de um muro é por que eu preciso me proteger de alguma coisa”. (GERALDO, 2006).

Em contra partida, Solimar expõe dois sentimentos opostos em relação ao muro: ele poderá

ser visto como prisão, ou, por causa da violência, representar a proteção. Sua fala denota o

desejo de melhorar o ser humano: “[...] e um muro para mim representa um certo cuidado, mas ao

mesmo tempo tu está numa prisão, porque na verdade não precisaria. Eu, na minha opinião, se

fosse um lugar que não tivesse maldade, a gente não precisaria ter muro nas casas”. (SOLIMAR,

2006). E complementa sua fala conforme se vê adiante: “Um ser humano se protegendo de outro

ser humano, não precisaria ter muro”. (SOLIMAR, 2006).

Um muro, nessa perspectiva, seria uma proteção enganadora, transformada em prisão e

motivo de condenação do habitante da casa. Esse meio paliativo de buscar a paz não funciona,

pois a paz somente é concretizada na ausência de muros. “Já cheguei a mencionar várias vezes

que me irrita muros altos, como se estivesse em uma prisão”. (SILVANA, 2006).

Sabe o que eu penso mesmo? Eles não fizeram aquele muro lá em Berlim, pra poder eles terem paz eles tiveram que quebrar? Eu acho assim que, claro que era bom que a gente pudesse viver num mundo que nenhuma casa tivesse muro, mas a gente no fim é obrigado a se proteger por causa da violência que tá o mundo. (SOLIMAR, 2006).

O muro impõe, dessa forma, um regime disciplinatório. Na visão de Foucault (1994), novas

técnicas de poder ligam essa disciplina diretamente com sua utilidade, controlando o corpo,

reduzindo sua independência. “Ele também tem outro lado, ele te limita os teus passos porque tu

vive dentro desse muro”. (SILVANA, 2006). Nesta fala Silvana expressa o sentimento de

vigilância, o muro servindo como um cárcere privado. O sujeito não pode se movimentar dentro

dele, porque ele o sufoca. Da mesma forma, estando diante de um muro que impede a passagem

para dentro de casa, têm-se a sensação de estar sendo proibido de algo. Este é o sentimento de

Silvana: “Me sinto barrada, limitada, tu estando dentro também é assim, tanto faz”. (SILVANA,

2006).

Mas o muro não é de todo ruim, ele traz um sentimento positivo quando serve de barreira à

vida pública. Então, esses tijolos podem se fazer necessários para delimitar o espaço interno do

externo, o território habitado “por mim e pelo outro”. Sennett (1988), há duas décadas, já falava

sobre a expansão do espaço e do sentimento de privacidade, pois nessa época o espaço público

deixava de ser central na vida social devido à prevalência da intimidade. A habitação do sujeito

precisa ser preservada, ele deseja a privacidade, seja individualmente ou coletivamente com seus

familiares.

Tem lugar até, antigamente, eles não faziam muro né, eles colocavam de vara, por causa de animais. Então, no caso aqui na cidade não vai ter animal né. Mas no caso como um sítio, se eles não querem que o animal fique ao redor de casa, eles vão ter que fazer um muro de pau para ele não passar. Então o meu sentimento é que mesmo que a gente morasse num sítio, a gente ia fazer um muro ao redor da própria casa para os animais não chegar muito perto. Porque os animais vivem soltos né. (SOLIMAR, 2006).

Um muro faz parte de um espaço construído, e por isso serve ao habitante em suas

necessidades de pertencimento. O muro, como expressa Rafael, é uma “reserva de domínios”, ele

indica quem é o dono, o proprietário, e quem é o visitante. “O muro é uma reserva de domínio. É

uma divisão entre a parte reservada e um lugar comum” (RAFAEL, 2006). Ao mesmo tempo

impede a entrada do visitante, pois o habitante da casa deixará adentrar em seu pátio somente as

pessoas convenientes a ele. “[...] ela vai querer que o outro se identifique primeiro”. (FABIANA,

2006). “[...] aquele muro está indicando um limite”; “É uma parede a ser respeitada”. (RAFAEL,

2006).

Para impedir a entrada sem identificação, além de muros e grades, os proprietários podem

utilizar-se de outros artifícios como campainha, interfone e videofone. Antigamente era comum o

uso de “olhos mágicos” nas portas de entrada. Esses olhos serviam para enxergar o sujeito do

lado de fora sem precisar abri-la. Atualmente esse uso não é freqüente, pois os transeuntes são

barrados antes de chegarem à porta de entrada, por uma grade ou um muro. Caso esteja do lado

de fora alguém indesejado, o indivíduo que está do lado de dentro não entrará em contato direto

com este que apertou sua campainha, ou, no caso de haver interfone, entrará em contato

somente indireto podendo ainda eximir-se do contato por meio de um vídeo-fone.

Rebeca expressa muito bem a situação descrita acima, do visitante barrado por esses

instrumentos eletrônicos:

Eu acho um pouco de egoísmo né, ter portão eletrônico de repente que se fecha, aí tu tem que se identificar, aí a pessoa vê que é tu, de repente não quer te receber, recebe quem quer. Aí já é uma coisa bem fechada, a pessoa já é mais fechada, recebe na casa dela somente quem ela quer. Aí se tranca naquilo ali,

naquele mundo dela, não quer ter contato com as pessoas, eu penso assim. (REBECA, 2006).

As pessoas constroem suas casas adequando os elementos como muros, grades, janelas e

portas a fim de obterem maior ou menor contato com a rua, seus vizinhos, amigos e

desconhecidos. Pelas portas e janelas essas pessoas têm a possibilidade de modificar suas

escolhas, conforme mantém aquelas abertas ou fechadas; já as grades e os muros não dão essa

possibilidade, estão ali, servindo como um limite permanente.

Para Fabiana um muro é um obstáculo demasiado agressivo, pois em sua descrição ela o

vê como um paredão escuro e alto. Este não lhe permite olhar para fora e, conseqüentemente,

impede que os de fora olhem para dentro. A grade, por sua vez, é vista de forma menos ofensiva.

“É uma forma de proteger, mas não é uma forma tão bruta quanto o muro, porque o muro tapa

completamente a tua visão”. (FABIANA, 2006).

Fabiana, portanto, percebe os muros laterais e a grade frontal de sua casa como formas de

proteção, pois a violência se espalha gradativamente pelo bairro São Cristóvão, na medida em

que a cidade vem crescendo e tornando-se cada vez mais industrializada. “Se não fosse no

mundo que a gente tá, ninguém gostaria de estar preso em uma grade.” (FABIANA, 2006).

Casa de Fabiana

Fonte: NAZÁRIO, Tatiane Gomes

Vê-se na fala de Fabiana duas necessidades em um mesmo sujeito. Este precisa de

proteção, sentir-se seguro dos perigos “lá fora”, mas necessita de contato. E qual a melhor forma

de obtê-lo? Para Fabiana, por meio das grades, possibilitando a visualização do movimento por

entre suas duas janelas frontais, janelas essas mais parecidas com portas, inclusive uma delas

exercendo esta função. Segundo a entrevistada, a abertura ampla, colocada na casa quando da

compra do imóvel, tem como finalidade tornar o habitar mais acolhedor; pois, para distanciar dos

estranhos, ela possui o muro, a grade e o interfone.

Hoje pra mim o muro é proteção, entre aspas né, claro que não é muito né, mas pra mim dá uma segurança. Como eu fico a maior parte do tempo sozinha em casa me dá uma proteção. Se eu não tivesse muro eu ia ter que deixar a casa trancada. Assim, como eu falei, eu posso deixar as janelas abertas para entrar o sol, entrar ar. Então assim eu posso, eu tenho uma garantia de que eu posso deixar ela aberta e é uma dificuldade a mais pro outro entrar. (FABIANA, 2006).

A grade frontal e as janelas amplas de sua casa disfarçam a conotação de prisão que

originalmente um muro possa causar. “A prisão”, como observa Foucault (1994), não tem exterior

nem brechas. Sendo assim, um muro representaria o fechamento total de um lugar,

impossibilitando o habitante de ter proximidade com os seus semelhantes. Diante de uma casa

murada, a sensação de Fabiana não é agradável.

Me sinto ruim, porque eu não ia poder ver nada que tem lá fora. Na verdade o que é o muro e a grade que a gente coloca? A gente tá se prendendo contra o que tem lá fora, é uma forma de proteção e ao mesmo tempo a gente se sente preso né. Porque tu não tem a liberdade de ir e vir sem ter que tá abrindo porta, sem ter que tá fechando portão, porque pode ser roubada. (FABIANA, 2006).

A esse respeito Foucault (1994) traz o conceito de confinamento, uma separação mais ou

menos forçada de indivíduos do restante da população. É essa separação que se vê transmitida

na fala de Fabiana. Foucault expressa ainda a idéia de que os fatores observados no

estabelecimento de áreas fechadas podem até variar, mas o resultado final é semelhante em

todos os casos, porque os modelos utilizados são os mesmos, extraídos da sociedade.

O que faz um homem escolher a privacidade absoluta por trás de tantas proteções?

Conforme Ferrara (2002) existe uma relação entre ruas, cidade e violência. Para ele uma cidade

onde as ruas estejam livres da violência, a cidade pode considerar-se livre da violência. Do

mesmo modo, ele afirma que ninguém é beneficiário passivo da segurança ou vítima indefesa do

perigo, ou seja, os usuários da cidade e das ruas são protagonistas ativos do drama urbano da

civilização.

Sendo assim, ninguém expõe diferentes tipos de barreiras entre o exterior e o interior de

sua casa em uma mesma cidade, um mesmo bairro ou uma mesma rua, com a mesma intenção

de proteger-se contra a violência; pois o homem não é expectador da violência, mas protagonista

desse processo social.

Rebeca também traz a mesma idéia expressa pela entrevistada acima e compreendida nas

afirmações de Giddens (1991), uma oposição conflitante entre a necessidade de proteção e de

contato. Ao descrever uma grade, Rebeca a imagina alta, para que as pessoas de fora não

consigam pular, mas não pode ser fechada, a fim de não esconder a residência da pessoa. Uma

grade aberta, porque

[...] aberta pelo menos tu vê a casa da pessoa. Não é um muro, não é uma cadeia. Tem gente que faz a casa e faz o muro da altura da casa, que tu olha para aquela casa, parece uma cadeia. É sinal que ali quem mora, a pessoa não quer nem que olhe pra tua casa. Eu acho assim né, várias casas que o muro é da altura da casa. É sinal que quem mora ali é uma pessoa bem egoísta, que quer se esconder das pessoas. (REBECA, 2006).

Outra posição possui Silvana, pois para ela a grade não traz esse sentimento. Vê-se a

proibição perante um mundo hostil, denotada pelas grades dispostas ao seu redor. “Eu acho que

se tu põe uma grade é porque tu está proibido e a grade já descreve o que é proibido”. (SILVANA,

2006). Afirma isto levando em conta a proibição de sair, de se movimentar livremente pelo espaço.

Se esta grade estiver localizada em uma janela, os sentimentos se tornam ainda mais

angustiantes, como é o caso de Armando e Geraldo, os quais relatam que uma grade não pode

servir de empecilho para sua visão. “[...] se for na janela ou na porta, aí eu já não gosto, eu não

vou poder colocar a cara na rua para ver o que tem do outro lado, aí ela vai impedir que eu olhe

[...]”. (GERALDO, 2006).

Uma prisão né, aí seria uma prisão né [...]. Porque grade existe é em presídio [...]. [...] até que é bom, é uma proteção, mas seria uma coisa mais parecida com uma prisão. Você pode abrir mais tem a grade ali, você vai querer botar a cabeça ali e não vai conseguir, vai ter que ficar olhando de longe, é ruim. (ARMANDO, 2006).

Estas duas formas diferentes de vivenciar a grade trazem a mesma idéia implícita: grade é

sinônimo de prisão. Em outras palavras, é como se as pessoas estivessem se prendendo para

não entrar em contato com os estranhos que estão do lado de fora.

Para Solimar, não bastaria retirar a grade, mas sair dali, vivenciar a liberdade de forma

plena. “[...] querer sair dali, daquela grade. Querer tá livre, num pasto... voando, cantando,

passeando, livre [...]”. (SOLIMAR, 2006). A liberdade pode ser entendida segundo as idéias de

Foucault (1994) como a condição de um indivíduo não ser submetido ao domínio do outro, de ter

poder sobre si mesmo e sobre seus atos.

De fato, o indivíduo é livre “[...] quando a sociedade não lhe impõe um limite injusto,

desnecessário ou absurdo”. (DUTRA, 2006, p.1). Por este ponto de vista, pensar-se-ia que todos

são livres, pois não existem impedimentos para a construção de muros altos ou baixos, com

grades ou sem elas. Contudo, continua o autor: “Uma sociedade livre dá condições para que seus

membros desfrutem, igualmente, da mesma liberdade”. (DUTRA, 2006, p.1). Algo difícil de ocorrer

em uma cidade onde os estranhos da rua representam perigo para os habitantes das casas.

Não se pode falar em igualdade de condições sem entrar em questões sociais do

capitalismo, porquanto, neste regime, inexiste igualdade de moradias, de alimentação, de

educação e de lazer. Se nem todos podem desfrutar dessas mesmas igualdades, como o

indivíduo conseguirá sentir-se livre nesse modelo global de desenvolvimento proposto pela ordem

capitalista ocidental? Há liberdade numa ordem que reconhece somente a si mesma? Na visão de

Ribeiro (1991, p.60), o desenvolvimento vem a ser uma categoria filiada “[...] a um tipo de universo

ideacional de uma elasticidade tamanha que até faz crer se estar diante de uma caixa preta ou de

uma noção vazia”. Vazia porque não é orientada a favor da população, possui sua própria lógica e

uma linguagem particular.

É, portanto, um modelo de desenvolvimento que não responde às aspirações de bem-estar

dos seres humanos. Um modelo que impõe aspirações e produz desejos sufocados, fantasiados e

maquiados e manipula a própria visão do sujeito do que seria a concepção de bem-estar.

(GUIMARÃES, 1997).

O que são, portanto, os espaços criados pelo homem? Não são eles somente espaços

psicológicos? Os espaços, segundo Valadares (2000), existem ao redor do sujeito como algo

saltando de dentro da vida dele, como abstrações, ou seja, os sujeitos promovem a existência dos

lugares e dão significados a eles. Solimar não possui grades em sua casa, suas janelas e portas

são livres para a passagem. Este espaço de Solimar é íntimo, assumido nas profundezas de sua

subjetividade, refletindo em seus comportamentos e em suas emoções.

A entrevistada adora olhar pela janela, deste modo, pensar em uma grade colocada nela é

como destruir a sua possibilidade de sonhar, seria uma verdadeira prisão dos pensamentos.

Já vi grades que pega a parte de cima toda e as pessoas ficam lá em baixo, grade de prisão mesmo. É uma grade em cima, ao redor é só muro e em cima é só grade, é uma prisão. E é a mesma coisa numa janela, tu tá dentro de uma grade, tu não vai poder fazer nada, só se tu arrancar. Então botou uma grade, pra tu poder sair, ou tu arranca, derruba ela, só se é numa porta que já tem para chave e tudo né, daí é diferente. Mas se é numa janela, pra ti poder entrar tu vai ter que arrombar. Uma grade para mim é prisão né. (SOLIMAR, 2006).

Na visão de Foucault (1994), os seres humanos resistem ao serem tratados como

autômatos. Deste modo, uma prisão seria um local de luta e resistência, porque os sujeitos são

capazes de descobrir a lógica disciplinar e, por isso, precisam ser educados. Talvez isso esteja

diretamente relacionado a idéia proposta por Castells (2003), de que “o homem nunca se

conformou em habitar apenas um tipo de espaço e sonhou freqüentemente com lugares de

liberdade, do corpo e da alma”. Solimar também não se conforma com este sentimento, deseja

sair dali, almeja a liberdade. “Como é que é... querer sair dali daquela grade. Querer tá livre, num

pasto... voando, cantando, passeando, livre... sem ninguém para estar impedindo”. (SOLIMAR,

2006).

Os desejos e necessidades humanas, segundo Cavalcante (2004), são variados no tempo e

no espaço. E são essas necessidades capazes de prever os ritmos de vidas, porque o homem

imagina também o ritmo de seus desejos e necessidades ajustando os comportamentos ao

objetivo último de satisfazê-los. Assim como Solimar percebe as grades, como sinônimo de

prisão e opta por não usar esse elemento nas janelas de sua casa, também sobre um outro

elemento ela transmite sua impressão e coloca sua marca: a porta.

A porta é cheia de simbolismo, embora a primeira vista não atraia de forma muito

convincente. Seu uso cotidiano faz esquecer que jamais houve habitação sem que houvesse uma

porta. Ela traz consigo uma idéia implícita de abertura e fechamento. (CAVALCANTE, 2003).

Ao se falar em uma porta fechada despertam-se conteúdos emocionais relacionados à

história de vida do sujeito, sentimentos e emoções quanto ao ato de estar diante dela. “Se é uma

coisa urgente, eu fico preocupada, triste, porque tô procurando alguém pra conversar né”.

(JOSINA, 2006). Desperta incertezas e inquietações. “Eu acho que, como é que vou dizer. Sem

saber se vai ter um atendimento ou não”. (ARMANDO, 2006).

“Enquanto criação humana, suas funções físicas assumem representações psicológicas

e/ou sociais, definindo o homem-habitante ou homem-visitante (estrangeiro) permitindo domínio

ou provocando situações imponderáveis”. (CAVALCANTE, 2003, p.133). A porta fechada na

residência do próprio sujeito pode indicar sua privacidade respeitada, a tranqüilidade do lar. “Fica

tudo calmo né. [...] Não entra luz, não entra nada. Eu acho que é uma sensação de tranqüilidade,

de descanso, que ninguém perturba, que ninguém incomoda”. (Silvio, 2006).

O controle do acesso à porta pode variar segundo as horas do dia, como expressa a

entrevistada Fabiana. O habitante pode já estar recolhido à sua intimidade, à sua família. “Se eu

vou na casa de uma pessoa que já é de tardezinha, eu já sei que é porque a pessoa já tá

recolhida”. (FABIANA, 2006).

Cavalcante (2004) fala a respeito da comunidade dos índios Hare do Lago Colville, no

nordeste do Canadá; segundo a autora, lá as portas das casas ficam permanentemente abertas

durante o dia. Contudo, à noite elas são fechadas com chave, as cortinas descem e não existe

mais fumaça na chaminé, sinal indicativo de que os habitantes dali não querem ser perturbados.

Da mesma forma a privacidade noturna se faz presente nesta fala de Armando: “Eu sinto que a

gente tem que estar com a porta aberta durante o dia, a noite já é diferente. É muito difícil eu estar

de porta fechada durante o dia, já a noite é diferente né. Desde novo eu fui sempre assim, já se

fecha a porta, nunca deixa a porta aberta”. (Armando, 2006).

A reserva nem sempre indica um fechamento, pois as pessoas têm múltiplas necessidades

e diante de determinadas circunstâncias desejam estar mais ou menos disponíveis para os outros.

“Assim, eu não penso assim por que tá lá trancada porque não quer ver ninguém. Porque também

como eu faço na minha casa, tá fechada, mas eu tô aberta pra receber quem quer que seja.”

(FABIANA, 2006).

Quando a porta fechada pertence ao outro, a posição tende a ser negativa, pois este outro

não “me deixa entrar, impede minha passagem”, “[...] tu marcou com ela e chega lá encontra a

porta fechada, é sinal que ela não quer te receber, então daí tu fica chateada, sentida, porque a

pessoa estava te esperando e não te recebeu [...]”. (Rebeca, 2006). O outro “me fecha a porta e

destrói meus planos, minhas expectativas”: “[...] sinto frustração, já aconteceu de eu sair de casa e

ir visitar minha mãe e chegar lá encontrar a porta fechada, é ruim. É como acabar com os planos;

[...] já uma igreja tu pensa que a hora que tu precisou, ela estava com a porta fechada”. (Silvana,

2006).

Estar diante da porta fechada do outro traz sentimentos de inadequação, como uma visita

indesejada, inconveniente. Ao mesmo tempo, faz refletir os sentimentos dos outros quando é a

“minha porta” que se fecha. “Aí eu me sinto meio ruim né [...]. É como às vezes a gente tem a

porta fechada né, a gente se sente tranqüilo dentro de casa, mas quem vem da rua se sente meio

ruim, [...]. Sente que vai incomodar os outros”. (Silvio, 2006).

Segundo Cavalcante (2004), o visitante é aquele que está do lado de fora. Contudo, este

mesmo visitante é também um habitante quando deixa a porta de sua casa fechada ao sair,

pondo-se a caminho em direção a uma porta sob a qual ele não tem o poder. Se chegar ao

destino e encontrá-la fechada, resta a submissão perante a barreira imposta. Silvio se dá conta

deste sentimento, como vimos no parágrafo anterior, ao perceber que a porta fechada para ele, o

habitante, é sinal de tranqüilidade; mas para o outro, o visitante, será uma situação desagradável.

De outro modo, a abertura referida por uma porta aberta é um indicativo de liberdade. “Uma

porta aberta é liberdade”. (SOLIMAR, 2006). Mais adiante, a entrevistada confirma o entendimento

de abertura, conforme exposto na literatura, sob as idéias de Cavalcante (2005), indicando o

desejo de contato advindo de uma porta aberta. A abertura da porta indica a passagem para

outras “portas” subjetivas, também abertas, dispostas a deixar entrar, estando a espera do

visitante.

É liberdade, é... parece assim, uma coisa assim que uma porta aberta, que lá onde está aquela porta aberta, é um... como é que eu vou dizer, é como se tivesse assim, o próprio mundo estivesse aberto para aquela pessoa. A gente entra naquela porta, eu não sei bem explicar o que é que eu sinto, mas é uma coisa boa. Se a porta estiver fechada, parece até que a gente está trancado do lado de fora. E se a porta estiver aberta, eu posso entrar. Se eu for lá para conversar, se eu for lá pra fazer alguma coisa, eu vou estar em contato com a pessoa que está do outro lado; se está fechada eu não vou poder conversar com ninguém. Eu vou

ter que voltar com aquela minha, tipo assim, uma angústia, fui lá e sobrei. (SOLIMAR, 2006).

Uma porta fechada representa “uma porta que o outro fecha diante de mim e, deste modo,

impõe sobre mim o seu domínio, me rejeita, me distancia”. Essa é a expressão de porta fechada

para Solimar; “estar trancada do lado de fora”. (SOLIMAR, 2006). Curiosamente, existe uma

necessidade não correspondida em sua fala, pois do lado de fora, onde os lugares são amplos,

abertos, ela se sente trancada, como se não houvesse lugar sem proibição. A entrevistada faz

lembrar os dizeres de Alvares (2004), discorrendo sobre a teoria disciplinar de Foucault. Segundo

este autor, o novo poder disciplinar será voltado para o “adestramento” dos indivíduos; o olhar

hierárquico, a sanção normalizadora e o exame. Interessa-nos principalmente o primeiro que

induz por meio do olhar, efeitos de poder, o qual o indivíduo adestrado sente-se permanentemente

vigiado. Será essa a vigilância sentida por Solimar ao afirmar sentir-se presa do lado de fora da

porta?

Portas e janelas têm funções semelhantes, muitas vezes não possibilitando o

desvencilhamento de seus conceitos. “Uma janela... é um... como eu vou te explicar, uma janela é

como uma porta aberta em uma casa, é onde tu te sente dentro dela, se é tua, tu vai ficar feliz por

tu ter uma casa pra ti”. (JOSINA, 2006). O sentimento de Josina vem ao encontro da emoção

expressa na fala de Geraldo. Ele quase não consegue distinguir entre a utilidade de uma porta e

de uma janela. Ambas servem para a passagem de luz; contudo, a primeira permite a passagem

de luz e de “gente”, a segunda, igualmente traz a claridade para o interior, mas é por ela que se

pode olhar. “A janela... a janela é muito importante para uma casa, porque é por ela que se vê a

luz, por ela a gente pode olhar, tem claridade”. (GERALDO, 2006).

Geraldo permanece durante horas olhando através da janela. Sua cozinha, local prefiro da

casa, possui aberturas que favorecerem a entrada de sol e a sua visão da rua. “Nossa, e como eu

gosto, às vezes eu fico aí nessa janela (era a janela da cozinha, na lateral da casa), olhando um

tempão”. (GERALDO, 2006).

Uma janela para olhar e contemplar a natureza que se mostra como uma pintura em um

quadro. Geraldo gosta de ver pela janela: “A natureza, as crianças brincando... Aqui tem muitas

crianças que brincam na rua, eu gosto de ver todas essas coisas, é muito bom”. (GERALDO,

2006).

Segundo Valadares (2000), os lugares servem para o homem como locais de passagem e

permanência, pontos de encontro consigo e com o outro. O encontro, no caso de Geraldo, é com

o belo, com a poesia feita pela natureza nos arredores da vizinhança.

As janelas abertas são possibilidade de criação de imagens, transmitem o fluxo da vida. Ao

fechá-las Geraldo sente como se elas deixassem de existir, resta apenas à escuridão. “Eu me

sinto mal. Pra mim as janelas têm que estar sempre abertas. Porque se a janela está fechada, não

tem luz né. Não consigo imaginar uma casa sem janela”. (GERALDO, 2006).

Para Silvana a concepção de janela também se baseia na possibilidade de olhar,

entretanto, este olhar, não é via de mão dupla, é direcionado de dentro para fora. Somente ela

pode olhar, e deseja olhar sem ser olhada. Ela vive numa casa cercada com um muro alto que a

sufoca, mas suas janelas amplas lhe permitem uma visão panorâmica. Na casa de Silvana

existem muitas janelas, pois somente por meio delas se sente livre. “[...] eu quero enxergar cada

vez mais longe até onde meus olhos alcançam”. (SILVANA, 2006).

Visão panorâmica através das janelas da casa de Sil vana.

Fonte: NAZÁRIO, Tatiane Gomes

Diante da maneira encontrada por Silvana para sair do sufocamento, podemos reconhecer,

como nos aponta Giddens (1996), que as sociedades organizam suas percepções, reproduzindo

assim sua existência. Nesse ínterim, Moran (1993 apud SILVEIRA; SAYAGO, 2006) coloca que a

percepção do meio ambiente é tão influente ou mais que a realidade física do mesmo.

Em semelhante caminho Solimar percebe a janela como uma abertura para a vida, “[...]

quando tu abre uma janela, parece que tu abre pra vida”; “[...] eu gosto de falar com a natureza

através da janela”. (SOLIMAR, 2006). Essa natureza falada é viva, dinâmica, ela dá a

possibilidade de sentir-se livre mesmo estando diante de uma realidade aterrorizante. Nela não se

vêem falhas, falta de condições, diferenças de classes ou de moradias. A natureza está posta

gratuitamente para todos que dela desejarem usufruir. E cada um a significa em sua intimidade.

O desejo de liberdade é um sentimento arraigado no ser humano, e manifesta-se na

consciência como uma certeza absoluta, perpassando toda a existência, especialmente ao tomar-

se decisões que comprometem a vida. A expressão da liberdade pode ser exercida no momento

em que escolho abrir uma janela e ver quem, ou o quê, está do lado de fora.

Por essa razão, segundo Dutra (2006), apesar de toda violência externa as pessoas são

capazes de manter a liberdade de arbítrio sobre seus atos internos (sejam eles pensamentos,

desejos, amor, ódio, moral, razão), com isso preservando a integridade e a dignidade. Então, já

não se fala apenas em uma liberdade, mas numa variada gama de liberdades e maneiras de

expressá-las. Deixa-se de lado a discussão filosófica para demonstrar, por meio das janelas dos

entrevistados, uma outra forma de sentir-se livre.

Silvio vê a janela sob o ponto de vista de quem já foi agredido por ela e por isso, mantém

portas e janelas frontais permanentemente fechadas, parecendo não estar em casa em nenhum

momento do dia. Para ele o símbolo da porta e da janela ficou marcado como elementos

facilitadores da violência urbana. Deste modo, para que abri-los? Melhor permanecerem fechados

a fim de evitar qualquer transtorno posterior. Sua casa possui uma porta frontal que, segundo ele,

raras vezes foi aberta desde a construção da casa.

Casa de Silvio - Janelas e porta frontal da casa fe chadas.

Fonte: NAZÁRIO, Tatiane Gomes

Assim, as pessoas vão demarcando seus espaços, construindo suas cidades imersas em

uma “[...] ordem econômica que se propõe a dominar, destruir e esmagar tudo que se opõe a sua

visão linear: a diversidade”. (SILVEIRA; SAYAGO, 2006, p.4). Diversidade esta impossível de ser

homogeneizada, porque é social, cultural, ecológica, com múltiplas facetas, na qual o mundo

simbólico de cada sujeito expressa diferentes percepções de uma mesma realidade externa.

O simbolismo da janela, oferecendo-se ao olhar traz um novo relacionamento ambiental. “A

ordem com que ela dispõe a imagem do mundo exterior é uma forma com conteúdo fortemente

simbólico: tornamo-nos vigias da cidade, da sociedade, da natureza, do bem comum, da vida

urbana, mas somos prisioneiros dessa eterna vigilância”. (JORGE, 1995, p.93). Sua ação,

portanto, não é neutra pois dela não se pode prescindir. Seu significado pode sugerir conceitos e

exprimir visões de homem e de mundo. “[...] tinha um galpão aqui perto e ele não tinha nenhuma

janela, só uma portinha de entrada, eu ficava pensando o que seria das pessoas que trabalhavam

ali”. (SILVANA, 2006).

A janela também oferece a oportunidade de estender a casa ao horizonte. Como se o

espaço interno não ficasse restrito em quatro paredes, mas as ruas, ao bairro e tudo quanto mais

se possa olhar através da janela. “[...] pra quem está dentro eu vejo liberdade, porque ela dá

extensão a uma casa”. (RAFAEL, 2006).

A janela é o elemento de inserção do ambiente habitado (pelo homem) na paisagem, no espaço urbano, na cidade. Mediadora entre o interno e o externo, ela qualifica e quantifica esta relação. Qualifica quando, por exemplo, a vista da janela é um valor para o ambiente na qual ela está inserida. Quantifica quando, através da luz, molda o espaço, estendendo-o ou comprimindo-o, como se ele fosse uma matéria submetida à sua ação. (JORGE, 1995, p.95-100).

Tomando como exemplo Rafael, vê-se que o espaço urbano é um sistema complexo, inter-

relacionado com o homem, e por isso o modifica, assim como este o altera. Podem-se considerar

os espaços como verdadeiras extensões do próprio sujeito e, deste modo, precisa-se prestar:

[...] uma atenção bem maior ao tipo de extensões que criamos [...]. Como as extensões são inanimadas, é preciso alimentá-las com feedback (pesquisa), para sabermos o que está acontecendo, em particular no caso das extensões modeladoras ou substitutivas do meio ambiente natural. (E. HALL, 1966, apud ELALI, 1997, p.350).

Essa tendência à valorização dos aspectos perceptuais da pessoa em relação ao ambiente,

é extremamente importante na medida em que um usuário de um determinado objeto, após um

tempo de contato e convívio com aquele objeto, pode ser o sujeito que mais contribuição poderá

fornecer quanto à eficácia e utilidade do mesmo, apesar de não ser especialista no assunto. Ele,

na verdade, diz para o técnico especializado o quanto este objeto é capaz de atender às suas

necessidades. “Se uma casa não tem uma janela, não tem uma porta, como é que vai ser as

pessoas que vivem nessa casa?” (ARMANDO, 2006).

Em linhas gerais, Pertegàs (1996) entende que o simbolismo do espaço é propriedade do

mesmo. Por este ponto de vista, todo espaço possui um significado próprio e isso passa a ser

uma característica inerente dele. Segundo Latour (1992, apud CAVALCANTE, 2003) esses

elementos de abertura e fechamento dos espaços poderiam ser descritos com funções de

isolamento e passagem ou de comunicação. Assim, podem-se analisar as relações subjetivas do

indivíduo por meio da escolha de contato ou de ausência do mesmo.

Essa escolha é significativa, pois permite ao sujeito agir sobre o que está ao seu entorno,

oferecendo-lhe a possibilidade de não aceitar passivamente a influência do ambiente em sua vida,

demonstrando a principal característica do homem socializado, a distinção entre o público e o

privado.

Quando se estuda a respeito do papel da porta em separar os lugares, dar abertura ou

fechamento e dizer o que é dentro e o que é fora, ou ainda quem está dentro e quem está fora;

permite-se uni-la com outros três elementos que trazem a mesma dicotomia: os muros, as janelas

e as grades. Cada um desses itens específicos traz uma escolha de utilidade para os sujeitos,

pois poder-se-á encontrar sujeitos que não prescindem de grades e muros e dão a impressão de

estarem mais abertos ao contato. Então, o que significa esta possibilidade de escolha oferecida?

“Cada um de seus aspectos – abertura ou fechamento – propicia características específicas

ao ambiente”. (CAVALCANTE, 2003, p.282). A atmosfera criada por uma porta fechada, um muro

alto, cercas de arame farpado, muros com elementos pontiagudos limitando a passagem (cacos

de vidros, por exemplo), grades pelas janelas e cercas elétricas, em certa medida, é bastante

diferenciada da atmosfera produzida por muros baixos, portas e janelas abertas, casas sem muros

e sem grades ou com aberturas diretas para a rua. Escolher entre um e outro destes estados

significa poder agir sobre seu ambiente.

Dependendo do estado em que se encontra cada um desses elementos, podem-se fazer

referências sobre as escolhas dos sujeitos habitantes do interior da casa. Moradias com muros

baixos, com ausência de muros ou ausência de grades e portas abertas, trazem conexões entre

os espaços. Contrariamente, fechando-se a porta, estabelecendo limites entre o cercado e a

calçada por meio dos muros e criando grades que separam as janelas de seu exterior, a

privacidade é favorecida: o homem pode voltar-se para si mesmo e desenvolver atividades

privilegiadas. (CAVALCANTE, 2003)

Conclusão

A subjetividade é algo intrínseco ao ser humano. Nenhum outro animal se relaciona com o

meio físico, psíquico ou social modificando suas atitudes, absorvendo conceitos e emergindo

novas emoções. Essa característica inerente a qualquer sujeito é o que faz as sociedades

avançarem em suas formas de relacionar, pensar e construir.

A Psicologia Ambiental é uma área da Psicologia em estágio de desenvolvimento, por isso,

pode parecer estranho pensar sobre a influência exercida pelos elementos naturais e construídos

sobre o jeito de ser de cada pessoa e sobre seus relacionamentos. O ser humano está

demasiadamente acostumado a pensar que o ambiente físico é constituído apenas de material

inerte. Contudo, eles estão carregados de simbolismo, cheios de lembranças, emoções e desejos.

Esta pesquisa demonstrou a riqueza de conteúdos expressos por meio dos elementos de

abertura e fechamento das residências, trazendo novas contribuições sociais. Afinal, os sujeitos

pesquisados levantaram questões cognitivas, estéticas, afetivas e simbólicas ao imaginarem-se

nas situações apresentadas pelo pesquisador. Além disso, pode-se perceber que nenhuma fala

era isolada do contexto de vida de cada indivíduo, elas eram dependentes das relações existentes

entre os sujeitos e seus grupos, bem como das situações vivenciadas pelos mesmos no dia a dia,

seus modos de morar e de viver.

As pessoas se mostram a partir dos elementos de abertura e fechamento. Vê-se então uma

nova forma de olhar para as portas, janelas, grades e muros. Esses elementos que compõem a

residência de qualquer pessoa demonstram necessidades de segurança, proteção, privacidade;

apontam desejos estéticos; indicam o direito de propriedade e liberdade e expressam os medos,

as dificuldades e o grau de aproximação ou afastamento entre o sujeito e demais indivíduos de

suas relações.

Ao observar-se de forma mais atenta o que leva os homens a se comportarem de

determinadas formas em determinados lugares, poder-se-ia construir ambientes mais agradáveis,

atendendo as necessidades humanas de bem estar físico, psíquico, social e espiritual.

A Psicologia Ambiental, por meio de uma ação interdisciplinar com áreas afins (Arquitetura,

Geografia, História, etc.) demonstra em seus estudos o que há de íntimo e coletivo nas

sociedades, pois enxerga o homem como integrante da natureza. Ele é ator e reator do meio

ambiente, pois deixa sua marca absorvendo impressões externas e expondo sua subjetividade.

Sendo assim, é necessário atentar-se para o processo de construção da subjetividade, pois

se as pessoas se expressam em todas as suas ações, pensamentos, construções físicas e

sociais, a evolução da humanidade e das cidades estará sempre em concordância com os sujeitos

e suas constituições subjetivas.

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